Proclamar Libertação 46 - 2021-2022

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PROCLAMAR LIBERTAÇÃO

Volume 46

AUXÍLIOS HOMILÉTICOS LECIONÁRIO COMUM REVISADO DA IECLB – ANO C Editado por FACULDADES EST da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil Coordenação: Verner Hoefelmann 2021

© Editora Sinodal, 2021 Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS Tel.: (51) 3037-2366 editora@editorasinodal.com.br www.editorasinodal.com.br

Conselho editorial de Proclamar Libertação: Júlio Cézar Adam, Martin Volkmann, Paula Naegele, Robson Luís Neu, Sissi Georg, Verner Hoefelmann

Coordenação editorial: Verner Hoefelmann

Produção editorial e gráfica: Editora Sinodal

Série: Teologia Prática – Auxílios Homiléticos

Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/Programa de Pós- -Graduação em Teologia da Faculdades EST.

Tel.: (51) 2111 1400 est@est.edu.br Fax: (51) 2111 1411 www.est.edu.br

Conselho editorial: Prof. Dr. Júlio Cézar Adam (coordenador), Prof. Dr. Flávio Schmitt, Prof. Dr. Oneide Bobsin, Prof. Dr. Marcelo Saldanha

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Proclamar libertação : auxílios homiléticos : lecionário comum revisado da IECLB – ano C / coordenação Verner Hoefelmann ; editado por Faculdades Est da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. -- São Leopoldo, RS : Editora Sinodal : Faculdades EST, 2021.

ISBN 978-65-5600-024-4 1. Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil 2. Homilética 3. Teologia cristã I. Hoefelmann, Verner. II.Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil 21-82350 CDD-251

Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora.

Índices para catálogo sistemático: 1. Homilética : Cristianismo 251

Prezadas irmãs e prezados irmãos!

Mostra-nos, Senhor, a tua misericórdia e concede-nos a tua sal vação (Salmo 85.7). Com essas palavras, iniciamos o tempo de Advento e um novo ano eclesiástico. Ainda estamos convivendo com a pandemia de Covid-19, que, até outubro de 2021, já havia causado a morte de mais de 600 mil pessoas no Brasil. Milhares ainda sofrem as sequelas dessa doença. Felizmente, as vacinas e os cuidados nos dão perspectivas de superar esse momento dramático da história.

Mostra-nos, Senhor, a tua misericórdia! No ano que passou, muitas pes soas clamaram a Deus por misericórdia em meio a sofrimento, dores, aflição, cansaço, desespero, desânimo. Possivelmente muitas clamarão no novo ano. É nossa tarefa anunciar que a misericórdia de Deus dura para sempre e que Deus se compadece de cada pessoa. Esse anúncio faz a diferença e traz esperança, espe cialmente em tempos difíceis. Além de anunciar, temos o chamado para partilhar misericórdia por meio de ações. Na diaconia e no cuidado, a misericórdia de Deus também é experimentada.

Concede-nos a tua salvação! No contexto do Salmo 85, a salvação está associada à restauração do povo de Israel e é descrita nos seguintes termos: A graça e a verdade se encontraram, a justiça e a paz se beijaram. Da terra brota a verdade, dos céus a justiça baixa o seu olhar (Salmo 85.10s). Salvação não acontece sem paz, justiça, verdade. E esses são elementos que já podemos experimentar em nossa vida. Com nossas ações, não construímos a salvação nem o reino de Deus. Mas, quando nos colocamos sob a orientação da palavra de Deus, nossas ações irradiam os sinais da salvação e do reino de Deus.

Desejo que o PL 46 seja um instrumento para propagar misericórdia e salvação. Agradeço a cada pessoa que colaborou no preparo de subsídios e na pu blicação deste volume do Proclamar Libertação. Deus abençoe o anúncio e a vivência da sua Palavra.

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APRESENTAÇÃO
Pa. Sílvia Beatrice Genz Pastora Presidente da IECLB

PREFÁCIO

Com um sentimento de alegria e gratidão, colocamos em suas mãos o volume 46 de Proclamar Libertação. Ele contém 57 auxílios homi léticos do Lecionário Comum Revisado da IECLB, previstos para o Ano C e relativos ao ano litúrgico de 2021/2022. Como é praxe, o volume oferece informações exegéticas sobre os textos bíblicos, meditações com vistas à prédica e subsídios litúrgicos para pregadores e pregadoras que têm diante de si a tarefa de proclamar a palavra de Deus. Os auxílios homiléticos também podem ser consultados para outras finalidades, como a preparação de estudos bíblicos, meditações para grupos da comunidade, elaboração de mensagens para celebrações diversas. Proclamar Libertação tem sido enviado, nos últimos anos, a ministros e mi nistras que estão em atividade nas comunidades, paróquias e instituições da IECLB. O empreendimento denota o esforço da direção nacional em prover com bons sub sídios as pessoas encarregadas do ensino e da proclamação pública da palavra de Deus. Graças a iniciativas como essa, uma igreja como a IECLB pode apresentar-se ao público brasileiro com um rosto definido, sem perder sua identidade em meio ao mercado religioso e sem relegar sua missão de proclamar o reino de Deus e sua justiça em meio à preocupante realidade nacional. Expressamos nosso reconhecimen to à direção da IECLB por essa iniciativa e por essa visão; a ministros e ministras expressamos nossos votos para que correspondam a esse esforço e façam uso dos subsídios oferecidos neste volume em suas atividades ministeriais.

Por fim, não podemos deixar de externar também uma palavra de gratidão a colaboradores e colaboradoras, que com seu tempo, esforço e talento se dedicaram à tarefa de produzir os auxílios homiléticos deste volume. São essas pessoas que dão vida longa à série Proclamar Libertação. Nossa gratidão a Deus, que, por meio de seu Espírito, sempre de novo anima e inspira pessoas para essa tarefa tão premente.

Eventuais lacunas deste volume podem ser compensadas com a consulta a volumes anteriores. Todo o conteúdo de Proclamar Libertação de volumes ante riores está disponível no Portal da IECLB (https://www.luteranos.com.br) e pode ser acessado pelo mecanismo de busca do sítio: basta digitar o nome do livro bíblico por extenso, utilizando o padrão de citação adotado (por exemplo: Lucas 10.38-42 ou Lucas 10.1-11,16-20). Muito útil igualmente é o indexador disponí vel, que reúne em sequência os textos tratados.

Para acessar os textos do Antigo Testamento, utilize o link: https://www.luteranos.com.br/conteudo_organizacao/governanca-redede-recursos-auxilios-homileticos/textos-do-antigo-testamento

Para acessar os textos do Novo Testamento, utilize o link: https://www.luteranos.com.br/conteudo_organizacao/governanca-redede-recursos-auxilios-homileticos/textos-do-novo-testamento

Verner Hoefelmann

Pelo Conselho Editorial de Proclamar Libertação

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SUMÁRIO

AUXÍLIOS HOMILÉTICOS

1º Domingo de Advento – 1 Tessalonicenses 3.9-13 Ana Isa dos Reis Costella, Irineu Costella ..................................................... 11

2º Domingo de Advento – Malaquias 3.1-4 Humberto Maiztegui Gonçalves .................................................................... 18

3º Domingo de Advento – Lucas 3.7-18 Klaus Andreas Stange .................................................................................... 22

4º Domingo de Advento – Miqueias 5.2-5a Nelson Kilpp .................................................................................................. 27

Noite de Natal – Isaías 11.1-9 Nilton Giese 33

Dia de Natal – Tito 3.4-7 Jorge Batista Dietrich de Oliveira .................................................................. 37

1º Domingo após Natal – Lucas 2.41-52 Eduardo Paulo Stauder ................................................................................... 42

Véspera de Ano-Novo – Mateus 18.1-5 Vernei Hengen ................................................................................................ 47

Ano-Novo (Nome de Jesus) – Lucas 2.15-21 Paulo Renato Küntzer .................................................................................... 53

2º Domingo após Natal – Jeremias 31.7-14 Manoel Bernardino Santana Filho ................................................................. 58

Epifania – 2 Coríntios 4.3-6 Eloir Enio Weber ............................................................................................ 63

2º Domingo após Epifania – Isaías 62.1-5 Erní Walter Seibert 69

3º Domingo após Epifania – 1 Coríntios 12.12-31 Paulo Roberto Garcia ..................................................................................... 74

4º Domingo após Epifania – Jeremias 1.4-10 Norberto da Cunha Garin, Edgar Zanini Timm ............................................. 80

5º Domingo após Epifania – Lucas 5.1-11 Verner Hoefelmann ........................................................................................ 85

5
............................................................................... 9

6º Domingo após Epifania – 1 Coríntios 15.12-20 Ricardo Brosowski ......................................................................................... 95

7º Domingo após Epifania – Lucas 6.27-38 Cristina Scherer ............................................................................................ 100

Quarta-Feira de Cinzas – Joel 2.1-2,12-17 Carlos Arthur Dreher.................................................................................... 107

1º Domingo na Quaresma – Romanos 10.8b-13 Astor Albrecht .............................................................................................. 113

2º Domingo na Quaresma – Lucas 13.31-35 Diogo Rengel ............................................................................................... 118

3º Domingo na Quaresma – Isaías 55.1-9 Wilhelm Sell ................................................................................................ 123

4º Domingo na Quaresma – Lucas 15.1-3,11b-32 Osmar Luiz Witt 129

5º Domingo na Quaresma – Filipenses 3.4b-14 Kurt Rieck .................................................................................................... 135

Domingo de Ramos – Marcos 11.1-11 Adélcio Kronbauer ....................................................................................... 141

Quinta-Feira da Paixão – 1 Coríntios 11.23-26 Gottfried Brakemeier ................................................................................... 146

Sexta-Feira da Paixão – Lucas 23.33-49 Vítor Hugo Schell ........................................................................................ 151

Domingo da Páscoa – Atos 10.34-43 Rodolfo Gaede Neto .................................................................................... 157

3º Domingo da Páscoa – Atos 9.1-6(7-20) Luiz Carlos Ramos ....................................................................................... 163

4º Domingo da Páscoa – João 10.22-30 Gerson Acker 170

5º Domingo da Páscoa – João 13.31-35 Anelise Lengler Abentroth ........................................................................... 175

6º Domingo da Páscoa – Salmo 67 Léo Zeno Konzen ......................................................................................... 181

Ascensão do Senhor – Mateus 28.16-20 Júlio Cézar Adam ......................................................................................... 186

6

Domingo de Pentecostes – Romanos 8.14-17

Leonídio Gaede ............................................................................................ 192

1º Domingo após Pentecostes (Trindade) – Romanos 5.1-5 Hans Alfred Trein ......................................................................................... 197

2º Domingo após Pentecostes – Lucas 8.26-39 Marcelo Jung ................................................................................................ 204

3º Domingo após Pentecostes – 1 Reis 19.15-16,19-21 Marivete Kunz ............................................................................................. 213

4º Domingo após Pentecostes – Lucas 10.1-11 Flávio Schmitt .............................................................................................. 219

5º Domingo após Pentecostes – Colossenses 1.1-14 Evandro Jair Meurer .................................................................................... 225

6º Domingo após Pentecostes – Lucas 10.38-42 Marcia Blasi, Marli Brun, Taiana Luisa Wisch 231

7º Domingo após Pentecostes – Gênesis 18.20-32 Gerson Correia de Lacerda .......................................................................... 236

8º Domingo após Pentecostes – Lucas 12.13-21 Claiton André Kunz ..................................................................................... 242

10º Domingo após Pentecostes (Dia dos Pais) – Lucas 12.49-56 André Luiz Martin

....................................................................................... 247

11º Domingo após Pentecostes – Isaías 58.9b-14 Roger Marcel Wanke.................................................................................... 251

12º Domingo após Pentecostes – Lucas 14.1,7-14

Cristiano Ritzmann

...................................................................................... 260

13º Domingo após Pentecostes– Filemom 1-21

Uwe Wegner, Carla Andrea Grossmann

...................................................... 264

14º Domingo após Pentecostes – Lucas 15.1-10

Beatriz Regina Haacke 276

15º Domingo após Pentecostes – Amós 8.4-7

Ruben Marcelino Bento da Silva

................................................................. 281

16º Domingo após Pentecostes – Lucas 16.19-31

Heiko Grünwedel

......................................................................................... 288

17º Domingo após Pentecostes – 2 Timóteo 1.1-14

Alberi Neumann, Paulo Sérgio Macedo dos Santos .................................... 295

7

18º Domingo após Pentecostes – Lucas 17.11-19

Wagner Tehzy............................................................................................... 299

19º Domingo após Pentecostes – Gênesis 32.22-31

Teobaldo Witter ............................................................................................ 304

20º Domingo após Pentecostes – Lucas 18.9-14

Antonio Carlos Oliveira, Gabriel Henrique de Oliveira Pinto ..................... 311

21º Domingo após Pentecostes – Lucas 19.1-10

Roberto Ervino Zwetsch .............................................................................. 317

Dia da Reforma – Filipenses 2.12-13

Odair Airton Braun ...................................................................................... 326

Finados – Romanos 8.31-39

Daniel Kreidlow ........................................................................................... 331

23º Domingo após Pentecostes – Lucas 21.5-19

Roberto Natal Baptista 337

Domingo Cristo Rei – Lucas 23.33-43 Werner Wiese ............................................................................................... 341

AUXÍLIOS ESPECIAIS .................................................................................. 347

Texto-base – Tema do Ano 2022 ...................................................................... 349 ÍNDICES .......................................................................................................... 355

Temas e textos nos volumes I – 46 .................................................................. 355 Perícopes dos volumes I – 46........................................................................... 361

AUXÍLIOS HOMILÉTICOS

PRÉDICA: 1 TESSALONICENSES 3.9-13

JEREMIAS 33.14-16 LUCAS 21.25-36

1º DOMINGO

DE ADVENTO

No intervalo dos adventos: em gratidão, vivamos o amor mútuo

1 Introdução

Advento inicia um novo ano da igreja. Mas é, também, tempo de encerra mentos e de preparação para o final do ano, conforme calendário civil. Desde minha infância, o Advento traz consigo um encanto: ainda não é Natal, mas já estamos em preparação, em clima natalino. Também traz cheiros bem característicos: da limpeza da casa e dos armários, de cortinas lavadas, de bolachas assando, de galhos de pinheiro pendurados nas portas e no arranjo da coroa, de velas acesas sempre uma a mais a cada um dos quatro domingos. Há um clima no ar, um “já” e um “ainda não”, uma espera ativa, uma expectativa de fim e novo começo.

Os três textos apontam nesta direção, para um fim e um novo começo:

a) Jeremias 33.14-16 apresenta a promessa da restauração da casa davídi ca, uma esperança em tempos de exílio. Para as pessoas cristãs, esse broto novo, que exercerá o direito e a justiça, é Jesus;

b) Lucas 21.25-36 aponta para a segunda vinda de Jesus, mas, também, pode apontar para sua morte e ressurreição; até que esse novo venha, há um cha mado para vigiar e instruções para a vida;

c) 1 Tessalonicenses 3.9-13 aponta para a parousia (o fim de uma realidade de opressão, exclusão e morte e início de um tempo de igualdade, fraternidade e sororidade na presença do Senhor, que é Jesus) e chama à vivência do amor como sinal de que já há um novo tempo (pois Jesus já veio e continua entre nós por meio da presença do Espírito Santo), ainda que não em sua plenitude (a igreja em Tessalônica esperava a volta de Jesus para um tempo bem próximo).

Quanto à delimitação do texto de 1 Tessalonicenses, fica a critério da pes soa que irá pregar a inclusão ou não dos versículos 6 a 8, que apontam o motivo da alegria que perpassa toda a carta.

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28 NOV 2021

2 Exegese

2.1 – Sobre Tessalônica, autores da carta, datação e a Primeira Carta aos Tessalonicenses

Tessalônica era a capital da Macedônia, situada ao fundo do golfo Termai co, junto a uma cadeia de colinas. Tessalônica era muito bem servida por estradas, inclusive pela via que ligava o Oriente a Roma. Era também servida por um dos melhores portos do mar Egeu. Tessalônica era um importante centro comercial que favoreceu a exploração das riquezas agrícolas e minerais da Macedônia. Com privilégios de colônia romana, atraía comerciantes ricos, latifundiários ganan ciosos e militares aposentados. Mas era, também, uma típica cidade escravista/ escravagista, talvez dois terços de sua população. Ser uma pessoa escrava signi ficava pertencer a um patrão, sem ter o direito de exercer sua cidadania nem de participar das decisões da assembleia do povo.

Tessalônica foi fundada por volta do ano 300 a.C. por Cassandro, general de Alexandre Magno. O general Cassandro era casado com Tessaloniké, quase irmã de Alexandre, que inspirou o nome da cidade. Tessalônica tornou-se província romana em 146 a.C., passando a ser sede do procônsul em 42 a.C. Sua população era heterogênea. Para sua colonização, Roma levou para Tessalônica ítalos, sírios, egípcios e judeus.

A igreja de Tessalônica foi fundada por Paulo, Silvano (Silas em grego) e Timóteo, por volta do ano 50 d.C. O livro de Atos, escrito quase 30 anos depois, conta a história dessa igreja (At 17.1-15). Paulo e Silvano foram, em sua segunda viagem missionária, até Tessalônica e pregaram o Evangelho durante três sema nas na sinagoga local. Após forte polêmica, transferiram-se para a casa de Jasão e, depois, tiveram que fugir. As comunidades judaicas: a) temiam perder seus privilégios legais: desde Júlio César, a religião judaica passou a ser uma religio licita, religião permitida por lei, que concedia benefícios a exemplo da celebração do sábado, de ler o Antigo Testamento na sinagoga, de não precisar prestar culto ao imperador – ainda que houvesse um sacrifício a Javé por ele; b) as sinagogas não queriam ser identificadas com a novidade cristã; c) não queriam perder os pri vilégios, nem sua força política nem atrair a oposição das autoridades romanas. Os apóstolos foram acusados de subversão política e, desta forma, autoridades e sociedade se veem envolvidas no conflito. Diante de tanta oposição e perseguição, Paulo e Silvano tomam uma atitude de prudência e coragem: fogem de Tessalônica, mas continuam a missão.

O conflito se deu porque a pregação incomodou muita gente e de diversas formas. A mensagem dos apóstolos anunciava que Jesus, morto na cruz, era o Cristo ressuscitado e portador da salvação, que apenas esse Cristo é o Senhor (o Kyrios) e não o imperador. Anunciava que Jesus viria em poder e glória e que as pessoas que participassem da ekklesia eram irmãos e irmãs, que se reúnem como igreja para aprofundar a fé e reivindicar seus direitos. Muitas pessoas ouviram essa mensagem e muitas delas acolheram-na e desejaram fazer parte dessa co-

12 1º Domingo de Advento

munidade de irmãos e irmãs. A maioria dessas pessoas era pobre, da periferia, acostumada ao trabalho escravo e braçal, que vivia em um contexto econômico, social, político e religioso massacrante. A pregação dos apóstolos encheu essas pessoas de esperança, de que um novo mundo era possível.

A carta foi escrita por Paulo, Silvano e Timóteo. A carta é considerada o primeiro texto do Novo Testamento, escrita por volta do ano 51 ou 52 d.C. Essa carta foi o primeiro documento bíblico a falar de perseguição às pessoas cristãs. Depois da fuga, Paulo vai a Atenas. Assim como os demais, ele estava preocupado e angustiado com a comunidade de Tessalônica, onde o trabalho não fora concluído e de onde vinham notícias contraditórias. Então Timóteo é envia do ao local. Quando retorna, eles se encontram em Corinto e Timóteo traz boas notícias. Apesar da perseguição, as pessoas cristãs de Tessalônica mantiveram a firmeza da fé, o esforço do amor e a constância da esperança (1Ts 1.3). É nesse clima de alegria e alívio que a Primeira Carta aos Tessalonicenses é escrita.

2.2 – Olhando cada versículo

V. 6-8 – Relatam o retorno de Timóteo (que fora enviado para averiguar, animar e confortar a igreja perseguida), trazendo as alegres notícias sobre a fé, a perseverança e a prática do amor dessa comunidade. Assim como os três apósto los, também as pessoas cristãs da comunidade guardam afetuosa memória entre si. Apesar da distância, da precariedade das viagens, da perseguição, das dificul dades de informações, da angústia por falta de notícias precisas, elas não estão isoladas umas das outras, mas em unidade, a ponto de desejarem se rever (v. 10). Para os apóstolos, cujo zelo pastoral é expresso com o exemplo da mãe (2.7) e do pai (2.8), o resumo das informações e da experiência do próprio Timóteo junto à comunidade enche-os com grande alegria, renova o ânimo e envolve-os em gratidão. A comunidade é formada de irmãos (v. 7), palavra que aparece 19 vezes na carta e que retrata uma realidade totalmente diferente daquela do império, onde eram explorados. Agora eles eram parte dos irmãos eleitos ou amados de Deus (1.4) e participavam da ekklesia, sendo que, antes, a maioria desses irmãos e irmãs não tinha possibilidade de participar de nenhuma organização. Se eles são irmãos a partir do Deus que é Pai, eles também têm um compromisso de vida fraterna (4.9-12) e igualitária. Bem o reverso da ideologia romana.

V. 9 – É a terceira vez na carta que os apóstolos nomeiam a “ação de gra ças” (1.2; 2.13; 3.9). Apesar da situação de perseguição que apóstolos e comuni dade enfrentam, sempre há motivos de agradecimento: Deus está na comunidade e a mantém firme; as pessoas cristãs da comunidade acolheram a palavra que os apóstolos anunciaram como sendo palavra de Deus e se mantêm firmes nessa palavra; a comunidade vive a fé e o amor mútuos; os apóstolos recebem as boas notícias de que a evangelização não foi em vão, a comunidade foi formada. A expressão “diante de Deus” aponta para uma mentalidade teocêntrica, afirmando

13 1º Domingo de Advento

que de Deus tudo provém e que nele tudo tem referência, inclusive é Deus a ga rantia amável da caminhada das primeiras comunidades cristãs.

V. 10 – O desejo e os esforços para retornar a Tessalônica devem-se a dois motivos principais: a) expressão de ação de graças pela comunidade manter-se unida em fé, amor e esperança e b) continuar a evangelização. Mesmo firmes, as pessoas da comunidade têm dúvidas (a exemplo do que acontece com as pessoas falecidas), precisam receber mais orientações a partir do Evangelho (a exemplo da parousia, que se esperava iminente), receber orientações para a vida comunitária a fim de se fortalecerem na vivência em comunidade, na resistência contra o mal, na preparação para a parousia e na construção da igualdade e da solidariedade.

V. 11 – É uma palavra de oração, reforçando o desejo de voltar à evangelização de Tessalônica. Nessa oração, há o reconhecimento de que a missão é de Deus, portanto o pedido se dirige a Deus para que ele os faça seus missionários e os ajude a vencer as forças do mal (2.18; 3.5) que tentam obstruir o caminho e remova os obstáculos. O versículo expressa que as pessoas cristãs, diferentemente de outras religiões, têm um Deus que é Pai (33 vezes aparece na carta) e, dife rentemente dos romanos, têm um Senhor que promove a vida: Jesus. A palavra Kyrios referida a Jesus aparece 21 vezes na carta. Interessante a tabela que Joel A. Ferreira (p. 32) apresenta referente a Tessalônica:

* notáveis e classe dominante: César é o senhor;

* judeus: Javé é Deus, mas pedimos por César;

* pessoas cristãs: Jesus, Filho de Deus, o Ressuscitado, é o Senhor. Nem César nem outro ídolo é o Senhor.

V. 12 – Em um segundo momento, os três apóstolos pedem ao Senhor (Kyrios, Jesus) que faça as pessoas cristãs da comunidade crescerem e enriquece rem no amor. Deus, que é amor, pode aumentar esse amor agape, o qual Timóteo já pôde testemunhar. Esse amor agape é o laço que os une em uma igreja fraterna e sororal e os anima a amar o próximo também fora da comunidade, sendo um testemunho vivo a toda criatura. O amor é capaz de superar, inclusive, as difi culdades. Esse amor agape, que vem de Deus, gera, na comunidade, comunhão, unidade, capacidade de organização e resistência contra o mal. Os remetentes afirmam seu amor para com a comunidade, demonstrando que, apesar da distância física, eles estão presentes na vivência fraterna, fazendo parte de uma mesma igreja, em que o amor é o princípio de toda ação comunitária e um elo que cria vínculos, permitindo experimentar, já aqui, sinais de um novo tempo.

V. 13 – A oração segue pedindo a Deus pelo fortalecimento da comunida de, tanto na fé quanto na vivência do amor. A palavra coração pode significar a totalidade do ser humano, seus desejos, suas palavras e ações. Firmes no amor que vem de Deus, as pessoas cristãs são chamadas à santidade. Viver na santidade é viver de modo a agradar a Deus. Isso significa romper com práticas como: os vícios do antigo paganismo (4.3-8), a ociosidade (4.11s), a preguiça (5.14), a fra

14 1º Domingo de Advento

queza (5.14), a covardia (5.14), a inveja (5.12), a injustiça e a hostilidade (5.15), a diminuição do amor (3.12), as faltas morais (3.10), a imperfeição (3.12; 4.10; 5.23). É preciso ser diferente do sistema do império, que oprime, exclui e mata. Importa apostar nas virtudes teologais: fé (aparece nove vezes na carta), amor (aparece sete vezes na carta), esperança (aparece quatro vezes na carta). Esse versículo aponta para a parousia, a vinda ou presença do Ressuscitado. A carta possui uma linguagem apocalíptica dentro de um gênero exortativo, por apontar para o futuro, para a ressurreição e vinda do Senhor. E, desta forma, aguçar a esperança e animar na preparação para um novo tempo, do qual já se tem sinais.

3 Meditação

Depois de mais um ano de pandemia, de mortes e mais mortes, de aumento de casos e hospitais lotados, parece que a vacina acende uma esperança. Até a me tade deste ano, contudo, eu ainda não tinha sido vacinada. Estou na esperança para o próximo mês. Estamos todos na esperança no fim de um tempo para o começo de um novo tempo. À espera do fim de um tempo de pandemia, mas também de ódios e polarizações, fake news, de desmatamento e de desconstrução de sistemas de preservação do meio ambiente, de injustiças e mentiras. Ansiamos por um tempo novo: sem medo de contrair e transmitir o vírus – que matou tanta gente e deixou sequelas em muitas outras –, sem máscaras; tempo de abraços demorados, de en contros da galera, de mesas partilhadas, de visitas sem medo, mas também de renovação de atitudes e pensamentos para que esses novos tempos sejam de vida plena, igualitária, digna para todas as pessoas e toda a criação de Deus. Advento é tempo de encerrar e recomeçar. É como se tudo pudesse ser renovado. Na história da minha família, assim como na de muitas outras, Advento era tempo de reorganizar: armários, escritório, sala, cozinha, o “quartinho da bagunça”, separando o que não serve mais para pôr no lixo reciclável, para doar ou para guardar no lugar certo. Era tempo de limpar e lavar todos os cômodos da casa, os móveis, as cortinas, as toalhinhas, deixando para trás o acúmulo de um ano de correrias, de poeiras daquilo que não foi bom. Era também tempo de decorar a casa, de preparar a Coroa de Advento, colocar os ramos nas portas, as toalhinhas de Natal, os enfeites. Tempo de encerramentos dos grupos da igreja, do teatro do Culto Infantil – ensaiado muitas vezes para dar tudo certo; tempo de esperançar o encontro para o novo tempo que virá; de cultos de Advento e seu encanto ao acender uma vela a mais a cada domingo e poder ir contando nos dedos que o Natal já vem. Tempo de juntar a família e fazer aquela receita tradi cional dos biscoitos/bolachas de Natal (e pintar cada um), do Stollen, do sabor do panetone. E já ir olhando onde buscar o pinheirinho e o que haveria no bolso para comprar um presentinho para cada um e cada uma. Tempo de montar o presépio e, me lembro bem da minha emoção, até hoje, ao fazer isso, contar a história da quele primeiro Natal, quando Deus decide vir morar no meio de nós em Jesus, a frágil criança que experimentou o madeiro na manjedoura em seu nascimento e, na cruz, em sua morte.

15 1º Domingo de
Advento

Advento é esse tempo de prepar-ação, de espera ativa, de expectativa e, também, de encerrar, fechar um tempo, agradecer pelo que foi bom, perdoar o que precisa ser perdoado, romper com tudo o que nos levou para longe do Deus revelado em Jesus. Ao recontarmos o primeiro Natal, é necessário apontarmos para Jesus que virá, ainda que não saibamos o tempo. É nesta esper-ação que a comunidade de Tessalônica vivia. A fé em Jesus, o verdadeiro Kyrios, que já veio, que já inaugurou um novo tempo e que virá em plenitude e instaurará o Reino de Deus (e não de Roma ou de impérios que subjugam, exploram e matam quem mais precisa de proteção e cuidados), era o alimento dessa comunidade. Uma comunidade que experimentava perseguição, assim como outras comunidades cristãs, porque se mantinha firme na fé em um Deus que promove vida digna para todas as pessoas, um Deus de inclusão e de misericórdia, porque baseava seus relacionamentos em ações de amor, extensivos aos de fora da comunidade, porque propunha uma organização fraterna de comunidade e que deveria ser expandida à sociedade, porque ancorava sua esperança no Jesus que foi morto, mas ressuscitou, que é o Senhor da vida e da morte, o Salvador, o Messias esperado, o cumprimento das promessas. Advento, para a comunidade de Tessalônica, era romper com o tempo que experimentava, em que escravidão, exploração e injustiça eram a realidade da grande maioria das pessoas, e iniciar um novo tempo, em que Jesus, o Senhor, instauraria o reino da justiça e do amor, da igualdade e da libertação, da ressurreição.

Vivemos o tempo entre os dois adventos, o do já e do ainda não. Nesse intervalo, somos chamados, desafiados e convocados a crescer e nos enriquecer em amor. Mesmo com notícias de aquecer o coração, Paulo, Silvano e Timóteo oram, pedindo que os tessalonicenses cresçam e se enriqueçam no amor mútuo. Essa deveria ser a forma de viver das pessoas cristãs, o impulso para celebrar, para ser igreja. Amor mútuo traduz-se na concreticidade da vida, dentro e fora dos muros de nossas comunidades. Não porque temos medo do fim dos tempos, do começo de um novo ou do julgamento, mas porque fomos chamados pelo nome em nosso Batismo pelo Deus da vida, fomos marcados com a cruz de Cristo, fomos selados com o Espírito Santo e, como tal, faz parte da natureza da pessoa cristã se colocar como serva por e em amor, pois reconhece que tudo vem do Deus de amor. Viver o amor mútuo também não nos dá pontinhos extras na nossa caderneta diante de Deus e nem nos faz subir degraus para estarmos mais perto do céu ou da perfei ção. Vivemos o amor mútuo em gratidão, porque Deus nos amou primeiro, em comprometimento com nosso Batismo, em resposta de fé e na convicção de que uma nova sociedade é possível e se faz urgente, um mundo em que nos enxerga mos como irmãos e irmãs, em que fazemos parte de um mesmo grupo e pensamos como um mesmo grupo: a humanidade.

Como preparar-se para o Natal? Como viver o Advento? Orientando sen timentos, pensamentos, palavras, gestos, atitudes, ações e programas pelo amor mútuo, pelo amor que procede de Deus, pois Deus é Amor; pelo amor que se materializa na solidariedade, na empatia, na verdade, na preservação e cuidado da natureza, na gentileza, no respeito, na inclusão, na tolerância, na justiça, na paz. Advento é tempo de faxinar também nossos sentimentos, pensamentos, nossa

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mente, nosso coração, nossas ações, rompendo com tudo que nos afasta do verda deiro Kyrios. É tempo de assumir o amor mútuo como marca registrada.

4 No horizonte da pregação

A pessoa que irá pregar poderá ter em seu horizonte as seguintes questões: Quais são motivos de ação de graças?

– Quais as formas de perseguição hoje?

– Como preparar-se no intervalo dos adventos que vivemos?

– Como viver o amor mútuo no dia a dia da vida?

5 Uma possibilidade litúrgica

Onde houver a possibilidade, manter o ambiente na penumbra (se à noite) ou sem luzes acesas (se durante o dia), lembrando que a perseguição sofrida pela comunidade de Tessalônica e pelos apóstolos, assim como as diversas formas de perseguição, opressão, exclusão e morte atuais são sinais de trevas, que nos assustam, dão medo, paralisam ou nos lançam na inércia. A comunidade de Tes salônica não estava sozinha, assim como nós hoje. Deus, que é como um Pai, uma Mãe (ainda que bem mais do que a soma dos dois), está ao nosso lado, Jesus venceu as forças do mal, o Espírito Santo sopra e anima a estar em comunidade, a comunidade vive em amor mútuo e permanece na constância da esperança: eis que a luz vence as trevas.

Bibliografia

FERREIRA, Joel Antônio. Primeira Epístola aos Tessalonicenses. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1991. NOVA BÍBLIA PASTORAL. São Paulo: Paulus, 2014.

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DOMINGO 05 DEZ 2021DE ADVENTO

O mensageiro da esperança

1 Introdução: Insistir na esperança!

PRÉDICA: MALAQUIAS 3.1-4

LUCAS 3.1-6 FILIPENSES 1.3-11

Estamos no tempo do Advento. Esse tempo nos lembra de que Deus veio ao encontro da humanidade como Palavra Encarnada, e virá para a grande festa da consumação da redenção de toda a criação. Essa esperança já era alimentada no século quinto antes de Cristo, quando foi redigido o livro profético de Mala quias. O templo, grande referência da fé judaica, que havia sido destruído durante o domínio babilônico mais de um século antes, já havia sido reconstruído. No entanto, tinha se mostrado, em si mesmo, insuficiente para concretizar o sonho libertador de Deus no meio do seu povo. A última esperança estava no “mensa geiro da aliança”.

O Evangelho de Lucas resgata a profecia de Isaías, somando-se a Marcos e Mateus, onde a esperança da presença do Senhor recai em retirar os obstáculos que impedem a plena libertação e redenção (Lc 3.3-5). A mesma esperança en contramos na carta do apóstolo Paulo à comunidade de Filipos, chamada a seguir se aperfeiçoando na realização da tarefa evangelizadora e missionária “até o dia de Jesus Cristo” (Fp 1.6b).

2 Exegese de Malaquias 3.1-4: o manifesto, o mensageiro e a mensagem

Não sabemos quem foi historicamente “Malaquias”. O nome significa “mensageiro” ou “anjo de Iahweh” Portanto é possível que não se trate de um nome próprio, mas do pseudônimo de um sacerdote sem grande projeção em seu tempo, que acolheu e representou a voz de sua classe sacerdotal, ou era simplesmente o título dado a esse manifesto sacerdotal. O contexto de onde emerge esse “manifesto sacerdotal” é também paradoxal. Por um lado, o templo de Jerusalém já tinha sido reconstruído (entre 520 e 515 a.C.), onde atuaram o profeta campo nês Ageu e o profeta sacerdotal Zacarias (1 – 8). De certa forma, a reconstrução do templo estava no centro do projeto sacerdotal que tinha sido acalentado du rante os longos anos do Exílio Babilônico (587-538 a.C.). Mas a bênção que viria imediatamente pela reconstrução da “Casa de Deus” entre seu povo, conforme anunciaram Ageu e Zacarias, não aconteceu.

O grupo representado por Malaquias é uma segunda geração – já no século 5 – frustrada porque, embora o templo estivesse ali, a realidade estava indo de mal a pior. Com base na análise feita por Norman Gottwald, podemos entender

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Humberto

que o manifesto se articula da seguinte forma: 1. Iahweh ama Israel mais do que a Edom (1.1-15); 2. Iahweh não se agrada com os sacrifícios feitos com animais não adequados, por causa do descaso do povo e as negligência sacerdotal (1.6 –2.9); 3. Iahweh não se agrada com os homens que deixam suas esposas da goláh (de famílias descendente de exilados na Babilônia) para casar com mulheres não descendentes dessas famílias chamadas de “estrangeiras” (2.10-16); 4. Iahweh enviará o “mensageiro da aliança” para corrigir tanto a classe sacerdotal quanto o laicato que não viviam a “justiça” (2.17 – 3.5); 5. Iahweh condena o povo campo nês que retém os dízimos que deveriam ser dados para o sustento do templo e do sacerdócio, trazendo más colheitas (3.6-12); 6. Iahweh assegura que fará justiça para as pessoas que praticam a justiça sacerdotal e castigará aquelas que não a seguem (3.13 – 4.3) (GOTTWALD, 1988, p. 474).

A abordagem desse grupo reflete divisões internas entre a classe sacerdotal e uma completa falha na comunicação do projeto de vida em Iahweh, tanto dentro do próprio corpo sacerdotal quanto, e especialmente, da classe camponesa que tinha se enriquecido durante o exílio das elites e que não entendiam a conexão entre a piedade do templo/sacerdócio e a sustentabilidade da produção (colheitas). No entanto, a visão é bem estreita, equiparando justiça com “piedade”, na limitada compreensão do sacerdócio, o que servirá de base para a reforma de Esdras e Neemias logo depois.

2.1 O texto em si

O manifesto é muito bem escrito, bem construído e preservado, e sua es trutura revela muito sobre sua intencionalidade. Nos versículos 3.1-4 – separados como texto de prédica deste domingo – estamos no centro desse manifesto onde, segundo o pensamento hebraico, se coloca o escopo de toda a mensagem. No entanto, do ponto de vista exegético, a perícope talvez possa iniciar em 2.17, o que pode ser questionado por causa de segunda pessoa do plural que vem em continuidade com o texto anterior, mas que, certamente, deve se estender até 3.5, abrindo e fechando com a expressão: Iahweh Sabaot (3.1,5), que estrutura todo o manifesto, repetindo-se 24 vezes.

A – (3.1) – A apresentação do chamado “meu mensageiro” (malea’ki), “preparando o caminho” (cf. Is 40.3), cuja grandeza teológica se reafirma como “mensageiro da aliança” (maleake haberit), ocupando o “templo” (hekal), como “o Senhor” (haadon) que “buscam”, isto é, o “chefe”.

B – (3.2) – A segunda parte do versículo (vemi ha´omed) faz referência direta ao Salmo 130.3 (mi ´emod), “quem ficará de pé”, sendo que o tema da “vinda”, embora se menciona o dia, parece misturar referência a Isaías 40.10 e Joel 2.1,31.

C – (3.3) – O “artífice”, “artesão” ou “ourives” (tzarak) é uma figura pre sente na mesma perícope de Dêutero-Isaías, que serviu de referência em 3.1 (cf. Is 40.7-8), aqui para purificar o sacerdócio (“filhos de Levi”), permitindo que realizem uma oferta justa a Iahweh.

19 2º Domingo de Advento

B’ – (3.4) – A nova oferta, ou novo serviço sacerdotal, possibilitará a res tauração da “justiça”, ligando-se a “B” no sentido da “aliança” e do “templo”, aqui equiparados com a “oferta” do lugar Judá/Jerusalém.

A’ – (3.5) – Aqui se amplia o sentido da justiça, pois o mensageiro será “testemunha”, não apenas contra quem retirou a dignidade da oferta sacerdotal e praticou atos contrários à aliança, mas também contra quem explorou pessoas pobres (jornaleiro/a, órfão, viúva, estrangeiro etc.).

Podemos ver que o manifesto retoma o sonho da comunidade de segundo Isaías (40 – 55) do retorno das pessoas exiladas como restauração da aliança, que, segundo o grupo que elabora esse manifesto, passa pela reestruturação da dignidade do sacerdócio exercido no templo.

A esperança está na ação de Iahweh, que no dia da vinda do mensageiro poderá purificar e moldar o sacerdócio para que se torne, realmente, instrumento da aliança em dignidade (no sentido da devida adoração a Deus) e em justiça (no sentido de promover a vida e partilha entre todas as pessoas).

2.2 O texto para nós: viver

a fé,

mais do que os templos

O livro de Malaquias tem que ser lido dentro da caminhada histórica que inicia com a destruição do templo de Jerusalém e seu impacto na teologia judaíta, que estava totalmente centrada nele. Mesmo com as profecias que reconstruíram essa teologia, como a dos ossos secos de Ezequiel (37.1-25) ou do novo céu e a nova terra do Terceiro Isaías (65.17), nunca se abandonou o sonho de um novo templo como símbolo catalizador da esperança do povo (Ez 41; Is 44.28). Essa esperança teve um momento de aparente realização, superando a indiferença de camponeses que se enriqueceram durante o exílio, quando, sob o patrocínio imperial persa, Ageu e Zacarias deram apoio profético ao projeto de Zorobabel e o sumo sacerdote Josué, chegando à reconstrução do templo em 520 a.C.

No entanto, a esperança que parecia ter sido atendida falhou, pois o tem plo, sem o compromisso do povo e do sacerdócio com a vivência da fé, era apenas uma estrutura pesada e vazia, que nem sequer estimulava o compromisso do sa cerdócio com seu próprio ministério, como denuncia o manifesto de Malaquias. No Segundo Testamento, esse Jesus que “chega” e “vem” é Deus, que quer habitar no meio das pessoas, ou “acampar”, se fazer “carne” (Jo 1.1,14). O “tem plo” será destruído e reconstruído por meio da cruz-ressurreição, que acolhe todas as pessoas (cf. Mc 13.1-2; Mt 26.61, entre outros). Aparece também a frase: O Altíssimo não habita em templos feitos por mãos humanas (At 7.48a;17.24b; 2Co 5.1; Hb 9.11), que embora remeta ao profetismo, como no caso de At 7.49-50 e Is 66.1-2, é uma interpretação que certamente reflete a total destruição do templo em 70 d.C., e a necessidade de construir novas bases para o judaísmo, aproveitada pela teologia cristã para ilustrar a igreja que nasce da ação do Espírito Santo na vida das pessoas.

A pandemia de Covid-19 impossibilitou de nos encontrar nos templos e espaços litúrgicos tradicionais, não só pela força da lei, mas por amor a todas as pessoas, evitando que nossa prática comunitária de fé se tornasse mais um espaço

20 2º Domingo de Advento

de contaminação. Essa experiência oportunizou a busca por novas formas, igual mente comunitárias, sem ter contato físico, de viver a fé. Essa situação nos levou a redescobrir que de fato “Deus não habita em Templos feitos por mãos huma nas”. Como desafiou o manifesto de Malaquias, a igreja é feita pelo compromisso das pessoas na vivência da fé (cf. Fp 1.3-11) e na disposição de exercermos o sacerdócio de todo o povo de Deus e o ministério ordenado (cf. 1Pe 2.5,9), indo ao encontro da vontade divina de acolher e incluir todas as pessoas.

3 Imagens para a prédica

Tem circulado nas redes sociais imagens da igreja feita por pessoas em for ma de templo, com o lema “Igreja Somos nós, Corpo de Cristo”, e muitas outras iniciativas que resgatam a igreja como comunidade, povo de Deus em comunhão e vida. Certamente é uma lição tirada da experiência da pandemia, que deve per manecer e que poderá renovar nossa vivência de fé, inclusive quando for possível voltar a nos encontrar nos templos e espaços comunitários.

Outras imagens podem ser aquelas que lembram experiências de fé feitas durante a pandemia, tanto aquelas que aconteceram nas redes sociais quanto aquelas de ação solidária também fora dos templos. Finalmente podemos construir, até com crianças, uma imagem do templo de nossa comunidade com pequenos “tijolos” que contenham o nome das dife rentes famílias ou das pessoas que fazem parte da comunidade, e no meio dela a cruz de Cristo.

4 Subsídios litúrgicos

Escolher hinos e cânticos para a celebração que falem da igreja como Cor po de Cristo. No momento da oração, agradecer pela resistência e resiliência em tempos de pandemia e pedir por todas as pessoas que sofreram de diferentes formas durante esse período.

Bibliografia

GOTTWALD, Norman. Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica. São Paulo: Paulinas, 1988.

21 2º Domingo de Advento

DOMINGO

DEZ 2021DE ADVENTO

1 Introdução

Ética do arrependimento

PRÉDICA: LUCAS 3.7-18

ISAÍAS 12.2-6 FILIPENSES 4.4-7

Que associações nós fazemos quando ouvimos a palavra arrependimento? Será que arrependimento não se tornou uma palavra estranha, quando não cons trangedora para nós? Parece-me que há uma tendência generalizada a se com preender arrependimento como se fosse um castigo: algo não deu certo e agora eu sofro as consequências. “Estou arrependido. Mas arrependimento é o preço que preciso pagar por ter sido descuidado”. O objetivo do arrependimento, nesse caso, é tentar consertar, ajustar o que deu errado. Arrependimento é o tema central da pregação de João Batista. Arrependi mento também é tema de destaque para o período de Advento. Advento significa preparar-se para a vinda de Jesus. Portanto estar preparado para a vinda de Jesus implica arrepender-se dos maus caminhos e voltar para os braços de Deus. Sig nifica que reconhecemos e confessamos nossa culpa e nosso pecado diante de Deus – às vezes, também diante de pessoas. Arrepender-se é lamentar, odiar e abandonar o erro e, a partir da fé em Jesus, viver em novidade de vida. A parábola dos dois filhos contada por Jesus em Lucas 15 ilustra o cerne do sentido e signifi cado do arrependimento. Arrepender-se é voltar para a casa do Pai, para os braços estendidos do Pai. Talvez exatamente pelo fato de arrepender-se estar relacionado com um caminho, um processo de volta para casa, temos tantas dificuldades para compreender e viver arrependimento: não estão mais no nosso horizonte a casa do Pai, os braços estendidos de Deus, a festa no céu preparada pelo Pai por causa de um pecador que se arrepende. Para muitas pessoas, essas imagens soam como pura especulação, como uma fé ingênua. Por isso a prédica deste domingo deverá acentuar, destacar que arrependimento não é castigo, mas é ter saudades da casa do Pai, é voltar para casa, para os braços estendidos do Pai.

2 Exegese

Contexto (v. 1-2) – Quando observamos o contexto da perícope, fica bem evidente a pesquisa histórica que Lucas desenvolve para escrever o seu evan gelho. Objetivo do evangelista é demonstrar o agir de Deus em meio à história humana. Por isso ele destaca o fato de a nossa história ser transversalizada pelo agir de Deus. Lucas menciona representantes/ícones do poder político e religioso no início do capítulo. A interferência de Deus na história humana é destacada na

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expressão [...] veio a palavra do Senhor a João, filho de Zacarias. Os poderosos deste mundo exercem seu domínio e poder, mas não concorrem com o agir sobe rano de Deus, que vocaciona João como seu porta-voz. João é apenas uma voz que clama no deserto. Ele apenas prepara o caminho. O servo de Javé, o Messias, ainda vem.

Ministério (v. 3-6) – O ministério de João Batista é descrito com uma cita ção do profeta Isaías (capítulo 40). Num anúncio de restauração do povo de Israel que se encontrava no exílio, ele descreve a construção de um caminho que se es tende da Babilônia até Jerusalém. Na construção desse caminho, que atravessa o deserto, os montes são nivelados e os vales, aterrados. Interessante observar que, em analogia ao caminho, Lucas cita João Batista. No Evangelho, não é mais um caminho que atravessa o deserto, mas o próprio João se encontra no deserto. Em outras palavras: Israel deveria preparar-se para a salvação de Deus do exílio na Babilônia; os povos deveriam preparar-se para a vinda do Messias; também nós precisamos nos preparar para a vinda de Jesus.

Mensagem (v. 7-9) – João Batista pode ser equiparado a um profeta que anuncia juízo. O juízo de Deus está próximo. A raiz da árvore (árvore como imagem que representa Israel) já está exposta. O machado já foi levantado. É uma questão de segundos para que o juízo de Deus tenha início. Por isso a urgência do arrependimento.

Em seu chamado à conversão, João Batista aniquila todo e qualquer ar gumento de autojustiça que uma tradição piedosa pudesse promover. O piedoso corre o perigo de se fiar nas bênçãos de Deus (Gn 12.1ss; 15.1ss; 17.1ss). Se necessário, Deus é capaz de suscitar filhos a partir de pedras! (No aramaico as palavras rimam: abanim = pedras e banim = filhos). Ele não depende de seu povo eleito (v. 8). O chamado é para que todos produzam frutos como resultado de um arrependimento sincero e genuíno. A prédica de João desafia seus ouvintes a assumirem um novo estilo de vida, que corresponda ao intento de Deus. Só assim a árvore não será derrubada.

Ética (v. 10-14) – Nos versículos 10-14, diversos grupos de pessoas questionam João Batista a respeito da ética do arrependimento. Três vezes encontra mos a pergunta: O que devemos fazer?. A pergunta é absolutamente fundamental! A pergunta expressa, busca pelas consequências que a prédica deve ter na nossa vida. (Cf. a reação dos ouvintes da pregação de Pedro em At 2). A resposta de João Batista parece óbvia. Ele remete aos Dez Mandamentos: Ama o próximo como a ti mesmo (Dt 15.11; Mq 6.6ss). Nada mais é exigido.

Também aos publicanos e soldados João responde o “óbvio”. É interessan te observar que João Batista não questiona a profissão de cobrador de impostos ou de soldado romano. A resposta de João Batista não possui conteúdo revolucionário. Pelo contrário: cobradores de impostos deveriam ser justos e os soldados de veriam exercer seu ofício corretamente, sem violência gratuita. Isso é suficiente para expressar frutos do arrependimento? Como se expressa a fé cristã numa ética do dia a dia? Essas são questões que a prédica poderia abordar.

Evangelho (v. 15-18) – O final da perícope aponta para o núcleo do evan gelho: a pessoa de Jesus Cristo. Na pessoa de Jesus se manifestam a salvação

23 3º Domingo de Advento

(batismo com o Espírito Santo) e o juízo (batismo de fogo, limpa a eira, junta o trigo, mas queima a palha (Sl 1)).

Análise de detalhes

A prédica de João Batista é poderosa. Multidões saíram para o deserto a fim de ouvir sua mensagem. Elas querem ouvir a palavra de Deus e vivenciar sua pre sença. A prédica de João conecta com o anúncio de um profeta veterotestamentário. Veio a palavra! Isso denota que a palavra de Deus é evento! Algo acontece! Céus e terra se movem. No deserto, Deus prepara um caminho. Montes são aplainados e vales são aterrados. Deus constrói um caminho até nós! Essa imagem impactante do profeta Isaías é ressignificada. É chegado o tempo de Deus intervir na história humana. Na perspectiva de João Batista, Deus vem para julgar o mundo. Também nesse sentido, na linguagem do juízo, João conecta com os profetas do AT. Arrepen dei-vos, o Reino de Deus está próximo! Deus vem para julgar. Esse chamado ao arrependimento ainda faz sentido para nós? Não seria o caso de tratar-se de uma mensagem ultrapassada e esquecida? Note que o chamado ao arrependimento não constitui apenas a mensagem de João Batista, mas do próprio Jesus! (Mc 1.15). Também nas parábolas de Jesus o apelo ao arrependi mento é evocado (Mt 7.24-27; Mt 21; 24; 25). Portanto não há razão para que o chamado ao arrependimento seja sonegado aos ouvintes. Mas no que consiste a diferença entre a prédica de João e Jesus? Em outras palavras: o que aconteceu com o machado, com o fogo do juízo? No Evangelho de João, o apóstolo apresen ta Jesus com as palavras: Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1.29). Portanto não é o machado, mas o cordeiro que traz salvação para o mundo. O juízo que João anuncia de fato veio: na cruz de Jesus, Deus dá o seu veredito e julga o pecado da humanidade.

3 Meditação

Procure refletir sobre o sentido e o impacto que o apelo de João Batista exerceu sobre seus ouvintes originais: Arrependam-se, mudem a sua vida, produ zam frutos que demonstrem o arrependimento de vocês Arrependimento é o cerne da mensagem de João Batista. Ele vê e percebe como as pessoas estão se perdendo. Ele percebe seus conterrâneos como pessoas que vivem sem orientação. A começar pelas autoridades políticas e religiosas, ele anuncia sua mensagem para dentro de um contexto em que os mandamentos de Deus tinham pouco valor e significado. O povo humilde era explorado. As pes soas gemiam sob a opressão e a violência militar. Também gemiam sob a carga opressora de impostos que eram cobrados pelos publicanos. Interessante que João não faz um chamamento a que publicanos e soldados mudem sua profissão! Isso era um escândalo! “Não é a profissão que corrompe o ser humano, mas o ser hu mano alienado de Deus é que corrompe a profissão” (Karl-Heinrich Rengstorf). O medo espalhava-se de forma generalizada. Para dentro dessa realidade social,

24 3º Domingo de Advento

política e religiosa, João Batista faz ecoar seu apelo ao arrependimento. Voltem para Deus, porque de Deus não se zomba. O juízo de Deus está diante da porta. A iminência do juízo descrita por João na imagem do machado pronto para derrubar a árvore apenas reforça a urgência e a necessidade da mudança de vida. É como se Deus não tivesse mais paciência com o seu povo impiedoso. Todos vivem em alienação de Deus, como se não precisassem prestar contas diante de Deus. O juízo de Deus é anunciado a um mundo que vive sem Deus. Essa geração que vive “de costas” para Deus é chamada por João de “raça de víboras”. Raça de víboras foi o adjetivo que João deu aos líderes religiosos de Jerusalém. Sábado após sábado eles se encontravam na sinagoga, achando que, assim como uma serpente, seriam capazes de ser esgueirar e escapar do juízo de Deus. Pensavam que conseguiriam camuflar e enganar o próprio Deus. Tal qual os líderes religiosos nos dias de João, o que seriam expressões contemporâneas de autojustiça? No que os membros de nossas comunidades se fiam na tentativa de escapar do juízo de Deus? Fiam-se em seu batismo? No fato de terem sido confirmados? No fato de participarem da igreja? Especialmente aos que vivem na justiça própria, João dirige seu apelo: “Arrependam-se”. “Arrependam-se ainda antes do Natal. Não se enganem: Deus não é uma marionete, não é um velhinho de bengala sentado em uma poltrona no céu. Deus está próximo de nós e nos leva muito a sério.” O chamado ao arrependimento é um chamado dirigido a todos nós.

Vale destacar que Jesus não modifica o conteúdo da prédica de João Batis ta. Pelo contrário, Jesus repete o mesmo apelo de João: Arrependam-se, voltem para Deus, o reino de Deus está próximo. Mas aqui está a diferença entre João Batista e Jesus: quem tem um encontro com Jesus, não pode diferente, senão re tornar aos braços do pai. A pessoa que ouviu o chamado de Jesus tem a sua vida transformada. (Confira o que aconteceu com o Zaqueu.) Quem tem um encontro com Jesus experimenta mudança de vida, porque o juízo que deveria nos alcançar já queimou e foi colocado sobre Jesus na cruz. Ele tomou a nossa culpa sobre si, para que nós pudéssemos retornar aos braços do Pai.

Arrepender-se, voltar para casa do Pai tem implicações, consequências. Essa reviravolta se torna perceptível no entorno social da pessoa. A maneira como nos relacionamos com o nosso próximo testemunha que encontramos os braços do Pai. Quem tem duas capas, dê uma capa a quem não tem. As pessoas que estavam ali ao redor de João, nas margens do rio Jordão, não eram pessoas ricas. Havia gente humilde, empobrecida, que talvez não tivesse o mínimo para garantir sua dignidade humana: uma capa para se cobrir durante a noite. Aquela pessoa que teve um encontro com Jesus, que voltou aos braços do Pai, essa pessoa é ca paz também de ver e perceber o próximo que está ao seu lado. (Quem são as pes soas invisíveis em nossa sociedade?) Quem pergunta por Deus, a esses os olhos são abertos para a miséria e a necessidade do seu semelhante. O que poderiam ser formas concretas de doação nesse tempo de Advento que antecede o Natal? Poderíamos doar parte do nosso tempo? Poderíamos compartilhar nossa fé em Jesus com pessoas que vivem cheias de dúvidas e na resignação? Quais seriam formas pelas quais nossa comunidade de fé poderia testemunhar e dar provas de uma vida em arrependimento? Poderiam as nossas comunidades ser comunidades

25 3º Domingo de Advento

nas quais se manifestam a graça de Deus, uma atmosfera terapêutica, acolhedora; comunidades nas quais prevalece a equidade e não a competição?

4 Subsídios litúrgicos

1. A imagem do padre e artista Sieger Köder, que apresenta João Batista no centro do quadro, pode ser usada como ilustração e meditação na prédica. João se encon tra no deserto. Atrás dele, o caminho aberto por Deus no deserto – em referência a Isaías 40. Com a mão direita João batiza uma pessoa e com a esquerda aponta para cima, em paralelo ao caminho aberto por Deus, apontando para aquele que há de vir. Link: <https://www.grossaspach-evangelisch.de/fileadmin/mediapool/ gemeinden/KG_grossaspach/Texte/Busstag_2013_Bildmeditation.pdf>.

2. Oração: Senhor, tu vens a nós. Tu abres um caminho através do deserto e vens ao nosso encontro. Tu desceste do céu e te tornaste gente. Nós te agradecemos e, em reverência, te adoramos! Ajuda-nos a nos voltar para ti. Permite que possa mos ouvir tua voz de forma nova. Permite que possamos ver as pessoas ao nosso redor como tu as vês. Que neste tempo de advento possamos experimentar o teu mover entre nós e que possamos ser conduzidos a ti e ao nosso próximo. Assim, abençoa o nosso culto. Amém.

3. Arrependimento: reflexões no site Luteranos. Link: <https://www.luteranos. com.br/conteudo/arrependimento>.

4. Arrependimento, confissão e absolvição em documentos confessionais da IECLB. Link: <https://www.luteranos.com.br/conteudo_organizacao/presidencia/ confissao-e-absolvicao>.

Bibliografia

HERBST, Michael. Die Stunde des Johannes. Zuversicht und Stärke, Holzgerlin gen: SCM, v. 3, n. 1, p. 15-23, 1998.

LÄMMER, Stefan. Die Botschaft von Gericht richtet das Volk Gottes neu auf Gott aus. Zuversicht und Stärke, Holzgerlingen: SCM, v. 3, n. 1, p. 25-33, 2010. TEICH, Volker. Umkehren in die offenen Arme Gottes. Zuversicht und Stärke, Holzgerlingen: SCM, v. 3, n. 1, p. 21-29, 2004.

26 3º Domingo de Advento

PRÉDICA:

MIQUEIAS 5.2-5a (Vulgata e edições SBB) = MIQUEIAS 5.1-4a (Bíblia Hebraica e edições católicas)

LUCAS 1.47-55 HEBREUS 10.5-10

4º DOMINGO DE ADVENTO

Estamos numa espera passiva?

1 Introdução

O Evangelho de Lucas 1.47-55 dá o tema para o 4º Domingo de Advento. O cântico entoado por Maria (Magnificat), inspirado no salmo de Ana (1Sm 2.1-10), celebra a inversão de realidades e valores humanos por parte de Deus, que humilha os poderosos e exalta os humildes (1.52). Essa inversão também se observa na ori gem humilde (Belém-Efrata) daquele que governará em poder (Mq 5.4). Hebreus 10.5-10 celebra a substituição dos sacrifícios pela vida e morte de Cristo. Devido à dificuldade de vincular esse texto com o tema, sugiro omiti-lo. A leitura do Antigo Testamento prevista como texto-base para a pregação pertence ao grupo das ex pectativas messiânicas, as leituras veterotestamentárias preferidas para a época de Advento e Natal. O texto foi abordado em Proclamar Libertação, duas vezes para o dia de Natal, duas vezes para a véspera de Natal e três vezes para o 4º Domingo de Advento. Eu seguirei a numeração dos versículos da Vulgata, apesar de a moderna literatura exegética utilizar a numeração da Bíblia Hebraica.

2 Observações exegéticas e teológicas

Como o PL 29 apresentou uma extensa exegese de Haroldo Reimer, dete nho-me, aqui, a alguns pontos que considero importantes para a homilia.

a) O texto pertence ao bloco Miqueias 4.9 – 5.6, que contém três ditos que iniciam com “agora” (4.9,11; 5.1) e que são compostos, cada um, por uma descrição de uma situação de aflição e por uma palavra de consolo ou libertação. Os dois primeiros ditos são endereçados a Jerusalém-Sião, o último a Belém-Efrata. Independentemente de haver ou não trechos atribuíveis ao profeta Miqueias do séc. VIII, a atual configuração do bloco reflete cultos de lamentação após a destruição de Jerusalém e de seu templo (Zc 7.3,5; 8.19), para cujo contexto os ditos proféticos foram adaptados. Numa situação de necessidade, aflição e miséria, os frequentadores do culto recebem o anúncio da atuação divina que trará consolo e esperança para a comunidade aflita. Essa situação prefigura a do pregador.

b) 52 Mas tu, Belém-Efrata, /tu que és pequena dentre os clãs de Judá, de ti me sairá/ aquele que irá governar Israel. Suas origens são de tempos antigos,/ de dias longínquos.

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O início do trecho escolhido como base de pregação não coincide com o início do terceiro dito do bloco mencionado. Por motivos homiléticos, coloca-se o aspecto central para a comunidade cristã no início: o “messias”. O recorte já é, portanto, uma interpretação. De fato, o maior peso dos que comentam e meditam sobre o texto é colocado nesse versículo. Existe alguma base exegética para tal. Destinatário do terceiro dito não mais é Jerusalém-Sião, mas Belém-Efrata. Depois da destruição da capital, centro político, econômico e religioso de Judá, e depois do fim da monarquia e, para muitos, da perda da terra prometida, coisas novas não mais se esperam do centro, mas da periferia. A história do povo não continua nos moldes antigos, mas tem novo início “desde tempos antigos”. Deta lhes sobre esse novo início são apresentados por Carlos Dreher, em PL 40. Repito, aqui, apenas alguns aspectos. A insignificante aldeia de Belém, fun dada pelo pequeno clã dos efratitas, a cerca de 9 km ao sul de Jerusalém, é a aldeia natal da família do rei Davi. Jessé, pai de Davi, é efratita de Belém (1Sm 17.12). Após o fim da dinastia davídica, em 587 a.C., a história política do povo reco meça no mesmo lugar, só que com outros parâmetros. O novo escolhido de Deus (de ti me sairá) não será “rei” nos moldes conhecidos; evita-se esse termo. O vocábulo usado – “governante” – é (intencionalmente?) genérico demais para sugerir uma modalidade específica de governo, mas preserva uma crítica à dinas tia davídica. A escolha dos “pequenos” por parte de Deus, no entanto, é um traço recorrente na teologia bíblica. Vemos isso na eleição de Gideão (Jz 6.15), Saul (1Sm 9.21) e mesmo Davi, o menor dos irmãos (1Sm 16.11-13). Os pequenos e fracos se tornam grandes e fortes pelo poder de Deus. Assim o reinterpreta Ma teus 2.6 (não és de modo algum a menor); assim o enaltece o cântico de Maria: exaltou os humildes (Lc 1.52).

c) 53 Por isso ele [o SENHOR] os entregará até o tempo em que a partu riente der à luz e o resto de seus irmãos voltar aos filhos de Israel. O versículo em prosa é uma complementação de Miqueias 5.2. Além de mencionar a situação difícil em que o povo se encontrava – entregue aos inimi gos no exílio –, vincula um evento à época do novo governante – o retorno dos exilados – e coloca um prazo – até que a grávida der à luz. Acentua que o sujeito tanto da desgraça quanto da libertação é Deus. A referência à parturiente é uma reflexão adicionada de Miqueias 4.10 e Isaías 7.14. Neste último texto – bastante conhecido – o nascimento de uma criança também faz parte do tempo de espera pela salvação. Por razões óbvias, o motivo da parturiente sempre foi muito importante para a fé cristã.

d) 54 Ele se postará de pé e apascentará no poder do SENHOR,/ na majes tade do nome do SENHOR, seu Deus [...] Sim, agora ele se tornará grande,/ até os confins da terra,5a e ele será a paz.

A descrição do novo governante usa terminologia padronizada: “apascen tar” o povo significa liderar, entender as necessidades dos liderados e ter propos tas de ação, proteger o rebanho, fornecer possibilidades de sobrevivência e alertar para os perigos, os lobos e as doenças que o ameaçam. É isso que se esperava de um monarca. Tudo isso – tranquilidade, segurança, integridade física ou saúde, segurança alimentar ou bem-estar, convivência social harmoniosa, felicidade – a

28 4º Domingo de Advento

língua hebraica pode condensar numa única palavra: shalom, uma palavra mui to mais abrangente do que para nós é o vocábulo “paz”. Para cumprir essa sua missão, o novo governante recebe “poder” de Deus. Aqui ainda ressoa a antiga concepção oriental de que o rei goza de poderes especiais, divinos. Mas é o hu milde que se tornará grande. Por ser grande e inspirado em Deus, seu governo será universal (até os confins da terra). Também aqui ainda se nota um traço do conhecido imperialismo oriental. Por outro lado, a ideia reflete a experiência de Israel de que a “paz” só é possível com a participação de todas as nações. O novo governante personificará a paz.

e) O texto de Miqueias faz parte do grupo de textos messiânicos. Enten do essa expressão no sentido amplo: textos que expressam a esperança por um governante futuro ideal. Esse governante pode ser expresso por diversos termos; geralmente não aparece a designação “messias”; muitas vezes também não se usa o termo “rei”. Ainda assim, os textos têm a mesma perspectiva. As expectativas messiânicas orientam-se em concepções orientais da época. No Antigo Testamen to, essas concepções foram adotadas, rejeitadas ou modificadas no decorrer do tempo, de acordo com a fé de Israel. O Salmo 2 talvez reflita a visão mais antiga de como se via um “rei-messias”: é o filho de Deus, que receberá as nações por herança e as regerá com vara de ferro, despedaçando-as como um vaso de oleiro (Sl 2.8s). Esse texto, entendido como messiânico somente no judaísmo tardio, marca o início de uma evolução do conceito de messias-rei em Israel. Num segundo estágio se encontram, p. ex., os textos de Isaías e Miqueias. Em Isaías 9.2-7 (na versão de Almeida), o menino-messias é, ao lado da liberta ção do jugo opressor e da destruição das armas de guerra, um aspecto decisivo da alegria futura do povo. Seu regime será de paz, pois estará fundado no direito e na justiça (Is 9.7). Já Isaías 11.1-5 contém, como Miqueias 4, uma crítica velada à monarquia, porque o “renovo” sairá da raiz ou do tronco (Jessé), não mais do ramo da dinastia davídica. (A Bíblia na Linguagem de Hoje não vê essa crítica e entende que o “renovo” é uma continuidade da dinastia davídica.) As constan tes frustrações com a monarquia levaram a não mais querer a continuidade do modelo de governo existente. Por isso em Isaías 11.4 o castigo não mais será executado com a “vara de ferro” (como no Sl 2), mas com a “vara da boca”. E o regime de justiça estará focado na reabilitação do direito dos pobres e fracos. Em Isaías 61.1-3, um texto pós-exílico, o futuro messias assume funções profé ticas: ele anuncia as boas novas, apregoa o ano aceitável do Senhor (Is 61.1s). No final dessa história das tradições messiânicas está Zacarias 9.9s: Alegra-te muito, ó filha de Sião, exulta, ó filha de Jerusalém. Eis aí vem teu rei, justo e ne cessitado, pobre e montado num jumento. Bem assim está na Bíblia Hebraica! O rei já não tem nenhum poder. Pelo contrário, ele até é pobre e carente de ajuda. A tradução grega achou por bem evitar essa afirmação escandalosa. Por isso ela altera o texto: Eis aí vem teu rei, justo e salvador. Essa é a tradução que se impôs em nossas Bíblias. Em suma, no decorrer do tempo, o “messias” esperado fica menos violento e menos poderoso; seu poder se desloca das armas para a palavra conscientizadora. O trinômio direito, justiça e paz está presente em quase todos

29 4º Domingo de Advento

os textos. Zacarias 9.9s e Isaías 53 representam o alvo desse processo de reflexão: o rei é pobre, dependente e um servo oprimido, desprezado, rejeitado e morto.

3 Observações hermenêuticas e homiléticas

a) A fé cristã confessa que os anúncios do “messias” se cumpriram em Jesus de Nazaré: ele é o “Cristo”. Mas temos que estar conscientes de que nem os anúncios messiânicos tinham em mente Jesus, nem Jesus reivindicou para si o título de messias como o fizeram conterrâneos seus um pouco antes e um pouco depois dele. Jesus até se distanciou de atributos vinculados ao futuro rei de Israel. Os evangelhos apontam para a dificuldade de os discípulos entenderem que a messianidade de Jesus era bem diferente do que as expectativas existentes em sua época. Em vez de poder político, da popularidade do mágico ou do mestre de espetáculos (cf. as tentações de Jesus), Jesus assumiu sofrimento e humilhação, demonstrou obediência e fraqueza na cruz; em vez de um império universal, sur giram comunidades de serviço. Resta perguntar: as expectativas messiânicas do AT se concretizaram ou não em Jesus? Certamente ainda não existe um “reino” universal de justiça e paz. Armas de guerra ainda estão sendo vendidas. Bem-estar (shalom) é uma condição restrita a poucos. O conhecido exegeta luterano Georg Fohrer converteu-se ao judaísmo porque as promessas veterotestamentárias ainda não se cumpriram com Jesus. A fé cristã afirma que as promessas apenas em parte se concretizaram em Jesus. Outras tantas não. Essas não perderam sua validade e são esperadas para o futuro. Essa dialética perpassa a época de Advento: cele bramos aquele que já veio em nome de Deus e esperamos por sua vinda no futuro quando se cumprirão todas as promessas do novo céu e da nova terra. b) Como podemos, diante do constatado acima, atualizar o texto? A periferia “Belém-Efrata” pode certamente ser observada em “Nazaré da Galileia”, de onde não se esperava nada de bom (Jo 1.46). Os “tempos antigos” não falam diretamentte da pré-existência de Jesus, mas podemos entender o Logos como um pensamento do Deus misericordioso para com seu povo: já sempre Deus quis mostrar sua misericórdia. A ideia de tempo vinculada à mulher grávida pode ser desenvolvida como explicação da demora da vinda do “reino de Deus”. Ainda nos encontramos em dores. Há o prenúncio, mas ainda não a concretização do novo. Houve um início com Jesus, mas ainda aguardamos a perfeição.

c) A distância entre expectativa e realidade foi amiúde motivo de frustração para as comunidades cristãs. Como se pode ver a majestade divina (Mq 5.4) no Jesus crucificado? Onde estão os sinais do reino de Deus na política? Jesus continua morrendo de Covid nos hospitais e de bala perdida em nossas periferias; ele continua sendo assassinado por ser negro suspeito de ser traficante. Certamente também coisas boas acontecem na sociedade: gestos de solidariedade, perdão, doação e reconciliação. Os olhos da fé certamente veem a realidade de outra forma. Mas não temos a permissão de maquiar a realidade com nosso discurso natalino: ainda estamos longe de uma sociedade de justiça e paz como a anunciada pelos profetas. Talvez a época de Advento possa ser uma oportunidade de

30 4º Domingo de Advento

refletir sobre como nos posicionamos nesse caminho que vai de Jesus de Nazaré à perfeição do reino de Deus.

4 Sugestão para a prédica

Proponho refletir sobre como podemos ser e viver nesse caminho entre Jesus de Nazaré e a realização plena do reino. Para tanto proponho tomar como pano de fundo a peça teatral do dramaturgo irlandês Samuel Becket intitulada “Esperando Godot”, de 1949. Os dois personagens principais, Estragon e Vladimir, se encontram sob uma árvore à beira do caminho e conversam sobre triviali dades. Os diálogos são breves e desencontrados sobre assuntos sem importância e sem sentido. Descobre-se que os personagens estão à espera de Godot. Não se diz quem é esse Godot nem por que esperam por ele. O diálogo é interrompido pela chegada de dois novos personagens: um aristocrata de nome Pozo traz amarrado por uma coleira seu escravo, ironicamente chamado Lucky (sortudo), que carrega uma enorme e pesada mala. Pozo conversa com Vladimir e Estragon sobre bana lidades. Lucky permanece calado. No final do primeiro ato, entra um menino para dizer que Godot não vem hoje.

O segundo ato começa com a mesma cena, os mesmos personagens e o mesmo diálogo. Tudo se repete. Tudo parece absurdo e sem sentido. Novamente entram Pozo e Lucky; dessa vez Pozo está cego, Lucky continua na coleira e o guia. Só o aristocrata fala, Lucky continua mudo. O segundo ato termina como o primeiro: um menino entra para informar que Godot não virá hoje. A peça chega ao fim sem que se saiba quem é Godot e por que se esperava por ele.

A peça retrata a falta de sentido preenchida pela rotina, pelas fórmulas cor diais e vazias, pelo diálogo desinteressado, pelo small talk. Entendo que Godot é código para Deus (God-ot), pelo qual se espera numa situação de vazio e absurdo, sem, no entanto, poder vinculá-lo a nenhum conteúdo. A monotonia do cenário e a falta de qualquer ação indicam para uma espera passiva. A cena do escravo mudo trazido à coleira e carregando uma mala é considerada estranha, não provoca nenhuma indignação ou revolta. Tudo fica na mesma, nada se faz, nada muda, a retórica se repete ad infinitum. É assim que esperamos por nosso Deus? (A obra contém muitos outros detalhes que podem ser aproveitados na prédica.)

5 Subsídios litúrgicos

Cantos: Advento é tempo de preparação (LCI 358); Como hei de receber-te (LCI 364); Da cepa brotou a rama (LCI 356).

Oração inicial: Ó Senhor, que visitas o mundo, manifestando misericórdia, enche nossa vida de esperança, abre nosso caminho para celebrar tua chegada, visitanos mais uma vez, com a graça de teu Espírito.

Pedido de perdão: Perdoa-nos por nos termos conformado com o que existe e por termos desistido de esperar por algo realmente novo. Perdoa por termos sido

31 4º Domingo de Advento

mulheres e homens que desviaram o olhar da injustiça, por termos negligenciado a solidariedade, a partilha e a reconciliação.

Oração final: Deus da vida, tu queres que vivamos em irmandade, sem medo e sem violência, sem egoísmo nem corrupção, na justiça e na solidariedade. Dá-nos força e coragem. Renova a esperança daqueles que não mais conseguem esperar por tua vinda. Dá coragem e ousadia aos desanimados para que possam voltar a sonhar com um mundo melhor. Intercedemos pelos que colocam sinais de teu reino numa sociedade doente e sem rumo. Amém.

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4º Domingo de Advento

PRÉDICA:

ISAÍAS 11.1-9

LUCAS 2.1-7 GÁLATAS 4.4-7

NOITE

DE NATAL

Democratização do Espírito de Deus

1 Um pouco do contexto

O profeta Isaías viveu em Jerusalém entre os anos 740 e 680 a.C. Essa foi uma época de grande prosperidade econômica em Judá. Provavelmente ele tinha acesso direto à corte e, por isso, viu a extravagância, as injustiças e a falência espiritual dos líderes de Judá, com sua idolatria e crescente indiferença à palavra de Deus. O profeta Isaías presenciou o reinado de pelo menos quatro reis: Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias (Is 1.1).

Judá ficava em uma região importante para o comércio, o que sempre a colocou como alvo de potências estrangeiras. O exército assírio foi uma ameaça para toda a região e já havia se adonado de Damasco (732), das regiões setentrionais de Israel (732) e da Samaria (722). Sobre o reino de Judá, os assírios estabeleceram a vassalagem, exigindo de Jerusalém o pagamento de impostos. Contra os insubordinados, os assírios haviam tornado manifesto seu terror e seu orgulho por toda a região. O profeta Isaías critica-os com veemência (Is 10.5-34).

Em 701 a.C., o rei Ezequias reforçou as muralhas de Jerusalém e as equi pou com catapultas (2Cr 32.5). Também ordenou a construção de um túnel sub terrâneo de 513 metros, que ligava uma fonte de água à cidade. Depois dessas obras, o rei Ezequias decidiu então não pagar mais os impostos aos assírios. O exército assírio atacou Jerusalém, mas não conseguiu romper as muralhas fortificadas. O exército assírio resolveu então cercar a cidade. O cerco trouxe limitação de alimentos, mas a população de Jerusalém conseguiu resistir por conta do túnel de Ezequias. O livro de Crônicas diz que Deus atendeu as orações do rei Ezequias e do profeta Isaías, enviando um único anjo para destruir grande parte dos soldados e dos oficiais do exército assírio (2Cr 32.20s).

Ezequias poderia ter sido esse rei anunciado pelo profeta Isaías. Além da resistência ao poderoso exército dos assírios, ele marcou seu reinado pela res tauração dos sacerdotes e levitas ao templo, pela instituição da festa da Páscoa, combateu a idolatria em Judá proibindo o culto aos deuses pagãos, determinou que fosse destruída a serpente de bronze construída na época de Moisés.

Mas Deus se decepcionou com Ezequias, ao ver que suas realizações o en cheram de prepotência e orgulho. Tendo adoecido gravemente, acometido do que a Bíblia chama de úlcera (alguns historiadores acreditam tratar-se de um câncer), o profeta Isaías veio lhe dizer que iria morrer. Não se conformando, Ezequias pôs-se a orar e Isaías, então, retorna com outra mensagem de Deus, informando

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24 DEZ 2021

um acréscimo de mais 15 anos à vida do rei. Ezequias deve ter pensado que Deus não fez mais que sua obrigação e, por isso, ele não agradece a Deus (2Cr 32.25). Esse orgulho de considerar-se melhor do que qualquer outro leva o rei a cometer outros erros de exibicionismo que, por fim, terminam no ataque e na conquista de Jerusalém pelos babilônios.

2 Manifestação de Deus conforme o profeta Isaías

No tempo do profeta Isaías, acreditava-se que Deus se manifestava no mundo somente por meio dos reis. Se o rei fosse bom, era motivo para louvar a Deus. Se o rei fosse mau, o povo deveria procurar a culpa em si mesmo, na sua idolatria. A possibilidade de trocar o rei era inconcebível. Os profetas tinham a função de denunciar um rei que não cumprisse a vontade de Deus, mas não podiam liderar um movimento de revolta para destituir um rei. Acreditava-se que a monarquia era uma instituição divina e revoltar-se contra o rei era o mesmo que revoltar-se contra Deus. Por isso os sacerdotes deveriam orar para que Deus fosse misericordioso e lhes enviasse um bom rei. Para que houvesse justiça na terra, primeiro deveria nascer um bom rei.

É com essa esperança que o profeta Isaías escreve o capítulo 11.1-9. O pro feta Isaías anuncia que o Espírito do Senhor vai se manifestar sobre um rei – que não será apenas da linhagem de Davi, mas será um novo Davi (Jr 30.9; Ez 3.23-24; Os 3.5). Esse rei anunciado será abençoado com os sete dons do Espírito de Deus: sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, conhecimento, temor do Senhor e justiça com retidão.

Esse novo rei também vai restaurar toda a criação de Deus. Os seres hu manos e a natureza viverão em segurança e em paz. Essa paz será consequência do conhecimento do Senhor (Jr 31.34). Pelas atitudes desse novo rei, todas as pessoas terão conhecimento de Deus e fazer a vontade de Deus terá como conse quência a paz.

No entanto, essa profecia não se cumpriu em nenhum rei do Antigo Testamento. Ela se cumpre somente em Jesus (Mt 1.6; Lc 2.4; At 13.22-23). Em Jesus, a manifestação do Espírito de Deus deixa de ser algo privativo aos reis e gover nantes e passa a se manifestar sobre qualquer pessoa e sobre a natureza.

O cumprimento dessa profecia acontece na mensagem natalina do Verbo que se fez carne e habitou entre nós (Jo 1.14) e naquele que diz: O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres [...] (Lc 4.18s). Portanto, no Natal, anunciamos que a igreja tem uma querida filha que se chama esperança. Não se trata de uma esperança apenas individualista, mas da irrupção de um novo céu e de uma nova terra, onde habitarão a justiça e a harmonia na boa criação de Deus, onde o lobo habitará com o cordeiro e toda língua confessará que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai (Fp 2.11). Para esse projeto Jesus nos convida dizendo: Vem e segue-me! (Lc 18.22; Mt 16.24; Mc 1.17)

34 Noite de Natal

3 Democratização do Espírito de Deus

Já o profeta Joel – solitariamente – havia manifestado que o Espírito de Deus não se limita somente aos reis. E acontecerá que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhas e filhas profetizarão, vossos velhos sonharão e vossos jovens terão visões, até sobre os servos e as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias (Jl 2.28-29).

Com democratização da manifestação do Espírito de Deus, Maria enaltece a Deus, que derrubou de seus tronos os poderosos e engrandeceu os humildes. Ao chegar ao palácio de Herodes, os magos descobrem que o Messias não havia nascido ali no palácio, mas numa estrebaria em Belém. Também o apóstolo Paulo constata que Deus escolheu os humildes e fracos para envergonhar os sábios e poderosos, para que ninguém se orgulhe em sua presença. Homens e mulheres, jovens e velhos, servos e servas – todos são transformados em instrumentos do Espírito de Deus no mundo.

Por conta da democratização do Espírito de Deus, os discípulos de Jesus perdem o medo das autoridades no dia de Pentecostes. Após a experiência de Pentecostes, eles proclamam publicamente o Evangelho do crucificado e ressurreto, testemunhando até mesmo diante de tribunais que não podem deixar de falar das coisas que viram e ouviram (At 4.20). A democratização do Espírito de Deus destrava a língua daquele que crê para que possa testemunhar aquilo que viu e ouviu, ao mesmo tempo em que gera fé naquele que ouve e acolhe o anúncio da Palavra (At 2.38).

Desta forma, o Espírito Santo que atua hoje não pode ser outro do que aquele que atuou em Jesus de Nazaré. O Espírito de Deus não diviniza mais as autoridades. As autoridades têm agora responsabilidades com o serviço aos cidadãos, atribuídas pelo próprio Deus. Sobre o mundo da injustiça, da opressão contra os pobres, da idolatria do poder e das vaidades, as autoridades são cha madas a servir e defender os mais vulneráveis. Hoje, devemos sim orar para que as autoridades cumpram seu papel. Mas, se não cumprirem, podemos tirá-las do poder com o nosso voto.

O Espírito de Deus é capaz de transformar a natureza das pessoas, superar ódios e rivalidades e criar, em troca, a unidade e o cuidado com a boa Criação de Deus. Que o nascimento do Filho de Deus, neste ano, desperte em nós um com promisso com Deus para viver um novo tempo. Um compromisso com Jesus para que o Espírito de Deus se manifeste ao mundo também por meio de nós.

4 Auxílios litúrgicos

Saudação: O anjo disse aos pastores: Hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor. A criança do estábulo deve nascer em ti. Não sabes como? Acende tuas luzes e confia que cada lugar da terra pode ser transformado em estábulo, palha e manjedoura (Georg Schmid).

35 Noite de Natal

Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, criador da vida, tu nos concedeste enor me liberdade e confiaste em que saberíamos usá-la. A terra, porém, geme sob o nosso domínio. Nessa semana ficamos horrorizados com................. (acrescentar motivos). Tu esperas que nós usemos com responsabilidade os dons que tu nos des te e correspondamos melhor ao encargo que nos confiaste de cuidar de tua criação. Também queremos trazer diante de ti as pessoas cuja esperança está destruída por causa da pobreza, da miséria, da falta de trabalho, de um teto, de um destino. Tem misericórdia de nós, salva-nos e acolhe-nos, por Cristo Jesus. Amém.

Oração de intercessão: Deus, Criador da vida, venha sobre nós o teu Espírito. Con cede-nos sabedoria e inteligência, conselho e força, conhecimento e temor. Que o teu Espírito seja a nossa inspiração de vida. Tua criação padece. Nós padecemos profundas dores, todo tipo de infortúnio e miséria. Não conseguimos nos entender ou construir uma relação de paz. Estamos tomados por um espírito agressivo contra a vida. Seguimos nossas próprias leis ou as leis de deuses estranhos, que exigem de nós enormes sacrifícios, entre os quais a vida de seres fragilizados. Bondoso e mi sericordioso Deus, faze com que a tua Palavra encarnada no menino Jesus seja a luz do nosso caminhar. Renova nossas esperanças e o nosso viver no mundo, e concede que sempre confiemos em tuas promessas de salvação. Nós nos dirigimos a ti com temor, com esperança e com confiança. Amém.

Bênção: Deus de bondade, derrama teu Espírito Santo sobre nós como chuva copiosa, para que ele faça florescer em nossos corações o amor e a fé. Que o Espírito Santo transforme nossas mentes e atitudes, de tal modo que nós consigamos ser uma boa influência neste mundo. Que assim o Senhor nos abençoe e nos guarde. Que o Senhor levante o seu rosto sobre nós e tenha misericórdia de nós. Que o Senhor levante o seu rosto sobre nós e nos abençoe dando-nos a sua paz. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

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Noite de Natal

PRÉDICA:

TITO 3.4-7

ISAÍAS 62.6-12 JOÃO 1.1-14

DIA DE NATAL

1 Introdução

Com pequena variação nas leituras bíblicas, esta é a quarta vez que o texto de Tito 3.4-7 é objeto de estudo em Proclamar Libertação proposto para o Dia de Na tal. Os outros textos publicados se encontram nos volumes IV, escrito por Gottfried Brakemeier, no volume 20, por Gerd Uwe Kliewer e no volume 34, por Manfredo Siegle. Todas são excelentes contribuições e estão acessíveis no Portal Luteranos. Analisando os textos propostos para este Dia de Natal, percebe-se que eles apresentam “boas notícias de grande alegria para todo o povo”, pois falam daqui lo que Deus faz por meio do Salvador. No entanto, não apresentam uma relação direta com a narrativa do Natal. O evangelho deixa mais explícita a relação com a celebração do Natal, mesmo sendo um texto que também não relata o nascimento de Jesus. O Evangelho de João expande a salvação para níveis cósmicos, pois apresenta Jesus Cristo como a Palavra que já existia antes da criação do mundo, estava com Deus e era Deus. Essa Palavra se tornou um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e de verdade. E nós vimos a revelação da sua natureza divina, natureza que ele recebeu como Filho único do Pai (Jo 1.14).

Isaías está mais focado na reconstrução de Jerusalém. Dirige-se àqueles que estavam perdendo a esperança e anuncia a chegada do Salvador (v. 11). O centro da mensagem está na salvação do povo trazido de volta do exílio para sua cidade reconstruída.

Em Tito, encontramos a boa nova da salvação naquilo que Deus fez por cada pessoa. Deus manifestou a sua bondade em Jesus, nosso Salvador. Ele o fez mediante o lavar regenerador do Espírito Santo (batismo) e colocou a vida dos crentes na dimensão de herdeiros, sob a esperança da vida eterna (v. 7). Destaca -se que a salvação é obra exclusiva de Deus, sem qualquer participação e mérito nosso, mas por pura graça e misericórdia de Deus.

2 Exegese

A Epístola de Tito está situada no bloco denominado de cartas pastorais do Novo Testamento e apresenta-se como uma carta do apóstolo Paulo endereçada a seu colaborador Tito (1.14). Mas existem muitas dúvidas acerca da auto ria paulina dessa carta, devido à dificuldade em ajustá-la ao ministério de Paulo conforme nos mostra a literatura do NT. Também a organização eclesiástica nela

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25 DEZ 2021
Jorge Batista Dietrich de Oliveira Salvos

descrita pertence ao final do primeiro século e o vocabulário e o estilo são signi ficativamente diferentes das demais cartas paulinas. No entanto, percebe-se que a teologia de Paulo norteou a redação desse escrito, mesmo que se façam sentir algumas diferenças características. Trata-se de um documento importante que coloca balizas claras e fundamentais para orientar as primeiras comunidades cristãs fundadas em meio ao mundo não cristão.

A Carta a Tito tem uma afinidade com a Primeira Carta a Timóteo. Ambas as epístolas são endereçadas a jovens homens, que tinham sido designados como lideranças responsáveis em suas respectivas comunidades. Ambas as epístolas se ocupam com as qualificações daqueles que devem liderar a ensinar as igrejas. Os tópicos importantes dessa carta incluem as qualificações para os presbí teros (1.5-9), como combater os que ensinam doutrinas falsas (1.10-16), instruções a várias faixas etárias na igreja (2.1-8), como comportar-se na vida diária e pública (2.11 – 3.2) e a relação entre a regeneração, as obras humanas e o Espírito (3.4-7).

A perícope em estudo apresenta um teor abstrato com características dog máticas. Seu ponto principal é a salvação que vem somente por meio da graça de Deus. Nossa salvação é obra exclusiva de Deus, sem qualquer participação e mérito nosso, mas por pura misericórdia de Deus. E uma vez justificados, nós nos tornamos herdeiros. O propósito de Deus em dar a sua graça às pessoas pecadoras não é somente para salvá-las do julgamento eterno, mas também para fazer delas parte de sua família mediante a adoção e, desse modo, herdeiras de suas promes sas (Rm 8.17; Gl 3.29; 4.7).

V. 4 – Mas quando se revelou a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com os homens. A bondade de Deus por nós se manifestou em Jesus Cristo, que é, por isso, chamado de nosso Salvador (3.6). A palavra bondade (chrestotes) ocorre no NT exclusivamente em Paulo. Empregada acerca de Deus, conota sua bondade e solicitude compassiva (Rm 2.4; 11.22; Ef 2.7).

[...] o amor de Deus aos humanos (philanthropia). Expressa críticas à di vinização do imperador romano. Os gregos utilizavam a palavra filantropia para referir-se à bondade do ser humano para com seus iguais. A filantropia de Deus assumiu forma humana em Jesus. Isso aponta para o Natal. Pois se refere à encar nação da bondade de Deus. O amor de Deus assumiu forma concreta no homem Jesus de Nazaré. Deus se tornou ser humano e habitou entre nós (Jo 1.14).

V. 5 – Não em virtude de obras de justiça que nos houvéssemos feito, mas segundo a sua misericórdia, nos salvou. Não se menciona aqui textualmente a graça, mas persiste a correlação com Tito 2.11-14. Como em Efésios 2.4s, miseri córdia e graça estão interligadas. Nós nada podemos fazer para ganhar a salvação, que é sempre um presente da graça de Deus (Rm 3.27-28; 9.11-12; Gl 2.16; Ef 2.8-9). Deus oferece seu amor aos seres humanos, não pelas ações corretas que realizaram, mas simplesmente pela grande misericórdia de seu coração. Me diante o lavar da regeneração e renovação pelo Espírito Santo: a referência é claramente ao batismo, que também é descrito como sendo um lavar (Gr. lou tron: lit. “banho”) em Efésios 5.26; 1 Coríntios 6.11. De fato, não poderá haver salvação a menos que sejamos identificados com Cristo em sua morte, a menos

38 Dia de Natal

que sejamos ressuscitados juntamente com ele, no poder da novidade de vida. Batizar-se era deixar deliberadamente uma forma de vida para entrar em outra, num novo caminho (Jo 3.3-7; Rm 6.4; 2Co 5.17; 1Pe 1.3). Quando se recebia um prosélito na fé judaica, depois de ter sido batizado, ele era tratado como se fosse um menino pequeno. Era como se tivesse nascido de novo e a vida tivesse começado novamente para ele. Há algo novo nessa vida que só pode comparar-se a um novo nascimento. No entanto, é o Espírito Santo que opera, pela graça de Deus, a regeneração e a renovação.

V. 6 – que ele derramou abundantemente sobre nós por Jesus Cristo, nosso Salvador. Essa palavra alude ao Espírito Santo, o qual aplica a graça e a miseri córdia de Deus, em consonância com os trechos de Joel 2.28 e Atos 2.17,33, pois temos aqui uma alusão ao acontecimento histórico do dia de Pentecostes. O derramamento do Espírito sobre a igreja confirma o envio consumado do Redentor na morte de cruz, na ressurreição e na exaltação. O Espírito é dado por meio de Jesus (Jo 4.10; 7.37). Somente por meio de Cristo nos tornamos participantes do Espírito Santo, o qual é o penhor e a testemunha de nossa adoção.

V. 7 – para que, sendo justificados pela sua graça – Linguagem muito usada por Paulo na Carta aos Romanos – a fim de que, justificados por graça (Rm 3.24-26), fôssemos feitos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eter na. Ele nos salvou (v. 5) para que nos tornássemos herdeiros (Rm 8.17; Gl 4.7); mas visto que a plena posse dessa herança está no futuro, são descritos, a rigor como herdeiros segundo a esperança (Rm 8.24-25; Ef 1.13-14). A esperança foi derramada abundantemente em cada coração por intermédio do Espírito Santo. É o Trino Deus, o Pai (nosso Salvador, cf. v. 4), o Filho (nosso Salvador, cf. v. 6) e o Espírito Santo (que nos salvou mediante o lavar da regeneração e re novação, cf. v. 5), que realiza o milagre do novo nascimento. Assim, justificados por sua graça somente, tornamo-nos herdeiros da vida eterna.

3 Meditação

Mais uma vez celebramos o Natal. Festas, presentes, viagens, pinheirinhos e visitas. Mas será que Natal é só isso? Percebemos que o Natal se tornou uma festa normal, comum. Ele se repete todos os anos, a expectativa é sempre a mesma, o cenário também é sempre igual. A festa de Natal tem se tornado tão normal, que nós não mais percebemos o seu verdadeiro conteúdo. Já faz muito tempo que o ver dadeiro significado do Natal ficou encoberto pela festa do consumo e do supérfluo. Não! Natal não é só isso. Hoje é dia de boas notícias. Os textos bíblicos apresentam “boas notícias de grande alegria para todo o povo”, pois falam da quilo que Deus fez por meio do Salvador. Somos lembrados que Natal é a mão de Deus estendida em nossa direção. Deus vem ao nosso encontro, Deus se faz presente entre nós na pessoa de Jesus Cristo.

O profeta Isaías anuncia a salvação à comunidade de Jerusalém e ao povo que está para chegar do exílio. Deus não abandonou o seu povo! Ele vem e cum

39 Dia de Natal

pre suas promessas. Deus vem para restaurar as ruínas de Jerusalém e as nossas ruínas na pessoa do Filho, que é a Palavra encarnada que armou sua tenda no meio de nós. Hoje temos a oportunidade de renovar a caminhada, escutando a boa notícia da chegada do reinado de Deus. Hoje somos convidados a nos alegrar, pois, no Filho, Deus assume radicalmente o humano. Jesus é o ponto de encontro da humanidade com Deus.

O que tinha sido anunciado pelo profeta torna-se realidade no Natal, que é a festa do amor de Deus por nós. O evangelho anuncia que a Palavra se tornou um ser humano e veio morar entre nós, cheio de graça e de verdade. Deus não ficou acenando de longe para a miséria humana, mas veio pessoalmente. Veio ser gente como a gente, olhar em nossos olhos, ouvir a nossa voz. Ele veio ter conosco para nos trazer a salvação.

Em Jesus, Deus revelou o seu amor pela humanidade. A salvação não se limita apenas ao povo judeu, mas se estende a pessoas de todas as raças e nações. O ser humano que, por causa do pecado, estava separado do seu criador tem em Jesus a possibilidade do perdão e da salvação. Não é por aquilo que fazemos ou praticamos, mas é pelo que Cristo fez por nós. Ele nos salvou mediante o lavar da regeneração e renovação pelo Espírito Santo.

No Batismo, Deus nos abraça e nos envolve na sua ação salvadora. Deus manifesta a grandeza e a força da sua graça, que é obra do Espírito Santo. Ele con firma sua bondade que foi revelada lá no primeiro Natal. Mas essa bondade quer ser aceita na fé, traduzindo-se assim em efeito transformador. Ela nos compromete com a proposta do Reino de Deus de vivermos uma vida nova inserida no corpo de Cristo, que é a igreja, e dedicada ao serviço do próximo. Essa vida nova que resulta do Batismo precisa do poder santificador do Espírito Santo e deve ser construída e vivida diariamente, até alcançarmos, pela graça de Deus, a vida plena. Assim, o Natal é boa notícia que transforma o futuro e causa alegria em toda a humanidade. O nascimento do Salvador é expressão da benignidade de Deus que leva a grandes mudanças, para todas as pessoas, em todos os tempos. O mundo pode ser diferente; nós podemos ser diferentes; tudo pode ser diferente. É tempo de abrirmos o coração para contemplar, com muita esperança, o mistério da vida que renasce para transformar as pessoas e a sociedade! Neste Natal, somos desafiados e desafiadas a andar pelos caminhos da esperança, semeando o amor, buscando a paz e alimentando a fé no Deus vivo e presente entre nós. Amém.

4 Subsídios litúrgicos

Oração: Bondoso e eterno Deus! Revelaste o teu rosto ao mundo por meio do menino nascido em Belém. O mundo viu a tua glória. Jesus morou no meio de nós. Perdoa-nos por duvidarmos desse mistério singular. Perdoa-nos quando con fundimos o Natal com outra festa qualquer. Concede-nos a tua graça e fortalece em nós a luz do amor que acolhe, para que nossas palavras e ações reflitam o verdadeiro espírito natalino. É o que te pedimos em nome do nosso Salvador, Jesus Cristo. Amém.

40 Dia de Natal

Bênção: Neste Natal, Deus veio a nós por meio de Jesus Cristo. Aqui celebramos que o Verbo se tornou carne e habitou entre nós. É esse Jesus que caminha conos co. Isso nos é afirmado por meio da bênção. Recebam, pois, a bênção de Deus:

Que o amor de Deus, Salvador de todos os povos, se faça de novo presente como uma criança em cada homem e em cada mulher. Que o nosso mundo seja transformado em seu Reino pela ação do seu Espírito de amor.

E que nossa vida seja plena de alegria porque, hoje, um menino nos foi dado! “O mundo tornou a começar.” Amém. (Rubem Alves)

Bibliografia

BOOR, Werner de; BÜRKI, Hans. Cartas aos Tessalonicenses, Timóteo, Tito e Filemom. Curitiba: Evangélica Esperança, 2007.

CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo. São Paulo: Milenium, 1982. v. 5.

KELLY, John Norman Davidson. Epístolas Pastorais. Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983.

41 Dia de Natal

1º DOMINGO APÓS NATAL 26 DEZ 2021

PRÉDICA: LUCAS 2.41-52

1 SAMUEL 2.18-20,26 COLOSSENSES 3.12-17

Procura-se! Onde está Jesus?

1 Introdução

O texto de Lucas 2.41-52 será usado para pregação no dia seguinte ao Natal. A comunidade ainda respira fortemente os ares natalinos. Talvez muitos venham a este culto porque não conseguiram vir no Natal. A história do nascimento do meni no Jesus estará bem presente na mente e no coração da comunidade. Este culto dá continuidade à história do nascimento do menino Jesus. O texto de Lucas 2.41-52 possibilita continuar a reflexão sobre a encarnação, o verbo que se faz carne.

O texto de 1 Samuel 2.18-20,26 apresenta um relato da visita de Ana e Elcana ao menino Samuel, que teve sua vida dedicada ao serviço a Deus. Assim como José e Maria vão ao encontro do menino Jesus, aqui temos o relato do pai e da mãe indo ao encontro do filho Samuel. O v. 26 faz uma referência ao meni no Samuel dizendo que ele continuava a crescer, e que tanto o Senhor como as pessoas gostavam cada vez mais dele. Essa formulação praticamente se repete em Lucas 2.52, quando se fala do jovem Jesus.

Em Colossenses é feito um pedido: a mensagem de Cristo viva no coração de vocês, como em Maria, que guardava tudo no seu coração (Lc 2.51). Colos senses mostra que a fé é vivida em comunidade. Nossas perguntas e dúvidas, nossos medos e inseguranças encontram resposta na vida em comunidade. Nosso coração não bate de forma solitária, mas como parte do povo de Deus.

2 Exegese

O povo de Israel tinha uma esperança messiânica, que se concretizaria na restauração de Israel como nação. O Evangelho de Lucas substitui esse projeto nacional por um projeto universalista que testemunha diante de todo o mundo um reino dos pobres em lugar do reino de César ou de um monarca davídico.

Os dois primeiros capítulos do Evangelho de Lucas, que formam o chamado “Evangelho da Infância, segundo Lucas”, têm seus acontecimentos situados nos arredores de Jerusalém. Diversos acontecimentos ocorrem ao redor do tem plo, que é o centro do poder judaico. Zacarias é um sacerdote que trabalha no templo, onde ele fica mudo ao receber a notícia do nascimento do seu filho João (Lc 1.8-23). É no templo que o recém-nascido Jesus recebe as palavras proféticas de Simeão (Lc 2.25-35) e de Ana (Lc 2.36-38). É no templo que encontramos Jesus menino discutindo com os doutores da lei (Lc 2.46).

42
Eduardo Paulo Stauder

Em Jesus, Deus vai se revelando, questionando uma perspectiva messiâni ca nacionalista. Jesus, ainda recém-nascido, vai sendo reconhecido como messias que nos faz olhar para além do templo. A salvação deixa de ter uma centralidade no espaço de Jerusalém e no templo e se volta para o Reino de Deus, que privilegia a vida dos empobrecidos.

Lucas 2.41-52 faz parte do complexo maior dos capítulos 1 – 2, que for mam o Evangelho da Infância, como já mencionado. Nessas narrativas, os even tos têm a intenção de confessar e identificar o menino Jesus como o Salvador. Podem ser chamados de narrativas confessionais (WEGNER, 2006, p. 116).

Lucas 2.41-52 forma uma unidade delimitada, apresentando um momento único da vida de Jesus aos 12 anos. O texto encontra paralelo em evangelhos apócrifos, como o Evangelho de Tomé e o Evangelho Árabe da Infância. Nos evangelhos apócrifos, encontramos diversas histórias da infância de Jesus que o apresentam com poderes sobrenaturais. Esses relatos revelam a discussão que havia no cristianismo primitivo sobre a encarnação, sobre a relação entre a divin dade e a humanidade de Jesus.

A tradução de Lucas 2.41-52 apresenta dificuldades no v. 49b, o que se reflete nas diversas traduções bíblicas. A frase é de tradução difícil. João Ferreira de Almeida traduz como: Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?. A Bíblia na Linguagem de Hoje traduz: Não sabiam que eu devia estar na casa do meu Pai?. Entendo que a tradução na Linguagem de Hoje está mais pró xima do texto grego, mas as duas traduções buscam expressar a relação de Jesus com Deus, com o seu pai.

A narrativa inicia afirmando que os pais de Jesus iam todos os anos a Jeru salém para a festa da Páscoa (Lc 2.41). No início a festa da Páscoa era uma cele bração doméstica, que foi centralizada no templo de Jerusalém durante o reinado de Josias (640-609 a.C.), conforme o relato de 2 Reis 23.21-23. Houve resistên cia, mas a centralização da festa da Páscoa em Jerusalém foi imposta pela força.

O v. 41 localiza o acontecimento no tempo da festa da Páscoa, geograficamente na cidade de Jerusalém, e apresenta José e Maria como seguidores da tradição e observantes da lei.

O v. 42 introduz Jesus na história, revelando sua idade de 12 anos. Ele estava deixando de ser criança e passava a ser considerado adulto. Essa Páscoa seria dife rente para Jesus, não ficaria no pátio das crianças e mulheres. Poderia acompanhar José no pátio dos homens, presenciando o sacrifício do cordeiro da Páscoa. Mas a história não apresenta nenhum relato sobre a participação de Jesus na festa da Pás coa. Ela se desenrola olhando para o que acontece três dias após a Páscoa.

Os v. 43-45 falam do fim da festa, do retorno para casa e apresentam a situação de que Jesus fica em Jerusalém sem o conhecimento do pai e da mãe. Os peregrinos organizavam caravanas para ir às festas em Jerusalém. Era possível que Je sus estivesse com algum parente, com alguém que veio na mesma caravana. Após um dia de procura, José e Maria voltam para Jerusalém para continuar a busca por Jesus.

Os v. 46-50 narram como José e Maria encontram Jesus no templo, em diálogo com os doutores da lei. Após três dias de procura, encontram Jesus. Fo ram três dias de angústia, de medo, de perguntas sobre onde estaria e o que teria

43 1º Domingo após
Natal

acontecido com o menino Jesus de 12 anos. Três dias também é tempo em que a angústia, o medo e as dúvidas acompanharam os discípulos e as discípulas diante da morte de Jesus na cruz. Após três dias vem o anúncio da ressurreição.

A cena do menino Jesus dialogando com os doutores da lei recebe diferentes interpretações. Alguns veem que o Jesus menino demonstra uma sabedoria maior, que não apenas impressiona os doutores da lei, mas que se revela como superior a eles, como se o menino Jesus fosse um doutor entre os doutores. Outros entendem que está acontecendo um momento de aprendizado, conduzido pelos doutores da lei, onde provavelmente outras crianças estariam participando, ouvindo e aprendendo. Nesse processo de aprendizagem, Jesus se destaca. O texto faz questão de ressaltar que as pessoas ficam extasiadas diante das respostas de Jesus. Dessa for ma, ele reflete a realidade da comunidade que preserva e escreve o texto, a qual já era conhecedora da divindade de Jesus. Toda a narrativa é contada por quem já conhece o fim da história, a morte de Jesus na cruz e sua ressurreição. Os v. 48-50 apresentam o diálogo entre Maria e Jesus. José apenas acom panha a cena. Maria é quem fala e toma a iniciativa. Maria se dirige a Jesus cha mando-o de filho, reafirmando o vínculo familiar. Maria expressa a aflição que ela e José estavam sentindo por não saberem onde estava Jesus. Ela quer entender por que o filho agiu daquela forma.

A resposta de Jesus revela sua filiação divina. Ele não estava perdido, mas estava na casa de seu pai. Jesus revela sua surpresa pela preocupação de José e Maria. Conforme ele, não havia motivo para o procurarem, ele estava onde deveria estar. Aqui o próprio Jesus reconhece que ele é o filho de Deus. Não é alguém outro que faz uma confissão de fé, mas o próprio Jesus demonstra que está toman do consciência de quem ele é. Essa fala de Jesus tem uma dimensão catequética. Mais do que para José e Maria, é dita para os ouvintes do texto.

A filiação divina de Jesus não se manifesta de uma forma sobrenatural. Ele não realiza um milagre nem demonstra possuir algum poder sobrenatural. Ele se encontra dialogando e refletindo sobre a palavra de Deus, revelando qual deveria ser a centralidade do templo que estava mais voltado a práticas sacrificiais.

Os v. 51-52 trazem a conclusão da perícope. Apesar de Maria não com preender o que havia acontecido, guardava tudo no seu coração. Esta atitude atri buída a Maria de guardar no coração os acontecimentos está presente três vezes nos dois primeiros capítulos de Lucas (Lc 1.69; 2.19 e 2.51). Guardar os fatos no coração é manter viva a memória e a história. Ao guardar esses acontecimentos no coração, eles vão sendo colocados ao lado da tradição e da lei. São aconteci mentos que vão norteando e determinando o caminho a seguir na vivência da fé.

A narrativa encerra mostrando que Jesus, como todo menino, não tinha todo conhecimento e sabedoria, mas ele crescia em sabedoria e estatura. Portanto ele estava em processo de aprendizagem e amadurecimento.

3 Meditação

Como estará o Brasil em 26 de dezembro, para quando essa celebração está prevista? Provavelmente estará marcado, no cenário político, pelas dispu

44 1º Domingo após
Natal

tas eleitorais. Provavelmente crescerá a polarização entre as posições políticas e o diálogo será um exercício e desafio constante. O povo brasileiro vive um momento de busca. Quem sabe estejamos como Maria e José à procura do filho perdido. O futuro demonstra-se incerto, despertando aflição, medo, insegurança. O que nós estamos buscando? A busca de José e Maria era pelo filho, mas quando o encontram, uma outra busca inicia: a busca por compreender quem é o filho. A busca por compreender quem é Jesus estava presente nas comunidades cristãs para as quais Lucas escreve. Essa busca permanece entre nós: compreender como na pessoa de Jesus o divino e o humano se encontram e se revelam para nós. No Natal, celebramos que a palavra se tornou carne e habitou entre nós. Deus vem ao nosso encontro, por isso também podemos procurá-lo entre nós. Jesus como menino fez coisas comuns, como deixar os pais preocupados por não avisar onde estava. O divino é encontrado no comum, no humano, na simplicidade da vida. Por isso também não existe um relato de como o menino Jesus acompanhou as grandes cerimônias da Páscoa, mas de como ele é encontrando dialogando e aprendendo. Quando celebramos o culto, por mais especial que seja esse momento, por mais que ele revele que somos filhos e filhas amados por Deus, ao final do culto voltamos para casa, para nossa Nazaré, que também é um lugar onde Deus está presente.

O diálogo de Jesus com os doutores da lei provoca assombro, o que des perta a curiosidade, as perguntas, e faz com que cresça ainda mais o diálogo. Esse assombrar-se traz o conhecimento de que não sabemos tudo, mas que podemos aprender com a outra pessoa. Essa admiração pela sabedoria rompe com os fun damentalismos, pois provoca novas perguntas. Perguntas significam não tomar tudo como garantido, mas fazer com que os acontecimentos sejam compreendi dos e conhecidos.

Jesus nasceu e cresceu numa cultura do diálogo. Essa experiência fez com que no coração do seu ministério como adulto estivessem a palavra e a centrali dade da escuta, saber ouvir o outro. Fazer boas perguntas é fundamental para se pensar no que se crê e se vive. O ministério de Jesus é marcado por perguntas e histórias que ele apresenta, e que fazem as pessoas pensarem. Muitos esperam e desejam que a igreja ofereça respostas e um caminho pronto a ser seguido e observado. O menino Jesus nos leva por um outro caminho, ensinando a impor tância de fazer perguntas e estabelecer um bom diálogo. A forma como Jesus é apresentado em diálogo com os doutores da lei revela que essa criança é uma grande promessa e esperança para todos nós.

Os doutores da lei ouvem Jesus, um menino de 12 anos. Ouvir é não saber tudo e não julgar antes de ouvir tudo. O menino e os velhos sábios crescem juntos em sabedoria. Aqui temos uma riqueza a ser cultivada e valorizada. Nesse tempo de pandemia, muitas pessoas de idade aprenderam a navegar pelas redes sociais com a ajuda de seus netos e suas netas. Quantas histórias e sabedoria netos e ne tas podem aprender ouvindo seus e suas avós! Uma comunidade se enriquece e fortalece quando aprende a valorizar o diálogo entre as gerações.

Deus se faz presente onde as pessoas pensam, perguntam, falam umas com as outras, e assim se tornam mais sábias. Deus nos encontra nas nossas buscas.

45 1º Domingo após
Natal

Por isso vivemos a fé em comunidade, a fim de conhecer Deus e uns aos outros. Participamos da vida comunitária e vamos ao culto não por consideração a si mesmo, mas pelos outros. Nossas perguntas, nosso ouvir, nossas respostas nos fa zem ser comunidade que cresce e se fortalece no diálogo, na vida em comunhão.

4 Imagens para prédica

Jesus aos 12 anos no templo: o que há de tão especial nessa história? É a única história da infância e juventude de Jesus que encontrou seu lugar na Bíblia. Entre o nascimento de Jesus e sua primeira aparição, quando foi batizado por João Batista, não temos outra história com detalhes sobre a vida do jovem Jesus. Essa história tem um grande significado teológico. Ela lança uma luz sobre a jor nada de Jesus. Podemos dizer que essa história e as demais narrativas da infância de Jesus são como uma manchete. Essas narrativas chamam nossa atenção para a forma como acontecerá a missão de Jesus ao anunciar o Reino de Deus.

A narrativa de Lucas 2.41-52 fornece imagens que podem ser usadas durante a pregação. Três imagens podem ser exploradas em especial: a busca pelo filho perdido, o processo de ensino-aprendizagem no templo, guardar as coisas no coração.

5 Subsídios litúrgicos

Lucas 2.41-52 apresenta a narrativa de Maria e José procurando o seu filho perdido. A história tem um final feliz, mas esse não é o caso de milhares de mães e pais no Brasil e no mundo. Muitas crianças se perdem nas grandes cidades. Crian ças são separadas do pai e da mãe em situações de guerra e catástrofes. Crianças são vítimas do tráfico humano, sendo exploradas como crianças-soldados, trabalho forçado e escravidão sexual. A dor das famílias que buscam pela criança perdida pode ser expressa no culto, em especial durante o Kyrie. Ao anunciarmos a paz que vem de Deus, podemos lembrar que estamos vivendo o espírito natali no, em que um menino nos foi dado para que toda marca de guerra e toda bota de soldado manchada de sangue seja queimada (Is 9.4).

Bibliografia

MÍGUEZ, Nestor. Lucas 1-2: Um olhar econômico, político e social. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis: Vozes, 2006. v. 53, p. 54-64. SCHINELO, Edmilson. Um Menino entre os mestres (Lc 2,41-52). Disponível em: <https://cebi.org.br/noticias/um-menino-entre-os-mestres-lc-241-52edmilson-schinelo-3/>.

WEGNER, Uwe. Lucas 2,8-20: Análise histórico-crítica. Revista de Interpreta ção Bíblica Latino-Americana. Petrópolis: Vozes, 2006. v. 53, p. 112-126.

46 1º Domingo após Natal

PRÉDICA:

MATEUS 18.1-5

ISAÍAS 55.6-11

HEBREUS 13.8-9b

1 Introdução

ANO-NOVO

VÉSPERA DE

Criança, utopia e Reino dos Céus

Se você está lendo esta mensagem, é porque sobreviveu à pandemia. Somos sobreviventes. A pandemia virou o mundo de cabeça para baixo. Os dois últimos anos não foram fáceis para ninguém. No Brasil, além da pandemia, houve negligência, indiferença, omissão, desorientação e má vontade política. O sofri mento se abate sobre a maioria da população. Cenários catastróficos!

Estamos finalizando o ano 2021. Não foi fácil fazer essa travessia. Mais um ano difícil. Estamos passando por grandes desafios: na vida, na economia, tentando manter-nos emocionalmente saudáveis. Muitas mortes, milhares de famílias despe diram-se e choraram seus entes queridos. A luz de esperança veio com a vacinação. Neste fim de ano, podemos olhar para o caminho trilhado com gratidão, mas também trazer à memória como foi penoso e difícil fazer essa travessia.

Uma das leituras para este domingo é Isaías 55.6-11. O profeta desafia o povo a buscar a Deus. Chama a uma mudança de vida, a deixar-se guiar e orientar por ele. Deus quer vida e liberdade para todo o povo. Esse projeto é revelado a nós pela Palavra, que gera vida e concretiza sinais do Reino de Deus. Lembrando que a boa semeadura precisa sempre acontecer. Confiamos, como diz o v. 10, que a Palavra de Deus sempre cumpre com o seu propósito.

A outra leitura é da Carta aos Hebreus (13.8-9b). Jesus é Senhor ontem, hoje e sempre. Por isso é preciso manter-se firme e fiel a ele, seguir seus ensinamentos, ter os olhos fixos em Jesus e testemunhá-lo.

A partir desses textos e do texto de pregação (Mt 18.1-5), acentuaremos os valores do Reino de Deus para nosso testemunho de fé. Ênfases: a) olhar para o ano que estamos finalizando, em retrospectiva. Podemos comparar a um retrovisor. Mas com os olhos no horizonte. As crianças são sinais/símbolos de utopia; b) em tempos difíceis, como os que estamos vivendo, é necessário resgatar va lores do Reino de Deus. As crianças podem nos auxiliar a trilhar esse caminho. Jesus coloca uma criança no centro da roda.

2 Considerações exegéticas

O Evangelho de Mateus faz muitas referências ao Antigo Testamento e utiliza uma linguagem mais rebuscada do que a de Marcos. Coloca Jesus como Messias de Israel, mas que não foi acolhido entre os seus. Apesar de rejeitado, Jesus é Messias enviado aos judeus, morrendo na cruz como o rei de Israel. O

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31 DEZ 2021

autor é Mateus, conhecido como Levi, coletor de impostos. Foi escrito por volta do ano 80 d.C. O Evangelho de Mateus tem propósito catequético. As palavras de Jesus querem ensinar uma comunidade cristã de origem judaica.

O texto de prédica para a véspera de ano-novo (Mt 18.1-5) fala do Reino dos Céus. Jesus usou uma criança como ilustração de fé, serviço e humildade. A criança é referência.

Na Bíblia Edição Pastoral, temos o seguinte comentário sobre Mateus 18.1-5: “A comunidade cristã não é reprodução de uma sociedade que se baseia na riqueza e no poder. Nela, é maior ou mais importante aquele que se converte, deixando todas as pretensões sociais, para pertencer a um grupo que acolhe fra ternalmente Jesus na pessoa dos pequenos, fracos e pobres” (p. 1.263).

A criança está no centro. É referência. É parâmetro de humildade, fé e serviço. É indicação para salvação. Nosso texto é curto, conciso e objetivo. Isso nos ajuda muito. Na dimensão exegética, recomendamos os auxílios homiléticos de Antônio C. Ribeiro, em PL 37 (2012), p. 48-53, e de Fernando Henn, PL 38 (2013), p. 310-313.

3 Meditação

O tema gerador para o diálogo entre “os adultos” do texto acontece a partir de uma pergunta: quem é o maior no Reino de Deus? A pergunta geradora faz a cena acontecer daquela maneira. Portanto perguntas precisas são importantes para o ensino e a aprendizagem.

Jesus responde com um gesto, ao colocar uma criança no centro da roda, e com palavras. Chama os ouvintes a ser como uma criança, viver como uma crian ça, servir sem pensar em recompensa e servir em humildade.

Jesus nos chama a nos tornarmos crianças. Ele inverte os papéis. É assim no Reino de Deus. Também nos chama a semear sinais e valores desse Reino em nosso mundo.

As palavras bíblicas têm poder curador, restaurador. Alimentam a fé e a esperança. Elas nos dão forças para reorganizar a vida e promover rompimentos. Muitas vezes, elas nos confrontam. Palavras bíblicas, normalmente, vêm carre gadas de exemplos e simbologias. Elas nos auxiliam nos processos de transfor mação, de moldar a vida.

Estamos no final do ano: podemos olhar para o ano que passou com gratidão a Deus pela caminhada. É preciso recordar de como essa travessia foi difícil. Para falar da travessia durante a pandemia, recorro à palavra resiliência, assim definida por Lothar Hoch: “Na minha compreensão, resiliência é a capacidade humana de extrair do íntimo do seu ser uma reserva extra de forças para superar as dificuldades. É como se Deus tivesse colocado no fundo da nossa alma, um ‘tanque reserva’! O importante é que saibamos disso e acreditemos nisso. Em outras palavras, quan do achamos que o combustível da vida esteja no fim, podemos contar com uma força extra, quase secreta, que habita em nós” (HOCH, 2019, p. 176).

Sim, podemos contar com uma força extra, quase que secreta, que habita em nós. É o que muitos de nós temos experimentado nessa interminável pandemia.

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Estamos no último dia do ano civil. Aos meus olhos, vale a pena investir nesse resgate de como as pessoas, grupos e comunidades fizeram essa travessia, essa caminhada na pandemia. O final do ano nos ajuda a “fazer o balanço”!

O que dizer à comunidade? Agradecer pela proteção é uma alternativa, pois estamos vivos. Agradecer pelos nossos familiares que sobreviveram e solidarizar-nos com aqueles que sofreram perdas; agradecer pelos contagiados que se recuperaram; agradecer que temos “o pão nosso de cada dia”; agradecer que nossa comunidade de fé deu um belo testemunho nesse tempo de pandemia. A diaconia foi protagonista, com solidariedade e empatia.

Também vivenciamos muitas perdas, muita dor, muito sofrimento. Muita falta de solidariedade e empatia. Muita divisão, rancor e muitos muros foram construídos. E muitas mortes!

Onde e como fomos atingidos? Olhar no retrovisor e fazer um balanço de como fizemos essa travessia, nesse ano, a partir das diversas dimensões: física (nosso corpo), intelectual (conhecimento), emocional (sentimentos), social (nos sa relação com o exterior), afetiva (nossa relação com outras pessoas) e espiritual (nossa relação com Deus, fé/espiritualidade).

Quem é o mais importante no Reino dos Céus?

a) O Reino de Deus apresentado por Jesus como uma criança

Em seu livro “Jesus como terapeuta”, Anselm Grün afirma: “Onde o Reino de Deus estiver em nós, estamos livres de padrões antigos, das expectativas e dos julgamentos das pessoas. Lá somos completos e sãos. Ferimentos e doenças não podem afetar nosso espaço mais íntimo. Lá encontramos nosso ser original e autêntico, entramos em contato com a imagem original e imaculada que Deus tem de nós. Quando entramos em contato com essa visão singular de Deus, nossa vida começa a fluir, a florescer e a dar frutos. Essa imagem original é como uma fonte que jorra em nós e nos fortalece, onde o Reino de Deus, já está em nós, somos puros e claros, nem mesmo a culpa consegue nos atingir” (GRÜN, 2018, p. 200). O foco do livro é outro, mas nos ajuda muito. O excerto, citado acima, nos oferece uma boa janela pela qual podemos espiar o nosso texto. O Reino de Deus é diferenciado. Jesus, em nosso texto, quando nos apresenta o Reino de Deus como uma criança, rompe com os padrões de sua época. As amarras são rompidas. Há libertação.

b) Crianças são sinais da utopia

“As crianças são a parábola da utopia. Esta não está restrita a elas. Mas irradia delas [...] as crianças são sinais destas denúncias e desta esperança” [...] “Estes (reis e poderosos) apostam em armas e em estratégias militares. O profeta aposta no inverso. Este inverso está no reverso da história. ‘Brotos’ e ‘renovos’, meninos e meninas são sinais e símbolos de que a utopia renasce deste reverso” (SCHWANTES, 2012, p. 233).

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Em seu comentário sobre Isaías 6-9,11, Schwantes nos afirma que as crian ças são um símbolo para o profetismo. Da mesma forma também para Jesus, conforme o nosso texto. As crianças são sinais, representam utopias. Precisamos de utopias e crianças para podermos sonhar, pois vivemos tempos nefastos em nosso amado e violentado Brasil!

Podemos afirmar: em um país como Brasil, há crianças abandonadas, mal tratadas, com pouco (ou nenhum!) acesso às dimensões básicas para viver. Jesus valoriza as crianças e as coloca no centro. Dá a elas o privilégio de serem sinais do Reino de Deus.

Crianças e adolescentes formam uma parcela da sociedade que mais sofre e terão perdas irreparáveis com a pandemia. Sofrem com perdas de familiares (pais, avós, irmãos). Perderam a convivência com amigos e colegas, sem ensino pre sencial. Sofrem, pois em muitos casos só puderam interagir com telas. A falta de convivência e o ensino remoto têm trazido prejuízos gigantescos às nossas crianças e adolescentes. Cabe a lembrança de que uma parcela grande da população brasi leira está lutando para ter o que comer. Famílias com poucos recursos e tempo para acompanhar as crianças nas atividades escolares. A prioridade é sobreviver.

c) Crianças espelham o rosto de Cristo

“Por que, então deveria eu procurar Cristo lá longe, ou até mesmo subir aos céus na ânsia de encontrá-lo? Tenho diante de mim tantas crianças cristãs que são a moradia de meu amado Senhor Jesus Cristo. Vendo-as, estarei vendo o próprio Cristo. Se ouço o que dizem, estarei dando ouvidos a Cristo. Se lhes ofereço um copo d’água, estarei dando de beber a Cristo. Se lhes der de comer, estarei dando de beber a Cristo. Se lhes dou o que vestir, estarei vestindo a Cristo. E assim, na Igreja Cristã, terei o mundo cheio de Cristo. Toda vez que olho e vejo crianças cristãs, vejo a Cristo. Se eu pudesse crer nisso!” (LUTERO, 1983).

Lutero nos lembra de que o rosto de Cristo está estampado no rosto das crianças. As mais fragilizadas precisam ser socorridas, pois Cristo está nelas. Lutero nos diz que precisamos um “mundo cheio de Cristo” e que as crianças são a moradia de nosso Senhor.

O Reino de Deus é apresentado por Jesus com uma criança, pois as crianças espelham o rosto de Cristo e são símbolos de utopia. “Em cada criança vem algo novo ao mundo. Conhecemos a magia desse novo começo da vida no nascimento de uma criança e, por conseguinte, devemos manter aberto para toda criança o seu próprio futuro. A mensagem das crianças aos adultos tem o seguinte teor: ‘Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus’ (Mt 18,3)” (MOLTMANN, 2012, p. 95).

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Véspera
de Ano-Novo

Pregação

a) A difícil travessia e a oportunidade para o novo

Resgatar como foi dolorosa a travessia de 2021. Fazer uma retrospectiva com os olhos no horizonte, pois a criança é símbolo da utopia. Ter sensibilidade para essa retrospectiva. Perceber que as pessoas foram sustentadas e carregadas pela mão de Deus nesse ano. Muitos foram os gestos diaconais, de cuidado com a vida, de solidariedade, de aproximações familiares, de empatia. Aqui há a possibilidade de resgatar as ações diaconais da comunidade local e seus grupos. A pan demia nos desafiou e nos proporcionou novas descobertas. Suspeito que ficamos mais seletivos, priorizamos o que é precioso. O fim de ano nos dá oportunidade para rompimentos de círculos e pensamentos viciosos; oportunidade para o novo. Quando Jesus coloca uma criança no centro, aponta para o rompimento e para inaugurar algo novo. Portanto o novo ano é boa e bela oportunidade para romper e inaugurar o novo.

b) Uma criança no centro da roda

No texto crianças são impedidas de chegar perto de Jesus. Jesus é isolado. Jesus é cercado pelos adultos. Cabe a nós e a nossas comunidades refletirmos como impedimos pessoas (penso nas fragilizadas e excluídas) de chegarem a Jesus. Muitas vezes nos comportamos como os discípulos: “tomamos posse” de Jesus, o cercamos e o isolamos. Dessa forma colocamos impedimentos ao Evan gelho, de forma especial à comunhão de pessoas.

Quais as formas que usamos para isolar pessoas? Quais são as frestas, fa chos de luz, como nos afirmou o saudoso Schwantes, que trazem esperança e nos movem? Colocar uma criança no centro é sinalizar para o rompimento. É apontar para o novo. Lembremo-nos de que o rompimento acontece somente quando há possibilidade para o novo. Crianças representam, anunciam e inauguram o novo, pois carregam consigo sonhos e esperança.

Jesus foi criança. A história de Natal, há pouco vivida, nos lembra disso. Em nossas comunidades, onde há crianças envolvidas, percebemos comunidades ativas e vibrantes. Em nosso país, as crianças precisam ser priorizadas. Crianças devem ser colocadas no centro para que adultos possam se espelhar nelas. Há contraste entre o mundo adulto e de criança. Jesus tem uma atitude pedagógica: coloca uma criança no centro. Faz com gesto, não argumenta somente com palavras.

Crianças espelham inocência, verdade, humildade. Crianças não têm or gulho. Elas se mostram por inteiro, sem maldade, de forma simples e humilde. A raiva é passageira. Podemos nos espelhar nelas em humildade e alegria.

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Véspera
de Ano-Novo

c) As crianças nos inspiram a sonhar com um futuro melhor

As crianças não se preocupam tanto com o futuro, vivem o momento, suas ações são imediatas. Sofrem menos de ansiedade que nós adultos (quem sabe é uma meia verdade!).Viver como as crianças, sem tanta ansiedade, quem sabe não é uma boa alternativa para a vida pós-pandemia.

O texto nos faz refletir sobre o Reino de Deus, que é comparado a uma criança. Joga luz e esperança para dentro de nossa realidade. Moltmann afirma: “A esperança cristã se baseia na ressurreição de Cristo e inaugura uma vida à luz do novo mundo de Deus” (MOLTMANN, 2012, p. 18).

Finalizo com uma inspiração e provocação de Moltmann: “Visto que o Reino de Deus é o futuro de toda a história, ele transcende o futuro histórico e todas as antecipações na história. Justamente desse modo, porém, o reino se torna a força de esperança na história e a fonte dessas antecipações com as quais prepa ramos o caminho para a vinda de Deus” (MOLTMANN, 2012, p. 53).

Que as reflexões aqui apresentadas possam nos inspirar, identificar e apon tar para os sinais do Reino em nosso meio.

Bibliografia

BÍBLIA SAGRADA Edição Pastoral. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica; Paulinas, 1990.

GRÜN, Anselm. Jesus como Terapeuta. O poder curador das palavras. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2018.

HOCH, Lothar. Aconselhamento e cuidado pastoral. Joinville: Grafar, 2019.

LUTERO, Martim. Jesus abençoa as crianças. Meditação de Martim Lutero, 01/01/1983. Castelo Forte. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concór dia, 1983.

MOLTMANN, Jürgen. Ética da Esperança. Petrópolis: Vozes, 2012.

SCHWANTES, Milton. Deixem vir a mim as crianças, porque delas é o Reino de Deus. In: PEREIRA, Nancy Cardoso (Org.). Milton Schwantes: escritos de história e paixão. São Leopoldo: CEBI, 2012.

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Véspera de

PRÉDICA:

LUCAS 2.15-21

NÚMEROS 6.22-27 FILIPENSES 2.5-11

ANO-NOVO

(NOME DE JESUS)

1 Introdução

Deus continua presente neste mundo

Ano novo, vida nova e bola para frente. Esse sentimento popular, expresso com palavras otimistas, nos envolve neste período do ano, apesar do ano com plicado de 2021. O envolvimento de Deus na realidade é o que caracteriza os textos bíblicos indicados. Em Filipenses 2.5-11, nós nos confrontamos com o hino cristológico, uma confissão de fé que acentua a revelação de Deus em Cristo, assumindo a humildade como manifestação de sua humanidade. Embora Cristo fosse igual a Deus, esvaziou-se dessa condição e tornou-se ser humano. O texto de Números 6.22-27 traz a bênção de Arão, tradicionalmente usada em nossas celebrações. É uma tradição que herdamos dos sacerdotes, que já a cantavam no templo judaico, expressando sua confiança e alegria na bênção de Deus. Relato, poesia e canção nos partilham a fé presente na vida de comunida des, judaica e cristã, manifestando proximidade, vínculos e amorosidade pelo mundo e a humanidade.

2 Exegese

Os evangelhos canônicos expressam a boa notícia com terminologia religiosa. Por isso eles têm uma intenção teológica e não histórica. A linguagem teológica caracteriza-se por seu conteúdo, específico de cada comunidade cristã primitiva. Lucas escreve seu evangelho a partir de uma pesquisa e do estudo do que as comunidades primitivas transmitiam. Não temos nada diretamente de Jesus. O que temos como evangelho é sempre a interpretação feita por pessoas ou por grupos comunitários. Trata-se de uma releitura, não somente da vida, mas especialmente da pregação de Jesus de Nazaré a partir da experiência pós-pascal. De Jesus só temos o testemunho de outros, que, de maneira diversa, creram que os ditos e as ações de Jesus tiveram uma importância decisiva: revelavam a presença de Deus e instaurava o Reino de Deus em favor dos pobres e marginalizados. O texto de Lucas 2.15-21 está na obra teológica elaborada por Lucas e in tegra o evangelho da infância de Jesus (Lc 1.5 – 2.52). Mais do que propriamente fatos históricos, essas narrativas são uma leitura teológica da infância de Jesus, feita a partir das experiências pós-pascais da comunidade e resultado redacional do autor. A história de Jesus é narrada por Lucas de maneira retrospectiva, tendo como ponto de referência a experiência comunitária entre os anos 70 e 90 d.C.

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Paulo
01
2022
JAN

Não é mero detalhe ou curiosidade o fato de Lucas localizar o evento tem poral e geograficamente. Ocorre no tempo do imperador Augusto, numa referên cia de alcance mundial, e no tempo do governador Quirino, referindo-se ao local próprio onde o evento acontece. Da localidade de Belém se estende para o mundo inteiro. Tamanha é a importância do evento que está sendo relatado. Foi naquele tempo e naquele lugar. E o que ali ocorreu tem alcance para todos os tempos, para todos os lugares. É em favor de toda a humanidade. Nossa perícope está dentro de uma unidade literária de Lucas 2.1-20(21). v. 1-7 – relato do nascimento; v. 8-14 – anúncio do nascimento aos pastores; v. 15-20 – reações ao anúncio do nascimento; v. 21 – nome de Jesus.

O v. 21 faz parte de um conjunto maior (2.21-24) que trata das práticas de observância às leis religiosas judaicas, que orientam para o período pós-parto, quando se completam os dias para a circuncisão da criança e quando estão termi nados os dias de purificação da mãe. Está incluído na nossa perícope por razões teológicas do calendário cristão que celebra o nome de Jesus.

O texto – Lucas 2.15-21

Quando os anjos se afastaram voltando para os céus; os pastores combinaram entre si: “Vamos a Belém ver esse acontecimento que o Senhor nos revelou”.

Foram, então, às pressas e encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado em um cocho. Tendo-o visto, contaram o que o anjo lhes anunciara sobre o menino. E todos os que ouviam os pastores ficaram admirados com aquilo que contavam.

Maria, porém, conservava todos esses fatos, e meditava sobre eles em seu coração.

Os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo que haviam visto e ouvido conforme o anjo lhes tinha anunciado. Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo, antes de ser concebido.

Assim como Lucas e as comunidades para as quais esse evangelho é endereçado, nós queremos ser envolvidos nesse acontecimento histórico, cuja interpretação teológica deixa todos atônitos, surpresos e admirados. Há aqui a contribuição exclusiva de Lucas para contar sua interpretação teológica do acon

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tecimento. É algo que supera o evento histórico e disso participam céus e terra, toda a humanidade e o universo todo.

O acontecimento se dá em Belém. Isso coloca o acontecimento na tradição do profetismo periférico e popular (Mq 5.1-3). A boa notícia para toda a humanidade vem de Belém, da periferia, de uma aldeia da Judeia. O acontecimento de repercussão universal não se dá em Roma, o centro político; nem em Jerusalém, o centro religioso. Mas está carregado de sentido político, pois Belém é a cidade natal do rei Davi. Está carregado de sentido religioso, pois Belém é “a casa do pão”. É lá que aconteceu o que precisa ser visto.

Os primeiros destinatários da boa notícia foram os pastores de ovelhas, criadores de pequenos animais. São pobres e explorados economicamente, mar ginalizados e excluídos pelo legalismo religioso da lei judaica. Não sei se a gente se dá conta da profundidade que a cena seguinte vai revelar. Trata-se do primeiro encontro que marcará a presença da criança neste mundo e que irá identificar para todo o sempre o seu rosto e a sua imagem para a humanidade. Os que nada são se encontram diante do acontecimento que colocou o rosto e a imagem de Deus dentro de um estábulo e os pobres o veem deitado dentro de um cocho que serve para alimentar os animais. A criança ali dentro de um cocho é o rosto humano do amor de Deus e o rosto divino desse ser humano.

Quando os pastores de ovelhas relatam o que tinham ouvido a respeito dele, provocam reações de surpresa e admiração. Acho que o termo apropriado seria que os ouvintes ficaram atônitos. Até o testemunho dos pastores, o acontecimento não havia sido percebido em toda a sua importância. Eles foram para ver. E ao interpretar o acontecimento, fizeram seus ouvintes ver e perceber o que sig nificava a boa notícia. Não há nada de bonito e de romântico no fato escandaloso do Salvador, o Messias, o Senhor nascer num estábulo fedorento e estar deitado num cocho. Há aqui a revelação do mistério da encarnação do próprio Deus. Deus se fez humilde, tornando-se próximo dos mais miseráveis da sociedade.

Isso explica porque Maria guardava todas essas coisas no coração e pen sava a respeito delas. Maria juntou e segurou para si essas notícias. Pensava, meditava, juntava com o que já havia ocorrido anteriormente com ela (1.31-33). Eram tantas notícias espantosas que ela precisou de tempo para assimilar, por isso meditou e pensou.

Para os pastores de ovelhas, depois de testemunharem o acontecimento, restou voltar aos campos, às suas atividades. Mas não retornaram de qualquer jeito. Voltaram glorificando e louvando a Deus. A vida continua, mas não de qual quer jeito e nada como antes. Para quem ouviu e viu como eles ouviram e viram, a vida muda. A vida não é mais a mesma.

No momento seguinte somos conduzidos ao fato quando, oito dias após o nascimento, em cumprimento à lei judaica, a criança recebe a circuncisão e o menino então recebe o nome de Jesus (v. 21). Lucas escreve a respeito dele como sendo o filho primogênito de Maria (2.7), o Salvador, que é Cristo e Senhor (2.11), a criança (2.12,16) e menino (2.21). Só se declarou o nome de Jesus quando de sua circuncisão. O nome revela o extraordinário do que havia acontecido

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(2.11), no nome Jesus (Yeshua) e de seu significado: “Javé é a salvação”. O nome é escolha de Deus (1.31), é revelação divina que diz a que veio.

É sobre Jesus que estará o Espírito do Senhor para anunciar a boa notícia aos pobres, proclamar a libertação aos presos, restaurar a visão aos cegos, libertar os oprimidos e proclamar o ano de graça do Senhor (Lc 4.18-19) e concluído o seu ministério público com a ressurreição e a ascensão ao céu, eles o adoraram, e depois voltaram para Jerusalém, com grande alegria [...] bendizendo a Deus (Lc 24.52). Do início ao fim, o nome de Jesus provoca adoração, louvor, alegria e bênção aos pobres e excluídos que acolhem o seu anúncio.

3 Meditação

De repente, a morte suspendeu suas atividades no país. A nação tinha sido escolhida para a imortalidade, depois de milênios de sofrimento e sujeição à mor te. Ano novo, vida eterna, porque desde 1º de janeiro ninguém mais morria em um canto do mundo inventado pelo escritor José Saramago em seu livro “As intermitências da morte”. Magoada porque os seres humanos tanto a detestam, a morte resolve mostrar como, no fundo, eles são uns ingratos. Não parece ser o caso do Brasil. No momento que estou envolvido em con cluir este texto, o Brasil chega ao criminoso número de 500 mil mortos decorren tes da pandemia que nos assola desde o início do ano de 2020. Já temos às nossas costas 17 meses de enfretamento e de negacionismo da pandemia. Com certeza até o momento de celebrarmos o Ano-Novo, vamos aumentar esse número as sustador de vítimas, consequência da falta de uma política pública e sanitária, da lentidão na campanha de vacinação, da veiculação de mentiras sobre o tratamento precoce e de mentiras alegando a ineficácia do isolamento e distanciamento social. Até aqui prevaleceu o sacrifício humano. A mensagem política de ano novo, vida nova e da volta à normalidade sempre foi o do sacrifício das pessoas em favor da sobrevivência da economia.

Com uma proposta bem diversa, o Evangelho de Lucas encontra os pastores de ovelhas retornando para casa surpresos e admirados pelo que tinham ouvi do e visto. A intenção do tempo litúrgico do Natal é exatamente esta: provocar em nós os mesmos sentimentos, compromisso e atitudes. A vida continua depois do Natal, mas de um novo jeito, com novos olhares e novas conversas a respeito da revelação do mistério da encarnação de Deus. O acontecimento que motiva essa boa nova é uma criança, um menino, que recebe o nome de Jesus.

“Em nome de Jesus.” Quantas vezes se ouviu essa expressão. Ela foi dita, repetida exaustivamente. Parece um mantra que, por sua repetição, se crê terá efeitos mágicos e milagrosos. Em nome de Jesus, quem tinha fé, não pegava Covid-19. Em nome de Jesus, há autoridades ungidas e eleitas que são intocá veis. Em nome de Jesus, prometeram-se cura, prosperidade e bênçãos materiais no atual mercado religioso. Em nome de Jesus, praticou-se a violência seletiva do Estado contra negros, mulheres, crianças empobrecidas e povos indígenas. Em nome de Jesus, sepultamos pessoas vítimas da Covid-19, mulheres vítimas de feminicídios, crianças vítimas de balas perdidas, negros vítimas da violência

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Ano-Novo (Nome de Jesus)

de agentes de segurança, pessoas que praticaram o suicídio como saída de seus problemas, indígenas e quilombolas vítimas de conflitos de terras.

A visão que nos proporciona a criança frágil, pobre e humilde, nascida em condições de extrema exclusão, assim como a visão antecipada da cruz e da coroa de espinhos, contrasta com a violência, os excessos e poderes de nossa sociedade e da mesquinhez do ser humano quando perde a sua condição de imagem e semelhança com Deus. Só Deus mesmo para fazer uma coisa dessas. Deus vem morar entre nós, sempre o mesmo, verdadeiro, coerente. Sem alarde no palácio, sem mídia global. Assim Jesus vem mais uma vez, vem para estar com as pessoas que ele quer bem. Acabar com a solidão, o medo do futuro, a miséria interna e externa, a injustiça e o ódio entre os diferentes. Onde ele é convidado a entrar, ele arruma a casa. Não nos promete mudos e fundos, mas nos dá a capacidade de viver uma vida renovada. Pelo menos entre as pessoas que ele quer bem.

4 Imagem para a prédica

Onde há um Deus como o nosso? Pois, visto que nada existe acima dele, ele não olha para além de si; não olha para os lados, porque ninguém é igual a ele. Por isso dirige o seu olhar para baixo; quanto mais baixo alguém está, tanto melhor Deus o enxerga. Os olhos das pessoas fazem o contrário: olham para cima e querem erguer-se a todo custo. Esta é a nossa experiência diária: todos estão em busca de coisas acima deles, de honra, poder, riqueza... tudo que é grande e elevado. E onde existem pessoas assim, todas se agregam a elas, a elas se acorre, a elas serve-se com prazer, todos querem estar ali. Por outro lado, ninguém quer olhar para baixo, onde existe pobreza, miséria, desgraça e angús tia. Disso todo o mundo afasta o olhar. Onde existem pessoas em tal situação, todos se afastam, a gente as evita, ninguém se lembra de ajudar, de as socorrer e trabalhar para que também sejam algo. Essa maneira de ver as coisas, de olhar para a profundeza, para a miséria e desgraça, é exclusiva de Deus. (LUTERO, 2016, v. 6, p. 24).

Desse entendimento de Deus resulta algo bem prático à sua presença neste mundo, pois Deus continua a se fazer presente em situações de profundo sofri mento e busca por vida e esperança.

Bibliografia

LUTERO, Martinho. Magnificat: o louvor de Maria. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2016. v. 6. WIESE, Werner. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST 2009. v. 34, p. 69-74.

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DOMINGO APÓS NATAL

PRÉDICA: JEREMIAS 31.7-14

JOÃO 1.(1-9)10-18 EFÉSIOS 1.3-14

Fé no cumprimento das promessas

1 Introdução

A função do profeta é despertar no povo a capacidade de pensar no futuro. Cabe a ele animar a comunidade e trazer palavras que levem as pessoas a acre ditar no amanhã, não simplesmente porque o sol vai se levantar outra vez, mas porque há um Deus que ama o seu povo e por isso não o abandona nas horas mais amargas da vida. O profeta faz com que o povo use a imaginação.

O texto de Jeremias que estudaremos (31.7-14) apresenta um processo de libertação que foi proporcionado pelo Deus de Israel. Esse texto do Antigo Testa mento se alia aos dois textos do Novo Testamento ao mostrar que a salvação vem daquele que se fez homem e se tornou conhecido em figura humana por meio de Jesus Cristo. Esse Deus, presente em todo o Antigo Testamento, se manifesta na pessoa de Cristo. Por isso João afirma que “ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito que está no seio do Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18). Ou seja, Jesus é aquele que faz a exegese de Deus, é quem o traz para a luz e o apresenta a todo homem e mulher. É a esse Deus que Paulo, o apóstolo, ora ao escrever aos efé sios: “Deus de graça e de misericórdia, que nos escolheu nele antes da fundação do mundo”. Ao final, ele fará o “resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória” (Ef 1.14). Portanto podemos dizer que os textos, o principal e os auxilia res, apontam numa mesma direção: a salvação e a libertação oferecidas por Deus a todo aquele que crer, sabendo que ele não falha em suas promessas.

2 Exegese

Quem lê Jeremias pela primeira vez, tem a impressão de que está diante de um profeta que não deu a devida importância aos problemas sociais de seu tem po. Estaria mais preocupado com o problema da idolatria cultual, cujas diversas facetas como o culto a Baal, a Moloque, à Rainha do Céu e outras divindades com as quais os israelitas tiveram contato em suas peregrinações de épocas passadas, estaria mais presente em sua mente.

A vida de Jeremias compreende dois períodos muito distintos cortados pelo ano 609 a. C., data da morte do rei Josias. Os anos que precedem esse acontecimento estão marcados pelo otimismo, especialmente por causa da independência políti ca com relação à Assíria que abre caminho para a prosperidade econômica e conduz

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02 JAN 2022
Manoel Bernardino de Santana Filho

a uma reforma religiosa. Podemos situar o nascimento do profeta por volta do ano de 640 a.C. em Anatote, cerca de cinco quilômetros de distância de Jerusalém. O outro período que se destaca em Jeremias são os anos posteriores à re forma de Josias, que apresentam uma rápida decadência política e espiritual. Judá será dominada primeiramente pelo Egito e depois pela Babilônia. As tensões internas e lutas de partidos fazem surgir as injustiças sociais e novamente um perío do de corrupção religiosa. Apesar dos avisos, das tentativas ousadas de Jeremias a fim de evitar a catástrofe, Jeremias não foi ouvido pelos seus contemporâneos. Desta forma, o povo parece caminhar para o seu fim, como nação abençoada e com um futuro promissor. No ano de 586 Jerusalém cai nas mãos do babilônios e o reino de Judá desaparece definitivamente da história.

Outro traço característico de Jeremias é o fato dele expor seus sentimentos diante do mal que assola a nação. Não é por acaso que ele se tornou conhecido como “profeta chorão”, visto que não teme expor seus sentimentos, suas apreen sões e preocupações com o destino do povo malconduzido, que não enxerga a gra vidade da situação política e religiosa em que viviam. Ele fala dessa situação tanto em prosa quanto em versos, sem perder a direção que deve conduzir a sua fala.

Até o capítulo 29 ele apresenta as agruras e dificuldades vividas pelo povo no exílio, visto que não atenderam a voz de Deus enviada por seu intermédio. Jeremias foi um profeta cuja mensagem foi rejeitada como sendo palavra dura e que não correspondia à realidade. Havia outros que falaram de forma mais suave e por isso sua mensagem foi aceita.

Na perícope em destaque para essa mensagem (31.7-14) se destaca a men sagem de consolo para todo o Israel. Essa mensagem já adquire esse contorno de restauração a partir do capítulo 30 e que vai até 33, formando um grupo de profecias acerca da restauração de Israel. Até então a profecia era sombria, pois Jeremias anunciava o desastre iminente, castigo contra a apostasia da nação. Je remias, que estivera em forte contraste com a atitude irresponsável e leviana da classe governante, agora é o porta-voz do anúncio da chegada de um tempo de refrigério. Por isso estamos diante daquilo que vem a se chamar “Livro do Consolo” por causa de sua mensagem de conforto e esperança para o futuro, depois de imposta a pena do exílio.

Em linguagem poética, Israel se orgulhará de sua posição de destaque entre seus vizinhos. O arrependimento pelo mal cometido resultará na volta de um Is rael penitente. Deus promete que trará o povo das terras do norte, uma referência à Assíria e Babilônia. O Senhor os congregará de todas as partes da terra e os fará prosperar. O texto diz que virão os cegos e aleijados, mulheres grávidas e aquelas que estiverem de parto. Isso significa que Deus não deixa nenhum dos seus para trás. Eles foram levados para o exílio com choro e tristeza sem fim. Agora, Deus os guiará para casa onde haverá abundância, água e comida em abundância. Se rão conduzidos por caminhos retos, porque são caminhos propostos pelo Senhor. Portanto não tropeçarão.

Israel fora levado por um reino com o qual não tinha a mínima condição de se enfrentar. Mas o Deus que permitiu esses acontecimentos agora mandar avisar que ele intervém para trazer seu povo de volta para casa. Ele fará isso como o

59 2º Domingo após
Natal

pastor faz com as ovelhas de seu rebanho. A alegria da nação será contagiante, virão radiantes de alegria por causa do bem que o Senhor lhes proporciona. Em casa terão cereais, vinho, azeite e carne de cordeiros e de bezerros. O tempo da escassez passou. Os dias de escuridão e tristeza ficaram para trás. Jovens e velhos dançarão de alegria, pois o que os afligia foi tirado. Dizer que o que é devido aos sacerdotes será dado, é dizer que Israel voltará a produzir economicamente e a servir ao Senhor com coração íntegro entregando seus dízimos e suas ofertas.

3 Meditação

O profeta Jeremias nos assegura que a nossa esperança deve ser posta na ação do Senhor em nossas vidas. Muitos não creem e têm uma vida desprovida de esperança, ou põem-na em coisas frágeis e fugazes. Constroem seus castelos na areia, que como nuvem se vão na primeira rajada de vento. Jamais provaram da paz que não está estabelecida pelos períodos de bonança, mas na confortante e consoladora presença de Jesus em meio às nossas tribulações. Quem já provou desses momentos, sabe muito bem o que é paz. Portanto, quando o profeta afirma que a esperança está no Senhor, é porque nenhum de nossos sonhos, planos, tris tezas, dores, alegria e paz, podem ser supridos sem a maravilhosa, consoladora e reconfortante presença de Senhor em nossa vida. Comecemos um novo tempo na esperança do Senhor, orando para que ele nos dê forças para caminhar, amor para viver e fé para crer no seu cuidado todos os dias de nossa vida.

A promessa de libertação é um desses textos surpreendentes que a Bíblia tantas vezes nos oferece e que, quase sempre, desarticulam as falsas seguranças que, por egoísmo, comodidade e, principalmente, convencimento ideológico, va mos elaborando em nossos contextos pessoais e coletivos e que não passam de idolatrias religiosas com as quais tentamos justificar nossa adesão aos poderes da morte que governam este mundo.

Jeremias não é um profeta exílico, isto é, daqueles que foram exilados para a Babilônia. Se fosse para a Babilônia, não iria como prisioneiro, mas como convidado, porque os babilônios sabiam de suas palavras duras contra Judá, de nunciando a atitude errada quanto ao cenário internacional. Ele preferiu ficar em Judá, mas faz recomendações aos cativos na Babilônia. Fiel às mais antigas tra dições do povo de Israel, Jeremias se rebela contra a reforma religiosa realizada pelo rei Josias, a qual levou à centralização exclusiva do culto ao Senhor na cidade de Jerusalém, centralização esta que aumentou o poder da monarquia e des qualificou a prática cultual a que o povo estava acostumado. Além disso, Jeremias se opôs também aos sucessores de Josias quando esses procuraram estabelecer alianças políticas com os egípcios para enfrentar os assírios e o poder emergente dos babilônios que, ao derrotarem àqueles, acabaram invadindo Jerusalém, des truindo o templo e deportando os filhos de Judá para o cativeiro na Babilônia. Com lúcida visão política da conjuntura internacional, Jeremias reconhe ceu a superioridade dos babilônios, denunciou as políticas subservientes e desastradas – principalmente para o povo – da elite dominante de Judá. Sua atitude, corajosa e soberana, de quem não tem compromissos com o poder estabelecido,

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2º Domingo após
Natal

acabou levando o profeta para a prisão sob a acusação de falta de patriotismo. Terminada a conquista de Jerusalém, os babilônios lhe ofereceram um salvo -conduto, mas ele, fiel à sua visão da justiça de Deus, recusa qualquer tipo de relação com os novos conquistadores e se refugia no Egito, onde provavelmente termina os seus dias.

O livro de Jeremias exorta para os terríveis momentos do exílio e a servi dão à qual o povo foi submetido ao longo do tempo. Mas agora, com o retorno, a volta para casa, ele diz: Aquele que espalhou a Israel o congregará e guardará, como o pastor ao seu rebanho. Sim, mesmo em meio aos tempos de desesperança como o que vivemos hoje, cercado por uma terrível ameaça de guerras e conflitos de toda ordem, em meio à mais terrível corrupção, a uma pandemia que mudou a forma de nos relacionarmos e trouxe luto e tristeza para todas as cidades, ainda assim é preciso não ficar ao lado dos que dizem que a situação não tem jeito, que nada pode mudar. Essa não é a sina do povo de Deus. Antes, é preciso sonhar, é preciso ter sempre esperança de que a servidão e os tempos de tristeza já duram demais e agora é preciso dar um basta e crer que o Deus que servimos é aquele que muda tudo. É preciso sonhar que dias melhores virão, que a escuridão da noite vai passar e que amanhã será um novo dia em que a glória do Senhor vai brilhar sobre as nossas vidas e então poderemos refazer os percursos, e recomeçar a caminhada com a energia recomposta por uma longa noite de espera.

Aqueles que deixam de sonhar perdem a razão de viver. O que nos move para a frente é a capacidade de sonhar, de desejar que o amanhã seja melhor que o dia de hoje. Os que continuam sonhando são aqueles que haverão de experimen tar aquilo que o Senhor tem preparado para os seus. Os que sonham serão vistos e reconhecidos como pessoas que acreditam contra toda a possibilidade.

4 Imagens para a prédica

Eu sou nordestino. Pernambucano. Meu pai foi pastor nas regiões secas do agreste e do sertão nordestino. Carreguei água na cabeça e ia à noite esperar a água brotar de um olho d’água para ter o que beber, água potável, durante o dia. Minha mãe cozinhava em fogão de lenha e dormia em cama de vara. E ela pen sava como Sinhá Vitória, mulher de Fabiano, do romance Vidas Secas de Graci liano Ramos. Minha mãe dizia como Sinhá Vitória: “não quero passar a vida toda dormindo em camas de varas, me encolhendo num canto e o marido no outro e no meio um calombo machucando o coração”. Minha mãe nunca se acostumou a dormir em camas de varas. Eu e meus irmãos dormimos. Até que os tempos mudaram e chegou um colchão decente.

Por um desses dias, um sertanejo me mandou uns vídeos com a água correndo no sertão. Chuva como não se via há anos. E ele disse: esse ano a mão de milho vai cair para dez reais (uma mão de milhão são cinquenta espigas). É a vida que se renova e o povo se alegra e agora o nordestino estava dizendo: o Senhor se lembrou de nós.

Sim, o Deus que servimos sempre se lembra de cada um de nós. Não há ninguém esquecido dos seus olhos, da sua boa vontade para com conosco. Por

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2º Domingo após
Natal

isso não devemos nos acostumar com a dor, a tristeza, a enfermidade, a injustiça, a miséria. Devemos lutar, insistir, nunca desistir. Os nossos dias podem ser tristes e difíceis, mas não podemos desanimar. Deus está no controle e ele vai trazer a restauração da nossa saúde, o bem-estar para nossa vida. Ele vai repor aquilo que o gafanhoto devorador comeu, vai restituir o trabalho, a saúde, a dignidade.

5 Subsídios litúrgicos

Que a liturgia deste primeiro domingo do ano seja voltada para atitudes que celebrem a esperança na libertação. E de que precisamos nos libertar: são tantas as demandas nesse sentido. Libertar dos nossos preconceitos; libertar-nos da falta de disposição, da falta de ânimo, do desamor, do desinteresse com o alheio. Sim, precisamos falar dessas situações e denunciar todo tipo de maldade praticada pelo ser humano contra seu semelhante.

Que a desesperança dê lugar a um coração que crê no Deus que liberta, que nos tira da escravidão. Nossa atitude hoje deve ser de rebeldia contra toda forma de injustiça e maldade. Sobre a rebelião, Albert Camus (1913-1960) faz a seguinte pergunta em seu livro, O Homem Revoltado: “Que é um homem revol tado?” Um homem que diz “não”. Mas, se ele recusa, não renuncia. É também um homem que diz “sim”. Um escravo que recebeu ordens durante toda a sua vida, julga subitamente inaceitável um novo comando. O “não” significa que as coisas já duram demais.

Que a celebração deste domingo nos conduza a reaprender a sonhar, a acreditar que o amanhã trará novas possibilidades, portas que se abrem e nos convidam para uma existência mais digna. A vida é feita de pragas e milagres, de gemidos de dor e gritos de alegria. Sim, milagres aconteceram e acontecem. Deus é o mesmo. Ele se faz presente no cotidiano. Quando ele quer, levanta aquele que não tem mais esperança alguma. Ele cura aquele de quem os médicos desistiram. Quantos de nós, pastores de ovelhas, já nos encontramos nessa situação, de ver bem de perto a intervenção de Deus na vida de uma ovelha querida, um ente amado, morto para o mundo, para a medicina, mas não uma causa perdida para Deus. Então, hoje, cante hinos que revigorem o coração e a mente. Sonhe com um amanhã glorioso. Não perca a esperança. Passou o tempo da angústia e servidão. O Senhor nos proporciona dias melhores. E saia para a vida, rejuvenescido pela fé.

Bibliografia

SICRE, José Luís. Com os pobres da terra; a justiça social nos profetas de Israel. Trad. Carlos Felício da Silveira. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2011.

SKINNER, John. Jeremias, profecia e religião. Trad. Rubem Alves. São Paulo: Aste, 1966.

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2º Domingo após Natal

PRÉDICA: 2 CORÍNTIOS 4.3-6

ISAÍAS 49.1-7 JOÃO 1.43-51

EPIFANIA DE NOSSO SENHOR

1 Introdução

Epifania: tempo de tirar o véu

Hoje se inicia o tempo da Epifania – a festa da revelação. O menino Jesus, recém-nascido, é visitado por sábios, guiados pela estrela, vindos do Oriente. A luz é um elemento forte, presente nessa celebração: a estrela, que resplandeceu sobre a estrebaria de Belém, anunciou a vinda do Messias e guiou os estudiosos. Gosto de pensar que os sábios, estudiosos das estrelas, vindos do Oriente, são os cientistas de sua época. Assim a encarnação do menino Jesus, ao ser visita do por cientistas estrangeiros, dá amostras de que o Messias (e, consequentemen te, as pessoas que o seguem) vai estar em constante diálogo com o saber, com o estudo, com a ciência – contra a religiosidade rasa – e vai abarcar pessoas de todas as raças, sem preconceito. O primeiro passo para uma teologia cristã que sabe dialogar com a ciência começa a ser desenvolvido com esse episódio bíblico.

O apóstolo Paulo, na perícope que serve de base para a pregação, aponta para o fato de que o evangelho está encoberto para uma parcela das pessoas da comunidade de Corinto. A expressão “encoberto”, conforme se pode ver no estu do que segue, significa, no texto, “coberto com um véu”.

Ora, Epifania significa revelação. E revelação vem do latim revelatio, que significa “ato de mostrar, descobrir, destapar”. Essa expressão, por sua vez, pro vém de revelare: “re” (indica oposição, o contrário) + velare (indica cobrir, tapar – com um velum = véu). Logo, a palavra Epifania carrega consigo uma revelação, ou seja, o ato de tirar o véu.

Singelamente, desejo que o presente estudo seja uma forma de “tirar o véu” e exibir o evangelho da graça e do amor, revelado em Cristo.

2 Exegese

a) A carta: Corinto era uma cidade cosmopolita. Tinha em torno de 600 mil habitantes, dos quais boa parte era de escravos. Havia dois portos importantes na cidade. Por isso ela era comercialmente movimentada e reunia pessoas oriundas das mais diversas origens: grega, fenícia, egípcia, asiática, judia e romana. Nesse contex to multicolorido e de grande desnível social, Paulo encontrou também uma cidade dominada pelo anseio pelo poder, formada por diversas religiões, culturas e filosofias. A Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios é a mais pessoal das cartas que o apóstolo enviou para diversas comunidades e pessoas. No entanto, não é

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acertado interpretá-la do ponto de vista autobiográfico, porque a importância da carta está na significativa reflexão que Paulo traz sobre a responsabilidade do ministério apostólico.

Nessa carta aos coríntios, Paulo defende sua liderança e autoridade apostólica; trata das questões que estão trazendo fragmentação e divisão na comunidade; diferencia o evangelho diante das múltiplas filosofias presentes naquela ci dade portuária e aponta para os sérios problemas éticos que estavam acontecendo entre as pessoas locais.

Ao ler a carta com atenção, é possível perceber mudanças de tom e de fluxo na argumentação, o que sugere tratar-se de um compilado de fragmentos de diver sas cartas que foram colocados posteriormente numa sequência que não observa a cronologia de sua redação.

b) O contexto: O texto de 2 Coríntios 4.3-6 está emoldurado pelo contexto que havia na comunidade de Corinto. Inicialmente, na carta, Paulo mostra que seu ministério junto à comunidade local é fidedigno e aponta os motivos de algu mas pessoas terem rejeitado o evangelho por ele anunciado. Ele denuncia que há um movimento na comunidade que procurava transformar o evangelho em mera filosofia de vida. Com isso, ele (re)coloca a cruz de Cristo como ponto de equilí brio e referência para a vida comunitária cristã.

c) O texto: Desse contexto surge a frase condicional que abre o texto: Se o evangelho ainda está encoberto. Compreende-se o termo “encoberto” a partir do final do capítulo anterior (2Co 3.12-18), onde é trazido à memória o texto de Êxodo 34.29-35, no qual Moisés cobre o rosto com um véu quando a pele do seu rosto resplandecia depois de receber as segundas tábuas da lei. Paulo, nesse texto, escreve que até hoje o véu está posto sobre o coração humano e que a conversão diária e a vivência do batismo fazem parte do processo no qual Deus retira esse véu.

O evangelho está coberto com um véu para uma parcela das pessoas da comunidade de Corinto. Há uma força exterior ao evangelho que coloca um pano em cima dele para esconder sua essência. A essência do evangelho só pode ser compreendida a partir da cruz de Cristo. Nessa perspectiva, Paulo aponta para o que está acontecendo na comunidade. O evangelho não está escondido debaixo do véu por falta de clareza ou por ação de Deus, que ocultou o seu significado. Está escondido por obra e para aquelas pessoas que se perdem. Por um lado, os que se perdem escondem o evangelho debaixo de um pano e, por isso, não conseguem compreendê-lo. Causa e efeito misturam-se e não se sabe o que vem primeiro.

Na sequência ele trata de demonstrar para quais pessoas o evangelho está encoberto pelo véu. Ele credita essa “incredulidade” à ação do deus deste século, que cegou o entendimento de algumas pessoas. O deus deste século, para algumas hermenêuticas mais simplistas, é visto como o diabo, satanás, o demônio, em por tuguês popular, “o coisa ruim”. Prefiro pensar de forma mais ampla em relação a essa terminologia. O deus do século no contexto bíblico pode ter roupagem bem diferente nos dias atuais. O mais importante, no entanto, é que o apóstolo Paulo

64 Epifania de
Nosso Senhor

quer dizer que a ação do poder do mal, o diabolos (aquele que separa, que divide, que se atravessa – e que está bem presente na comunidade de Corinto) está agin do para separar as pessoas dentro da comunidade e afastando o evangelho da sua verdadeira mensagem expressa na cruz de Cristo. Esse evangelho é a revelação da glória de Cristo, que é a imagem perfeita de Deus. O rosto que Deus quis revelar para nós, ele o revelou em Cristo.

A ação do deus deste século, cegando o entendimento, torna-se, para Paulo, na incapacidade de ver a “resplandecente luz do evangelho da glória de Cristo, imagem de Deus”.

O jogo de palavras para descrever o evangelho revela e quer significar excelência, beleza ou esplendor. A luz carrega consigo o significado do conheci mento, da pureza. É aplicado ao evangelho, porque denota remoção dos pecados e da miséria das pessoas, à medida que a luz do sol espalha as sombras da noite. Enquanto isso, o deus deste século tem como objetivo impedir que a luz do evan gelho brilhe sobre as pessoas (e nas relações sociais).

Com isso, o apóstolo Paulo faz uma defesa do evangelho e, na mesma medida, defende seu ministério (v. 5), quando fala que ele não anuncia (prega) a si mesmo, mas a Cristo Jesus como Senhor. À medida que o evangelho é anunciado, revela-se a verdadeira função ministerial (apostólica) do próprio Paulo, o servo, por amor de Jesus.

Para arrematar, ele traz à memória a palavra poderosa, criadora e criativa de Deus, que, na primeira criação, ordenou que a luz brilhasse instantaneamente daquela escuridão que cobria toda a face do abismo (Gn 1.3). Ele traça um para lelo, que o mesmo resplendor também brilha nos corações daquelas pessoas que são iluminadas pelo evangelho.

Ali se percebe ainda uma linha de continuação da argumentação sobre Moisés, e do brilho de seu rosto, descrito com tanta insistência no final do capítu lo anterior. Moisés, ao se aproximar de Deus, no monte, a fim de receber as tábuas dos mandamentos, tinha uma comunicação com a glória de Deus, que irradiava de seu rosto quando ele desceu do monte. O evangelho é esse resplendor que faz surgir comunidade por meio da ação da glória de Deus, em Cristo Jesus, que ilumina o conhecimento.

3 Meditação

O cristianismo no Brasil é marcado pela contradição. Nem sempre é con fiável (quase sempre inconfiável) no que se refere à fidelidade ao evangelho. A chegada foi por meio do padroado – a igreja e o Estado juntos (irmanados pela maldade), matando e subjugando em nome do poder e da riqueza (...e de Deus!). A invasão europeia, da forma como foi apoiada e que trouxe oficialmente a igreja para cá, manchou “de saída” o cristianismo neste solo. Com uma consciente dose de exagero, poder-se-ia dizer que Pedro Álvares Cabral, ao “descobrir” o Brasil, “encobriu” o evangelho.

Mais de trezentos anos depois, a partir da proclamação da independência do Brasil, vieram os alemães, trazendo consigo o luteranismo. Esse povo luterano

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de Nosso Senhor

precisou viver sua espiritualidade na clandestinidade durante muitos anos, até a proclamação da república. O povo luterano, por um lado, de forma involuntária e, por outro, defendendo a necessidade de sua própria sobrevivência, inicialmente colocou-se a serviço do opressor. Espantou povos indígenas e invadiu suas terras. A história luterana é marcada pela piedade e relação próxima com o Evangelho de Cristo. No entanto, muitas vezes alimentou uma espiritualidade saudosista da Alemanha e viveu muito tempo a serviço da preservação da germanidade. Isso, ao lado da dificuldade linguística, atrapalhou a sua inserção social e política no Brasil e, consequentemente, dificultou com que o Evangelho de Cristo, interpretado à luz da teologia luterana, fizesse muito eco na sociedade brasileira. Quase cem anos depois, já no início do século XX, veio o pentecostalis mo ao Brasil. A ideia desse movimento era de reavivamento espiritual e ganhar almas para Jesus, porque a volta de Cristo e o Reino de Deus estariam próximos de acontecer. O movimento trouxe uma interpretação fundamentalista da Bíblia. É um movimento religioso que se adaptou muito bem às periferias das cidades, em pequenas igrejas distribuídas a fim de capilarizar sua inserção. A partir dali, especialmente na segunda metade do século XX, esse movimento se ramificou em numerosos movimentos e igrejas. O neopentecostalismo, com suas megai grejas, é um dos desdobramentos resultantes. Com o advento das megaigrejas, o neopentecostalismo trouxe a teologia da prosperidade. O Reino de Deus passou a ter importância diminuída e a inserção na política, com as bancadas evangélicas, levou esse cristianismo ao poder.

Com facilidade, o apóstolo Paulo, ao olhar para essa rápida revoada em 500 anos de história da igreja no Brasil, diria que em muitos tempos, ocasiões e eventos, o evangelho estava encoberto. Estava encoberto pelo padroado, pelas diversas formas de violência que foram cometidas a partir de uma visão teológica da dominação ou pelas diversas vezes em que a cristandade se calou diante das injustiças para manter o status quo.

Em um país no qual se ouvem pessoas cristãs defendendo o uso de armas que matam a vida criada por Deus, o evangelho está encoberto. Onde se ouvem discursos de ódio, em nome de Jesus, contra minorias, o evangelho está encober to. Onde se veem pessoas cristãs fazendo sinal de arminha com a mão dentro dos templos ou em marchas para Jesus, o evangelho está encoberto. Onde a igreja está no poder e busca o poder absoluto, o evangelho está encoberto. Onde há fome, o evangelho está encoberto. Onde há tanta diferença social, que é fruto histórico intencional, o evangelho está encoberto. Onde se nega a ciência que cura um vírus e se recorre à espiritualidade fantasiosa e à mágica, o evangelho está encoberto. Para dentro dessa realidade é preciso dizer, em nome de Jesus, que o deus deste mundo cegou o entendimento. Interessante observar que o apóstolo Paulo não diz que “tirou o entendimento”, mas diz que cegou o entendimento (v. 4). O deus deste mundo não deixa as pessoas burras, mas as torna astutamente crimino sas e más ao cegar o entendimento de que a vida é o valor supremo. Mas o evangelho que é revelado em Cristo é a palavra de vida nova, da esperança renovada e do amor partilhado. E a mensagem animadora que o próprio apóstolo Paulo nos deixa é que a luz do evangelho livre e sem véu resplandeceu

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Epifania
de Nosso Senhor

em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo (v. 6).

Desejo que a luz do evangelho em nosso coração ilumine o conhecimento, para que possamos proclamar que Jesus é o Senhor da vida plena, que traz liber dade e a verdadeira noção da profundidade do amor de Deus pela humanidade. Deixemos o evangelho livre!

4 Imagens para a prédica

Penso que, para a elaboração da pregação/mensagem, temos um consisten te material disponível neste estudo. O tema central deve ser “Epifania: tempo de tirar o véu”. Na introdução deste estudo, tentei tecer a relação entre a Epifania – revelação – e “tirar o véu” do evangelho, que, conforme o apóstolo Paulo, está “encoberto” para muitas pessoas.

Na parte exegética, traço algumas linhas gerais sobre a relação do evan gelho encoberto e o poder de Deus para remover o véu, possibilitando que a luz brilhe plenamente na comunidade de Corinto. Da mesma forma, a parte da “meditação” é uma fonte de inspiração para a elaboração da mensagem.

Na parte dos subsídios litúrgicos, traço uma ideia bem prática para a pre gação. Pode-se fazer a mensagem deste culto de forma bem interativa. A partir dos retalhos de pano, que encobrem a Bíblia e vão sendo largados pelo corredor da igreja, tem um bom material para uma dinâmica participativa de toda a comunidade. Use a criatividade.

5 Subsídios litúrgicos

Penso que cabe, neste culto, uma linda procissão de entrada da Bíblia antes da leitura do evangelho. Escolher uma música bonita e apropriada para o momen to. Enquanto a música toca, uma pessoa, vestida de túnica, entra ao ritmo de uma melodia, carregando com as mãos levantadas a Bíblia aberta. Para o momento da procissão, cobrir a Bíblia aberta com retalhos de pano multicoloridos, que vão sendo tirados de cima e largados no chão ao longo do corredor da nave da igreja até chegar ao altar. Nos retalhos de pano coloridos, pode-se escrever palavras que descrevem situações que deixam o evangelho “encoberto” na comunidade de fé. Penso em palavras como: intolerância, preconceito, violência, disputas, mágoas, falsos ensinamentos, fé sem cruz, divisões, cisões, intrigas, briga pelo poder, fofocas, religiosidade rasa, falta de comprometimento, pobreza, miséria... (enfim, a equipe de liturgia pode fazer uma tempestade de ideias para nominar sentimentos, ações e situações locais que “encobrem” o evangelho). Durante a pregação, pedir para as pessoas da comunidade que peguem os retalhos do chão e leiam as palavras. Refletir sobre as palavras e da forma como elas deixam o evangelho “encoberto”.

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Epifania de
Nosso Senhor

Bibliografia

BORTOLINI, José. A Segunda Carta aos Coríntios – o agente de Pastoral e o Poder. São Paulo: Paulus, 1997.

Website: <https://versiculoscomentados.com.br/index.php/estudo-de-2-corintios4-3-comentado-e-explicado/>.

1º DOMINGO APÓS EPIFANIA

PRÉDICA: LUCAS 3.15-17,21-22 ISAÍAS 43.1-7 ATOS 8.14-17

Pesquise: Proclamar Libertação, v. 20, p. 40ss; v. 26, p. 36ss; v. 37, p. 64ss www.luteranos.com.br (busca por Lucas 3.15-17,21-22)

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Epifania de Nosso
Senhor

PRÉDICA:

ISAÍAS 62.1-5

JOÃO 2.1-11

1 CORÍNTIOS 12.1-11

1 Introdução

DOMINGO APÓS

EPIFANIA

Deus age por amor

As pregações sobre o Antigo Testamento têm alguns desafios e vantagens. Quando menciono desafios, penso na distância do texto em relação aos nossos dias, em diversos aspectos. O texto está distante historicamente. São quase três milê nios de distância histórica. Como eram os povos, as nações, a organização social naquele tempo? Como era a cultura? Além da distância histórica, há a distância geográfica. Quando pensamos em um país, aqui na América latina, pensamos em dimensões geográficas diferentes do que no Oriente Médio. O relevo, a hidrografia, o clima, as distâncias, tudo é diferente. Isso precisa ser levado em conta. Esses de safios juntam-se a outros que os estudos de isagoge ao texto nos levam. Quem é o autor de Isaías? É um só? São dois? São três? Apenas entrar nessa discussão pode nos ocupar por anos. E as conclusões dessas discussões, na maioria dos casos, são provisórias. Não definem o assunto. Esses são alguns dos desafios

Mas há vantagens de pregar sobre o Antigo Testamento. Grande parte dos textos tem a ver com a vida das pessoas. E a vida das pessoas do passado e do pre sente tem fortes conexões práticas. Temas como moral, família, trabalho, política, governo, justiça estavam presentes no passado e estão presentes nos dias de hoje. Isso faz com que a conexão das pessoas com os textos seja feita com bastante rapidez. O grande desafio da pregação então será extrair a mensagem bíblica do texto do Antigo Testamento para os nossos dias. E isso, basicamente, passará pela mensagem da graça que vai encontrar sua luz em Jesus Cristo.

2 Exegese

O livro de Isaías, a partir do capítulo 56, tem como pano de fundo a volta do exílio da Babilônia. Mas a mensagem que o texto traz não se restringe a esse contexto. A mensagem vai além e se aplica a todas as pessoas, embora seu foco primário seja o retorno dos exilados.

O texto começa com as palavras Por amor. A motivação de Deus para com seu povo é o amor. Deus ama o seu povo. Tudo o que os versículos posteriores do texto expressam é fruto do amor de Deus. Esse amor de Deus não cessa. Ele é eterno, perene, sempre igual. Deus não deixa de amar. A experiência do exílio foi terrível. Parece que Deus não estava mais presente com seu amor. Nossa distân cia histórica do exílio faz com que tenhamos dificuldades de entender o que isso

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Erní Walter Seibert
2022
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significa. Boa parte do povo foi conduzida como escravo para uma terra distante. Ele não se exilou para ficar livre. Ele foi exilado para ser escravo. As experiências contemporâneas de exílio, embora extremamente duras, não têm todas essa mes ma característica. Hoje, grande parte das pessoas exiladas sai do seu país para ficar livre. No caso deste texto bíblico, elas foram retiradas à força para se tornarem escravas. Dizer a pessoas assim que Deus as ama é uma mensagem que pode ser chocante. Parece uma ironia. Mas o texto diz exatamente isto. O amor de Deus é chocante. O apóstolo Paulo diz que essa mensagem é loucura para o descrente. Ainda em Isaías 62.1 são mencionados dois nomes para a mesma localidade: Sião e Jerusalém. O texto trabalha com paralelismos. A mesma ideia é expres sa de duas formas, ampliando seu significado. Deus, em situações de injustiça, não fica calado nem se aquieta. Deus age a seu modo e a seu tempo. Podemos confiar. Aliás, confiar, ter fé, é algo que está como pano de fundo em toda a mensagem bíblica. Ou confiamos em Deus ou o negamos.

O primeiro versículo de nosso texto termina com outras imagens em pa ralelismo: justiça e salvação; resplendor e tocha acesa. Quando Deus aplica sua justiça “por amor”, há salvação. Quando a justiça não é “por amor”, ela pode ser olho por olho e dente por dente. Quando a justiça é “por amor”, ela não é apenas obrigação. Ela resplandece, é como uma tocha acesa no meio da escuridão. Essa justiça “por amor” vai além do entendimento humano. Ela é graça.

O v. 2 mostra que o amor de Deus não se restringe aos que voltam do exílio. O amor de Deus estende-se às “nações”. Quando as pessoas se veem diante de uma libertação, costumam falar do “seu Deus”. “Meu Deus” me livrou. Não há necessariamente um erro nessa expressão. Mas é importante que não particularize mos Deus. O “meu Deus” é também o “Pai nosso”. É isso que o v. 2 lembra. “As nações”, “todos os reis” verão sua justiça e contemplarão sua glória. O texto mostra que não é assim que cada pessoa tem seu Deus e cada religião tem suas convicções. O conceito Deus é mais amplo que isso. Ou é Deus de todas as nações e de todas as instâncias ou não é Deus. Isaías apresenta esse conceito amplo de Deus. Quando esse Deus que reina sobre tudo e todos entra em ação, então é promovida uma transformação. A mudança é tão grande que até o nome com que é designada a cidade (o povo) muda. Deus concede um novo nome. Esse nome vai aparecer no v. 4. Mas antes vamos ver o que fala o v. 3. Essa obra que Deus faz “por amor” será a sua glória. A obra que Deus faz “por amor” é o sinal de sua majestade. O texto trata Deus com um antropomorfismo. As pessoas costumam ficar honradas com suas produções. Um autor, ao escrever um texto, seja um artigo ou um livro, tem alegria de ver o seu nome es tampado nele. Grande parte das indústrias tem o nome de seus donos. São inúme ros os exemplos. “Ford”, “Mercedes Benz” são exemplos da indústria automobilística. Há fabricantes de facas que colocam o nome da família nas lâminas. Há estabelecimentos de comércio que colocam o nome de seus proprietários como o nome do estabelecimento. Deus diz que o que ele faz “por amor” é a sua glória. A obra da salvação é a glória de Deus.

No v. 4, a mudança de nome é mencionada. Os nomes antigos da cidade – Jerusalém depois do exílio – eram “Abandonada” e “Arrasada”. A cidade mais

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2º Domingo após Epifania

importante do povo de Israel tinha sido abandonada e arrasada. Era assim que as pessoas se referiam a Jerusalém. Mas quando Deus a restaura, a cidade recebe nomes novos: “Minha delícia” e “Casada”. Os dois nomes são tirados da expe riência do casamento e da vida em família. Quando Deus usa esses dois nomes para a nova realidade de “Jerusalém”, isso é indicação clara do alto valor que a experiência do casamento e da vida em família tem para Deus. “Minha delícia” é uma expressão que remete ao prazer da vida do casal. Certamente está aí uma referência ao prazer sexual que a vida matrimonial proporciona. O contraste entre “Abandonada” e “Arrasada” com “Casada” também mostra como o casamento era tido em alta estima. Nos dias atuais seria essa uma boa imagem para nossa cultura? Hoje, sexo e casamento não são sempre vistos como algo conjunto. A cultura atual parece que quer separar prazer sexual de casamento. Da mesma for ma, o fato de alguém estar casado parece que não é considerado algo tão seguro como estável. Será que na cultura no tempo do exílio isso era diferente? Ou será que por trás das imagens e dos termos que o texto usa está um ensinamento sobre a vida em família que, por vezes, contrasta com o que a cultura dominante ensina? Se olharmos na Bíblia, veremos que o conceito bíblico de família expresso de forma positiva nesse texto não era o dominante em todos os lugares. Histórias como as de Sodoma e Gomorra e tantas outras mostram que a cultura humana sempre teve dificuldades em lidar com o tema família e que as soluções sociais dadas ao problema nem sempre estão em harmonia com o conceito manifesto em tantos textos bíblicos. De qualquer forma, o texto nos dá um indicativo de que quando a Bíblia mostra algo infinitamente superior, ela expressa o conceito de minha delícia e casada. Isso é infinitamente superior à abandonada e arrasada. Essa mensagem é reforçada no último versículo da perícope em destaque para o nosso domingo.

3 Meditação

Quando, na introdução a este estudo homilético, falamos que há desafios que precisam ser superados na pregação sobre textos do Antigo Testamento, pensávamos exatamente nas questões que vimos na exegese do texto. Talvez o grande desafio não seja compreender o texto, mas falar do texto de forma que as pessoas compreendam. Exílio, nos tempos bíblicos, talvez seja algo parecido com o regime de escravidão que tivemos no Brasil nos séculos XVIII e XIX. Não é o que exilados políticos ou outros exilados experimentam quando se exilam. É mais duro que isso, sem com isso dizer que qualquer exílio não seja muito difícil. Por outro lado, se a questão do exílio já é difícil de ser explicada, como falar sobre as questões da imagem da família, tão importante para a compreensão do texto em estudo. Num mundo em que as notícias apontam para violência do méstica, para a liberdade sexual e o sexo fora do casamento, onde a família não é mais um consenso, como falar de forma relevante usando as imagens do texto?

Talvez uma olhada no texto do evangelho deste mesmo domingo possa ajudar bastante. O texto fala de um casamento em Caná da Galileia. Jesus trans formou água em vinho. O contexto era de tensão. Faltou um ingrediente que era

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2º Domingo após Epifania

considerado fundamental por todos: vinho. Isso significava vergonha para a famí lia. Além disso, o problema não tinha solução. Aí Jesus intervém. Ele transforma água em vinho. E isso era sinal de sua “glória” e os discípulos “creram nele”. No Evangelho de João, capítulo 2, aparecem as palavras “glória” e “creram”. Deus continua agindo “por amor” e as mudanças acontecem. Aos discípulos é feita a referência: eles creram.

Há muitos exílios que estão vivos e ativos em nosso tempo. A pandemia do coronavírus, que ainda está presente em nossa memória, causou muitos exílios e estragos. A política dos países e de nosso país, sem particularizar, sempre tem exemplos de estragos. São exílios aos quais somos submetidos. E assim podemos ver até mesmo “exílios” na vida em família, na qual a pessoa parece que vive como “arrasada” e “abandonada”. Mas Deus está agindo “por amor” em todas essas situações. Ele muda tudo isso. Vemos isso em Jesus Cristo. Ele não só interveio positivamente numa festa de casamento, transformando água em vinho. Ele venceu a morte, vive e reina. Confiar nele é o que podemos e devemos fazer. Confiar em autoridades não é sinônimo de justiça e vida eterna. Confiar em Deus é a grande chave de mudança, porque Deus tem esse poder de mudar. É isso que o texto de Isaías nos lembra.

4 Imagens para a prédica

O texto de Isaías é rico em imagens. Vou destacar algumas. É importante entender o pressuposto do texto que usa a imagem de que Deus age “por amor”. Isso pode ser contrastado com “justiça”. Quando Deus age com justiça e une sua justiça ao amor, temos a graça de Deus em Cristo. Quando pensamos em justiça sem amor, então temos uma justiça retributiva que, muitas vezes, apenas termina em vingança.

Outra imagem forte do texto é a da “glória de Deus”. A glória de Deus está estreitamente vinculada com a ação salvadora de Deus em favor da humanidade. A glória de Deus está unida à obra redentora do Filho de Deus, Jesus Cristo. Essa é a obra mais gloriosa de Deus.

A própria questão do exílio é uma imagem forte do texto. As pessoas esta vam voltando do exílio. Essa mensagem foi dirigida para pessoas nessa situação. Explicar o que era o exílio naquele tempo é importante. Mas há muitos “exílios” na vida de todos para os quais essa palavra bíblica tem uma mensagem poderosa. Deus age por amor em todas as situações de nossas vidas. Mesmo que só vejamos injustiças e desespero, Deus está agindo. Essa é promessa segura que o texto traz. Confiar em Deus é algo que traz resultado.

Finalmente, ter uma imagem positiva de família é algo que a Bíblia também alerta e o texto reforça. Precisamos cultivar essa imagem positiva de família. Muitas vezes, quando falamos da imagem positiva de família que a Bíblia apre senta, as pessoas reagem dizendo que hoje não é mais assim. Foi mais ou menos isso que acontecia na experiência do exílio. As pessoas diziam que Deus não estava mais com elas. A experiência de vida dos exilados parecia concordar com o que se dizia a elas a respeito de Deus. Elas se sentiam abandonadas e arrasadas.

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2º Domingo após Epifania

Nada da experiência delas indicava o contrário. Mas Deus disse o contrário e fez o contrário. Deus agiu por amor. Ele ainda faz isso hoje. Confiemos nele.

5 Subsídios litúrgicos

Certamente em todos os cancioneiros é possível encontrar hinos e canções que podem ser usados para reforçar a mensagem do texto. Além disso, a própria liturgia traz ricos subsídios para serem lembrados no texto. Podemos confessar nossos pecados a Deus e pedir perdão porque Deus, por amor, perdoa. A confissão e absolvição estão repletas do que Isaías chama de “por amor”. A leitura do evan gelho é outro exemplo de como Deus age por amor. O “sinal” de transformar água em vinho foi para que as pessoas soubessem que Deus veio ao mundo e agia “por amor”. Nas orações, nós nos aproximamos de Deus, nosso Pai, porque sabemos que ele nos ama. E nos sacramentos, Batismo e Santa Ceia, vemos que Deus age por nós e em nós, por amor.

6 Esboço da prédica

O que acontece quando Deus age por amor?

– Ele muda nossa situação de vida.

– Ele nos dá uma nova experiência de vida.

– Ele nos dá uma nova perspectiva de vida.

Bibliografia

BÍBLIA DE ESTUDO NAA. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018. LASOR, W.; HUBBARD, D. A.; BUSH, F. W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova. 2002.

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2º Domingo após Epifania

DOMINGO APÓS EPIFANIA

PRÉDICA: 1 CORÍNTIOS 12.12-31

NEEMIAS 8.1-3,5-6,8-10 LUCAS 4.14-21

A insensatez da divisão Reflexões sobre corpo, unidade e diversidade

1 Introdução

A unidade e a diversidade são temas constantes e fundantes no cristianis mo. Esses temas transitam com frequência no discurso cristão. Muitas vezes na história do movimento cristão, porém, a abordagem não seguiu a ênfase encontra da nos ensinamentos bíblicos. Esse distanciamento dos ensinamentos aconteceu no início do cristianismo, como atesta a carta de Paulo aos coríntios e é assim também em expressões do cristianismo hoje. Ocorre uma confusão muito grande quando se cria uma perspectiva de que unidade é o mesmo que uniformidade. Ou seja, não se reconhecem a diferença e a multiplicidade dos dons e atividades no corpo de Cristo (a igreja) e na sociedade. Presenciamos atitudes de cismas, violências, exclusões em nome da unidade das igrejas. Esse tema, abordado por Paulo ao escrever aos coríntios, é também um tema que nos desafia hoje. Vive mos em um tempo em que a palavra intolerância frequenta abundantemente o cotidiano das comunidades de fé.

Diante disso, somos convidados e convidadas a refletir sobre o tema da unidade na perspectiva da perícope de 1 Coríntios 12.12-31, que nos desafia à to lerância e à construção de caminhos de amor e de solidariedade. Esse tema, como afirmamos acima, é transversal nos ensinamentos bíblicos e perpassa as perícopes de Neemias e de Lucas. Em Neemias, após a redescoberta da Lei e o consequente choro do povo ao descobrir a distância entre a prática e as ordenanças da Lei, a ordem passa a ser a alegria e a partilha do alimento com os que não tinham nada. A redescoberta da Lei leva à celebração comunitária e ao cuidado com os mais fracos. O mesmo acontece no texto de Lucas. O início do ministério de Jesus é marcado pelo cuidado com os pobres cativos, cegos e oprimidos. O anúncio do ano aceitável do Senhor passa pelo cuidado com os mais fracos. A unidade está no reconhecimento e no cuidado com a outra pessoa. Esse é o convite que o texto de Coríntios nos faz.

2 Exegese

A carta de 1 Coríntios é marcadamente uma das mais conhecidas dentro do corpus paulino. De modo especial é no capítulo 13, o hino do amor, o lugar onde

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23 JAN 2022
Paulo Roberto Garcia

encontramos uma resposta à problemática trabalhada em nossa perícope. O tema dessa carta é a preocupação do apóstolo com os conflitos, as divisões e incompreen sões da comunidade. Por isso a estrutura da carta é um crescente. Nos capítulos 1 a 10, Paulo apresenta os problemas presentes na comunidade, que são muitos e diversos: divisões entre seguidores de Paulo, Apolo, Pedro e Cristo, conflitos que acabam envolvendo tribunais pagãos, práticas de sexualidade ligadas aos cultos da cidade, dúvidas sobre a participação em cultos e festivais solenes etc. O capítulo 15 retoma as incompreensões, agora acerca da ressurreição. Ou seja, a maior parte da carta apresenta o tema da falta de unidade que gera divisões. Não é à toa que a palavra corpo é um eixo temático dessa carta. Frente a tantas divisões, o conceito de corpo é apresentado como uma metáfora aglutinadora da comunidade.

Os capítulos de 11 a 14 trabalham o impacto disso na vida cultual da comu nidade. É no espaço do culto que as divisões mais se evidenciam. Elas aparecem também ligadas aos dons. Na igreja de Corinto, os dons não se manifestam como serviço à comunidade e ao mundo: são elementos de confusão e divisão. Por isso o hino fica no centro dessa discussão. No capítulo 11, temos as orientações para a participação das mulheres no culto; no 14, a orientação para a participação dos homens. O capítulo 12 apresenta a metáfora do corpo que introduz o hino ao amor. O amor solidário e desinteressado (agapē) é apresentado por Paulo como cami nho que os dons devem percorrer. Dons que não percorrem o caminho desse amor provocam divisões, conflitos e são como sinos que soam distantes, fazem muito barulho, mas são ocos por dentro e não produzem atos de serviço e solidariedade. Deste modo, nosso texto é o eixo para compreender a articulação da par ticipação dos diferentes da comunidade na vida de fé: homens, mulheres, sábios segundo a carne; poderosos segundo a carne; ricos segundo a carne (1Co 1.26); simples deste mundo (1Co 1.27-29); seguidores de Pedro, de Apolo de Paulo (1Co 1.12). Na perspectiva da vocação cristã, todos e todas são iguais e partes de um mesmo corpo. Nessa perspectiva é que a metáfora do corpo se inscreve.

A metáfora do corpo como estruturante na resolução dos conflitos

Ao apresentar o corpo como uma forma de entender o caminho de supe ração dos conflitos na comunidade de Corinto, nosso texto segue uma estrutura pedagógica.

a) Para um corpo fomos batizados (v. 12-14)

12 Pois, assim como o corpo é um e muitos membros tem, todos os membros do corpo sendo muitos, são um corpo, assim também é com respeito a Cristo.

13 Pois, em um só Espírito, todos nós para um só corpo fomos batizados, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres.

E a todos um só Espírito nos foi dado beber.

14 Pois o corpo não é um só membro, mas muitos.

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Nessa tradução, buscamos destacar a organização da argumentação. No início e no final (v. 12 e 14), a ênfase é que o corpo é constituído de muitos mem bros, porém é um só corpo. Ao centro, a metáfora ganha os contornos de “corpo de Cristo”. Somos um corpo em Cristo por meio do batismo. Encontramos no v. 13 a afirmação de que em um só Espírito fomos batizados. Fomos batizados “para um só corpo”. Não fomos batizados para a divisão, fomos batizados para a unidade. Uma unidade que desconhece as diferenças entre judeus e gentios, entre livres e escravos. Aqui, podemos ligar essa formulação aos problemas da comuni dade. No conflito descrito no início da carta de Paulo, destacamos que as pessoas se identificam a partir do seguimento de lideranças. Uns são de Pedro, outros de Apolo, outros de Paulo, outros de Cristo (1.12). Há sábios, ricos e poderosos se gundo a carne e os pobres e desprovidos de recursos (1.26-29). Nessa introdução de nossa perícope, o caminho de superação dos conflitos é a vocação batismal que ignora as diferenças deste mundo e vocaciona para a formação de um só corpo. Fomos batizados para um único corpo, que é o de Cris to, e nele não há divisão, há multiplicidade de funções.

b) A ironia dos membros inconformados com seu papel (v. 15-20)

Nesses versículos, o apóstolo utiliza o recurso da ironia, um importante recurso pedagógico da época. Por meio desse recurso, mostra-se a insensatez de algumas posturas. Mesmo que o pé, por não ser mão, disser que não é do corpo, ainda assim ele é corpo. Ou seja, os conflitos e as divisões ganham uma conota ção quase hilária. Um pé que é parte do corpo pode ter uma ideia de si diferente. Mas ele é corpo e essa ideia de si é ridícula. É fala muito forte do apóstolo.

A partir dessa fala dura, Paulo argumenta sobre as funcionalidades da diversidade. Se todos fossem só olho, o corpo seria surdo. Se todos fossem só ouvidos, não sentiriam cheiro. Essas funcionalidades ganham mais importância quando Paulo afirma que Deus colocou os membros, cada um deles, no corpo conforme Ele quis (v. 18). Ou seja, não é o olho que decidiu ser olho, não é o ouvido que decidiu ser ouvido. As funcionalidades a partir da diversidade são de finidas por Deus. Não cabe ao pé decidir que, por não ser olho, ele não quer mais ser do corpo. Ele continuará sendo corpo e não existirá fora do dele. Esse bloco termina com a afirmação que há muitos membros e um só corpo (v. 20).

c) A ironia dos membros que depreciam outros membros (v. 21-26)

Se no bloco anterior Paulo questiona a imagem que cada membro do corpo tem de si, neste bloco ele questiona a imagem que as partes do corpo fazem das outras partes. Ou seja, aqui ele usa a metáfora para mostrar, uma vez mais de forma irônica, que seria ridículo a cabeça dizer ao pé que ele é desnecessário. Seguindo a metáfora do corpo, ele lembra que os membros mais frágeis e os que são mais indecorosos acabam sendo revestidos de mais honra. Ou seja, só existe corpo com a multiplicidade de membros e, ao revestir de honra os frágeis e desonrados, o grande objetivo do corpo é a unidade. Isso é confirmado no v. 25:

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3º Domingo após Epifania

a fim de que não haja cisma no corpo, mas para que os membros se preocupem uns com os outros. Optamos em manter a palavra cisma (que é a palavra grega no texto) para enfatizar a preocupação: um corpo com divisões deixa de existir. O cisma provoca o fim do corpo e de sua funcionalidade.

d) Da metáfora para a realidade (v. 27-31a)

Aqui a metáfora dá lugar à realidade. O conflito está entre os dons que são reconhecidos como mais importantes: apóstolos, profetas, mestres, fazedores de milagres, cura, ajuda, liderança, línguas. Temos conflitos envolvendo a condução da comunidade, a sabedoria e os dons extraordinários. É um retrato da religiosi dade em geral deste mundo do qual a igreja de Corinto faz parte. Há divisões entre lideranças caracterizadas por essas ênfases nos dons. Por isso esta é a conclusão dessa discussão: é inadmissível (de acordo com a metá fora) que em um corpo os membros se dividam. Uns promoveram a divisão por não terem a honra que gostariam de ter. Outros desprezaram os membros que não pertencem ao status de honra deles, especialmente por apresentarem dons semelhantes ou considerados superiores a esses reconhecidos na sociedade e na comunidade como poderosos, ricos, sábios, puros na lei, cheios do Espírito etc.

O capítulo 13 será uma resposta para essa situação impensável de divisões. Os dons caminham pela estrada do amor solidário e desinteressado (agapē). Dons que não promovam o serviço em função do outro não estão no caminho. São fontes de divisão e um atentado ao corpo e à missão.

e) Um olhar no conjunto da perícope

O apóstolo, ao se defrontar com uma comunidade dividida por discordân cias sobre os papéis, os dons e a própria pertença ao corpo, lança mão de uma metáfora para mostrar, de forma irônica, a loucura desses que promovem a divi são. Do mesmo modo que é impensável a cabeça desdenhar do pé ou o pé dizer que não é corpo por não ser cabeça, assim o mesmo acontece em uma comuni dade que não reconhece a necessidade do cuidado mútuo e da igualdade entre os diversos membros do corpo. É impensável que isso aconteça. Por isso o caminho do amor solidário será o construtor de unidade e o critério para discernimento dos dons e sua importância na promoção do corpo como um todo.

3 Meditação

Se há um tema que necessita ser revisitado pelos cristãos e cristãs de nosso tempo é o tema da unidade. A sociedade em que vivemos passa por um período marcado pelas divisões. Não apenas divisões por pessoas que se aglutinam em torno de temas que lhes são caros. Vivemos no tempo em que o critério da divisão é o indivíduo. Tudo que é importante para o indivíduo deve ser preservado, tudo que é contrário deve ser expurgado. É lógico que, seguindo essa prioridade do indivíduo, os grupos que devem ser preservados e os grupos que devem ser ex

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3º Domingo após Epifania

purgados mudam rapidamente. Basta o interesse individual ser contrariado para o aliado tornar-se inimigo. O que chama a atenção nessa lógica é que em grande parte o discurso de ódio e de divisão é alimentado também pelas pessoas cristãs. Esse dis curso não apenas promove a divisão e o ódio na sociedade, mas também nas igrejas. Nessa perspectiva, revisitar o texto paulino é um desafio para os tempos atuais. O cristianismo tem no batismo o seu rito de pertença. Ele marca o ingres so da família no corpo formado por irmãos e irmãs na fé. Nossa perícope vai aprofundar esse conceito, afirmando que somos batizados e batizadas “para um corpo”, isto é, na perspectiva da carta aos coríntios, uma fé que desafia à unidade. Somos batizados para um corpo (v. 13). A violência praticada pelos membros contra outros membros é abordada a partir da metáfora do corpo, descrevendo essa prática como uma insensatez. Dois aspectos são enfatizados pelo apóstolo. O primeiro é que mesmo que os membros do corpo digam que não fazem parte do corpo por não ser a parte do corpo que gostariam de ser, ainda assim eles são parte e dependem do todo. O segundo aspecto é que o desprezo de partes do corpo por outras partes é uma insensatez, pois só há corpo mediante a diversidade de partes e, à luz do corpo, damos mais honra e cuidado às partes mais desprovidas de honra. Da mesma forma que os membros do corpo não podem desprezar os demais membros devido ao risco do desaparecimento do próprio corpo, os participantes da comunidade cristã não podem provocar cismas, uma vez que isso contraria a vocação do batismo e a constituição, eficácia e existência do corpo.

Como uma grande conclusão nessa argumentação do apóstolo, a diversidade dos dons e das pessoas é dádiva de Deus e é o próprio Deus que distribui os dons, não é uma opção das partes do corpo. Questionar seu papel no corpo é, em última instância, questionar Deus. Desprezar outras partes do corpo é, do mesmo modo, desprezar Deus. Uma forte argumentação do apóstolo!

Com essa perspectiva, em um mundo marcado por divisões, violência e discursos e práticas de ódio, cada pessoa cristã deveria, como membro do corpo de Cristo, ser promotora do amor solidário, em que os dons, a liderança e o co nhecimento deveriam ser colocados a serviço da unidade, do cuidado do outro e da outra, em especial dos mais frágeis.

4 Imagens para a prédica

No tema das igrejas e dos discursos de ódio e de divisão, temos, infeliz mente, um enorme número de imagens para aplicar em nossas prédicas e na cons trução litúrgica. A sugestão aqui é consultar na internet o tema “igreja e violência” e selecionar o item notícias. Selecionar notícias locais em que a igreja produziu divisão e não unidade. Isso pode ilustrar a necessidade de revisitar o tema. Sugere-se igualmente escolher notícias em que as igrejas foram portadoras de ações que promoveram a superação da violência e promoveram também a unidade. Assim podemos também apresentar sinais de esperança.

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3º Domingo após Epifania

5 Subsídios litúrgicos

Oração pela unidade Senhor Jesus, É teu desejo que sejamos um, como tu és com o Pai, E por isso esse também é o nosso desejo. A despeito de todas as forças contrárias, De todas as ameaças de dispersão, De toda pressão e repressão desintegradora… Apesar de tanta maldade, De tanto egoísmo, De tanta intolerância… Nós nos dispomos a fazer a tua vontade E, no que depender de nós, nos comprometemos a construir a paz para toda família humana. Cumpre em nós a tua palavra, ó Cristo, de tal maneira que o mundo creia que tu nos enviaste em missão de paz e em comunhão fraterna. Amém.

Rev. Luiz Carlos Ramos Disponível em: <https://www.luizcarlosramos.net/oracao-pela-unidade/>. Acesso em: 01 ago. 2021.

Bibliografia

CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Em Busca de Paulo. Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007.

ELLIOTT, Neil. Libertando Paulo. A justiça de Deus e a política do Apóstolo. São Paulo: Paulus, 1998.

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3º Domingo após Epifania

4º DOMINGO APÓS EPIFANIA 31 JAN 2021

PRÉDICA: JEREMIAS 1.4-10

LUCAS 4.21-30 1 CORÍNTIOS 13.1-13

O desafio de responder à vocação de Deus

1 Introdução

A profecia teve lugar significativo em Israel. Entre os povos da antigui dade, foi o lugar onde mais persistiu como elemento de educação e de crítica política. Chama nela a atenção o seu grau de espiritualidade e de influência moral sobre o povo.

O rei Josias havia desenvolvido uma política que contemplava uma refor ma religiosa em Israel. O culto a Javé se tornara uma figura central na vida do povo. Nesse contexto, o profeta Jeremias tinha seus seguidores.

Com a morte brusca de Josias, aconteceram alterações significativas na política. O profeta assumiu um papel profético crítico e, com isso, iniciaram-se as hostilizações contra a sua pessoa. Com a destruição de Israel como povo (586 a.C.), perdeu boa parte dos seus admiradores e se viu envolto em perseguições e amea ças de morte. Sua missão profética anuncia o juízo, que não é sua invenção, mas resultado da idolatria. Seu ministério, portanto, conviveu com estes dois extre mos: a reconstrução e a derrocada de Israel. A pregação do profeta centrava-se na busca do caminho da graça mediante o exercício da justiça, pois a idolatria havia desmanchado a possibilidade de fé.

A perícope em análise é fruto de uma redação posterior, pós-exílica, que sinaliza a dureza da missão que lhe pesou sobre os ombros. O texto avança um pouco além da vocação do profeta, com preliminares da sua missão, quanto aos destinatários e ao início de sua pregação. Aponta para uma interlocução entre Javé e Jeremias que transcende o falar de Deus.

A leitura do evangelho remete à vocação de Jesus, que depois de anunciar a libertação proclamada por Isaías recebe elogios de conterrâneos, mas que logo a seguir recebe críticas e os presentes tentam levá-lo à morte. Há uma similaridade com o ministério de Jeremias, que de aplausos e seguidores passa a ser perseguido e preso. A perícope da epístola aponta para o resgate da graça divina fundada no amor, na esperança e na fé, sobretudo, como na profecia de Jeremias.

2 Considerações exegéticas

V. 4 – A expressão “e veio a palavra” (wayhî dəḇar) é utilizada no Antigo Testamento diversas vezes no contexto de chamados que Javé faz a seus enviados

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para alguma missão. Ao longo do livro de Jeremias, aparece diversas vezes sina lizando a presença constante de Javé no seu ministério profético; já “para mim” (’êlay) evidencia o destinatário do chamado com o sentido de que o chamado divino acontece “no” (‘ê-lay) profeta; esse versículo sinaliza a intenção divina de falar ao povo além dos canais oficiais (sacerdotes), portanto fora do meio religioso, o que tornou a tarefa profética mais pesada.

V. 5 – Algumas expressões fundamentais deste versículo: “Antes que eu te formasse no ventre” (ḇabbeṭen) se reporta à época da consagração por Javé. É expressão recorrente no Antigo Testamento (Jz 13.5 = Sansão; Is 49.1,5 = servo do Senhor). Sinaliza a maneira profunda como Javé estabelece a sua consagração. “Eu te conheci” (yəḏa‘tîḵā) demonstra a profundidade da relação íntima de Javé com o profeta, retratando uma concepção carregada de significados e de pro pósitos. Tem o sentido de predestinar. “Eu te santifiquei” (hiqdaštîḵā), segundo John Wesley (1703-1791), significa que Deus fala intimamente com Jeremias, diferentemente do que falou com outros profetas, visto que ele necessitava de um encorajamento especial por causa da sua pouca idade e dos enfrentamentos futuros. Indica a separação para um ministério. “Às nações” (laggōwyim): sua mensagem deveria transcender os limites de Jerusalém e de Israel, na medida em que as outras nações interferiam na forma de viver de Israel. Há uma intenciona lidade de demonstrar aos povos contemporâneos o poder de Javé. O chamado do profeta aponta para um acontecimento extraordinário na sua vida.

V. 6 – A interjeição “Ah!” (‘ăhāh) aponta para a inconformidade de Jeremias, que sabia a dimensão de ser profeta e evidencia sua insegurança diante da missão. “Eis que não sei falar” (lō-yāḏa’tî dabbêr) parece constituir-se numa justificativa de omissão, como no caso de Moisés se recusando ir ao Faraó (Êx 4.10; 6.12). “Não passo de uma criança” (na‘ar ’ānōḵî) é uma expressão utilizada por Salomão diante da sua indicação para o reinado de Judá, alegando que é muito jovem (1Rs 3.7). No contexto da derrota dos midianitas, quando Gideão ordena que Jeter mate os inimigos, este não levanta a espada com a justificativa de que era muito jovem (Jz 8.20). Percebe-se que a justificativa de ser jovem referenda a tentativa de fugir de uma missão não é sem razão. Como não tivesse alcançado a maior ida de, nem mesmo a condição de cidadão israelita, sua pregação encontraria dificul dades de ser aceita. O lamento do profeta carrega a expressão do seu sentimento diante da tarefa que estava desempenhando (Jr 20.7,9).

V. 7 – Javé não aceita o argumento da pouca idade. “Não digas” (’al-ṯōmar) representa uma recusa determinada sobre a justificativa do profeta. Deus lhe res ponde: “porque a todos a quem eu te enviar irás” (‘ešlāḥăḵā ṯêlêḵ). O ato de enviar com uma missão implica carregar a autoridade de quem o está enviando. “E tudo quanto eu te mandar falarás” (təḏabbêr): trata-se mais de uma promessa (Joseph Benson, 1749-1821) do que de uma ordem divina, mas impossível de ser recusada, porque traz no seu contexto uma capacitação (Êx 7.1-2).

V. 8 – A expressão “não temas” (‘al tîrā) está associada à promessa e à ca pacitação que Javé oferece a seus enviados (Abraão: Gn 15.1; Josué: Js 8.1; Acaz: Is 7.4). Mas também se reporta à sua companhia nos momentos mais difíceis da missão, que não foram poucos (Jr 1.18-19; 11.18; 15.15; 20.2,7b,10,11 entre ou

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Epifania

tros); “Eu [sou]” (’ănî), que se repete 692 vezes no Antigo Testamento, identifica a presença de Javé como companheiro e salvador no momento da dificuldade (Moisés: Êx 6.2). “Para te livrar” (ləhaṣṣîləḵā) faz parte da promessa. O medo do profeta estava relacionado ao enfrentamento de uma situação difícil diante de um povo degenerado, que não seguia a Lei (João Calvino, 1509-1564).

V. 9 – “A mão” [dele] (yāḏōw): não há intermediário, mas a própria mão de Javé. Um toque físico, “na boca” (‘al pî), indica o local mais particular do corpo da pessoa. Revela o grau de intimidade que haveria entre o profeta e Javé. Aponta para a natureza da sua missão: mensagem. A boca é o instrumento da palavra (Moisés e Arão: Êx 4.15-16). “Eis que ponho” (nāṯattî): o próprio Javé coloca a sua mensagem na boca do profeta (pregação de conforto para Sião [Is 51.16]. Veja a promessa de Javé de transformar as palavras em fogo na boca do profeta [Jr 5.14]).

V. 10 – Javé estabelece o profeta como seu autêntico enviado: “te constituo” (hipqaḏtîḵā) – expressão semelhante em Êxodo 7.1, quando Javé constitui Moisés como seu servo. Indica que ele levará a autoridade divina para realizar a missão que deveria se impor sobre “as nações” (‘al-haggōwyim), portanto que transcendia os limites do seu povo. A dimensão de sua missão incluía “para destruir” (ləha’ăḇîḏ) e “para construir” (liḇnōwṯ). Em Jeremias 18.7 e 31.28, Javé repete essa dimensão. São verbos que refletem a trajetória da ação profética, pois somente após destruir/ derrubar o povo estará pronto para construir/edificar. Esse versículo reflete a men sagem, não só a mensagem de Jeremias, como de resto, a mensagem profética de Israel que anuncia a possibilidade de uma nova história com o surgimento de uma nova aliança de Javé. Nessa, a justiça e o direito, tão negados na antiga ordem, são anunciados como bálsamo para o novo que está nascendo.

3 Meditação

A missão na qual Deus envolve as pessoas quase sempre não é aquela tarefa desejada. As pessoas têm seus desejos e isso é natural. São escolhas que se reportam ao seu contexto social, com características econômicas, culturais, religiosas, políticas entre outras. Mas o Senhor tem necessidades que não se en caixam nos desejos das pessoas. Essa vontade de Deus manifesta ao ser humano pode ser chamada de vocação.

O profeta Jeremias, descendente da linhagem sacerdotal, tinha seus desejos compatíveis com os desejos adolescentes de sua época. A necessidade divina não coincidia com esses desejos. Jeremias queria colocar em prática sua tendência ju venil e Javé queria que ele assumisse uma postura política, social e religiosa bem distinta. Ele precisou percorrer o caminho que ia da realização dos seus desejos ao cumprimento de uma missão crítica e transformadora para o seu povo. Isso não é pouco!

Possivelmente, ainda estejamos mergulhados nas consequências da ca tastrófica pandemia de Covid-19. Experimentamos vontades e desejos pessoais compatíveis com nossa condição e contexto social. Como aconteceu ao longo de 2021, tivemos desejos e vontades que não puderam se realizar. Havia um impe rativo maior de preservação da vida e de evitamento de contaminação das outras

82 4º Domingo após Epifania

pessoas. A utilização de meios e estratégias de proteção marcou a vida social. Neste novo ano, outras vontades e desejos também se apresentam diante de cada pessoa. Entretanto, agora, nosso olhar precisa se voltar para a necessidade da nos sa participação nos destinos da nação, do povo. Uma coisa é pensar na realização das nossas aspirações individuais. Outra é pensar no coletivo, nos desafios que se colocam diante da nação. Boa parte das vezes, nossos desejos e nossas vontades não se alinham com as necessidades que temos como um todo. É preciso olhar para o coletivo, para a nação, e perceber nas suas necessidades e desafios a “vo cação” de Deus para as escolhas que vamos fazer. Este é um ano de eleições, com consequências decisivas para o nosso hoje e para o nosso amanhã, como Estado e como nação. Deus coloca em nossas mãos o destino deste país. Cumprir a voca ção que ele nos dá pode significar renunciar a interesses individuais mesquinhos e lembrar as carências da maioria de nossas irmãs e irmãos brasileiros. Os destinos do povo e da nossa nação dependem das decisões que tomarmos, por isso torna -se necessária a visão do amor, da esperança e da fé, para que a graça de Deus se manifeste em consequências de justiça e de paz sobre todas as pessoas deste país.

4 Imagens para a prédica

Certa vez, um menino enfrentou uma situação delicada. Quando estava com cerca de 12 anos, seu pai lhe propôs um dilema: largar os estudos e perma necer trabalhando na roça, ajudando-o, tendo como consequência uma existência trabalhosa, mas junto à família, ou aceitar o oferecimento de um amigo do pai para residir longe de casa, mas continuar trabalhando na roça do amigo e con tinuar os estudos numa escola próxima. Ambas as alternativas não tinham uma solução fácil. A primeira apresentava o resultado de continuar no conforto da família, mas dizer adeus às possibilidades de um crescimento intelectual; a segunda trazia a implicação de continuar no mesmo tipo de trabalho braçal, à época, sem qualquer mecanização, portanto pesado, convivendo em uma família estranha e à noite frequentar as aulas numa escola a cerca de uma légua de distância. O menino escolheu a segunda alternativa e, como consequência, passou a uma rotina penosa de trabalhos braçais ao longo do dia, uma jornada de 12 km a pé, para ir e voltar à escola à noite. Nessa etapa, passou por duras privações, mas entendia que essa era a vontade de Deus para a sua vida.

5 Subsídio litúrgico

Oração participativa

D: Senhor, temos medo de caminhar pelas tuas veredas, pois elas nos expõem à crítica das outras pessoas; porque, ao preferir os teus planos, colocamos o amor ao próximo como um valor maior, enquanto elas buscam principalmente satisfa zer seus interesses individuais.

T: Deus, tem compaixão de nós e nos fortalece nos teus caminhos.

83 4º Domingo após
Epifania

D: Deus eterno, tem misericórdia de nós, porque diariamente somos escarnecidos pelas pessoas que nos rodeiam, porque preferimos nos reunir em comunidade, na tua igreja, enquanto os outros se divertem às custas dos mais fracos.

T: Deus, tem compaixão de nós e nos fortalece nos teus caminhos.

D: Bendito Senhor, fortalece nossas vidas porque preferimos cumprir os teus desígnios, cumprir os valores éticos da tua Palavra e amar a justiça na relação que estabelecemos com as outras pessoas, enquanto as percebemos logrando o próximo com artimanhas criminosas.

T: Deus, tem compaixão de nós e nos fortalece nos teus caminhos.

Referências

CASTRO, C. P. O ministério dos profetas no Antigo Testamento. São Paulo: Im prensa Metodista, 1993.

FREITAG, João Clemente. Jeremias 1.4-10: auxílio homilético. In: MALSCHITZ KY, Harald (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo, 1987. v. 13. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/textos/jeremias-1-4-10-1>. Acesso em: 26 abr. 2021.

LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Loyola, 2008.

84 4º Domingo após
Epifania

PRÉDICA: LUCAS 5.1-11

ISAÍAS 6.1-8(9-13)

1 CORÍNTIOS 15.1-11

5º DOMINGO APÓS EPIFANIA

Verner Hoefelmann

Por tua palavra lançarei as redes

1 Introdução

Os três textos indicados possuem boa afinidade temática e podem ajudar a moldar o conteúdo da celebração deste domingo. O texto do evangelho gira em torno de uma epifania. Em hora imprópria para a pesca, pescadores retornam ao lago da Galileia, em obediência a uma palavra de Jesus. E recolhem as redes re cheadas de peixes, a ponto de quase afundar os barcos. Pedro reconhece na pesca miraculosa uma manifestação de Deus. Pede que Jesus se afaste dele. Ele se reco nhece como um pecador diante de Jesus. Pensa que não pode ter comunhão com ele. Mas ao invés de afastá-lo de si, Jesus o integra ao seu ministério. Convida-o a tornar-se um discípulo. Convoca-o à tarefa de proclamar o evangelho em palavra e ação e convencer pessoas a construir suas vidas sobre esse fundamento.

O texto de Isaías gira igualmente em torno de uma cena de epifania. O pro feta está no templo de Jerusalém e presencia ali uma visão grandiosa de Deus, que está sentado sobre um alto e sublime trono. Serafins proclamam a santidade e a glória de Deus. Isaías se desespera, porque é um homem de lábios impuros, mora em meio a um povo de impuros lábios e acaba de presenciar a glória de Deus. Mas seus lábios são purificados e ele aceita o chamado para ser enviado em nome de Deus, com a tarefa de proclamar ao povo a sua palavra.

O trecho de Paulo, por fim, completa a tríade de textos: apesar de ter sido um perseguidor da igreja, o Cristo ressuscitado lhe apareceu como a um nascido fora do tempo. Mesmo se considerando o menor dos apóstolos, a graça de Deus se tornou eficaz nele. A própria comunidade de Corinto é exemplo disso. Ela passou a fazer parte do povo de Deus através do trabalho do apóstolo. Foi dele que ela ouviu pela primeira vez a gloriosa mensagem da vitória de Cristo sobre a morte. Esses são os temas que conferem uma unidade aos textos: manifestação de Deus, reconhecimento do pecado, chamado ao discipulado, fortalecimento para testemunhar a palavra e a obra de Deus.

2 Exegese

a) Lucas 5.1-11 e seus paralelos

Ao redigir o texto em estudo, Lucas valeu-se de duas fontes. A primeira delas é Marcos 1.16-20. Num paralelismo quase perfeito, esse texto descreve a vocação de duas duplas de irmãos pescadores ao discipulado. Caminhando junto

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06 FEV 2022

ao mar da Galileia, Jesus observa os irmãos Simão e André em meio ao trabalho. Eles lançam as redes ao mar. Convida-os a segui-lo e promete transformá-los em pescadores de pessoas. Os dois largam as redes e passam a segui-lo. Mais adiante Jesus vê outros dois irmãos, Tiago e João, filhos de Zebedeu. Eles estão num barco, no fim do expediente, consertando as redes. Jesus os chama igualmente. E eles deixam tudo, inclusive o pai, para seguir Jesus.

O contexto da narrativa de Marcos surpreende: após o batismo e a tentação de Jesus e um breve sumário de sua pregação (Mc 1.12-15), o início de seu mi nistério público é justamente a vocação desses quatro pescadores ao discipulado. Sem que se tenha mencionado nenhuma relação anterior entre eles, sob o impacto do convite, os pescadores tomam a decisão de largar tudo para seguir Jesus.

O texto paralelo de Mateus 4.18-22 segue quase que literalmente a versão de Marcos. Mas o terceiro evangelista submeteu essa tradição a uma incisiva revisão. Ela inicia com a criação de um novo contexto para o texto de vocação: antes de relatar a vocação dos primeiros discípulos, Lucas descreve o início do ministério de Jesus em seu duplo aspecto de ensino (Lc 4.14-30) e cura (4.31-44). Lucas informa o leitor que Simão já conhecia Jesus, pois este havia curado a sogra do pescador (4.38-39). Além disso, Lucas cria uma introdução ao relato (5.1-3): Simão está agora entre os que ouvem a palavra de Deus que Jesus proclama às margens do lago. Jesus a proclama de dentro do barco de Simão. A menção a dois barcos e a pescadores que lavam as redes (5.2) é uma reminiscência do texto de Marcos. Após essa introdução, Lucas emenda no relato uma tradição recebida de outra fonte. Esta fazia referência a uma pesca maravilhosa e ao comissionamen to de Pedro (5.4-10). Conhecemos uma tradição similar no final secundário do Evangelho de João (21.1-14). O enredo possui aspectos em comum, embora a cena joanina aconteça após a Páscoa. De volta à Galileia, um grupo de discípulos, entre eles Pedro e os filhos de Zebedeu, volta ao mar para pescar. Mas o mar não estava para peixe! Eles retornam da pescaria ao clarear da madrugada. Encontram um estranho à beira do lago, que lhes pergunta se possuem algo para comer. Ante a resposta negativa, o estranho os instrui a lançar a rede à direita do barco. Eles obedecem e a rede emerge cheia da água, com 153 grandes peixes. O discípulo amado informa Pedro de que o estranho é Jesus. E Pedro se lança ao mar em di reção a Jesus, num gesto de confiança. Segue-se uma refeição com peixes e pães, na qual o Jesus ressuscitado faz o papel de hospedeiro. A cena termina com um diálogo entre Jesus e Pedro, em que este é conclamado a apascentar as ovelhas e seguir a Jesus (Jo 21.15-23).

Há que se recordar que as tradições primitivas circularam algum tempo nas comunidades como tradições isoladas e desconectadas entre si. Por isso é possível supor que Lucas tenha utilizado essa tradição para enriquecer uma cena de vocação, enquanto o redator final de João a combinou com uma aparição do ressuscitado. Os dois usos da tradição fazem sentido e de certa forma até se com plementam. Na Sexta-Feira Santa, quando os discípulos abandonaram Jesus, o discipulado foi rompido de forma vergonhosa. A Páscoa inaugura um novo momento, em que a vocação para o discipulado precisa ser confirmada e reforçada por meio de uma experiência com o ressuscitado.

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Em consequência do trabalho redacional, outros detalhes ainda chamam a atenção no relato de Lucas. O principal deles é que toda a narrativa passa a girar em torno da pessoa de Simão (Pedro): o barco em que Jesus prega é o de Simão (5.3); a ordem de voltar ao lago é dada a Simão (5.4); é Simão quem fala sobre a hora inapropriada para a pesca, embora credite a seguir um voto de confiança a Jesus (v. 5); é Simão Pedro quem reconhece sua condição de pecador diante da epifania da pesca milagrosa (5.8); é a Simão (apenas) que Jesus convida para ser pescador de gente (5.10). Observe-se que no decorrer do relato se alternam os verbos no singular e no plural. O plural indica a presença de outras pessoas na cena. O singular aponta para o interesse de Lucas (talvez já da tradição anterior a ele) na pessoa de Pedro. Lucas inicia aqui um projeto teológico que vai perpassar sua dupla obra: mostrar que igreja autêntica é a igreja baseada no testemunho dos apóstolos (cf. At 1.21-26). Essa igreja tem em Pedro seu principal porta-voz. Ele inaugurou o episódio da missão entre os gentios (At 10), antes mesmo da missão paulina. Os filhos de Zebedeu, que estão presentes na tradição de Marcos e de João, tornam-se um apêndice no relato de Lucas (Lc 5.10). E André sai comple tamente de cena. Consta apenas na lista dos doze ao lado de seu irmão (Lc 6.14). É curioso observar, aliás, como o Evangelho de João entra nessa brecha do ocultamento de André. João não descreve essa cena de vocação, mas reser va a André a honra de ter sido o primeiro a seguir Jesus (Jo 1.35-42). Ele é o protoklētos, o primeiro a ser chamado, como diz a tradição ortodoxa grega. Con forme João, André teria sido um discípulo de João Batista antes de seguir Jesus. Ele teria apresentado Pedro a Jesus e Jesus a Pedro. Essa cena marca o início de uma relativização da figura de Pedro no quarto evangelho, em favor do “discípulo a quem Jesus amava”. Mas o assunto não pode ser aprofundado aqui!

b) O texto de Lucas 5.1-11

– Um púlpito singular para Jesus (v. 1-3): Como já foi dito, Lucas cria ha bilmente um novo cenário para o texto de vocação. Jesus não chama os primeiros discípulos enquanto caminha junto ao mar (Mc 1.16), mas depois de proclamar ou ensinar a palavra de Deus a uma multidão. O que confere força profética à pregação de Jesus é que sua palavra procede de Deus (Lc 4.22,32,36,43-44). A multidão aos poucos comprime Jesus em direção às águas. Obriga-o a buscar uma solução junto a um barco que está às margens. O barco é transformado em púlpito! O episódio mostra que nada pode impedir o curso da palavra. Lucas denomina o mar da Galileia (Marcos) de lago de Genezaré. O evan gelista sabe que o lago é alimentado pelas águas doces do rio Jordão e de outras pequenas fontes. O nome Genezaré se origina de um distrito fértil e populoso situado em sua margem oeste. A presença de dois barcos junto à praia parece remeter à dupla vocação narrada em Marcos 1.16-20. O empréstimo de um bar co para continuar a pregação se inspira em Marcos 4.1. Aqui a cena introduz o sermão parabólico de Jesus, que Lucas suprime no versículo correspondente para evitar duplicação (cf. Lc 8.4). Nada se fala sobre o conteúdo da pregação, mas ela foi programaticamente esboçada na prédica em Nazaré (Lc 4.16-30). Ao ensinar sentado, Jesus adota a postura de um mestre judeu (Lc 4.20; Mt 5.1).

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Essa introdução está a serviço do episódio que segue. A multidão que se reúne em torno de Jesus é um sinal de que existe sede e fome pela palavra de Deus e que há muito por fazer. Por enquanto Jesus necessita apenas do barco de Pedro como púlpito. Mais adiante vai precisar dele mesmo como parte de seu projeto de convencer pessoas para o evangelho. Mas antes disso o próprio Pedro precisa ouvir a palavra de Deus, pois a vocação nasce do evangelho pregado e ouvido.

– Uma pesca surpreendente (v. 4-7): Após a sessão de ensino, Lucas insere a narrativa de uma pesca maravilhosa oriunda de outra fonte. A ordem de voltar às águas profundas é dada a Pedro, pois ele é a pessoa visada no evento a seguir. Mas a ordem de lançar as redes é estendida à tripulação do barco, pois o verbo está no plural (v. 4). A faina dos pescadores exige um trabalho conjunto. Não está claro se Jesus permanece no barco ou se acompanha o episódio às margens do lago.

O vocativo epistata com o qual Pedro se dirige a Jesus não costuma ser utilizado para um mestre da lei, mas para um superior em posição de autoridade (v. 5). Por isso o título é mais adequado para uma cena de milagre. Lucas reserva esse título a discípulos de Jesus, enquanto outros o chamam de didaskalos. Na resposta de Simão pode-se observar, ao mesmo tempo, a fala de um pescador (no plural) e de um candidato ao discipulado (no singular). Como pescador ele sabe que nada tem a aprender de um homem que não pertence ao ramo. Por isso ele responde: trabalhamos arduamente toda a noite (no horário apropriado à pesca) e nada apanhamos. Como candidato a discípulo ele acrescenta: “mas por tua pala vra lançarei as redes”. Apesar da noite frustrante de trabalho, ele decide apostar contra a esperança e confiar na palavra de Jesus.

O resultado da pesca é narrado todo ele no plural (v. 6-7). As lidas locais com a pesca nos ajudam a entender esses versículos. As redes de arrastão devem ser lançadas em lugares mais profundos. Elas não servem apenas para recolher os peixes, mas primeiramente para cercá-los e juntá-los. É o que diz o verbo synekleisan (fecharam juntos, confinaram). O imperfeito dierrēsseto não significa que as redes estavam se rompendo, mas ameaçavam romper-se. O ato de puxar as redes é o mo mento mais difícil da pesca. É preciso muito esforço e habilidade para evitar que as redes se danifiquem ou que os peixes escapem. Em vista da quantidade de peixes apanhados, é nesse momento que os pescadores pedem a ajuda dos companheiros do outro barco. Segundo o texto, a operação foi bem-sucedida. Ambos os barcos se encheram de peixes, ao ponto de quase afundar. A quantidade de peixes revela o aspecto extraordinário do que acaba de acontecer. Ela remete tanto para o poder de Jesus como para a promessa que ele fará em seguida a Pedro. – Um pescador pescado pela rede de Jesus (v. 8-11): Segundo o relato de Lucas, a pesca maravilhosa provocou grande impacto nos pescadores. Além de Pedro e dos que com ele estavam no barco, são mencionados os filhos de Zebedeu (Tiago e João). Eles são caracterizados como colegas de trabalho (koinōnos). O trecho deixa entrever mais uma vez o trabalho redacional de Lucas, que procurou costurar aqui as informações das duas fontes utilizadas. O relato da pesca maravi lhosa, ao que parece, era seguido pela reação de Pedro (v. 8), eventualmente dos outros companheiros do barco (v. 9) e pela promessa de Jesus a Pedro (v. 10b). Por meio dos v. (9),10a e 11, Lucas tentou conectar esse relato com vocação de

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discípulos recebida de Marcos 1.16-20. Seja como for, na versão de Lucas o foco do trecho está posto novamente em Simão.

Simão, que agora chama Jesus de kyrios/senhor, vê nele e na pesca milagrosa uma epifania, uma manifestação de Deus (v. 8). O gesto de prostrar-se diante de Jesus é um ato de reverência e adoração ao divino que nele se manifesta. Mas a epifania também traz à tona o estado de pecado em que vive o ser humano. Diante de Jesus, o pescador reconhece-se como um pecador. Por isso Pedro prossegue: não te juntes comigo, porque sou um pecador. Que comunhão pode haver entre o divino e o pecaminoso? A reação é semelhante ao profeta Isaías, ao defrontar-se com a santidade de Deus no templo (Is 6.5). Ou a Paulo, que ao encontrar-se com Cristo olha para si mesmo e considera tudo o que é ou possui como perda ou refugo (Fp 3.4-11). Observe-se que essa é primeira vez no texto e no evangelho que Simão é chamado de Pedro, o nome que vai caracterizá-lo como discípulo de Jesus (cf. Lc 6.14). Esse detalhe provavelmente não é mero acaso, mas intencional: reconhe cer o senhorio de Cristo e a condição de pecador é um passo necessário em direção ao discipulado e à participação no ministério de Jesus.

A resposta de Jesus a Pedro é tranquilizadora e portadora de uma promessa (v. 10): Não temas; doravante serás pescador de pessoas. Temor é a reação típica do ser humano diante da manifestação de Deus. Não temas é uma mensagem graciosa e confortadora de Deus e de seus mensageiros. Ela quer tranquilizar e encorajar o ser humano que está consciente de sua condição precária. Justamente assim o ser humano pode ser integrado aos planos de Deus. Foi assim com Zacarias (Lc 1.13), com Maria (Lc 1.30), com os pastores (Lc 2.10), com Jairo (Lc 8.50), com Paulo (At 18.9; 27.24) e tantos outros.

À palavra tranquilizadora de Jesus segue um comissionamento: Doravante serás pescador de pessoas. Essa formulação se distingue de Marcos 1.17 em alguns aspectos. Ela não se dirige a Pedro e André, mas apenas a Pedro. Isso mostra que, a rigor, é esse o personagem que está em pauta. Além disso, a tarefa confiada a Pedro revela, na versão de Lucas, um detalhe curioso quando visto no texto grego. O particípio zōgrōn provém de um verbo composto por zōos (vivo) e agrein (colher e, por extensão, caçar ou pescar). A tradução literal, portanto, não seria “doravante serás pescador de seres humanos”, e sim “doravante colherás/ pescarás vivos os seres humanos”. Parece evidente que a versão de Lucas procura corrigir os limites da metáfora: como pescador, Pedro colhia peixes para a morte, pois eles não sobrevivem fora da água. Em sua nova função, ele estará pescando pessoas, mas não para a morte, e sim para o reino de Deus, que resulta numa nova qualidade de vida. Se quisermos permanecer na metáfora do pescador de pessoas, talvez poderíamos dizer: inversamente aos peixes, que morrem fora da água, os seres humanos precisam passar pelas águas (do batismo) para renascer como novas criaturas! Mas isso não está dito no texto!

Por fim, verifica-se que o comissionamento de Pedro na versão de Lucas não faz referência ao seguimento (Mc 1.17: vinde após mim). Por isso Lucas precisa narrar o seguimento de Pedro na sequência, no encerramento da perícope, juntamente com os outros pescadores (v. 11). Afinal, Lucas não pode conceber um apóstolo que não tenha sido discípulo (At 1.21-26). O final secundário do

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Evangelho de João (21) parece refletir o momento em que a figura de Pedro, enten dido como instância de autoridade na igreja, foi finalmente acolhida na comunidade joanina. Mas a condição posta é que essa autoridade não seja exercida como poder, mas como um pastoreio que se inspira no exemplo do bom pastor, que ama as ovelhas e dá a sua vida por elas (Jo 21.15-18). Em suma, Pedro é acolhido na comunidade joanina como um seguidor e discípulo de Jesus (Jo 21.19-23). Assim Pedro e o “discípulo amado” finalmente podem estar no mesmo barco, que é a igreja.

3 Meditação

Lucas 5.1-11 é um belo exemplo de como a tradição cristã circulou e se se dimentou nas primeiras comunidades. Como vimos, Lucas retrabalhou com liber dade e criatividade um texto de Marcos sobre a vocação dos primeiros discípulos. Criou um novo contexto para uma narrativa de vocação. Fundiu o texto com outra tradição, que vinculava uma cena de epifania com um comissionamento de Pe dro. Qual o ganho que temos ao trazer essas mudanças à luz? Elas mostram que antes de serem transformadas em obras literárias, as tradições veiculadas pelos evangelhos foram vivenciadas de forma diferenciada no interior das comunida des. Embora o fundamento histórico seja importante para a fé cristã, a verdade do evangelho nem sempre depende da exatidão dos fatos narrados. A leitura fun damentalista das Escrituras tende a esconder ou escamotear as diferenças entre os textos. A liberdade de poder trazer tais diferenças à tona mostra justamente a riqueza de um evangelho que quer tornar-se carne e habitar entre nós. Por isso não deveríamos ter receio de comparar textos e mostrar suas diferenças. Elas são indícios do que significa pregar o evangelho: traduzir para dentro de novos con textos o impacto da boa-nova proclamada por Jesus. Claro que esse não parece um tema adequado para uma pregação pública dominical. Mas urge como um tema a ser estudado nos grupos das comunidades. Os membros de nossas igrejas precisam crescer na leitura e interpretação das Escri turas, abandonar a dieta do leite para acostumar-se com comida sólida (1Co 3.1-9). Caso contrário, serão levados de um lado para o outro pelas artimanhas de novas ideologias e doutrinas, que induzem ao erro e conduzem para longe do evangelho (Ef 4.11-16). Gente sem maturidade espiritual e discernimento torna-se massa de manobra nas mãos de lideranças manipuladoras, seja no âmbito eclesial ou social. Não me lembro de ter visto essa necessidade de maneira tão nítida como nos últimos tempos. Nunca se falou tanto em fé cristã e em textos bíblicos no âmbito público, nos meios de comunicação e nas redes sociais. Mas também nunca se passou tão de largo pelo evangelho! É preciso voltar às fontes para que não sejamos surpreendidos, como alguns coríntios, dizendo anátema Jesus (1Co 12.3).

Chegamos assim de volta a um ponto de conexão com a homilética. O tex to configurado por Lucas é riquíssimo em temas para a pregação, todos girando em torno do tema da vocação.

a) Deus dá o primeiro passo na direção do ser humano: Como vimos, Lu cas modificou a narrativa que encontrou em Marcos. Segundo Marcos, a vocação

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dos primeiros discípulos nasceu do impacto que a pessoa de Jesus exerceu sobre os pescadores. É verdade que também Marcos se refere a uma mensagem do evangelho que já estava ecoando pela Galileia antes de Jesus chamar os primei ros discípulos. Marcos a resume em quatro elementos: o tempo está cumprido, o reino de Deus está próximo, arrependei-vos, crede no evangelho (Mc 1.14-15). É o programa de Jesus nesse evangelho. Mas como as pessoas são conectadas a esse programa? Marcos responde que isso acontece por meio de um encontro com a pessoa de Jesus. Esse encontro é tão impactante, que os pescadores largam tudo para seguir Jesus.

Lucas oferece uma outra perspectiva à narrativa de Marcos. Também em Lucas Jesus proclama o reino de Deus (Lc 4.43). Mas o significado desse tema foi esboçado na prédica inaugural de Jesus em Nazaré, que se torna o programa mes siânico de Jesus no terceiro evangelho: Jesus foi ungido com o Espírito para proclamar o evangelho aos pobres, para proclamar a libertação aos cativos, para restaurar a vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e apregoar o ano aceitável do Senhor. Esse evangelho vale não apenas para os judeus, mas também para os gentios. Quem examina as Escrituras pode ver que isso já consta nela (Lc 4.16-30). Mas Jesus não é apenas o Messias da promessa. Ele é o Messias que cumpre o que promete, como indicam as primeiras narrativas que se seguem (Lc 4.31-44).

Como vimos, ao retrabalhar o texto de Marcos, Lucas concentra o interes se da narrativa na vocação e comissionamento de Pedro. Segundo Lucas, esse encontro entre Jesus e Pedro, que resultou na vocação do pescador para o discipulado, foi mediado e preparado por três elementos: a) Por um gesto diaconal de Jesus: a sogra de Pedro já havia sido curada por Jesus, levando Pedro a pensar quem seria esse homem de Deus que ampara os desvalidos. b) Pela pregação de Jesus: enquanto lava as redes e põe seu barco à disposição, Pedro ouve a palavra de Deus que Jesus proclama à multidão. c) Por uma epifania de Deus em Jesus: ao retornar para o lago e presenciar a pesca maravilhosa, Pedro vê confirmada a suspeita de que Deus está se manifestando em Jesus. Seja como for o encontro do ser humano com Deus, cumpre observar que é Deus mesmo quem dá o primeiro passo em sua direção. Fé cristã não se passa adiante nem se recebe por herança. Por mais que o contexto familiar e social pos sa facilitar a transmissão da fé, essa necessita de uma decisão pessoal em favor do evangelho e da vida cristã. Mas é importante destacar que essa fé e vocação para o discipulado nascem do encontro com a palavra proclamada do evangelho e com a percepção dos sinais e das manifestações de Deus em nossa vida e na realidade do mundo. Para dizer com o apóstolo Paulo, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo (Rm 10.17).

b) O encontro com o evangelho traz à luz a condição do ser humano diante de Deus: Quando o ser humano se encontra com o evangelho, ele adquire uma percepção realista sobre si mesmo. Pode olhar tranquilamente para dentro de si e reconhecer-se como realmente é, assim como aconteceu com Pedro, com o profeta Isaías e o apóstolo Paulo. Não precisa ocultar-se atrás de uma máscara ou desempenhar um papel que não lhe corresponde para impressionar quem quer

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que seja. Não precisa buscar uma justificativa ou uma desculpa para todos os seus atos falhos. Não precisa desesperar-se ante o fato de que não consegue cumprir as metas ou promessas a que se havia proposto. Pode assumir suas fraquezas e sua condição de pessoa pecadora, assim como o filho mais novo daquela parábola de Jesus, que decidiu voltar ao Pai de mãos vazias, sem ter qualquer motivo de orgulho para lhe apresentar (Lc 15.11-32).

c) O encontro com o evangelho revela ao ser humano como ele é visto aos olhos de Deus: Se olhar para si mesmo e reconhecer-se como pessoa pecadora é a parte mais difícil do encontro com Deus, saber como somos vistos por ele é a parte mais gratificante e libertadora. Para falar novamente com a parábola de Jesus, é como voltar à casa paterna, com um discurso ensaiado sobre nossa con dição de pecado, cientes de que não somos dignos de ser tratados como filhos e filhas, e enxergar o Pai de abraços abertos, pedindo que nos seja providenciada a melhor roupa e que nos seja colocado um anel no dedo e sandálias nos pés, antes que se inicie uma festa de comemoração. Quando reconhecemos nossa fraqueza e impotência, a força e o poder de Deus podem revelar-se em nós, como tão bem expressou o apóstolo Paulo em meio ao espinho na carne que lhe fazia sofrer: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo (2Co 12.9).

d) Deus prefere contar conosco: A multidão que comprime Jesus para a beira do lago e a quantidade de peixes apanhados, mesmo fora de hora, são duas imagens que se correspondem na narrativa de Lucas. Elas mostram que exis te demanda pela palavra de Deus e que as perspectivas são promissoras. Mas Jesus não cumprirá sozinho seu programa de evangelizar os pobres, proclamar libertação aos cativos, restaurar a vista aos cegos, pôr em liberdade os cativos e apregoar um tempo que agrada a Deus. É por isso que Jesus chama Pedro, depois os doze discípulos e os setenta, homens, mulheres e crianças. É por isso que o Espírito Santo suscita outras tantas formas de lideranças ao longo da história da igreja. De várias pessoas sabemos os nomes, sua contribuição e sua história. Da grande maioria não sabemos absolutamente nada. Mas de todas essas pessoas Deus se serviu para anunciar suas maravilhas ao mundo. Como dirá o apóstolo Paulo, um planta e outro rega (1Co 3.1-9). Há espaço para a diversidade de dons e carismas na igreja compreendida como o corpo de Cristo (1Co 12). O que con fere unidade a essa diversidade é o propósito de corresponder à proclamação e ao programa de Jesus assim como ele foi esboçado na sinagoga de Nazaré e como Jesus anunciou à beira do lago. Na igreja não há espaço para projetos de poder, mas de serviço. Importa reconhecer nosso papel como cooperadores de Deus: ser instrumentos nas mãos de Deus, que faz tudo crescer, seja a planta, seja o corpo de Cristo, que é a igreja.

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Domingo após Epifania

4 Imagem para a prédica

Os aspectos mencionados acima na meditação podem servir de roteiro para a pregação. Em preparação à prédica, enquanto a comunidade canta a canção abaixo, sugiro que se projetem (na medida do possível) imagens de pescadores fazendo o seu trabalho no lago da Galileia (veja, por exemplo, em <https://www. youtube.com/watch?v=bIi5TBltGk4>).

Tu vieste à margem do lago!

Não buscaste nem sábios nem ricos: queres somente que eu te siga. Senhor, olhaste em meus olhos e, sorrindo, disseste meu nome!

Lá na areia deixei o meu barco e contigo vou buscar outro mar!

Tu sabes tudo o que eu tenho: no meu barco não há ouro nem prata, somente redes e o meu trabalho. Tu necessitas de mim Do meu trabalho que a outros descanse Do amor que queira seguir amando. Tu, pescador de outros lagos, ânsia eterna de homens que esperam, meu bom amigo que assim me chama.

(<https://www.youtube.com/watch?v=QgER5JFSpII> ou <https://www.youtube.com/ watch?v=EkUY-TeFx6E>)

5 Subsídios litúrgicos

Introito: Ao lembrar a fundação e a história da comunidade, o apóstolo Paulo escreve o seguinte às pessoas cristãs de Corinto: Eu plantei, Apolo regou; mas Deus o crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento.

Hinos: LCI: 29 (Entrada), 41 (Confissão de pecados), 49 (Anúncio da Graça), 584 (Palavra), 285 (Bênção). Os hinos estão disponíveis no link <https://www. luteranos.com.br/conteudo/livro-de-canto-da-ieclb-por-numeracao>

Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, sempre de novo tu vens ao nosso en contro e te revelas a nós por meio de tua palavra, de teus sacramentos e das obras maravilhosas que criaste. Perdoa-nos se não reconhecemos os sinais de tua presen ça entre nós, com as quais queres mover nosso coração e nossa vida na tua direção. Senhor, sempre de novo te revelas a nós como um Deus de graça e misericórdia,

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conforme podemos enxergar em teu filho Jesus Cristo. Perdoa-nos se nos esqui vamos de ti e preferimos contar com nossas próprias forças, ao invés de aprender a viver a partir da força que procede de ti.

Senhor, sempre de novo demonstras que contas conosco na divulgação de tua palavra e no estabelecimento de uma paz que brota da justiça, em especial para as pessoas desamparadas e desfavorecidas. Perdoa-nos se nos eximimos de nossa responsabilidade e esperamos que tu resolvas os problemas que nós criamos e que temos condições de resolver.

Abre nossos ouvidos para a tua palavra, que nos convoca sempre de novo a trilhar o caminho do seguimento de teu filho Jesus Cristo. Abre nossos corações para que ouçamos o clamor que brota do meio de teu povo carente de dignidade, soli dariedade e esperança. Em nome de teu Filho Jesus Cristo, Amém!

Palavra de graça: Deus responde à nossa confissão de pecados assim como res pondeu ao apóstolo Paulo atormentado por suas fraquezas: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza (2Co 12.9).

Oração de coleta: Senhor, nosso Deus, aquieta nossa mente e nosso coração no momento em que nos preparamos para ouvir tua palavra. Fala tu mesmo a nós na palavra que nos será anunciada e anima-nos a responder a ela com alegria, obediência e comprometimento. Por Jesus Cristo, teu Filho, Amém!

Bibliografia

BOVON, François. El evangelio según San Lucas. Salamanca: Sígueme, 2005. FITZMYER, Joseph A. El evangelio según Lucas. Madrid: Cristiandad, 1987.

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5º Domingo após Epifania

PRÉDICA: 1 CORÍNTIOS 15.12-20

JEREMIAS 17.5-10 LUCAS 6.17-26

6º DOMINGO APÓS EPIFANIA

Questão de vida ou morte

1 Introdução

Falar de ressurreição fora da Páscoa e longe do Dia de Finados parece estranho. Mas é domingo! É o dia do Senhor! Desse modo, é tempo sempre opor tuno para fundamentar um dos sustentáculos da fé.

Nossos textos paralelos são: do AT, o texto de Jeremias 17.5-10, onde en contramos algumas fórmulas de sabedoria interessantes: Maldito o homem que confia no homem (v. 5); Bendito o homem que se fia no Senhor (v. 7) e O coração humano é falso, enganador e doente (v. 9). E, do NT, o texto do Evangelho de Lu cas 6.17-26, que nos traz ensinamentos e curas feitos por Jesus, complementados com um discurso sobre bem-aventuranças. Contudo, não apenas bem-aventuranças, mas alguns “ais” bem amargos.

De qualquer modo, podemos observar uma incompletude humana nos tex tos. E nessa incompletude estão a frustração e a desgraça de uma vida que pensa apenas no aqui e agora. Existe sempre uma falência daquilo que aparenta ser esperança advinda das mãos humanas: confiar nas próprias forças humanas, no próprio coração, na riqueza, na alegria terrena, nos elogios que inebriam.

A esperança humana é sempre extra-humana, sempre de fora. Desse modo, todas as vezes que utilizamos a lógica humana para tentar compreender Deus e sua obra, falhamos! Os textos bíblicos para este 6º Domingo após Epifania nos mostram isso. Compreender essa contradição e também a incapacidade humana de entendimento é questão de vida ou morte.

2 Exegese

Antes de tudo vos entreguei o que também recebi; que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e ressuscitou ao ter ceiro dia, segundo as Escrituras (1Co 15.3-4).

Capital da província da Acaia, Corinto era uma cidade com ares cosmo politas. Refundada em 44 a.C., havia sido destruída pouco mais de um século antes. A comunidade cristã dali surge em torno da metade do primeiro século d.C. A cultura da cidade, que é diversa e receptiva, também se percebe dentro da comunidade. A comunidade era formada por cristãos advindos do mundo judaico e gentílico, por pobres e ricos. Enfim uma comunidade normal.

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Ricardo Brosowski

Podemos dizer que o capítulo 15 é o ponto alto de toda essa carta. Schnelle (2010, p. 274-275) afirma que “Paulo desenvolve aqui, a partir do credo da Sexta -Feira Santa e da Páscoa, os eventos finais na parúsia do Senhor”. É interessante notar que há uma ordem lógica nesse capítulo (v. 3-5): Morreu, como dizem as Escrituras; foi sepultado; ressuscitou, como dizem as Escrituras; apareceu a alguns discípulos. A morte seguida de sepultamento é algo corriqueiro. Agora, existe uma enorme anormalidade na ressurreição e reaparecimento aos outros. Contudo, negar a ressurreição de Jesus possui implicações para a vida de uma comunidade.

V. 12-13: A fé cristã estabelece toda a sua tradição sobre a premissa básica da ressurreição de Cristo Jesus dentre os mortos. Alguns adversários de Paulo afirmavam o contrário. Paulo utiliza-se de uma argumentação lógica que quer apontar justamente para a necessidade de não poder existir uma contradição desse porte. Ora, se não existe ressurreição dos mortos, Cristo não ressuscitou. Pode-se pensar quase num silogismo:

– É proclamado que Cristo foi ressuscitado dos mortos (Premissa 1)

– Não existe ressurreição dos mortos (Premissa 2) – Então a conclusão óbvia é que Cristo não pode ter ressuscitado e a proclamação é de conteúdo mentiroso.

V. 14-15: Afirmar a não ressurreição traz implicações importantes para a vida: a pregação e a fé tornam-se vazias. A pregação e a fé ainda podem existir, mas sem a ressurreição, elas se tornaram vazias de conteúdo, vãs, tolas e nulas. Quando se nega a ressurreição, a letra da canção “Alagados” dos Paralamas do Sucesso pode fazer sentido: “A arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê”. Mais ou menos assim são a fé e a pregação cristã sem a ressurreição.

Além disso, há um juízo mentiroso contra Deus. Existe um caráter de blas fêmia em afirmar contra Deus, que ele fez uma coisa que ele não fez.

V. 16: Seguindo a lógica dos v. 12-13, Boor (2004, p. 244) afirma que, nesse versículo, em especial, Paulo aponta para a insensatez de seus opositores: “Simplesmente não se pode negar a ressurreição dos mortos e confessar a ressur reição de Jesus numa mesma frase”.

V. 17-19: Além do vazio da pregação e da fé quando se exclui a ressurreição, Paulo ainda aponta para uma consequência que atinge o ser humano em cheio. Além se serem vazias a fé e a pregação: “Ainda permaneceis em vossos pecados”. Não há um elixir contra o pecado, que o faz desaparecer. Existe um mediador que assume a culpa de nosso pecado. Nesse ponto vemos que existe algo muito relacional. “Todo o fardo de nosso pecado ainda pesa sobre mim se a gélida morte de Jesus não puder mais me oferecer essa graça redentora” (Boor, 2004, p. 244).

Desse modo, não apenas os que creem agora, como aqueles que creram e já dormem estão perdidos. Se a esperança de vida eterna e vida após a morte é desfeita pela não efetivação da ressurreição, nada resta. Se em Cristo, ao morrer, as pessoas depositavam sua fé e esperança de um novo viver, não pode ocorrer por não haver ressurreição dos mortos, então a única coisa que pode sobrar aos que ainda tentam vislumbrar alguma esperança é o desespero diante da caminhada que leva ao nada. Se nada resta além da desesperança, então o ser humano é digno apenas de pena. O conceito de desesperança que se tem em mente é a ideia de

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6º Domingo após Epifania

uma “doença” própria do ser humano quando percebe que não consegue realizar -se a si mesmo, nem mesmo possui algo que possa se firmar para realizar em suas relações e desejos. Isso ocorre pela finitude, insuficiência e desequilíbrio. De sesperança é a vivência da morte do eu – isso na imanência e na transcendência.

V. 20 – Esse versículo, na maior parte das Bíblias, se apresenta numa perícope separada. O que podemos perceber aqui é que Paulo expressa em seu es crito a ideia de que a realidade não pode ser compreendida pelos pensamentos humanos. Pelo contrário, a realidade está além daquilo que o ser humano conse gue compreender como sendo verdadeiro pelos seus sentidos e sua racionalidade. Jesus Cristo é o primeiro a ressuscitar para nunca mais morrer. A ressurreição humana está fiada nessa certeza.

O termo básico dessa perícope é ressurreição (anastasis). Não apenas um ressurgir da alma imortal mediante a morte do corpo carnal, mas uma ressurreição completa. Os credos antigos afirmam isto: Credo apostólico: “creio... na ressurreição do corpo e na vida eterna!”. Credo Niceno: “Confesso... e espero a ressurreição dos mortos e a vida eterna!”. Credo Atanasiano: “À sua chegada todos os homens devem ressuscitar com seus corpos e vão prestar contas de seus próprios atos”.

A ressurreição mexe com a igreja até hoje. Ainda hoje existem tendências de espiritualização que desprezam o corpo. Também há uma valorização do corpo tão grande, no aqui e agora, que se esquece da ressurreição. Em ambos os casos há uma descaracterização da fé na ressurreição.

3 Meditação

A ideia de que a morte é certa alimenta o medo humano como nenhum outro tema. Faz-se de tudo para evitar a morte. Existe uma tentativa de negar a existência da morte (recomenda-se a leitura do livro “Negação da morte”, de Ernest Becker). A ideia de evitar a morte se dá, em boa medida, pelo desconheci mento do que ela é e do que ocorre durante e após ela. Vemos que a tentativa de negar a mortalidade é algo que está em voga no cotidiano humano. Contudo, essa negação se dá em tentativas de vida eterna no aqui e agora. Academias cheias, remédios cada dia mais avançados, cremes de rejuvenescimento, criogênese etc. Nesse contexto, o maior atrativo que a igreja cristã pode oferecer à sociedade é a ideia de ressurreição. A esperança da ressurreição baseia-se no conteúdo da obra de Jesus Cristo: se ele ressuscitou, é certo que também ressuscitaremos. Isso encontrou algumas oposições do mundo judaico-helênico. No mundo grego era comum a concepção de que o corpo morreria e a alma ficaria livre para efetivar a participação no eterno. Marco Aurélio (filósofo e imperador romano do séc. II), por exemplo, dizia que “a morte liberta a nossa alma, pois o corpo é sua prisão”. Platão, em seu diálogo “Fedon”, que narra as últimas horas de vida de Sócrates, trata do tema imortalidade da alma, e talvez a pergunta que baseia todo o escrito gira em torno do destino da alma após a morte. Para Platão, a alma subsiste à morte corporal. Inclusive a alma já existia antes mesmo do nascimento, o que vêm a fazer parte de seu mundo das ideias e da possibilidade

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6º Domingo após Epifania

do conhecimento como reminiscência. Percebe-se uma apreciação pela alma e um desprezo ao corpo.

Essa dicotomia é combatida por Paulo. O ser humano inteiro morre (corpo e alma) e inteiro ressuscita. Essa mensagem de ressurreição do corpo, como a cristandade confessa, serve de consolo para aqueles que perderam alguém (talvez em tempos de Covid-19, como o que vivenciamos agora, a palavra da ressurrei ção ganhe contornos ainda mais importantes).

Porém, quando falamos sobre a ressurreição e sua realidade, em muitos mo mentos, pode parecer que essa mensagem esteja meio distante da realidade em que vivemos. A mesma dificuldade que os gregos tinham para compreender o todo da ressurreição, aqueles que vivenciam o dia de hoje também têm, justamente pela realidade caótica que a morte coloca em frente ao ser humano cotidianamente.

Joseph Ratzinger (2011, p. 217-218), escreve em sua obra “Jesus de Nazaré”, que, mesmo que se abstenha a ideia de ressurreição de toda a tradição e ética humanas, a fé cristã ainda terá muito a contribuir na visão sobre Deus e sobre o ser humano, sobre como as coisas são e como deveriam ser. Contudo a fé cristã está morta, é apenas mais uma filosofia de vida, quando suprimimos a ideia de ressurreição. Jesus se torna uma personagem falida e que, mesmo com sua gran deza, permanece numa dimensão puramente humana. E quando isso ocorre, a sua mensagem é apenas considerada quando convence o ouvinte, quando sua men sagem é aprovada pela racionalidade limitada pessoal humana, ou pior, quando a mensagem é útil para alguém.

Interessante notar, nesse momento, que o apóstolo Paulo faz uma relação entre a ressurreição de Jesus e a libertação dos pecados. Desse modo, sempre se deve dizer que negar a ressurreição é tornar a fé e a pregação cristãs nulas e va zias. Esse vazio leva o ser humano a uma completa apatia, tédio generalizado e uma alienação daquilo que deveria ser a vivência cristã no dia a dia.

Devemos sempre lembrar que na fé cristã o ser humano é visto como uma unidade. Quando confessamos que cremos na ressurreição do corpo, estamos re afirmando a ideia da unidade humana. Não podemos crer, como os gregos, que o corpo é mau e a alma é boa. Com isso precisamos afirmar que ao morrer morre a totalidade humana, e que ao ressuscitar, ressuscita a totalidade humana. A ressur reição de Jesus Cristo, que fundamenta esperançosamente a de todos os humanos, não é uma ressurreição paranormal, ou de uma centelha divina que se unirá ao eterno. Mas sim uma ressurreição total, com corpo e tudo. A ressurreição é uma realidade que abarca o ser humano por inteiro.

Abrir mão da ressurreição de Jesus Cristo é abrir mão da história da sal vação como um todo. Afinal de contas, Cristo venceu a morte, bendita a nossa sorte. Um novo dia nos alumia. A fé cristã não pode ser apenas uma filosofia de vida. Ela é uma certeza que contradiz a razão humana, e nessa louca contradição oferece salvação.

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6º Domingo após Epifania

4 Imagens para a prédica

“Conhecer a Cristo significa conhecer seus benefícios” (F. Melanchthon). Ainda não se vivencia o período da Paixão e Páscoa, embora o texto de nossa perícope seja tradicionalmente usado para a Páscoa. No período da Epifania também lembramos a pessoa de Jesus Cristo. Por isso pode ser cabível a pergunta: Quem é Cristo? Quais são esses seus benefícios?

Muito se tem falado de Jesus Cristo na atualidade. E em um mundo onde não se tem mais clareza sobre quem foi Jesus ou qual foi sua obra, perguntar sobre quem foi Jesus Cristo, buscando retomar das Escrituras os seus maiores benefícios pode ser algo extremamente esclarecedor.

Pode-se começar expondo algumas afirmações absurdas feitas hoje em dia sobre a pessoa de Jesus (existem inúmeras na internet – frases escritas ou até mesmo em vídeos). Ou, caso o pregador tenha um pouco mais de coragem – e dependendo do contexto, pode-se perguntar para a própria comunidade reunida: quem é Jesus? Respostas muito interessantes – quiçá assustadoras, podem surgir. A partir dessas respostas pode-se estruturar uma pregação que aponte para os benefícios de Jesus Cristo oferecidos a nós como: a esperança, o perdão dos pecados e a ressurreição completa do ser humano.

5 Subsídio litúrgico

Confissão de pecados: é importante que seja lembrado que a ressurreição de Cristo é a consumação do perdão dos nossos pecados. Se Cristo não houvesse ressuscitado, ainda estaríamos perdidos em nossos pecados. Esse pode ser um momento interessante para o reconhecimento da fraqueza humana, não apenas em pensamento impuro, palavra e ação, mas também fraqueza de compreensão do que Cristo fez. Sempre podemos pedir perdão por não compreendermos a completude dos benefícios que a obra de Cristo nos gera.

Bibliografia

BOOR, Werner de. Carta aos Coríntios. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2004.

RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011.

SCHNELLE, Udo. Paulo: Vida e Pensamento. Santo André: Academia Cristã, 2010.

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6º Domingo após Epifania

7º DOMINGO APÓS EPIFANIA

1 Introdução

PRÉDICA: LUCAS 6.27-38

GÊNESIS 45.3-11,15

1 CORÍNTIOS 15.35-38,42-50

Dois preceitos básicos para amar

A partir do capítulo 6, Lucas retrata os discursos de Jesus Cristo voltados a ensinar a grande multidão. Ele inicia dizendo: Felizes vocês, os pobres e Ai de vocês, ricos. Em Lucas 6.17-26 há o início desse discurso no assim chamado ser mão da planície, quando Jesus desce da montanha, ao contrário de Mateus, que sobe o monte e proclama as nove bem-aventuranças no sermão do monte.

A partir de Lucas 6.27, Jesus se dirige a todas as pessoas que o escutam, a multidão de pessoas pobres e doentes (6.17-19). Quando Lucas transmite as palavras de Jesus, provavelmente ele se refere ao seu contexto comunitário, onde havia pessoas pobres e ricas, onde predominava a discriminação e o modus ope randi da estrutura do Império Romano. Para Jesus, os pobres e oprimidos podem contar com Deus e, por isso, têm futuro. Jesus não promete riquezas às pessoas sem segurança material e social, tratadas como últimas nos projetos políticos dominantes, às famintas e sofredoras, mas afirma: Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!

Na segunda parte desse discurso de Jesus, a partir de 6.27, predomina a for ma como se deve agir diante de injustiças, maldades, opressões e injúrias. Jesus apresenta duas chaves centrais para esse agir:

1 – Amar os inimigos: Aqui Jesus ressalta a frase: O que vocês desejam que os outros lhes façam, façam vocês a eles (6.31).

2 – Imitar Deus: Procurem ser misericordiosos como o Pai do céu é mi sericordioso (6.36).

O fato é que Jesus ensina seus ouvintes a amar. E ele faz isso por meio de seus discursos, de suas parábolas, curas e milagres, por meio da acolhida, da partilha de alimentos e da convivência com todas as pessoas, sãs e doentes, ricas e pobres, homens e mulheres, adultos e crianças, judeus e estrangeiros etc.

O ensino de Jesus está resumido nesses dois preceitos básicos apresentados nesse texto, que são desdobrados em vários conselhos e dicas para a convivência entre seres humanos e as comunidades cristãs. Em cada versículo é feito um des dobramento sobre esses dois preceitos básicos que nos motivam a amar

100 20 FEV 2022
Cristina

Exegese

O texto do Evangelho de Lucas 6.27-38 foi aprofundado em dois volumes do PL: no v. 20, por Uwe Wegner, e no v. 26, por Oneide Bobsin, ambos com perspectivas bem distintas, que vale a pena consultar. O texto de Lucas 6.27-38 tem paralelo com o trecho do sermão do monte em Mateus 5.38-48; 7.12.

V. 27 – Essa sessão inicia-se com a conjunção adversativa mas eu vos digo, que deve ser relacionada com a quarta bem-aventurança, na qual se fala de perse guição. Amai os inimigos: a lei antiga mandava que se amasse apenas o próximo, isto é, o vizinho, o compatriota (Lv 19.18); porém esse amor “limitado” levava a excluir o inimigo. A nova lei inaugurada pelo Mestre, que vem a ser um precei to evangélico absolutamente singular, fala sobre o amor ao próximo. A palavra grega para amor é agape, que significa o amor destinado até mesmo às pessoas indignas, que esperam recompensa, e que esse amor existe porque a pessoa que deseja amar escolhe ser amorosa para com a outra pessoa com o amor-agape. Jesus fala aos seus ouvintes em fazer o bem aos que os odeiam num contexto de dominação estrangeira pelos romanos. Imaginem como isso soou aos ouvidos do povo judeu que era constantemente explorado e menosprezado.

V. 28 – Falai bem dos que vos maldizem: é o que fez o próprio Jesus em vida e até na morte de cruz. O Mestre ensina que quando os opressores e maldo sos caluniam e maldizem, deve-se orar por eles e bendizer, o que significa nada mais do que falar bem. Isso demonstra o poder que as palavras possuem e o efeito delas sobre nosso próprio organismo. Como fica esse preceito em tempos de fake news, que destroem vidas, carreiras e famílias?

V. 29 – A antiga lei afirmava: Olho por olho, dente por dente (Lv 24.19s; cf. Mt 5.38). A intenção de Jesus não é deixar total liberdade para os malfeitores, opressores, prepotentes, nem recusar à autoridade constituída o poder e a faculdade de opor-se com a força e a justiça a essa espécie de prepotentes. Jesus quer de uma vez, com uma nova atitude de paz e de bem, arrebentar a cadeia do mal; quer tirar do coração o rancor, que é a raiz de toda vingança, e quer ver crescer o amor, que é a semente de todo o bem. Quando houver tentativa de agressão física, Jesus orienta para oferecer a outra face, que em grego é siagon e significa o queixo, ou seja, lugar que normalmente é golpeado em brigas. Aqui Jesus se refere a uma atitude que desarme a outra pessoa e não retribua com a sede de vingança.

V. 30 – Aqui se fala sobre dar ao próximo como atitude concreta do amor. Esse dar deveria ser uma atitude habitual do ser humano, não apenas uma gene rosidade ocasional. É o amor agape que decide em nosso viver se vamos dar ou reter e nos apegar às posses.

V. 31 – Aqui Jesus faz uso da regra de ouro bem conhecida em todo o oriente: Aquilo que quereis que as pessoas lhes façam, façais vós também a elas. Essa regra deve abranger a totalidade da vida. No AT, a lei é anunciada de forma negativa: Não faças aos outros aquilo que não te agrada (Tobias 4.15). Mas o discípulo de Jesus não deve contentar-se em não fazer o mal, deve, ao invés dis

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7º Domingo após Epifania

so, fazer o bem, e todo o bem que deseja para si mesmo. Mais adiante se dirá: A medida com que medirdes, será usada para medir-vos (v. 38).

V. 32-34 – Jesus apresenta três atitudes em que as pessoas devem se supe rar, ou seja, fazer mais e melhor do que os pecadores o fazem:

V. 35-36 – Amai os inimigos, retribuir o mal com bem e emprestar sem cobrar (juros), ser misericordioso. No v. 35 afirma que sereis filhos do Altíssimo. O filho, a filha nasce do amor dos pais. O amor cristão faz-nos nascer como filhos de Deus e, assim, irmãos de Cristo, e se irmãos, também herdeiros do Reino, coerdeiros de Jesus (cf. Rm 8.17). André Chouraqui traduz o versículo 36: Sejam misericordiosos/as como o Pai por “sejam matriciais”, isto é, uterinos. Trata-se do amor que a mãe tem pelo filho que está no útero. Lucas traduz por misericór dia, amor gratuito e total.

V. 37 – Não julgar para não ser jugado. “Julgar”, segundo, a linguagem bíblica, significa declarar culpado e, portanto, digno de castigo. Absolvei e sereis absol vidos – conforme a fórmula da oração do Pai-Nosso que Jesus ensina: Perdoa-nos os pecados, pois também nós perdoamos todos que nos ofenderam (Lc 11.4).

V. 38 – Agir de maneira generosa, e tudo que fizermos de bom grado terá boas consequências na vida. Por isso Jesus motiva seus ouvintes a dar de maneira transbordante, tal que era a referência de uma boa colheita de grão em seu tempo. Com a medida do bem com a qual medirdes... Jesus está pensando não no juízo, mas na esperança, assim como também o apóstolo Paulo exorta os fiéis de Corin to à generosidade, e lembrava-lhes: Quem pouco semeia, pouco também colhe. Quem semeia em profusão, colhe em abundância (2Co 9.6-7). Assim, “medir com a mesma medida” refere-se à abundante misericórdia de Deus e a imitar seu jeito de ser e agir entre nós.

Em resumo, nos v. 27-31 Jesus apresenta as exigências do novo tipo de amor. O amor ao inimigo é o que melhor exprime e realiza a gratuidade do ato de amor, à semelhança do amor de Deus. É o amor que toma a iniciativa, sabe perdoar e transforma o ódio em atos concretos de amor que promove o bem das outras pessoas e para as outras pessoas, sendo o agape uma iniciativa gratuita e generosa que se preocupa em dar o primeiro passo para fazer o bem ao próximo. Os v. 32-35 explicam por que deve ser assim. Jesus chama a atenção para uma atitude puramente natural: qualquer grupo ama e faz o bem àquele que o ama e lhe faz o bem. Contudo, a comunidade cristã deve ir além de uma simples bene volência recíproca! Pois é somente assim que se poderá viver como filhos e filhas daquele que ensina a amar gratuitamente (v. 35), sem fazer acepção de pessoas.

3 Meditação

Amar os inimigos e imitar a Deus! Falar é fácil, mas difícil de praticar. To dos e todas nós já nos deparamos com esse fato e nos perguntamos: mas, quem, de fato, consegue agir assim?

Ainda mais em tempos de rivalidades e polaridades por todos os lados, parece que esse ensinamento de Jesus se torna distante, irreal. E em tempo de pandemia, quantas máscaras caíram, de fato? Com quantas incoerências nos de

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7º Domingo após Epifania

paramos também no meio da comunidade cristã, que deveria ser sal da terra e luz para a humanidade, dando exemplo e seguindo os passos de Jesus?

A verdade é que seguir a Jesus exige radicalidade. Não há meio-termo. Não há “jeitinho”. Diante dele não há espaço para a hipocrisia. O que Deus exige da gente é coerência com o seu modo de agir, é opção e decisão em favor do que promove a vida digna e plena.

A chamada “regra de ouro” do evangelho se inscreve nesse contexto: “Do modo como vocês querem que as pessoas ajam com vocês, ajam também com elas”. O critério não é mais externo ou das coisas. É interior. É espiritual: o critério é a expectativa e o desejo que se tem no coração. É diferente do calculismo comercial. É preciso romper o círculo vicioso da relação calculista: “Eu dou para que você dê”. Só assim Jesus pode mandar (ordenar): Amem os inimigos, façam bem aos que odeiam vocês […] Dá a quem te pedir e a quem tomar o que é teu, não peças de volta […]” (BARROS, Marcelo. Outra forma de amar é possível. Disponível em: <https://cebi.org.br/reflexao-do-evangelho/outra-forma-de-amare-possivel/>).

O que Jesus pretende com seu ensino radical é transformar o sistema, que é injusto e opressor. A novidade de vida apresentada por Jesus aos seus ouvintes vem da sua própria experiência com o Pai-Mãe, que age com justiça, bondade, acolhida, paz e concede seu perdão de maneira amorosa e misericordiosa. Jesus fala a um sistema em que os ricos pisam e maltratam as pessoas pobres. A essas Jesus ensina: não ajam como eles, sejam diferentes, não se vinguem, amem seus inimigos. O amor de Deus por nós nos ensina e admoesta a querer o bem da outa pessoa, independente do que ela tenha feito por mim. O amor de Deus é o agape perfeito que deve reger as relações nas comunidades cristãs, independente de qual conflito houver nas relações humanas, pois, como afirmou Nelson Mandela: “Para odiar, as pessoas precisam aprender. E se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”.

Finalizo esta meditação sobre o texto do evangelho com um texto de Mi chel Quoist, intitulado “Há dois amores somente”:

Há dois amores somente, Senhor, o amor de mim mesmo e o amor de ti e dos ou tros. Cada vez que me amo, é um pouco menos de amor por ti e pelos outros. [...] Todas as injustiças, as amarguras, as humilhações, as mágoas, os ódios, os deses peros, todos os sofrimentos são uma fome insatisfeita, uma fome de amor... assim, construíram os homens [sic], lentamente, egoísmo por egoísmo, um mundo que esmaga homens [sic]. Desperdiçam do teu amor, Senhor. Esta noite, eu te peço que me ajudes a amar. Faze que, por mim e por teus filhos, penetre no mundo o amor verdadeiro. Um pouco, em todos os meios, em todas as sociedades, em todos os sistemas econômicos, em todos os sistemas políticos, em todas as leis, em todos os contratos, em todos os regulamentos. Que ele penetre nos escritórios, nas fábricas, nos bairros, nas casas, nos cinemas, nos bailes. Que ele penetre no coração dos homens [sic] para que não esqueçam que a luta por um mundo melhor é uma luta de amor, a serviço do amor.

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7º Domingo após Epifania

Imagem para a prédica

Reflexão

O que Jesus quer com esse ensinamento? Por acaso ele quer que sejamos cordeiros na mão dos lobos deste mundo? Por acaso Jesus espera que eu seja tolerante com a violência? Será que é isso? Não é! Há duas formas diferentes de entender esse texto. A primeira delas é fazer uma diferenciação entre tolerância passiva e tole rância ativa (Karnal). A passiva seria aquela na qual eu aceito a violência que está sendo feita comigo sem reagir. Se Jesus pensasse nessa tolerância passiva, em vez de dizer: “se te derem um tapa, vira o outro lado para ele bater também”, ele teria dito: “se te derem um tapa, deixa dar até ele te matar”; em vez de dizer “fala bem daquele que fala mal de ti”, ele teria dito: “se falarem mal de ti, deixa falar, falem mal, mas falem de mim”; em vez de Jesus dizer “ora por aquele que te maltrata”, ele teria dito: “deixa que te maltratem, tu mereces”. Na verdade, Jesus não falou isso, ele não falou de uma tolerância passiva. Jesus falou de uma tolerância ativa, ou seja, quando há uma intencionalidade de mudança e transformação na reação proposta. Isso é assim de tal maneira que poderíamos completar as frases de Jesus da seguinte maneira:

– “Faz o bem àquele que te odeia”, a fim de que ele se envergonhe e pare de te odiar.

– “Fala bem daquele que fala mal de ti”, a fim de que ele não tenha motivo de falar mal de ti.

– “Ora por aquele que te maltrata”, a fim de que ele possa ter o coração transformado. – “Se te derem um tapa, vira o outro lado para ele bater também”, a fim de que a pessoa não se ache superiora e dona de tua vida.

– “Se alguém tomar a tua capa, deixe que leve a túnica também”, a fim de que seja percebida a injustiça feita.

– “Dá a qualquer um que te pedir alguma coisa”, a fim de que perceba que todas as coisas vêm de Deus e ele dá por graça.

– “Quando alguém tirar o que é teu, não peça de volta”, a fim de que percebam que Deus é o verdadeiro proprietário de tudo o que vemos e o que não vemos”. (Reflexão sobre o texto da prédica pelo P. Elisandro Rheinheimer. Disponí vel em: <https://www.luteranos.com.br/textos/lucas-6-27-38-7-domingo-aposepifania-24-02-2019>).

Testemunho

Ao meditar nesse evangelho, devo confessar uma coisa que só aprendi depois de velho e de ter sofrido muito. Quem vive o modo de viver a fé como eu, é claro que por menos que queira isso, suscita inimigos políticos e mesmo dentro da mesma comunidade de fé. Uma vez, me assustei porque uma irmã muito amiga me confi denciou que ela tinha levado ao aeroporto uma pessoa da hierarquia. E esse senhor estava lendo um texto meu e sua reação foi: “Se eu pudesse, eu matava com mi nhas próprias mãos esse monge”. Claro que, ao saber disso, me assustei. Na época, nem conhecia o tal cardeal. Mas, fazer o quê? No entanto, mesmo se eu aceitava por causa da missão e do evangelho, ter assim alguém que me quisesse mal, nunca imaginei que isso pudesse ocorrer no plano das relações pessoais.

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7º Domingo após Epifania

Muitas vezes, pensamos não ter inimigos pessoais. De repente, descobrimos que, mesmo perto de nós, há pessoas que nos hostilizam, destratam e, consciente ou inconscientemente, querem nos destruir. Aí, minha experiência é que o sofrimento e mal estar se tornam mais pesados e sofridos. A tendência da gente é querer que todo mundo goste da gente e nos compreenda. É duro ver que a vida não é assim. O Evangelho nos pede para ir além do mal-estar e procurar compreender as razões históricas ou pessoais pelas quais certas pessoas têm sempre de estar atacando e tentando destruir os outros. Devemos ver se nós mesmos provocamos este ódio e em que, mesmo sem querer, fizemos aquelas pessoas sofrerem. Compreender a dor de quem nos agride ajuda a perdoar e a não querer mal, mesmo se temos o direito de nos defender (Marcelo Barros, Outra forma de amar é possível).

5 Subsídios litúrgicos

Acolhida: Em seguida (José) beijou todos os seus irmãos e chorou com eles. E só depois os seus irmãos conseguiram conversar com ele (Gn 45.15). “Não deixe as pessoas te colocarem na tempestade delas. Coloque-as na sua paz.” (Autoria desconhecida)

Oração: Dá-nos a tua paz Dá-nos, Senhor, aquela paz inquieta Que denuncia a paz dos cemitérios E a paz dos lucros fartos. Dá-nos a paz que luta pela paz A paz que nos sacode com a urgência do Reino A paz que nos invade com o vento do Espírito, a rotina e o medo O sossego das praias e a oração de refúgio Paz das armas rotas na derrota das armas A paz do pão, da fome de justiça A paz da liberdade conquistada A paz que se faz nossa sem cercas, nem fronteiras. Que tanto é shalom, como salaam, perdão, retorno, abraço. Dá-nos a tua paz! Essa paz marginal que soletra em Belém E agoniza na cruz E triunfa na páscoa Dá-nos, Senhor, aquela paz inquieta que não nos deixa em paz! (Pedro Casaldáliga)

Música: Te ofereço paz! Te ofereço paz! Te ofereço amor! Te ofereço amizade! Ouço tuas necessidades Vejo tua beleza Sinto os teus sentimentos

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7º Domingo após Epifania

Minha sabedoria flui De uma fonte superior E reconheço esta fonte em ti Trabalhemos juntos, trabalhemos juntas... (Válter Pini)

Veja a coreografia da música: <https://www.youtube.com/watch? v=jyiFUQN3F04>.

Envio:

Nós te seguiremos, Senhor Jesus Mas, para que te sigamos, chama-nos Pois, sem ti, ninguém caminha. Tu és, com efeito, O caminho A verdade E a vida. Recebe-nos Como estrada acolhedora, Acalma-nos Como só a verdade pode acalmar. Vivifica-nos Porque só tu és a Vida. (Ambrósio, 340-397)

Bibliografia

BOCCALI, Giovanni; LANCELLOTTI, Ângelo. Comentário ao Evangelho de Lucas. Petrópolis: Vozes, 1979. MORRIS, Leon L. O Evangelho de Lucas. Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 1974.

ÚLTIMO DOMINGO APÓS EPIFANIA

PRÉDICA: ÊXODO 34.29-35

2 CORÍNTIOS 3.12 – 4.2

LUCAS 9.28-36(37-43) Pesquise: Proclamar Libertação, v. 25, p. 123ss; v. 37, p. 87ss www.luteranos.com.br (busca por Êxodo 34.29-35)

106
7º Domingo após Epifania

PRÉDICA: JOEL 2.1-2,12-17

MATEUS 6.1-6,16-21

2 CORÍNTIOS 5.20b – 6.10

QUARTA-FEIRA DE CINZAS

1 Introdução

Cinzas

Sim, o Senhor se compadece

A tradição das cinzas como sinal de penitência remonta à Bíblia Hebraica. No Livro de Jonas (3.5-8), o ritual é descrito com detalhes. Em sinal de arrepen dimento, o rei de Nínive proclama um jejum. Ele e as pessoas em Nínive rasgam as vestimentas bonitas, vestem-se de panos de saco e sentam-se sobre cinzas. Até os animais domésticos devem seguir esse rito.

No Primeiro Livro dos Reis (21.27) ocorre um rito semelhante: em sinal de arrependimento, o rei Acabe rasga suas vestes, cobre-se de pano de saco, je jua e dorme sobre panos de saco. Aqui, porém, as cinzas não são mencionadas. Também Jó (1.20), após perder tudo o que tinha, rasga seu manto, raspa a cabeça e se lança em terra. Mais adiante (2.8), senta-se em cinzas. Aqui não se trata de arrependimento, mas de uma espécie de luto pelo que se perdeu.

A igreja assumiu essa tradição. A partir do século VII, já se conhece a Quarta-Feira de Cinzas como o início da Quaresma, o período de jejum que antecede a Páscoa. É tempo de penitência, em preparação à festa da ressurreição.

Na Quarta-Feira de Cinzas, os penitentes são vestidos com roupas peni tenciais, cobertos de cinzas. A partir do século X, passa-se a consagrar as cinzas. Mais tarde, em torno de 1090, clérigos e leigos são marcados na testa com uma cruz feita de cinzas obtidas de ramos guardados desde o Domingo de Ramos do ano anterior.

O tempo de penitência e de jejum durará quarenta dias, a contar da Quarta -Feira de Cinzas, terminando no Sábado de Aleluia. Não se contam os domingos, pois cada um deles lembra a ressurreição de Jesus. Não se pode jejuar no dia da maior alegria cristã.

Pela tradição israelita, assumida pelos cristãos, o domingo começa às 18h de sábado, estendendo-se até às 18h de domingo. Assim, o jejum é suspenso no sábado à noite e retomado ao anoitecer de domingo. Não há, pois, nada de errado em alegrar-se e festejar no sábado à noite e no dia de domingo.

Por último, vale lembrar o significado do jejum. Não se trata de dieta para emagrecer ou desintoxicar, ainda que isso seja um benefício adicional. Trata-se mesmo de deixar de comer algo que se irá dar para quem nada tem de comer. O que eu não como beneficiará alguém que passa fome constantemente.

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02 MAR 2022

É interessante que, até hoje, algumas famílias negras fazem churrasco na Sexta-Feira Santa. É que, no passado, senhores brancos cristãos deixavam de comer carne naquele dia e a davam a seus escravos, que, então, podiam alegrar-se com aquele presente, fruto do jejum.

Os textos

No que diz respeito à relação entre os textos previstos para a celebração desta data, percebo o seguinte: o texto previsto para a pregação, Joel 2.1-2,12-17, chama à conversão e conclama a um jejum com a intenção de aplacar a ira do Senhor e alcançar sua misericórdia. O evangelho do dia, Mateus 6. 1-6,16-21, nos fala da prática do crente em dar esmolas, na oração e na prática do jejum, que não devem servir à exaltação e à exibição do praticante, mas devem ser praticadas sem ostentação e em segredo. Em 2 Coríntios 5.20 – 6.10, Paulo já não fala em jejum, mas nas atitudes que o crente deve assumir após se reconciliar com Deus e feito justiça de Deus em Jesus Cristo. Jejum, pois, sem exaltação própria ou soberba, deve levar a novas atitudes na piedade do cristão.

2 Joel e o texto de pregação

Joel

Pouco ou quase nada sabemos desse personagem. Diferente de outros li vros de profetas, o cabeçalho do livro não traz mais do que a nota: Palavra do Senhor que foi dirigida a Joel, filho de Petuel (Jl 1.1). Não há qualquer indicação histórica, também não no interior do livro. Hans Walter Wolff, num amplo estudo sobre o autor e a época, em seu comentário, conclui, após longo estudo literário de livro, que a comunidade de fé intacta que transparece no texto nos aponta a época após Esdras e Neemias, portanto para a primeira metade do século IV a.C.

Por sua linguagem e seu conteúdo, o livro de Joel encontra-se no limiar entre escatologia profética e apocalíptica.

O texto de pregação

V. 1-2 [3-11]) – A passagem inicia com uma ordem para tocar em Sião o shofar, a trombeta de chifre de carneiro, comumente utilizada para chamar a atenção para um perigo iminente. Sião, o santo monte de Deus, está localizado em Jerusalém, de onde deve partir o alarme para toda a população da terra.

Por que o alarme? Porque o dia de Javé se aproxima!

O conceito do dia de Javé é, em sua origem, um conceito contra os inimi gos de Israel. Provém do período tribal e se situa no contexto da Guerra Santa. O dia de Javé é o dia em que o Senhor se volta contra os inimigos de seu povo, destroçando-os.

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Contudo, na profecia clássica, o conceito se altera, passando a significar praticamente o seu oposto. O dia de Javé é agora o dia em que o Senhor se volta contra o próprio povo, ou melhor, contra o seu segmento governante. Isso já pode ser percebido em Amós:

Ai de vós que desejais o Dia do Senhor! Para que desejais vós o Dia do Senhor? É dia de trevas e não de luz. Como se um homem fugisse de diante do leão, e se encontrasse com ele o urso; ou como se, entrando em casa, encostando a mão à parede, fosse mordido de uma cobra. Não será, pois, o Dia do Senhor trevas e não luz? Não será completa escuridão, sem nenhuma claridade? (Am 5.18-20).

Também em Sofonias, entre outros:

Naquele dia, não te envergonharás de nenhuma das tuas obras, com que te rebe laste contra mim; então tirarei do meio de ti os que exultam na sua soberba, e tu nunca mais te ensoberbecerás no meu santo monte. Mas deixarei no meio de ti um povo humilhado e fraco (ani vadal), que confia no nome do Senhor (Sf 3.11-12).

Também é assim em Joel. O dia de Javé é dia de escuridade e densas trevas (v. 2) em que surge um povo grande e poderoso. Que esse povo é assustador e avassalador que vai destruindo tudo só se depreende do trecho seguinte (v. 3-11), totalmente suprimido por quem propôs esse texto para a pregação. Há que fazer menção a isso na pregação, ainda que não se leia a parte. Contudo, estranho esse recorte, que parece ter sido feito por quem não conhece exegese (!).

V. 12-14 – Em meio a esse terror da destruição, o Senhor mesmo fala, chaman do à conversão (v. 12). Tal conversão não deve ocorrer com cinzas e pano de saco, mas deve ser uma conversão de todo o coração, com jejum, choro e pranto. Embora jejum e lamento ainda representem rito, o que Deus quer é a transformação do fiel. É preciso rasgar o coração, e não as vestes! Mais uma vez um não ao rito! Um sim ao interior, ao íntimo! É necessário converter-se totalmente ao Senhor. É a única possibilidade de escapar à catástrofe. Por quê? Porque o Senhor é bom! Porque é misericordioso, compassivo, tardio em irar-se, grande em benignidade. Os muitos adjetivos quase não bastam para explicar o amor de Deus pelo pecador!

E aí o texto afirma algo incompreensível em grande medida para nós: Deus se arrepende! O tema é recorrente no Antigo Testamento. Cito apenas Jonas 3.10, o que tanto irrita o profetinha. Mas há também Jeremias 26.3,13; Amós 7.3 e Gênesis 6.6, entre outros.

Sim, a palavra de Deus volta atrás diante do arrependimento do pecador e da pecadora. A suspenção do castigo vai além, até a morte de seu Filho, por nós!

Por isso, “quem sabe?”, talvez, diante de nosso arrependimento, o Senhor suspenda o seu juízo. De fato, não há certeza de que o jejum de arrependimento tenha sucesso. Porém há esperança!

V. 15-17 – Retoma-se a convocação através da trombeta tocada em Sião, agora promulgando um jejum e proclamando uma assembleia solene. O povo

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Quarta-Feira de Cinzas

deve reunir-se para jejum e culto, do maior ao menor, do mais velho até o recém -nascido. Ninguém deve faltar, nem mesmo o noivo e a noiva recém-casados!

Nessa assembleia solene toda essa congregação deve ser santificada, abs tendo-se de trabalho, comida e sexo (Wolff). À frente dela, no interior do templo, entre o pórtico e o altar, os sacerdotes, os ministros do Senhor, são chamados a chorar e a orar, implorando: Poupa o teu povo, Senhor! Não permitas que a tua herança – aqueles que são teus – passem vergonha diante das nações, que es carnecerão deles e desfazendo de seu Deus, dizendo: “Onde está o seu Deus?”.

Nosso recorte termina em suspense. Qual será a resposta do Senhor diante de tanta comoção, assembleia solene, consagração do povo, do maior ao menor, intercessão de sacerdotes?

Isso só será dito no versículo seguinte, v. 18. Sim, o Senhor se compadece. O “talvez” se concretiza. O povo do Senhor está salvo!

2 Refletindo em direção à prédica

Escrevo em meio à pandemia da Covid-19, um inimigo devastador, composto não por um exército sanguinário, mas por um vírus temível. Hoje, 15 de ju nho de 2021, atingimos as catastróficas marcas de 490.696 mortes no país, desde seu início, e 2.468 óbitos apenas no dia de hoje. Ocorreram hoje 80.609 novos ca sos da doença, e o total de infecções chega a 17.533.221. Além disso, anuncia-se a chegada de uma terceira onda de agravamento da pandemia. O governo federal ainda reporta 15.944.646 pessoas recuperadas da Covid-19 e 1.097.879 pacientes em acompanhamento.

Desde quando começou a pandemia no Brasil, em fins de fevereiro de 2020, autoridades sanitárias alertaram para a necessidade de medidas preventivas contra a doença, como uso de máscaras, distanciamento social e principalmente a utilização de vacinas já fabricadas na Europa e na China. Autoridades políticas, porém, minimizaram o fato, dizendo que se tratava apenas de uma “gripezinha” e que, sim, “algumas pessoas iriam morrer”, mas que tudo passaria rapidamente. Tais autoridades também evitaram ostensivamente as medidas propostas e deixa ram, inclusive, de comprar as vacinas oferecidas no início.

A trombeta havia soado, dando o alerta, mas quem devia tomar a frente inclusive zombava da maneira como pessoas morriam.

Pessoas sensatas levaram a sério a proposta das autoridades sanitárias e, junto a isso, uniram-se em oração, pedindo que Deus fizesse passar a pandemia, intercedendo pelas pessoas infectadas e buscando consolar as pessoas enlutadas por tantos familiares queridos cuja vida fora ceifada pela doença. Foram assem bleias congregadas na fé que, além de orar, buscaram e ainda buscam exercer a solidariedade, arrecadando alimentos e, inclusive, dinheiro para pagar as despe sas médicas que se avultavam.

Catástrofes como secas prolongadas, enchentes desmedidas, brutais aci dentes aéreos, entre outras, como essa pandemia, são tidas por muitas pessoas como castigo divino, consequência do pecado de muita gente, senão da humani

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Quarta-Feira de Cinzas

dade toda. Não creio nisso. Muito menos consigo imaginar que Deus faça vir tais castigos indistintamente sobre justos e injustos, sobre bons e maus.

Sim, há catástrofes que são provocadas pelo próprio ser humano no mau trato da natureza ou em conflitos sociais. Porém isso não se trata de males mandados por Deus para nos castigar. Sim, o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna (Rm 6.23).

Não se trata de buscar culpados, a fim de execrá-los ou até mesmo de linchá-los. Trata-se de buscar o Senhor e clamar por sua infinita bondade e mise ricórdia que nos livre do mal!

Com base nessas reflexões, proponho duas possibilidades para a pregação: 1) Abordar o texto de Joel enfatizando o aspecto da penitência diante de uma catástrofe. Importante seria relacionar a ideia de catástrofe com a situação de pandemia que estamos vivenciando (que talvez já tenha passado por ocasião da pregação) e salientar a importância de oração e súplica por parte da comu nidade reunida. O jejum como parte da penitência – não como dieta ou regime alimentar – deveria ser ressaltado, relacionando-o com a Quarta-Feira de Cinzas e com a Quaresma. Aqui se poderia relacionar o texto de Joel com o Evangelho de Mateus 6.1-6,16-21 e a epístola de 2 Coríntios 5.20b – 6.10. O acento principal da pregação deveria recair sobre a fé na benignidade e na misericórdia de Deus – não como certeza de uma salvação mágica, mas na perspectiva do “talvez”, da esperança de que Deus nos conceda o fim do mal que nos aflige.

2) Partindo do texto de Joel, abordar o tema da Quarta-Feira de Cinzas, apontando para o jejum na Quaresma como penitência – não como flagelação de si próprio, buscando suscitar a dó ou a pena do Senhor, mas como abstinência do muito em benefício do muito pouco ou quase nada de outras pessoas, como descrito no início deste auxílio homilético.

3 Subsídio litúrgico

Como subsídio litúrgico, proponho apenas o poema de Gregório de Matos (1636-1696):

Pequei, Senhor

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado Da vossa alta clemência me despido; Antes, quanto mais tenho delinquido, Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido: Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado.

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Se uma ovelha perdida já cobrada, Glória tal e prazer tão repentino Vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada, Cobrai-a; e não queirais, Pastor Divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória

Bibliografia

MENDES FILHO, José Ribamar. O arrependimento de Deus no Antigo Testa mento: um estudo do verbo Nacham. 2017. Dissertação (Mestrado) – Facul dades EST, São Leopoldo, 2017.

NIEWÖHNER, Stefani. O “dia de Javé” em Sofonias: uma leitura intertextual. In: Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST, São Leopoldo, 2016.

WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton 2. Joel und Amos. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1969. (Biblischer Kommentar Altes Testament, v. XIV/5).

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Quarta-Feira
de Cinzas

PRÉDICA: ROMANOS 10.8b-13

DEUTERONÔMIO 26.1-11 LUCAS 4.1-13

1º DOMINGO NA QUARESMA

É preciso que seja de coração

1 Introdução

Iniciamos o tempo da Quaresma. O número 40 tem grande significado nas Escrituras: 40 dias de dilúvio, 40 dias que Moisés e Elias ficaram no monte, 40 anos de peregrinação do povo no deserto, Jesus foi tentado por 40 dias antes de começar o ministério. É período de provação e de conhecer o que realmente há no coração: arrepender-se e abandonar o pecado e andar em novidade de vida com o Senhor. É tempo de lançar o olhar para a cruz de Jesus e tudo o que fez para a nossa salvação. A cruz é síntese e símbolo de todo o evangelho, mas também aponta para a autenticidade da verdadeira vida cristã. Quaresma é um tempo de parada para uma profunda reflexão à luz da palavra de Deus. Que nós e os membros de nossas comunidades sejam iluminados por essa palavra e transformados pelo ressurreto, nosso único e necessário Salvador.

A leitura de Deuteronômio 26.1-11 trata dos primeiros frutos da terra. De pois de morar algum tempo na terra prometida, cada israelita deveria levar a primeira parte de todas as colheitas ao lugar de adoração. A apresentação da oferta de gratidão pelas colheitas era acompanhada de uma confissão de fé (v. 5-9), na qual se recordavam os grandes feitos do Senhor desde a saída do Egito até a en trada na terra prometida.

A leitura de Lucas 4.1-13 trata da tentação de Jesus. Sua fidelidade a Deus passa por dura provação. A permanência de Jesus no deserto durante 40 dias sem comer e as provas às quais é submetido recordam as experiências do povo de Is rael no deserto quando saiu do Egito. As citações bíblicas dos v. 4 a 10 referem-se àquela experiência histórica. Israel fracassou na prova, porém Jesus se manteve fiel à sua missão. Vale destacar que por três vezes Jesus responde com citações de Deuteronômio. Em sua missão ele não seguirá o desejo dele ou das pessoas, mas somente a vontade de Deus.

2 Exegese

O texto proposto para a pregação encontra-se num contexto amplo que tra ta da descrença de Israel. Os capítulos 9 a 11 abordam o tema da relação do povo de Israel com o plano de salvação. Israel, em sua maior parte, não aceitou Jesus como seu Messias. No contexto mais próximo, Paulo afirma que Israel tem zelo por Deus (10.2), quer dizer, busca por Deus, mas lhe falta entendimento de que

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Astor Albrecht

a salvação não é obtida pelo cumprimento da lei (obras), mas pela fé em Cristo (10.4). Não temos que “escalar os degraus dos céus” para receber a salvação. Deus a trouxe até nós em Cristo Jesus (10.6). Em suma, Israel, em sua maioria, não aceitou o evangelho porque procurava ser salvo por meio de ações e não por meio da fé. Mas o evangelho anuncia que a maneira como a pessoa é aceita por Deus é a mesma para judeus e não judeus, a saber, pela fé em Cristo. Vejamos agora com mais atenção os versículos que fazem parte do texto para a pregação.

V. 8 – O texto para a pregação inicia no final do v. 8, mas é preciso conhecer os versículos anteriores. Os versículos 6 a 8 são de Deuteronômio 32.12-14, onde Moisés explica ao povo de Israel que a lei era fácil de entender e de cumprir. Paulo aplica essa passagem ao evangelho, afirmando que este está ao alcance de todas as pessoas. Na pessoa de Jesus, Deus superou, por sua iniciativa, o abismo entre céu e terra (v. 6). Cristo está presente como vitorioso sobre o mundo da perdi ção (v. 7) e a soberania da sua justiça é anunciada para todas as pessoas (v. 8). Essa proclamação é chamada de “palavra da fé”, ou seja, ela não é condição prévia para a salvação, pois tudo o que é preciso para a salvação já foi feito por Cristo Jesus. “As coisas estão feitas e só devemos tomar ou deixá-las” (BARCLAY, 1983, p. 150).

V. 9 – Entre o ouvir a proclamação do evangelho e a salvação há um “se”. A salvação está aqui, presente, ao nosso alcance. Cada pessoa é chamada a aceitá-la pela fé que vem do coração e proclamar Cristo como Senhor. Quando o senhorio de Jesus se faz presente na vida, a pessoa não fica calada guardando isso para si mes ma, mas ela faz uma confissão. Em caso negativo, essa confissão seria um “não” ou, quem sabe, até uma blasfêmia. Mas quando essa confissão é de reverência, “Jesus é Senhor”, então acontece um entregar-se a ele como servo e serva (Rm 6.16). Essa confissão não é uma palavra sem vida e força, mas cremos “que Deus o ressuscitou dentre os mortos”. A fé salvadora é fé na ressurreição, se não fosse assim, ela seria vã (1Co 15.17). A pessoa cristã não só crê que Jesus viveu, mas que ele vive. Não só deve saber a respeito de Cristo, mas deve conhecer o Cristo. Não está estudando um personagem histórico, mas está vivendo com uma presença real.

V. 10 – O comentário bíblico de Champlin faz, neste versículo, uma crítica à tradução da Bíblia na versão Almeida Atualizada, que traduz aqui “a respeito da salvação”, afirmando que isso não é uma tradução, mas sim uma interpretação. Afirma que o original grego não diz isso, pois a proposição grega “eis” não tem esse sentido (CHAMPLIN, 1995, p. 776). A Nova Versão Internacional traduz assim: com a boca se confessa para a salvação. Melhor a Nova Tradução na Linguagem de Hoje: falamos com a boca e assim somos salvos. Coração e lábios devem estar unidos: não há divisão entre crer e confessar. Não se pode ocultar a fé e nem encenar a confissão. A pessoa cristã que crê em seu coração confessa a sua fé com os lábios. Não somente Deus, mas também o próximo deve saber que somos pessoas cristãs. Declaramos para todas as pessoas de que lado estamos.

V. 11-12 – Cada pessoa pode ter esperança, pois Deus não faz distinção entre as pessoas. Aqui temos uma relação com Efésios 2.14-18: a lei criara uma pa rede de separação entre judeus e outros povos. Mas quando Cristo cumpriu a lei e

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se tornou “Senhor de todos”, caiu por terra a diferença entre judeus e gentios. Em sua riqueza, o Senhor não deixará de mãos vazias as pessoas que o invocarem.

V. 13 – O verbo “invocar” não se encontra numa forma de ação contínua, mas designa o ato isolado. Portanto, nesse momento, Paulo tem em vista menos o “ser” cristão e mais o “tornar-se” cristão (POHL, 1999, p. 102). É na invocação do nome do Senhor que se concretizam de forma prática os v. 9 e 10.

3 Meditação

É preciso que seja de coração. O texto bíblico declara: e, em teu coração, creres (v. 9) e com o coração se crê (v. 10). Não se trata de um mero sentimento, mas sim da essência da pessoa. E é assim porque as aparências de nada servem diante de Deus. Será que a mensagem pregada nos dias de hoje nas mais diversas redes sociais e templos almeja despertar o coração para buscar os benefícios de Deus no lugar de Deus mesmo? Uma fé que faz de Deus um meio para alcançar um fim? Uma fé que já não trata mais de perdão dos pecados e de salvação? Uma fé que relativiza todas as coisas e já não busca mais ser inteiramente do Senhor? Isso certamente se reflete na prática da vida, no andar com Cristo. Muitos amam ouvir a respeito do reino dos céus, mas os que carregam a cruz são poucos. Muitas desejam seu conforto, mas poucas a sua tribulação. Muitos se encontram ao redor da mesa, mas poucos na abstinência. Todas desejam se alegrar com ele, mas poucas estão dispostas a suportar qualquer coisa por ele ou com ele. Muitos acompanham Jesus no partir do pão, mas poucos tomam com ele o cálice da Paixão. Muitas reverenciam seus milagres, mas poucas o seguem na vergonha da cruz. Muitos amam Jesus, mas somente enquanto as adversidades e tentações não vêm. Quando não é de coração, a pessoa cristã facilmente se queixa e cai em abatimento quando a fé não a recompensa segundo o seu desejo. Neste caso, a tentação ganhou largo espaço no coração.

Essa palavra evangélica é um convite para colocar a vida (o coração) nas mãos do Salvador. O texto ensina como é acessível e disponível a fé em Cristo. O evangelho é exposto com claridade e a vida, morte e ressurreição de Cristo testificam de quem ele é. Quem o buscar, certamente o encontrará. Mas quem prefere procurar por si mesmo, também a si mesmo encontrará. Neste caso, já não se trata mais de pedir pela vinda do “seu reino”, mas sim pela vinda do “meu reino”. Foi o que o diabo procurou incutir em Jesus: um milagre para saciar a sua necessidade (fome); conquistar o mundo, mas abandonar a Deus; chamar atenção de todos, mas sem a cruz. Jesus permaneceu fiel ao propósito do Pai. Importa que, de coração crente, também nos confiemos aos seus cuidados, porque quando tudo falhar, só ele poderá ajudar.

É preciso que seja de coração, a fim de que nossa confissão de fé seja de fato uma fonte de vida e de esperança. E as pessoas carecem de vida verdadeira, de esperança. Buscam por isso. Em Atos 16, um pai de família está pronto a cometer suicídio, quando Paulo grita para que ele não se faça nenhum mal. E qual a pergunta que ele faz? Senhores, que devo fazer para ser salvo? (At 16.30). O ser humano

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carece de salvação. Precisa de ajuda. Contudo, as tentações sugerem que a resposta para essa pergunta está em algum lugar, mas num lugar sem Cristo e longe dele. Paulo cita várias vezes textos das Escrituras do Antigo Testamento para falar a respeito da salvação. Na tentação, Jesus também fez o mesmo. Devemos buscar a verdade na palavra de Deus. Ali está o que traz proveito espiritual, que alimenta a fé e direciona para Cristo. Tudo o mais é frágil e passageiro, mas a ver dade do Senhor permanece para sempre. Por isso toda pessoa que invocar o nome do Senhor será salva (v. 13). A leitura bíblica de Deuteronômio 26 nos fala como o povo era instruído a dar testemunho do que Deus tinha feito e a não se esquecer de suas bênçãos na terra prometida. Nossa confissão de fé hoje não pode se limi tar a um conjunto de normas seguidas pelo intelecto. Confissão de fé precisa ser palavra viva. Coisa que vem do coração e age na vida de quem crê. Não se limita ao mundo das ideias, mas é existencial. É testemunhar a ação graciosa de Deus na vida, tal como o povo fora ensinado: e o Senhor nos tirou do Egito com poderosa mão (Dt 26.8). Na confissão a fé, sai do silêncio a fim de anunciar a presença de Deus, proclamar a sua glória e graça que nos alcança. É preciso que seja de coração. A fé e a confissão andam juntas. “A fé muda nem é fé” (Olshausem). “A confissão sem a fé seria uma hipocrisia” (Lange). A pessoa cristã anda com Cristo e, na união da fé e da confissão, segue uma vida frutífera em palavras e ações. E isso com alegria e gratidão, não como uma nor ma, nem poderia ser, mas sim com coração crente que se direciona ao próximo.

4 Imagens para a prédica

Sobre o tema “é preciso que seja de coração”, compartilho uma experiên cia do tempo de estudo e formação numa comunidade de nossa IECLB. Ministro e presbitério iniciaram um ponto de pregação em um bairro novo na cidade. Con seguiram uma sala de aula numa escola para iniciar encontros de estudo bíblico e cultos. Alguns membros moravam naquele bairro, mas procurava-se alcançar também outros moradores. Dentre os membros, havia dois irmãos. Um deles morava cerca de cem metros da escola e, o outro, morava cerca de dez quilômetros da escola. Qual deles participava de forma ativa? O que morava distante. Aquele casal e seus dois filhos muito se dedicaram naquele ministério. É assim: quando não procede do coração, toda facilidade é uma dificuldade; quando é de coração, toda dificuldade é enfrentada com amor e confiança no auxílio de Deus.

5 Subsídios litúrgicos

Do Livro de Canto da IECLB sugiro cantar: Alto preço (601); Nem só palavra é o amor (568); Quem quer cantar do amor (588). Pode-se usar o seguinte texto para a acolhida e apresentar o tema do culto para a comunidade reunida: Buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração (Jr 29.13).

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1º Domingo na Quaresma

Bibliografia

BARCLAY, William. Romanos. Buenos Aires: La Aurora, 1983.

CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo. São Paulo: Candeia, 1995. v. 3.

POHL, Adolf. Carta aos Romanos. Curitiba: Esperança, 1999.

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2º DOMINGO NA QUARESMA

Diogo

1 Introdução

PRÉDICA: LUCAS 13.31-35

SALMO 27 FILIPENSES 3.17 – 4.1

Agenda de Deus x agenda humana

Ainda no início do período da Quaresma, o texto de pregação deste domin go aborda os momentos prévios à Semana da Paixão, em Jerusalém. A relação entre os três textos previstos para o dia, certamente, é muito significativa. Em resumo, pode-se dizer que os três textos falam sobre adversários/inimigos!

No Antigo Testamento, o Salmo 27 é considerado um salmo de confiança. Os primeiros versículos apresentam um salmista que se percebe cuidado e guar dado por Deus diante das adversidades e dos inimigos: Ainda que se acampe um exército contra mim, não se atemorizará o meu coração (27.3a).

O Novo Testamento, por sua vez, traz no texto de apoio, de Filipenses (Fp 3.17 – 4.1), uma clara referência aos adversários da cruz! Os inimigos da cruz de Cristo, mencionados por Paulo, são todos os que, dentro e fora da comu nidade de fé, negam a cruz e a ressurreição de Jesus! Aos cristãos cabe o desejo de se deixar orientar por aqueles que são, verdadeiramente, modelos de fé! Por isso Paulo diz: Irmãos, sede meus imitadores e observai os que andam segundo o modelo que tendes em nós (Fp 3.17).

E, por último, o texto previsto para o domingo nos apresenta o próprio Je sus diante dos fariseus, nesta ocasião, sendo lembrado da perseguição de Herodes a ele! Além desse momento de perseguição, Jesus faz menção a todos os profetas que haviam sido enviados pelo próprio Deus e que experimentaram também a recusa e a violência do povo de Israel!

É possível dizer que estar verdadeiramente em Deus traz inimizades com aqueles que não são dele. Se, por um lado, é possível contar com a simpatia das pessoas por causa da nossa fé (At 2.47), também é possível, e até provável, atrair a antipatia e a oposição de muitos.

2 Exegese

O texto de Lucas 13.31-35 aborda um encontro entre Jesus e o grupo dos fariseus. Causa estranhamento o fato de que esse grupo dá uma instrução de fuga para Jesus diante da perseguição de Herodes. Afinal, também os fariseus não eram contrários a Jesus, sempre o interpelando com intensa hostilidade? Não seria melhor deixá-lo morrer o quanto antes? Como, agora, esse momento nos apresenta uma espécie de “ajuda especial” desse grupo em relação a Jesus?

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13 MAR 2022

Alguns sugerem que, de repente, o próprio Herodes tivesse enviado aqueles fariseus. O próprio Jesus ordena que eles possam ir até o governador enviar um recado de sua parte. A ideia de “espantar” Jesus dali, talvez, evitaria a possibilidade de Jesus tomar o trono de Herodes. Aliás, líderes messiânicos surgiam lá e cá como um perigo para seu governo. Por outro lado, matar Jesus seria a característica mais usual do tetrarca Herodes. Assim já havia feito com o próprio João Batista, que o ameaçava em influência e popularidade, inclusive no local onde Jesus também está neste momento. Maldade e crueldade eram marcas daquele homem.

A sugestão dos fariseus a Jesus, então, permanece como uma grande pergunta. Ao mesmo tempo, a resposta dada por Jesus, no versículo 32, deixa bem claro de que não é o homem que define os planos de Deus ou sugere o que ele precisa fazer, mas que Deus, em Jesus Cristo, é quem tem total domínio sobre o que faz ou deixa de fazer. Em outras palavras, nem os fariseus nem Herodes definirão a “agenda” de Jesus. Ele mesmo sabe o que está fazendo. Diante dessa proposta recebida, Jesus chama Herodes de raposa, o que representa uma clara e corajosa afronta. Raposa era uma figura de linguagem que representava tanto a astúcia de alguém como também a falta de importância. Ou seja, poderia ser tanto uma referência à maldosa astúcia de Herodes como um menosprezo a ele. Jesus não cede nem à seita dos fariseus nem ao tetrarca. Jesus, então, avisa que cumprirá a sua missão, independentemente das opo sições que experimentará. Ele tem total consciência de que logo experimentaria a morte. Interessantemente, o termo grego usado por Jesus para dizer que ele terminará a sua missão é o termo teleioumai. Essa palavra logo traz outra à men te. Em João 19.30, em momentos prévios à sua morte, Jesus pode dizer na cruz: tetelestai, que é um equivalente grego de teleioumai. Em primeiro lugar, Jesus lembra que concluirá a sua missão e, pendurado no madeiro, pode dizer que ela está concluída.

Dada essa informação aos fariseus, ainda avisa que importaria caminhar, caminhar e caminhar (Lc 13.33), porque não convém que um profeta morra fora de Jerusalém. É para lá que ele vai! Diz isso porque está na Pereia, que é, curiosamente, a região onde o próprio João Batista foi assassinado. Ele sabia que logo experimentaria a cruz, por causa dos seus adversários, e sabia que Deus o guar daria até lá.

Ao observar de longe a cidade, pode lembrar quantos outros profetas tam bém haviam sido enviados por Deus, mas foram mortos ou apedrejados. Não seria diferente agora. Jesus lamenta: Jerusalém, Jerusalém! (Lc 13.34). Com o coração cheio de amor é que ele faz isso. Assim como pôde olhar para Marta, na sua agitação, e também expressar: Marta! Marta! (Cf. Lc 10.41). Jesus amava a cidade de Jerusalém porque lá estavam as pessoas amadas pelo Pai. Mesmo Nínive, apesar da maldade, era uma cidade muito importante para Deus (Jn 3.3). Com Jerusalém não seria diferente.

No versículo 35, a palavra de Jesus é um lamento e uma profecia. Um la mento por perceber a inimizade com Deus! Uma profecia, pois, mais tarde, nas palavras de Champlin:

119 2º Domingo na Quaresma

Quão desolada ficara a terra de Israel! Quão patentes eram as evidências dessa profecia cumprida. O sinédrio, antes grandioso e augusto, agora não mais toma va deliberações, porquanto os romanos destruíram completamente este tribunal. O templo não podia mais ser contemplado, pois não restara pedra sobre pedra. As sinagogas jaziam em ruínas. As estradas estavam cheias de entulho. [...] Um silêncio incomum e melancólico tomava conta das ruas antes apinhadas de gente (CHAMPLIN, 1982, v. 2, p. 553).

Ali onde a vida sem Deus é uma realidade, a desolação é certa e triste. É o que a cidade de Jerusalém experimentava e pôde experimentar de maneira ainda mais cruel mais tarde.

3 Meditação

O texto previsto para este domingo está claramente apontando para algo que precisava acontecer e que se torna cada vez mais palpável: a morte redentora de Jesus Cristo. E aí, diante de toda a adversidade que Jesus ia enfrentando (He rodes, seitas, o império), ao mesmo tempo, ele sabia que precisava ser assim. Ao homem, porém, tudo é muito estranho.

Uma maneira interessante de abordar esse texto é comparar a “agenda de Deus” x “nossa agenda”. Qual é a “agenda de Deus” para vida do ser humano? Não somente em nosso texto, mas claramente também no convívio com os pró prios discípulos, as pessoas não compreendiam muito bem o modo como Jesus agia e, certamente, esperavam que ele fizesse outras coisas. No relato da transfiguração, por exemplo (Cf. Mc 9.2-8), Pedro, sem sa ber o que dizer, sugere o seguinte: Mestre, é bom estarmos aqui e que façamos três tendas: uma será tua, outra, para Moisés, e outra, para Elias (v. 5). E, de repente, nada daquilo acontece. O próprio Pedro, na noite do lava-pés, nem ao menos quer permitir que Jesus lave seus pés, porque, para ele, não deveria ser assim. Jesus, então, lhe diz: O que eu faço não o sabes agora; compreendê-lo-às depois (Jo 13.7). Ou seja, a “agenda de Deus” não segue a lógica humana, porque essa é limitada e totalmente falível. Também o Antigo Testamento vai confirmar isso quando o próprio Deus afirma: Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o Senhor, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos (Is 55.8-9).

O ser humano não define a “agenda de Deus”, ou seja, ele não diz como Deus deve, ou não, agir. Deus é soberano. E se ele é rei soberano, logo, eu sou escravo. É comum ver em muitos lugares pessoas declarando ou exigindo o que Deus deve fazer, ou não. Não são orações que se colocam sob a vontade de Deus, mas são ordens do que Deus deve fazer. A lógica de quem é rei e de quem é servo foi completamente desvirtuada. O ser humano se torna “deus” nesse caso.

A “agenda do ser humano” tem grandes dissonâncias com a “agenda de Deus”. Os planos de Deus são diferentes dos planos do ser humano. Em nosso

120 2º Domingo na Quaresma

texto, os fariseus estão fazendo sugestões para Jesus sobre o que ele precisa fazer: Foge! Mas Jesus sabe o que está fazendo e sabe o que precisará acontecer, ainda que os caminhos sejam esquisitos aos olhos limitados de seus filhos e suas filhas. A realidade de Deus é muito maior do que a humana. Por isso Paulo pôde dizer que, apesar de apóstolo, chamado, salvo, ele ainda enxerga em partes, como se fosse um espelho completamente embaçado (Cf. 1Co 13.12).

Outro ponto, associado a esse primeiro, é que Deus cumprirá a sua obra! Tetelestai! Assim como ele promete nesse texto que consumará o que for necessá rio, também assim na vida dos seus filhos e filhas! No caminho, às vezes, tristes, cansados, abatidos, uma certeza: ele completará a sua obra em cada um e cada uma que se compromete a caminhar em fidelidade com ele. E isso é consolo para dias tão duros! Ele é rei soberano; nós, servos.

E por último, creio que a oração da igreja precisa ser: Senhor, faze-nos co nhecer a “tua agenda!” e que, ao mesmo tempo, “tua agenda” seja a nossa! Ou seja, que ele mostre o seu caminho para que, com alegria, cada um dos seus filhos e das suas filhas possa caminhar por ele.

4 Imagens para a prédica

Tendo em vista o tema sugerido para a mensagem e as possibilidades lan çadas para a meditação, surgem algumas ideias. Obviamente, o uso de uma bela agenda em mãos, ou um bom slide com uma fotografia de uma agenda digital chamaria a atenção para uma pergunta inicial: Se você pudesse escrever numa agenda todos os planos para a vida, será que ela estaria de acordo com a agenda que Deus tem para você?

A partir daí poderia seguir para o texto/textos bíblicos que ajudam a entender que os planos humanos são, em boa medida, diferentes dos planos de Deus, porque somos frágeis e limitados. Mesmo um dos apóstolos mais influentes não teve condições de compreender os caminhos de Deus em sua totalidade. Paulo lembra esse conhecimento de Deus como um espelho embaçado (1Co 13). Essa também poderia ser uma boa imagem para a prédica.

E, por último, de repente, a ideia de alguém caminhando por um caminho estranho de olhos vendados! Ali é possível lembrar que a palavra de Deus lança luz no caminho (Sl 119.105)! Ou seja, pela palavra de Deus é possível entender e compreender melhor os caminhos, ou melhor, a “agenda de Deus” para a vida, lembrando sempre que o que conhecemos é limitado, mas é possível não cami nhar pela escuridão. Jesus e sua palavra são luz para o caminho!

5 Subsídios litúrgicos

Oração: Senhor, de gratidão transborda o coração ao chegarmos aqui. Em nossos lares ou em comunidade, temos a certeza de que a tua palavra trará luz para nós. Nossos caminhos são incertos, inseguros, mas tu tens um bom caminho para nós, mesmo que, às vezes, ele nos pareça estranho. Permite-nos caminhar conforme a

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tua vontade. Permite-nos conhecer os teus planos para nós e que os nossos planos, tão pequenos, caiam por terra. Amém.

Hinos: Pela Palavra de Deus – LCI 152; Tua Vontade – LCI 321; Te Agradeço –LCI 84.

Bibliografia

CHAMPLIN, N. Russell. O Novo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo. São Paulo: Milenium, 1982. v. 2.

SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Paulus, 2010.

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2º Domingo na
Quaresma

PRÉDICA: ISAÍAS 55.1-9

LUCAS 13.1-9

1 CORÍNTIOS 10.1-13

3º DOMINGO

NA QUARESMA

O convite gracioso de Deus

1 Introdução

Estamos no terceiro domingo do tempo de Quaresma. São quarenta dias que antecedem a Páscoa. É tempo de reflexão sobre o caminho de Jesus Cristo até sua morte e ressurreição. É comum ouvirmos que antigamente esse tempo era tratado com mais reverência e respeito: no âmbito social não havia festas (incluindo casamentos), danças e música alta; no âmbito pessoal alguns também excluíam a ingestão de bebida alcoólica e de alimentos como a carne vermelha. Eram pequenos sinais externos de empatia ao tempo da profunda e total afeição de Jesus Cristo com as pessoas e o cosmos. Mas mesmo que a prática desses sinais penitenciais externos esteja enfraquecida em nossos tempos, a igreja tem como tarefa chamar cristãos e cristãs a refletir sobre esse tempo de forma que se torne significativa a trajetória do Deus encarnado à cruz. E nesse sentido, os tex tos previstos para leitura podem nos ajudar a indicar caminhos.

O texto de Lucas 13.1-9 está dividido em duas partes. Nos versículos 1 a 5 encontramos uma reflexão de Jesus Cristo sobre duas notícias trágicas. A primeira, o assassinato de alguns galileus peregrinos, a mando de Pilatos, enquanto esses imolavam seus sacrifícios. Alguns religiosos afirmam se tratar do juízo de Deus sobre aqueles que haviam sido mortos, pois seriam demasiadamente pecadores. A segunda notícia, as 18 vidas que se perderam com o desabamento da torre de Siloé, também esses não pereceram por causa de algum juízo de Deus. Jesus Cristo afirma que o juízo de Deus está sobre toda a nação judaica, sobre toda pessoa que não se arrepende. A fim de exemplificar a situação do povo, Jesus conta então a parábola da figueira estéril (versículos 6 a 9). Compara Israel como uma árvore que não estava produzindo frutos. Para o dono da terra, ela deveria ser arrancada para dar lugar a outra, sadia e frutífera. Mas o vinicultor intercedeu e, por isso, o proprietário estava disposto a dar uma nova chance para que, bem adubada, ela tenha nova chance de produzir frutos. É indicativo que também Deus estaria disposto a dar uma nova chance a Israel para se arrepender. Para Jesus Cristo, o surgimento dos frutos é marca na vida da pessoa que se arrepende. Aliás, uma lição que Israel tinha dificuldade histórica em entender, como vemos no texto de 1 Coríntios 10.1-9. Em suma, os textos de leitura ajudam a refletirmos quais são sinais externos que mais importam para o tempo da Quaresma: revisão de vida por meio da palavra de Deus, coração contrito e arrependido, e, consequentemen te, o surgimento de frutos concretos para o mundo.

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20 MAR 2022
Wilhelm Sell

2 Exegese

O texto previsto para a homilia deste 3º Domingo da Quaresma é Isaías 55.1-9. Ele está inserido na parte final da coleção de textos do Dêutero-Isaías (ca pítulos 40 a 55). Enquanto o “Primeiro-Isaías” (capítulos 1 – 39) tem como pano de fundo a oposição e a dominação política por parte dos assírios, o Dêutero-Isaías reflete a situação política sob a dominação dos babilônios, sendo que o fim do reinado destes já aparece no horizonte por causa do Império Persa, liderado pelo rei Ciro II. Portanto o período abarcado por Dêutero-Isaías é entre 553 e 538 a.C.

O tema que perpassa todo esse bloco de textos é a esperança que brota em meio da realidade complexa, dura e desesperadora por causa do exílio babilônico. O profeta então anuncia que Jahwé conduzirá seu povo de volta para Jerusalém, como num novo êxodo. Diferente da libertação do Egito, esse novo agir salvífico iniciará por Israel, mas abraçará também outros povos (40.5; 41.17-20; 45.1-7,1417,24; 49.7,14-21,22-26; 52.1-10). Em 55.3 aparece então a promessa do descen dente de Davi, aquele que será o novo rei escatológico, que o será para além de Israel. Ou seja, a partir de Israel Deus alcançará todo o mundo, trazendo um novo aspecto de esperança.

Alguns estudiosos sugerem que o capítulo 55 tenha surgido como uma transição entre os capítulos 49-54 e 56-66, uma espécie de dobradiça sobre a qual giram essas seções principais do livro. Aparece o novo aspecto da esperança en trelaçado com a recapitulação da importância de aceitar a palavra profética, pois a vontade de Deus será concretizada apesar do possível ceticismo dos ouvintes. Ou seja, quando nada mais se pode oferecer e em nada mais é possível se agarrar, a graça, a generosidade e a fidelidade de Deus estão presentes. Isso se tornará ainda mais nítido na análise dos versículos.

Propõe-se a seguinte estrutura para Isaías 55.1-9: v.1-3a: Introdução v. 1-2a: Vinde, comprai e comei! v. 2b-3a: Ouvi-me e vinde a mim! v. 3b-5: Palavras de salvação: aliança eterna v. 6-7: Buscai e invocai ao Senhor! v. 8-9: Os pensamentos de Deus excedem a compreensão humana

V. 1-2a – Observamos aqui a insistência daquele que anuncia a proposta feita. Atenção! Não é mais uma oferta corriqueira e comum no mundo do merca do, de troca na hora de comprar. Mesmo a pessoa que não tem dinheiro deve vir e aproveitar, comprar (רבשׁ) sem dinheiro, pois tudo está sem preço, é de graça. Venham todas as pessoas que têm sede. O convite é generoso e amplo, cada pessoa, individualmente, tem a liberdade de “comprar” sem dinheiro, pois tudo está por “conta” daquele que oferece: Jahwé. Portanto o uso do verbo רבשׁ (comprar) é proposital, assim como a ausência de preço (רִיְחמ). Um detalhe importante: Deus ou o profeta não somente oferece pão e água, mas há aqui uma provisão mais rica e generosa ao acrescentar o leite e o vinho. E, por fim, lança a pergunta: por

124 3º Domingo na Quaresma

que gastar dinheiro com aquilo que não é pão? E o fruto do seu trabalho, (ou o resultado do seu labor), com aquilo que não satisfaz (ou com aquilo que nunca será o suficiente = ָהְעָבשׁ)?

V. 2b-3a – Novamente aquele que faz a proposta pede a atenção de seus ouvintes: me ouçam com atenção, e comam (לכא) aquilo que é bom e deleite o seu ser/alma/nefesh (שֶׁפֶ֫נ) com comida saborosa que sacia e mantêm (lit. gordura = ןֶשֶׁ֫דּ) O ser/alma/nefesh (lit.: goela, garganta) faz referência àquilo que o ser humano é na sua essência: um ser necessitado. Ou seja, a comida oferecida para comprar sem dinheiro, na conta de quem oferece, é exatamente aquilo que satisfaz plenamente o ser.

V. 3b-5 – Após anunciar do que se trata aquilo que é oferecido, mais uma vez pede para que as pessoas ouvintes inclinem seus ouvidos, mas que, além de ouvir, também venham até a fonte dessa grandiosa benesse. Para aqueles que vierem o ser/alma/nefesh viverá, dando a ideia de completude, relembrando o relato da criação (Gn 2.7), quando Deus sopra o fôlego em Adam e ele se torna uma ser/ alma/nefesh vivente (הָיָח שֶׁפֶנ). Portanto Deus promete a restauração da condição perdida, a qual não vem com as próprias possibilidades, mas sim pela graça que estará sendo firmada/estabelecida (תרכ: cortar, separar com o corte) numa aliança perpétua, eterna (םָלוֹע), com as pessoas que compram sem dinheiro (ação pessoal responsiva) e, assim, são agraciadas. O termo “cortar” para fazer uma aliança aparece pela primeira vez nas Escrituras na história de Deus com Abraão (Gn 15), enfatizando que Deus literalmente corta uma aliança, ou seja, essa linguagem tem sentido com o sacrifício em que os animais eram cortados ao meio, simboli zando cada parte do acordo. Observa-se que o ser humano não tem a iniciativa/ força, pelo contrário, quem decide fazer a aliança é o Senhor. Ao ser humano a aliança é oferecida de graça e ela é a concretização das fiéis misericórdias prometidas a Davi. E, assim como a aliança foi eterna com Davi (2Sm 7), ela também será eterna para com o povo de Israel. Há aqui uma amarração do presente com as promessas do passado e com aquilo que será no futuro prometido. Superando qualquer possível fragilidade humana, essa aliança está firmada naquilo que o próprio Deus concretizará por meio de Davi (pela sua semente – veja Sl 89.34-36) a todas as nações. Coaduna com essa interpretação o imperativo divino no início dos versículos 4 e 5 “eis” (ןֵה), uma interjeição, ou seja, uma chamada de Deus para que o povo “veja” que assim como Davi serviu como testemunha e príncipe (líder), também o povo de Israel terá a mesma função: agir como “príncipe e governador dos povos” (v. 4). Israel deverá assumir o papel de líder entre as nações como testemunha de Jahwé aos demais povos. O povo de Israel recebe a função de chamar/convidar (אָרָק) uma nação que não o conhece e que lhe é também des conhecida para que venha estar junto de si e lhe obedecer por causa do Senhor. É um convite aos sedentos. Portanto nações que jamais ouviram falar do Senhor se apressarão para ouvir o seu chamado.

V. 6-7 – Jahwé não se mostra indiferente, inacessível e distante do povo, mas sim próximo, acessível e interessado. Desta forma, ele ainda se permite ser encontrado enquanto é tempo: Buscai ao Senhor enquanto Ele pode ser encontrado; invocai-o enquanto Ele está perto (v. 6). Percebem-se dois verbos nesse versí

125 3º Domingo na Quaresma

culo que estão no imperativo, o verbo buscar (שַרָדּ) e invocar (אָרָק). Esses verbos expressam a necessária resposta humana ao agir do Senhor. Deus está se dando ao encontro, por isso, busquem e invoquem enquanto é possível. Para quem busca o Senhor é assegurada a vida: Buscai-me e vivei (Am 5.4-6). Jahwé convida para estarem próximos dele: vinde! (v. 3). O v. 7 convida os perversos e iníquos (עָשָׁר) para que se convertam (בָשׁ) de seus maus caminhos e dos seus pecados. Nesse arrependimento está incluída a mudança de mentalidade, de abandonar os velhos e maus hábitos e costumes, e voltar-se com sinceridade ao Senhor. Só assim ele se compadecerá e agirá em misericórdia, porque é grandioso em perdoar.

V. 8-9 – Temos nos v. 8 e 9 a compreensão de que todos se tornam per versos/ímpios (citados no v. 7) e maus quando se afastam do Senhor. Essa é a causa da desgraça que levou o povo à deportação, à dispersão, ao exílio. Israel é convidado a sair dos maus pensamentos e caminhos, pois todos acabaram alimentando-se de coisas terrenas (momentâneas e insaciáveis que o ser humano produz com suas próprias mãos), que os afastaram da presença de Deus. Aqui o Senhor adverte o povo sobre as diferenças entre as coisas do alto e as coisas terrenas: porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais alto do que os vossos pensamentos (v. 9). A graça de Deus ultrapassa/transcende a compreensão humana e ao mesmo tempo é garantia da eficácia da sua miseri córdia justamente pela não capacidade de o ser humano conseguir compreender/ alcançar tamanha graça de Deus, que descende do alto (pensamentos de Jahwé ≠ pensamentos humanos). Embora o ser humano tenha sido criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26), é incapaz de ter uma compreensão plena das coisas do alto. Os pensamentos de Deus sempre estarão acima dos pensamentos do ser humano.

3 Meditação

É possível verificar que o texto do evangelho converge com o texto de Isaías. O tema comum de ambos é a vocação de Israel como testemunha de Deus. Enquanto em Isaías é anunciada essa vocação do povo de Deus em relação a todos os povos, Jesus Cristo conta uma parábola na qual compara Israel a uma figueira estéril, que não estava dando os frutos devidos. Essa vocação não é exercida a partir das próprias possibilidades e capacidades, mas a partir da graça e companhia de Deus. A pergunta que permanece nesse tempo de Quaresma é sobre quais sinais externos Deus tem como expectativa para seu povo. É claro que esses sinais não se reduzem a esse tempo específico, o extrapola, mas é tempo propício para a reflexão sobre eles.

As palavras do profeta Isaías são anunciadas para um povo que havia per dido as bases de sua esperança. E é notável que no decorrer de toda história do Antigo Testamento, a busca e o anseio pela saciedade em Deus são frequente mente associados e comparados ao anseio por água e comida. Não é por acaso que o profeta Isaías usa os alimentos que saciam a fome e a sede comparando-os

126
3º Domingo na Quaresma

com aquilo que Deus pode fazer na vida daquele povo. Isaías convida Israel para participar do banquete da salvação.

Deus quer ser lembrado por Israel e usa o profeta Isaías para chamar “vinde!” todo o povo (sem distinção de classes) para que se alimentem da palavra de Jahwé enquanto é tempo. A oferta que o profeta faz é demonstração da grandiosa misericórdia do Senhor. Ele insiste: venham! Comprem e comam sem dinheiro e sem preço! Ou seja, esse “vendedor” oferece os mantimentos que são essenciais e básicos sem custo, justamente porque o servo sofredor paga um alto preço (cf. Is 53.11-12).

Os convidados não são somente os da casa de Israel, mas por meio desses também os de fora. Todas as pessoas são chamadas ao banquete. A mesa está pos ta, o convite está feito! O que todos e todas precisam fazer é simplesmente ouvir com atenção o chamado que Jahwé faz a seus convidados e a suas convidadas. A pergunta é: será que as pessoas daquele contexto estavam dispostas a ouvir esse vinde? Será que conseguiam se enxergar como pessoas necessitadas de se rem resgatadas de seu próprio mal? As mesmas perguntas servem para nós hoje! Deus, em sua misericórdia sempre vem ao encontro do ser humano, dando-lhe a chance de reconhecer-se como pecador, atribuir-lhe o perdão e viver a restauração para sua real humanidade.

Só é possível ouvir o que Jahwé tem a dizer quando os ouvidos do povo estiverem inclinados e atentos à voz do Senhor. É dessa forma que, antes de qualquer passo, é preciso escutar atentamente para ir na direção certa, a que leva à saciedade do ser. O profeta Isaías lembra o povo da aliança que Jahwé fez com os da casa de Davi com o intuito de frisar de que essa aliança é eterna e perma necerá para sempre com aqueles que estão sujeitos a serem moldados pelo agir, graça e misericórdia de Deus. É por isso que especialmente os v. 6 e 7 mostram o quão próximo do povo Deus se permite estar. Essa proximidade se tornou plenamente revelada em Jesus Cristo, o Messias anunciado já no Antigo Testamento pelos profetas. Jahwé deseja que o ser humano o busque enquanto for possível encontrá-lo. Esse encontro dá a todas as pessoas que ouvem a possibilidade de nova vida, de arrependimento e participação no banquete da salvação. A misericórdia do Senhor não cessa, sempre é tempo de autoanálise a partir da Palavra, se converter das más ações, da idolatria, do egocentrismo, e olhar para a cruz de Cristo e a salvação. Essa é a dinâmica de lei e evangelho Grandiosa é a graça de Deus que anseia pelo arrependimento do ser huma no, que deseja que a humanidade se volte para ele. Por mais que o ser humano busque prazer e sentido nas coisas que ele pode alcançar com suas mãos, jamais encontrará consolo, conforto e saciedade sem estar ligado à Palavra eterna que o leva a estar na conformidade de Jesus Cristo. Por isso, embora todos e todas se jam chamados e chamadas à salvação por meio da graça e misericórdia de Deus, é necessário ir além do ouvir, para a concretização dessa Palavra na existência do ser. Isso não se traduz em uma abstração ou uma espiritualização privada à vida ou a determinadas partes da vida pessoal, mas se desdobra na concretude da vida, no agir e na forma de perceber as relações com Deus, consigo mesmo, com a outra pessoa e com a criação de Deus.

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Domingo na Quaresma

Por fim, o texto de Isaías vai ao encontro do tempo litúrgico da Quaresma. O sinal externo que realmente importa é a revisão de vida que se desdobra na consciente e decisiva escolha em viver a partir da obra de Cristo Jesus na cruz, do Deus que toma sobre si a justiça, dando a possibilidade de sermos justos e justas diante de Deus, de nós mesmos, do outro e do mundo. Aqui brota a real liberdade, aquela que é vivida no dia a dia e que brinda o mundo, na realidade penúltima, com os frutos do reino de Deus por meio de seus filhos e filhas, com vistas à realidade última. Essa é a maravilhosa graça de Deus. Venham todas as pessoas, aquelas que nada têm a oferecer e sirvam-se no banquete da salvação; por que gastar dinheiro, naquilo que não é pão? E do fruto do trabalho com aquilo que não satisfaz? O que Deus oferece por graça é justamente aquilo que satisfaz e que a nefesh pode se deleitar. Portanto buscai o Senhor enquanto ele pode ser encontrado; invocai-o enquanto ele está perto.

4 Imagem para a prédica

Cristãos e pagãos

Pessoas buscam a Deus na sua necessidade, imploram auxílio, pedem felicidade e pão, libertação de doença, culpa e morte. Assim fazem todas as pessoas cristãs e pagãs.

Pessoas buscam a Deus na Sua necessidade, acham-no pobre, insultado, sem abrigo e sem pão. Veem-no envolto em pecado, fraqueza e morte. Cristãos ficam com Deus na Sua paixão.

Deus busca todas as pessoas na sua necessidade, satisfaz o corpo e a alma com o Seu pão, sofre por cristãos e pagãos a morte na cruz e a ambos concede perdão.

(BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão. Cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2003. p. 469.)

Bibliografia

GOLDINGAY, John; PAYNE, David. The International Critical Commentary on the Holy Scriptures of the Old and New Testament: Isaiah 40-55. London, New York: T&T Clark International, 2006. v. 2.

SOFTWARE BÍBLICO LOGOS. Faithlife, 2000-2021.

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3º Domingo na Quaresma

PREGAÇÃO: LUCAS 15.1-3,11b-32

JOSUÉ 5.9-12 2 CORÍNTIOS 5.16-21

4º DOMINGO

NA QUARESMA

1 Introdução

O pai e seus dois filhos

A parábola contada por Jesus traduz o significado da boa notícia que ele veio anunciar. Ela nos ajuda a refletir sobre o que acontece conosco em muitas situações de nossas vidas: “A alegria de uma pessoa pode ser a tristeza de outra”. Nela, somos confrontados com múltiplas facetas da personalidade humana: aque la que reflete quem somos e aquela que expressa quem gostaríamos de ser e ainda aquela que mostra como os outros gostariam que fôssemos. O tempo quaresmal é propício para o convite ao arrependimento e a busca por novos caminhos de vida. Assim como Deus faz anunciar ao seu povo que tirou deles a carga da vergonha (Josué) e, como afirma o apóstolo Paulo, se alguém está unido com Cristo é uma nova pessoa (2Co 5.17), do mesmo modo também o pai recebe o filho que se afastou de casa e lhe restitui a dignidade. Uma bela palavra de Martim Lutero ilustra essa realidade assim: “Este é, portanto, o resumo do evangelho: o reino de Cristo é um reino de misericórdia e graça, onde não há senão um constante carregar. Cristo carrega nossas fraquezas e doenças, toma sobre si nossos pecados e é paciente quando falhamos. Estamos constantemente sobre os seus ombros. E ele também não se cansa de carregar, o que nos deve servir de grande consolo quando somos tentados a pecar. Neste reino, os pregadores devem consolar as consciências, tratar com elas de forma amigável e nutri-las com o evangelho. Devem carregar os fracos, curar os doentes e saber dividir corretamente a palavra, administrando-a a cada um conforme suas necessidades” (Bíblia com reflexões de Lutero, p. 959).

2 O texto verso a verso

V. 1-3 – Sobre o capítulo 15 do Evangelho de Lucas, somos informados de que nele “Jesus explica e defende sua atitude de misturar-se com gente de má fama (v. 2). As três parábolas mostram o amor de Deus por todas as pessoas, in cluindo as mais humildes e desprezadas. Nas figuras de pastor de ovelhas, dona de casa e pai amoroso, Deus é apresentado como alguém que fez tudo para tra zer de volta o pecador que se afasta dele” (Bíblia de Estudo NTLH, p. 1.0361.037). Nos versículos introdutórios (1-3), Lucas retoma o assunto já abordado em 5.29s (e que também consta nos evangelhos sinóticos, em Marcos 2.15s e Mateus 9.10s), e faz a mesma referência ao fato de que Jesus se relacionava com

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27 MAR 2022
Osmar

publicanos e pessoas pecadoras e isso levantava um murmúrio contra ele e seus discípulos entre os fariseus e seus escribas. “A familiaridade de Jesus com as [pessoas] perdidas escandaliza os fariseus, para os quais é inconcebível que Deus possa amar os pecadores antes de sua conversão. ‘O homem justo – diz uma sentença rabínica – não se associa a um ímpio, ainda que fosse para orientá-lo no estudo da Lei’” (LANCELLOTTI; BOCCALI, 1979, p. 157). Havia um precon ceito enraizado contra as pessoas com quem Jesus se relacionava e que tornava incompreensível aos fariseus e escribas que ele pudesse anunciar o reino de Deus e a sua justiça e, ao mesmo tempo, estar na companhia dessas pessoas tidas como injustas (RENGSTORF, 1978, p. 182). O preconceito manifesto é denunciado por Jesus ao apresentar as três parábolas de misericórdia, as quais apontam para o amor de Deus. “O motivo de fundo que impregna todo o capítulo é o amor de Deus pelo [ser humano] pecador, com a ‘alegria’ que experimenta pela sua conversão” (LANCELLOTTI; BOCCALI, 1979, p. 157).

V. 11 – A transição para a terceira parábola é feita de forma direta, o que mostra que ela constitui uma unidade e visa ao mesmo sentido das duas anteriores (RENGSTORF, 1978, p. 184). “Com esta parábola [...] a doutrina de Jesus sobre a divina misericórdia atinge o ápice. Aqui não se trata mais de um animal, ainda que de estimação como uma ovelha, nem de um objeto, mesmo precioso como a moeda de prata, mas de um ser humano amado por Deus, por ser seu filho [...]” (LANCELLOTTI; BOCCALI, 1979, p. 158).

V. 12 – O assunto da parábola não é algo inusitado, pelo contrário, a partilha de bens entre herdeiros está regulamentada na lei de Moisés. Conforme se lê em Deuteronômio 21.17, “o filho mais velho receberia duas vezes mais do que o filho mais moço” (Bíblia de Estudo NTLH 15.12, nota). Ou seja, segundo a prescrição da lei, o filho mais velho tem direito ao dobro em relação ao seu irmão. V. 13-14 – O filho mais jovem abandona a casa paterna e segue “para uma terra distante: é um afastamento sobretudo afetivo pelo abandono do pai, e tam bém afastamento religioso pela fuga de Deus. Os judeus chamavam os pagãos de ‘distantes’ (cf. At 2.39 com Is 57.19; Ef 2.13,17)” (LANCELLOTTI; BOCCALI, 1979, p. 159). A opção do filho mais jovem o conduz para a ruína, tal qual o afastamento de Deus conduz à ruína. A culpa do jovem não é apenas de haver desperdiçado seus bens em práticas de imoralidade, mas de haver se afastado do pai. É o que ele mesmo admite quando diz não sou digno de ser chamado filho.

V. 15 – Cuidar de porcos era tido como um “trabalho sumamente humilhante para um judeu, pois a Lei considerava o porco um animal impuro (Lv 11.7). Comer-lhe a carne era considerado grave pecado (2Mc 6.18-20). O pormenor dos ‘porcos’ indica que estamos em uma terra pagã, não em Israel (cf. 8.32-34,37)”

(LANCELLOTTI; BOCCALI, 1979, p. 159). A terra distante mencionada no v. 13 marca uma distância geográfica, cultural e religiosa. O filho que decide ir para longe de casa afasta-se do seu território, da sua família, do seu povo e da sua fé.

V. 16-17 – Ter a necessidade de alimentar-se daquilo que os porcos comiam e, mesmo assim, nada receber para aplacar a fome marca o total distanciamento de tudo o que na vida lhe dava segurança e sentido. Então o filho mais moço cai em si, isto é, ele se dá conta do total infortúnio para o qual a sua opção de vida

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o conduziu. Sua condição é desesperadora. Ele se agarra à memória dos tempos vividos na casa de seu pai, onde até os empregados têm alimento suficiente. “E eu aqui morrendo de fome!” Caindo em si descobre que não faz sentido continuar a vida que está levando. Melhor voltar atrás e recomeçar.

V. 18-19 – O retorno à casa paterna se dá mediante a disposição ao arrependimento e a confissão de culpa: Pai, pequei contra Deus e o senhor. O jovem conhece os mandamentos e sabe que a sua postura não encontra guarida neles. Pelo contrário, passa a depender da misericórdia de Deus e do seu pai. Ele sabe que não tem direitos a reclamar, pretende abrir mão da condição de filho e deseja apenas ser recebido como um trabalhador a mais.

V. 20-22 – Tendo refletido sobre a miséria de sua condição, o filho moço decide por em prática o plano de retornar à casa paterna (nada se diz no texto sobre a mãe desse jovem, mas não será difícil imaginar o quanto a sua saudade do filho terá contribuído para que o pai o recebesse de braços abertos). Mais do que realizar seu plano de confissão de culpa, o filho é surpreendido pela postura do pai, que sai ao seu encontro, abraçando-o e beijando-o. Do mesmo modo, a riqueza da comunidade cristã mostra-se no perdão de pecados e no acolhimento (cf. Ef 1.7 e Cl 1.14). O perdão recebido pelo filho que retorna para a casa não se desenvolve no sentido de que tudo somente volte a ser como era antes de sua saída. Além da filiação restabelecida, dá-se também algo como uma filiação ado tiva (cf. Gl 4.5). O restabelecimento da filiação é selado pelo beijo (2Sm 14.33) e pelo anel que assegura os direitos de filiação. “De todo modo, não é à lei que ele deve gratidão, mas, sim, somente à graça” (RENGSTORF, 1978, p. 186).

V. 23-24 – E, então, começam os festejos de alegria pelo retorno do que “estava perdido e foi achado”, tal como a ovelha e a moeda das parábolas ante riores. Mais do que isso, ele “estava morto e viveu de novo”. Vamos carnear o bezerro gordo, aquele reservado e tratado de modo especial para ser abatido em dia de festa.

V. 25-27 – Na sequência, entra em cena o irmão mais velho. Quando ele chega do trabalho no campo, busca saber com um dos empregados da casa o que está acontecendo. Para ele, o dia, até ali, tinha sido como outro qualquer. Nenhum motivo para a festa ou o abate do bezerro “cevado”. Quando lhe explicam a razão da festa, ele se aborrece de vez.

V. 28-29 – O filho mais velho fica zangado com o que vê. Não concorda com a atitude do seu pai em relação ao irmão que voltou para casa. Nem entrar na casa ele quer. O pai precisa insistir com ele para que entre e se alegre também. E, então, derrama toda a mágoa que traz guardada no peito. “Trabalho como um escravo, mas nunca tive um cabrito para festejar com os amigos.”

V. 30 – O filho mais velho já não se refere mais ao filho mais novo como sendo seu irmão, mas chama-o de “este seu filho”. Por isso “a atitude misericor diosa do pai, que simboliza a misericórdia divina, opõe-se, no filho mais velho, a dos fariseus e dos escribas, que se gabam de serem ‘justos’ porque não transgridem nenhum preceito da Lei (v. 29; cf. 18.9s)” (Bíblia de Jerusalém, p. 1.365, nota s).

V. 31-32 – O pai, contudo, não se zanga com o filho mais velho. Antes, pro cura mostrar-lhe a razão pela qual é preciso estar alegre. O irmão perdido e morto

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reencontrou o caminho da casa. O pai lembra ao filho que ele tem um “irmão”. E o faz ver que “tudo o que é meu é seu”.

3 Meditação

Esses dois irmãos ilustram o que Jesus pretende ensinar aos seus ouvintes, os quais olham para ele com reservas, pois ele se mistura com gente de má fama. Ele se preocupa com o que essas pessoas tidas como desqualificadas estão sofrendo ou estão querendo dizer. Ele se junta a elas em refeições, oferecendo-lhes sua amizade e companhia. Em consequência, há julgamento baseado em preconceitos.

É tão real o que a parábola ensina. Os traços de personalidade representa dos nesses dois irmãos são tão nossos também! Quem não gosta de ser recebido e acolhido quando cai em si e decide desculpar-se e pedir perdão por alguma falta cometida? Quem não fica chateado ou até magoado quando é esquecido em seu esforço diário e rotineiro de fazer as coisas certas?

O irmão que fica em casa trabalhando com seu pai, fazendo tudo o que se espera de um bom filho, representa nessa estória os ouvintes de Jesus que se esforçam para cumprir seus deveres religiosos e que têm consciência de seu pertencimento ao povo escolhido de Deus. Mas a parábola de Jesus desmascara a pretensão daqueles e daquelas que se consideram melhores do que os outros, ou que esperam serem recompensados pelas suas boas atitudes. Afinal, o que há de errado nisso? Não representa o filho que ficou em casa justamente os valores morais que devem nos guiar? Sim! Mas, então, qual é o problema? O problema é que a moral pode se transformar em moralismo e, com isso, fechar-nos para o nosso semelhante. O esforço para fazer o que é certo, para cumprir as normas estabele cidas, não nos deve tornar orgulhosos a ponto de nos incomodarmos quando o pai se alegra com o irmão que se arrepende e volta ao convívio da casa.

O irmão que decide sair e gastar sua herança representa o tipo oposto. Ele quer aproveitar a vida. Não se prende a deveres, nem está preocupado se a sua ati tude entristece ou não o seu pai. E é claro que ela o entristece. Pais e mães sabem o quanto é duro deixar que os filhos e as filhas deem suas “cabeçadas”. Às vezes, são necessárias, promovem crescimento, fazem “cair a ficha”, como no caso do filho mais moço da parábola: em dado momento ele caiu em si. Outras tantas vezes, os pais e as mães sabem que os filhos e as filhas estão num caminho que não tem futuro, que leva à desgraça e à infelicidade. A gente também poderia perguntar: qual é o problema se o filho, a filha, quer aproveitar a vida fazendo o que quiser com a sua parte da herança? O problema é que a imoralidade, a vida sem nenhuma disciplina e que a olhos vistos conduz à ruína, entristece profundamente as pessoas que nos amam. O pai na estória de Jesus não se alegra pelo caminho torto que o filho escolheu, mas se alegra quando ele volta. Os caminhos tortuosos não são sempre uma escolha pessoal. Há tantos fatores que nos podem levar para longe da casa do pai. Justamente por isso a postura do filho que ficou em casa é questionada. Em seu jeito todo certinho não há mais lugar para alegrar-se com o irmão que, arrependido, volta da farra.

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Fazemos, às vezes, a opção de ficar em casa, com o pai, trabalhar, cumprir nossos deveres, ouvir suas reclamações. Alegrar-se parece quase proibido. Nada de esbanjar, botar fora. Preocupamo-nos com o futuro. Se não formos previden tes, corremos risco de ficarmos desassistidos.

Outras vezes, fazemos a opção de sair, tanto quanto possível vivenciar todas as experiências disponíveis. Não desperdiçar oportunidades. Dane-se o ama nhã. O que importa é viver e aproveitar o dia de hoje. Valores morais? Quem está preocupado com isso? “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos.”

Qual é o tipo que prevalece dentro de nós? Somos mais de aproveitar o dia de hoje sem nos importar com o futuro, ou somos mais do tipo previdente, que se preocupa tanto que se esquece de viver e celebrar a vida com o que ela tem de bom e belo? Eu creio que a maioria de nós tem um pouco de cada um desses filhos. Quando examinamos nossas consciências, temos de admitir que também falhamos, também nos arrependemos pelo que fizemos ou pelo que deixamos de fazer, também precisamos de um pai amoroso que nos abrace e que se alegre porque queremos recomeçar.

De outra parte, quem nunca olhou com desdém para pessoas tidas como pecadoras notórias? Quem nunca pensou consigo mesmo que Deus é injusto, pois parece que só os maus prosperam, como diz o salmista. Quem já não se entristeceu por julgar-se injustiçado quando seu trabalho miúdo, feito com dedicação e silên cio, nunca é reconhecido? Precisamos de um pai que reconheça nosso valor, que nos diga: “tudo o que é meu é teu”; aprende a viver a vida com um pouco mais de leveza; não te zangues porque outros estão felizes; eu te amo tanto quanto ao teu irmão que está de volta. Tu és tão importante para mim quanto ele, mas como estás comigo todos os dias, eu penso que não preciso te dizer isso sempre de novo. Jesus conhece bem a natureza humana! Esses dois personagens são nossos retratos. Mas há também a terceira personagem: o pai desses dois irmãos tão di ferentes. Ele sofre calado, atende ao pedido do filho que quer sua independência. Sente a dor da ausência. A saudade é tamanha que sai correndo ao encontro do filho. E lhe dá mais do que ele pede e mesmo mais do que mereceu. O descontentamento do irmão revela isso. Mas o pai toma a iniciativa de promover a recon ciliação. “Vamos colocar uma pedra sobre o passado e começar uma vida nova!” Desse comportamento do pai brota uma nova possibilidade e essa é a razão da alegria presente nessa narrativa. O filho que volta arrependido recebe uma nova oportunidade. Tendo desperdiçado sua parte na herança, ele agora depende da misericórdia do pai e do irmão que ficou em casa. O pai já está feliz, celebrando. O irmão ainda precisa lidar com sua mágoa. A alegria do pai será completa quando houver uma reconciliação verdadeira dos dois irmãos.

4 Passos para a prédica

A parábola é um convite para uma inserção na narrativa. A pregação pode renovar o convite para tal inserção. Apresentando os traços de personalidade dos dois irmãos, pode-se fazer uma vinculação com a experiência de Jesus com seus

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ouvintes. Há um prejulgamento que orienta a postura desses. A parábola aponta para o ministério de Jesus de buscar quem está longe do Pai. Seguindo os passos da meditação, pode-se considerar:

a) Apresentar o contexto no qual Jesus profere as parábolas de misericórdia. Apontar para a vinculação entre as três parábolas do capítulo 15.

b) Convidar as pessoas da comunidade para se familiarizarem com as ca racterísticas pessoais dos dois filhos.

c) Acentuar o aspecto do arrependimento e da confissão que conduzem a uma nova maneira de agir, tanto para o filho mais jovem quanto para o seu irmão.

d) Destacar a misericórdia e o amor do pai que deseja ver seus filhos e filhas reconciliados.

5 Subsídios litúrgicos

Como o expressa o hino 51 do Livro de Canto da IECLB: “Cristo acolhe o pecador, eu também fui acolhido”. A experiência de ser uma pessoa acolhida faz brotar alegria e gratidão e renovado compromisso com a vivência do reino de Deus.

Confissão de pecados: Deus, fonte de retidão! Confiamos em tua misericórdia e, por isso, confessamos os pecados que cometemos. Nossos pecados sobrecarre gam a vida de outras pessoas e também as nossas próprias vidas. Nossos pecados ofendem e entristecem outras pessoas e também entristecem a nós mesmos. Assim, ofendemos e entristecemos também a ti, Deus querido, que nos queres ver alegres e felizes. Pedimos em nome de Jesus que perdoes nossa culpa e nos faças, por tua graça, andar em novos caminhos. Amém.

Oração do Dia: Deus, fonte de alegria verdadeira! Estamos em tua presença ro gando que nos sirvas em tua palavra e sacramento. Recebe nossos corações agra decidos pelas dádivas tantas que temos experimentado em nossas vidas. Acolhe nosso louvor e ajuda-nos, por teu Espírito, a fazê-lo coerente com nossas práticas no dia a dia. Quando os teus caminhos nos parecerem difíceis, preserva-nos a tua fidelidade. E quando nos convidares para a festa, que estejamos preparados e preparadas para nos alegrar contigo. Oramos em nome de Jesus, que contigo e o Espírito Santo é adorado como Deus Caminho para a festa em teu Reino. Amém.

Bibliografia

LANCELLOTTI, Angelo; BOCCALI, Giovanni. Comentário ao Evangelho de São Lucas. Petrópolis: Vozes, 1979.

RENGSTORF, Karl Heinrich. Das Evangelium nach Lukas. Göttingen: Vanden hoeck & Ruprecht, 1978.

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PRÉDICA: FILIPENSES 3.4b-14

ISAÍAS 43.16-21 JOÃO 12.1-8

5º DOMINGO

NA QUARESMA

1 Introdução

A corrida da vida

Faltam sete dias para a Semana Santa. Preparamo-nos para festejar a vi tória da ressurreição e suas consequências. As palavras escritas por Paulo aos filipenses expressam a ruptura com seu passado relevante e um novo direciona mento de vida provocado graças ao encontro que o Cristo ressurreto teve com ele. [...] esquecendo-me das coisas que para trás ficam [...] (v. 13).

Isaías 43.16-21 é o retrato da superação de histórias passadas, vislumbran do o totalmente novo, repleto de boas novas que são possíveis graças à ação de Deus em favor do seu povo. Não vos lembreis das coisas passadas (v. 18).

A leitura do evangelho é indispensável. João 12.1-8 descreve um acontecimento extravagante ocorrido poucos dias antes da Páscoa. Maria unge os pés de Jesus com precioso perfume, prefigurando sua morte e seu sepultamento. Segue a ressurreição, acontecimento que gera o novo na história humana. O Messias fora ungido por uma mulher. O Cristo estava sendo reconhecido.

2 Exegese

Filipos! Nessa cidade surge a primeira comunidade cristã na Europa (At 16), fundada por Paulo na segunda viagem missionária.

Precisamos inicialmente fazer referência aos versículos 2 e 3 deste capítu lo, pois se trata de importante chave hermenêutica para o entendimento do texto em estudo. Paulo faz uma veemente crítica aos “maus obreiros”, por defenderem a prática da circuncisão como se fosse rito a ser observado na fé cristã. É dessa crítica que surge o argumento do apóstolo, que traz consigo uma gama de infor mações históricas colocando luz sobre seu passado.

Autobiografia

(v. 4b-7)

Paulo sublinha a pureza absoluta de sua descendência. Judeu de berço, circuncidado ao oitavo dia, conforme determinava a Torá em Gênesis 17.12 e Levítico 12.3. Era da linhagem de Israel, nome dado para Jacó por ter lutado com Deus (Gn 32.28). Sua filiação vinha da tribo de Benjamin, que recebia lugar es pecial na aristocracia israelita. Benjamin era filho de Raquel, esposa predileta de Jacó. Dos 12 filhos, apenas ele era nascido na terra prometida (Gn 35.17-18). Ra

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03 ABR 2022

quel faleceu no parto de Benjamin. Saul é descendente dessa tribo (1Sm 9.1-2), de quem Paulo recebeu o nome de Saulo. Embora tenha nascido na cidade pagã de Tarso, foi para Jerusalém estudar aos pés de Gamaliel (At 22.3). Ao mencionar que era hebreu de hebreus, referia dominar a língua hebraica (At 21.40). Dentre os segmentos religiosos, Paulo era fariseu, grupo que se distinguia por seu fervor religioso. Designados como “separatistas”, consagravam suas vidas a observar os mínimos detalhes da lei, portanto conhecedor do significado de sua exigência. Os fariseus declaravam-se os espiritualmente corretos do judaísmo.

Saulo era um homem temente a Deus, coerente com a teologia que havia estudado, irrepreensível, inculpável quanto à “justiça que há na lei”. Tratava com todo o “zelo” a sua fé, a ponto de desejar, com o uso da força, banir os adversários da fé judaica (At 8.3). Odiava Cristo e os cristãos.

O termo zēmian significa dano, desvantagem, perda, contrapondo com o termo kerdē forma plural de kerdos, que significa lucros, ganhos, vantagens. Com essas palavras o apóstolo descreve uma radical ruptura que se processou em sua confissão de fé. Tudo o que havia vivido na religião judaica considerou “perda”, embora essa convicção lhe tenha trazido perseguição e sofrimento (At 26.14). A razão é conclamada numa analogia com números e cálculos, ganhos e perdas.

Encontrado por Cristo (v. 8 e 11)

Zēmian reaparece de forma insistente, surgindo a explicação de qual é o ganho recebido. Hypererchon, traduzido por sublimidade, significa “ultrapassar, colocar em elevado nível, exceder, dando a ideia daquilo que é excelente, supe rior, dotado de extraordinário valor” (CHAMPLIN, 1982, p. 48). Há uma expe riência sublime e concreta que radicalmente alterou a sua história de vida, que aconteceu no caminho de Damasco, relatada em Atos 9. A experiência religiosa anterior se tornou skybala, refugo, excremento, “lixo – coisa que deve ser jogada fora, para que deixe de usurpar o lugar que pertence só a Cristo” (WEINGÄRT NER, 1992, p. 79).

Justiça, diakaiosynē, é tema central nas buscas do apóstolo. O que vem a ser “ser justo”? Paulo lutava por um conceito de justiça que se dava no compri mento da lei. Então lhe foi permitido compreender que a relação justa com Deus se dá na fé em Jesus Cristo. O caminho da paz com Deus não é o caminho das obras, do mero cumprimento de leis, mas sim o caminho da graça. O apóstolo foi encontrado por um valor maior do que aquele que fazia parte de suas convicções. Essa experiência, com sua sistematização minuciosa, encontramos relatada no livro de Romanos 3.21 a 5.21. “Para Paulo, o Cristo de Deus tinha assumido a maldição da lei em lugar do pecador, que não pudera cumpri-la (Gl 3.13)” (WEINGÄRTNER, 1992, p. 80).

“Conhecer” a Cristo é capaz de alterar o curso dos pensamentos. Gnōnai refere-se a um conhecimento pessoal, que se difere de um conhecimento inte lectual. Trata-se de uma experiência espiritual ou de fé que uma pessoa tenha experimentado: ganhar a Cristo (v. 8), ser achado nele (v. 9) e mediante a fé em Cristo (v. 9).

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Do “poder da ressurreição” – tēn dynamin tēs anastaseōs, Paulo quer ter parte. Para ele “o Ressurreto é sempre o Crucificado, e o Crucificado é sempre o Ressurreto. “Não é lícito separar cruz e ressurreição, pois ambas constituem um único evento salvífico indivisível.” “Conformando-me com ele na sua morte” – symmmorfizomenos. “O termo grego usado contém a raiz morfē. É como se o autor dissesse: “metamorfoseando-me com ele em sua morte, [...] como figura para o morrer e o ressurgir do cristão” (WEINGÄRTNER, 1992, p. 81). O Cristo ressurreto visitou Saulo. Essa experiência teve o poder de mudar o curso de sua história de vida. A fé na ressurreição de Jesus distingue a fé cristã de outras crenças. A fé cristã afirma que, a exemplo de Cristo, a existência não se encerra com a morte humana.

Alvo determinado (v. 12 a 14)

A vida cristã é comparável com a corrida de um atleta que está em anda mento. O Messias conquistou Paulo para fazer parte dessa maratona. Nessa corrida aconteceram e acontecem tropeços. “A perfeição” se dará quando o alvo for alcançado. Essa afirmação estava sendo possivelmente dirigida aos adeptos da filosofia gnóstica, que acreditavam terem alcançado a perfeição.

O que tudo se passa na lembrança do apóstolo ao escrever: esqueço aquilo que fica para trás (NTLH)? A catarse que Cristo fez na vida de Paulo possibilitou uma nova história.

Brabeion é o prêmio concedido em competições esportivas. Essa corrida segue em movimento até a linha da chegada e está relacionada com a justiça que procede de Deus, baseada na fé (v. 9) e com a ressurreição dentre os mortos (v. 11). Não há a hipótese de se acomodar antes do seu final. “Vocação” – lēseōs é sinônimo de convite. A palavra latina para chamar é vocare. O chamado de Cristo vocaciona e determina a rota da corrida na qual Paulo se encontra. A vocação é soberana, grandiosa, sublime, por se tratar de um chamado divino, força transcendente que lhe põe em movimento.

O chamado de Deus realiza radical mudança na vida do apóstolo Paulo, colocando-o em movimento, em direção a um alvo específico, impulsionado pela fé em Cristo Jesus e sua ressurreição dentre os mortos.

3 Meditação

Mudança radical

Pensem num homem temente a Deus, zeloso com seus dogmas, exemplo de vida religiosa, inteligente, engajado, líder. Esse era Saulo. A mudança ocorre a partir de uma experiência pessoal incontestável.

Perdas e lucros fazem parte do raciocínio de um israelita, não por menos, entre eles estão os mais renomados economistas. É pensando na conta corrente da sua vida que o apóstolo faz seus cálculos, concluindo que o que lhe era lucro

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tornou-se perda. Perdeu status, títulos, renome. Ganhou a graça de viver por fé no que Cristo fez por ele.

“A qualificação de certas experiências de nosso passado como ‘lixo’ nos ajuda a criar espaço em nosso coração ‘para ganharmos Cristo e sermos encontrados nele’” (WEINGÄRTNER, 1992, p. 79).

De muitas maneiras o ser humano tenta domesticar a Deus. Pode ser por obras, por atos de caridade, pelo cumprimento de ritos e leis. Essa tentação sem pre vem à tona. A própria Igreja de Cristo tem suas recaídas e volta a criar artima nhas (muletas) que visam alcançar a salvação pelas próprias mãos.

Conhecer a Cristo proporcionou em Saulo a radical mudança que trouxe luz sobre as suas convicções religiosas. Surgiu de uma experiência relacional. Experi mentou pessoalmente o poder da ressurreição, participando no sofrimento de Cristo.

Fé em Cristo

Há uma tendência humana em sempre retornar ao estado de Adão. A au tocrítica do povo de Deus precisa ser constante. Ao longo da história, pessoas foram encontradas por essa graça. Paulo, Agostinho, Lutero, Bonhoeffer e tantos outros entenderam a grandeza do Evangelho de Jesus Cristo. “Confiar na carne” é semelhante a confiar nas indulgências. Somos justificados por fé e não por obras. Cristo proporcionou para Paulo uma nova compreensão teológica. Essa boa nova é apresentada para todos nós. “Antes do cristão agir, Deus já agiu em Cristo ” (WEINGÄRTNER, 1992, p. 84). Conhecer a Cristo é conhecer o poder da ressurreição. Trata-se de um poder dinâmico, vivo, trabalhando na vida de toda pessoa cristã.

O apóstolo desejava ser aceito por Deus por intermédio da obediência à lei. Por intermédio do Cristo ressurreto, que a ele se mostrou, foi alcançado pela fé. A justiça própria é a lei. A justiça e Deus é a fé em Cristo Jesus. Dialoguei com um pai que perdeu seu filho de 24 anos para a Covid-19. Trazia consigo muita revolta contra Deus. Estava inconsolável. Expressou que não conseguia acreditar em Deus. Falei-lhe que uma epidemia não é vontade de Deus. As pessoas agem sobre a natureza, causando diferentes situações que causam a morte. Resta-nos como seres humanos aprender a nos colocar em nosso devido lugar. Novamente fomos lembrados que somos imensamente pequenos a ponto de um organismo tão minúsculo nos dar um tombo tão grande. A fé em Cristo nos ajuda a enfrentar os sofrimentos, tendo como perspectiva a ressurreição dos mortos. A dor é imensamente maior quando há ausência da fé no Cristo ressurreto.

Chamado de Deus

O ter sido alcançado por fé em hipótese alguma se transformará em graça barata. A corrida segue em andamento. E segue sendo a corrida dos imperfeitos. “Já sou” e “ainda não sou” (WEINGÄRTNER, 1992, p. 84).

Deus segue nos chamando. O primeiro chamado se deu no nosso Batismo, quando Deus disse: “Eu sou seu Pai e você é meu filho amado”. Fomos batizados

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em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Em todo início de culto acontece este mesmo chamado: “Estamos reunidos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Nesse ato somos lembrados e reconhecemos que Deus é o nosso Pai. Fazemos parte de uma maratona, correndo em direção à linha de chegada. “Essa corrida acontece em função do alvo.” “Ele não perde tempo ruminando as experiências do passado” (WEINGÄRTNER, 1992, p. 85).

4 Imagens para prédica

A figura de uma corrida deve servir de linha que conecta os temas a serem en fatizados. Nela, trazemos a imagem do antes, da partida, do transcurso e da chegada. São inúmeros os relatos de pessoas que, a exemplo de Saulo, experimenta ram uma radical mudança de vida. Encontre entre os membros um exemplo que possa impactar na realidade de sua comunidade.

No altar de uma igreja havia uma cruz de pedra com duas faces. De um lado, a cruz estava vazia. Do outro, estava, numa escultura de metal, o Cristo crucificado. Alguns membros queriam que a cruz vazia ficasse exposta. Outros queriam que o Cristo crucificado ficasse em frente à comunidade. A quem contentar? De um lado está a expressão do sofrimento. Do outro lado está a glória da ressurreição. Apegamo-nos em pequenas questões e provocamos conflitos legalistas. Salomoni camente, de acordo com o ano litúrgico, a cruz era mudada de lado. É necessário entender que ambos os lados são parte da fé cristã. Lamentavelmente as pessoas perdem tempo com discussões secundárias, deixando de lado o que é essencial. Aqui pode entrar um acervo de textos que dão significado ao sofrimento e à ressurreição. “A cruz e a ressurreição estão inseparavelmente vinculadas. A cruz é tão essencial à ressurreição quanto esta àquela. Mas, sem a ressurreição, esta seria simplesmente a cruz do martírio. O sinal da vitória está na luz da res surreição” (Gustaf Aulén).

O mesmo que Cristo fez por Paulo é capaz de proporcionar em nós uma nova história.

5 Subsídios litúrgicos

Acolhida: A vida é estar numa maratona. Iniciamos a celebração lembrando a “soberana vocação de Deus em Cristo Jesus (v. 14)”, que nos chamou, no dia do nosso Batismo, para a maratona da vida.

Confissão de pecados: A corrida da qual fazemos parte é de pessoas imperfeitas. Assim lembramos o versículo 13: [ ...] uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam (v. 13). Quantos erros cometidos se passam nos pensamentos do apóstolo ao escrever essa frase?

Na confissão abre-se o caminho para a nova vida. Num momento odiamos o pecado e o confessamos; somos então perdoados e acontece a ruptura com ele – “As coisas velhas já passaram.” E ali, naquele lugar onde se rompe o pecado,

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está a conversão. Eis que tudo se fez novo (2Co 5.17). Jesus Cristo proporciona um novo começo.

Confissão de fé: Ao proferir o Credo Apostólico, sublinhe a importância da res surreição (v. 10 e 11), que nos distingue de demais crenças. O “poder da ressurreição” nos move em direção à chegada final.

Envio: Em Lucas 9. 62, Jesus nos fala: Ninguém que, tendo posto a mão no arado e olha para trás é apto para o reino de Deus. (NAA)

O apóstolo Paulo foi encontrado, perdoado e liberto para servir. A corrida continua.

Bibliografia

CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo. Guaratinguetá, SP: A Sociedade Religiosa A Voz Bíblica. v. 5. WEINGÄRTNER, Lindolfo. Em Diálogo com a Bíblia – A Carta de Paulo aos Filipenses. Curitiba: Encontrão; Belo Horizonte: Missão, 1992.

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5º Domingo na Quaresma

PRÉDICA: MARCOS 11.1-11

SALMO 118.1-2,19-29 JOÃO 12.20-33

DOMINGO DE RAMOS 10 ABR 2022

1 Introdução

Jesus: que rei é este?

A impressionante narrativa da história em que Jesus é aclamado rei em Jerusalém define um dos passos essenciais para revelar o messianismo de Jesus. A partir desse momento teremos de uma forma profunda instaurada uma ruptura. Como consta na leitura proposta do Evangelho de João: É chegada a hora. Um rei será aclamado, mas as expectativas dos que o aclamam não será alcançada, pelo menos não da forma como esperavam. Há expressões de grandiosidade como hosana nas alturas, bendito o que vem em nome do Senhor, chegou a hora de ser glorificado, mas ao lado delas há a palavra morrer. Há uma contradição, um paradoxo sem solução, pois como alguém aclamado rei pode alcançar a glória por meio da morte, sem nem mesmo ter assumido o trono para liderar politica mente a nação e impetrar a justiça de Deus mediante seu poder? A glorificação está entranhada com o morrer – tudo aponta para isso. Outros termos também se fazem presentes, entre os quais servir e justiça. Como tudo isso pode fazer sentido é o que procuraremos ver a seguir.

2 Exegese

O Evangelho de Marcos foi escrito para o contexto fora do círculo estrito da cultura religiosa judaica. É muito provável que o autor seja alguém próximo do modo como o apóstolo Paulo viveu a fé. Foi escrito por volta do ano 70. Na obra há duplicidades, o que indica o uso de uma fonte escrita preexistente, acres centando elementos próprios.

A intencionalidade da obra é clara, devendo ser vista em sua totalidade. To das as ações de Jesus possuem um objetivo, que vai muito além do acontecimento em si mesmo. Elas apontam para quem ele é. Milagres, exorcismos e outros ele mentos narrativos devem ser entendidos, em primeira mão, como sendo a forma de revelar o messianismo de Jesus. Jesus é o Messias, é o filho de Deus.

A narrativa estabelece um conflito entre a esperança messiânica predomi nante e a que está sendo revelada na pessoa de Jesus. À medida que o conflito avança, as perspectivas de cada um dos messianismos presentes são evidenciadas, acarretando diferentes formas de reação.

As perspectivas do messianismo de Jesus estão baseadas no anúncio da vinda de um reino, o reino de Deus. A esperança messiânica hegemônica estava

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relacionada a um sentimento nacionalista, que, uma vez se concretizando, faria com que houvesse novamente uma soberania política em relação à subjugação imposta pelo Império Romano, uma esperança messiânica com cunho teocrático. Já o messianismo de Jesus é de cunho universal, não está baseado em sentimentos nacionalistas, patrióticos ou culturais. Aponta, sim, para uma mudança radical de relações entre as pessoas e entre essas e Deus. Porém não se encaixa em uma for ma ou estrutura política determinada. Há a necessidade de conversão, de voltar-se para um outro horizonte.

O reino anunciado possui uma questão “estranha”. Alguns autores a denominam de paradoxo. Tem a ver com a realeza. Está implícito ou mesmo explícito que o auge da revelação desse reino passa pela morte do seu rei. Como pode um rei, como pode um reino subsistir com tamanho fracasso? Como pode um reino ser revelado em um contexto cuja morte do seu rei é efetuada com profundo requinte de crueldade? Resposta: vencendo a morte, por meio da ressurreição. Esse reino vai além da morte. Esta existe, porém não é capaz de destruir o reino. A morte põe fim nos demais reinos, menos no de Deus. O poder dos reinos deste mundo é limitado, possui todo tipo de limites e falhas; o reino de Deus vence todo mal. A leitura dos evangelhos, o de Marcos de uma forma especial, deve ser en tendida de trás para frente, ou seja, o anúncio do reino de Deus passa pela morte do Messias. Compreender a morte de Jesus é essencial para entender o evange lho. O reconhecimento do seu reinado ocorre em primeira mão pelo centurião que diz: Verdadeiramente, este homem era o filho de Deus (Mc 15.39). Morrer antes de reinar, eis a questão, o paradoxo.

A forma como o evangelista Marcos desenvolve o roteiro, em cujo centro está um conflito que fica cada vez mais evidente na apresentação dos diversos cená rios, leva-nos a concluir que há uma questão em aberto que cabe às pessoas que irão ler o seu relato; a questão diz respeito ao seguimento da história e está diretamente relacionada à fé, ao crer que Jesus é Filho de Deus, o Messias, que deveria vir ao mundo. Crer no seu reino. O evangelho é um chamado para a profissão de fé.

O texto que relata a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (Mc 11.1-11) segue o objetivo do evangelho como um todo, isto é, revelar quem é Jesus e qual o fundamento de seu messianismo. O povo grita, aclamando um rei, que vem em nome de Davi. Todo o ritual é para receber um que iria se assentar em algum trono e governar como Davi o fazia. Todos os elementos da esperança messiânica preponderante estão aqui presentes. Porém Jesus não se dirige a nenhum palácio. Ele ruma em direção ao templo – foi até o templo, entrou no templo e começou a olhar ao redor. O templo é o centro de pregação de um messianismo com o qual Jesus entra em rota de conflito. O conflito se acirra, porque segundo Marcos, no dia seguinte, ele volta ao templo e ocorre a cena em que derruba as mesas dos que comercializavam no templo. Fica evidenciada a diferença entre o que se prega a partir do templo e o que Jesus anuncia. Esse é o texto em que o conflito não tem mais volta. Está estabelecido que Jesus será morto. A partir desse ponto do rotei ro, recebe destaque o fato de que, apesar da admiração que as pessoas tinham por Jesus, elas irão abandoná-lo. Multidões são manipuladas, discípulos fogem. Pode

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ser que tenha sido por frustração, por medo ou ainda por não entenderem/crerem no que estava sendo anunciado.

É curioso um detalhe dos preparativos para esse acontecimento. Jesus en volveu outras pessoas, sem que os discípulos soubessem. Foi-lhes revelada uma senha na última hora para que um personagem inusitado pudesse fazer parte no ritual de coroação do rei. Seguindo a ideia de que tudo que Jesus faz tem um sen tido, uma mensagem, aqui o animal sobre o qual irá montar passa praticamente a resumir o “querigma”, no mínimo antecipando-o em forma do poder de envolvi mento da linguagem não verbal.

3 Meditação

Um rei que é aclamado pelo grito inflamado da população, mas que não assume o seu posto, que seria o trono de onde governam os reis. Ao contrário, ele se dirige ao templo. Um rei – tudo indica que era esta a perspectiva, que deveria governar em nome de Deus, instituir um novo governo, tendo como modelo o rei Davi. Alguns esperavam que fosse instaurar uma situação de independência econômica e política do reino de Judá. Parece que todos se decepcionaram, tiveram sua esperança frustrada.

Por que o rei foi ao templo? Por mais de uma razão. Mas a principal delas: estabelecer/reestabelecer, fundamentar a relação do povo com Deus. Para isso é decretado o fim do poder assumido pelo templo pelos seus líderes de intermediar a relação das pessoas com Deus. O templo não governa, não determina a relação com Deus, o que a governa é a fé, a confiança. Esse rei não assumirá o governo político de nenhuma nação. Eis a decepção, eis a esperança da construção de um nacionalismo religioso posto em xeque.

Nenhuma chance de entender com profundidade essa aclamação sem le vantar os olhos para o que se segue. Esse rei será julgado e morto. Somente é possível entender seu reinado a partir de sua morte. Assim como o centurião o entendeu e confessou: Ele é verdadeiramente o Filho de Deus. Esse rei governa um reino no qual devemos crer. Não é possível chegar a ele por outros meios a não ser pela fé. O templo é a comunidade que se reúne para professar a fé.

A base do reino é o serviço. O serviço tem como princípio o amor. O amor se manifesta por meio da justiça. Justiça, amor e serviço são os temas com os quais nos ocupamos para testemunhar o reino: viver segundo a justiça do reino de Deus. O que isso não significa: transformar um país em uma nação cristã, por exemplo. Não há uma forma cristã de governar, há apenas testemunho de práti cas de amor, serviço, justiça que levam ao bem-estar e à paz. Quanto ao reino, só podemos viver sinais. Nenhum modelo pode ou consegue ser o próprio reino. Geralmente quando se governa em nome do reino de Deus, comete-se um duplo equívoco: o primeiro diz respeito ao fato de que uma forma específica de vida, seja cultural, social e política, é tida como modelo para todas as pessoas. Ela passa a ser uma lei e seus líderes intermediários, ou mesmo a incorporação do modelo, passam a ser uma figura messiânica. O segundo está relacionado com a questão de que na medida em que um modelo incorpora o reino de Deus, ele

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passa a ser considerado como uma verdade absoluta, fazendo com que críticas e quem as faz sejam considerados como inimigos Perde-se a capacidade da auto crítica (da confissão dos pecados) e a possibilidade de conversão de rumos. Surge então uma visão maniqueísta entre o bem e o mal, resultando na ideia de que o mal deve ser combatido – o mal são sempre as vozes contrárias – até a morte; a morte como forma de eliminar o mal. Foi o que Jesus sofreu. A morte como um poder para manter o bem sobre o mal. A partir de Jesus, a morte perdeu esse poder, apesar de que é usada ao longo da história para manter ou pôr termo em reinos deste mundo.

O reino das ideias, o reino da política, da sociedade e da cultura são rela tivizados a partir do reino de Deus e podem ser diversos. Não podem ser abso lutizados, dogmatizados, elevados à condição de reino de Deus ou como modelo inquestionável desse. O reino de Deus não pode ser construído por mãos humanas ou por ideias humanas. Ele é uma dádiva e a receberemos por meio da ressurrei ção. Isso tem consequências práticas muito sérias nos relacionamentos.

Outro aspecto do reino de Deus a ser apontado são as renúncias. Para servir precisamos renunciar. Jesus renunciou a um determinado tipo de poder, por exemplo, para servir. O que nós podemos renunciar para servir. Servir com vistas a quê? Estas são as perguntas postas para a comunidade que se reúne em torno da fé de que Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus. Como viver a fé, a esperança no reino de Deus? Como testemunhar a sua justiça? Como viver segundo a justiça do reino de Deus no mundo?

4 Imagens para a prédica

O animal usado por Jesus é o indicativo de uma das bases da atividade do que é aclamado rei: o serviço. Serviço que inclui a renúncia do egocentrismo, do egoísmo. Lembrando o apóstolo Paulo: Ninguém busque o seu próprio interesse, e sim o de outrem (1Co 10.24; cf. Fp 2.4).

As pessoas estenderam vestes e folhagens como gestos de aclamação. Que gestos concretos de aclamação fazemos cotidianamente para aclamar o reino de Deus? Quais gestos poderíamos fazer?

O texto relata a necessidade de uma senha para ter acesso ao animal que Jesus irá montar. Qual a senha de acesso ao reino? Para muitas atividades usamos senhas. Para termos acesso ao reino basta a fé de que Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus.

Sinais: Jesus revela com sua própria vida a proximidade do reino de Deus. Toda a sua obra – vida, morte e ressurreição – revela o reino de Deus. Muitas de suas atividades são sinais desse reino. O que é um sinal? Uma forma de comunicação, a exemplo dos sinais de trânsito. O sinal ainda não é aquilo que ele indica, mas a direção ou mesmo realização, uma antecipação, uma espécie de aperitivo.

A fé que dá acesso ao reino é como árvore; ela tem uma determinada na tureza, a de produzir frutos de amor. É natural a fé produzi-los, não ocorre por constrangimento, por força de lei. É como a videira, que produz uvas e não outra

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fruta, por exemplo. O reino que esperamos é um reino de amor. A fé nele produz o amor; amor que nos fortifica, nos anima, nos faz ter esperança.

5 Subsídios litúrgicos

Gesto simbólico: Preparar tiras de panos e material para escrever ou pintar sobre elas frases ou palavras de esperança, durante o culto ou na chegada das pessoas. (Pode-se motivar as pessoas para fazer isso em casa e trazer para o culto.) Após a mensagem, enquanto estiver sendo cantado um hino, motivar as pessoas a levar as tiras sobre ou ao pé do altar, ou deixar ao longo do corredor do templo. Durante a oração de interseção, citar algumas das palavras e frases.

Confissão de pecados: Confessamos que Jesus é o Senhor, verdadeiro Filho de Deus. Pedimos pela vinda do seu reino, pela realização da sua vontade e pelo perdão. Mas será que temos reconhecido que pecamos, que carecemos da sua graça, da sua misericórdia e da sua bondade? Será que nós temos um coração aberto para o arrependimento? Para crer no evangelho e deixar que ele transforme a nossa vida? Será que estamos dispostos a renunciar a ideias e práticas centradas apenas no “eu”? E como estamos para perdoar. Ajuda-nos com essas questões, governando o nosso coração e a nossa mente para que possamos viver em paz uns com os outros.

Oração do dia: Concede-nos a fé. Auxilia-nos para que possamos, com gestos, palavras e ações, testemunhar o teu reino. O teu reino é de amor, dá que sintamos teu amor e nos inspiremos nele para vivermos bem uns com os outros e com toda a tua criação. Auxilia-nos nos sofrimentos, nas dificuldades, nas frustrações que a vida nos oferece, e possibilita que tenhamos dias bem-aventurados.

Bibliografia

BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 2005. SCHREINER, Josef; DAUTZENBERG, Gerhard. Forma e Exigências do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1977. p. 228-255.

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QUINTA-FEIRA DA PAIXÃO 14 ABR 2022

PRÉDICA: 1 CORÍNTIOS 11.23-26

ÊXODO 12.1-4(5-10),11-14 JOÃO 13.1-17,31b-35

Discernir o corpo

1 Introdução

Não é a primeira vez que este texto, previsto para a pregação na Quinta -Feira Santa, está sendo contemplado com uma meditação nesta série de auxílios homiléticos. Vale a pena comparar as anteriores (cf. PL v. V, p. 65; v. 24, p. 127; v. 27, p. 94; v. 37, p. 120). Cada uma possui suas características. É o que, a seu modo, vale também para os textos laterais. No livro do Êxodo é falado da preparação da primeira celebração da Páscoa antes de Israel sair do Egito. É o evento fundante desse povo, comemorado anualmente em grande ritual. Também Jesus nele se inspira, reunindo-se com seus discípulos “na noite em que foi traído” para com eles comer a Páscoa (Mc 14.12s; 1Co 11.23). Enquanto isso o assunto do Evangelho de João é o lava-pés ocorrido na mesma ocasião. Ambos os textos, pois, têm relação, mais ou menos direta, com a Santa Ceia cristã. E é essa que está em foco nesse texto da Primeira Carta aos Coríntios, razão para dedicar-lhe privilegiada atenção.

Paulo lança mão de tradição em curso nas comunidades. Assim ele o diz, e assim o confirmam os paralelos nos evangelhos sinóticos (cf. Mt 26.26-29; Mc 14.22-24; Lc 22.17-20), caindo em vista a particular afinidade entre a versão de Lucas e a citada por Paulo. Não há necessidade de discutir neste contexto a relação entre elas. Basta constatar haver concordância no sentido de atribuir a origem do “sacramento do altar” a um ato “instituinte“. E é isso o que interessa à pregação nesta oportunidade.

2 O texto

A citação da tradição, que Paulo diz ter recebido do “Senhor”, tem finali dade polêmica. A formulação certamente não sugere que ela remonte a uma reve lação especial ao apóstolo. Reveste-se, isto sim, da autoridade do próprio Jesus Cristo, imune a emendas ou manipulações verbais. Ela se volta contra abusos na celebração da ceia na comunidade de Corinto. Houve quem a aproveitasse para verdadeira comilança. Já naquela época o ato sacramental havia sido transferido para o final da reunião, distinto da agape, que consistia numa refeição comum. Para esta os membros traziam os comes e bebes de casa para consumi-los em conjunto. E é ali que aconteciam os excessos.

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Evidentemente, ninguém ficava excluído do sacramento no final da reu nião. E, no entanto, houve quem voltasse faminto para casa. Em vez de repartir com os irmãos e as irmãs, os membros mais abastados ficavam entre si e se re galavam, transformando a “ceia do senhor” numa “ceia própria” (11.21). Desconsideravam os membros pobres, obrigados a comparecer mais tarde devido a compromissos que tinham com os amos a que serviam. A ceia, pois, em vez de ser um exemplo de amor fraternal, exibia vergonhosa desigualdade social. Paulo fala até mesmo em “cismas” (11.18). A lembrança das palavras da instituição pre tende corrigir uma prática em flagrante desacordo com o espírito do evangelho. E, com efeito! As palavras proferidas por Jesus na oportunidade não dei xam dúvidas quanto ao sentido do que veio a ser chamado “santa ceia”. Ela ce lebra a memória daquele momento, obedecendo à ordem de seu Senhor para re petir o gesto (11.24-25). Mesmo assim, seu significado não se esgota num ato comemorativo. As palavras de Jesus afirmam uma presença. Qualificam o pão distribuído entre os comungantes como sendo seu próprio corpo dado em favor dos comungantes, sim, em favor da humanidade. Algo análogo vale para o cálice. Ele representa a nova aliança firmada no sangue de Jesus. Reside nisso o específico dessa ceia. Nela já não comemos pão qualquer, e, sim, o corpo de Cristo. Nós não tomamos bebida qualquer, e, sim, aquela à qual Jesus associa a constituição da nova aliança de Deus com seu povo. Na história da igreja, muito se tem discutido sobre como entender a identificação em ambos os casos. Tem-se desenvolvido a ideia da transubstanciação. Essa diz que, no ato da consagração, pão e vinho se transformariam milagrosamente em corpo e san gue de Jesus. É essa a concepção da igreja católica até hoje. O luteranismo pensa de modo diferente. Afirma a presença de Cristo “em, com e sob” os elementos, concepção essa que não prende Jesus na hóstia e no cálice. Vincula a presença de Jesus Cristo não à “substância” de pão e vinho, e, sim, ao uso que deles se faz. Exclui-se dessa forma também o abuso dos mesmos como remédios sobrenatu rais contra a desventura.

Verdade é que aquele “é” não tem equivalente na versão aramaica, língua que Jesus falou. Eis a razão por que, em princípio, a questão deve permanecer aberta. E, no entanto, a passagem de 1 Coríntios 10.16 indica uma pista. Ela fala em “comunhão”. Pão e vinho estabelecem comunhão com o corpo e sangue de Jesus. Eles são sinais representativos dos mesmos. Por eles Jesus se faz presente. Servem-lhe como meios de comunicação.

Assim sendo, cai sob juízo uma prática que abusa da ceia para simples mente encher a barriga e até mesmo embriagar-se. A crítica de Paulo é categórica: Será que vocês não têm casas onde podem comer e beber? (11.22). A ceia da co munidade distingue-se radicalmente de uma festa qualquer destinada à diversão dos membros. Muito pelo contrário! A presença de Jesus Cristo no pão e no vinho confere ao consumo daqueles elementos natureza sagrada. É preciso discernir o corpo, diz o apóstolo (11.29), ou seja, importa fazer jus ao fato de ali, no pão e no vinho, encontrarmos o próprio Jesus Cristo. Ai de quem os desrespeita nesta qualidade. Torna-se culpado de participação indigna (11.27).

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Isso significa que a Santa Ceia permanece sendo a “ceia do Senhor”. Ela não permite ser transformada numa “ceia da comunidade”. Como tal exige um comportamento que lhe corresponde. Jesus Cristo reprova o desinteresse na sorte dos pobres. Seu corpo compromete com o espírito que lhe é devido, insistindo em partilha dos recursos e em cuidado com os menos favorecidos. O corpo de Jesus Cristo não pode ser dissociado do corpo da comunidade. O respeito àquele implica o bem-estar deste. Por isso mesmo diaconia não é nada opcional. Ela é atribuição inalienável da igreja cristã.

Diga-se de passagem ser necessário afastar a conotação moralista da advertência de evitar a participação indigna. Jesus não exclui pecadores. Foi exatamen te a esses que se sabia enviado (Mc 2.17). Ele não barra o acesso ao sacramento para gente consciente de suas dívidas com Deus, arrependida de seus pecados. Quem de fato se exclui são as pessoas impenitentes, aquelas que resistem a reconhecer seu pecado e que, portanto, se consideram “justas”. Da mesma forma, porém, celebração indigna acontece pela transformação da ceia em escândalo público, assim como se o observa em Corinto. O corpo de Cristo exige o cuidado com os irmãos e as irmãs carentes.

3 Meditação

Os problemas da comunidade de Corinto não são os nossos. Na IECLB, a celebração da Santa Ceia já há tempo deixou de ser acompanhada por algo semelhante à agape como isso era usual na igreja antiga. Hoje as festas da comunidade costumam acontecer em momentos distintos. Verdade é que também com relação a essas pode haver motivos de preocupação. Podem desandar, acabar em “bagunça” e envergonhar a comunidade cristã. É claro que ela não pode tolerar tais abusos. Entretanto, recomenda-se não confundir entre a situação em Corinto e a nossa. Mesmo assim, existe um desafio comum entre ontem e hoje. Reside na exortação de “discernir o corpo”. Paulo constata verdadeira profanação da ceia em Corinto. Pão e vinho já não estão sendo vistos como mediadores da presença de Jesus. Eles servem apenas como ensejo para uma festa. É o que merece o protesto do apóstolo. Ele lembra serem os elementos portadores de um “poder de salvação”, portanto algo sagrado. Vale a pena insistir nisso também junto às comunidades da IECLB. Quando os instrumentos da Santa Ceia são jogados sem cuidado na sacristia, como já o vi, vejo um paralelo remoto com o que aconteceu em Corinto. Estarei errado ao diagnosticar certo desleixo na IECLB com respeito à celebração condigna da ceia do Senhor?

Aliás, como igreja de confissão luterana, nós nos orgulhamos de ser igreja da “palavra”. Jesus se comunica por pregação e ensino do evangelho. E é bom que assim façamos. Importa lembrar, porém, haver além da “palavra audível” também uma “palavra visível”. Jesus se encarna no pão e no vinho da Santa Ceia, dando com isso ênfase à visibilidade do testemunho como tal. Não é por acaso que em Corinto faltasse a preocupação social. Pois quem despreza o exemplo visível do evangelho não terá escrúpulos em ignorar as pessoas necessitadas ao lado. O confronto com Jesus Cristo no pão e no vinho impossibilita tal insensi

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bilidade. Ela conflita com o espírito daquele Senhor que, por nós, a si mesmo se entregou e em cuja morte celebramos a constituição de um novo pacto com seu povo. Isso significa que à palavra falada deve associar-se o gesto explicativo, diaconal, caritativo. Sem diaconia o evangelho perde a credibilidade. Outro aspecto implícito na exortação de “discernir o corpo” é a dimensão universal da paixão de Jesus. A cristandade celebra em Jesus o início de um novo tempo. No seu sangue, ou seja, em sua morte, Deus firma nova aliança com seu povo. Cumpre-se antiga profecia (Jr 31.31s). É verdade que é surpreendente a es cassez da expressão no Novo Testamento. Em outra passagem o apóstolo fala do “ministério da nova aliança” que, como pregador do evangelho, lhe foi confiado (2Co 3.6). Mais explícita é a passagem da Carta aos Hebreus que compara as duas alianças, a antiga e a nova (Hb 8.8s). No mais, porém, a nova aliança não é tema. Tanto mais importante é a tradição da Santa Ceia, para a qual esse tópico é fundamental. Cristo morreu para os nossos pecados (1Co 15.3s). Muito de acordo com isso, a cristandade apregoa a irrupção de novidade neste mundo. Trata-se de convicção que permeia o testemunho cristão como tal e lhe imprime a marca. É por isso que a coletânea de escritos apostólicos, na qual a igreja reconhece sua norma de fé, é chamada de “Novo Testamento”. Em tradução verbal isso significa “Nova Aliança”. Distingue-se assim dos escritos do “Antigo Testamento”. Esses certamente não perdem sua validade, visto que Deus não revoga seus compromis sos assumidos com o povo de Israel. E, no entanto, os termos do antigo pacto são excedidos pelo novo início que Deus fez em Jesus Cristo. O antigo pacto está sendo “globalizado”, estendido a todas as criaturas da terra e por isso também em certos aspectos reformulado. Incluem-se nesse pacto também os povos não cristãos. Vale a pena refletir sobre a novidade que com Cristo foi introduzida no mundo. Assim sendo, todos os movimentos que falam de uma radical mudança nos rumos históricos da humanidade, a exemplo da Nova Era, chegam tarde. A prin cipal virada já aconteceu. É verdade que o anseio por um outro mundo, diferente deste que aí está, recuperou vigor. O coronavírus para tanto contribuiu. As pessoas estão cansadas das restrições impostas a seu convívio. Suspeitam que maciços interesses corporativistas aí se misturam. Será verdade? Ética na comunicação passou a ser uma das grandes urgências da atualidade. Sonhamos com um modelo de so ciedade que prima por veracidade e que já não esteja fixado no fetiche do lucro e no princípio da brutal concorrência. Diz-se que depois do coronavírus o mundo já não será o mesmo. De fato, o mundo terá que mudar. Pergunta-se se para melhor ou para pior. De qualquer maneira, é grande o anseio por mudanças radicais que venham em benefício de um mundo maltratado e de povos explorados. A promessa de uma nova aliança de Deus com seu povo vem em boa hora.

4 Imagens para a prédica

Não é de hoje a visão de um mundo sem fome. O texto para a prédica na Quinta-Feira Santa vem colocá-la novamente em pauta. O respeito ao corpo de Cristo não permite o desrespeito à sorte dos Lázaros à nossa porta. À luz da polê mica do apóstolo com a comunidade de Corinto, as desigualdades sociais, chagas

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na maioria dos países, adquirem especial gravidade. O novo pacto de Deus com seu povo não prevê “pandemia da fome” nem bolsões de miséria nos centros ur banos espalhados pelos continentes. A celebração da Santa Ceia é oportunidade para tal lembrança, bem como motivação da comunidade para esforços na remoção desse mal. Pelo que somos informados, não faltam as condições para alcançar a meta. Sobram alimentos no mercado internacional. O problema é a distribuição, o desperdício, a solidariedade. O que falta é a comunhão entre irmãos e irmãs, de que o corpo de Jesus Cristo é imperativo e símbolo.

5 Subsídios litúrgicos

Oração do dia: Senhor, nosso Deus! Na pessoa de Jesus Cristo mostras que não te satisfazes em permanecer em distância virtual. Queres proximidade “presencial”, materializada em pão e vinho da Santa Ceia. Nós te agradecemos pela coragem de arriscar tal comunhão conosco. Faze com que se traduza em fraternidade em nossa sociedade, sinalizando algo do novo pacto já inaugurado em Jesus Cristo. Amém.

Confissão de pecados: Nós abominamos a maldade que não deixa de ser reali dade também em nós. Sempre de novo nossas boas intenções sofrem derrota. Perdoa-nos a fraqueza, isso não só em termos individuais. Existem pecados so ciais, embutidos em estruturas, costumes e práticas viciadas. Tua presença queira fortalecer nosso testemunho e nossa ação, corrigindo o que está errado. Nós te rogamos: Kyrie eleison!

Intercessão: Senhor, nós intercedemos por um mundo terrivelmente dividido. Aparentemente necessitamos de inimigos em que descarregamos a culpa pelas agressões entre os povos, as raças, as religiões, enfim entre nós e os outros. A cada dia aumentam as polarizações, resultando em perigosos conflitos. Nós te pedimos por paz neste mundo. Trazemos perante ti as vítimas das atrocidades cometidas por guerras quentes e frias, por violência e perseguição, por ódio e cinismo. Ouve seu clamor e concede-lhes o teu socorro. Nós te pedimos por tua igreja. Capacita-a para a ação corajosa no mundo em testemunho do novo pacto que firmaste por Jesus Cristo. Nós rogamos: venha o teu reino. Amém.

Bibliografia

BRAKEMEIER, Gottfried. A primeira carta do apóstolo Paulo à comunidade de Corinto. Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal, 2010.

CONZELMANN, Hans. Der erste Brief an die Korinther. 11. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1969. (Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament, 5. Abt.).

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Quinta-Feira da
Paixão

PRÉDICA: LUCAS 23.33-49

OSEIAS 5.15b – 6.6 HEBREUS 4.14-16; 5.7-9

SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO

1 Introdução

Salva-te e a nós também

O quadro pintado pelo texto de Lucas 23.33-49 tem como motivo principal a crucificação e as diversas reações de seus expectadores. Zombaria, escárnio, confissão, lamento e contemplação são retratados. O texto de leitura vindo do profeta Oseias aponta para a obstinação do povo de Deus e para a cura por ele mesmo providenciada. Em foco estão o reconhecimento de culpa e a busca pela face do Senhor (cf. Os 5.15). A ferida feita é ferida que será sarada. No texto de prédica, o ferido é o próprio Jesus, sobre quem se pergunta se seria, de fato, o Cristo de Deus. A ferida é assumida por ele no monte Calvário e nele está dis ponível a cura a todas as pessoas, em todos os tempos. Em Lucas, misturam-se na cena aqueles que reconhecem sua culpa e enxergam na face do crucificado o próprio Senhor e aqueles que se negam a fazê-lo. Já o texto de Hebreus 4.14-16 convida, por sua vez, a chegarmo-nos junto ao trono da graça de Deus, onde se encontra o sacerdote que se compadece de nossas fraquezas (cf. Hb 4.16), o qual é Jesus, o Cristo de Deus sofredor, fraco, angustiado e tentado. Ele, porém, sem pecado e obediente no sofrimento, foi feito pelo próprio Deus Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem (cf. Hb 5.9).

2 Exegese

O texto da prédica inicia com o relato da chegada ao Calvário (tradução latina de Gólgota [heb.] = caveira, lit. crânio [kranion], talvez devido ao forma to do local em questão) e da crucificação de Jesus entre os dois malfeitores já mencionados no v. 32. Os v. 33 a 38 descrevem as diversas opiniões e atitudes dos que acompanham o acontecimento, enquanto os v. 39 a 43 relatam o diálogo entre Jesus e os dois criminosos que com ele compartilham da mesma sentença. De uma visão mais geral que aponta para opiniões diversas de observadores, Lu cas se volta para o protagonista da cena em um diálogo muito pessoal. De uma perspectiva mais intimista, os v. 44 a 49 fazem o leitor se voltar novamente ao significado mais amplo do acontecimento, relatando o desfecho do espetáculo (theorian). Sinais como o escurecimento do sol, o véu do santuário que se rasga, o clamor de Jesus ao Pai em alta voz, lamento e contemplação marcam a cena. Também no momento de sua morte, Jesus é para Lucas claramente o médico que veio para os que estão doentes (cf. Lc 5.31-32 e par.) e que em meio à zombaria e

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injustiça clama ao Pai pelo perdão aos seus acusadores porque não sabem o que fazem (v. 34; cf. At 7.60). O pedido de Jesus fundamenta ainda a possibilidade de arrependimento no último momento devido à ignorância dos judeus, motivo que é retomado na pregação apostólica (cf. At 3.17 e 13.27). Isaías 53.12, no cântico do servo do Senhor, e o v. 18 do Salmo 22 lançam uma luz especial sobre as atitudes para com Jesus narradas no v. 34. A questão principal é alcançada no v. 35, a saber, na pergunta pelo reconhecimento ou não do Cristo de Deus na pes soa de Jesus de Nazaré. O evento é observado pelo povo e a zombaria dos líderes religiosos vai na direção da mentalidade deles mesmos. O que importa e o que confirmaria a identidade de Jesus, na sua opinião, seria a salvação de si mesmo. O que Jesus, o Filho de Deus, porém, realiza na cruz é justamente o contrário, abrin do mão da salvação de si mesmo para salvar outros. Os soldados escarnecedores fazem com que se cumpram com Jesus as palavras do Salmo 69.21: Por alimento me deram fel e na minha sede me deram a beber vinagre. Os soldados oferecem vinagre a Jesus (Marcos ressalta que uma vez lhe foi oferecido vinho misturado com mirra, utilizado como sedativo [Mc 15.23] e que depois foi lhe dado ainda vinagre [Mc 15.36]). O escárnio dos soldados ressalta o que já fora destacado em Lucas 23.2, ou seja, a acusação de que Jesus teria buscado perverter a nação contra César, afirmando-se como rei. João, ao relatar a cena, afirma que Pilatos teria sido o responsável pela inscrição sobre a cruz: Jesus Nazareno, o rei dos judeus (cf. Jo 19.19), palavras essas que parecem uma síntese do que encontramos como conteúdo da epígrafe sobre a cruz de Jesus aqui em Lucas 23.38 e do que lemos nos outros sinóticos (veja Mt 27.37; Mc 15.26).

Somente Lucas dá atenção ao diálogo entre os crucificados. De um lado, a reação é de blasfêmia e, de outro, de temor a Deus, reconhecimento da própria culpa e de que Jesus estava a sofrer castigo injustamente. O v. 42 ainda aponta para o pedido em confiança na vinda do Reino que é, sim, de Jesus. O clamor re flete a fé de que Jesus é o Cristo. A resposta de Jesus ao pedido realizado afirma a realidade do Reino como dimensão presente no “hoje”. A expectativa messiânica do primeiro criminoso apresenta-se como certeza de que o verdadeiro Cristo salvaria a si mesmo e os criminosos da condenação recebida, de que o Cristo tomaria o Reino e livraria do jugo opressor romano. O segundo criminoso lança seu olhar para o Reino que vem e que é, sim, conforme Jesus, para “hoje” como grandeza temporal, como eternidade experimentada, mas que ainda assim não significa o livramento imediato da cruz no Calvário, mas o “paraíso” como grandeza espacial que remete à ideia recebida a partir da compreensão bíblica do jardim de Deus em Gênesis.

O escurecimento do sol e as trevas durante três horas (da hora sexta até a hora nona, que correspondem, pela contagem judaica, do meio dia às três horas da tarde) e o rompimento ao meio do véu do santuário do templo de Jerusalém, o qual separava o Santo dos Santos como local da presença de Deus, são sinais que apontam para a amplitude, para o significado do “espetáculo” observado pela multidão presente (cf. v. 48), pelos soldados (cf. v. 36 e pelo seu comandante, o centurião, cf. v. 47) e também por seguidores e seguidoras de Jesus desde a Ga lileia. O evento tem consequências cósmicas. Nele a história da salvação atinge

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seu ponto alto e por meio dele a separação que existia entre Deus e o povo é desfeita. O v. 46 descreve o momento exato da morte de Jesus. Entregando-se completamente nas mãos do Pai, utilizando-se das palavras do Salmo 31.5 (assim como também o faz o mártir Estêvão, cf. At 7.59), Jesus morre. Representativas são as reações do centurião e da multidão reunida. O centurião dá glória a Deus (cf. v. 47), reconhecendo Jesus como homem justo, enquanto a multidão retirava -se a lamentar e a bater no peito em sinal de perplexidade. Os seguidores e as seguidoras de Jesus desde a Galileia contemplam de longe o que acontece. Lucas 8.1-3 dá destaque às mulheres que seguiam Jesus e que, inclusive, lhe prestavam assistência com seus bens.

3 Meditação

Jesus fora julgado de forma nada imparcial e condenado à cruz como criminoso. Com isso a multidão de judeus e suas autoridades, aliadas dos ro manos, estavam satisfeitas. A opinião de Caifás, relatada pelo evangelista João, representa bem o pensamento da liderança judaica: Nem considerais que vos convém que morra um só homem pelo povo, e que não venha a perecer toda a nação (Jo 11.50). Levado ao Calvário e crucificado, Jesus morre, enfim, por conveniência. Ironicamente, Caifás acaba afirmando que a morte de Jesus aconte ceria por toda a nação. Ainda que a preocupação de Caifás se limite ao momento político específico, o evangelista João faz o mesmo que o evangelista Lucas no texto da prédica: ambos olham para além, para o significado amplo e decisivo do que está acontecendo com Jesus.

Lucas descreve a maneira como o evento é encarado por diversos grupos. Por detrás de zombaria e escárnio apresenta-se a pergunta decisiva: poderia ser Jesus de Nazaré o Cristo, o ungido de Deus (cf. v. 35)? A pergunta pelas creden ciais de Jesus permeia o relato dos quatro evangelhos. Como um malfeitor conde nado e crucificado entre outros dois criminosos poderia ser o Cristo? Enfatizando o escárnio sofrido, o sorteio de suas vestes e a zombaria por parte das autoridades presentes, Lucas faz o leitor atento lembrar de que tudo isso já estava nos planos de Deus. Palavras do Antigo Testamento lançam luz sobre esses planos, con cretizados no evento que agora é testemunhado. Claro que isso só enxergam os olhos da fé! As personagens presentes na hora da crucificação são descritas como senhores da situação e a ironia é que Lucas mostra que justamente na zombaria e no escárnio fazem cumprir o plano de Deus. Como nos outros evangelhos, tam bém em Lucas é preciso enxergar que Jesus não vai ao encontro de expectativas e interesses que limitam seu Reino à perspectiva humana imediatista, egoísta e utilitarista, para dizer o mínimo. Mas não são somente as autoridades judaicas e romanas que têm uma visão equivocada sobre o que Jesus deveria fazer. Vemos nos evangelhos que os próprios discípulos se mostram, por vezes, totalmente afastados dos propósitos de seu mestre. O evangelista Marcos, por exemplo, faz questão de mostrar quão insistentes eles são, a caminho de Jerusalém, em sua ânsia por poder político, domínio e benefícios para o agora (basta lermos com atenção os capítulos 8, 9 e 10 de Marcos), enquanto Jesus fala de sua morte e

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ressurreição. Para ser reconhecido como Cristo, Jesus deveria, então, salvar a si mesmo, seguindo a mesma lógica que governa este mundo. Não é a si mesmo, porém, que Jesus quer salvar. Sua lógica é a do Reino, da entrega e do serviço ao próximo (cf. Lc 9.23ss). Somente na sua entrega está a nossa salvação!

Deixando de lado a multidão e os diversos grupos de espectadores por um momento, Lucas procura mostrar nos v. 39-43 de que maneira o acontecimento torna-se um confronto pessoal que leva inevitavelmente a um posicionamento de fé. Também um dos ladrões ao lado de Jesus é deflagrado em sua visão equivoca da sobre o Messias. A resposta à pergunta pela identidade de Jesus marca também a hora final dos dois criminosos crucificados ao seu lado. É preciso perceber que o serviço prestado por Jesus não é como qualquer favor que possamos, de alguma forma, prestar a alguém. Discípulos de Jesus servem porque foram servidos por ele, que sendo Deus serviu em primeiro lugar (cf. Fp 2.6-7). Discípulos e discípulas de Jesus são como o criminoso perdoado ao lado de Jesus. A diferença é que tiveram tempo para viver um pouco mais e que, no tempo que lhes resta, vivem em gratidão a quem lhes salvou. O serviço feito por Jesus na cruz não pode ser substituído por nenhum outro, pois Jesus é o Cristo, o ungido de Deus. A sentença que desgraça a vida do criminoso na cruz ao lado não é por si só o que lhe serve como força propulsora para o favorecimento, como uma espécie de “purgatório”, que o isenta da necessidade do que apenas o Messias pode lhe oferecer. Sofrer como pecador é resultado óbvio! O que não é óbvio é que o justo sofra daquela forma (veja o v. 41). E é essa a injustiça que Jesus encara. Jesus de Nazaré não é apenas mais um crucificado entre tantos e isso precisa ser reconhecido. Ele é o Messias, o Filho de Deus. A partir disso é necessário dizer que também quem não tem mais a esperança de “descer da cruz” para poder realizar qualquer serviço, quem não tem mais tempo para qualquer boa obra que “limpe sua barra” diante dos seus e da sociedade, tem seu destino decidido pelo confronto pessoal com o Jesus crucificado, em quem os olhos da fé podem enxergar o ungido de Deus, o caminho para estar “hoje mesmo” no paraíso.

Por fim, o relato aponta para o significado do evento da cruz bem para além de opiniões pessoais. Certo é que no “espetáculo” assistido não se trata de um evento isolado, resultante apenas de mais uma arbitrariedade do governo romano em parceria com as lideranças judaicas, nem de um evento meramente íntimo, que faz diferença apenas no coração de um criminoso arrependido, que, na hora final, sem alternativa, investe todas as suas fichas no mestre Jesus. Lucas relata a consternação e o lamento dos espectadores, os sinais no cosmos e no templo, que acompanham a crucificação de Jesus e apontam para sua abrangência e centrali dade na história da salvação de Deus.

No v. 46, lemos que Jesus entrega-se inteiramente nas mãos do Pai. Sua obra está realizada. Ainda antes o sol se escurece e o véu do santuário se rompe. Existe algo a mais, para além da esfera de domínio daqueles que se pensam no controle da situação. Lucas relata um fato que convida à fé. Responder positi vamente ao convite significa colocar-se em sintonia com os planos de Deus que acontecerão, por fim, quer queiram ou não. Não é a aceitação em fé da pessoa de Jesus por parte de alguns ou a zombaria e descrença por parte de outros que torna

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o evento relevante, como se a fé produzisse um sentimento bonito que faz ver algo onde nada existe. Para Lucas, os eventos fazem parte da história universal e seu testemunho é relato do ponto alto da história da salvação de Deus que acon tece no Calvário e confronta todas as pessoas. Para ele não é assim que “fé cada um tem a sua e sobre religião a gente não discute!”.

O relato chama-nos a um posicionamento frente ao que acontece com o Cristo de Deus, o salvador dos pecadores, o médico que veio para os que estão doentes (cf. Lc 5.31-32) e que assume a morte sobre si mesmo. O posicionamento frente à sua pessoa, a confissão de que ele é o Cristo (cf. 1Jo 2.22) decide tanto de que forma viveremos adiante “hoje mesmo” quanto se, ao findar nossa vida por aqui, estaremos ou não com ele no paraíso. Jesus não deixa o criminoso confesso (veja o v. 41), o pecador que sobre ele coloca sua confiança sem sua palavra de esperança, sem sua promessa que faz olhar adiante! Jesus não deixa aquele dia de trevas e pavor sem apontar para o que viria pela frente. Na sexta-feira de sua paixão Jesus aponta para o terceiro dia, para a ressurreição. Que o Espírito Santo nos conduza à fé em Jesus, a um posicionamento claro de fé “hoje mesmo” e à esperança na promessa da vida da ressurreição. Amém.

4 Imagens para a prédica

Muitos são os episódios dos próprios evangelhos que trazem imagens que podem ressaltar a congruência entre o agir de Jesus ao enfrentar a cruz e o seu anúncio do Reino e proceder já anteriormente. Vários são os confrontos de Jesus, especialmente com as autoridades e líderes religiosos judaicos, que mostram a falta de entendimento a respeito de sua missão e identidade e a pergunta pe las suas credenciais. O segundo aspecto a ser ressaltado na prédica a partir do diálogo entre Jesus e os criminosos ao seu lado é a exclusividade da pessoa e obra de Jesus na cruz e a aceitação confiante dessa obra por fé. Muitas palavras do apóstolo Paulo sublinham o aspecto da salvação por graça e fé e poderiam ser conectadas a essa parte da prédica. Também trechos do reformador Lutero podem servir como apoio.

5 Subsídio litúrgico

A pergunta pela presença de Deus em meio ao sofrimento, em destaque nos últimos tempos devido à pandemia, e a ausência de respostas que apontem na direção de um Messias que “desce da cruz” e tudo resolve instantaneamente com poder podem ser elucidadas em algum momento por meio da imagem da crucificação de Cristo de Matthias Grünewald (1470-1528), do altar de Isenheim (facilmente encontrada na Internet). A imagem ajudará a ressaltar (1) o Cristo para além das expectativas messiânicas marcadas por imediatismo e utilitarismo, de uma teologia da glória; e (2) a presença de Deus levando sobre si mesmo, em Cristo, a peste e a morte.

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Bibliografia

GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. In: FASCHER, E.; ROHDE, J.; WOLFF, C. (Hg.). Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. 9. Aufl. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1981. v. 3. MORRIS, L. L. Lucas. Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1983.

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PRÉDICA:

ATOS 10.34-43

SALMO 118.1-2,14-24 1 CORÍNTIOS 15.19-26

DOMINGO DA PÁSCOA

Nasce uma nova comunidade

1 Introdução

Se para este Domingo da Páscoa a mensagem central é a afirmação do apóstolo Pedro de que a este ressuscitou Deus no terceiro dia (At 10.40), então temos aí motivo de extraordinária alegria. A alegria por causa dos grandes feitos de Deus está refletida também nos textos do AT e do NT sugeridos como leitura para este domingo.

O Salmo 118 convida a render graças ao Senhor, porque ele bom, porque a sua misericórdia dura para sempre. Se, por um lado, o salmista se refere a expe riências como castigo (v. 18), morte (v. 18) rejeição (v. 22), por outro lado, refere-se a experiências de salvação (v. 14), do ser acudido (v. 21), da certeza de não morrer (v. 17), da não entrega à morte (v. 18), da certeza de viver (v. 17) e à experiência de a pedra rejeitada tornar-se a pedra angular (v. 22). Apesar de todos os males experi mentados, a destra do Senhor faz proezas (v. 15 e 16). Esse é o motivo dos cânticos e do júbilo manifestado pelo salmista. Ser agraciado pelas obras do Senhor (v. 17) é uma experiência que quer ser testemunhada (v. 17). Por tudo isso a leitura do salmo está em evidente harmonia com a mensagem da Páscoa.

O apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 15, chama para a esperança voltada para a realidade que está além das limitações desta vida (v. 19). O único fato capaz de sustentar essa esperança é a mensagem da ressurreição de Cristo (v. 20). Enquanto a marca da descendência de Adam é a finitude e a morte (v. 21), o Cristo ressuscitado é o novo Adam, que inaugura a nova criação na qual todo o mal deste mundo (v. 24), a própria finitude humana e a morte são vencidas (v. 21, 22 e 26). Eis o motivo de excepcional alegria.

2 Considerações exegéticas

A afirmação do apóstolo Pedro de que a este ressuscitou Deus no terceiro dia (At 10.40) está no contexto de seu discurso na casa de Cornélio. Vale destacar esse contexto por estar diretamente relacionado à mensagem central do texto. Pedro está em Jope, hospedado na casa do curtidor Simão. Cornélio, de Cesareia, tem uma visão em que um anjo lhe ordena chamar Pedro à sua casa para poder ouvir suas palavras (10.22). Então Cornélio envia três mensageiros a Jope. Antes que esses cheguem ao destino, Pedro também tem uma visão: viu o céu aberto e descendo um objeto como se fosse um grande lençol [...] contendo toda sorte de

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Rodolfo Gaede Neto

quadrúpedes, répteis da terra, e aves do céu. E ouviu-se uma voz que se dirigia a ele: Levanta-te, Pedro; mata e come. Mas Pedro replicou: De modo nenhum, Senhor, porque jamais comi cousa alguma comum e imunda. Segunda vez a voz lhe falou: ao que Deus purificou não consideres comum (10.11-15).

No dia seguinte, Pedro, na companhia de alguns irmãos residentes em Jope, dirigiu-se a Cesareia. Entrou na casa de Cornélio e encontrou muitos reu nidos ali. Suas primeiras palavras foram estas: Vós bem sabeis que é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se a alguém de outra raça, mas Deus me demonstrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo (10.28). Pedro continua seu sermão testemunhando que Deus não faz acepção de pessoas (10.34) e que ele é Senhor de todos (10.36). Afirma também que esse mesmo Deus ungiu Jesus, que fez o bem, curou as pessoas oprimidas do diabo e foi morto na cruz. A este ressuscitou Deus no terceiro dia (10.40).

O contexto descrito enriquece imensamente a mensagem do nosso texto para o Domingo da Páscoa. Pois, se a mensagem da ressurreição de Jesus é a razão da existência da igreja, então o episódio na casa de Cornélio nos oferece um exemplo de como a pregação dessa mensagem gera o nascimento de uma comunidade cristã. A comunidade que nasce na casa de Cornélio a partir da pregação de Pedro, reunindo as pessoas vindas de Jope com as de Cesareia, revela a característica genuína de uma comunidade cristã. O genuíno deve-se ao fato de reunir debaixo do mesmo teto pessoas que antes não podiam nem ao menos se aproximar umas das outras. A religião judaica ordenava tomar distância de pessoas de outras raças; proibia entrar na casa de pessoas pagãs e, muito mais ainda, proibia comer a comida de gentios. Aqui, pessoas de identidade judaica e pessoas de identidade gentílica se encontram. Pedro, que anteriormente tanto defendia a necessidade de conversão dos gentios ao judaísmo para, depois, poderem aderir à fé cristã, agora esteve hospedado na casa do curtidor Simão e passa a estar hos pedado na casa de Cornélio, ambos não judeus. Portanto trata-se de um momento muito especial na incipiente história da religião cristã.

Quanto a isso, merece atenção a tese dos irmãos Ekkehard e Wolfgang Stegemann, segundo a qual o nascimento do cristianismo se deu, de fato, no mo mento em que não judeus se agregaram à comunhão judaica dos adeptos de Jesus. Esse acontecimento constitui algo novo: as pessoas seguidoras de Jesus estão ligadas entre si, independentemente de sua procedência étnica.

Os mencionados autores situam, geograficamente, esse “evento fundante” do cristianismo em Antioquia, onde, de acordo com Atos 11.26, os discípulos são chamados, pela primeira vez, de christianoi (cristãos), justamente quando sua pregação a judeus e gregos resultou a adesão de representantes de ambos os gru pos (At 11.19,20). Antes disso, o posicionamento das pessoas seguidoras de Jesus não passava de um movimento destoante no interior da própria religião judaica.

Os acontecimentos em Antioquia são tratados também em Gálatas 2.11-21: Paulo repreende Pedro que, por receio da censura das lideranças de Jerusalém, suspendera sua comunhão de mesa com gentios. O argumento teológico de Paulo em favor dessa comunhão é a justificação do ser humano, não por obras da lei, mas pela fé em Cristo.

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Paulo, que se considera especialmente chamado para a missão entre os gentios, tem agora, a partir dos episódios em Jope e Cesareia, a parceria de Pedro, cujas atitudes reforçam a necessidade de superação das barreiras étnicas, raciais, culturais e religiosas nas comunidades por eles fundadas. Trata-se da renúncia a uma identidade de grupo excludente. Essa superação é necessária para tornar possível a convivência diária de judaico-cristãos e gentílico-cristãos na comunidade. Portanto trata-se aqui da vida em comunidade no sentido genuinamente cristão. Sem a superação das barreiras não há inclusão, nem pertencimento nem comu nhão. Com a superação há tudo isso, mais missão e crescimento.

A formação de comunidades cristãs a partir do encontro de judeus e gentios teve, de acordo com os irmãos Stegemann, um desenvolvimento tal que, após o ano 70, as pessoas cristãs não judaicas passam a formar a maioria nas comunida des fora do território de Israel.

3 Meditação

A mensagem da ressurreição de Cristo é força geradora de comunidades. Essas comunidades têm uma característica muito própria. Elas se distinguem pela sua abertura. Diferenciam-se categoricamente de guetos. Para a prédica da Pás coa é importante eleger um conceito capaz de dar conta desse perfil de comunida de e, assim, poder manter um foco claro durante a homilia. Creio que o conceito hospitalidade nos conduz para o cerne daquilo que teologicamente caracteriza a comunidade nascida da Páscoa. Vejamos alguns argumentos.

O conceito hospitalidade tem a sua origem no termo grego philoksenia, que se compõe de philos (amigo) e ksenos (estrangeiro, estranho). Portanto trata -se da acolhida amigável oferecida ao estranho/estrangeiro. O contrário chama-se xenofobia, uma composição de ksenos (estrangeiro) e phobos (medo). Nas assim chamadas obras de misericórdia, registradas em Mateus 25.31-46, Jesus inclui o acolhimento ao forasteiro como prática determinante no contexto do juízo divino (no texto aparece quatro vezes o termo ksenos para designar a pessoa estrangeira, que foi ou não hospedada).

Jesus faz referência à hospitalidade do reino de Deus usando a metáfora do banquete. Para o banquete do Reino, todas as pessoas são convidadas, indis tintamente: as das encruzilhadas, das ruas, dos becos, as pessoas más e boas, as pobres, aleijadas, cegas e coxas (Lc 13.29; 14.16ss; Mt 22.1-14).

Pedro, em sua pregação na casa de Cornélio, afirma que Deus concedeu que a ressurreição de Jesus fosse manifestada a um grupo restrito de testemunhas, ou seja: a nós que comemos e bebemos com ele (v. 41). Com isso Pedro fundamenta seu apostolado na experiência de ter participado da hospitalidade praticada por Jesus nas frequentes comunhões de mesa, refeições abertas para todas as pessoas.

Em Lucas 14.12-14, Jesus convida o fariseu a alargar seu conceito de hos pitalidade e convidar para suas ceias também “os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos”. Dentre as quatro categorias mencionadas, três são de pessoas com deficiência, discriminadas por causa da lei da pureza.

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Em culturas antigas como a egípcia e a israelita, a hospitalidade represen tava o direito de asilo a pessoas perseguidas (Hb 11.31; Tg 2.25). O historiador Eduardo Hoornaert afirma que os missionários jesuítas conseguiram, por um tem po, transformar as aldeias indígenas em “asilos”, ou territórios livres em que os indígenas se tornavam intocáveis pelos seus perseguidores. Contudo, constata o mesmo autor, o direito de asilo no Brasil não se aplicava aos escravos. Decre taram as ordenações filipinas: “Se o escravo (ainda que seja cristão) fugir a seu senhor para a igreja, acoutando-se nela para se livrar do cativeiro em que está, não será por ela defendido, mas será por força tirado dela” (HOORNAERT, 1978, p. 125). Eis a experiência de negação da hospitalidade por parte da igreja. Durante a ditadura civil-militar no Brasil, depois de 1964, pessoas politi camente perseguidas refugiavam-se nas igrejas, ambientes considerados seguros e protegidos. Era a igreja exercitando a hospitalidade.

Nas romarias dos trabalhadores e das trabalhadoras sem-terra, que per corriam grandes distâncias no contexto das mobilizações em favor da Reforma Agrária na década de 1980, essas multidões de caminhantes eram hospedadas pelas comunidades cristãs localizadas próximas ao roteiro da caminhada, providenciando alimentação e repouso.

Se a igreja cristã nasceu no momento em que a xenofobia foi superada na relação entre judeus e gentios, que passaram a conviver pacificamente no seu dia a dia apesar de todas as suas diferenças, cabe resgatar o conceito de hospitalidade para as comunidades cristãs da atualidade, que também são frutos da mensagem da ressurreição de Cristo.

Como fazê-lo na prédica desta Páscoa? A pregadora e o pregador terão a sensibilidade de levar em conta o contexto específico de cada comunidade, o momento histórico em que estamos vivendo de pós-pandemia e de polarização política, e terão a sabedoria de apresentar para a comunidade os desafios que ela tem condições de assimilar e suportar neste momento. Importa não transformar o culto de Páscoa em cobranças que deixarão as pessoas ouvintes com sentimento de culpa e impotência. Cabe exercitar o empoderamento da comunidade para que ela, positivamente, e com o sentimento da alegria que provém da superação de barreiras (como está sugerido nas leituras do AT e NT) possa vislumbrar peque nas e grandes vitórias sobre nosso jeito xenofóbico de viver e de ser comunidade. Importa incentivar a comunidade a colocar-se a caminho de uma vida comunitá ria genuinamente cristã, no sentido de como o apóstolo Pedro ensina: aberta ao estranho. Pois a mensagem da ressurreição de Cristo é força geradora de comuni dades que têm a característica genuína da hospitalidade.

4 Imagens para a prédica

Na intenção de contribuir para a moldagem da prédica, apresento dois fa tos. O primeiro pode servir para nos mostrar onde, em geral, estamos com a nossa xenofobia e pode nos desafiar a renunciar a uma identidade de grupo excludente. O outro pode servir para nos mostrar a possibilidade de superação do nosso medo do estranho e mostrar a possibilidade de exercício da hospitalidade.

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Em certa comunidade da IECLB, um jovem colaborador estava incumbido do trabalho com os confirmandos e as confirmandas. Nos sábados de manhã, reunia-se com o grupo no salão comunitário, ensinava, cantava, brincava, fazia dinâmicas, de modo que os encontros se tornavam bem animados. As janelas do salão davam para a rua. Na rua geralmente estavam alguns adolescentes que cuidavam dos carros estacionados. Esses, atraídos pelos sons dos cantos e das brin cadeiras, postavam-se curiosos nas janelas para observar o que ali acontecia. O jovem colaborador começou a convidá-los para entrar e participar das atividades. Não se passaram muitas semanas até que o colaborador foi chamado pela diretoria da comunidade para lhe dizer o seguinte: “Não vamos misturar as coisas; você está encarregado de trabalhar com as nossas crianças; vamos deixar o pessoal da rua fora disso”.

Na cidade de Gravatá, Pernambuco, nasceu uma nova comunidade da IECLB. Ela é fruto da mensagem da ressurreição de Cristo, mensagem essa tor nada concreta por meio de um projeto diaconal-missionário de iniciativa da dia conisa Gerda Nied, desenvolvido a partir do ano de 1996. O projeto envolvia principalmente crianças e mulheres. O endereço da comunidade é a favela do bairro Riacho do Mel. Os membros da nova comunidade são habitantes dessa favela. Sobre o culto de Páscoa do ano de 1997 a irmã Gerda escreve: “Tivemos um momento de celebração significativo e uma festa alegre, que igual o povo de Riacho do Mel nunca havia presenciado” (NIED, 2017, p. 167). Num outro encontro, a Maria Joseja subiu numa cadeira e declarou aos presentes: “Já me sinto uma luterana” (p. 173). Outras pessoas manifestaram o mesmo sentimento e alguém declarou: “Para nós nasceu o sol” (p. 173). Após um culto de Natal na favela, as pessoas reunidas criaram uma versão adaptada de um hino da IECLB: “Aqui nós temos lugar, nós temos lugar aqui. Aqui nós somos felizes, não vamos sair daqui” (p. 182). Irmã Gerda também relata: “Maria Joseja, Ana das Graças e Risomar são as primeiras três que manifestaram o desejo de participar da igreja luterana. Num ato solene, durante o culto, são acolhidas como membros e, como sinal visível da sua filiação, recebem uma Bíblia” (p. 180).

Bibliografia

HOORNAERT, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro, 1550-1800. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1978.

NIED Gerda. Apesar de tudo abraçar a vida. 2. ed. rev. e ampl. São Leopoldo: Sinodal, 2017.

STEGEMANN, Ekkehard W.; STEGEMANN, Wolfgang. O nascimento do cris tianismo. Estudos Teológicos, v. 40, n. 3, p. 74-90, 2000. p. 78ss.

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Domingo da Páscoa

2º DOMINGO DA PÁSCOA

PRÉDICA: JOÃO 20.26-31 SALMO 118.14-29 APOCALIPSE 1.4-8

Pesquise: Proclamar Libertação, v. 37, p. 138ss www.luteranos.com.br (busca por João 20.26-31)

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Domingo da Páscoa

PRÉDICA:

ATOS 9.1-6(7-20)

SALMO 30 JOÃO 21.1-19

3º DOMINGO DA PÁSCOA 01 MAIO

As conversões de Paulo e Ananias

1 Introdução

O Salmo 30 é o testemunho de quem se julgava acima e a salvo de qualquer coisa e que de repente se viu por baixo, fragilizado, sem perspectiva ou horizon tes. Mas é também a experiência de quem, pela misericórdia de Deus, tornou a se levantar, depois de uma noite longa e escura de pranto, para reencontrar a alegria do novo amanhecer.

João 21 narra o reencontro dos discípulos com o Ressuscitado numa re feição eucarística totalmente nova, celebrada não mais no cenáculo, mas à beira -mar. Na ocasião, Pedro, que estava desconsolado e corroído pelo remorso, se re concilia com seu Mestre e experimenta o poder redentor do perdão e o reencontro com a missão.

Ambos os textos, do salmo e do evangelho, têm em comum com a perícope de Atos 9 a experiência da conversão (metanoia) e do reencontro com a verda deira missão.

2 Exegese de Atos 9.1-20 (comparar com At 22.4-11; 26.9-18)

O livro de Atos destaca o protagonismo dos apóstolos Pedro e Paulo. No capítulo 9, Paulo entra em cena e, a partir daí, os paralelismos entre os dois apóstolos serão recorrentes. A perícope que agora estudamos é frequentemente referida como “a conversão de Paulo” e, de fato, a ênfase da narrativa recai sobre a mudança de mentalidade, de comportamento e até de caráter de um certo Saulo de Tarso. Queremos, contudo, também apontar para uma outra conversão que é descrita no texto, mas que geralmente não ganha muito destaque. Trata-se da trans formação pela qual passa um certo Ananias.

Tal como no relato de Atos 3, da cura do coxo na porta Formosa do Tem plo, ocasião em que notoriamente se deu uma dupla conversão (a do coxo ao Cristo representado por Pedro e também a de Pedro ao Cristo, reconhecido no coxo) aqui, em Atos 9, há igualmente uma dupla conversão: a de Paulo e a de Ananias. Ambos passam por uma transformação no seu jeito de ver, julgar e agir.

Chamamos a atenção para a importância dessas conversões: a de Pedro ao coxo e a de Ananias a Paulo. Sem essa mudança de mente e coração, de fé e prática, a formação de Paulo como missionário estaria incompleta.

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Na análise que faremos a seguir, procuraremos apontar para alguns desses aspectos e procuraremos resgatar a importância de alguém como Ananias para a história e a missão da igreja.

Saul: Saulo (Saulos), respirando (empneo = inspirar) ameaças e morte (phonos, de pheno = assassinar) (v. 1) – Saulo, cujo nome tem origem hebraica (Saul = “desejado”), posteriormente será mais conhecido pela versão grega do seu nome, Paulo (Paulos) equivalente ao nome latino Paullus, que significa “pe queno ou menor”, ou ainda “de baixa estatura”.

Por que essa alusão às diferentes grafias do nome é importante? Porque ela evidencia quão cosmopolita era esse famoso apóstolo. Hebreu de alta estirpe, fariseu convicto e erudito, fora destacado aluno do famoso sábio hebreu Gama liel. Tarso, sua cidade natal, era muito desenvolvida culturalmente e ali ele fora iniciado no conhecimento dos poetas e filósofos gregos. Pode-se facilmente detectar traços do estoicismo em suas convicções e hábitos. Os estoicos estavam convencidos de que, para se obter a plena realização, é preciso deixar de lado as ansiedades e a preocupação com as coisas supérfluas e buscar viver uma vida austera, pela qual o essencial não se deixa corromper pelo acessório.

Ao que tudo indica, quanto ao título de cidadão romano, esse fora herdado do seu pai, que o obtivera, por sua vez, provavelmente, por ocasião de certa bata lha ocorrida na cidade de Tarso, na qual os judeus que ali viviam se juntaram aos romanos para defender a cidade do ataque de estrangeiros. Como reconhecimento por essa demonstração de lealdade, o imperador outorgou aos que lutaram o título de cidadãos romanos.

Esse Saul, fariseu convicto, incorporara a intolerância dos fundamentalistas intransigentes. Fundamentalistas desse tipo não se contentam em ter convicções próprias, eles precisam impô-las sobre os demais e subjugar qualquer um que tenha ideias diferentes das deles. Acumulam tanta energia repressiva que têm disposição para sair do conforto do seu lugar e transpor longas distâncias para perseguir quem não se enquadre nos seus esquemas mentais, comportamentais ou se coadunem em suas mundividências. Por onde vão, os fundamentalistas carregam consigo sua truculência. Assim era Saul: cheio do espírito (pneuma) da morte.

Não nos devemos esquecer jamais que Saul, mais que impassível, consen tira no suplício de Estêvão (cf. 8.1).

Influente que era, obtém carta de recomendação da parte do sumo sacerdo te, principal autoridade do templo e do Sinédrio. Ora, o Sinédrio era o conselho judaico que tinha jurisdição sobre todos os judeus, tanto os de Jerusalém como os que residissem em qualquer outro lugar da terra.

Tais cartas de recomendação eram equivalentes a mandados judiciais que conferiam a ele o poder de extraditar eventuais cristãos que se houvessem refugiado no exterior, neste caso em particular, na cidade de Damasco (cf. v. 2).

Damasco distava de Jerusalém cerca de 230 quilômetros e a viagem a pé durava cerca de uma semana. A disposição e energia negativas que movem um fundamentalista é algo difícil de ser compreendida. Tal sentimento de rancor é realmente poderoso, a ponto de levá-lo a investir tamanhos recursos e esforços nessas ações repressoras e persecutórias.

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Seguindo ele estrada fora, ao aproximar-se de Damasco (v. 3) – Damasco, atual capital da Síria, com mais de cinco mil anos de história, é uma das cidades mais antigas do mundo. Localizada próxima à cordilheira do Antilíbano, onde está o monte Hermon, a montanha sagrada onde, dizem alguns, Jesus teria se transfigurado.

Subitamente uma luz do céu brilhou ao seu redor (v. 3) – Consta-se que a região é afetada por fenômenos meteorológicos violentos quando o ar quente da planície se encontra com o ar frio da montanha, produzindo impressionantes tormentas com trovoadas ruidosas e descargas elétricas lampejantes.

Se Saul tiver sido atingido por uma dessas tempestades assustadoras, isso explicaria em parte sua interpretação mística dessa experiência. Experiências místicas semelhantes têm se repetido na história com diferentes pessoas. Para citar dois casos famosos, lembramo-nos aqui de Lutero e dos irmãos Wesley, que tiveram experiências espirituais determinantes quando se viram face a face com o poder divino manifestado nas forças da natureza.

Cegado [pelo clarão do relâmpago ou do raio?], Saul, caindo por terra, ou viu uma voz (v. 4). O estrondo soou como a voz daquele a quem ele perseguia: Saulo, Saulo, por que me persegues? (v. 4). Quem és tu, Senhor? (v. 5), pergunta o atônito viajante. E a resposta que obteve foi: Eu sou Jesus, a quem tu persegues (v. 6). Tais palavras produzem um efeito devastador e acabam derrubando por terra também as mais sólidas convicções de Saul. Que sentido faz perseguir quem quer que seja, se estamos a ponto de ser exterminados a qualquer momento por um raio? Se escapar dessa, daqui para frente, tudo será diferente. Essa é a reação razoável de quem sobrevive a tamanho susto. E, felizmente, a voz lhe oferece uma saída: levanta-te e entra na cidade, onde te dirão o que te convém fazer (v. 6).

Então, se levantou Saulo da terra e, abrindo os olhos, nada podia ver (v. 8). O arrogante embaixador da reta doutrina, dono de todas as certezas e conhecedor de todas as verdades, agora se vê impotente, desnorteado, e terá que ser guiado pela mão de outras pessoas até seu destino. Mas que destino?

Três dias sepulcrais, durante os quais nada podia ver, nem comer nem be ber. O velho Saul estava definitivamente sepultado.

Ananias: Ora, havia em Damasco um discípulo chamado Ananias (v. 10). Ananias é um nome de origem hebraica que significa “graciosamente dado pelo Senhor”. Em Atos 22.12, Ananias é referido como sendo piedoso conforme a lei, tendo bom testemunho de todos os judeus que ali moravam. Daí infere-se que era ao mesmo tempo um discípulo de Jesus e um judeu leal, fiel observador dos preceitos da tradição de Israel.

Disse-lhe o Senhor numa visão: Ananias! Ao que respondeu: Eis-me aqui, Senhor! Então, o Senhor lhe ordenou: Dispõe-te, e vai à rua que se chama Di reita, e, na casa de Judas, procura por Saulo, apelidado de Tarso; pois ele está orando e viu entrar um homem, chamado Ananias, e impor-lhe as mãos, para que recuperasse a vista (v. 10-13). Se a visão de Saul fora vaga e imprecisa, a de Ananias é exatamente o oposto. Precisa nos mínimos detalhes: o endereço exato, os nomes do hospedeiro e do hóspede e sua condição física, incluindo o gesto certo que deveria realizar para que o hóspede recuperasse a visão.

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Ananias reluta, pois sabe de quem se trata e de quantos males [Saul] tem feito aos teus santos em Jerusalém (v. 13). A fama de Saul o precedia. Sabia que ele viera a Damasco portando autorização dos principais sacerdotes para pren der a todos os que invocam o nome de Jesus (v. 14).

Não obstante, o Senhor lhe disse: Vai, porque este é para mim um instrumento (skeuos = vaso, implemento, utensílio, ferramenta, equipamento) escolhi do para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel (v. 15). Nesse verso está sintetizado o escopo do apostolado de Paulo: instrumento de Deus para evangelizar os gentios, preocupado em melhorar a reputação dos cristãos entre os nobres e os líderes políticos do seu tempo, sem se descuidar dos seus compatriotas judeus, porque sempre começava suas campa nhas visitando as sinagogas locais. O fato de o apóstolo ter se dedicado a levar prioritariamente o evangelho aos gentios explica por que a versão greco-latina do nome prevaleceu sobre seu equivalente hebreu. E que “vaso” seria mais adequa do para desempenhar tal função senão Paulo?

Eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer (paschō = padecer, da mesma raiz de Páscoa) pelo meu nome (v. 16). E, de fato, sofreu: foi perseguido, expulso de cidades, algumas vezes teve que fugir escondido para salvar a vida, foi ape drejado até o darem por morto, açoitado, preso e amarrado com os pés no tronco, foi espancado pela multidão em Jerusalém, foi vítima de acusações falsas e julga mentos injustos, sofreu naufrágios, foi picado por cobra venenosa e, por fim, foi decapitado por Nero em Roma.

Mas nada disso aconteceria sem que Ananias se convertesse, sem que se desvencilhasse de seu temor e das suas desconfianças, sem que assumisse, pela fé, o risco de se colocar face a face com o algoz implacável dos cristãos. Não deve ter sido fácil para Ananias fazer isso. Certamente temia por sua vida. Mesmo assim, Ananias foi e, entrando na casa, impôs sobre ele as mãos, dizendo: Saulo, irmão, o Senhor me enviou, (v. 17) – Ananias confia na visão que tivera e nos surpreende ao saudar o hóspede, tratando-como irmão.

Tais palavras, Saulo, irmão, serviram para selar um novo tempo: o perseguidor, de agora em diante, passará a ser perseguido; aquele que estava cheio do espírito de ameaças e morte, agora está cheio do Espírito Santo (v. 18); o inimigo se fez irmão.

As escamas que caem dos olhos de Paulo também são as vendas que se de satam do seu entendimento. Sente-se, agora, uma nova criatura, e se deixa batizar, isto é, morrer para ressuscitar com Cristo, para, em seguida, alimentar-se com o pão partilhado, eucarístico, que fortalece seu corpo e reanima seu espírito. Ba tismo e Eucaristia selam e celebram o nascimento de uma nova história de vida.

E logo pregava, nas sinagogas, a Jesus, afirmando que este é o Filho de Deus (v. 20).

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Meditação: Caminhos de conversão

Quem és tu, Senhor? (At 9.5).

Os primeiros cristãos eram chamados de “Os do Caminho”. Nos escritos lucanos, a metáfora do caminho é recorrente. No evangelho, Jesus e seus discípu los estão sempre a caminho: por ocasião do seu nascimento, na sua adolescência, no seu ministério público... e mesmo ressuscitado se revela no caminho aos ca minhantes de Emaús. Os Atos dos Apóstolos são descritos na forma de jornadas, viagens e itinerários que vão de Jerusalém, passam pela Judeia e Samaria e se estendem até os confins da terra.

Outra maneira de nos referirmos ao livro de Atos seria chamá-lo de “Cami nhos da Missão”. O evangelho é pregado nas caminhadas, nas fugas, nas trilhas, nas estradas, nas viagens, nos tombadilhos de navios em trânsito, ao longo das famosas vias construídas pelos romanos...

Conversão ao Cristo: É no caminho que Saulo se converte a Cristo. Re conhece-o em meios aos fenômenos da natureza. Jesus se identifica com aqueles a quem Saulo perseguia, daí que converter-se a Cristo é converter-se àqueles e àquelas que são perseguidos, injustiçados, oprimidos e reprimidos por seu com promisso com o Novo Mundo de Deus.

Conversão ao outro: Não existe conversão ao Cristo sem conversão ao outro. Essa também é a experiência de Ananias. Desafiado por Cristo, o Senhor, Ananias se põe a caminho e sai ao encontro de Saulo. O inimigo dos do Caminho será agora tratado como “meu irmão”. Não é fugindo dos inimigos que mudamos o mundo, mas enfrentando-os em nome do Cristo, que quer fazer de nós todos irmãos e irmãs caríssimos.

Conversão é mudar o jeito de ver o mundo, de andar no mundo, de ver o próximo (inclusive o inimigo), de ver o Cristo no próximo.

Conversão à missão (kerygma): Depois do encontro com Jesus na na tureza, do encontro com Jesus no próximo (Ananias), e do encontro com Jesus nos sacramentos do pão (Eucaristia) e da água (Batismo), Paulo se encontra com Cristo na missão. Por essa razão se põe a caminho, indo de sinagoga em sinagoga, pregando (keryssō = proclamar) que Jesus é o Filho de Deus.

Conversão é o encontro com a missão, com o kerygma, com a verdade do evangelho que não pode ser contida nem escondida nem guardada, pois é o tipo de mensagem que só pode ser proclamada.

Conversão ao martírio: Conversão é, por fim, o encontro com o testemu nho (martyria), pois eu lhe mostrarei quanto lhe importa sofrer (paschō = pade cer, da mesma raiz de Páscoa) pelo meu nome (v. 16). O testemunho (martyria) cristão ganhou o sentido de martírio, de sofrimento, aquele que sofre e dá a vida por sua fé.

Assim foi com o apóstolo Paulo. Como dito acima: foi perseguido, expulso de cidades, algumas vezes teve que fugir escondido para salvar a vida, foi ape drejado até o darem por morto, açoitado, preso e amarrado com os pés no tronco,

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foi espancado pela multidão em Jerusalém, foi vítima de acusações falsas e julga mentos injustos, sofreu naufrágios, foi picado por cobra venenosa e, por fim, em sua derradeira páscoa, foi decapitado por Nero em Roma.

Caminhar com Cristo é um exercício de permanente conversão ao Cristo, ao próximo, ao inimigo, à natureza, à missão, ao testemunho... até a derradeira e definitiva Páscoa.

4 Imagens para a prédica

Experiências dramáticas como a que envolveu a conversão de Paulo não são incomuns nas crônicas do povo de Deus.

Da biografia de Lutero extraímos que, em julho de 1505, quando de via gem, retornando para Mansfeld, fora fustigado por uma forte tempestade. De repente um raio o jogou ao chão e feriu sua perna. Os desdobramentos dessa experiência foram tamanhos que Lutero decidiu abandonar o estudo do Direito e ingressar no mosteiro agostiniano em Erfurt. Não fosse aquela tempestade aterra dora, talvez nunca tivéssemos o nosso Lutero tal como o conhecemos.

Experiência similar tiveram os irmãos John e Charles Wesley, durante sua viagem da Inglaterra para Georgia, no ano de 1735, em alto-mar, a bordo do ve leiro Simmonds, quando se viram em meio a uma apavorante tormenta. Enquanto a maioria se desesperava, um grupo de passageiros se mantinha impassivelmente calmo e, conquanto a água entrasse no barco e a vela principal se rasgasse, continuavam a cantar salmos. Mais tarde, John perguntou-lhes: “As vossas mulheres e os vossos filhos não tiveram medo?”. Ao que aqueles admiráveis viajantes morá vios responderam: “Não, as nossas mulheres e crianças não têm medo de morrer”. Essas experiências marcariam profundamente a espiritualidade de Paulo, de Lutero, dos irmãos Wesley e, quem sabe, possamos incluir aqui a nossa própria história de encontro com Cristo no enfrentamento das tormentas da vida.

5 Subsídio litúrgico Súplica e intercessão

Ó divino protetor, tu tens sido o nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente nas tribulações. Não temos mais ninguém a recorrer, a não ser a ti, fonte de todo o bem. Tu és bondoso e santo, ó Deus, e só tu, com o poder do teu amor, os enfermos podes levantar.

Deus das tempestades e vendavais, em meio às tormentas da vida, que nos trazem tanto sofrimento e temor,

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3º Domingo da
Páscoa

só tu podes nos restituir a alegria e nos fazer sorrir novamente. Ensina-nos, nós te suplicamos, a nos voltar para ti, em todas as circunstâncias, pois és tudo o que precisamos. Que, mesmo em meio às maiores ameaças, possamos reconhecer tua presença protetora e, assim, descansar serenamente, confiados nas tuas promessas. Por Cristo Jesus. Amém.

Bibliografia

BARCLAY, William. Hechos de los apóstoles: Nuevo Testamento. El. Edin burgh: Saint Andrew, 1974. (Nuevo Testamento comentado).

BUTTRICK, George Arthur. The Interpreter’s Bible: The Holy Scriptures in the King James and Revised standard versions with general articles and intro duction, exegesis, exposition for each book of the Bible. New York: Abing don-Cokesbury, [1951-1957]. 12 v.

RAMOS, Luiz Carlos. Deus das tempestades e dos vendavais. 2018. Disponível em: <https://www.luizcarlosramos.net/deus-das-tempestades-e-dos-vendavais/>. Acesso em: 13 jul. 2021.

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4º DOMINGO DA PÁSCOA 08 MAIO 2022 PRÉDICA: JOÃO 10.22-30

SALMO 23 APOCALIPSE 7.9-17

Ser ou não ser ovelha? Eis a questão!

1 Introdução

A imagem da “ovelha” como símbolo da pessoa crente é antiquíssima. Tal vez por sua mansidão, facilmente incorremos no erro de associar o discipulado cristão à inofensividade e à passividade das ovelhas. As perícopes previstas para o 4º Domingo da Páscoa querem nos ajudar a construir novas perspectivas.

O famoso Salmo 23 é palavra de consolo e fortaleza; não é apenas para “acalmar”, mas também para encorajar quem caminha pelo vale da sombra da morte (v. 4) e quem precisa estar na presença dos meus adversários (v. 5). O texto de Apocalipse 7.9-17 apresenta o consolo que o Cordeiro de Deus oferta aos que vieram da grande tribulação (v. 14), uma analogia aos mártires cristãos que não apostataram de sua fé diante do terror imposto pelo Império Romano. O Evan gelho de João 10.22-30 apresenta um dilema discipular: ser ou não ovelha? A partir da pergunta feita pelos judeus sobre sua messianidade, Jesus empodera suas ovelhas e denuncia que “quem poupa o lobo, sacrifica a ovelha” (Victor Hugo).

2 Exegese

O capítulo de João 10 pode ser dividido em três partes. Na primeira parte (v. 1-21), encontramos três imagens que qualificam o pastor como “bom”: o pastor e o ladrão (v. 1-6), a porta (v. 7-10), o pastor que dá a vida pelas ovelhas (v. 11-21). Essa parte encerra com uma ameaça à vida de Jesus, na qual ele é acu sado de estar endemoniado. A segunda parte (v. 22-39) é uma espécie de epílogo da perícope anterior, visto que retoma a mesma temática: ovelhas, conhecer-se, seguir, escutar a voz, doação da vida. Assim como a parte anterior, essa também encerra com uma ameaça à vida de Jesus, desta vez uma tentativa de prendê-lo. Na terceira e última parte (v. 40-42), trata-se de uma conclusão, na qual o evange lista João faz referência a João Batista com a finalidade de repetir mais uma vez que o Batista é inferior a Jesus. A perícope prevista para a pregação encontra-se na segunda parte.

O texto bíblico inicia localizando temporal e geograficamente a cena: é in verno, provavelmente pelo fim de dezembro. Jesus está no templo, mais precisamente no Pórtico de Salomão, durante a Festa da Dedicação. Essa festa lembrava a purificação do templo de Jerusalém, consequência da vitória de Judas Macabeu sobre Antíoco IV (1Mac 4.36-59; 2Mac 1.9-18; 10.1-8), que durante três anos

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Gerson Acker

usou o altar do templo para oferecer sacrifícios ao deus grego Zeus. Assim sendo, a festa representava a expulsão dos elementos estrangeiros do centro religioso e a recuperação da identidade judaica baseada na pureza ritual e no exclusivismo étnico e religioso.

O templo era um dos mais importantes elementos de agregação e identidade da comunidade judaica. Mas essa identidade estava sendo ameaçada com as afirmações que Jesus fazia sobre si, sobre Deus e sobre a natureza da relação com Deus. Jesus propunha uma relação de fé e confiança com Deus, em detrimento de normas de pureza e ritos estipulados pela Lei, relativizando a centralidade do templo. Logo, isso podia ser entendido como ameaça à identidade de diversos grupos no judaísmo. Flanagan sintetiza a intencionalidade teológica do evange lista da seguinte maneira: “João pode muito bem ter pretendido uma ligação entre Jesus como aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo e a festa da dedicação, comemoração da consagração do Templo depois da profanação síria. Se assim for, essa é mais uma tentativa de João de mostrar como Jesus substituíra as insti tuições judaicas” (FLANAGAN, 1999, p. 124).

É fácil perceber o conflito entre a sinagoga e as comunidades cristãs no tempo em que João escreve o seu evangelho. A sinagoga, tentando reencontrar sua rígida identidade, decidira expulsar os judeus que aderiram à fé em Jesus. Procurava dissuadir os cristãos inseguros, alegando-lhes que ele não era o Mes sias, o Cristo. Contudo, João mostra que a fé em Jesus deve ser mantida tendo em vista as suas obras de amor.

O debate entre Jesus e os judeus (a NTLH traduz como “povo”) assume formas de processo público. A questão em debate é se esse “Jesus-ameaça” é o Messias. Evidentemente, os judeus não entenderam as imagens sobre o bom pas tor (v. 1-21) e por isso desejam uma declaração explícita: Se tu és o Cristo, dize-o francamente (ARA). É importante perceber que a incredulidade não está na falta de clareza. Jesus sempre falou claramente e suas obras testemunham em seu favor (v. 25). O povo não acredita, porque não são suas ovelhas (v. 26).

Jesus afirma que as minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem (v. 27 ARA). Três verbos ganham destaque e indicam a profundi dade da relação entre Jesus e as pessoas que em torno dele se congregam: ouvir, conhecer e seguir. É imprescindível “ouvir” a voz do pastor. O verbo “conhecer” expressa uma relação existencial, profunda, íntima com o Cristo. O verbo “se guir” significa aderir a seus ensinamentos, às suas propostas e ser cúmplice de seu projeto. Logo, conhecer e seguir culminam no discipulado!

O bom pastor não apenas dá a vida pelas ovelhas, ele promete a vida eterna e que ninguém as arrebatará de sua mão (v. 28). A promessa de Jesus para quem ouvir sua voz e seguir sua proposta é de vida eterna. Em meio a um ambiente hostil, no qual viviam as primeiras comunidades cristãs, as palavras de Jesus oferecem segurança e fortalecem a comunidade a continuar resistindo. A verda deira comunidade que segue os princípios de Cristo não poderá ser arrebatada ou destruída, porque Deus é mais forte do que tudo e todos. Por isso é possível interpretar a expressão aquilo que é maior do que tudo (v. 29) de duas formas. A primeira, como a autoridade concedida pelo Pai ao Filho; a segunda, como a co

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munidade (as ovelhas) sendo o maior bem que Jesus recebeu de Deus. Esse bem precioso ficará bem guardado sob a proteção de Deus.

A afirmação eu e o Pai somos um (v. 30) pode ser compreendida em dois sentidos. O primeiro aponta para a filiação de Jesus e Deus. Joachim Jeremias afirma que no Evangelho de João o termo “Pai” quase se tornou sinônimo de Deus. Obviamente essa interpretação causa grande escândalo entre os judeus. Em segundo, eu e o Pai somos um pode ser entendido como união de propósito, ou seja, Jesus comparou o modo como ele e o Pai são “um”, com o modo como ele queria que os discípulos fossem “um”.

3 Meditação

As ovelhas são animais gregários, sensíveis e inteligentes, são capazes de distinguir diferentes expressões da face de outros integrantes do rebanho, identi ficar os componentes do grupo, lembrar-se de acontecimentos ocorridos há dois anos e reconhecer a voz do seu pastor. As ovelhas não têm dúvidas quando o assunto é reconhecer o seu tutor. Penso que não somente a voz, mas a forma de manejo e a forma de agir do pastor faz com que as ovelhas o identifiquem e tão logo o sigam.

O capítulo 10 de João é um verdadeiro “aprisco” no qual a temática do pastor e de suas ovelhas é desenvolvida com diversas nuanças. Na perícope em estudo, há uma pergunta central dirigida a Jesus: Você é ou não o Messias? (v. 24c NTLH). No contexto das primeiras comunidades cristãs, responder a essa per gunta representava algo identitário, no mundo pós-moderno, com seus próprios desafios e tantos “falsos messias”, essa questão precisa continuar sendo pauta.

Jesus deixa evidente ao longo de seu ministério que sua forma de viver e sua forma de pregar são inseparáveis. Seu falar e seu agir apontam para a íntima relação que ele tem com o Pai. Sua pregação e suas ações (curar, salvar, ensinar) mostram sinais da vida eterna. Portanto os discípulos e as discípulas de Jesus do passado e do presente reconhecem o messias como aquele que com palavras e ações prega o amor e aponta para o reinado de Deus. Aqueles que não creem nisso, não são minhas ovelhas (v. 26b), diz Jesus.

Confesso que tenho um pouco de dificuldade com esse tipo de sentença de exclusão. Como comunidades cristãs, buscamos ser inclusivas e acolhedoras, mas não podemos obrigar ninguém a seguir Cristo – exceto que tenhamos uma visão doentia e deturpada do que é a missio Dei. Há que se perceber que algo essencial está em discussão – o ser ou não ser ovelha é uma questão de escolha! Ser ou não ser ovelha é questão de fé. Porém, uma vez a escolha sendo feita, o ser ovelha aponta para uma existência de constante discipulado. O que identifica uma ovelha, segundo o evangelista João, é o escutar, o conhecer e o seguir o pastor. Sejamos sinceros conosco mesmos, nossos “apriscos-comunidades” estão cheios de ovelhas surdas, que não conhecem plenamente o evangelho e que têm dificuldades de seguir o bom pastor.

Não podemos romantizar o discipulado! Optar por ser ovelha é um cons tante desafio. É romper com a ideia de que o ser ovelha é sinônimo de passividade

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4º Domingo da Páscoa

e permissividade diante das atrocidades do mundo. Jesus colocou-se diante do sistema político-religioso-social do seu tempo, denunciando os abusos e sinais de morte. Ser ovelha é comprometer-se com a causa revolucionária do evangelho, como escreve George Orwell no livro “A revolução dos bichos”:

Nascemos, recebemos o mínimo alimento necessário para continuar respirando, e os que podem trabalhar são exigidos até a última parcela de suas forças; no instan te em que nossa utilidade acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade. Nenhum animal, na Inglaterra, sabe o que é felicidade ou lazer, após completar um ano de vida. Nenhum animal, na Inglaterra, é livre. A vida do animal é feita de miséria e escravidão: essa é a verdade, nua e crua. Será isso, apenas, a ordem natural das coisas? Será esta nossa terra tão pobre que não ofereça condições de vida decente aos seus habitantes? Não, camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, o clima é bom, ela pode dar alimento em abundância a um número de animais muitíssimo maior do que o existente [...] (ORWELL, 2007, p. 7).

Jesus é um personagem incômodo, ontem, hoje e sempre. Suas ovelhas também precisam ser. Não podemos ser coniventes e mansos diante da miséria e da escravidão disfarçada de inúmeras formas. Precisamos assumir nosso compromisso discipular de defender a vida em abundância e a certeza de que ninguém pode nos arrancar da mão de Deus (v. 29).

4 Imagens para a prédica

Conhecer bem a comunidade e suas necessidades é fundamental para o processo de escolher a melhor forma de abordar e conduzir a reflexão do evange lho. Tendo isso em mente, sugiro três opções de imagens para iniciar a prédica ou usar em alguma exemplificação.

4.1. Uma pequena história: “Um estranho certa vez declarou a um pastor sírio que as ovelhas conheciam a roupa e não a voz de seu amo. O pastor disse que era a voz que elas conheciam. Para provar isso, trocou de roupa com o estranho, que se meteu entre as ovelhas com a roupa do pastor, chamando as ovelhas imi tando a voz do pastor, e tentando guiá-las. Elas não reconheceram sua voz, mas, quando o pastor as chamou, embora estivesse disfarçado, as ovelhas correram de imediato em resposta à sua chamada” (RICE, Edwin Wilbur. Orientalisms in Bible Lands. p. 159-161).

4.2. Tematizar o discipulado a partir dos três verbos que ficam em evidência no v. 27: escutar, conhecer e seguir. Escutamos o chamado? Nós nos (re)conhecemos como ovelhas? Seguimos de maneira fiel o bom pastor?

4.3. Utilizar a citação do livro “A revolução dos bichos” ou fazer menção ao livro. A obra de Orwell é uma fábula sobre o poder. Narra a insurreição dos animais de uma granja contra seus donos e critica de forma (in)direta a corrupção dos governantes e a fraqueza dos que se deixam manipular por eles. Um lembrete

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4º Domingo da Páscoa

às ovelhas de que precisam ter postura crítica frente aos acontecimentos que se desenrolam no mundo em que vivemos.

5 Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados: Amado Jesus, não nos portamos como tuas ovelhas. Nós nos acomodamos. Nós silenciamos. Nós nos tornamos coniventes com a reali dade do pecado. Pedimos perdão por nosso testemunho discipular ser tão pífio! Desejamos ser tuas ovelhas, desejamos ser teus discípulos e discípulas, embora muitas vezes não nos demos conta do que isso realmente significa. Na certeza de que nada nem ninguém poderá nos arrancar das tuas mãos, nos abrigamos sob tua misericórdia. Tem piedade de nós, Senhor! Amém.

Oração do dia: Amado Deus, tu nos congregas qual pastor reúne o seu rebanho. Envia-nos teu Santo Espírito para que nos ilumine e nos mantenha um rebanho unido. Que possamos ouvir tua voz, reconhecer tua presença e seguir todos os teus ensinamentos. Por Cristo, o bom pastor, que vive e reina contigo e o Espírito Santo hoje e eternamente. Amém.

Bibliografia

BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno (Orgs.). Os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1990. v. 1.

FLANAGAN, Neal M. João. In: BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Orgs). Comentário Bíblico. São Paulo: Loyola, 1999. v. 3.

JEREMIAS, Joachim. A mensagem central do Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1986. MOTA, Sônia; KILPP, Nelson. Ninguém as arrebatará da minha mão (Jo 10,27-30). Disponível em: <https://cebi.org.br/biblia/ninguem-as-arrebatara-da-minhamao-jo-1027-30-sonia-mota-e-nelson-kilpp-4/>.

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4º Domingo da Páscoa

PRÉDICA: JOÃO 13.31-35

SALMO 148 APOCALIPSE 21.1-6

5º DOMINGO DA PÁSCOA

1 Introdução

O amor vence a morte

O Salmo 148 é um hino que convida todas as criaturas a louvarem a Deus. Sete convites se dirigem aos seres celestes. O motivo é a ação criadora de Deus que sustenta e dá estabilidade ao universo. Segue o convite para os seres da natu reza entoarem o seu louvor. A humanidade toda é convidada a louvar. A principal tarefa dos seus fiéis é louvar e proclamar a força e o amor incondicional de Deus. A nova relação que existe entre Deus e os seres humanos é apresentada como o novo céu e a nova terra, descritos em Apocalipse 21.1-6. O mar, a mora dia dos poderes do mal, já não existe mais. Deus vai construir a nova Jerusalém; realizar-se-á a aliança de Deus com a humanidade. Ela será a tenda na qual Deus está presente e renovará a tudo, pois ele é o Senhor, a fonte e o fim da história.

Em João 13.31-35, a glorificação de Jesus acontece no ato maior de Deus em favor da humanidade: na cruz, na entrega, na hora certa. É no amor das pes soas umas pelas outras que nos é oferecida uma alternativa de vida perante a morte e a opressão.

São três textos carregados de esperança em situações de angústia e sofri mento. Querem fortalecer a comunidade de fé diante das ameaças, das contradi ções, dos poderes da morte, que se apresentam poderosos, mediante a prática do amor fraterno, genuíno e vivificador.

2 Exegese

Apocalipse é uma grande discussão contra a heresia do culto ao imperador. Domiciano considerava-se o próprio deus. Tinha uma moeda cunhada com uma criança arrebatada ao céu, brincando com sete planetas. Nas palavras de Martin Dreher (Proclamar Libertação, v. 23, p. 28): “Esse brincar simboliza o seu poder celeste, que é reproduzido pela inscrição na moeda: desde o céu governa o ‘Divino César, Filho do Imperador Domiciano’”. Por isso forçava seus súditos a lhe fazerem sacrifícios. Há mártires nas comunidades, já que elas sofrem com a perseguição do império.

Em época de perseguição, todo cuidado é pouco. Não é possível dizer abertamente que o império é o grande inimigo a ser combatido, sem ser perseguido, preso ou morto. As visões com seus símbolos são uma linguagem cifrada que driblam a censura, mas são compreendidas pelas comunidades cristãs da Ásia Menor.

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Anelise

O Evangelho de João levou muito tempo para ser escrito. O Discípulo Amado era uma figura-chave para as comunidades, pois ele lhes transmitia o seu testemunho sobre Jesus. As comunidades ligadas a ele viviam na Palestina, provavelmente na Galileia. Reuniam judeus, galileus, samaritanos e helenistas. Eram comunidades abertas e acolhedoras. Recebiam também discípulos de João Batista. Características marcantes dessas comunidades eram o serviço amoroso (Jo 13.34) e a mesa partilhada (Jo 6.5-13).

A partir da destruição do templo de Jerusalém (70 d.C.), apenas dois gru pos mais organizados restaram: os fariseus e os cristãos. Os fariseus trataram de reorganizar a religião judaica segundo o culto nas sinagogas. Eram comunidades restritivas que entraram em choque com as comunidades cristãs. Também havia grupos mais espirituais, como os gnósticos, que não aceitavam a humanidade de Jesus. Isso provocava tensões e divisões e levava as pessoas a esquecerem o mandamento do amor e o serviço que mantinha a comunidade unida.

O evangelho é composto por dois livros: o livro dos sinais (Jo 1.19 – 11.54) e o livro da glorificação (Jo 13.1 – 20.31), e a conclusão (Jo 20.30-31). Nosso texto está no início do livro da glorificação e é assim chamado porque mostra a realização plena de tudo o que Jesus vinha prometendo, enquanto fazia os sete sinais nos capítulos anteriores.

João 13.31 inicia dizendo que, com a saída de Judas da mesa da comunhão, a hora chegou: a hora de ser glorificado o Filho do Homem. “Filho do Homem” é o título que Jesus usava para si mesmo como o escolhido de Deus para ser o salvador (Mc 10.45). Esse título se refere à condição de Jesus, sua humanidade limitada, ameaçada e frágil (Mc 8.31; Lc 9.58), e também à sua futura glória (Mt 25.31; Mc 8.38). Ao se designar como Filho do Homem, Jesus escolheu o título messiânico menos comprometido pelo nacionalismo judeu e pelas esperanças bélicas. Une-se aos círculos palestinos que esperavam o novo homem, o novo Adão, que inauguraria a nova humanidade.

Os v. 31-33 trazem a glorificação de Jesus como atributo dado a ele desde antes da criação do mundo. Quando desce à terra, ele revela a glória de Deus e essa o revela quando realiza os sinais, reconhecidos como tais apenas pelos seus, somente os crentes o podem ver.

Esse duplo aspecto da manifestação da glória de Deus no ministério terre no de Jesus nos remete ao Antigo Testamento, quando a glória de Deus socorre o seu povo e ao mesmo tempo cega e castiga os incrédulos.

A glorificação designa o conjunto da narrativa da redenção, que vai da cruz à ressurreição. O resultado final é a entrada na glória divina. Às vezes, ela é ex pressa na vitória sobre o inimigo de Deus e ao mesmo tempo o triunfo de Cristo. Nisso se revela o desígnio salvador de Deus.

No v. 33, Jesus faz clara menção à sua morte, assim como já havia dito aos judeus, mas com a diferença de chamar seus ouvintes de “filhinhos”, numa clara demonstração da amorosidade de um núcleo familiar nas relações construídas e firmadas entre eles.

No Proclamar Libertação, v. XVII, p. 122, Guilherme Lieven bem descre ve que o v. 34 traz um novo enfoque do “novo mandamento do amor”. Esse difere

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do amor ao inimigo (Mt 5.44) e do amor ao próximo (Lc 22.31). O imperativo aqui é amar uns aos outros, o que pressupõe um grupo, uma comunidade.

O v. 35 mostra que a prática do amor de uns pelos outros, deste novo man damento vivido e ensinado por Cristo, identifica os seus seguidores, pois dessa forma resistem à rejeição e aparente derrota que se deu na cruz. Eis a resistência e o testemunho que a comunidade cristã dá ao mundo e aos poderes que matam. J. J. von Allmen, em seu Vocabulário Bíblico (p. 201), escreve que a glo rificação do Filho do Homem se realiza na obra terrestre, no sofrimento e na ignomínia. Ela não acontece num processo cósmico, mas na pessoa histórica, inteiramente humana e próxima, Jesus de Nazaré. Ele é o criador da nova huma nidade. Esse novo homem não vem arrancar as pessoas das garras do tempo e da matéria, mas vem revelar a sua responsabilidade com as outras pessoas, particu larmente com as enfraquecidas e sofredoras, tendo amor e sendo solidárias como irmãos e irmãs.

3 Meditação

Sempre que me deparo com esse texto, estranho o termo “glorificação”. Chegou a hora de ser glorificado o Filho do Homem! Glorificar! Dar glórias! No dicionário Aurélio, glória é definida como fama obtida por ações extraordinárias, grandes serviços prestados à humanidade; brilho, esplendor, honra, homenagem. E glorificar tem o sentido de prestar homenagem, honrar, adquirir glória, gloriar-se. Por isso, quando pensamos em glória ou glorificar alguém, pensamos em vitórias, em grandes objetivos alcançados, em fama, em holofotes, em mídia. Assim exposto, como pode alguém gloriar-se quando prenuncia a sua morte por perseguição, traição, calúnias e tortura, como se deu com Jesus?

Mais uma vez, a glorificação que Deus dá é totalmente diferente da glori ficação que o mundo, a sociedade dá. É o escândalo da cruz que glorifica Jesus. Esse é o grande feito em favor da humanidade. O oposto da morte, da derrota da cruz é o amor que vivifica, que faz ressuscitar, que permanece.

Para as comunidades do Discípulo Amado também chegará a hora. Assim como chegou para Jesus, também chegará a elas. Essa hora significa o sofrimen to, a perseguição, as calúnias, as intrigas, as seduções ou até a morte. Nessa hora, diante do exemplo dado por Cristo, podemos chegar à alegria que vem de Deus. Decididamente, esse não é um texto fácil para nós, pessoas do nosso tempo. Não nos é fácil suportar as reações adversas vindas de ações ou opções de enfrentamento aos poderes estabelecidos. Não gostamos de nos confrontar com difamações ou calúnias nas redes sociais e sofremos com as injustiças. Também é comum acontecerem divergências e brigas internas nas famílias, nos grupos, nas comunidades quando perseguições ou pressões externas acontecem. Em nossa fraqueza, muitas vezes, colocamos a culpa sobre nossos pares, o que só aumenta o sofrimento. Não nos é fácil compreender a glorificação do ministério de Jesus no caminho da cruz. Somente o olhar do túmulo vazio nos ajuda e nos consola. Somente a certeza da morte vencida nos faz suportar, resistir. Porém é preciso deixar que Cristo esteja presente por meio da ética do amor fraterno. Essa é a

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condição para evitar a cisão, a dispersão, o desânimo fruto do sofrimento. Viver o mandamento do amor é atitude de resistência e de esperança.

Quem vive na glória da nossa sociedade tem outras regras, outra ética. Experimenta vitórias, acúmulo, individualismo e competição. Valores totalmente diferentes do que nos traz o texto em questão. Por isso, ainda hoje, resistir e procurar viver o amor fraterno é condição de grupos marginalizados ou rejeitados. A minoria que aceita e reconhece o amor de Deus, o cuidado e a vivência fraterna como o bem maior, é ridicularizada ou difamada. Porém nossa sociedade está repleta de exemplos em que esse amor serve de exemplo, de testemunho e de resistência aos poderes de morte.

Nossa tarefa, como anunciadores do evangelho, é fazer uma leitura da re velação/glorificação de Deus na realidade das minorias, dos grupos e pessoas rejeitadas pela sua condição econômica, social, de raça, gênero ou religiosa. Há tantos exemplos a serem compartilhados! Ao mesmo tempo, precisamos pergun tar à comunidade se ela quer ser reconhecida pela “pureza” de seus dogmas, pelo cisma que cria ou pela vivência do amor fraterno que Cristo ensinou. O amor fraterno não é egoísta nem corporativo nem excludente. Ele é solidário, coletivo, acolhedor e justo. Ele é a força transformadora das relações e da realidade de sofrimento e injustiças vivida. Anunciar esse amor é o caminho para que a espe rança vença as divisões e a glória de Deus se revele em nossa realidade.

4 Imagens para a prédica

1. Pedi a confirmandos e confirmandas que sonhassem com o que gosta riam de receber glórias em suas vidas. Uns disseram que gostariam de ser jogado res de futebol muito habilidosos e que jogassem no exterior. Outros disseram que queriam ser artistas famosos ou rappers conhecidos mundialmente. Há também os que querem ser youtubers com milhares de seguidores, entre outras respostas. Então perguntei qual o grande serviço que prestariam à humanidade com sua es colha. A reação não poderia ser outra: não haviam pensado nisso. Queriam apenas a fama, o reconhecimento, o dinheiro e uma vida de fortuna. Ser glorificado, o que significa isso?

2. Uma aldeia indígena estava localizada entre grandes propriedades rurais. Nela, o povo procurava plantar e colher como seus ancestrais, cuidando das sementes crioulas, respeitando a natureza. Não poucas vezes esse povo precisava se defender de ataques dos vizinhos, que não aceitavam nem compreendiam seu modo de viver. Nas grandes propriedades, o uso de sementes modificadas e de aditivos químicos era constante. A cada ano, novos produtos e novas sementes precisavam ser usadas, pois na natureza sempre há ervas que resistem e se modifi cam, exigindo novas tecnologias e muita pesquisa. Pois aconteceu que uma praga desconhecida se abateu sobre as grandes plantações. Toda a ciência não deu conta de algum produto capaz de resolver o problema rapidamente. Bilhões de prejuízo, toda a produção foi perdida. Uma verdadeira catástrofe para os negócios e para a exportação de sementes. Atônitos, os fazendeiros começaram a procurar alter

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nativas. Alguns poucos foram até a aldeia indígena conversar com as lideranças e procurar entender por que a sua plantação não foi atingida. Depois de uma boa conversa, saíram dali com sementes partilhadas pela comunidade indígena. E al guns começaram a refletir e questionar o modo como vinham produzindo. Conta-se que naquela região muita coisa se modificou e a natureza agradece até hoje.

3. Frases de Madre Tereza de Calcutá: “No final de nossas vidas não seremos julgados pelos muitos diplomas que recebemos, por quanto dinheiro fizemos ou por quantas coisas grandes realizamos. Seremos julgados pelo ‘Eu tive fome e você me deu de comer, estava nu e me vestiu. Eu não tinha casa e você me abrigou’.”

“O senhor não daria banho num leproso nem por um milhão de dólares? Eu também não. Só por amor se pode dar banho em um leproso.”

“Não é o quanto fazemos, mas quanto amor colocamos naquilo que faze mos. Não é o quanto damos, mas quanto amor colocamos em dar.”

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Bibliografia

MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco; MERCEDES, Lopes. Raio X da Vida. Círculos Bíblicos sobre o Evangelho de João. São Leopoldo: CEBI. ALLMEN, J. J. von. Vocabulário Bíblico. 2. ed. São Paulo: ASTE, 1972.

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PRÉDICA: SALMO 67

JOÃO 5.1-9 ATOS 16.9-15

6º DOMINGO DA PÁSCOA

1 Introdução

A terra produziu o seu fruto

A Páscoa de Jesus de Nazaré é o grande acontecimento da história da re velação e da realização da salvação de Deus na história da humanidade. Ela está no coração da Igreja de Cristo. E sua festa é celebrada ao longo de 50 dias – até o domingo de Pentecostes. Podemos dizer que ela é o fruto amadurecido da terra, a colheita mais nobre da história da presença de Deus na história do universo e da humanidade. Ela ultrapassa os limites do povo de Deus e atinge o coração do univer so. Sua memória faz arder nossos corações e abre nossos lábios em ação de graças.

O Salmo 67 celebra a alegria de uma colheita e pede a Deus que sua bon dade renove e amplie ainda mais essa bênção, para que todos os povos vejam as grandes obras dele e o louvem, dando-lhe graças, como o povo de Israel o faz. A boa colheita é celebrada como sinal da bênção de Deus e inspira o espírito mis sionário do povo, pois os povos todos poderão e deverão usufruir dessas bênçãos do Deus de Israel.

Os missionários cristãos, conforme nos é narrado em Atos dos Apóstolos (16.9-15), traduzem esse desejo missionário do povo de Deus e fazem chegar ao continente europeu o grande fruto da história da salvação, ou seja, Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado. Encontram acolhida em Filipos e reconhecem que as sementes do evangelho já estão presentes no grupo de mulheres que se reúnem para orar, especialmente Lídia e sua casa.

O Evangelho de João (5.1-9) apresenta uma colheita que brota do fruto amadurecido que é Jesus. Trata-se de um pobre homem, paralítico e desassistido que é devolvido à alegria da vida pelo revelador e realizador da salvação de Deus.

A terra deu sua colheita, produziu seu fruto! E a terra continuará a produzir o seu fruto e a dar sua colheita! Mas isso em boa medida dependerá de nosso testemunho.

2 Exegese

O Salmo 67 expressa o desejo do povo escolhido de receber manifestações do favor divino tão grandes que todas as outras nações reconheçam que só no Deus de Israel está a salvação.

Ele é um poema-oração que, ao mesmo tempo, invoca a bênção de Deus e rende graças por ela. Talvez sua origem se encontre em celebrações de colheitas,

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22 MAIO 2022
Léo

vistas como expressões da bênção que o povo invoca. Que Deus tenha piedade do povo e lhe conceda sempre de novo a abundância dos frutos da terra!

Enquanto celebra a bênção dos frutos da terra, o povo orante dirige seu pensamento e seu olhar para os outros povos. Seu desejo é que a boa colheita seja um sinal para esses povos todos, e que eles também experimentem caminhar com o Deus de Israel. Se o fizerem, haverão de louvar e render graças a Deus.

Pode-se observar uma estrutura bem articulada no pequeno texto do Salmo:

1ª estrofe (v. 2-3): bênção e salvação universal Antífona (v. 4): ação de graças universal

2ª estrofe (v. 5): centro do Salmo – alegria e governo universal Antífona (v. 6): ação de graças universal

3ª estrofe (v. 7-8): o fruto da terra, bênção, temor universal.

A antífona caracteriza o Salmo como uma oração comunitária, na qual se repetem (talvez também no final, sem estar registrado no texto) o desejo e a in tenção fundamental do poema orante: que todos os povos, todos juntos, rendam graças a Deus. O desejo é manifestado a Deus, é um pedido que lhe é feito. Se a bênção for abundante para o povo de Deus, os outros povos ficarão impressiona dos e se converterão e também renderão graças ao Deus de Israel.

O centro do Salmo (2ª estrofe) expressa a presença do Deus de Israel em todo o universo, mas o reconhecimento disso ainda não é real. Quando esse reco nhecimento existir, os povos cantarão também a alegria do governo reto e justo de Deus. Para facilitar esse reconhecimento dos outros povos, o povo escolhido pede que Deus lhe amplie ainda mais sua bênção e se revelem melhor as riquezas dos caminhos dele.

A primeira estrofe é quase uma retomada da invocação da bênção de Aarão sobre os filhos de Israel no livro de Números (6.24-27). Mas o objetivo da bên ção não é apenas o bem-estar desse povo. Ela visa à experiência dos caminhos de Deus entre os pagãos, os outros povos todos. A partir da bênção ao seu povo escolhido, a oração deseja que os outros povos também possam experimentar a mesma bênção e os mesmos frutos benéficos dos caminhos do Senhor.

A parte final (3ª estrofe) conclui com uma constatação e um desejo. A cons tatação é que a terra deu a sua colheita, produziu o seu fruto; o desejo é por essa mesma bênção para que a terra inteira tema aquele que o Salmo invoca.

O início dessa estrofe (v. 7) pode ser traduzido também como um desejo: que a terra dê (ou produza) o seu fruto. Pode-se adotar tanto uma quanto a outra interpretação, o sentido fundamental permanecerá o mesmo. O fruto já existente da bênção é sinal para os povos; e o fruto por vir terá o mesmo objetivo.

3 Meditação

Na história do povo da Bíblia encontramos movimentos de abertura aos outros povos e também de fechamento em relação a eles. O Salmo 67 é uma expressão do movimento de abertura. Ele pede a continuidade e a ampliação da bênção de Deus para o próprio povo – e nesse sentido poderia ser entendido como

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um movimento egoísta e de fechamento em relação aos outros. Mas os benefícios da bênção são vistos como sinais para que os outros povos também sejam integra dos nessa bênção. As riquezas das graças de Deus servem de sinal e são pedidos a Deus para que sirvam de testemunho para os outros e para que eles também venham a ser governados por Deus e venham a render graças a ele. Pode-se, então, considerar o Salmo como uma oração missionária. O povo de Deus não é missionário, no caso, por suas pregações e ações junto aos povos estrangeiros, mas pelos bons frutos de sua aliança com seu Deus. Ele é e quer ser missionário por contágio.

A boa colheita que subjaz à oração desse Salmo ultrapassa então os limites da produção agrícola. Ela passa a expressar toda a riqueza dos frutos da “terra” que simboliza a história da relação de Deus com seu povo e do povo com seu Deus. A sabedoria, a misericórdia, a justiça e todo o bem que impera no meio do povo de Deus são sinais de credibilidade do seu Deus. Isso vale para as pessoas individual mente, mas também e sobretudo para os povos como comunidades humanas.

Que todas as pessoas e os povos todos possam usufruir dessa sabedoria e de todos os seus benefícios!

Experimentar e reconhecer as bênçãos de Deus leva as pessoas e os povos a expressarem sua gratidão por meio de ações de graças. O Salmo expressa esse desejo da alma israelita. Render graças a Deus pode realizar-se por meio do culto e de sentimentos, mas também por ações concretas de vivência dos mandamentos de Deus, dos caminhos que ele indica e nos quais assiste seus filhos e filhas. A igreja cristã sintoniza profundamente com o Salmo sobre o qual medi tamos neste domingo. Ela conhece os frutos da “terra”, terra que, muito mais do que uma região geográfica, é a história dos seguidores e seguidoras de Jesus. Ela sabe e saboreia o fruto maior dessa terra que é o próprio Jesus. Ela o apresenta ao mundo como a mais fina flor da história da humanidade, o caminho para a vida e a luz para iluminar a vida das pessoas e dos povos. É isso que fazem os missio nários dos primeiros tempos do cristianismo – como se vê na leitura dos Atos dos Apóstolos do culto de hoje. Jesus é o solidário por excelência que se preocupa com o desamparado e excluído e lhe proporciona cura e vida nova – como mostra o evangelho deste domingo.

Mas a igreja também suplica ao Senhor que ela seja abençoada sempre de novo, que se renove nela sua presença benfazeja e salvadora. Ela sabe que a falta dos frutos de justiça e fraternidade compromete o nome do próprio Deus. Por isso ela ora com a ajuda do Salmo 67 e em sintonia com ele para que seu testemunho de fé, esperança e caridade seja forte e sensibilize aqueles que se encontram fora dos caminhos do Deus da vida, do amor, das relações justas e humanas entre to dos os filhos e filhas de Deus. Ela recorda sua vocação de ser sal da terra e luz do mundo e a força do seu testemunho para que os homens e as mulheres de todas as idades, culturas e condições sociais glorifiquem o Pai do céu.

Talvez as boas colheitas agrícolas não sejam mais a principal motivação para render graças a Deus. A abundância é vista mais como resultado da tecnologia do que da graça de Deus. E Jesus mesmo alertou que Deus faz chover e envia o sol sobre os justos e sobre os injustos... As colheitas abundantes, então, têm

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um quê de ambiguidades. Mas as boas colheitas dos testemunhos de vida podem sensibilizar e ter uma eficácia missionária que não podemos calcular. “Vede como eles se amam” – diziam os de fora nos primórdios da igreja, referindo-se à vida comunitária dos seguidores e seguidoras de Jesus.

No fundo de tudo está um movimento vertical: Deus que vem ao encontro do seu povo e o abençoa (e é isso que se pede no Salmo); de outro lado, encontra -se a resposta humana pela ação de graças a Deus por seus imensos benefícios. Mas há também o movimento horizontal: a experiência da riqueza da graça de Deus conduz outras pessoas e outros povos a experimentarem também a mesma graça do Deus de Israel, do Deus e Pai de Jesus Cristo, do Deus Espírito Santo, que aquece os corações e ilumina as inteligências dos humanos.

4 Imagens para a prédica

O próprio Salmo 67 oferece imagens ricas para a prédica. Talvez a mais preciosa seja a da colheita como expressão da bênção. E, junto com a colheita, a própria terra. A colheita ou o fruto da terra é obviamente uma imagem agrícola, mas ela evoca também a colheita dos frutos da “terra” (história) cultivada por Deus com a parceria do seu povo. Faz lembrar a alegoria da videira e dos ramos, do capítulo 15 do Evangelho de João.

Outra imagem é a do conhecimento do caminho. O poema-oração pede que o caminho de Deus seja conhecido em toda a terra. Junto com o substantivo caminho está o verbo conhecer. A palavra caminho representa o modo de ser e de agir de Deus e, em resposta a ele, do povo de Deus. Conhecer é sinônimo de fazer a experiência, conhecer existencialmente. Pedir a Deus que o caminho dele seja conhecido sobre a terra significa pedir que os povos todos possam experimentar as alegrias e os desafios da vivência do evangelho – podemos falar assim na era cristã. Vendo e ouvindo o que experimenta o povo de Deus, os outros poderão animar-se a também conhecerem na prática esse caminho. Enfim, a imagem contida na expressão “render graças”. O Salmo é uma expressão dessa atitude. Render graças realiza-se no culto, nas celebrações do povo. E realiza-se também, e talvez melhor do que no culto, na vida diária. O culto é celebração e ela é necessária porque somos humanos. A vida é realização concreta do que é celebrado no culto. Um vive do outro.

5 Subsídio litúrgico

Em sintonia com o Salmo 67, que embasa a prédica do domingo, pode-se invocar a seguinte bênção, no final do culto:

Oficiante: Que Deus tenha misericórdia de nós e nos abençoe, e faça resplande cer o seu rosto sobre nós.

Todos: Amém.

Oficiante: Que nosso testemunho de vida torne conhecidos e amados os caminhos de Deus por todo o universo.

Todos: Amém.

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6º Domingo da Páscoa

Oficiante: Que a terra continue a dar sua colheita e todos os povos rendam gra ças a Deus por sua justiça e salvação.

Todos: Amém.

Oficiante: Que todos os povos te louvem, ó Senhor, que te louve todo o uni verso. Exultem de alegria as nações e produzam frutos de vida e salvação. Por Cristo, Senhor nosso.

Todos: Amém.

Bibliografia

DEISSLER, Alfons. Die Psalmen. Düsseldorf: Patmos, 1964. II. Teil, p. 42-90. RAVASI, Gianfranco. Il libro dei Salmi. Comento e attualizzazione. 4. ed. Bolog na: Edizione Dehoniane, 1988. v. II, p. 51-100.

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6º Domingo da Páscoa

ASCENSÃO

SENHOR

2 REIS 2.9-18 APOCALIPSE 1.4-8

Ascensão da ressurreição no cotidiano da vida

1 Introdução

A festa da Ascensão faz parte do tempo pascal no calendário litúrgico da igreja. Ela é uma das festas mais antigas da igreja, tendo seu início documentado no séc. IV. A Ascensão é celebrada 40 dias após a Páscoa, realçando o caráter simbólico da unidade temporal 40, presente em toda a Bíblia. 40 dias ou anos é na tradição bíblica o tempo oportuno para que algo importante amadureça e culmine. Não é diferente com a Ascensão. Mais do que um relato extraordinário da subida de Cristo aos céus, a Ascensão quer marcar a experiência da ressurreição na vida da comunidade e dizer que o Cristo ressuscitado continua presente na vida das pessoas e das comunidades até o fim do tempo. Então Ascensão é uma forma de realçar, de criar aderência da mensagem da ressurreição.

Nos textos paralelos, temos relatos que irão reforçar a mensagem. Em 2 Reis 2.9-18 é relatada a elevação de Elias ao céu e a transferência dos poderes de seu espírito a Eliseu. Eliseu vê a ascensão de Elias e recebe, por isso, o espírito de Elias para seguir como profeta. Aqui, da mesma forma que na ascensão de Cristo, a atenção não precisa estar no evento extraordinário da elevação, mas na transferência do espírito. A ressurreição de Cristo exalta e põe em evidência toda a sua obra. E a ascensão é a transferência dessa experiência para a comunidade, para que ela possa seguir no espírito da ressurreição.

Apocalipse 1.4-8, por sua vez, é uma dedicatória às sete igrejas da Ásia. De forma doxológica, fala da volta de Cristo nas nuvens do céu, quando todo olho o verá. Esse texto aponta para a volta de Cristo, promessa que deve sempre de novo ser reavivada na vida de fé da igreja. Também aqui o foco principal não precisam ser os detalhes da volta de Cristo, mas muito mais o tempo que permanece, ou seja, a vida da igreja na esperança da volta de Cristo. Essa esperança é um espe rançar, um viver a ressurreição, viver do evangelho e da fé, como presença real de Cristo, até que ele venha.

Importante é contextualizar essa mensagem da ascensão para nossos dias. O que significa ascensão em tempos pandêmicos? O que significa viver a men sagem da ressurreição em tempos de ódio nas redes sociais e na mídia? O que significa viver o Evangelho vivo de Cristo em tempos de polarizações, radicalismo, fake news? O que significa ascensão diante dos milhares de mortos pela Covid-19, mas também as milhares de vítimas da violência diária, da contaminação do planeta, dos excessos de consumo, da falta de compaixão e de misericórdia

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DO
26 MAIO 2022 PRÉDICA: MATEUS 28.16-20

dos nossos dias? O que significa viver em Cristo e de Cristo quando falta espe rança, sentido e o amor se tornou uma falácia?

2 Um pouco de exegese

A perícope final de Mateus traz um dito de Jesus. Depois de uma ampla in trodução de localização e determinação dos destinatários, os 11 discípulos, temos o dito do Ressuscitado, composto de três partes: 1. sentença de autoridade (v. 18b); 2) mandato de missão (v. 19b-20a); promessa (v. 20b).

O texto representa a culminação do relato da Páscoa de Mateus. Em seus detalhes, a passagem está em relação com todo o evangelho. Olhemos detalhadamente cada um dos versículos, segundo a tradução de Sandro Gallazzi:

V. 16 – E os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte onde lhes tinha ordenado Jesus. Temos aqui no mínimo três informações importantes. Os 11 discípulos, aqueles que conviveram intensamente e de forma prática a boa notícia, são os convocados para a continuidade da obra. O local para esse novo início é a Galileia, onde tudo começara. Temos aqui um claro novo começo. O monte remonta aos montes do Evangelho de Mateus, onde Jesus Cristo foi reve lando a si e seu evangelho. O monte, com artigo definido, tem relação com outros montes presentes no livro. O monte da tentação (4.8), o monte do seu primeiro sermão (5.1 ss), o da segunda multiplicação dos pães (15.29), o da transfiguração (17.19). Temos aqui um claro elemento da antropologia da religião, que identifica as manifestações divinas nos lugares altos e elevados.

V. 17 – E, ao vê-lo, prostraram-se; eles, porém, duvidaram. O texto apre senta uma certa tensão diante da manifestação do Cristo ressuscitado. Prostrar-se e duvidar estão relacionados a outras reações dos discípulos, como a admiração dos discípulos e a dúvida de Pedro quando da aparição sobre as águas (14.31-33). Ou seja, há aqui resquícios de uma tensão na comunidade de Mateus, uma prová vel relação com a fé e a descrença.

V. 18 – E, aproximando-se, Jesus falou-lhes, dizendo: “Foi me dado todo o poder no céu e sobre a terra. Mesmo a tensão entre prostrar-se e duvidar, Jesus se aproxima. Jesus vem ao encontro e fala de que todo o poder pertence a ele. Esse poder vem da ressurreição. Diante dela, mesmo com dúvidas, emana um poder. Nada pode impedir a mensagem do evangelho, nem mesmo a morte. Esse é o novo poder, a ressurreição, e é a partir dela que Cristo encaminha a continuidade do evangelho por meio de pessoas comuns, os discípulos.

V. 19 – Indo, então, fazei discípulas todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. A comunidade, na configuração do grupo de discípulos, é lembrada da sua missão. A missão é muito mais do que converter pessoas, como algo mecânico e quantitativo, mas, sim, uma forma de tornar viva a experiência do Cristo ressuscitado em meio ao cotidiano da vida. O verbo no gerúndio – indo – dá uma ideia de processo, mais do que o mandato da tradução no imperativo – ide. Em vez de fazer discípulos individuais, as nações são sujeitas da mensagem do evangelho. Tornar-se nação discípula da boa notícia

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Ascensão do Senhor

de Cristo se dá por meio do batismo, rito de passagem e de iniciação à vida de fé, em nome do Pai, do Filho e do Espírito. Jesus é o amor de Deus derramado pelo Espírito Santo. Ou seja, o processo de comunicar o evangelho às nações é feito em nome do Deus Trino, como forma de atualização permanente da obra do Criador, do Redentor e da Ruah Santa.

V. 20 – ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis: eu estou convosco todos os dias, até a consumação do tempo”. E a instru ção missional não se restringe em apenas tornar nações seguidoras do evangelho por meio do batismo trinitário, mas implica o ensino, como processo, de guardar toda a mensagem evangélica. Batismo não é ponto de chegada, mas ponto de partida. Nada fácil de ser feito! Por isso é fundamental crer que o mesmo Cristo que esteve 40 dias ressuscitado entre seu povo permanecerá presente ao lado das pessoas discipuladoras e pedagogas até o fim. O próprio Cristo promete estar presente até o fim. Apesar da dúvida, do medo, da insegurança e do sofrimento na caminhada, ele promete estar presente.

3 Uma possível meditação

A mensagem do texto bíblico previsto para a pregação não é relatar a as censão de Cristo, pelo menos não é a mensagem que podemos enfocar na nossa leitura e interpretação. Diante da situação de grande crise que vivemos na atuali dade, a mensagem do texto está muito mais voltada para a missão dos discípulos como um mandato após a partida de Jesus aos céus, que um relato sobre sua partida em si.

A volta para a Galileia, no monte específico, o comissionamento dirigido especificamente aos 11 discípulos, mais que uma finalização, está re-iniciando o ministério de Cristo, agora sob a responsabilidade dos discípulos e da igreja. É como se a ascensão estivesse recapitulando toda a obra evangélica de Jesus de Nazaré, o Cristo, que culminou na ressurreição. É como se a ressurreição trans bordasse agora para a vida missional dos discípulos, como continuidade da obra de Cristo, a instauração do Reino, afirmada pela ressurreição. O Reino não culmi na com a ressurreição, mas começa com ela e precisa se espalhar em meio à vida. Então, o centro aqui não é a ascensão como evento extraordinário, nem mesmo a ressurreição em si, não é uma doutrina fechada, mas, sim, as consequências da ressurreição na vida dos 11 discípulos, agora responsáveis por reverberar o Evangelho de Cristo a todas as nações do mundo. O espírito da ressurreição é transferido a nós, comunidade, para viver profeticamente, até que ele venha. “Este é o percurso da missão: renovar o batismo de Jesus, do Filho reconhecido pelo Pai, repleto do Espírito Santo, renovar o anúncio do Reino, renovar o convite a ser discípulo. Até o fim do tempo” (GALLAZZI, 2012, p. 582).

Como reverberar o Evangelho de Jesus Cristo na vida da comunidade e da sociedade de hoje?

Quando escrevo este auxílio homilético, estamos no tempo do aparente início do fim da pandemia de Covid-19. A pandemia no Brasil realçou para muitas pessoas o essencial, como a saúde, o cuidado pela vida, as relações e as pessoas

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Ascensão do Senhor

que amamos, e, ao mesmo tempo, escancarou nossas maldades e mazelas huma nas, sociais e estruturais. Escancarou a sobrecarga de trabalho e tarefas enfrenta das pelas mulheres, a violência doméstica, o abuso contra crianças, o excesso de trabalho, o trabalho invadindo a vida privada e doméstica etc.

No âmbito social, a pandemia denunciou muito da nossa insensibilidade humana. Quase num clima de salve-se quem puder. Legitimada politicamente, a pandemia mostrou nossa falta de solidariedade e empatia diante do sofrimento da outra pessoa. Durante esses intermináveis meses, as redes sociais e as mídias em geral rechearam nossa indiferença humana com discursos de ódio, mentiras e negacionismos os mais variados. Fomos capazes de zombar do sofrimento de pessoas e acusar quem ousasse defender a vida. Tornamo-nos indiferentes com a montanha de mais de meio milhão de mortos. A pandemia refinou algo que já estava lá, pulsante e intenso. Todo esse cenário repercutiu intensamente dentro das igrejas, o que não poderia ser diferente, uma vez que a igreja é parte desse mesmo e único contexto.

A mensagem da ascensão acontece para dentro desse cenário. Ela não é um evento isolado do passado, mas é evento presente e real. O próprio Cristo nos convoca e ordena como pessoas responsáveis por reverberar o evangelho da ressurreição, começando pelo começo, pela Galileia, no monte do novo, último e mesmo ensinamento. A partir dessa base somos chamados a ir indo pelo meio da vida, reverberando o evangelho em atos simples e concretos, revivendo o Ba tismo, ensinando e aprendendo a guardar o essencial e contando com a presença ativa e viva de Cristo, por meio da fé. Ou seja, não é viver o evangelho dentro apenas da igreja, mas na vida cotidiana, no trabalho, nas relações, na internet, no cuidado consigo, com o outro, com a vida.

Qual é essa mensagem do evangelho? Voltemos para Jesus Cristo, o que ele fez, disse e ensinou. Voltemos para o seu amor inclusivo. Voltemos para a justiça e o direito a todo ser que vive! Voltemos para a convivência respeitosa, curadora, restauradora. Voltemos para o perdão de todo mal! Assim vamos indo e fazendo discípulas todas as nações.

4 Imagens para a prédica

Viver a ascensão é viver a ressurreição de Jesus Cristo no cotidiano da vida. Viver a ressurreição de Cristo, por sua vez, é viver concretamente os passos de Jesus Cristo. Que passos são esses? Tudo que ele fez e que está relatado nos evangelhos, o amor incondicional. Jesus é o amor que anda!

Concretamente percebemos a presença de Cristo em três lugares: na Santa Ceia, na comunidade onde a Palavra é pregada e nas pessoas pequeninas. A Santa Ceia e a comunidade são realidades conhecidas pela comunidade. Em tempos pandêmicos, sugiro sair das abstrações do amor e, concretamente, abordar Ma teus 25.31ss. Viver o evangelho da ressurreição é nada mais e nada menos do que estar ao lado das pequeninas e dos pequeninos, as pessoas que têm fome, sede, as forasteiras, as nuas e as presas.

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Ascensão

Quem são essas pessoas nestes tempos pandêmicos? As que morreram por causa da pandemia, as que perderam pessoas amadas, as odiadas por serem di ferentes, as discriminadas por sua classe, etnia, gênero, idade, escolaridade. No Brasil elas têm rostos bem concretos: são as mulheres, as pessoas negras, as indígenas, as crianças, as pessoas pobres e miseráveis, as pessoas homoafetivas, as pessoas que pensam diferente do senso comum, as imigrantes, as vítimas da Covid, as pessoas que estão nas sinaleiras pedindo ajuda para viver. Viver a ascensão é começar por essas pequeninas. Ali, no rosto delas, en contramos o Cristo ressuscitado e seu evangelho e na solidariedade amorosa e incondicional vivemos o evangelho da ressurreição.

5 Subsídio litúrgico

Lugares à margem

1. Fortalece a presença da tua igreja Nos lugares criados à margem dos lugares: À margem das estradas, À margem das cidades, À margem dos impérios, À margem da História.

2. Tu conheces, ó Deus, muito bem estes lugares.

Na pessoa de teu Filho, tu mesmo os visitaste: Abraçaste as crianças, Acolheste as mulheres, Deste ouvido ao clamor dos cegos, Tocaste o corpo dos leprosos. Agora envia o teu Espírito, Encoraja a tua igreja a ir Aos lugares onde tu já estás E aí te servir.

(Rodolfo Gaede Neto, 2020)

Bibliografia

GALLAZZI, Sandro. O Evangelho de Mateus: uma leitura a partir dos pequeni nos. São Paulo: Fonte Editorial, 2012.

PAGOLA, José Antonio. O caminho aberto por Jesus: Mateus. Petrópolis: Vozes, 2013.

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Ascensão do
Senhor

7º DOMINGO DA PÁSCOA

PRÉDICA: ATOS 16.16-34 SALMO 97 APOCALIPSE 22.12-14,16-17,20-21

Pesquise: Proclamar Libertação, v. 34, p. 211ss www.luteranos.com.br (busca por Atos 16.16-34)

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Ascensão do Senhor

DOMINGO DE PENTECOSTES 05 JUN 2022

1 Introdução

Espírito, corpo e propósito

PRÉDICA: ROMANOS 8.14-17

GÊNESIS 11.1-9 JOÃO 14.8-17(25-27)

A leitura de Gênesis 11.1-9 fortaleceu minha ideia de que não há espírito sem corpo. E, além disso, me ensinou que o espírito não está só bem apegado a um corpo, mas também a um propósito. Quando Deus viu que as pessoas salvas do dilúvio estavam enveredando por um caminho sem volta, desceu para ver a cidade e a torre que aquela gente estava construindo (v. 5). Assim como a lei da Constituição de um país precisa ser regulamentada em suas diversas afirmações, Javé precisou regulamentar seu novo projeto de povo com aquela descendência de Noé, especialmente no que se refere ao quesito da comunicação. Ele não podia permitir que o belo dom das línguas justificasse o propósito único de domínio totalitário, possibilitando chegar aos céus por mãos e méritos próprios. Deus não poderia deixar-se criar um espírito assim, bem configurado naqueles corpos uni dos pela sede de poder sem limites.

O evangelho previsto, João 14.8-17, cai no contexto como se viesse colocar ordem no jeito de compreender unidade entre espírito, corpo e alma. Felipe ainda não tinha entendido como funciona esse conjunto. Pediu que Jesus mostrasse o pai. Em sua compreensão, portanto, Jesus teria a capacidade especial de trazer de fora para dentro, ou de cima para baixo, a identidade de um propósito original, ou seja, pai com poder inequívoco de convencimento a respeito da missão que o grupo de Jesus tinha. Um pensamento absurdo para Jesus! Por isso a resposta parece meio mal-humorada. Não se trata, porém, de humor, mas de propósito: “Tanto tempo junto e você, nada de compreender, Felipe?”. Essa é uma chamada à conversão de pensamento para a compreensão das coisas do reino de Deus. O filho só é filho porque, em sua identidade, ele se move pelo espírito proposto. No reino de Deus essa dinâmica entre pai e filho vale para a relação entre mestre e discípulo.

No texto da Carta aos Romanos 8.14-17, como veremos na exegese, a mesma unidade está confirmada.

2 Exegese

O texto da pregação traz cinco vezes a palavra espírito. Nos dois versículos anteriores (12-13), aparece corpo/carne quatro vezes. Isso é um sinal de que está sendo tratado o assunto como o corpo e o espírito se relacionam e participam de

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Leonídio

tudo o que faz parte do ser. Não há espaço aqui para aprofundar essa temática, mas encorajado por estudos apresentados em Proclamar Libertação (Ofícios, su plemento 2, sobre “a morte e o morrer na Bíblia”) e no livro editado pela IECLB “Funeral Cristão, fundamentos e liturgias” (sobre “A morte e o funeral cristão”), começo dizendo o que está no título, que não existe espírito sem corpo e os dois juntos não existem sem propósito. E para deixar o assunto mais bem-humorado, digo que se assim não fosse, seria obrigado a acreditar na existência de assom brações e fantasmas. Quanto à assombração, seu nome já diz que é sombra. Se é sombra, deve ser de um corpo. E o fantasma usa um lençol branco para se cobrir. Se não houvesse corpo, não haveria o que encobrir. Além disso, se acreditasse em espírito sem corpo, precisaria também concordar com uma explicação que se ouve em velório. Diz-se que quando alguém morre, devemos rapidamente acen der velas ao lado de seu corpo, para que a sua alma possa sair e subir aos céus pelo vapor do fogo. Pensando nessas coisas, li os três textos bíblicos indicados para as celebrações comunitárias no fim de semana do Pentecostes de 2022. Coube, evidentemente, especial atenção aos versículos indicados como base da pregação.

V. 14 – As versões do Almeida ARA e NTLH traduzem agontai como “guiados”. A Bíblia de Jerusalém traduz como “conduzidos”. Não há muita di ferença entre dizer “todos os que são guiados pelo Espírito” (ARA), “aqueles que são guiados pelo Espírito” (NTLH) e “todos os que são conduzidos pelo Espírito” (BJ). Chamou-me, porém, a atenção que a versão alemã de Lutero não aplica o verbo “führen” para “conduzir” ou “guiar”. Nela aparece, assim como no dicionário grego-alemão, “treiben” (“welche der Geist Gottes treibt”). Vejo uma diferença significativa entre esse verbo e os verbos “guiar” ou “conduzir”. Dizer que alguém é conduzido ou guiado pode pressupor a existência de um agente ex terno. No texto bíblico, porém, parece não se tratar disso. Podemos compreender agō no sentido de estímulo. A seiva que circula na planta, por exemplo, a conduz sim, mas isso é algo diferente de alguém que guia ou conduz um automóvel. Por isso estou querendo fazer uma diferença entre os dois verbos em língua alemã. “Führen” estaria mais para guiar e conduzir, enquanto “treiben” mais para fazer fluir ou estimular movimento. Quer dizer: mesmo estando o verbo no modo passivo, precisamos abrir a possibilidade para entender o ato aqui descrito pelas versões em português como guiar ou conduzir, não só como algo que ocorre de fora para dentro, nem de cima para baixo, mas também como algo que ocorre de dentro para fora.

V. 15 – Podemos entender o termo hiothesia como aceitação de uma fi liação, não por motivos sanguíneos, mas pelo motivo de o estímulo que flui na pessoa ser o espírito do ser que está na origem. O versículo afirma que o espírito que passou a fluir em quem crê não é um espírito escravizador, que faz recair no medo, mas é um espírito filial. Esse é o espírito que se manifesta quando Deus é chamado de pai.

V. 16 – O termo empregado para falar da filiação a Deus, nesse versículo, muda para tekna. Trata-se de um termo mais próximo da compreensão de filiação em relação à ancestralidade, como descendência, como herança de característi cas. No AT é a relação dos israelitas com Deus, no NT são aquelas pessoas para

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de Pentecostes

as quais Deus preparou o reino messiânico. Quando o Espírito de Deus flui no interior da pessoa, ele, o espírito, testemunha essa filiação.

V. 17 – O mesmo termo tekna continua sendo empregado aqui para falar da filiação a Deus. É acrescentado que a filiação significa klēronomos, isto é, quem é tekna possui algo que lhe cabe por sorteio ou por herança. O termo herança tem parentesco com o termo sorte. Quem tem essa posse, a tem junto com Cristo, jun to no seu sofrimento e junto na sua glorificação. Não está expresso aquele sentido que transparece na formulação “se..., então também” da NTLH, que, eventual mente, pode ser compreendido como se a participação no sofrimento fosse uma credencial para a participação na glória.

3 Meditação

Como seres humanos que somos, temos uma resposta pronta em nós. Diante de qualquer fato reprovável, botamos a mão no controle e acionamos: “isso foi assim e assado por causa disso e daquilo”. Sabemos que elegemos quem não faz, ou se faz, sabemos que faz errado. Sabemos que a notícia que vemos, lemos e ouvimos não cumpre o seu papel de bem informar. Antes disso, promove assuntos em detrimento de outros que ficam encobertos por desvio ou omissão. Sabemos que as redes sociais que usamos tomam o nosso tempo, desconstroem valores etc.

Deus bem que poderia ter permitido a construção da torre de Babel. Lá na quela planície já estávamos, como espécie humana, com o controle na mão e já tínhamos acionado: “Bora lá, rumo ao céu” (Gn 11.4a). Ainda estávamos no início, já tínhamos a resposta pronta para resolver o problema que nos atormenta até hoje: como chegaremos naquele lugar onde mana leite e mel (Dt 6.3)? Quando chegare mos ao ponto de plantar nossos próprios vinhais e de tomar o seu suco (Is 65.21)? Quando construiremos nossas casas e nelas habitaremos (Is 65.21)? Quando chega remos lá onde não mais haverá lágrimas e a morte já não existirá (Ap 21.4)?

Também Felipe botou a mão no controle e apertou: “Mostra-nos o pai”. Estava acionando o canal da resposta para a pergunta de todos os tempos. Quem duvidaria de algo, se fosse mostrada a matriz de tudo, se fosse mostrado o docu mento original, se fosse mostrado o Pai? Chegamos à conclusão de que os três textos bíblicos que têm leitura pre vista para este Pentecostes apontam o controle para a mesma direção. Aquilo que Deus fez em relação aos pretenciosos sobreviventes do dilúvio na planície de Sinar, aquilo que Jesus fez em relação aos seus discípulos questionadores e aquilo que o apóstolo Paulo diz aos romanos é como se apontasse o controle na direção de quem costuma apontá-lo: nós. E, ao fazer isso, está nos comunicando que o que importa mesmo é que, ao clamarmos “Aba, Pai”, isso seja um testemunho de que o espírito de Deus flui em nós e nos faz agir (verbo no modo passivo). O controle que temos nas mãos deve acionar a nós mesmos e não a algo fora de nós. Quem crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará (Jo 14.12).

Nos últimos dois anos, acumulamos a experiência de viver em situação de pandemia. Entre outras, trata-se da experiência de sentir instabilidade. Em um contexto assim é, sem dúvida, um testemunho cristão ser referência do contrário,

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de Pentecostes

isto é, de estabilidade. Parece-me que nesse sentido vão as palavras de Jesus quando disse: deixo-vos a minha paz, não como o mundo a dá (Jo 14.27). O mundo só sabe dar paz quando está tudo bem. Sem o Espírito de Deus, buscamos essa paz do mundo. Ao contrário disso, o Espírito de Deus traz paz justamente na adversidade. É uma paz que flui na pessoa e independe do contexto. Por isso Paulo e Silas cantaram na prisão (At 16.25). Por isso Bento de Núrsia fundou, à beira da estrada, o primeiro convento beneditino, acolhendo andarilhos desalo jados e famintos, que perambulavam como parte do fenômeno chamado invasão dos bárbaros, no período de mudança da Idade Antiga para a Idade Média. O Santo Espírito que desce sobre nós neste Pentecostes de 2022 não se re sume ao dever profético de denunciar pecados que levaram à tenebrosa realidade vivenciada desde 2020. O Pentecostes inclui o ser passivo do fluir de um novo Espírito que inundou a alma das primeiras comunidades cristãs:

Em uma carta conservada por Eusébio, o bispo Dionísio de Alexandria (faleci do em 265) escreve sobre a peste que atingiu sua cidade e relata que os cristãos cuidaram dos doentes, sem fazer distinção entre cristãos e não cristãos. Segundo seu relato, os pagãos fugiam das pessoas infectadas, inclusive dos seus familiares, abandonavam os moribundos e deixavam os mortos jogados. Muitos cristãos morreram nesses cuidados, inclusive presbíteros, leigos e diáconos. Tomavam os moribundos no colo e no momento da morte “fechavam-lhes os olhos e a boca”. Preparavam os corpos com banho e os enterravam, e, muitas vezes, os sucediam na morte (GAEDE NETO, 2015, p. 319).

4 Imagens para a prédica

A pregação poderá iniciar com uma breve encenação, na qual uma pessoa com os olhos vendados é guiada por outra que vê. A pessoa que não enxerga é guiada de tal forma que consegue passar por obstáculos sem se ferir e sem ser impedida de seguir em frente.

O Espírito de Deus é assim. Ele vem de fora e nos é concedido, como aquela pessoa que guia a outra que não vê. Essa situação, porém, não permanece assim. O Espírito Santo que vem e passa a habitar em nós. As vendas dos olhos caem e passamos a ser guiados por aquele espírito que, a partir de nosso íntimo, chama Deus de “Aba, Pai”. Esse é um testemunho, um grito de independência de qualquer forma externa que pretenda nos guiar de forma escravizadora. Todos os “tu tens que” são substituídos por “eu quero”.

O Pentecostes que constrói comunidade hoje e nos devolve a comunhão tem como personagem um mesmo espírito, aquele que clama “Aba, Pai” coletivamente. Acabamos de descer da barca do dilúvio como “rebanho resgatado por um só Salvador, devemos ser unidos por mais ardente amor, olhar sem julgamento os erros de um irmão e todos ajudá-lo com terna compaixão” (LCI 576).

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Domingo de

5 Subsídios litúrgicos

Hinos: Espírito, verdade, LCI 461; Jesus, pastor amado, LCI 576. Bibliografia

GAEDE NETO, Rodolfo. Diaconia e cuidado nos primeiros séculos do cristianis mo. Estudos Teológicos, v. 55, n. 2, p. 316-332, jul./dez. 2015.

SCHIRLITZ-EGGER. Griech.-Deutsches Wörterbuch zum Neuen Testament. 6. Aufl. Giessen: Emil Roth.

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Domingo
de Pentecostes

PRÉDICA: ROMANOS 5.1-5

SALMO 8 JOÃO 16.12-15

1º DOMINGO APÓS

PENTECOSTES (TRINDADE)

12 JUN 2022

Justificação por graça resulta em justiça social

1 Introdução

Escrevo este auxílio em dias de intensa aflição pelos números diários de mortes pelo coronavírus (ao redor de quatro mil), ao mesmo tempo em que come moramos 500 anos da Assembleia em Worms. Lá Lutero enfrentou autoridades civis e eclesiásticas que queriam forçá-lo a revogar seus escritos. Entretanto, es tava lá como pessoa justificada pela fé na obra de Cristo. Livre (Luthero, de eleutheros, que segundo Bauer, 497, qualifica o ser livre: 1º) política e socialmente; 2º) sem amarras e independente; 3º) no sentido religioso e moral), manteve-se firme diante dos mais que adversários. “Sequestrado” para Wartburgo, além de traduzir o Novo Testamento, escreveu também uma introdução à Carta de Paulo aos Romanos, a cujo estudo me dediquei para escrever esta meditação.

Em Romanos, Paulo expõe sua teologia de modo ordenado: a lei não salva. Apenas revela o pecado. Só Deus justifica. Não apenas judeus, mas a humani dade toda. Salva gratuitamente. Essa graça é acessível pela fé em Jesus Cristo, princípio da nova humanidade. Em continuidade, o Espírito Santo age dentro das pessoas, moldando sua nova vida.

O Salmo 8 traz uma descrição da glória de Deus Criador. Diante de sua magnitude, o ser humano é nada. Contudo, Deus lhe atribuiu uma posição apenas um pouco abaixo de si mesmo, coroando-o de glória e honra, que também é tema ao final do v. 2: gloriamo-nos na esperança da glória de Deus. Na leitura de João, é o Espírito da Verdade que ainda dirá tudo o que os discípulos de Jesus não su portariam e, sobretudo, glorificará a Jesus, repartindo tudo o que é dele, e do Pai.

2 Exegese

“Nos primeiros três capítulos da Epístola aos Romanos, Paulo não faz outra coisa senão inculcar que todos os seres humanos são ímpios e injustos, que não somente os gentios, mas também os judeus estão sob o pecado” (OSel1, v. 4, p. 396). Nosso texto encontra-se dentro do bloco temático que trata da justificação pela fé (1.18 – 8.39). “Tendo sido justificados”, resume todo o conteúdo da justi

1 OSel é a abreviatura de LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia.

197
Hans

2

ficação explanado pelo apóstolo em 3.9-31 e explicado com o exemplo de Abraão no cap. 4. Não se refere apenas a um sentimento subjetivo de alívio, liberdade e paz interior, mas sim a um relacionamento objetivo novo de paz com Deus, pro duzido por Jesus Cristo, “por intermédio de quem tomamos posse (εσχήκαμεν/ eschēkamen2) dessa graça, que nos mantêm firmes”. A frase seguinte acentua que não há porque gloriar-se disso, a não ser pela esperança da glória de Deus. Ou seja, qualquer traço de arrogância dos que tomaram posse da graça é totalmente impróprio diante de qualquer outra pessoa fora do círculo de fé! E mais: gloriar -se nas próprias tribulações, coisa humanamente improvável, caso de patologia masoquista, só é pensável focado na glorificação de Deus. Por isso a palavra θλίψις/thlipsis (segundo BAUER, 1971, p. 715s, de raro uso extrabíblico) não se refere a dores e sofrimentos pessoais ou corporais, comuns a todas as criaturas, mas à opressão “causada por circunstâncias externas”. Na minha compreensão, tem a ver com o versículo anterior, a posse da graça e o gloriar-se na esperança da glória de Deus. Trata-se de pressões e assédios externos, imposição de sofri mentos – físicos, psíquicos, sociais – para conseguir que a pessoa desista do te souro que possui e, por conseguinte, da sua fé; no fundo, são provas de integridade. Para as pessoas cristãs, são decorrências naturais de uma vida de fé que não se conforma com “este século” (Rm 12.1s), que resiste ao mal, que o senso comum considera normal; são decorrência de obedecer mais a Deus do que aos homens (At 5.29), e nesse processo dão consistência à fé. A palavra hypomonē (aguentar, suportar, a paciência histórica – nada a ver com conivência!) introduz a sequência que marcará a vida das pessoas justificadas, agraciadas, livres. Segue-se dokimē (provação, fidelidade testada, torna a pessoa mais experiente, sua fé mais firme) o que leva à elpis (esperança – ativa no amor; lembra a tríade: fé, esperança e amor). A esperança ou kataischynei, traduzido por “não decepciona”, “não engana”, “não confunde”; eu traduziria, não deixa cair em des-graça, ou seja: o amor de Deus derramado em nosso coração não deixa perder a graça! Quanto ao capítulo 5, Lutero faz o seguinte comentário:

[...] a síntese da verdade cristã [se resume] em dois artigos, como em dois saqui nhos, quais seja, fé e amor. O saquinho da fé deve ter dois bolsinhos; num deles coloque-se o seguinte artigo: cremos que pelo pecado de Adão estamos todos corrompidos, somos pecadores e condenados, conforme Rm 5 e Sl 51.5. No outro bolsinho, coloque-se o artigo de que todos somos redimidos por meio de Jesus Cristo dessa natureza corrompida, pecaminosa e condenada, conforme Rm 5.18s e Jo 3.16ss3. O saquinho do amor também deve ter dois bolsinhos. Num deles, ponha-se o artigo de que devemos servir e fazer o bem a todos, como nô-lo fez

Εσχήκαμεν está no perfeito; significa “o fato consumado da tomada de posse, cujo efeito perdura”. RIENECKER, Fritz. Sprachlicher Schlüssel zum Griechischen Neuen Testament. Giessen: Brunnen, 1956.

3 É de se perguntar em que medida Paulo (e talvez Lutero ainda?) distinguia entre Adão como personagem histórico e Adão como personagem de um mito da criação. Pelo que hoje sabemos, soa um tanto impróprio comparar um personagem mítico com uma pessoa histórica.

198 1º Domingo após
Pentecostes

Cristo (Rm 13.8/10). No outro encontre-se o artigo de que devemos tolerar e sofrer de bom grado toda espécie de mal (OSel, v. 7, p. 180-181).

Lembremos: “a lei não é necessária para a justificação, mas inclusive inú til e impossível, porque não tira pecados, mas os revela, não justifica, mas nos constitui pecadores” (OSel, v. 4, p. 406). Romanos 3.20: Visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. Entretanto, a lei não é anulada, antes confirmada. “A lei é altamente sagrada e excelente, mas ela não justifica. Ela enche de terror e acusa, porém ela não justifica e não livra da morte [...] existe um abuso da lei, se atribuo a ela mais do que a lei é capaz de operar” (OSel, v. 9, p. 451). Além disso, o cumprimento da lei seria a glória humana, não precisaria da graça de Deus. A justificação pela fé equipara judeus e gentios, pois Deus é Deus de ambos (3.29s). Quanto ao v. 2, Lutero comenta:

Paulo conjuga de maneira extremamente útil as duas expressões “através de Cris to” e “pela fé”. Em primeiro lugar, sua afirmação dirige-se contra os presunçosos que acreditam poder aproximar-se de Deus sem Cristo, como se fosse suficiente ter crido; querem, assim, ter acesso apenas pela fé, não através de Cristo, mas sim, ao lado de Cristo, como se não carecessem de Cristo mais tarde, depois de aceita a graça que justifica. Agora, há muitas pessoas que, a partir das obras da fé, também fazem para si próprias obras da lei e da letra, quando, tendo recebido a fé pelo ba tismo ou pela penitência, acham que são pessoalmente agradáveis a Deus mesmo sem Cristo, quando, na verdade, ambas as coisas são necessárias, a saber, ter a fé e, todavia, ao mesmo tempo, possuir Cristo eternamente como nosso mediador nessa mesma fé (OSel, v. 8, p. 282).

3 Meditação

Muitas gerações já se irritaram com o fato de que em seu discurso as igre jas primeiro convencem as pessoas de que são pecadoras; depois oferecem-lhes um bem religioso que administram, na melhor hipótese, justificação gratuita pela fé; na pior hipótese, voltam a comerciar com a graça de Deus por meio do dízimo interesseiro, tornado obra meritória, requentando as medievais indulgências. O método equivale ao filho do vidraceiro quebrando as janelas da vizinhança para que o pai lhes possa vender vidros novos.

A pergunta que não quer calar: será que Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança para ser mau, desde a sua juventude, um pecador enrustido e incorrigível? Ou seria um traço da cristianização colonialista, carregada de uma história de guerras e extermínios, experiência de estar fora do paraíso, oferecer um bem religioso embalado na cultura europeia?

A antropologia ameríndia constata que, em geral, entre indígenas, vivendo no sistema tribal, sem Estado, não há essa noção de que o ser humano é ruim, pecador, carente de salvação; entre indígenas reina muito mais o fascínio de estarem integrados dentro de uma natureza maravilhosa, um paraíso, no qual com partilham a sua humanidade com a fauna e a flora. Tupã significa: Magnífico!

199 1º Domingo após
Pentecostes

Quem és? Não há esse sentimento de estar em débito e precisar algum resgate, de salvação ou vida eterna. A vida humana está integrada no ciclo da natureza, nisso reside sua eternidade. Num encontro eclesial com parceiros de Misiones e da Alemanha em 2012, Santiago Guarani expressou um pensamento que me impressionou: “Vocês brancos de fato precisam de Jesus Cristo para salvar vocês, pelo mal que vocês trouxeram para essas terras e fizeram contra os povos daqui. Ainda serão capazes de exterminar com essa bela criação de Deus” (o paraíso)! E agora: os indígenas são positivamente os humanos do Salmo 8?

A justificação pela fé nos dá uma grande liberdade! Talvez se equipara a como os indígenas se sentem, mesmo sem explicitá-lo com o evento cristológi co. Para nós outros, tudo já foi feito por Deus por meio de Cristo. A pessoa não tem mérito algum nessa nova realidade. Libertados para a solidariedade, essas pessoas costumam ser firmes no que defendem, mas abertas ao diferente, acessíveis e muito agradáveis no convívio; não costumam golpear as pessoas com suas verdades, como se fosse um pano de chão estapeado pelas orelhas, mas as colo cam sobre os ombros da outra pessoa como se dispõe carinhosamente um casaco. Aquece o corpo e a alma.

A verdade é que somos incapazes de cumprir os mandamentos. Erram aqueles que pensam que cumprir a lei prepara as pessoas para receber a graça, pois a obstaculizam com sua convicção de que, então, passaram a ser merecedo ras. E aí já não é mais graça! A finalidade dos mandamentos é convencer o ser humano de sua incapacidade de cumprir os mandamentos e aprender a desesperar de si mesmo e colocar toda a sua esperança na graça de Deus.

Fazer boas obras para ser contado entre as pessoas de bem e ser honrado pode dar uma boa sensação, mas é mentira e hipocrisia; a glória humana é sua recompensa! A boa obra é e sempre será uma consequência da graça e do Espírito que tomou conta do coração, nunca a sua causa. Com boas obras, você não chega até Deus; mas Deus com sua graça habilita você a boas obras. Boas obras é o Espírito Santo quem dá (5.5). Assim como laranjas boas não conseguem trans formar uma laranjeira doente em uma árvore sadia, mas uma árvore sadia produz laranjas boas.

Uma compreensão disseminada na igreja é: não matei, não roubei, não pulei a cerca... então sou uma pessoa boa, pois estou cumprindo os mandamentos (mesmo que de dez sejam apenas três!). Tenho observado confissões de pecado em nossas liturgias usando formulações, como: Senhor, perdoa, se às vezes...; Senhor, muitas vezes, erramos quando... Como, “às vezes” ou “muitas vezes”? Por que amenizar a situação de pecado em que nos encontramos, absolutamente necessitados da graça justificadora de Deus por meio de Jesus Cristo? As pessoas sairão do culto, pensando: “Sim, eu errei, mas todo mundo erra; no fundo eu sou uma pessoa de bem”. Ou como ouvi de uma senhora: “Pastor, eu não entendo, por que a cada culto a gente confessa os pecados; pois eu sinto que não tenho pecados”. Aqui a graça se torna absolutamente desnecessária. Esses seriam nega tivamente os humanos do Salmo 8, porque se acham grande coisa?

200 1º Domingo após Pentecostes

As declarações centrais sobre o pecado (hamartia) têm todas um denominador comum: elas são pensadas dentro de relações de dominação (só raramente em categorias de culpa e da ação pecaminosa individual) [...] Sua concepção central é: o pecado domina todas as pessoas como escravas e, assim, transforma-as em colaboradoras do sistema imperial.4

A individualização econômica, promovida pelo capitalismo consumista, reflete-se no campo religioso como individualização da salvação.5

Se você vive dentro de um sistema econômico e social em que ricos ficam cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres, em que até o número de bilionários aumentou durante a devastadora pandemia, então você participa do pecado estrutural que produz a desigualdade nessa sociedade, mesmo que indivi dualmente esteja respeitando as leis do país, pois leis também produzem injustiça e desigualdade. Ninguém quer cobiçar ou ser ganancioso; mas ter ambição é so cialmente aceitável, subir na vida, alcançar sucesso... temos o pecado maquiado!

Um dos grandes problemas na igreja é que a justificação não tem uma con sequência histórica, não resulta em justiça econômica e social. Mas não só na igreja de hoje! Por isso Jesus já contou a parábola do devedor que foi perdoado de uma soma enorme, impagável, e na sequência passa a apertar o pescoço de um devedor seu que lhe devia uma merreca, comparado ao que lhe tinha sido perdoado. Outra frase que ouvi de um latifundiário: “Graças a Deus, tudo o que eu tenho é por meu próprio esforço e trabalho”. Parece uma contradição, mas não é. O “graças a Deus” não se refere ao que ele possui. É o mesmo “graças a Deus” do fariseu (Lc 18.9ss). Sua relação com os semelhantes consiste em justificar seu bem-estar econômico e social frente a pessoas empobrecidas, sem considerar a estrutura injusta dentro da qual essa desigualdade está ocorrendo. Você dificilmente vai ouvir uma frase dessas de uma pessoa empobrecida, marginalizada, excluída. Portanto a justificação por graça mediante a fé é o contrário da pretensa meritocracia.

Ao mito do mérito é necessário contrapor o princípio da necessidade que represen ta a exata correspondência à justiça da fé. A consequência ético-social daí derivada é uma crítica do atual mundo do trabalho, dominado por essa ideologia meritocrata e suas consequências sociais e psicológicas negativas.6

“Lutero retorna à verdade bíblica, de que Deus perdoa dívidas gratuita mente e que desse perdão nasce e cresce a solidariedade com as pessoas.”7 Com isso, tocamos num assunto em que precisamos ser muito mais incisivos: justifica ção necessariamente tem de desembocar em compromisso com a justiça histórica de Deus, caso contrário não serve para nada, do que apenas um engano de si mes mo. Temos dificuldades para compreender isso, pois em nossa língua não temos

4 HOFFMANN, Martin; BEROS, Daniel Carlos; MOONEY, Ruth (Eds.). Radicalizando a Reforma: outra teologia para outro mundo. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2017. ponto 2, p. 8.

5 HOFFMANN; BEROS; MOONEY (Eds.), 2017, ponto 11, p. 11.

6 HOFFMANN; BEROS; MOONEY (Eds.), 2017, ponto 20, p. 13.

7 HOFFMANN; BEROS; MOONEY (Eds.), 2017, ponto 14, p. 11.

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a forma verbal consecutiva que existe na língua hebraica. Justificação pela graça de Jesus Cristo mediante a fé sem justiça econômica, social, ambiental, política, religiosa é uma perversão!

A doutrina da Reforma a respeito da justificação tem de romper o encapsulamen to ocidental do individualismo possessivo e do quietismo político, libertando as pessoas de tudo aquilo que as subjuga a ídolos: privilégios segundo a espécie e o gênero, segundo a etnia, a religião, a nacionalidade e a classe. A justificação por graça e fé tem de ser redescoberta como expressão da profunda compaixão de Deus por todas as pessoas na morte de Jesus. Desta forma, se fortalece a nossa responsabilidade pública pela justiça política e econômica e pelo reconhecimento “dos outros”.8

Quem em nossa igreja sofre tribulação por causa de sua fé? Pelo abuso que outras agremiações, autointituladas cristãs, estão fazendo com o Evangelho de Cristo, penso que está chegando o tempo em que haverá novamente perseguição e tribu lação daqueles que, libertados pela graça, se posicionam intrepidamente contra os poderes de perdição e morte, travestidas de cristãs, que ainda regem e esperneiam em nosso mundo. Mas esses poderes não prevalecerão, pois já estão vencidos.

4 Proposta de três pontos para a prédica

Tendo sido justificados! Ninguém está fora dessa justificação. Especialmente as pessoas pecadoras são incluídas. Pois todos estamos nessa condição de precisar a justificação gratuita por meio de Jesus Cristo, acedida pela fé. Se você não é peca dor, está (se colocando) fora! Para exemplificar, use frases que já escutou.

I. Pecado e glória

1. Vivemos em uma época de banalização e amenização do pecado. Falar sobre o pecado está fora de moda. Mas o pecado conduz à morte! Revisão é ne cessária: estamos todos sob a escravidão do pecado, pois participamos de uma sociedade injusta e desigual. “Não roubei, não matei, não pulei a cerca” não nos salvam. Ninguém consegue cumprir os mandamentos de Deus. Eles existem para nos convencer de que somos incapazes de cumpri-los, dependendo totalmente da graça de Deus em Jesus Cristo. Estar justificado por graça é o contrário de meri tocracia! Qualquer atitude de fazer por merecer está se colocando fora da graça.

2. A glória é de Deus. Quem quiser gloriar-se de seus feitos e com eles justificar-se também estará pecando, pois desdenha a obra salvífica de Deus em Cristo. Nada temos a oferecer, tudo recebemos!

II. Justificados mediante a fé implica compromisso com a justiça social. A fé tem consequências éticas. Caso contrário a justificação é um ledo autoen gano. A fé não é um campo de sensações individuais, alívio da alma..., mas uma

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HOFFMANN; BEROS; MOONEY (Eds.), 2017, ponto 32, p. 15.
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realidade objetiva que tem consequências nas relações humanas e ambientais. Estamos em condições de amar, pois o amor de Deus está derramado em nosso coração por meio do Espírito Santo (v. 5).

III. Quem de nós sofre por causa de sua fé? Quando a tribulação vier, ela nos trará paciência histórica, essa nos trará fidelidade testada, que desembocará em esperança ativa. A esperança não deixa perder a graça. Ela nos dá força para continuar a lutar por justiça social, para a glória de Deus.

5 Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados: Prestar atenção para não utilizar uma formulação que in duz ao equívoco de que pecado se resume a deslizes e errinhos do cotidiano. Evitar formulações como “às vezes”, “muitas vezes”, “quando” etc., que ameni zem o pecado. Interessante seria conversar, durante a semana, com membros da comunidade sobre que pecados deveriam constar da confissão no domingo.

Oração de coleta: Deus todo-amoroso, tu que conduziste teu povo através da história e, ao se cumprirem os tempos, vieste a nós em Jesus Cristo, amor encar nado, profeta e pregador, curador de todos os males, fiel até a morte na cruz, para a salvação de toda a criação, nós te pedimos que também olhes para nós, abre nossos olhos para a nossa situação de pecado e nos estimula a aceitar a tua obra de graça contra toda ilusão de nossos méritos; para que, de posse de tua graça, sejamos teus fiéis seguidores, trabalhemos por mais justiça e igualdade na tua criação e com isso proclamemos incessantemente a tua glória. É o que te pedimos por Jesus Cristo, teu Filho, que, contigo e com o Espírito Santo, vive e reina, de eternidade a eternidade. Amém

Leitura do evangelho: Quem colocar o foco sobre a falta de consequência da jus tificação, ou seja, compromisso com a justiça de Deus, ou de um encapsulamento individual da justificação, poderia escolher como evangelho a parábola do credor incompassivo: Mateus 18.23-35. Quem preferir tematizar a hipocrisia farisaica: Lucas 18.9-14.

Bibliografia

BAUER, Walter. Wörterbuch zum Neuen Testament. Berlin: de Gruyter, 1971. HOFFMANN, Martin; BEROS, Daniel Carlos; MOONEY, Ruth (Eds.). Radica lizando a Reforma: outra teologia para outro mundo. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2017.

LUTERO, Martinho. Pelo Evangelho de Cristo. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal, 1984. p. 179-192.

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1º Domingo após Pentecostes

2º DOMINGO APÓS PENTECOSTES 19 JUN 2022

Marcelo Jung

1 Introdução

PRÉDICA: LUCAS 8.26-39

ISAÍAS 65.1-9 GÁLATAS 3.23-39

Estamos no início do tempo após Pentecostes. É tempo da comunidade cristã lembrar de modo especial e celebrar a realidade do Espírito Santo enviado do Pai e do Filho. Espírito Santo que, pela Palavra, chama à fé e cria a fé; cria, reúne e mantém a comunidade cristã; capacita e move a comunidade cristã para a comunhão e para o testemunho de Jesus Cristo; concede nova vida e capacita para nova vida em Jesus Cristo; cria e alimenta a esperança na ressurreição e na vida eterna em Jesus Cristo, nosso Senhor.

O texto da prédica e os textos para as leituras estão sintonizados com a ação do Espírito Santo. No Espírito Santo, os discípulos receberam poder para serem testemunhas de Jesus Cristo desde Jerusalém até aos confins da terra (At 1.8); desde os judeus até aos gentios; desde o povo escolhido para ser bênção de Deus até os povos escolhidos para receber a bênção de Deus (Gn 12.1-3). Isaías 65.1-9 profetiza o que se concretizará em Atos dos Apóstolos. Deus revelará seu amor e salvação em Jesus Cristo e grande parte do povo judeu o rejeitará como Messias e a salvação em seu nome. A salvação se estenderá aos gentios e esses a receberão (At 28.17-28). Gálatas 3.23-29 desenha o mesmo movimento: os gentios – todas as pessoas, sem distinção – recebem a salvação em Jesus Cristo que foi revelada aos judeus e rejeitada por muitos deles. Todas as pessoas, sem exceção, são alvo do amor de Deus e da salvação em Jesus Cristo.

Lucas (que é também o autor de Atos), em seu evangelho registra muitas marcas dessa oferta da salvação em Jesus Cristo destinada não a um só tipo de pessoas (judeus fiéis à Lei – como pensavam os judeus no tempo de Jesus), mas a todas as pessoas (homens, mulheres, crianças, idosos, ricos e pobres), inclusive a pessoas consideradas, pelos judeus, excluídas do relacionamento com Deus (pu blicanos, prostitutas, pecadores, samaritanos e estrangeiros/gentios). Nesse sen tido, muito significativas são algumas das parábolas que encontramos apenas no Evangelho segundo Lucas: o bom samaritano (10.25-37), as parábolas da festa no céu pelos perdidos que foram achados (15), a parábola do fariseu e do publicano (18.1-14) e outras.

Lucas 8.26-39 relata Jesus Cristo fazendo o mesmo movimento que marca toda a sua obra (evangelho e Atos dos Apóstolos): dos judeus em direção aos gentios. Jesus Cristo, vindo dos judeus, se dirige propositalmente aos povos es

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Em sintonia com Jesus Cristo e a sua salvação

trangeiros, se manifesta graciosamente a eles e oferece, também a eles, a sua salvação – a reconciliação com Deus para uma nova vida.

2 Exegese

1. Lucas indica claramente que Jesus Cristo se dirige intencionalmente aos estrangeiros / excluídos da religião judaica: a) Sua ida para a região dos gerasenos não foi um acaso ou um acidente. É intencional, por isso a ordem aos discípulos, quando estavam na Galileia: entrou ele num barco em companhia dos seus dis cípulos e disse-lhes: Passemos para a outra margem do lago (8.22). b) Após a tempestade – enfrentada e acalmada – no mar da Galileia (8.23-25), navegaram para a terra dos gerasenos, fronteira da Galileia (v. 26). Essa região localizava-se exatamente em frente à região Galileia, no lado oriental do mar da Galileia. Sua população era formada por muitos gentios (povos não judeus) e nela predominava a cultura helenística grega (pagã). c) A criação de porcos (v. 32) é um sinal da cultura e religião não judia, visto que para os judeus os porcos eram animais considerados impuros e, por isso, proibidos (Lv 11.7; Dt 14.8). d) O nome com que no relato se identificam os demônios. Legião (v. 30) indica uma provável adesão ao sistema provincial romano naquela região. Era a designação para a maior unidade do exér cito romano, que contava com seis mil soldados em sua força total. Para os judeus, quem aderia ao Império Romano era considerado inimigo.

Jesus Cristo foi ao encontro e em busca de gente que, na compreensão religiosa e política dos judeus, era impura e inimiga e, por isso, excluída da possi bilidade do relacionamento de paz com Deus e com o povo de Deus. Jesus Cristo foi em direção do povo que não perguntava por Deus, que não o buscava, que não se chamava do seu nome (Is 65.1). Lá, Jesus Cristo teve um encontro com um homem que estava “mais além” da exclusão da possibilidade do relacionamento de paz com Deus e com o povo de Deus, um homem possesso de demônios (v. 27), muito demônios (v. 30), tantos que se identificavam como legião (v. 30 –corresponde ao número seis mil) e que, ao terem sido expulsos do homem, dominaram uma grande manada de porcos (v. 32). O evangelista Marcos registrou que eram cerca de dois mil porcos (Mc 5.13). O grande número de porcos é uma evidência do grande número de demônios que estava naquele homem. Em virtude da possessão demoníaca, o homem estava em estado deplorável, não se vestia, não habitava em casa [...] vivia nos sepulcros (v. 27); era uma “não pessoa” que alguns tentavam conservar preso com cadeias e grilhões (v. 29), mas o homem possesso a tudo despedaçava e era impelido pelo demônio para o deserto (v. 29). Sepulcros e deserto eram entendidos como lugares preferidos dos demônios. No pensamento da religião judaica, aquele homem estava, não apenas excluído, mas extremamente excluído, “bem pra lá de excluído”, da possibilidade de relaciona mento de paz com Deus e com o povo de Deus.

2. Lucas descreve que àquele povo excluído e àquele homem “bem pra lá de excluído” da possibilidade do relacionamento de paz com Deus e com o povo de Deus Jesus Cristo graciosamente manifesta quem ele é:

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Pentecostes

a) Jesus Cristo tem total autoridade sobre os demônios. O homem possesso prostrou-se diante dele (v. 28) – essa expressão carrega o sentido de um temor gerado por um reconhecimento (cf. Mc 3.11; 5.33; 7.25; Lc 5.8; 8.47; At 16.29), os demônios temem porque reconhecem que Jesus tem poder para atormentá-los (v. 28) e lançá-los no abismo (v. 31) – essas expressões são usadas para a descrição da execução, por Deus, do juízo final sobre os demônios (tormento: Ap 14.10; 20.10; e lançar no abismo: Ap 20.3 – LOUW; NIDA, 2013, p. 437 e p. 9). É por isso que Mateus registra vieste aqui atormentar-nos antes do tempo? (Mt 8.29). Com autoridade Jesus não fez um pedido, mas ordenou ao espírito que saísse do homem (v. 29); anunciou o que deveria ser feito (LOUW; NIDA, 2013, p. 381). E, por fim, os demônios precisam da permissão de Jesus e só podem fazer o que Jesus permite (v. 32).

b) Jesus Cristo tem compaixão do homem “bem pra lá de excluído” e estende a ele a sua salvação. Pela ação salvífica de Jesus, o homem foi transforma do. Lembre-se de suas características antes da libertação que Jesus lhe concedeu (v. 27,29). Agora, liberto por Jesus Cristo, estava sem um demônio sequer, ves tido, em perfeito juízo (lit. com capacidade de raciocinar e pensar de forma adequada e sadia – LOUW; NIDA, 2013, p. 316), assentado aos pés de Jesus (v. 35). Sua vida foi restaurada por fora e por dentro. E ele está na posição de discípulo. Assentar-se aos pés de alguém é uma posição de discipulado – cf. Maria, irmã de Marta e Lázaro, diante de Jesus (Lc 10.39) e Paulo diante do Rabi Gamaliel (At 22.3). Por fim, a ação de Jesus fez do homem possesso um homem salvo (v. 38). A expressão tem o sentido de cura após um período de enfermidade (LOUW; NIDA, 2013, p. 241), de resgate do perigo e restauração de estado ante rior de segurança e bem-estar (LOUW; NIDA, 2013, p. 216) e da experiência da salvação divina (LOUW; NIDA, 2013, p. 217). Ao que parece, Jesus Cristo concedeu todas essas dimensões da salvação àquele homem “bem pra lá de excluído”.

c) Como parte integrante de libertar e salvar aquele homem “bem pra lá de excluído”, Jesus o acolhe e o envia como seu discípulo. O homem pede para Jesus que o deixasse estar com ele (v. 38), o que é uma dimensão importante e indispensável do discipulado (cf. Mc 3.13-14). Mas Jesus lhe confere outra dimensão importante e indispensável do discipulado: Jesus o despediu dizendo: Volta para a casa e conta aos teus o que Deus fez por ti (v. 38-9). E o homem, como discí pulo fiel, obedeceu: então, foi ele anunciando por toda a cidade todas as coisas que Jesus lhe tinha feito (v. 39). Vale observar que a expressão anunciar (kēryssō) é para Lucas uma palavra conceitual que descreve a ação da proclamação do evangelho (Lc 8.1; 24.47; At 8.5; 9.20; 10.42-43, 19.13; 20.25; 28.31). De certa forma, aquele homem “bem pra lá de excluído” que foi liberto e salvo por Jesus experimentou antecipadamente o que os demais discípulos experimentaram em Mateus 28.18-20 (ou mesmo At 1.8): o chamado para viver sob a autoridade de Jesus como discípulo, o envio para fazer novos discípulos, a obediência à palavra de Jesus e a certeza da presença de Jesus aonde quer que fosse.

d) Ainda é preciso observar um detalhe importante da manifestação de Jesus. Por ela, aquele homem reconheceu que Jesus é Deus, o único Deus. Jesus o despediu com a ordem de contar tudo o que Deus fez por ele. E o homem obede

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2º Domingo após
Pentecostes

ceu e foi anunciando por toda a cidade todas as coisas que Jesus lhe tinha feito. E reconhecendo em Jesus o próprio Deus, o homem salvo por Jesus faz o que o povo de Deus deve fazer: ser testemunha de Jesus Cristo e sua salvação. Somente em Jesus Cristo se encontra Deus como Deus gracioso que liberta e salva, que restaura a vida por dentro e por fora, que dá direção correta para viver em sintonia com Deus e com o povo de Deus. E só é possível encontrar Jesus Cristo porque ele vem ao nosso encontro. No caso do homem “bem pra lá de excluído”, o encontro foi em carne e osso; em nosso caso, o encontro se dá pela sua palavra e pelos sacramentos.

3. Lucas demonstra que a ação salvífica de Jesus entre os excluídos rece beu duas respostas distintas: aceitação e rejeição:

a) Após a libertação do homem possesso pela expulsão dos demônios rea lizada por Jesus, o homem creu em Jesus. Lucas não utiliza a expressão “crer” para descrever a reação do homem liberto, mas a sua resposta – aos pés de Jesus, o desejo de estar com Jesus, a obediência à palavra de Jesus, o testemunho do que Jesus fez e de que Jesus é Deus – corresponde ao que a Bíblia chama de fé em Jesus Cristo.

b) A população em geral também recebeu a ação salvífica de Jesus. Não da mesma maneira que o homem possesso que foi liberto, mas presenciaram a autoridade e o poder salvífico de Jesus de forma marcante, tanto é que foram anunciar (o acontecimento) na cidade e pelos campos (v. 34), ao voltar com o povo acharam o homem de quem saíram os demônios, vestido, em perfeito juízo, assentado aos pés de Jesus; e ficaram dominados de terror (v. 35) e podiam con tar aos outros como fora salvo o endemoniado (v. 36). Mas sua resposta foi dife rente do homem possesso que fora liberto: todo o povo da circunvizinhança dos gerasenos rogou-lhe que se retirasse deles, pois estavam possuídos de grande medo (v. 37). Apesar de nenhuma tradução fazer essa opção, a expressão retirasse (aperchomai) pode ser traduzida por deixar de existir ou desaparecer (LOUW; NIDA, p. 144). Em todo caso, a população não quer estar com Jesus, não quer ouvir sua palavra, não quer aderir ao discipulado; não quer obedecer-lhe, não quer reconhecê-lo como Deus; não quer testemunhar a respeito dele. E Jesus os atende, tomando de novo o barco, voltou (para a margem da região da Galileia) (v. 37). Chama a atenção que Lucas descreve a conversa de Jesus com o homem possesso que foi liberto somente depois de Jesus atender a resposta do povo que o rejeitou. Fica evidente que vida com Jesus Cristo e identificação com Jesus Cristo só existe mediante a fé em sua graciosa salvação (cf. em Efésios 2 a distinção da vida “sem Cristo” e a vida “em Cristo”).

A ação salvífica de Jesus foi manifestada para todas as pessoas, até para as consideradas excluídas e “bem pra lá de excluídas”, mas só experimentaram a reconciliação com Deus e a inclusão no povo de Jesus aquelas pessoas que creram nele. Essa realidade é a mesma que acontecia entre os judeus [que se julgavam incluídos no povo de Deus pela etnia e pela tradição religiosa]: ao receber (abun dantemente) a manifestação salvífica de Jesus, alguns creram e outros rejeitaram; alguns, pela fé, foram incluídos no discipulado (no povo de Jesus), outros, pela descrença, permaneceram fora do discipulado (do povo de Jesus).

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Pentecostes

3 Meditação

Nesse tempo após Pentecostes, o texto indicado e as leituras bíblicas nos levam a refletir sobre três verdades fundamentais reveladas em Jesus Cristo e sua ação salvífica e nos convidam, como comunidade formada, discipulada, capacitada, dirigida e movida pelo Espírito Santo, a viver em sintonia com Jesus Cristo e sua obra salvífica.

1. Jesus Cristo vai ao encontro (e quer ir ao encontro) de quem nós não iríamos. Como cristãos, confessamos crer que Jesus Cristo conquistou a salvação e a destina e oferece para todas as pessoas, sem distinção. Confessamos que Je sus Cristo quer acolher todas as pessoas, sem distinção, em seu Reino. Contudo, é muito fácil cairmos na tentação de negar essa fé ao elaborar “listas” de quem pode e de quem não pode ser salvo. Facilmente caímos na tentação de configurar o evangelho à nossa imagem e semelhança e por ele julgar que podem ser salvas somente aquelas pessoas que, no plano das coisas inferiores, como diria Lutero (p. ex. organização social, modelo econômico, opção política, costumes, estilo de vida etc.), pensam como pensamos; que defendem os mesmos princípios que defendemos; que apoiam as mesmas propostas que apoiamos; que têm o mesmo estilo de vida que temos (ou, pelo menos, parecido com o nosso estilo de vida). Facilmente caímos na tentação de colocar no evangelho aquilo que não vem da Palavra de Deus, mas de nossas convicções e preferências, e, com isso, elabo ramos listas de quem está incluído na oferta de salvação e que está excluído da oferta de salvação em Jesus Cristo.

Para os judeus (inclusive para os discípulos), os gerasenos e os gentios em geral estavam na lista dos excluídos da oferta da salvação. E o geraseno possesso de uma multidão de demônios, então, estava na lista dos “bem pra lá de excluí dos” da oferta da salvação. Mas Jesus os tinha na sua lista de incluídos da oferta de salvação. Jesus foi em direção a eles. Jesus intencionalmente quis alcançá-los e oferecer a eles sua salvação; a reconciliação com Deus. Somos lembrados que fomos alcançados, como pessoas individuais e como comunidade, por Jesus, sem que ele fizesse primeiro um exame de seleção para verificar se merecíamos ou não a sua salvação. Pela pregação do evangelho, Jesus, no poder do Espírito Santo, nos chamou e iluminou, nos concedeu a fé e nos incluiu no seu povo. É desejo de Jesus que por meio de nós outras pessoas sejam alcançadas com o evangelho, com o anúncio da salvação. É desejo de Jesus que não tenhamos listas de quem pode e de quem não pode ser salvo. É desejo de Jesus que anunciemos o evangelho e convidemos para salvação todas as pessoas, sem distinção, inclusive as que consideramos excluídas e até as que considera mos “bem pra lá de excluídas”.

Estamos em sintonia com nosso Senhor e sua salvação? Estamos em sintonia com seus planos conosco? Estamos vivendo guiados pelo Espírito Santo, ou seja, desejosos pela salvação de todas as pessoas e agindo de acordo? Fazemos listas de quem pode ser salvo e de quem não pode ser salvo? Quem são as pessoas na nossa lista de excluídos e dos “bem pra lá de excluídos”? Cremos que Jesus

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quer que levemos o anúncio da salvação para essas pessoas também? Nossos olhos estão abertos e nossos corações estão voltados para as pessoas que ainda não receberam o anúncio da salvação em Jesus Cristo? Nossos pés se movem em direção a elas?

Deixemo-nos questionar e julgar por essa verdade – toda e qualquer lista que julga quem pode e quem não pode ser salvo merece o juízo e a condenação de Deus. Mas também deixemo-nos consolar, motivar e impulsionar por ela. Jesus Cristo nos convida, ainda hoje, a ter apenas a lista dele. Ele nos convida, ainda hoje, a anunciar o evangelho e convidar à salvação todas as pessoas, sem distinção.

2. Jesus Cristo fez tudo o que é necessário e suficiente para a salvação / reconciliação com Deus em favor de todas as pessoas. O texto nos faz lembrar questões básicas da salvação em Jesus Cristo. Sua salvação não depende das pes soas a quem é oferecida, mas depende do que Jesus Cristo fez e faz pelas pessoas. Jesus não exigiu que o geraseno possesso de demônios primeiro melhorasse a vida para depois realizar sua ação salvífica em favor dele. Aliás, o geraseno pos sesso de demônios nem poderia fazer isso por si mesmo. Precisava da salvação de Jesus. E Jesus, por sua misericórdia e graça, fez tudo o que era necessário e suficiente para libertar aquele homem – também para todas as pessoas na região de Gadara e para seus discípulos.

Pela obra salvífica de Jesus é possível novidade vida. O que aconteceu com o geraseno que foi liberto por Jesus nos mostra que a resposta de fé à ação salvífica de Jesus se concretiza em colocar-se sob a autoridade de Jesus – Ele é o Senhor; viver como discípulo ou discípula dele; ouvir sua voz com confiança; obedecer a sua vontade; fazer novos discípulos e novas discípulas); contar com sua presença todos os dias até a consumação dos séculos – a vinda do Reino de Deus em sua totalidade.

Somos lembrados que ser incluído na reconciliação com Deus e no povo de Deus pela salvação em Jesus Cristo sempre se desdobra em viver novidade de vida: de inimigo de Deus para filho e filha de Deus; de separado de Deus para reconciliado com Deus; de escravo do diabo, do pecado, da morte e do inferno para liberto que pertence a Jesus Cristo; de viver a partir das próprias verdades, vontades e planos para viver a partir da verdade, vontade e plano de Deus reve lados em Jesus Cristo; de viver para si mesmo para viver com Jesus e para Jesus, em testemunho do seu nome e em serviço ao próximo; de guiar-se por seu próprio espírito para ser guiado pelo Espírito Santo.

Temos vivido pessoal e comunitariamente essa realidade? Confiamos na ação salvífica de Jesus ou confiamos em nossas qualidades para a salvação? A sal vação é apenas uma mensagem que recebemos ou uma realidade na qual vivemos pela ação do Espírito Santo? Na comunidade, cuidamos uns dos outros e motivamos uns aos outros a viver essa novidade de vida? Permanecemos nós em disci pulado? Conduzimos nossos filhos e nossas filhas ao discipulado? Conduzimos ao discipulado as novas pessoas que chegam à comunidade? A salvação, dada a nós, tem se tornado viver em novidade de vida (cf. Rm 6.1-14)? Anunciamos a salvação sem perguntar a qualidade das pessoas a quem nos dirigimos?

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2º Domingo após
Pentecostes

Deixemo-nos questionar por essa verdade. Que ela nos julgue e nos acuse se precisarmos. Mas também deixemo-nos confortar por essa verdade. O convite para novidade de vida, pela salvação em Jesus Cristo, continua valendo.

3. Jesus Cristo (e sua salvação) pode ser aceito ou rejeitado. Sem dúvida e com muita evidência o texto nos revela que Jesus Cristo quer a salvação de todas as pessoas, sem distinção – das pessoas que estão em nossa “lista de incluídos”, em nossa “lista de excluídos” e, até em nossa “lista de bem pra lá de excluídos”. Mas também é muito evidente que as pessoas não são incluídas na salvação pelo fato de estarem em uma de nossas listas (“de incluídas” ou “de excluídas” ou “de bem pra lá de excluídas”). As pessoas (não importa em qual de nossas listas estejam) são in cluídas – desfrutam a salvação – somente pela fé em Jesus Cristo. Jesus manifestou sua graciosa salvação diante de judeus, de gerasenos, de gentios, de possessos de demônios, de publicanos, de prostitutas, de fariseus, de pecadores, de sacerdotes, de pobres, de ricos, de homens, de mulheres, de crianças... de todas as pessoas. Todas as pessoas, sem distinção, receberam essa manifestação. Mas apenas as pessoas que confiaram em Jesus experimentaram a salvação – a novidade de vida. É necessário destacar essa dimensão da salvação – aceitação e rejeição –em virtude de um pensamento presente nas modernas teologias genitivas. Em geral, as teologias genitivas afirmam e defendem que determinados grupos são incluídos e desfrutam a salvação pelo fato de serem de um determinado grupo: o branco é salvo porque é branco; o negro é salvo porque é negro; o germânico é salvo porque é germânico; o indígena é salvo porque é indígena; o homem é salvo porque é homem; a mulher é salva porque é mulher; o heterossexual é salvo porque é heterossexual; o homossexual é salvo porque é homossexual; o LGBT é salvo por ser LGBT; o pobre é salvo porque é pobre; o rico é salvo porque é rico; o popular é salvo porque é popular; a elite é salva porque é elite; o que não usa linguagem inclusiva é salvo porque não usa linguagem inclusiva; o que usa linguagem inclusiva é salvo porque usa linguagem inclusiva... e por aí vai. Quem quiser defender algo desse tipo é livre para defender, mas aí o evangelho não é mais evangelho revelado em Jesus Cristo. É evangelho configurado ao ser humano, no qual a dignidade humana está no ser humano em si e não no amor de Deus pelo ser humano, o pecado está apenas nas estruturas opressoras (no ambiente) e não no ser humano, e a salvação está apenas na libertação de opressões e não na restauração do relacionamento com Deus – que é o que gera nova vida e possibili ta transformação do mundo, em pequenos sinais por enquanto e na sua totalidade quando o reino for consumado.

Somos lembrados que nada podemos fazer por nossa salvação e que ne nhuma característica ou qualidade em nós nos faz merecedores de salvação e nos garante salvação. O amor de Jesus Cristo nos faz aceitáveis para a salvação. Jesus Cristo fez tudo para nossa salvação, nos anuncia isso no evangelho e, pelo evangelho, nos convida a crer e a desfrutar, pela fé, da salvação em novidade de vida – criada, mantida e guiada pelo Espírito Santo.

Em que evangelho depositamos nossa fé? Qual é a nossa resposta pessoal diante da salvação realizada por nós em Jesus Cristo? Que novidade de vida tem sido gerada em nós pela ação do Espírito Santo? Que evangelho anunciamos? O

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2º Domingo após Pentecostes

anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, de nossa parte, tem sido puro e reto – tem oferecido salvação gratuita e tem evocado para uma resposta pessoal?

Deixemo-nos questionar por essa verdade. Que ela nos julgue e nos acuse se precisarmos. Mas também deixemo-nos confortar por ela. O convite para vida em sintonia para com o evangelho revelado em Jesus continua valendo. O convite para o seu anúncio puro e reto continua valendo.

4 Imagens para a prédica

Pode ser utilizada a imagem de um aparelho de rádio. Ele tem sua razão de existência e seu serviço adequado só quando está sintonizado com a rede de transmissão. Além disso, o aparelho, por si só, não cria mensagem e não transmite mensagem alguma – só ruído. Ele recebe mensagem e a transmite. A prédica nos convida a buscar por sintonia com Jesus Cristo e o seu Evangelho – o que pode ser feito pela oração, leitura e estudo da bíblia e meditação na palavra de Deus. A prédica convida-nos a transmitir o evangelho de forma pura e reta para todas as pessoas, sem distinção – o que nos desafia a não fazer nossas listas de “incluídos”, “excluídos” e “pra lá de excluídos”. Roguemos que Deus, no poder do Espírito Santo, nos faça pessoa, comunidade e igreja sintonizada com Jesus Cristo.

5 Subsídios litúrgicos

Liturgia de entrada: Hino HPD 1, 76 (LCI 461). É um hino próprio do tempo de Pentecostes. É um pedido pela ação graciosa do Espírito Santo que coloque e preserve a igreja em sintonia com o evangelho revelado em Jesus Cristo.

Liturgia da palavra: Hino HPD 1, 195 (LCI 170). É um hino de missão e evan gelização adequado ao tema do texto indicado para a prédica. Expõe de modo evidente que a oferta da salvação é Jesus Cristo é destinada a todas as pessoas. Diante dela há pessoas que recebem pela fé e pessoas que rejeitam incrédulas.

Liturgia de saída: Hino HPD 1, 196. É um hino de missão e evangelização que anima a comunidade a viver em sintonia com a ação do Espírito Santo na procla mação do evangelho.

Bibliografia

BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudos Almeida. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudo NAA. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018.

BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo NTLH. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2012.

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2º Domingo após Pentecostes

Domingo após Pentecostes

LOUW, Johannes; NIDA, Eugene. Léxico grego-português do Novo Testamento baseado em domínios semânticos. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.

NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. 28. ed. Münster: Deutsche Bibelgesellschaft, 2012.

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PRÉDICA:

1 REIS 19.15-16,19-21

LUCAS 9.51-62 GÁLATAS 5.1,13-25

3º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Cumpra a missão: deixe o arado para trás

1 Introdução

O relato do texto de hoje, de 1 Reis 19, deu-se no período do reinado do rei Acabe, o qual era casado com Jezabel. Jezabel tinha uma missão: destruir todos os profetas de Javé. Foi por esse motivo que o profeta Elias fugiu, sendo por isso criticado por muitos comentaristas. Diante do pavor, devido à perseguição de Je zabel, Elias fugiu primeiro para a cidade de Berseba e depois para a montanha de Horebe, conhecida como montanha de Deus. Esse profeta não foi covarde, mas diante da realidade fez sua avaliação, a tal ponto que não se considerava mais importante do que seus antepassados (1Rs 19.4) e então decidiu fugir.

O sentimento de Elias e sua vivência evidenciam a situação deplorável do povo que rejeitava a aliança com Javé e adorava deuses estranhos, serviam e ado ravam a Baal. Mas em meio a essa situação, Javé visitou seu servo fiel, não num forte vento ou em um terremoto, mas em meio a um sussurrar suave de uma brisa passageira. Elias obedeceu, voltou e dentre suas tarefas convidou Eliseu para ser seu seguidor e discípulo. Eliseu foi um personagem de grande importância na sequência da história. Foi o sucessor de Elias, homem de coragem, fiel e respon sável pela realização de muitos milagres.

É impressionante como Deus vai ao encontro de seus servos fiéis, revelan do que não adianta fugir. Se a missão não foi finalizada, é preciso voltar, porque Deus vai buscar, pois parece que de alguns indivíduos ele não abre mão. En tretanto, ele mesmo será o sustento para que tenhamos coragem e capacidade de concretizar aquilo que for preciso. Para cumprir uma missão, é preciso fazer algumas considerações. Essas serão os destaques na meditação.

2 Exegese

V. 15 e 16 – Elias recebeu a ordem para voltar a Damasco, lugar distante que ficava a cerca de 640 km ao norte de Israel. Lá ele deveria ungir Hazael como rei da Síria, que no futuro seria aquele que castigaria Israel. Aquilo que Hazael não destruísse, Jeú o faria, sendo que a unção de Jeú também foi uma incumbência que Elias recebeu. Além de Hazael e Jeú, Elias ainda ungiria seu sucessor Eliseu, e embora não haja indicações no texto de como isso aconteceu, é possível que Elias o fez quando Eliseu assumiu seu lugar. Todas essas unções gerariam muitas mudanças para a história de Israel. A expressão “ungirás” que

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26 JUN 2022
Marivete Kunz

aparece no v. 15 não significa que somente Jeú foi ungido pelo profeta Elias. Esse verbo pode indicar uma nomeação que tinha a unção como símbolo (BRUCE, 2009, p. 596). A expressão hebraica ungir (māsaḥ) também indica autorização. Conforme Wiseman, somente aqui nesse texto esse termo é usado a respeito de um profeta, designando sucessor (WISEMAN, 2011, p. 153). Elias precisou ir à cidade de Abel-Meolá para ungir Eliseu. Essa cidade ficava aproximadamente a 240 quilômetros do Sinai.

V. 19 – Eliseu, filho de Safate, é apresentado no texto como alguém de uma família que possuía muitos bens. Isso pode ser evidenciado pelo número de bois que tinha na lida do campo, ou seja, o campo precisava de 12 juntas para ser lavra do. Além disso, ele pode oferecer uma junta para celebração. Lançar a capa, ação que Elias teve para com Eliseu e que aparece nesse verso, é simbolicamente um convite para que Elias o seguisse e fosse seu discípulo. Eliseu não procurou Elias e se ofereceu a ele, mas foi chamado por Elias. Lançar a capa representa um símbolo de adoção e aqui pode representar que Eliseu se tornou filho de Elias no aspecto espiritual. Conforme Champlin, acredita-se que o poder espiritual foi transferido ao profeta por meio do manto (CHAMPLIM, 2001, v. 2, p. 1.445) Aquilo que foi designado para Elias fazer, ou seja, ungir seu sucessor, cumpriu-se aqui.

V. 20 – Wiersbe afirma que

A conduta de Eliseu parece contradizer as palavras de Jesus em Lucas 9:57-62, mas não é o caso. Eliseu seguiu Elias com obediência sincera, enquanto os homens no registro do Evangelho estavam hesitantes e tinham suas reservas, e Jesus sabia disso. Eliseu provou seu compromisso matando dois dos bois e usando a madeira dos implementos agrícolas como lenha para cozinhar a carne para um banquete de despedida. Em termos contemporâneos, estava “queimando as pontes atrás de si”. Uma vez tendo tirado as mãos do arado, não tinha intenção alguma de voltar atrás (WIERSBE, 2006, p. 475).

Eliseu recebeu permissão para despedir-se dos pais, mas em seguida jun tou-se a Elias em uma nova jornada. Em Lucas 9.61-62, o Senhor não aceitou uma petição semelhante, possivelmente por saber que o retorno para casa, naquele caso específico, redundaria em abandono ao chamado. Nesse sentido, Eliseu foi decidido e voltou para seguir com sua nova missão.

A prontidão de Eliseu remete aos discípulos de Cristo, que da mesma for ma abandonaram as redes e seguiram o mestre (Mt 4.20). Sem hesitar, eles deixa ram para trás sua vida e o seguiram.

Com relação à decisão tomada por Eliseu, o texto não apresenta indícios da reação da sua família. Elias voltou, sem demora, pelo caminho por onde havia vindo e retomou seu posto de trabalho.

V. 21 – Antes da partida, Eliseu vivenciou um momento de comunhão com os seus, possivelmente como forma de consolo aos que agora estariam distantes dele. A festa também simbolizou a alegria de ter sido chamado. Agora Eliseu passou a seguir o profeta Elias, sendo seu servo e aprendiz, e depois assumindo

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seu lugar. Ele foi o escolhido para ser instrumento em um momento de muitas dificuldades do povo.

3 Meditação

Se entendo que tenho uma missão (e na verdade todos têm uma missão), preciso avaliar, refletir sobre algumas questões, a saber: a fuga do chamado; o que preciso deixar; o resultado da obediência.

a) Tenho fugido do chamado

Muitas coisas podem conduzir à fuga ou ao adiamento no cumprimento da missão. Mas é incrível ver como Deus, mesmo em meio às fugas, não abandona os seus, mas continua os protegendo. O texto de 1 Reis mostra que Deus enviou um anjo para cuidar do profeta Elias, independente desse anjo ser interpretado como alguma pessoa normal ou um ser celestial, Deus cuidou de seu servo quan do esse se encontrava cansado. Enquanto Elias dormia (1Rs 19.5), Deus enviou um anjo que lhe trouxe pão cozido sobre pedras e uma botija de água. Novamen te, num segundo momento de sono de Elias, Deus enviou um anjo que o acordou e pediu para Elias comer porque longa seria a jornada.

Não adianta fugir, na verdade, nunca fuja, porque a jornada ainda pode ser longa. Mas independente se tenhamos que ir até “Horebe” ou outro lugar, o importante é que saibamos que nessa caminhada Deus estará conosco. Ele não vai nos abandonar. Nem que seja por meio do envio de seus anjos ou de outras for mas, ele nos concederá forças e experiências de forma que possamos prosseguir.

Por vezes, não faltam motivos para o nosso Deus desistir e nos deixar. Que bom! Ele não age assim com seus filhos. Ele sempre olha para nós enxergando que há esperança. Por isso ele nos chama para voltar. Por vezes, o nosso Deus faz a mesma pergunta que fez para Elias (1Rs 19.9), a saber: Que fazes aqui?. Se o trabalho não foi concluído, como foi o caso de Elias, talvez Deus poderá nos fazer a mesma pergunta. Somos tentados a fugir diante das dificuldades e nossas limitações. Mas ao ouvir a voz de Deus dizendo “volte”, vamos perceber que estamos no caminho errado! Obedeça! Volte, pois muitas vezes é necessário retornar ao caminho certo.

Quem sabe essa é a hora de refletir o que pode conduzir à fuga. No caso de Elias, foi o medo, pavor. Por vezes, pelo fato de fugir, o caminho de volta pode ser longo. Elias, para ungir Eliseu, precisou voltar e caminhar cerca de 240 quilô metros, até a cidade de Abel-Meolá, mas o resultado valeu.

Diferentemente de Elias, Eliseu, ao ser chamado para ser seu seguidor, imediatamente entendeu e aceitou. Ele não foi à procura de Elias ou a ele soli citou ser seu seguidor, mas foi por Elias chamado. Eliseu possivelmente abriu mão de bens que poderia ter para assumir sua missão. Mas é incrível como ele não hesitou em momento algum. Sua convicção e forma de agir chama a atenção.

215 3º Domingo após Pentecostes

b) O que preciso deixar

Talvez de forma diferente de Elias, Eliseu precisou abrir mão de muitas coisas para cumprir sua missão. O texto o apresenta como alguém de família de posses (v. 19). Eliseu precisou deixar seus bois, seu arado, literalmente queimou tudo para não olhar e quem sabe ter a tentação de voltar. Quem sabe hoje seja o dia em que precisemos avaliar: temos que deixar algo para seguir e cumprir a missão que por ele a nós foi entregue?

Aos que estavam junto com Cristo e queriam segui-lo, ele nem mesmo deu permissão para sepultar os pais, que significa que eles queriam esperar os pais morrerem para então seguir a Cristo. O chamado para missão é para hoje, não é possível adiar ou fazer algo antes. Por vezes, queremos fugir da missão que nos foi entregue, mas Deus vai atrás como foi com Elias.

c) O resultado da obediência

Elias tinha várias coisas nessa missão, conforme o v. 15. Primeiro, precisaria ungir Hazael como rei da Síria, depois Jeú como rei de Israel (na realidade Eliseu foi quem o ungiu, mas pela autoridade que lhe foi concedida por Elias, nesse caso, quando Eliseu ungiu Jeú, era como se Elias estivesse fazendo) e ainda Eliseu como seu sucessor. Possivelmente muitas dessas tarefas alguns acharão estranhas. Mas não importa, porque quem controla tudo é Deus, inclusive os líderes, mesmo entre os gentios, como no caso do rei da Síria. Ungir dois reis e um profeta: que grande missão Elias ainda tinha! Como pode ter pensado em desistir, ter ficado desanimado?

Elias não ungiu grandes nomes. Haveria pessoas de mais destaque. Entretanto, Hazael, o servo do rei Bem-Hadade, Jeú o capitão do exército e Elias, um agricultor, também tinham sua tarefa. De forma específica, Jeú (2Rs 10.18-31), que exterminou muito da adoração aos profetas de Baal, ainda que por motiva ções políticas e não por ser adorador de Javé, e Elias, no seu enfrentamento com os profetas de Baal (1Rs 18) foram os personagens que mais conseguiram des truir os profetas de Baal.

Os resultados aparecem quando o ser humano para de fugir de sua missão, obedece ao seu Deus e vive de forma a contemplar o futuro. Como dito anterior mente, às vezes o caminho de volta é longo, como no caso de Elias, que precisou voltar por um longo caminho, cerca de 240 quilômetros, para ungir Eliseu. Mas o resultado valeu muito, porque esse homem foi grandemente usado por Deus para abençoar os filhos de Israel.

Conclusão: O texto de 1 Reis mostra que Elias fugia de Jezabel por medo. Tinha a intensão de salvar a sua vida, mas isso levaria tantos outros a perderem a sua vida. No caso específico dos textos de hoje, o cumprimento da missão mostra -se urgente. Não tem como fugir, não é possível levar nada junto (Eliseu). Ao final, a vontade de Javé foi soberana, e o próprio Javé restaurou a vida de Elias, o trouxe ao serviço e foi o seu sustento. Elias voltou, Javé foi maravilhoso e o profeta acabou sendo o recrutador de outras pessoas para o serviço do Senhor.

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3º Domingo após
Pentecostes

Olhemos para o essencial: a obra do nosso Deus continua e nós podemos estar com ele, mas talvez esse seja o tempo de deixar o nosso “arado” para assumir um projeto maior, que traga muitos frutos para a eternidade.

4 Imagens para a prédica

Os relatos das imagens para prédica são provenientes do livro que tem por título “Coletânea de Ilustrações”, das edições Vida Nova.

a) A voz delicada às vezes parece vir de longe, mas está tão perto que se assemelha a um murmúrio ao ouvido. Um jovem tenente do exército britânico fora enviado para o sul da África com o seu regimento. A mãe, pegando sua Bíblia, deu-a ao jovem, que a guardou bem no fundo da mala. Um dia, sentado em frente à barraca, observava as operações de uma companhia de soldados. Escutava as ordens dos oficiais e notava a obediência das tropas. Subitamente, pareceu ouvir uma voz que lhe dizia haver um Grande Comandante a quem as pessoas devem obedecer. Levantou-se depressa, foi à mala, tirou dali a Bíblia que lhe fora entre gue pela mãe e, à proporção que lia, entregava-se a Deus. A consciência é a voz de Deus chamando as pessoas para uma vida melhor. Para ouvirmos a voz mansa e de um suave silêncio como Elias ouviu, devemos estar atentos, e se vamos acatá-la, devemos ficar quietos.

b) Abraão, um dos grandes heróis da fé, perdeu seu arrimo em Deus e ficou tão desanimado, que recorreu ao subterfúgio e à mentira. Davi, homem que vivia segundo o coração de Deus, encontrou-se, certa vez, tão desalentado que bradou: “Ora, ainda algum dia perecerei pela mão de Saul”. Elias, aquele homem de Deus capaz de fechar e abrir os céus, um dia se lançou em terra e desejou a morte. Sim, mesmo aqueles gigantes da palavra de Deus experimentaram tempos de desapontamento e desânimo, por causa do “caminho”. O desânimo é um dos instrumentos mais eficientes de Satanás. Conta-se a história de que, um dia, Satanás, estando à beira da bancarrota, colocou à venda todos os seus instrumentos de tentação. Um pequeno objeto, em forma de cunha, tinha o preço mais alto. Quando lhe perguntaram o que continha, Satanás respondeu: “Este é o desânimo. Quando consigo introduzi-lo no coração da pessoa cristã, sei que em breve a terei ao meu lado”. O preço era tão elevado que Satanás ainda tem consigo o pequeno instrumento em forma de cunha e dele se serve em sua atividade no coração das pessoas.

Bibliografia

ALMEIDA, Natanael de Barros. Coletânea de ilustrações. São Paulo: Vida Nova, 1987.

BRUCE, F. F. Comentário bíblico NVI Antigo e Novo Testamento. Trad. Valde mar Kroker. São Paulo: Vida, 2009.

CHAMPLIN, Russel Norman. O Antigo Testamento interpretado: versículo por versículo. 2. ed. São Paulo: Hagnos, 2001. v. 2.

WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expositivo. Antigo Testamento. Trad. Suzana E. Klassen. Santo André: Geográfica, 2006. v. 2: Históricos.

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3º Domingo após Pentecostes

3º Domingo após Pentecostes

WISEMAN, Donald J. 1 e 2 Reis: introdução e comentário. Trad. Emirson Jus tino, Vicente de Paula dos Santos, James Reis. São Paulo: Vida Nova, 2011.

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PRÉDICA: LUCAS 10.1-11

ISAÍAS 66.10-14 GÁLATAS 6.(1-6)7-16

4º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

1 Introdução

Nossa missão: preparar o terreno

Pentecostes carrega consigo a força do começo, do recomeço. Depois de perder de vista o horizonte, a presença do Espírito Santo abre o ser humano para novas possibilidades. A ação de Deus pela efusão de seu Espírito coloca as pes soas e comunidades em sintonia com um novo projeto ou com renovada motiva ção para dar continuidade a projetos já iniciados.

A Igreja de Jesus Cristo é sempre de novo chamada a clamar pela vinda do Espírito Santo: “Vem, Espírito divino!” É somente na presença do Espírito Santo que o testemunho ganha autenticidade. É pelo Espírito que os frutos se dão a co nhecer. Em última instância, missão é obra do Espírito Santo.

O texto de pregação indicado para este 4º Domingo após Pentecostes tes temunha o envio de 35 duplas de pessoas com uma tarefa bem clara: preceder Jesus nas cidades e lugares onde pretendia passar. Em outras palavras, a tarefa consiste em preparar o ambiente para receber a presença de Jesus. No entanto, o que mais chama a atenção é a forma planejada, organizada e consciente como essa caminhada é orientada. Surpreendem a clareza no que será feito, tema e ob jeto; os objetivos a serem alcançados, o público-alvo, a metodologia de ação a ser empregada, bem como o que podemos chamar de “referencial teórico”.

Com o texto de Lucas 10.1-11, a comunidade também é convidada a ouvir as leituras de Isaías 66.10-14 e Gálatas 6.(1-6)7-16. O texto do profeta Isaías conclama para desfrutar da alegria. Depois de falar da nova Jerusalém, o texto agora se volta para o que poderá ser encontrado em Sião. Não é por acaso que o título da perícope na versão ARA é “a felicidade eterna de Sião”. Também não é desprovida de propósito a bela imagem da amamentação empregada no texto para falar de alimentação. Não se trata de um alimento material apenas, mas do ali mento que todo ser humano necessita e que inclui conforto, consolo, aconchego e graça. Em Sião poderão ser encontrados alegria, alimento e paz. Eis os autênticos sinais do reino de Deus.

O texto da carta de Paulo aos gálatas nos coloca diante de um dos maiores desafios com os quais a igreja de nossos tempos é confrontada: Levai as cargas uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo (v. 2). Vale lembrar o contexto em que o apóstolo diz essas palavras. O texto começa falando de “faltas” e de como deveríamos lidar com elas. O apóstolo utiliza palavras pesadas também para nossa realidade: se alguém julga ser alguma coisa (v. 3). É nesse contexto

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de “culpa no cartório” que a comunidade é convidada a ver o que tem semeado, pois nela não pode haver trégua na realização do bem. Se há alguma razão para ostentação, essa reside única e exclusivamente na cruz de Jesus, por meio da qual a comunidade está crucificada para o mundo e o mundo crucificado para a comunidade (v. 14).

2 O texto

O Evangelho de Lucas é o evangelho dos pobres. Por mais anacrônica que essa afirmação possa parecer diante dos paradigmas teológicos hegemônicos na atualidade, é isso mesmo. Em nenhum outro evangelho, embora recebam atenção em todos, os pobres são mencionados e lembrados com tanta frequência e destaque. Lucas 10.1-11 faz parte do conjunto de textos que apresentam um “relato de viagem” (9.51 – 19.27), ocasião em que Jesus aparece se dirigindo a Jerusa lém. Depois de narrar a história do nascimento e infância de Jesus (1 – 2), o evan gelho descreve o início da atividade pública de Jesus (3.1 – 4.13). Na sequência é narrada a atividade pública de Jesus na Galileia (4.14 – 9.50). Depois do “relato de viagem” seguem os textos que testemunham a presença de Jesus em Jerusalém (19.28 – 21.38). Por fim, o relato sobre o sofrimento, morte e ressurreição de Jesus (22 – 24).

O texto de Lucas 10.1-11 é precedido pela passagem que fala dos diferen tes seguidores de Jesus (9.57-62). Os v. 12-19 do capítulo 10 falam do retorno das setenta pessoas enviadas em duplas, seguidos da parábola do bom samaritano. Esse contexto de narração é importante para localizar o lugar que a perícope de pregação ocupa na prática de Jesus e na narrativa lucana. De imediato vale dizer que Jesus não sai por aí enviando pessoas a fazer missão. Para que a missão seja eficaz, faz-se necessária a criação de todo um ambiente adequado para a mesma. Na comparação com os demais evangelhos, encontramos o seguinte qua dro (CHAMPLIN, 2002, v. 2, p. 101):

LUCAS 10 v. 1 (Lucas somente) v. 2 v. 3 v. 4 v. 5 e 6 v. 7 v. 8 e 9 (Lucas somente) v. 10 e 11

MATEUS

9.37,38 (João 4.35) 10.16 10.9,10, com leves variações 10.11-13, com leves variações 10.11, com grande variação 10.13,14

O quadro mostra que o primeiro versículo é testemunhado somente em Lucas. Mateus omite a missão dos setenta. O mesmo ocorre com os v. 8 e 9: 8Quando entrardes numa cidade e ali vos receberem, comei do que vos for ofe recido. 9Curai os enfermos que nela houver e anunciai-lhes: A vós outros está

220 4º Domingo após Pentecostes

próximo o reino de Deus. O v. 2, testemunhado em Mateus 9.37-38, também é mencionado em João 4.35. Os v. 4-6 apresentam pequenas variações em Mateus 10.9,10,12,13. Já o v. 7 aparece com grande variação em Mateus 10.11. O que Lucas reúne em um só capítulo, Mateus distribui em seis capítulos diferentes.

V. 1-3 – Como já foi mencionado em outra ocasião (PL 40), o texto não nos informa o nome de nenhum desses setenta e também não nos diz o que aconteceu com eles depois dessa missão. Existe toda uma discussão em torno do número setenta. Setenta é um número presente na LXX e na tradição cristã. O núme ro também aparece com frequência no AT: “Há 70 almas na casa de Jacó, 70 anciãos, filhos, sacerdotes, e 70 anos mencionados em alusões cronológicas a eventos importantes” (Êx 24.1; Nm 11.16), (CHAMPLIN, 2002, v. 2, p. 102). De qualquer forma, Jesus primeiro escolhe, antes de enviar. Ao enviar, envia de dois em dois. Esse aspecto da companhia, do companheirismo, de quem está comigo na caminhada, nem sempre recebeu a atenção merecida na abordagem do texto. A pergunta que fica é se Jesus enviou outras pessoas além dos doze (Lc 9.1-6). A resposta parece ser sim. Possivelmente Jesus tenha enviado mais pessoas. Lu cas nos fala de três circuitos realizados na Galileia. No primeiro, Jesus tem a companhia de quatro pescadores. No segundo circuito estão presentes os doze. O terceiro circuito galileu é protagonizado pelos setenta.

A declaração do v. 2 encontra paralelos em Mateus e em João 4.35 aparece em contextos diferentes. Em Mateus, está relacionada com o envio dos doze. Em João, a declaração não está relacionada nem com o circuito galileu nem com algum número específico. Contudo, a imagem é clara. Qualquer pessoa familiari zada com a arte de plantar e colher irá entender que Jesus se refere ao ministério que ele tem protagonizado. Originalmente, seara refere-se a Israel. Porém, da forma como o termo é empregado por Jesus, passa a significar o mundo inteiro. Nenhuma pessoa sensata irá deixar de fazer a colheita quando os frutos estiverem aí. Por isso a importância dos trabalhadores. É a colheita que dá o tom da neces sidade de trabalhadores. Quanto mais trabalhadores, maior a colheita. Em sentido contrário pode ser formulada a seguinte questão: de que adianta a abundância da colheita se não há quem colha?

Detalhe do versículo a ser observado: Jesus diz: Rogai, ao Senhor da sea ra. Aqui duas coisas ficam claras. Primeiro, o “dono” da seara é o Senhor, título cristológico para Jesus. Segundo, os trabalhadores não são os donos da seara. A eles cabe a honra de serem obreiros na seara.

Pensamento semelhante pode ser encontrado em Paulo, quando diz na exortação aos coríntios: Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso traba lho não é vão (1Co 15.58).

O v. 3 é seco. Apresenta uma ordem (Ide!) e uma advertência (como cor deiros no meio de lobos). Essa imagem do mundo animal fala por si. No contexto pastoril da Palestina seria difícil alguém não compreender o que as palavras estão a dizer. Mais difícil é dizer hoje quem são os cordeiros e quem são os lobos.

V. 4-6 – O v. 4 apresenta as regras de viagem. Jesus desrecomenda a “ba gagem” normalmente utilizada pelos viajantes de então. Insta seus enviados a de

221 4º Domingo após Pentecostes

pender da dádiva de Deus. Ao mesmo tempo, há uma precaução relacionada com avareza. Consta que o Talmude “determinava que ‘ninguém’ podia subir ao monte do templo com cajado, sapatos, alforje ou dinheiro em sua bolsa” (CHAMPLIN, 2002, v. 2, p. 103). Na recomendação de Jesus, essa regra é invertida.

A recomendação de não saudar pessoas pelo caminho vai na contramão das cerimoniosas e demoradas saudações orientais. Por outro lado, indica a urgência da missão. Missão não se faz perdendo tempo por aí com distrações.

Enquanto no caminho as formalidades sociais podem ser dispensadas, ao se rem hospedados, elas se fazem necessárias (v. 5). Ao entrar numa casa onde há uma pessoa que acolhe a mensagem de Jesus, então esse espaço é abençoado (v. 6). Nes se versículo há evidências que a missão precisa ter a paz por princípio, meio e fim.

V. 7-8 – Ficar na casa, alimentar-se dos alimentos da casa, permanecer na casa (v. 7). Seja qual for o verbo, a questão central é a casa. O espaço físico e lugar de acolhimento são centrais na preparação da chegada de Jesus. O que vale para a casa vale também para a cidade (v. 8). Na recomendação de comer possi velmente haja alguma referência aos alimentos impuros para os judeus.

A expressão digno é o trabalhador do seu salário já rendeu comentários. Mateus 10.10 irá equiparar salário a alimento. Essa declaração de Jesus também é citada por Paulo (1Co 9.7,14 e 1Tm 5.18). É possível que tanto Jesus como Paulo estejam pensando em Deuteronômio 25.4.

V. 9 – Eis a tarefa: Curai os enfermos e anunciai o reino de Deus. Antes de mais nada, na preparação do ambiente onde Jesus irá passar se faz necessário o serviço, a diaconia. O exemplo precede as palavras. Aqui vale o ditado: “Pregue, se for preciso, use também palavras”. Os sinais confirmam os discursos. Sem diaconia, sem ação, sem cura, não há anúncio do reino.

V. 10-11 – Os dois últimos versículos orientam para as adversidades. Ainda que não haja acolhimento nem hospitalidade, ainda assim a cidade precisa saber que o reino de Deus está próximo. No sacudir a poeira fica o recado de que a ci dade perdeu uma grande oportunidade. Nessa advertência pública a “mensagem de misericórdia se transmuta em sentença condenatória” (KUNZ, 2016, p. 104).

3 Reflexões

Em tempos de pandemia podemos nos perguntar: como ser enviado hoje? Como enviar? Para onde? É claro que existem desafios missionários pelo mundo afora. Os sinais do Reino reclamam por presença em casas e cidades. No entanto, como chegar até as pessoas e lugares em contextos de distanciamento social e restrição da mobilidade?

Estariam as igrejas chamadas apenas “à casa de Israel“ ou ainda valem como horizonte “os confins da terra“? Possivelmente haja algo não suficiente mente esclarecido na compreensão do legado de Jesus quando a perspectiva mis sionária está além do que o próprio Jesus propõe: Curai os enfermos que nela houver e anunciai-lhes: A vós outros está próximo o reino de Deus.

Também a comunidade de Jesus, corpo de Cristo, deve estar atenta às mu danças que a pandemia e, com ela, a cultura digital trouxeram para nossas relações.

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4º Domingo após
Pentecostes

Por mais difíceis que sejam algumas mudanças, é preciso acolher o momento como oportunidade para pensar o seguimento a Jesus. Como tem sido destacado por es pecialistas, o mundo digital não apenas faz parte da cultura, mas ele é uma cultura. Essa cultura está modificando nossa linguagem, modelando a mentalidade, reformulando a hierarquia de valores e constituindo novos atores e atrizes.

A experiência da desterritorialização do espaço, da instantaneidade e ubi quidade da comunicação, conectados pela rede, faz do ciberespaço um espaço qualificado para a ação humana. A cultura digital veio pra ficar. É nesse cenário que precisamos aprender a aprender a lidar com essa realidade. Ela não é apenas uma ferramenta tecnológica, é e será o nosso mundo de vida.

Se no cerne da mensagem de salvação está a comunicação de Deus conos co por meio de Jesus, então precisamos descobrir como podemos comunicar essa mensagem da melhor maneira com os recursos digitais de que dispomos. Mais do que transmitir, precisamos aprender a compartilhar os sinais do Reino. Essa é uma tarefa que está por ser realizada. Já sabemos o que queremos e as ferramen tas que temos. Falta colocar a mão na massa, alcançar as pessoas.

No âmbito da IECLB tem havido um investimento significativo na discussão da missão, especialmente depois da elaboração do PAMI. No entanto, por alguma razão, ainda permanece um desafio enorme para as comunidades. Nesse sentido, missão não pode ser compreendida como algo que a comunidade faz, mas como o próprio ser da comunidade. Comunidade não faz missão, ela é missão. É missão por ser expressão viva da presença do reino de Deus. É nesse sentido que a comunidade de Jesus é desafiada a pensar: como ser expressão viva da presença do reino de Deus por meio da cultura digital?

4 A pregação

O texto da pregação é claro na tarefa a ser executada: ide (v. 3), permane cei (v. 7) e curai (v. 9). Em cada versículo há um imperativo inicial. Na verdade são muitos os imperativos presentes na perícope. Lucas não quer deixar dúvidas quanto à ordem dada por Jesus. Selecionar pessoas e enviá-las não é escolha ou capricho, é imperativo de Jesus. A outra face dos imperativos é a obediência. Outro aspecto é a metodologia presente no texto. Jesus escolhe, envia e orienta. Na orientação há todo um modo de proceder. Não levar bolsa nem alforje nem sandálias; não saudar ninguém pelo caminho; entrar nas casas e cidades; permanecer nelas; comer do que estiver sendo oferecido; curar e anunciar o reino de Deus. Esse roteiro abre o leque de possibilidades para diferentes comunidades. Convida a perguntar o que de fato é necessário para que o evangelho seja levado até as pessoas. Como devem proceder aquelas pessoas que se colocam nesse caminho? O que levar às pessoas?

Como ponto central desse “como” está o fato de que os enviados precedem Jesus. Jesus envia as duplas para que preparem a sua chegada. Preparar o terreno, eis a questão!

O texto também deixa margem para focar em versículos específicos. A pre gação pode se concentrar em palavras como: E lhes fez a seguinte advertência: A

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4º Domingo após Pentecostes

seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara. Também parece oportuna a outra parte da advertência: Ide! Eis que eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos Por fim, o desafio de nosso tempo. Desafiar a comunidade a pensar sua tarefa a partir das condições concretas que nos são dadas em função da pandemia, seja no aspecto da cultura digital, seja nas necessidades que as pessoas têm de consolo, orientação, ajuda e presença.

5 Subsídios litúrgicos

Saudação: Quão formosos são, sobre os montes, os pés do que anuncia as boas novas, que faz ouvir a paz, do que anuncia o bem, que faz ouvir a salvação, do que diz a Sião: O teu Deus reina! (Is 52.7)

Oração do dia: Obrigado, Senhor, que não desistes de enviar pessoas para den tro de nossas vidas! Auxilia-nos, amado Deus, que reconheçamos as pessoas en viadas e, assim, possamos desfrutar da tua companhia presente em nosso viver. Ajuda-nos a caminhar em tua obediência. Dá-nos teu Santo Espírito para que possamos curar enfermos e anunciar a proximidade de teu Reino. Por Jesus Cris to, nosso Senhor e Salvador, te pedimos. Amém

Oração geral da igreja: – interceder pelas pessoas que ouvem o chamado e acolhem ser enviadas; – interceder pelas pessoas trabalhadoras que tornam a seara abundante; – interceder pelas casas e cidades que acolhem as pessoas enviadas em nome de Jesus; – interceder pelas pessoas que curam e anunciam a presença do reino de Deus; – interceder pelas casas e cidades que rejeitam a presença de sinais do reino de Deus; – interceder pelas pessoas que acolhem, hospedam e partilham de sua comida e bebida; – interceder pela paz. Que cordeiros possam estar protegidos dos lobos. Mas mais importante, que tenhamos sabedoria para distinguir uns dos outros.

Bibliografia

BÍBLIA. Português. Tradução brasileira. 2010. Bíblia Sagrada/Antigo e Novo Testamentos. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2010.

CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado: versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2002. v. 2. KUNZ, Claiton. Lucas 10.1-11,16-20. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 2016. v. 40.

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4º Domingo após Pentecostes

PRÉDICA: COLOSSENSES 1.1-14

DEUTERONÔMIO 30.9-14 LUCAS 10.25-37

5º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Gratidão e intercessão: dois remos, uma canoa

1 Introdução

“Tri legal” o conjunto de três textos para este domingo, o 5º Domingo após Pentecostes. Apontam para a importância do cumprimento coerente dos manda mentos, da vivência prática da fé e do seguimento, em fé e ação, dos ensinamen tos das Sagradas Escrituras.

Próximo das últimas disposições e antes do processo sucessório Moisés-Josué, o deuteronomista adverte o povo para dê ouvidos à voz do Senhor e cum pra o proposto cravado nas duas placas de pedra (Dt 5.22). E o lembrete inclui dois aspectos: 1) o cumprimento dos mandamentos gera bênção, com destaque ao cuidado e à subsistência material (Dt 30.9) e espiritual; e 2) os mandamentos não são difíceis de entender e, por consequência, de cumprir e viver (Dt 30.11). Bem por isso podem ser obedecidos, guardados no coração e – o mais importante – cumpridos no dia a dia (Dt 30.10,14). Muito próximo do escopo do evangelho do domingo.

Quanto à parábola do bom samaritano, de tão palpável e concreta, às vezes parece até que nos esquecemos de que ela não aconteceu de fato. Palpável, con tudo, não tão palatável em sua mensagem: a vivência dos ensinamentos e da fé é o mais importante, superando ritos e teorias e, muitas vezes, praticada de fato por quem menos se imaginaria que o fizesse. As dobradinhas “fé e amor”, “conversão e ação” parecem ser fortemente evocadas.

Na carta, é motivo de gratidão a Deus quando a vida cristã não é “fogo de palha”, limitada àquele “primeiro amor”. Mas quando, anos depois, ouve-se falar que irmãos e irmãs, filhos e filhas na fé estão firmes, fortes e ativos, vivendo como o Senhor quer (Cl 1.10). Vamos rever juntos alguns aspectos do texto de Colossenses.

2 Exegese

Pelo fato de a perícope para pregação ser justamente a abertura e as pa lavras iniciais da carta, convém relembrar algumas questões introdutórias mais relevantes para nossa preparação, pano de fundo das informações dos dois versí culos iniciais.

Paulo, Timóteo e Epafras: “Três mosqueteiros” da missão evangélica em Colossos, que se localiza na atual Turquia.

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10 JUL 2022

Paulo orientou “o povo de Deus”, os santos e fiéis irmãos em Cristo que se encontram em Colossos (1.2) que, depois de terem lido a carta, a mandem e a compartilhem com os membros da igreja em Laodiceia, a fim de que os irmãos de lá também a leiam (4.16). Por toda a carta Paulo continua nomeando cristãos de “santos” (1.4,12,26; 3.12). Da mesma forma, chama os cristãos de “fiéis”. Em Cristo é que se dá a fidelidade das pessoas cristãs e não à parte dele. Verifica-se que “santidade” e “fidelidade” decorrem de Cristo pelo novo nascimento.

Timóteo, filho na fé, apóstolo do evangelho como Paulo, agora está posto como parceiro, apoiador, mediador, consultor e muito provavelmente como escritor de carta (4.18).

Fica evidente que Paulo escreveu (ditou?!) essa epístola após a visita de Epafras, “amado conservo”, “querido companheiro de trabalho”, “fiel ministro, servidor de Cristo” (1.7). Epafras também está próximo de Paulo e aproveita o ensejo da carta para mandar saudações à comunidade (4.12).

Pelo cruzamento de informações, Paulo escreve quando esteve preso em Roma pela primeira vez (cerca de 60-62 d.C.) – cotada também entre as cartas da prisão (junto com Filipenses, Efésios e Filemom).

Apesar dos elogios iniciais (1.4-6), as coisas em Colossos não estão tão tranquilas assim. Epafras deve ter contado a Paulo que alguns colossenses es tavam cometendo graves erros, pois pensavam ser melhores que os outros por observarem cuidadosamente certas ordenanças exteriores, se absterem de certos prazeres físicos e prestarem culto aos anjos. Práticas que os levavam a crer que entendiam os mistérios da fé (2.2.) melhor que os outros membros da igreja. Em sua carta, Paulo censura-os (1.23; 2.4-8,16-19; 3.2,5-6), relembrando que a re denção é obtida somente por meio de Cristo (1.13-20).

Almeida subdivide o capítulo 1 de Colossenses em cinco partes. Nosso texto está por ele fracionado assim: 1-2: Prefácio e saudação 3-8: Ação de graças 9-12: Paulo ora pelos colossenses 13-23: A excelência da pessoa e da obra de Cristo 24-29: A missão de Paulo. O mistério do evangelho

Já a NTLH coloca nossa perícope em dois subtítulos:

1-2: Saudação 3-14: Orações em favor dos colossenses

Seguimos nosso trabalho exegético compreendendo uma divisão que nos será útil quando do homilético.

1: Remetente e destinatário

2: Saudação

3-8: Orar agradecendo 9-14: Orar intercedendo

226 5º Domingo após Pentecostes

O agradecimento: Paulo agradecia a Deus continuamente após tomar co nhecimento da vida de fé e de ação das pessoas cristãs de Colossos. Paulo e Timóteo ouviram sobre como os irmãos e as irmãs colossenses viviam e se nu triam mutuamente. E de como não permaneceram estagnados na nova vivência em Cristo. Bem por isso informa-os de persistentemente orar agradecendo:

1. pela fé

2. pelo amor no Espírito

3. pela esperança

4. por terem ouvido e entendido

5. por terem sido instruídos

6. pelos frutos

Não há como deixar de agradecer a Deus diante de tão maravilhosa graça.

A intercessão: A persistência de Paulo em orar pelas comunidades e pes soas de sua relação, fruto da atuação em suas viagens missionárias, é de “tirar o chapéu”. No caso dos colossenses, ele ora para que Deus dê:

1. pleno conhecimento da vontade de Deus

2. vida cristã em plenitude e frutífera

3. fortalecimento e perseverança

4. o mesmo espírito de gratidão e intercessão que há em Paulo

Sob esse olhar, nossa prática de intercessão tomará um novo impulso. Remar em gratidão e em intercessão nos conduzirá a um destino certo e promissor, quer no ministério, quer na vida cristã.

3 Meditação

Idoneidade e vivência cristã: Deus faz as pessoas cristãs idôneas. Ou seja, Deus é que cria e capacita-nos plenamente para sermos participantes da “herança dos santos”. Quando cristãos creem na mensagem do evangelho, recebem poder para serem feitos filhos e filhas de Deus (Jo 1.12). Quando somos criados, o somos em verdadeira justiça e santidade (Ef 4.24). Desta maneira Deus nos fez (criou) novas pessoas, novas criaturas em Cristo (2Co 5.17), sem necessidade de quaisquer tutores ou curadores como era próprio da lei (Gl 4.1-2), somente pela fé que opera pelo amor (Gl 5.6; Rm 5.17).

Integralidade na oração: Talvez você diga que não tem tido muito tempo para orar. Outros dirão que não sabem como orar e outras ainda poderão dizer que estão orando no “piloto automático”. Olhar para o que Paulo escrevia sobre e o que ele fazia em relação à oração vai, com certeza, ampliar nossos conhecimentos e práticas cristãs. Gratidão e intercessão são dois remos da mesma canoa que faziam o apóstolo navegar (mesmo na prisão) na direção das comunidades cristãs, de seus líderes bem como de seus filhos e filhas na fé e das novas lideranças da igreja.

Gratidão: Ações de graça revelam nosso reconhecimento pelas misericór dias de nosso Deus em nossas vidas. Deus se agrada com nossas manifestações de

227 5º Domingo após Pentecostes

graças por meio de orações, quando nos voltamos para ele com alegria e conten tamento pelas suas suficientes providências em nossas vidas e na vida dos santos e santas, irmãos e irmãs de fé, e na caminhada. Paulo foi um cristão grato que habitualmente manifestava sua gratidão pela vida dos irmãos e das irmãs em suas orações. O apóstolo agradecia pelas vidas das pessoas santas que havia servido e com as quais havia convivido. Pela fé que tinham em Jesus Cristo, pelo amor que tinham uns pelos outros, pelo assumir da missão, pelo serviço ao próximo, pela esperança ativa da vida eterna. Quando escreve a Timóteo, ele testifica: Dou gra ças a Deus, a quem, desde os meus antepassados, sirvo com consciência pura, porque, sem cessar, me lembro de ti nas minhas orações, noite e dia (2Tm 1.3). Da mesma forma o faz com a comunidade de Colossos: Damos sempre graças a Deus [...] quando oramos por vós (v. 3); e de Filipos: Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vós [...] (Fp 1.3).

Intercessão: Paulo também nos ensina a orar intercedendo pela vida dos santos. Aprendemos a interceder principalmente pelas coisas invisíveis, aquelas que têm valor para a vida eterna, mas também pelas coisas do viver diário, da queles que servimos e nos são caros e caras na vida ou no ministério. O tipo de oração que vemos nos exemplos de Paulo deve produzir também em nós o desejo de orar pela vida de nossos irmãos e irmãs em Cristo: seu sustento, seu fortaleci mento e principalmente seu crescimento frutífero na vida e na missio Dei. Bem assim ele escreve aos colossenses: Por esta razão [...] não cessamos de orar por vós (v. 9). E aos filipenses: [...] fazendo sempre, com alegria, súplicas por todos vós [...] (Fp 1.3-11).

Ao final de sua carta, Paulo pede reciprocidade no proceder cristão. Roga pela oração daqueles que estão longe dele, por quem escreve da prisão: Perseve rai na oração, vigiando com ações de graça, suplicai, ao mesmo tempo, também por nós [...] (Cl 4.2-4).

Desafio à oração pessoal/individual: Agora chegou a nossa vez de orar por um amado irmão, por uma amada irmã. Escolha uma pessoa para você orar hoje, esta semana. Para ficar mais claro e ordenar seus pensamentos, é bom que você escreva a oração ou os tópicos a serem mencionados a Deus. Liste o que há a agradecer na vida dessa pessoa e enumere o que há para interceder por ela. Não somente peça, nem somente agradeça. Gratidão e intercessão de mãos dadas, juntas. De forma semelhante, em outro dia ou semana, escolha uma família, uma comunidade, um ex-pastor, uma ex-pastora, o ministro ou a ministra que atua na comunidade, uma liderança eclesiástica, social ou política. E assim sucessiva mente. Agradeça e interceda. Liste ambas as motivações.

Desafio à oração coletiva/comunitária: Nossa oração geral da igreja, ao final de cada culto, tem essa máxima muito bem estruturada: agradecer e inter ceder. Se ainda não existe um grupo de oração na comunidade, quem sabe é hora desse desafio. A estrutura é simples: a reunião de oração contemplará o momento de gratidão e o momento de intercessão. Pessoas, famílias, situações, instituições podem muito bem ser alvo dessa oração coletiva, comunitária.

Desafio a escrever carta: Colegas! Vocês também “sofrem” com o dilema de manter ou não contato virtual, por e-mail, WhatsApp, carta... com suas ex-ovelhas

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5º Domingo após Pentecostes

e ex-campos ministeriais? Matutam sobre quando ou até quando manter os laços, especialmente no que se refere a respeitar o espaço ministerial do novo ou da nova colega? A perícope sobre a qual estamos nos preparando para pregar parece querer nos remeter novamente a esse tema. Boa meditação! Boas decisões para nós!

4 Imagens para a prédica

Sugestão de tema e estrutura de pregação: O que fazer pelas pessoas que estão longe?

1. Escrever carta (v. 1-2)

2. Orar agradecendo (v. 3ss)

3. Orar intercedendo (v. 9ss)

Uma breve retrospectiva (sinopse) do filme “Brasil Central”, de 1998, que consagrou a atriz Fernanda Montenegro na época, interpretando uma mulher que escrevia cartas na praça para pessoas analfabetas, pode ser um interessante “gan cho” para o início da pregação.

A frase de Elías Canetti, mesmo sem identificar o contexto (e o ano) em foi dita, cala fundo e nos desafia a pensar, listar e tomar a decisão de escrever uma: “Ninguém é mais solitário do que aquele que nunca recebeu uma carta”.

Vivemos em um tempo de superficialidade comunicacional, quando cartas em sua estrutura redacional estão em último plano. Hoje se comunica mais por meio de abreviaturas e emogis. Apresentação, saudação, conteúdo e fechamento já não fazem parte do cotidiano comunicacional fraterno. Mais o utilizamos em comunicações formais e de ofícios.

Estou escrevendo este auxílio em fim de maio (2021). Fala-se na terceira variante (cepa) do coronavírus chegando e se vislumbra já a terceira onda de surto letal se aproximando. Viver esse prolongado tempo de distanciamento tem sido um desafio e uma dor para muitas pessoas. Comentar sobre o tempo da pandemia em que os contatos virtuais se ampliaram e cartas pelo visto continuaram em segundo plano nos contatos à distância. Espero que hoje a pandemia seja só uma história de um passado bem recente. Mas o desafio de lembrar por carta (virtual ou no papel) de alguma pessoa querida e distante fará bem a qualquer tempo e cir cunstância. Bem por isso a poesia de Roberto E. Zwetsch (Devocionário Semente de Esperança 2021, dia 16.02) é atual e pertinente, mesmo fora de uma pandemia. Pois o isolamento se repete em outras circunstâncias da vida.

Tem não tem Não tem abraço Não tem beijo Não tem encontro também. Mas tem afeto E tem olhos Tem a dignidade de (sobre)viver.

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5º Domingo após Pentecostes

...

Não tem saída Ou caminhada Não tem viagem programada. Mas tem carta por e-mail.

5 Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados: Certa vez, meus filhos e eu fizemos uma pequena brincadeira com minha esposa. Estávamos nós quatro em um pequeno bote numa água tranquila. E quando estávamos próximos da margem, saltamos na água e fomos nadando até a margem, deixando-a, pela primeira vez, a remar sozinha. Ela se pôs em um canto do bote e começou a remar sempre daquele lado. Quando ela percebeu estava andando em círculo e não na direção da margem. Até que por ela mesma descobriu que precisava fazer o movimento de dois remos. Remar uma vez à direita e outra vez à esquerda do bote. Daí sim ela logo chegou ao seu des tino. Nem só agradecer, nem só interceder. É o que nos dá direção no caminho da comunhão com Deus e com o próximo. Oremos, pedindo perdão a Deus quan do, desequilibrados, sem rumo e andando em círculo em torno de nós mesmos, esquecemos-nos de agradecer e interceder.

Leitura do AT: Cumprir e viver a vontade de Deus gera bênção e não é algo tão difícil assim. Esse é o lembrete que o texto do Antigo Testamento para este do mingo quer nos deixar. Ouçamos algumas palavras que Moisés deixou ao povo antes de entregar a liderança a Josué.

Leitura da carta do NT: “Fé-amor”; “conversão-ação”, “oraAÇÃO”, “gratidão -intercessão” são binômios fortemente evocados por Paulo na Carta aos Colos senses. É motivo de alegria quando, anos depois, ouve-se que irmãos e irmãs estão firmes, fortes e ativos, vivendo como o Senhor quer (Cl 1.10). Dá vontade de a gente agradecer a Deus e interceder para que o Senhor continue a operar neles e nelas.

Aclamação do evangelho: Superar o cumprimento de rituais e normas e ir mais além de apegar-se à presença regular na igreja são duas advertências fortes que o evangelho impõe ao nosso seguimento de Jesus. A tão conhecida parábola do bom samaritano é palpável e concreta. E nos deixa surpresos e surpresas quando, quem menos a gente espera, realmente pratica a vontade de Deus, em fé e ação.

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5º Domingo após Pentecostes

PRÉDICA: LUCAS 10.38-42

GÊNESIS 18.1-10a COLOSSENSES 1.15-28

6º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

1 Introdução

Marta e Maria: direito de ser

Neste domingo, a palavra bíblica convida-nos a entrar na casa de Marta. Talvez a casa fosse assim conhecida por Marta ser mais velha do que sua irmã Maria e seu irmão Lázaro. O texto de Lucas 10.38-42, que é exclusivo desse evangelho, enfatiza que a conversa é entre Jesus, Marta e Maria. Elas são perso nagens centrais também no Evangelho de João, na narrativa da ressurreição de Lázaro e da unção de Jesus.

A casa de Marta situa-se em Betânia. O povo vivia sob um governo dominado pelo imperialismo romano, que contava com o apoio dos saduceus. O contexto político-religioso era marcado pela opressão e exploração por parte dos fariseus e escribas. A presença de Jesus na casa de Marta e Maria indica o prota gonismo de Marta e Maria no ministério de Jesus, rompendo com processos de discriminação e preconceito de gênero da época e com barreiras de acesso públi co e social para aquelas pessoas. Assinala que é tempo de proclamação de vida digna, justa e de vivência da comunhão.

Nos volumes de Proclamar Libertação VI, XVII, 23, 29, 34, 40 tem-se acesso a outros estudos exegéticos sobre esse texto.

2 Exegese

A relação entre Jesus, Marta, Maria e Lázaro é uma relação de amizade e amor (Jo 11.5), tanto é que Jesus chora pela morte de seu amigo e se comove com a dor das irmãs (Jo 11.33-38). A casa dela é um espaço de refúgio para Jesus. Lá ele encontra pessoas queridas, alimento, diálogo, comunhão. Na amizade entre Jesus e as pessoas que o seguiam transparece que

O movimento de Jesus não é um movimento que busca somente mudar a ordem das coisas, que se preocupa e angustia com a difícil situação econômica e política. Não passam o tempo todo trabalhando, ensinado e fazendo curas e milagres; também usam o tempo para desenvolver relações de afeto e ternura (TAMEZ, 2004, p. 31).

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A promessa do reino de Deus incluía a “proclamação e práxis de uma or dem de valores radicalmente diferente e de uma mudança radical das condições sociais” (STEGEMANN, 2012, p. 442), além de uma esperança de um espaço -tempo em que as relações serão justas, amorosas e fartas. Lutero afirma que relações saudáveis e amorosas são necessidade e esperança do povo de Deus, e que “o pão nosso de cada dia” não é apenas a mistura de farinha e fermento, mas, em consonância com a passagem de Mateus 4.4, é “comida, bebida, vestes, calçado, casa, campos, gado, dinheiro, filhos e filhas piedosas, empregados e empregadas boas, bom governo, bom tempo, saúde, paz, honra, amizades leais, vizinhos fiéis” (LIVRO DE CONCÓRDIA, 1997, p. 374).

De acordo com João 11 e 12, Lázaro, Marta e Maria moravam em um vilarejo chamado Betânia, tornando, portanto, tal local o cenário da narrativa. Para uns, a forma grega de Betânia deriva do hebraico Bethany (Beth + any), significando “casa do oprimido”, “casa do pobre”. Segundo o dicionário hebrai co, any significa oprimido, humilhado, miserável, humilde, pobre. Para outros, Betânia deriva de Beth Ananyah, isto é, “casa de Ananias”. E Ananias significa “Javé compadeceu-se”, “Javé teve misericórdia”. Betânia, portanto, é a “casa de compaixão, da misericórdia de Deus” (TEIXEIRA; GASS, 2019, p. 7).

Jesus entrou na casa dela e foi recebido pelas irmãs, quando o costume de re cepcionar e acolher as pessoas visitantes era do dono da casa, logo, o homem. Nesse caso, a casa era das irmãs e já havia sido visitada outrora por Jesus, que não se detinha aos costumes patriarcais da sociedade judaica e greco-romana, além de demonstrar o reconhecimento e respeito que elas tinham enquanto seguidoras de Jesus.

A narrativa demonstra de forma explícita que Jesus ensinava as mulheres e pre zava por isso, inclusive incentivando que as mulheres assumissem funções diferentes daquelas tradicionais, não como uma obrigação, mas como uma autorrealização.

Alguns dos aspectos importantes do reino de Jesus: aprendizado, liber tação e amizade, são vivenciados nessa narrativa. O tom carinhoso de Jesus ao pronunciar “Marta, Marta”, seguido por um conselho, revela que ele a convida para aproveitar aquele momento ímpar. Jesus não condena Marta por fazer muitas coisas, nem diz que está errada, mas a convida para fazer aquilo que a liberte e a realize enquanto mulher discípula e amiga, que se apodere de cada espaço possí vel de aprendizado, comunhão e libertação que normalmente eram tomados das mulheres (TAMEZ, 2004, p. 29).

Jesus pronuncia uma fala de acolhimento e defesa a respeito das ações de Maria que, ainda que pareça simples, demonstra interesses reais e práticos da boa nova de Deus que incluem a possibilidade de modificar as estruturas sociais, políticas e religiosas da época. Em um período grego e judaico em que não se admitia uma mulher como discípula, “Jesus faz algo diferente dos outros mestres ao acolher Maria a seus pés, como discípula” (TAMEZ, 2004, p. 28).

Marta é retratada fazendo muitas coisas. O termo grego que aparece no texto é “diaconia”. Diaconia era a tarefa de servir à mesa, geralmente relegada a pessoas escravas e mulheres, dificilmente lembrada como um ministério. O termo “serviço” é uma das traduções para o substantivo grego diakonia. Esse substan tivo, em diversas narrativas pastorais e públicas, é traduzido como ministério,

232 6º Domingo após Pentecostes

mas é comum que em narrativas com protagonismo de mulheres, o substantivo sofra uma alteração na magnitude do seu significado, sendo diminuído ao serviço doméstico (Lc 4.38-39).

A descrição de Marta demonstra que ela era a líder da casa e muito organizada. Receber bem uma pessoa hóspede era essencial. Maria quer aprender e tinha atitudes de discípula, ainda que isso não fosse permitido e reconhecido para mulheres. A teóloga Elsa Tamez faz um paralelo entre a ação de Maria e a ação narrada em Atos 22.3, comparando com as atitudes de Paulo que também apren deu aos pés de seu mestre Gamaliel (TAMEZ, 2004, p. 28).

Jesus reage à fala de Marta. Ele a convida para descansar, sentar e movi mentar-se na busca por novas experiências, conhecimentos e oportunidades para colocar seus dons a serviço de Deus (TAMEZ, 2004, p. 28-29).

3 Meditação

O texto bíblico é breve e descreve uma ação comum: Jesus está em Betânia e decide visitar suas amigas Marta e Maria. Maria senta aos pés de Jesus e Marta está ocupada. Ao ser questionado por Marta sobre a atitude de Maria, ele apenas responde: Marta, Marta! Te preocupas e te angustias com muito. Mas uma só é necessária: E Maria a boa parte escolheu, a qual não será tirada dela

É importante destacar que Marta não condena a ação de Maria, mas ela precisa de ajuda para talvez também ter a chance de se sentar ao pés dele. Por muito tempo, esse texto bíblico criou e demarcou dois opostos na vida da pessoa cristã: há as pessoas que dedicam seu tempo ao serviço e as que dedicam seu tempo à palavra. Uma coisa ou outra: serviço e palavra, razão e emoção, superior e inferior, corpo e alma, e muitas outras palavras que foram definidas como opostas, mas nem sempre tem que ser assim.

No contexto de Marta e Maria, não era permitido que as mulheres estu dassem, falassem em público, tivessem posses ou fossem discípulas. Elas tinham poucas opções de “ser”. Atualmente, as mulheres conquistaram muitos espaços, direitos e deveres, podem ser quem e o que quiserem: médicas, astronautas, juí zas. Mas, na prática, ainda é nítido que nem todas as mulheres possuem meios para alcançar esses espaços. Muitas mulheres ainda tentam se encaixar em um “ser” por causa de uma culpa pessoal, e nós ainda criamos impedimentos para que elas possam ser quem são por meio de julgamentos, críticas e preconceitos. Marta é ativa e organizadora, mas, em João 11.21-28, torna-se exemplo de fé ao parar para ouvir a palavra de Jesus e anunciar sua confissão com fé e segu rança, pois ela ouvia e havia aprendido sobre a boa nova de Deus. Quando olhamos além desses quatro versículos, percebemos que nenhuma, nem Marta nem Maria, era somente Marta ou somente Maria. Jesus foi bom e misericordioso com todas as pessoas: conviveu com elas, ensinou e as ouviu, comungou com elas. E não poderia ser diferente com duas amigas tão próximas. Insisto em pensar que Jesus não estava repreendendo uma ou outra ou falando que as tarefas que ela exercia não eram importantes. Gosto de pensar que o que Jesus queria era aproveitar a oportunidade com suas amigas e queria que elas

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aproveitassem para aprender o máximo possível, dialogar sobre ideias, desenvol ver capacidades, sugerir, discipular e, principalmente, ser.

A ação de Jesus é libertadora. Ele convida Marta para que ela não perma neça fazendo aquilo que era esperado dela, que ela supere as críticas a respeito do que era correto ou não para uma mulher. O convite de Jesus, em tom amigável, quase que como um incentivo, convida Marta a quebrar os estereótipos da sociedade patriarcal e beneficiar-se da boa nova de Deus, que garante vida em abundância para todas as pessoas, independente de sua idade, etnia, gênero, clas se social. O convite de Jesus para nós é o mesmo: que possamos ser aquilo que nascemos para ser, que somos chamadas a ser.

4 Imagens para a prédica

A pandemia levou muitas mulheres à exaustão emocional, física e espiri tual. Foram elas que ficaram nos postos de cuidado em hospitais, lares de longa permanência e em casa. Muitas passaram a trabalhar de casa, trabalhar nos cuida dos da casa, acompanhar a educação das crianças e cuidar de crianças pequenas. Muitos homens também assumiram essa tarefa, mas nem todos. Os aprendizados que homens recebem ao longo da vida nos serviços de cuidado são bastante li mitados. Além disso, há uma carga social muito forte de considerar um homem que assume suas responsabilidades em casa como fracasso. Da mesma forma, ele pode tornar-se um herói por fazer somente o que é necessário para manter os cuidados com a casa e família.

Convide a comunidade a refletir como é ser Marta, como é ser Maria. Como é o sentimento quando você está exausta, quer acolher bem a visita e fica alheia de tudo, sozinha na preparação da comida e das outras funções? Como você se sente quando não percebe que a outra pessoa precisa de auxílio?

Concordamos que as mulheres têm direito ao estudo, ao aprendizado, a “ser” uma pessoa respeitada. Mas a realidade também alerta que há necessidades que não podem esperar. Imagino que Marta não estava só praticando diakonia com Jesus, mas com outras pessoas que dela dependiam.

Tanto o discipulado como a diakonia são importantes. Procure não criar competição entre as duas mulheres nem tente definir o que Jesus quis dizer. Deixe essa questão para discernimento comunitário, sem criar culpas ou apontar dedos. Ou talvez você possa perguntar: por que as três pessoas não trabalharam e aprenderam juntas? Como pessoas cristãs, é hora de aprender e servir com justiça e igualdade, testemunhando que cada pessoa tem o direito de ser aquilo para o que é chamada por Deus.

5 Subsídios litúrgicos

Sugestão de cantos: Diaconia (LCI 565); Canção do Cuidado (LCI 567).

Na oração de intercessão: – orar pela transformação de relacionamentos abusivos;

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6º Domingo após Pentecostes

– lembrar as pessoas sobrecarregadas, esgotadas física, emocional e espiritualmente; – lembrar as pessoas que querem aprender e estudar, mas são impedidas por ques tões financeiras ou por culturas/costumes; – orar por comida na mesa, saúde, consolo e paz entre as pessoas e a criação.

Bênção: Que a bênção de Deus, que é pai e mãe, esteja sobre ti, te acompanhando em tua caminhada. Que a bênção do Filho, Jesus Cristo, te encoraje a vencer o julgamento, a culpa e o medo de ser quem tu queres ser. Que a bênção do Espírito Santo te dê ânimo e te movimente a lutar pelo direito de ser quem tu és e ser respeitado e respeitada por isso. Assim te abençoe o Deus trino.

Bibliografia

LIVRO DE CONCÓRDIA. As Confissões da Igreja Evangélica Luterana. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1997.

STEGEMANN, Wolfgang. Jesus e seu tempo. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2012.

TAMEZ, Elsa. As mulheres no movimento de Jesus, o Cristo. São Leopoldo: Sinodal; Quito: CLAI, 2004.

TEIXEIRA, Sheila Aparecida Maia; GASS, Ildo Bohn. Betânia, casa do pobre. São Leopoldo: CEBI, 2019.

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6º Domingo após Pentecostes

7º DOMINGO APÓS PENTECOSTES 24 JUL 2022

PRÉDICA: GÊNESIS 18.20-32

LUCAS 11.1-13 COLOSSENSES 2.6-15(16-19)

O escandaloso amor de Deus

1 Introdução

O texto da prédica e as demais leituras foram objeto de auxílio homilético publicado na série Proclamar Libertação uma única vez, no volume 20, de 1995, para o 10º Domingo após Pentecostes. Naquela oportunidade, Carlos A. Dreher foi o autor do brilhante texto publicado, cuja leitura recomendamos.

O texto da prédica chega a ser muito estranho. Começa apresentando um Deus em dúvida a respeito de como agir em relação à destruição de Sodoma e Gomorra. Deus não sabe se deve ou não contar a Abraão que estava para destruir aquelas cidades por causa das suas injustiças. Estamos acostumados a nos referir ao Deus onisciente, que sabe tudo. Como é que ele é apresentado como alguém que não sabe bem o que tem de fazer?

Frente à dúvida, Deus se dispõe a conversar com Abraão. Ousada e atre vidamente, Abraão questiona Deus. Partindo do pressuposto de que nem todas as pessoas seriam injustas naquelas cidades, Abraão pergunta se Deus não estaria cometendo injustiça destruindo todas elas? A partir desse questionamento, estabelece-se um diálogo entre Abraão e Deus, no qual o Senhor chega ao ponto de afirmar que não as destruiria se nelas houvesse no mínimo dez pessoas justas. Partindo da pressuposição de que o diálogo de Abraão com Deus foi uma oração, estabelece-se a conexão com o texto de Lucas, no qual Jesus ensina sua oração a seus discípulos e os estimula a orar, contando uma parábola a respeito de uma pessoa que importuna um amigo a fim de obter dele um favor. Com ela, Jesus ensina seus discípulos que devem pedir, buscar e bater a fim de que Deus atenda suas súplicas, pois Deus ama o ser humano e responde às suas orações.

No texto de Colossenses, por sua vez, Paulo critica as pessoas cristãs da quela igreja que se deixaram influenciar por ensinamentos que apregoavam a prá tica de determinadas obras para a conquista da salvação. Contra isso, o apóstolo proclama a gratuidade do amor de Deus.

O foco deste auxílio, portanto, será ressaltar o amor escandaloso de Deus.

236
Gerson Correia de Lacerda

2 Exegese

Os pecados de Sodoma

O capítulo 18 do livro do Gênesis começa contando a história de que, certo dia, Abraão recebeu a visita de três homens. Ao longo da história da igreja, teólo gos têm usado esse texto como argumento em favor da doutrina da Trindade. Esse assunto não nos interessa aqui. Abraão foi hospitaleiro. Acolheu os visitantes e alimentou-os. Depois, caminhou com eles em direção a Sodoma.

Na caminhada, sem maiores explicações, um dos homens é apresentado como sendo o Senhor, que entra em confabulação com as outras pessoas. Ele não é onisciente. Tem uma dúvida. Pergunta se deve ou não contar a Abraão o seu propósito de destruir a cidade de Sodoma.

A dúvida divina tinha uma razão de ser. Deus havia se manifestado a Abraão (Gn 12), convidando-o a deixar a sua terra e a sua parentela e a partir para um lugar que iria lhe mostrar, se ele se dispusesse a sair sem saber para onde iria. Abraão teve fé e partiu, confiando na promessa divina de que ele se tornaria pai de uma grande nação.

Portanto, pela fé, Abraão estabeleceu uma parceria com Deus. Por causa dessa parceria, Deus estava em dúvida se deveria ou não contar a ele o seu projeto de destruição das duas cidades injustas.

Na atualidade, muita gente entende que o pecado de Sodoma era a prática da sodomia, ou seja, a prática do sexo entre os homens. Por conta disso, para mui tas igrejas e líderes religiosos, nenhum pecado é mais grave do que a sodomia. Por causa dela, Deus é intolerante e a castiga com furor.

No entanto, nosso texto não faz nenhuma referência a isso. Ao contrário, na confabulação de Deus aparecem dois termos hebraicos que fazem referência à justiça e ao juízo (Gn 18.19). Logo a seguir, Deus diz: O clamor contra Sodoma e Gomorra tem aumentado, e o seu pecado é gravíssimo (Gn 18.20).

A partir daí podemos ter uma compreensão diferente a respeito do pecado de Sodoma. Daquela cidade elevava-se um clamor contra as injustiças que chegava até o Senhor. Essa compreensão tem forte base bíblica, pois, ao longo de toda a Escritura, Deus se manifesta em favor da justiça.

No texto da prédica, Deus também diz: Descerei e verei se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse clamor que veio até mim (Gn 18.21). Isso indica que, sempre que há clamor contra a injustiça, Deus se dispõe a ouvir e, mais do que isso, a descer e a ver se, realmente, o clamor corresponde à realidade. Esse seria, pois, o pecado de Sodoma e Gomorra. Eram duas cidades onde a injustiça prevalecia.

Levando em conta o contexto do nosso texto, outro pecado poderia ser apontado contra as duas cidades. Antes do nosso texto (Gn 18.1-15), a narrativa bíblica destaca a hospitalidade de Abraão. Ele estava do lado de fora da sua ten da, no calor mais intenso do dia, quando aparecem três visitantes desconhecidos. Sem saber quem são, corre ao encontro deles, prostra-se e convida-os a ficarem com ele. Oferece-lhes água e alimento.

237 7º Domingo após Pentecostes

Depois do nosso texto (Gn 19.1-3), a narrativa bíblica volta a destacar a importância da hospitalidade. Dois anjos chegaram a Sodoma. Junto ao portão da cidade estava Ló. Seu procedimento foi semelhante ao de Abraão. Convidou-os a ficar em sua casa. Ofereceu-lhes um banquete.

Uma das virtudes valorizadas na Bíblia é a hospitalidade. Ela foi uma das virtudes recomendadas pelo apóstolo Paulo aos cristãos de Roma: Ajudem a su prir as necessidades dos santos. Pratiquem a hospitalidade (Rm 12.13). No en tanto, o que faltou a Sodoma foi exatamente a hospitalidade (Gn 19.4-9). Aliás, poder-se-ia dizer que Sodoma era uma cidade preconceituosa contra os imigrantes. É isso que se depreende do que disseram seus moradores contra Ló: Ele é estrangeiro, veio morar entre nós e pretende ser juiz em tudo? (Gn 19.9).

A justiça de Deus

Estabelecido que o pecado de Sodoma era a injustiça e a falta de hospita lidade, podemos, agora, examinar mais de perto o diálogo de Deus com Abraão. O primeiro ponto a destacar é que a iniciativa do diálogo é de Deus. Destaco o texto de Dreher:

Trata-se de uma confidência, de uma conversa particular entre o Senhor e o seu escolhido [...] E não deixa de ser bonita essa atitude de Deus: parar para conversar com Abraão. Alegra-me encontrar um Deus que tenha tempo para parar e bater um papinho. E, especialmente, um Deus disposto a dialogar sobre seus planos com as pessoas que nele confiam.

O segundo ponto é a pergunta que Abraão faz, logo de início, ao Senhor: Será que vais destruir o justo com o injusto?[...] Será que o juiz de toda a terra não faria justiça? (Gn 18.23). O diálogo apresenta um Deus condescendente. Ele não se coloca numa posição superior à de Abraão. Manifesta-se aqui aquilo que Calvino chamada de “acomodação”: Deus se comunica com o ser humano como se ser humano fosse.

A pergunta de Abraão diz respeito à justiça de Deus, um tema muito caro em toda a Escritura. Muito antes do profetismo clássico, Abraão seguia a linha do que Deus proclamaria por meio dos profetas: Deem uma volta pelas ruas de Jerusalém, olhem, investiguem, procurem nas suas praças para ver se acham alguém, se há uma só pessoa que pratica a justiça ou busque a verdade. Se acharem, eu perdoarei a cidade (Jr 5.1). Vocês pensam que eu tenho prazer na morte do ímpio? – diz o Senhor Deus. Não desejo eu muito mais que ele se converta dos seus caminhos e viva? (Ez 18.23).

O terceiro ponto é que, iniciado o diálogo, Abraão se atreve a ir reduzindo o número de pessoas justas por amor às quais Deus não destruiria a cidade. Começando com 50, Abraão chegou até dez e Deus lhe responde, terminando a conversa: Não a destruirei por amor às dez pessoas justas (Gn 18.32). Fica mui to claro que a justiça de Deus não é meramente vingativa. Ao contrário, é uma justiça amorosa, cuja finalidade não é a destruição, e sim a restauração e a salva

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7º Domingo após Pentecostes

ção. Assim é o escandaloso amor de Deus! Para se ter uma ideia melhor de quão escandaloso é esse amor, basta lembrar que chegou a provocar a raiva de Jonas, sedento por ver uma manifestação da justiça irada do Senhor sobre a cidade de Nínive (Jn 4.1-3).

3 Meditação

Neste momento (primeiro semestre de 2021), o Brasil e o mundo vivem um período histórico de extremismos. Há pouco tempo, os Estados Unidos, país que se orgulha de sua democracia, expuseram ao mundo o extremismo quan do um grande grupo de pessoas promoveu um ato que jamais alguém poderia imaginar que fosse acontecer algum dia: a invasão do Capitólio, sede do poder legislativo nacional.

Enquanto isso, no Brasil, já estamos vivendo o período das eleições para a presidência da república, que só estão programadas para o final de 2022. E grupos de direita e de esquerda estão se agredindo mutuamente nas redes sociais, enquanto uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) trabalha em Brasília para descobrir os culpados pela morte muito elevada de vítimas da Covid-19. Ao mesmo tempo, o chefe do poder executivo atua insistentemente para facilitar o armamento da população.

Entre os extremos, não existe diálogo. Não há busca de um consenso em benefício de todos. Os extremos alimentam o ódio mútuo. Cada extremo considera-se justo e correto, ao mesmo tempo em que deseja a aniquilação do outro. As manifestações de extremismo contaminam todas as relações sociais, inclusive nas igrejas e nas famílias.

Com isso, vemos líderes religiosos invocando o nome de Deus em favor de seus posicionamentos extremados. Eles se apresentam como defensores da justiça de Deus, desejando que a ira divina caia sobre seus opositores. Diante disso, nosso texto bíblico apresenta um Deus que ama escandalosamente. E esse escandaloso amor de Deus é revelado em vários pontos.

Deus tem dúvida

Deus havia prometido a Abraão que abençoaria todas as nações da terra por intermédio dele. Este é o projeto de Deus: abençoar. No entanto, ele estava prestes a destruir Sodoma e Gomorra. Daí brotou a dúvida. Num diálogo íntimo con sigo mesmo, Deus se pergunta se deve revelar sua maldição. Como é que Abraão reagiria se soubesse que o Deus da bênção também era o Deus da maldição?

Deus dialoga

Deus não toma nenhuma decisão final e irrevogável solitariamente. Ao contrário, em primeiro lugar, ele promete descer para ver se, realmente, o clamor de Sodoma contra a injustiça corresponde à verdade. E, em segundo lugar, Deus

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7º Domingo após Pentecostes

se dispõe a conversar com Abraão para ouvir a opinião dele a respeito de como deve proceder.

Sem dúvida alguma, a descida divina e sua abertura ao diálogo é uma ma nifestação de amor.

Deus é condescendente

No diálogo que se dispõe a travar com Abraão, Deus mostra-se extrema mente condescendente. Abraão, primeiro, questiona se Deus poderia destruir o justo com o injusto. Deus responde que, se encontrar somente 50 justos, irá pou par a cidade toda por amor aos justos. A seguir, Abraão dá início a uma conta gem regressiva a respeito do número de justos. Sem qualquer restrição, Deus vai concordando, seguidamente, que poupará toda a cidade por amor aos seus justos.

A contagem regressiva termina no número dez. Segundo Dreher, uma ex plicação plausível para isso é que, para o pensamento israelita, o menor grupo de pessoas é o de dez. Em todo caso, em toda a conversa fica patente a condescen dência do escandaloso amor de Deus.

Por amor ao justo, Deus salva os injustos

Não havendo, entretanto, nem dez justos em Sodoma, ela foi destruída jun to com Gomorra. Da destruição, escaparam somente três pessoas: Ló e suas duas filhas. Até sua mulher não escapou (Gn 19). Contudo, destruição de Sodoma e Gomorra não foi suficiente para eliminar a injustiça da face da terra. Ao contrário, espalhou-se cada vez mais por toda parte, a ponto de o salmista escrever: Do céu o Senhor olha para os filhos dos homens, para ver se há quem tenha entendimen to, se há quem busque a Deus. Todos se desviaram e juntamente se corromperam; não há quem faça o bem, não há um sequer (Sl 14.2-3).

Diante disso, Deus teria todo o direito de promover não só a destruição de Sodoma e de Gomorra, mas também a destruição da terra toda. No entanto, com a corrupção geral de toda a humanidade, chegando ao ponto de não existir um justo sequer, Deus, em sua condescendência e amor, desenvolveu o seu plano de salvação de toda a humanidade.

Sua decisão foi enviar seu próprio filho, fazendo recair sobre ele a culpa de todos. Assim, por amor ao justo, Deus salva os injustos, como declara o Evangelho de João: Deus amou tanto o mundo que entregou seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele (Jo 3.16). Assim é o escandaloso amor de Deus! É um amor que faz com que Deus se torne humano!

4 Imagens para a prédica

Para reforçar ainda mais o escândalo do amor de Deus, transcrevemos o seguinte texto:

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7º Domingo após Pentecostes

Jesus é, para nós cristãos, Deus feito homem [...] Entrou em nossa história pela porta dos fundos: filho de um carpinteiro e de uma camponesa que apareceu grá vida antes do casamento [...] Na parábola do Filho Pródigo, comparou Deus a um pai que abraça e beija o filho devasso antes que ele se explique, pois o amor é a essência divina [...] E ensinou-nos que, ao longo dos séculos, sempre haveremos de encontrá-lo na face daquele que “tem fome, sede, está nu, doente, oprimido” (Mt 25.35). Como afirma Leonardo Boff, “humano assim como ele foi, só podia ser Deus mesmo” (Frei Betto, www.domtototal.com.br).

5 Subsídio litúrgico

Considerando que o escandaloso amor de Deus se revela de forma plena na pessoa de Jesus de Nazaré, sugerimos a utilização da afirmação de fé preparada por Frei Betto nos seguintes termos:

Não creio no deus dos magistrados, nem no deus dos generais ou das orações patrióticas. Não creio no deus dos hinos fúnebres, nem no deus das salas de audiências ou dos prólogos das constituições ou dos epílogos dos discursos eloquentes. Não creio no deus da sorte dos ricos, nem no deus do medo dos opulentos ou da alegria dos que roubam o povo. Não creio no deus da paz mentirosa, nem no deus da justiça impopular ou das venerandas tradições nacionais. Não creio no deus dos sermões vazios, nem no deus das saudações protocolares ou dos matrimônios sem amor. Não creio no deus construído à imagem e semelhança dos poderosos, nem no deus inventado para sedativo das misérias e sofrimentos dos pobres. Não creio no deus que dorme nas paredes ou se esconde nos cofres das igrejas. Não creio no deus dos natais comerciais nem no deus das propagandas coloridas. Não creio no deus feito de mentiras, tão frágil como o barro, nem no deus da ordem estabelecida sobre a desordem consentida. O Deus da minha fé nasceu numa gruta. Era judeu. Foi perseguido por um rei e caminhava errante pela Palestina. Fazia-se acompa nhar por gente do povo. Dava pão aos que tinham fome, luz aos que viviam nas trevas, liberdades aos que jaziam acorrentados, paz aos que suplicavam por justi ça. O Deus da minha fé colocava o ser humano acima da lei e o amor no lugar das velhas tradições. Ele não tinha uma pedra onde recostar a cabeça e confundia-se com os pobres. O Deus da minha fé não é outro senão o filho de Maria e de José, Jesus de Nazaré. Todos os dias ele morre crucificado pelo nosso egoísmo. Todos os dias ele ressuscita pela força do nosso amor (Frei Betto, in: LIMA, 1987).

Bibliografia

BORTOLINI, José. Roteiros Homiléticos. São Paulo: Paulus, 2006. DREHER, Carlos A. 10. Domingo após Pentecostes: Gênesis 18.20-21(22),23-32. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1995. v. 20 LIMA, Cyso (Org.). Salmos latino-americanos. 1987.

SPEISER, E. A. Genesis. The Anchor Bible. New York: Doubleday & Company, 1962.

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7º Domingo após Pentecostes

DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Valemos quanto somos e não quanto temos

1 Introdução

A relação do ser humano com o dinheiro, bens ou riquezas sempre foi e continua sendo muito complicada. Infelizmente, existe um conceito muito difun dido, embora totalmente errôneo, de pensar que somos o que temos! Esse concei to é diariamente bombardeado para nossas mentes e tem uma grande influência sobre a forma como lidamos com as pessoas, as coisas, conosco mesmos e inclusive com Deus.

A Bíblia apresenta muitas exortações a esse respeito. Muito mais do ima ginamos. Na verdade, a Bíblia fala mais em dinheiro do que sobre céu e inferno e sobre evangelismo. Isso mostra que Deus está muito mais interessado nessa área de nossas vidas do que nós imaginamos e quer nos orientar a viver melhor também nesse assunto.

A passagem principal para essa mensagem apresenta um episódio no qual esse assunto da relação do ser humano com as riquezas foi o tema principal. O encontro de certa pessoa com Jesus nos ajuda a entender como geralmente as pessoas pensam sobre esse assunto e como Jesus quer que nós pensemos a partir da perspectiva do reino de Deus.

2 Exegese

Um dos ouvintes de Jesus estava tendo problemas com seu irmão acerca da divisão apropriada de uma herança. Não pede que Jesus decida entre os méritos de suas reivindicações: pede uma decisão a seu próprio favor. Parece que está agindo unilateralmente. Nada indica que o irmão tinha concordado em deixar Jesus decidir a causa. O homem simplesmente conclamou Jesus para intervir em prol dele.

Esse requerente não está pedindo arbitrariamente, mas ordenando ao juiz que execute seus desejos. Ele já decidiu o que quer e tenta usar Jesus. Uma coisa é dizer: “Rabi, meu irmão e eu estamos discutindo a respeito da nossa herança; o senhor pode ser nosso mediador?”. Ordenar a Jesus que implemente o seu plano é outra coisa. Não é de se admirar que a resposta de Jesus tenha um tom de aspereza.

Da forma como esse homem abordou Jesus, ele o está tomando por um ra bino típico, pois os rabinos costumeiramente pronunciavam decisões sobre pon tos disputados da lei. Jesus, no entanto, recusou-se a ter qualquer coisa a ver com

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31 JUL 2022 PRÉDICA: LUCAS 12.13-21 SALMO 43 COLOSSENSES 3.1-11
Claiton

isso. Sua forma de trato, Homem, está longe de ser cordial. Ele viera trazer as pessoas a Deus e não trazer bens materiais às pessoas. Jesus preocupa-se, então, com as atitudes das pessoas envolvidas e não com quem recebeu o quê. Jesus profere, então, a parábola de um fazendeiro muito rico que teve um verão excepcional, porque, por ocasião da ceifa, tivera uma colheita abundante. O fazendeiro arrazoava consigo mesmo sobre o que fazer com a colheita e onde guardá-la. O grego usa o termo dieogizeto, em tempo perfeito, voz média, ex pressando seus contínuos pensamentos acerca da sua perplexidade. Ele resolveu: Farei isto: Destruirei os meus celeiros, reconstrui-los-ei maiores e aí recolherei todo o meu produto e todos os meus bens. Teofilácio observa a respeito da ex pressão “meu produto e meus bens”: “Suas riquezas foram obtidas honestamente. Com isso, o exemplo se ajusta magnificamente à presente ocasião. O mundo não veria nada para condenar em sua atitude”.

Falando consigo mesmo e usando os pronomes eu e meu repetidamente, ele revela seu extremo egoísmo. Manson afirma que é verdade que um mínimo de bens materiais é necessário para a vida; mas não é verdade que a maior abun dância de bens significa maior abundância de vida. Na verdade, ele não pensava em Deus nem no próximo. Ignorava o resumo da lei de Deus de amar a Deus e ao próximo. Deus e o próximo não existiam para ele. Pensava somente em si mes mo. Também não se sentia seguro dependendo de Deus.

Então direi à minha alma: Tens em depósito muitos bens para muitos anos: descansa, come e bebe, e regala-te (v. 19). Note-se a diferença entre os tempos verbais: anapauou (segue descansando – presente), fage (come de uma vez – ao risto), pie (bebe tua medida – aoristo) e eufrainou (segue divertindo-te – presen te). Essas expressões mostram que esse homem deixou de agradecer a Deus pelas riquezas recebidas e que foi negligente no cuidado ao próximo necessitado. Sem Deus e sem o próximo, sua existência estava centrada nele mesmo. Só, sem rela ção com Deus, queria garantir seu futuro. Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? (v. 20). A pala vra afrōn significa “sem razão, insensato, estulto, que expressa uma disposição mental de não levar nada em conta nem considerar”. O verbo grego apaitousin (te será requerida) é um termo comumente usado para o retorno de um empréstimo. Sua alma lhe fora dada por empréstimo e agora o proprietário (Deus) quer que o empréstimo seja devolvido.

No começo da parábola, nota-se que seus bens eram uma dádiva. Agora, torna-se claro que a sua vida também não lhe pertencia. Todavia, o aguilhão das palavras usadas encontra-se, não no anúncio de que esse homem precisa morrer, mas na pergunta que se segue e que mostra claramente a verdadeira pobreza da sua vida. Ele está só e sem amigos em meio à sua riqueza.

A vida de um ser humano é uma coisa incerta, na melhor das hipóteses, e ninguém tem a certeza de que viverá o número de anos que gostaria. A coisa realmente tola era a confiança fácil daquele rico de que o futuro estava no contro le dele. Jesus completa esse ensino com um contraste entre armazenar tesouros para si mesmo e ser rico para com Deus. É este último aspecto que importa. As pessoas são tolas se aceitam uma condição inferior a essa.

243 8º Domingo após Pentecostes

Jesus não disse que o ser humano deveria se privar de riquezas terrenas, prazer e bem-estar, mas deve compreender que Deus é dono de sua grande cria ção, e que colocou o ser humano como despenseiro do mundo que criou. Como despenseiro, o ser humano deve periodicamente prestar contas a Deus. Quando deixa de fazê-lo e age como se fosse proprietário de seus bens, transgride a lei de Deus e condena-se como louco. Sempre que vive para si mesmo, ele está espiritualmente morto.

É preciso retornar à pergunta que gerou essa resposta em forma de parábo la. A voz da multidão clama por justiça na divisão da herança. A resposta de Jesus é em termos de que seja dada uma nova perspectiva ao problema propriamente dito. Ele não investiga quem está certo e quem está errado, e depois coloca o seu peso do lado da justiça (embora essa ação possa ser correta em muitas circunstân cias). Pelo contrário, ele introduz uma nova perspectiva, de fato, uma perspectiva teológica, mediante a qual considera o problema e depois deixa sem resposta o problema propriamente dito. Aqui o clamor egoísta pedindo justiça é entendido por Jesus como sintoma de uma enfermidade. Ele se recusa a respondê-lo, mas, pelo contrário, dedica-se à cura da doença que produzira o pedido. Agora o interlocutor e a multidão tinham de dar uma resposta.

3 Meditação

A relação do ser humano com as riquezas geralmente é bastante complicada. Em nenhum lugar nas Escrituras diz-se que os bens que Deus colocou em nossas mãos seja o problema, e sim que uma postura inadequada em relação aos mesmos é que deturpa a condição humana.

a) O valor que damos aos nossos bens

No texto em questão, a postura daquela pessoa que saiu do meio da multi dão praticamente ordenando a Jesus que avalize sua decisão em relação à herança mostra qual era o valor que dava às riquezas em detrimento do relacionamento com seu irmão.

Eclesiastes 5.10 revela que quem ama o dinheiro, jamais dele se farta; e quem ama a abundância nunca se farta da renda; também isto é vaidade. Na mesma direção, Paulo afirma que o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Algumas pessoas, por cobiçarem o dinheiro, desviaram-se da fé e se atormenta ram com muitos sofrimentos (1Tm 6.10).

Não raras vezes a postura de certas pessoas para com o seu “direito” em relação a heranças ou a certos recursos acaba desencadeando rupturas familiares e relacionamentos quebrados entre conhecidos ou amigos, que por vezes duram anos e anos. A pergunta que deveríamos nos fazer é: será que vale a pena valori zarmos mais as riquezas do que nossos familiares e amigos?

244 8º Domingo após Pentecostes

b) O conceito de Jesus sobre os bens

Jesus é categórico na sua afirmação: Cuidado! Fiquem de sobreaviso con tra todo tipo de ganância: a vida de um ser humano não consiste na quantidade dos seus bens (v. 15). Embora necessitemos de bens e de recursos para viver, eles não são a essência da vida humana, e muito menos a quantidade de riquezas determina a qualidade da nossa vida.

Na parábola, é interessante observar o contraste expressivo do monólogo do rico avarento, com o conceito divino sobre o assunto:

– O rico julgava-se muito precavido, previdente e prudente, no entanto foi julgado por Deus como um louco.

– O rico pensava ter em depósito muitos bens, para muitos anos, mas, de acordo com a sentença divina, “esta noite”, apenas, e os seus bens para que seriam?

– O rico arrogante julgava ter à sua disposição a sua alma, direi à minha alma, porém a expressão esta noite te pedirão trata de uma restituição, para a qual o rico não está preparado.

c)

O valor de nossa vida

Muitas vezes, fazemos grandes e belos planos para nossa vida e geral mente esses planos estão intimamente ligados à questão das riquezas. Mas não podemos nos esquecer de que Tiago, em sua epístola, dirige-se àquelas pessoas que dizem: Hoje ou amanhã iremos para a cidade tal, e lá passaremos um ano e negociaremos e teremos lucros. A esses ele afirma: Vós não sabeis o que suce derá amanhã. Que é a vossa vida? Sois apenas como neblina que aparece por instante e logo se dissipa (Tg 4.13-14). De forma alguma Tiago afirma que não deveríamos fazer planos. Pelo contrário, ele nos ensina que, ao fazermos planos, precisamos compreender que tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada daquilo que planejamos precisam ser o que Deus quer para nossas vidas: “Se o Senhor quiser...”.

A conclusão da parábola relatada por Lucas é igualmente contundente, quando Jesus faz uma pergunta muito direta: Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens preparado, para quem será? (Lc 12.20). De nada adianta juntarmos riquezas neste mundo, cumprirmos todos os nossos planos, negociarmos e termos lucros se, ao termos que prestar contas ao nosso Deus, não tivermos nada a oferecer. A conclusão de Jesus é: Assim é o que ente soura para si mesmo e não é rico para com Deus (v. 21).

4 Imagens para a prédica

Santo Agostinho, um dos mais célebres padres da Igreja Católica latina, escreveu:

A pobreza é o fardo de alguns e a riqueza é o fardo de outros e, talvez, o maior. Fardos que podem pesar-lhes para a perdição. Ajuda teu próximo a levar seu fardo

245
8º Domingo após Pentecostes

de pobreza e deixa que ele te ajude a levares teu fardo de riqueza. Aliviarás tua carga aliviando a dele.

Conta-se a história de um rei que tinha tudo, menos felicidade. Além des sa, nada mais lhe faltava. Seu país estava em paz. E, no entanto, ele não era feliz. Quando todas as possíveis medidas falharam, seus amigos resolveram experimentar o conselho de um sábio. Esse sugeriu que o rei usasse uma camisa do homem mais feliz do reino. Pouco tempo depois, o homem foi encontrado. Contudo, o problema permaneceu sem solução, pois o homem não possuía uma camisa sequer.

O contentamento e a paz de Paulo não vinham de coisas que ele possuía. Nem se originavam da liberdade, pois ele estava na prisão quando escreveu a respeito de sua alegria e paz, que não vinham de fora, mas de dentro. Ele possuía a bênção da salvação por Jesus Cristo, “a paz de Deus, que excede todo o entendi mento”. Seus pensamentos eram sobre coisas verdadeiras, honestas, justas, puras, amáveis e de boa fama (Otis L. Gilliam, apud ALMEIDA, 1987, ilustração 230).

Bibliografia

ALMEIDA, Natanael de Barros. Coletânea de ilustrações. São Paulo: Vida Nova, 1987. 162 p. KUNZ, Claiton André. As parábolas de Jesus e seu ensino sobre o Reino de Deus. Curitiba: ADSantos, 2014.

ROBERTSON, Archibald Thomas. Imágenes verbales en el Nuevo Testamento. Barcelona: CLIE, 1989.

9º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

PRÉDICA: HEBREUS 11.1-3,8-16 GÊNESIS 15.1-6

LUCAS 12.32-40

Pesquise: Proclamar Libertação, v. 20, p. 229ss www.luteranos.com.br (busca por Hebreus 11.1-3,8-16)

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8º Domingo após Pentecostes

PRÉDICA: LUCAS 12.49-56

SALMO 82 HEBREUS 11.29 – 12.2

10º DOMINGO APÓS

PENTECOSTES (DIA DOS PAIS)

14 AGO 2022

1 Introdução

O texto proposto para a pregação já foi trabalhado anteriormente e conta com valiosas contribuições em Proclamar Libertação, nos volumes XVII, 23, 29, 34 e 40.

Escrevo este auxílio no ano de 2021, quando o que mais ouvimos e senti mos é sobre a assim chamada “polarização” política, ideológica, enfim, cada qual com suas ideias, com suas certezas. No ano de 2022, quando este auxílio homilé tico estiver sendo usado, estaremos em pleno ano eleitoral. Não é difícil antever que a polarização estará mais acirrada. Diálogo, paz, entendimento, elementos tão caros para nós, estão longe de ser uma realidade. Em um contexto assim, cai em nosso colo justamente um texto como Lucas 12.49-56: Jesus vem trazer divi são [...], tudo isso aliado ao fato de estarmos em pleno Dia dos Pais.

As demais leituras indicadas, Salmo 82 e Hebreus 11.29 – 12.2, permitem -nos dar um enfoque no texto da pregação: a fé em Cristo nos orienta a buscar a justiça de Deus e essa conclama à ação em prol dos desafortunados. Rogamos a Deus que sopre seu Santo Espírito sobre cada um e cada uma de nós que se propõe a estudar e preparar este texto. Rogamos por entendimento e coragem no falar, pregar a palavra de Deus. Amém.

2 Exegese

O colega P. Nilo Christmann, no PL 29, p. 235, já nos dá a indicativa de que não há grandes divergências entre as várias traduções disponíveis. Assim nos propomos a tecer algumas considerações exegéticas acerca do texto proposto. O texto de Lucas 12.49-56 encontra um paralelo em Mateus 10.34-36, em que Jesus fala que veio trazer a espada ao invés da paz. Lucas traz na redação da períco pe em análise, especialmente nos dois primeiros versículos, conforme Rengstorf (1969, p. 166), elementos apocalípticos, cheios de simbologia.

Lucas 12.49-50: Essa parte, possivelmente acrescentado pelo evangelista a partir da Fonte L, advinda da tradição oral à qual Lucas teve acesso, traz duas referências importantes. Uma, faz alusão ao fogo e, sobre esse aspecto um comentarista diz que “Lucas queria mostrar que esse ministério de Jesus provocaria as chamas do conflito, que compeliriam os homens a se alinharem com aliados

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A paz de Deus! Estamos dispostos a pagar o preço?

ou adversários do Messias” (CHAMPLIN, 1985, p. 133). O comentário seguinte vai na mesma direção:

Não o fogo abrasador do zelo pela casa de Deus (Jo 2.17; Sl 9.10) ou pelo seu Rei no (cf. Eclo 48.1), nem o fogo consumidor do juízo punitivo (Lc 3.9,16), nem ain da o da efusão do Espírito em Pentecostes (At 2.3), mas, como se depreende dos v. 51-53, o fogo da divisão e do ódio (LANCELLOTTI; BOCCALI, 1979, p. 155).

Da mesma forma, em 1 Pedro 4.12, o fogo nos é trazido num contexto de provações e perseguições à comunidade cristã.

A outra parte nos remete ao batismo. Aqui, Jesus usa o batismo e lhe dá um sentido mais amplo. O batismo recebido de João Batista o compromete à vontade de Deus. Esse batismo traz consequências tanto para Jesus (que já an tevê o sofrimento que o aguarda e por isso fala da aflição da espera) como para seus seguidores, haja vista o termo batismo já ter sido usado nessa conotação em Marcos 10.38-39.

Lucas 12.51-53: No v. 51, temos um paralelo correspondente em Mateus 10.34. Nos v. 52 e 53, o evangelista Lucas aprofunda um pouco mais a questão da divisão das famílias, atribuindo as proporções três contra dois e dois contra três. Ruptura ao invés da paz, isto é o que Jesus vem trazer. A tomada de posição, a favor ou contra o Messias, trará justamente essa segregação no seio familiar. E o Messias que veio ao mundo para restaurar a paz? Como vamos compreender?

A paz prometida não era, segundo a mente divina, um dom gratuito, mas um bem que deveria ser merecido com a adesão, necessariamente dolorosa, ao Messias crucificado. E essa adesão devia implicar a ruptura com o mundo hostil ao plano de Deus, ruptura da qual não seriam poupados nem os lares (LANCELLOTTI; BOCCALI, 1979, p. 155).

Lucas 12.54-56: A interpretação dos sinais climáticos já aparece em Ma teus 16.1-4, só que dessa vez não é um pedido do povo, mas uma constatação que Jesus faz. O povo sabe discernir os sinais climáticos e sabe concluir se haverá chuva ou tempo seco. Aqui a multidão reunida ouve Jesus chamar as pessoas de hipócritas. Sim, sabem observar as condições climáticas e prever o tempo, mas no tocante ao reino de Deus não sabem prestar atenção às profecias que indicavam a vinda do Messias. Aqui trago, inclusive, à memória que o próprio João Batista pede a seus seguidores perguntarem a Jesus se ele era de fato o Messias aguardado ou se precisavam esperar por outro, conforme Lucas 7.18-23 e Mateus 11.2-6. Reconhecer em Jesus Cristo o Messias é aceitar que a partir dele e de seu ensi namento e atuação, o reino de Deus se concretiza. A fé em Jesus como o Messias enviado também dará suporte às comunidades cristãs em tempos de adversidade e perseguição.

248 10º Domingo após Pentecostes

3 Meditação

Dia dos Pais! Dia de homenagear! Dia de dar presentes! Dia de abraçar ou, então, lembrar com saudades dessa pessoa tão importante na nossa vida. Dia dos Pais! Dia de também lembrar as vezes em que discutimos com nossos pais. Opiniões divergentes, conflito de gerações. Chamadas de atenção e admoestações de um lado; ouvidos surdos, passos pesados, portas batidas de outro lado. Resumindo... Dia dos Pais pode até ser revestido de glamour, mas a rea lidade é que nem sempre tudo transcorre às mil maravilhas na relação entre pais e filhos. Há opiniões divergentes, pontos de vista diferentes e, não raro, desen tendimentos e brigas entre filhos e pais. Jesus diz que não veio trazer paz, e sim divisão. Mas será que é ali que está o cerne do nosso texto? Como distinguir os desentendimentos “normais” dos desentendimentos advindos de uma fé compro metida com o Evangelho de Cristo?

Dia dos Pais também nos lembra de que a figura paterna é, sim, referencial para a nossa vida. É orientação. Jesus diz que sabemos nos orientar pelos sinais do tempo (clima), mas não sabemos nos orientar pelos sinais dos tempos (presen ça do reino de Deus).

O quarto mandamento nos lembra de que devemos honrar pai e mãe para que possamos ir bem e que se prolonguem nossos dias na terra. Jesus alerta que, por causa dele, haverá cisão: pais contra filhos e filhos contra pais.

Vivemos ou estamos vivendo essas tensões no âmbito familiar? O que as geram? Como reagimos? Estamos vivendo essas tensões no âmbito da comunida de? O que as geram? Como reagimos? Estamos vivendo essas tensões no âmbito da sociedade? O que as geram? Como reagimos?

A pergunta que nos fazemos é: o que fazemos com nossas convicções? Sustentamo-las ou, para que haja paz, abrimos mão? Que preço estamos dispostos a pagar para manter nossas convicções?

A Martim Lutero é atribuída a frase: “A paz, se possível, mas a verdade a qualquer preço”. Para isso aponta a nossa temática. A paz não é opção quando a verdade do evangelho está sendo obstruída. A paz verdadeira é consequência do reinado do Messias prometido por Deus e concretizado em Cristo Jesus.

O batismo com água nos tira da nossa paz/comodismo e nos conclama a denunciar e agir, mesmo que por causa disso sobrevenha em nossa vida o batismo do sofrimento. Há momentos em que a paz deve ser buscada, tanto no âmbito familiar, da comunidade, da sociedade. Há momentos em que o diálogo e bom entendimento devem ter primazia. Porém, quando a justiça e o direito à vida não são respeitados, a paz não é opção. Nessa hora não podemos, não devemos abrir mão das nossas convicções da fé em Cristo. Devemos falar, denunciar, bater o pé, agir. Há valores que são inegociáveis. Acima de tudo, temos um “Pai nosso que está no céu”, cuja vontade deve prevalecer.

249 10º Domingo após Pentecostes

4 Imagens para a prédica

Uma pequena história talvez possa nos auxiliar no sentido de fazer per ceber que, enquanto pessoas cristãs, nossa tomada de posição é fundamental. A história, claro, pode ser adaptada a cada realidade.

O muro

Havia um grande muro separando dois grupos. De um lado, estavam Deus, os anjos e os servos leais de Deus. Do outro lado, estavam Satanás, seus demô nios e todos os humanos que não servem a Deus.

Em cima do muro havia um jovem indeciso, que havia sido criado num lar cristão, mas que agora estava em dúvida se continuaria servindo a Deus ou se deveria aproveitar um pouco os prazeres do mundo.

Ele observou que o grupo do lado de Deus chamava e gritava sem parar para ele:

– Ei, desce do muro agora… Vem pra cá!

Já o grupo de Satanás não gritava nem dizia nada. Essa situação continuou por um tempo, até que o jovem indeciso resolveu perguntar a Satanás: – O grupo do lado de Deus fica o tempo todo me chamando para descer e ficar do lado deles, mas você e os outros deste lado, não. Por quê?

– É porque o muro é meu, respondeu-lhe Satanás.

5 Subsídios litúrgicos

Penso que seria interessante ter um momento de rememoração do ato batis mal mediante unção com óleo. O batismo nos compromete com o reino de Deus e esse comprometimento traz consequências. Importante é lembrar a promessa de Jesus: Eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos Tomo também a liberdade de sugerir alguns hinos: Se eu tiver Jesus ao lado (LCI 632); Jesus Cristo é Rei e Senhor (LCI 519); Quem quer cantar do amor (LCI 588).

Bibliografia

CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento interpretado: versículo por versículo. São Paulo: Milenium, 1985. v. II.

LANCELLOTTI, Angelo; BOCCALI, Giovanni. O Evangelho da Libertação se gundo Lucas. Petrópolis: Vozes, 1979. v. IV.

RENGSTORF, Karl Heinrich. Das Evangelium nach Lukas. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1969.

250 10º Domingo após Pentecostes

PRÉDICA: ISAÍAS 58.9b-14

LUCAS 13.10-17 HEBREUS 12.18-29

11º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

1 Introdução

Como Igreja de Jesus Cristo, vivemos sempre na tensão entre duas verdades bíblicas: o justo vive pela fé (Hc 2.4; Rm 1.17) e a fé sem obras é morta (Tg 2.17). Essas duas verdades formam uma unidade com dimensões distintas. Mas elas ja mais podem ser entendidas como opostas entre si. Infelizmente, o povo de Deus, desde o Antigo Testamento, teve dificuldades em relacionar a salvação por graça e fé e as obras da fé como consequência da graça salvadora de Deus. A perícope de Isaías 58.9b-14, prevista para este 11º Domingo após Pentecostes, trata dessa tensão, a qual precisa ser abordada constantemente em nossas comunidades. Não é raro ouvirmos pessoas em nosso meio dizendo que o que elas fazem em benefício da comunidade e do próximo irá lhes trazer salvação, demonstrando ter, de forma equivocada, uma visão de que obras salvam. O mesmo vale para outras pessoas que procuram seguir à risca várias formas de espiritualidade e de práticas religiosas, totalmente desvinculadas do serviço e do amor às pessoas. Elas têm o mesmo discurso, afirmando que alcançaram o favor de Deus por causa de suas orações, de sua prática de leitura bíblica, sua participação na vida da comunidade, ou até mesmo por terem sido batizadas e participado de inúmeros ritos religiosos.

A perícope da pregação deste domingo nos ajuda a distinguir essa tensão, que, na verdade, é uma distinção entre a verdadeira e a falsa religião. O texto reforça a importância da distinção clara entre o mandamento do amor a Deus e o mandamento do amor ao próximo, não como duas grandezas distintas, mas como duas ênfases indissolúveis do mesmo “grande mandamento” (Mt 22.34-40; 1Jo). Eis, portanto, um texto excelente e fascinante para ser pregado neste período do ano litúrgico (tempo comum), no qual refletimos, como Igreja de Jesus Cristo, a respeito da nossa tarefa neste mundo, a partir da história da salvação anunciada nos demais domingos do calendário litúrgico. O que Deus fez por nós em Jesus Cristo deve refletir naquilo que a igreja faz em favor das pessoas neste mundo. Como leituras bíblicas estão previstas duas perícopes do Novo Testamento. A primeira é de Lucas 13.10-17, que trata da cura de uma mulher que há 18 anos estava possessa de um espírito de enfermidade, o qual a fazia andar encurvada. Essa mulher vai à sinagoga na qual Jesus estava ensinando (Mt 9.35). Ao vê-la, Jesus a chama para perto de si e a cura de sua enfermidade e a abençoa, impondo-lhe suas mãos. O problema é que era sábado. Isso causa indignação ao chefe da sinagoga, que exorta as pessoas a virem durante os outros seis dias para receber a

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21 AGO 2022
A essência e a coerência da fé

cura, mas não no dia de sábado, considerado dia santo e de descanso pelos judeus. Jesus, porém, não poupa palavras. Ele os chama de hipócritas, questionando se eles mesmos não desprendiam seus animais do curral para dar-lhes de comer e beber no sábado. Da mesma forma, Jesus indaga qual seria a razão para não libertar pessoas enfermas do cativeiro, que as escravizava também no sábado, considerando ser um dia de descanso. Jesus, inclusive, insere essa mulher na promessa de Deus ao povo judeu, chamando-a de “filha de Abraão”.

A segunda leitura nos leva para a Carta aos Hebreus. A perícope de He breus 12.18-29 apresenta um contraste entre o monte Sinai e o monte Sião. As referências a esses dois montes estão relacionadas à antiga e à nova aliança. No monte Sinai, Deus deu a Lei ao seu povo. Devemos lembrar que na Lei encontra mos mandamentos relacionados ao sábado (terceiro mandamento) e mandamen tos relacionados ao amor ao próximo. A nova aliança, contudo, não despreza nem rejeita a antiga aliança. Pelo contrário, os mandamentos continuam valendo. Mas eles são cumpridos e ressignificados por Jesus Cristo, que é o mediador da nova aliança, cujo sangue trouxe o perdão dos pecados e a salvação. Devemos lembrar aqui que o terceiro bloco literário de Isaías (Is 56 – 66), no qual a nossa perícope está inserida, anuncia a nova Jerusalém e a felicidade eterna de Sião, uma nova realidade para a qual o Senhor está conduzindo o seu povo após o tempo de cati veiro na Babilônia.

A relação desses dois textos com a perícope da pregação está no fato de eles apontarem para a verdadeira adoração a Deus. Jesus, ao curar a mulher enferma em dia de sábado, cumpre ele mesmo com a exortação de Deus em Isaías 58. Jesus desfez as ataduras da servidão e deixou livre a mulher oprimida. Jesus tirou da mulher o jugo e tudo o que a ameaçava. Ao curar a mulher no sábado, Jesus não estava preocupado com seus próprios interesses, mas teve misericórdia e auxiliou a mulher em suas necessidades, bem como lhe trouxe a dignidade de per tencer à família da fé. Considerando a leitura bíblica de Hebreus, a relação com a perícope prevista para a pregação está no fato de que a nova aliança é marcada pela fé em Jesus Cristo, que é o seu mediador. Isto é, a salvação não acontece por cumprimentos de ritos e práticas religiosas, mas unicamente pelo sangue de Jesus Cristo derramado no Calvário e aceita pela fé.

Em Proclamar Libertação não encontramos outra abordagem específica sobre a perícope delimitada em Isaías 58.9b-14, mas temos outras seis aborda gens que tratam do capítulo 58 a partir de diferentes delimitações. Elas podem inspirar seu preparo e sua pregação: a) Isaías 58.1-9a: PL XV (1989), p. 147-151; b) Isaías 58.1-12: PL IX (1983), p. 50-56; PL 33 (2008), p. 125-131; PL 39 (2014), p. 97-101; c) Isaías 58.5-9a: PL 24 (1998), p. 88-94; d) Isaías 58.7-12: PL XII (1986), p. 300-306. Vale a pena conferir.

2 Análise exegética

A perícope a ser pregada está inserida no contexto do terceiro bloco literário do livro profético de Isaías, também conhecido como Trito-Isaías (Is 56 – 66). Embora essa parte literária do livro seja difícil de estruturar e, provavelmente,

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11º Domingo após Pentecostes

remonte a vários autores, fica claro que seus temas pressupõem o fim do exílio ba bilônico e o retorno dos exilados para Jerusalém. A mensagem central desse bloco é que Jerusalém será glorificada. Os dispersos retornarão para a Terra Prometida e as nações juntar-se-ão, no futuro, a Israel. Um novo céu e uma nova terra são anunciados à comunidade exilada, que está “de malas prontas” para voltar para casa. Antes de aprofundarmos a perícope prevista para a pregação, faz-se ne cessário olhar para o seu papel literário e teológico dentro do terceiro bloco de Isaías. Esse bloco pode ser, provavelmente, estruturado de forma concêntrica, como segue:

A) 56.1-8: Comunidade cultual de Israel: inclusão dos gentios e incircuncisos

B) 56.9 – 58.14: Acusações e exortações: falsa religiosidade e crítica social C) 59.1-21: Lamento do povo

D) 60.1 – 62.12: Anúncio de salvação para Jerusalém

C1) 63.1 – 64.11: Lamento do povo

B1) 65.1 – 66.9: Promessas e exortações: idolatria

A1) 66.10-24: Comunidade cultual de Israel: a glória do Senhor entre as nações

Alguns aspectos dessa estrutura são dignos de menção: a) É interessante perceber que o anúncio de salvação para Jerusalém, já destacado no segundo bloco do livro (Is 40 – 55), permanece o centro teológico também desse tercei ro bloco. b) Outro fator fundamental a ser mencionado é que a moldura desse bloco aponta para a realidade das nações sendo inseridas na comunidade cultual de Israel e participando da glória do Senhor. Esse é o aspecto missionário mais impactante no Antigo Testamento. Ele é o cumprimento claro e evidente das pro messas feitas por Deus a Abraão e Sara (Gn 12). c) Antes e depois do anúncio de salvação para Jerusalém, encontramos o que pode ser classificado como um lamento do profeta e uma confissão coletiva de pecado. d) Não por último, chama a atenção, nas exortações, os dois temas fundamentais, retomados do profetismo bíblico. Num primeiro momento, encontramos a crítica social e a crítica religiosa, exatamente na parte onde a nossa perícope se encontra. Por fim, encontramos o tema da idolatria e do culto aos falsos deuses sendo mencionados. Esses dois te mas resumem de forma bem concreta o que caracterizou o pecado de Israel, que o levou aos exílios. O mesmo acontece com a exortação para que injustiças contra pessoas desfavorecidas e a prática da idolatria não voltem a existir dentro do povo de Judá ao retornar à Jerusalém e se tornar lá uma comunidade de culto, a fim de anunciar entre as nações a glória do Senhor. Desta forma, fica claro que o discurso do Senhor sobre o jejum está total mente vinculado à exortação profética pré-exílica de Amós, por exemplo, a qual questionou a falsa religiosidade e conclamou o povo de Israel a praticar a justiça em favor das pessoas desfavorecidas (Am 5). O assim chamado Trito-Isaías reto ma no contexto pós-exílico as exortações proféticas pré-exílicas, tanto da crítica social quanto contra a idolatria, para que os dois maiores problemas do povo de Israel não sejam recorrentes na nova Jerusalém, anunciada com tanta vivacidade nesse bloco.

253 11º Domingo após Pentecostes

O capítulo 58, por sua vez, trata do jejum. Ele é a resposta do Senhor à pergunta do povo repetida por ele no v. 3: Por que nós jejuamos, se tu não atentas para isto?. O povo está decepcionado com o Senhor e se lamenta, pois parece ter jejuado em vão, embora tenha buscado o Senhor. Mas o Senhor não dá atenção ao povo nem leva em conta o jejum praticado por ele. O Senhor, então, deixa claro por que não considerou válido o jejum praticado. Isso deve ser anunciado ao som da trombeta (v. 1), em alta voz, para que o povo saiba que o Senhor é que está decepcionado com o seu povo. O Senhor acusa e condena o seu povo, pois esse o buscava todos os dias apenas como atitude externa, mas sem o coração. Era uma fé de fachada, ou seja, só de aparências. Era uma fé desvinculada da prática da justiça. O Senhor apresenta o seu diagnóstico em relação ao jejum praticado. Ele estava sendo feito por causa dos próprios interesses (v. 3) e por contendas e rixas entre as pessoas (v. 4). O que havia para expressar a tristeza, a penitência e a humilhação diante de Deus se tornou em uma prática arrogante e individualista. Por isso o Senhor faz essa séria advertência. O Senhor não é contra o jejum nem aboliu aqui a sua prática. Pelo contrário, o jejum é ressignificado, não como uma prática intimista e individualista, mas como prática da fé, a qual se manifesta na justiça da fé em favor de pessoas desfavorecidas. Aquilo de que se abre mão no jejum deve ser partilhado com os que não têm para saciar sua fome (v. 7). Ao invés de afligir a alma, privando-se de saciar a si mesmo, o povo deveria repartir o seu pão com a alma aflita (v. 10).

Tendo visto esse aspecto importante em relação ao contexto literário, podemos abordar agora a perícope em alguns dos seus principais detalhes. A perícope pode ser estruturada da seguinte forma: a) Condição [se]: v. 9b-10 – a prática da justiça em favor de pessoas desfavorecidas b) Promessas do Senhor: v. 11-12 – novo êxodo e reconstrução de Jerusalém c) Condição [se]: v. 13 – a observância do sábado d) Promessas do Senhor: v. 14 – o descanso na terra prometida

A fé verdadeira manifesta-se na prática da justiça (v. 9b-10)

Os v. 9b-10 dão sequência à exortação do Senhor contra a prática intimista e descomprometida do jejum. O verso inicia com uma conjunção condicional (se) que está relacionada com a promessa de bênção nos v. 11-12. A prática da justiça em favor de pessoas oprimidas, famintas, desabrigadas e pobres continua aqui, mas agora exortando para que se pare com todo tipo de exploração, de ameaça e difamação. Ao fazer o jejum, que a pessoa aflita e faminta seja saciada e possa ter acesso ao pão. Se essa prática da justiça acontecer, então haverá algo comparado ao primeiro dia da criação (Gn 1.2): a luz nascerá nas trevas. A formulação cria um jogo de palavras: a tua luz nascerá nas trevas e a tua escuridão será como o meio-dia, isto é, haverá claridade. Interessante é também perceber que o Senhor fala aqui da tua luz, ou seja, ele está retomando a tarefa missionária de Israel em ser luz para as nações. Essa luz não é algo próprio do povo de Israel. Mas o povo reflete a glória do Senhor (v. 8). Desta forma, o Senhor caracteriza e ressignifica o verdadeiro jejum como prática da justiça. A verdadeira espiritualidade manifesta

254 11º Domingo após Pentecostes

-se na prática daquilo que me faz ver o outro. Não é algo intimista ou individua lista, mesmo que o relacionamento com Deus seja e deva ser algo pessoal. Aqui fica claro que o amor a Deus, marcado pela busca diária do Senhor, pelo conhecer os seus caminhos e por uma vida que agrada a Deus (v. 2), também se manifesta com a prática da justiça e do direito em favor de pessoas, a quem, por interesses próprios, são negados os direitos e a justiça (v. 2).

O “novo êxodo” e a reconstrução de Jerusalém (v. 11-12)

Os v. 11-12 são promessas do Senhor ao povo. Eles estão em paralelo di reto com os v. 8-9a, assim como os v. 9b-10 estão interligados com os v. 6-7. A primeira promessa retoma as tradições salvíficas do êxodo. São quatro aspectos dessa promessa: a) Deus guiará o povo continuamente. Assim como o bom pastor conduz o seu rebanho, da mesma forma o Senhor guiará o seu povo até a terra prometida (Êx 16 – 17). b) O Senhor saciará o povo até nos lugares desérticos. Mais uma vez somos lembrados de que Deus sustentou o povo na caminhada pelo deserto, dando o maná, as codornizes e todo o sustento necessário. Assim como o povo é exortado nos v. 7 e v. 10 a saciar a “alma” faminta, assim o Senhor fartará a “alma” de cada pessoa do povo. c) O Senhor fortificará os ossos, ou seja, os for talecerá para a caminhada. d) O povo será como um jardim regado e um manan cial, ou seja, uma fonte de água, que jamais secará. Também a imagem da água faz parte do sustento de Deus, quando da saída do povo da escravidão do Egito. Essa promessa é renovada agora na saída do povo da Babilônia. Assim, podemos perceber que os atos salvíficos de Deus no êxodo, paradigma da salvação de Deus no Antigo Testamento, são reinterpretados e reafirmados no contexto pós-exílico.

Já o v. 12 aponta para uma nova promessa. O retorno para Jerusalém será marcado por reconstrução. A promessa do Senhor aponta para as novas gerações. Os filhos desses reconstruirão as antigas ruínas da cidade que foi destruída por Nabucodonosor (cf. 2Rs 25). Essa passagem nos lembra do livro de Neemias. A principal razão que fez Neemias sair da cidadela de Susã e retornar a Jerusalém para reedificá-la foi a informação dada por seu irmão, Hanani, de que a cidade de Jerusalém ainda estava em ruínas (Ne 1.3). O próprio Neemias vê a cidade, ao chegar lá, e chega à mesma triste constatação (Ne 2.13,17). Jerusalém voltará a ser um lugar habitável.

A observância do sábado (v. 13)

Ao inserir o tema do sábado, os v. 13-14 parecem destoar do tema geral do capítulo 58, que falava do jejum. Contudo, seguindo a argumentação teológica das promessas feitas pelo Senhor, o sábado é tema consequente. Se Deus está prometendo um novo êxodo para o povo, que ao invés de manifestar uma vida de fé de aparências, de fato praticar a justiça da fé, então a entrada na terra prome tida é o prometido descanso, o verdadeiro sábado. Assim como o jejum vai ser reinterpretado e ressignificado nesse capítulo, da mesma forma o sábado. O ter ceiro mandamento, que exorta a guardar o sábado, tem duas fundamentações

255 11º Domingo após Pentecostes

teológicas. Na versão de Êxodo 20.8-11, o descanso está fundamentado na teo logia da criação, pois Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo (Gn 2.1-3). Assim deve viver a humanidade. Na versão de Deuteronômio 5.12-15, a fundamentação tem a ver com a escravidão no Egito. Um povo que foi libertado da escravidão pode viver livre e no descanso do Senhor. Mas, assim como o jejum estava sendo feito por causa dos próprios interesses e negócios, da mesma forma o sábado estava sendo guardado para satisfazer os próprios interesses e desejos. O dia santo ao Senhor, que era para ser dia de festa e descanso, estava sendo ocupado como dia de trabalho, dia de negócios, dia de conversa jogada fora. O que era um tempo de buscar o Senhor tornou-se rival de Deus, ocupando o lugar do próprio Deus na vida do povo. Assim o sábado desemboca na transgressão do primeiro mandamento.

O descanso na terra prometida (v.

14)

A perícope termina com mais uma promessa do Senhor. São três aspectos prometidos ao povo que guardar o sábado como prevê o terceiro mandamento: a) O povo se deleitará no Senhor, isto é, o Senhor será uma fonte de alegria para o povo. A alegria é sempre fruto da salvação. b) O Senhor fará o povo cavalgar sobre os altos da terra. A ideia por trás dessa imagem é a figura do rei, que cavalga como soberano sobre os reinos da terra. A NTLH traduz: Eu farei com que ven çam todas as dificuldades. c) O Senhor sustentará o povo com a herança dada a Jacó. No hebraico, o verbo usado é “comer”. Deus fará o povo comer da herança, isto é, eles serão sustentados a partir do que produzirem na terra para a qual estão indo novamente. Aqui há uma menção clara da posse da terra prometida relatada no final do Pentateuco e nos livros de Josué e Juízes. O v. 14 conclui com a confirmação do Senhor, que confirma todas as promessas: porque a boca do Senhor o disse. Se o Senhor disse, então está falado! Está garantido! É válido! Vai se cumprir! As antigas promessas de Deus continuam valendo. O Senhor as renova para dentro da nova situação do seu povo. Sua palavra não muda, mesmo que a situação do seu povo mudou várias vezes.

Concluindo, o que podemos perceber é que o pecado pode separar o povo de Deus, mas não separa Deus do povo (Is 59.2). Deus busca o seu povo, mesmo quando este o busca apenas por interesses ou até mesmo em vão. Deus evangeliza o seu povo novamente. Deus anuncia um novo êxodo, uma nova entrada na terra prometida! Deus lhes faz valer a sua Lei, mesmo que aqui de forma invertida, falando, primeiramente, do amor ao próximo e da prática da justiça e, depois, fa lando do amor a Deus e do descanso que o sábado do Senhor traz para toda pessoa que confia nele. O jejum e o sábado são duas formas legítimas de amar e servir a Deus e de amar e servir o próximo como a si mesmo, sem se preocupar com os próprios interesses (v. 3, 13), porque a boca do Senhor o disse.

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Meditação

Penso que esse texto pode nos ajudar a entender o que significa, no manda mento do amor ao próximo (Lv 19.18), a frase “como a ti mesmo”. A libertação da escravidão do Egito e a dádiva da Lei libertaram o povo não só da escravidão, mas de si mesmo. Não foi uma liberdade conquistada, mas recebida como dádiva de Deus, como sua salvação. Por isso ela é liberdade de si mesmo para servir ao próximo. É isso que Lutero vai afirmar em seu escrito reformatório “Da Liber dade Cristã” (1520): “Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. Um cristão é um servo prestativo em todas as coisas e está sujeito a todos”.

Por isso abrir mão de si mesmo sem compromisso e comprometimento com a prática da justiça continua sendo apenas um abrir mão de si mesmo, mas não amar o próximo como a si mesmo. E a prática da justiça por si mesma não passa de obra inútil e humana. O amor ao próximo é sempre consequência da experiência de se saber amado incondicionalmente por Deus. Aí toda a minha prática da espirituali dade e da justiça são práticas da fé, que busca e ama o Senhor incondicionalmente e que se volta e ama o próximo da mesma forma, incondicionalmente.

No Novo Testamento, Jesus faz sérias críticas e advertências tanto em re lação à prática do jejum (Mt 6.16-18; 9.14-17) como também em relação à obser vância do sábado (Mc 2.23-28). Em vários outros momentos, Jesus teve que se ocupar com a discrepância entre a vida de fé e a justiça da fé de seus contemporâneos, principalmente da parte daqueles que eram responsáveis espiritualmente pelo povo, os religiosos, escribas, fariseus, intérpretes da lei. A célebre frase do profeta Oseias: misericórdia quero e não sacrifícios é dita por Jesus na casa de um publicano chamado Mateus (Mt 9.9-13). Interessante perceber que, logo após a visita na casa de Mateus, os discípulos perguntam a Jesus sobre o jejum. Em seu sermão profético sobre o final dos tempos (Mt 24.1 – 25.46), Jesus também aborda aquilo que hoje chamamos de obras da misericórdia, caracterizando, dessa forma, a verdadeira adoração e fé.

Atualmente, vivemos um fenômeno sociocultural e religioso por demais hedonista e individualista, o qual tem se inserido sorrateiramente também no contexto da comunidade cristã. A busca por felicidade, prazer e por interesses pessoais transforma a espiritualidade também em algo intimista e individualista. As pessoas consomem religião para si mesmas ao invés de viverem a fé em favor das outras pessoas. Ritos e práticas religiosas são feitos com boas intenções, mas geralmente por medo de não serem abençoadas, o que leva à barganha com Deus, ou então à falsa religiosidade, uma vida de fé aparente, totalmente descompro metida com as pessoas em sua volta. É um “louvorzão” sem o rosto prostrado no chão. É amar o próximo como desencargo de consciência e não como encargo de uma essência diaconal. É um amor a Deus desvinculado do amor ao próximo, um amor ao próximo como a si mesmo, sendo esse mesmo um narcisista.

O pior é que pessoas que assim vivem sua fé, assim como o povo de Israel, fazem inúmeros questionamentos a Deus: Onde está Deus? Por que Deus não me

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11º Domingo após Pentecostes

ouve? Por que Deus não me cura? Por que Deus não satisfaz os desejos do meu coração mimado? O texto previsto para a pregação deste domingo vai contra o que poderíamos chamar de “mimimi espiritual”. Se Jesus nos perdoou os pecados, morrendo na cruz do Calvário e ressuscitando para nos dar uma nova vida, então não precisamos mais nos preocupar com nossos próprios “interesses espirituais”, mas podemos nos ocupar com as “necessidades reais” das pessoas que estão ao nosso redor, cumprindo assim com a missão que Deus nos deu.

4 Imagens para a prédica

Por conta do tema do jejum, a perícope tem sido usada como texto para a pregação da Quarta-Feira de Cinzas, marcando o início do período da Quaresma, ou da Paixão de Jesus Cristo. Contudo, como pudemos perceber, o texto nos coloca diante da temática do amor a Deus e do amor ao próximo, das práticas espirituais e da prática da justiça, da verdadeira adoração e da verdadeira ação, do servir a Deus e servir ao próximo. Em suma, o texto nos desafia a viver a essência e a coerência da vida de fé.

Tema da pregação: A essência e a coerência da fé

Introdução: Abordar o cenário no qual vivemos, como descrito acima, des tacando a incoerência da vida de fé, quando se busca a Deus e não se pratica a jus tiça, quando se vive uma vida de fé de fachada. Desde que a ouvi, pela primeira vez, do colega pastor emérito Arno Paganelli, costumo usar a expressão “brincar de igrejinha” para caracterizar esse fenômeno.

1. O Senhor nos lembra do nosso pecado Enfatizar aqui o aspecto do contexto literário da perícope. As exortações remontam às críticas proféticas pré-exílicas, que destacam os dois maiores pro blemas do povo de Israel: a) a religiosidade vã e vazia e a injustiça social; b) a idolatria e a adoração a falsos deuses. Esses problemas levaram o povo a perder sua essência, sua identidade, bem como o fez viver uma fé incoerente com a sal vação recebida no êxodo.

2. O Senhor dá sentido à nossa vida de fé Enfatizar aqui o aspecto da ressignificação tanto do jejum como do sábado, os quais não foram abolidos, mas corrigidos, como prática da justiça, exortando o povo a viver a essência e a coerência da fé.

3. O Senhor tem promessas para a sua igreja Enfatizar aqui as promessas dadas por Deus ao seu povo, não como moeda de troca, como barganha, mas como palavra do Senhor, pois a boca do Senhor disse. As promessas de Deus nos animam a servi-lo e a servir as pessoas com nossos dons. Procure destacar ao final, de forma bem concreta, práticas diaconais da comunidade, bem como práticas espirituais que apontam para a essência e para a coerência da vida de fé da comunidade.

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11º Domingo
após Pentecostes

Subsídios litúrgicos

Liturgia de entrada: No momento da confissão dos pecados, pode-se cantar com a comunidade um hino: Se sofrimento te causei, Senhor (LCI 36). Como parte do texto da oração de confissão, pode-se também ler um trecho da confissão de pecados, que se encontra em Isaías 59.11-15.

Liturgia da palavra: Antes da pregação, sugere-se cantar o cânone Buscai primei ro o Reino de Deus (LCI 150). Após a pregação, sugere-se cantar o hino Trans forma, Senhor (LCI 562), ou outro hino que está relacionado com o tema da diaconia: LCI 564 ou 566.

Liturgia de despedida: Ao final do culto, sugere-se cantar o hino de bênção Bên ção da Irlanda (LCI 289) ou o hino Guia-nos, Jesus (LCI 604).

Bibliografia

ANDIÑACH, Pablo R. Introdução Hermenêutica ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2015.

CROATTO, J. Severino. Isaías. A palavra profética e sua releitura hermenêutica. v. III: 56-66, A utopia da nova criação. Petrópolis: Vozes, 2002.

SCHMITT, Hans-Christoph. Arbeitsbuch zum Alten Testament. 2. Auflage. Göt tingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2007.

SCHNEIDER, Dieter. Der Prophet Jesaja. 2. Teil: Kapitel 40-66. Wuppertal: Brockhaus, 1990.

SCHÖKEL, L. Alonso; DIAZ, J. L. Sicre. Profetas I: Isaías, Jeremias. São Paulo: Paulinas, 1988.

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11º Domingo após Pentecostes

12º DOMINGO APÓS PENTECOSTES 28 AGO

2022

PRÉDICA: LUCAS 14.1,7-14

SALMO 112 HEBREUS 13.1-8,15-16

Quem se humilha será engrandecido!

1 Introdução

No capítulo 14, o Evangelho de Lucas narra o episódio de Jesus na casa de um dos principais fariseus para uma refeição. A casa desse líder tornou-se cenário de um grande milagre e de ensinamentos da mais alta relevância sobre a salvação e o discipulado. Os v. 7-14 relatam que Jesus era observado pelos convidados na casa desse fariseu e que também Jesus os observa. Ao mesmo tempo em que eles censuram Jesus por curar um homem no sábado, eles estão alimentando no coração, nessa mesma refeição, uma atitude de soberba. Então Jesus faz uma comparação para ensinar especialmente duas lições:

1. o ser humano deve agir com humildade (14.7-11);

2. o ser humano deve agir pelos motivos certos (14.12-14).

Os dois outros textos previstos para este 12º Domingo após Pentecostes, Salmo 112 e Hebreus 13.1-8,15-16, também tratam do tema “humildade” indiretamente, pois convidam para uma vida de serviço em favor do próximo e em obediência aos mandamentos de Deus. Poderíamos dizer que apontam para uma ação concreta a partir de uma vida de humildade e obediência.

Nosso texto, Lucas 14.1,7-14, já foi trabalhado quatro vezes em Proclamar Libertação: nos volumes XVII, 23, 29 e 40. Sugere-se a leitura dessas publicações, pois cada qual traz diferentes enfoques no estudo do texto.

2 Exegese

Os versículos anteriores a Lucas 14 revelam com clareza o contexto em que nossa história acontece. Tratava-se de um sábado, um dia em que os judeus costumavam realizar uma importante refeição.

O texto bíblico nos informa que um dos principais dos fariseus havia convidado Jesus para uma dessas refeições. Era comum que vários convidados com parecessem nesses banquetes. Esse homem que convidou Jesus possivelmente era alguém abastado de bens (v. 12).

V. 1 – Aparentemente Jesus recebe um convite amável para uma refeição, mas logo podemos perceber que as intenções daquele anfitrião e dos demais fa riseus que ali estavam não eram as melhores, pois estavam interessados em ob servar as atitudes de Jesus e o faziam atentamente, quem sabe com o propósito

260
Cristiano Ritzmann

de achar algum motivo para incriminá-lo. Os versículos que se seguem (v. 2-6) mostram Jesus curando um homem em meio a uma discussão sobre a legitimida de de curar um doente no sábado.

Talvez até possamos imaginar que aquele homem doente foi colocado diante de Jesus de propósito, ou seja, os próprios religiosos o colocaram ali como um tipo de armadilha na qual esperavam que Jesus caísse. De fato essa possibilidade existe, porém de forma alguma podemos afirmá-la com certeza, pois também não era incomum que alguém entrasse em uma celebração sem ser convidado, como nos relata o mesmo Evangelho de Lucas 7.37-38.

V. 7-11 – Após essa narrativa do milagre nos v. 2-6 e do triunfo de Jesus sobre os religiosos fariseus que ficaram calados diante dos questionamentos de Jesus acerca do sábado, o evangelista Lucas relata que Jesus começou a reparar na forma como os convidados daquela refeição estavam escolhendo os lugares em volta da mesa, fez uma comparação ensinando humildade e hospitalidade. Na época de Jesus, na sala onde se comiam as refeições, havia uma mesa bai xa cercada de divãs que tinham a capacidade para acomodar até três pessoas. Esses divãs eram colocados em forma de um “U” ao redor da mesa que era retangular.

Na posição central da mesa, isto é, na cabeceira, ficava a pessoa de maior importância. Ao seu lado esquerdo ficava a segunda pessoa em importância, e no lado direito a terceira pessoa em importância.

Dessa forma, o divã que ficava à esquerda da cabeceira da mesa era o se gundo em honra, e, depois, vinha o divã da direita, e assim sucessivamente durante toda a extensão da mesa. Essa era uma regra de hierarquia social que orientava os judeus naquela época.

Entretanto, na refeição em que Jesus estava, essa regra parecia estar sendo ignorada, e os convidados estavam demonstrando todo egoísmo, orgulho e preconceito na escolha dos lugares.

O significado da comparação é bastante claro e fica expresso na sentença do v. 11, onde lemos: Porque quem se engrandece será humilhado, mas quem se humilha será engrandecido. Jesus estava ensinando, nessa comparação, uma importante lição sobre a humildade.

Certamente os escribas e fariseus conheciam muito bem a vontade de Deus a respeito da humildade e o chamado de Deus ao temor e à obediência aos man damentos, assim como nos testemunha o Salmo 112.

De maneira muito apropriada, Jesus finalizou a comparação com as palavras do v. 11, um ensino tão importante, quem se engrandece será humilhado (Mt 23.12; Lc 18.14) e quem se humilha será engrandecido (Tg 4.10; 1Pe 5.6).

Esse ensino expressa uma verdade bíblica que pode ser conferida por toda a Escritura. Encontramos vários personagens bíblicos que provaram na prática esse ensino como, por exemplo, a princesa Jezabel, o rei Nabucodonosor e Hero des Agripa I, exaltados que foram humilhados (1Rs 21.7,23; 2Rs 9.30-37; Dn 4.30-33; At 12.20-23); enquanto José, no Egito, Ana, e o publicano são exem plos de humilhados que foram exaltados (Gn 41.41; 1Sm 1.12-20; Lc 18.9-14).

Por fim, ainda que a exaltação não venha nesta terra, vemos que a história do rico e do Lázaro prova que tanto a exaltação como a humilhação final e plena

261 12º Domingo após Pentecostes

se darão na vida por vir (Lc 16.19-31), um ensino que também foi compreendido pelo salmista (Sl 73).

V. 12-14 – Apesar da comparação terminar no v. 11, o ensino de Jesus con tinua nos versículos seguintes. A comparação foi dirigida aos convidados, mas a lição presente entre os v. 12 a 14 foi direcionada ao anfitrião. A esse homem Jesus ensina que não se deve convidar pessoas para sua refeição apenas com a intenção de ser recompensado. Jesus havia notado que naquele banquete havia muitas pessoas importantes que competiam umas com as outras em busca do lugar mais honrado. Jesus diz ao anfitrião que convide também as pessoas oprimidas. Ele não estava dizendo que só era apropriado convidar os oprimidos, mas com essa exor tação ele estava chamando a atenção para a necessidade do amor desinteressado, ágape, da compaixão para com o próximo e do espírito humilde.

Em outras palavras, Jesus estava alertando sobre a importância que há em partilhar com aqueles que nada têm. Jesus chama para a prática da diaconia. Dife rente das pessoas importantes da sociedade que poderão recompensá-lo, quando se age com compaixão para com os oprimidos, a recompensa vem do próprio Deus (Mt 25.31-46).

3 Meditação

Que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus o Pai e a comu nhão do Espírito Santo esteja com todos e todas!

Amados irmãos, amadas irmãs, não deveria ser uma tarefa difícil para nós cristãos sermos humildes, apesar de sempre termos muito do que nos orgulhar, ainda assim, como cristãos, devemos assumir o lugar mais simples sem que alguém nos diga que devemos fazer isso. E isso, especialmente no trabalho da seara do Senhor, diante do Senhor, quando estamos em oração, quando nos reunimos em co munidade, somos chamados e chamadas a servir e a assumir uma postura humilde.

E, especialmente diante de Deus, não podemos falar a respeito de nossos méritos, pois não temos nenhum e carecemos dos méritos de Cristo. Nosso apelo a Deus deve ser por perdão e misericórdia.

Quando aqui vivemos de forma humilde, vivemos pela promessa de Deus de que seremos exaltados pelo Senhor Jesus Cristo. Seremos exaltados se formos humildes. Para nós, pessoas de fé, o caminho da exaltação é a humildade.

Quando nos despimos de nosso “eu”, somos vestidos com humildade. E essa é a melhor das vestimentas. O Senhor nos exaltará em paz e felicidade de espírito. Ele nos exaltará ao conhecimento de sua vontade e à comunhão consigo mesmo. O Senhor nos exaltará na alegria da justificação e do perdão dos pecados. Deus coloca as suas honras sobre aqueles e aquelas que são capazes de vesti-las, para a glória dele.

Olhemos para o exemplo de Cristo Jesus, que desceu às profundezas da hu milhação e foi elevado à posição máxima de exaltação. Jesus Cristo se esvaziou e se humilhou. Ele não se exaltou, mas foi exaltado pelo Pai. Porque se humilhou até a morte e morte de cruz, o Pai o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome. Não há como exaltar alguém mais do que Jesus foi exaltado.

262 12º Domingo após Pentecostes

Jesus Cristo é o Senhor! Diante dele todo joelho deve se prostrar tanto no céu como sobre a terra e também debaixo da terra. Todos e todas precisam se curvar e reconhecer a autoridade suprema de Jesus. Toda língua precisa confessar que ele é Senhor.

Jesus, para todo o sempre, será exaltado como o cordeiro que foi morto, mas está vivo pelos séculos dos séculos e tem as chaves da morte e do inferno. Todos os reinos dos povos serão dele. Ele colocará todos os seus inimigos de baixo de seus pés e reinará para sempre. Porém sua exaltação tem um propósito último, a glória do Pai.

Nossa vida deve se espelhar na vida de Jesus, que viveu humilde e fez tudo para honra e glória do Pai. Aprendamos com Jesus conforme ele ensina em Mateus 5.16: Assim a luz de vocês também deve brilhar, para que os outros vejam as coisas boas que vocês fazem e louvem o Pai de vocês que está no céu!. Que vivamos em humildade e façamos tudo pelo motivo certo, para honra e glória de Deus! Amém!

4 Imagens para a prédica

Oração de São Francisco de Assis Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz. Onde houver ódio, que eu leve o amor, onde houver ofensa, que eu leve o perdão, onde houver discórdia, que eu leve a união, onde houver dúvida, que eu leve a fé, onde houver erro, que eu leve a verdade, onde houver desespero, que eu leve a esperança, onde houver tristeza, que eu leve a alegria, onde houver trevas, que eu leve a luz.

Ó Mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado; compreen der que ser compreendido, amar, que ser amado. Pois é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado e é morrendo que se nasce para a vida eterna. Amém.

5 Subsídios litúrgicos

Sugestões de hinos: LCI 31; LCI 526; LCI 565; LCI 571.

Bibliografia

LOPES, Hernandes Dias. Lucas: Jesus, o homem perfeito. São Paulo: Hagnos, 2017.

STÖGER, Alois. O Evangelho Segundo Lucas. Petrópolis: Vozes, 1974.

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12º Domingo após Pentecostes

13º DOMINGO APÓS PENTECOSTES 04 SET 2022

1 Introdução

PRÉDICA: FILEMOM 1-21

DEUTERONÔMIO 30.15-20 LUCAS 14.25-33

Caminhada cristã e escravidão

A Carta a Filemom gira em torno do destino a ser dado a um escravo (citado duas vezes como doulos no v. 16 e traduzido incorretamente por Almei da como “servo”), Onésimo, que se encontra junto de Paulo e de cujo senhor, Filemom, se havia afastado. Antes de interpretarmos a carta em sua mensagem teológica, apresentaremos brevemente a situação dos escravos no Império Romano e as principais hipóteses relacionadas com os destinatários, local da reda ção e motivos para o afastamento de Onésimo do seu senhor.

a) A situação dos escravos em geral

O dicionário Houaiss define “escravo” da seguinte forma: “que ou aque le que, privado da liberdade, está submetido à vontade de um senhor, a quem pertence como propriedade”. Detalhes sobre essa submissão foram consultados em livros como, p. ex., GIORDANI, M. C. História de Roma. Petrópolis: Vozes, 1987. (Antiguidade clássica II). p. 194-208. (Cf. também os dados apresentados no artigo do Hoefelmann no PL 29, p. 254ss). De fato, juridicamente, os escravos eram considerados uma coisa (res), “instrumento” falante (instrumentum voca le), não possuindo personalidade jurídica (servus nullum caput habet), estando sujeitos ao poder absoluto (dominica potestas) dos seus senhores. Esse poder conferia aos senhores o direito de receber os bens, posses e os frutos do trabalho escravo (incluindo seus filhos e suas filhas), de utilizar-se deles como quisessem, de castigá-los, vendê-los, abandoná-los ou mesmo libertá-los. Ou seja: o poder dos senhores estendia-se tanto sobre as pessoas dos escravos como sobre seus bens, sendo que sobre as pessoas tinham, inclusive, o poder de vida e/ou morte. Filhos de escravos pertenciam, como eles, aos seus senhores. Era-lhes vedada a constituição de famílias legalmente constituídas e também não tinham direito a dias de repouso.

Entre as principais causas da escravidão constam o aprisionamento em guerra, a insolvência diante de dívidas contraídas, declarações fraudulentas ou falsas em recenseamentos, deserção do serviço militar, venda pelos pais etc.

O maior contingente de escravos era empregado em trabalhos agrícolas. Ali, nas minas e entre remadores de embarcações mercantis ou de guerra era

264

onde se encontravam as condições especialmente degradantes desse trabalho. Muitos escravos eram também empregados em oficinas artesanais e nos dife rentes trabalhos domésticos. Pelo Estado eram aproveitados em grandes cons truções de prédios públicos, vias, pontes, templos, aquedutos, cargos secundários da administração estatal etc. Escravos em melhores condições eram os que trabalhavam nas casas, administrando por vezes as propriedades e os negócios de seus senhores, podendo colaborar também na educação dos seus filhos. Es ses, às vezes, conseguiam, inclusive, juntar dinheiro ao longo do tempo para comprar com recursos próprios sua alforria. Havia três modos para um escravo adquirir liberdade de sua condição servil no Império Romano. A manumissão, alforria ou simplesmente a liber tação da escravidão poderia advir (a) por vontade dos imperadores ou gover nantes, (b) por benefício da lei, em que se concedia a liberdade por decreto ou testamento, e (c) por concessão livre dos senhores. A concessão da liberdade, muitas vezes, era colocada em perspectiva para um maior estímulo no traba lho. Deve-se considerar, contudo, que, mesmo na condição de liberto (libertus, pl.: liberti), um escravo nunca mais conseguia recuperar a cidadania plena de um ingenuus (= indígena, nativo, natural, autóctone; em sentido lato: nascido livre, de condição livre [pl.: ingenui]), ou seja, daquele que nascera em liber dade (essa situação se modifica unicamente para os filhos de libertos a partir do século II a.C.). Escravos libertos tinham direito de votar, mas não podiam ser votados para as magistraturas (obtinham o ius suffragii, carecendo, porém, do ius honorum). Em verdade, todo escravo liberto ficava devendo favores e certas obrigações ao seu ex-senhor, ao seu patronus, até o fim de sua vida: esses favores/obrigações eram designados de obsequium (compreendia o respeito e consideração ao antigo senhor, “não podendo intentar contra o mesmo nenhuma ação jurídica”), operae (trabalhos domésticos e “certo número de jornadas de trabalho, de acordo com o ofício, a arte ou profissão exercida pelo liberto”) e bona (compreendia o direito dos ex-senhores sobre a totalidade dos bens, em caso de morte do liberto sem testamento ou herdeiros).

Para escravos desobedientes ou insubmissos que, como talvez Onésimo, fugiam ou abandonavam ou se ausentavam indevidamente da casa de seus senho res e que fossem identificados por meio de cartazes, caçadores de escravos ou por outros meios quaisquer, havia uma série de penalidades possíveis previstas. As mais recorrentes e que podiam ser praticadas impunemente contra eles eram todo tipo de privações (de comida, descanso, agasalho etc.), o temido envio para o tra balho em pedreiras e minas, ou então mutilações, acoitamentos, espancamentos e, em certas épocas, até mesmo a morte.

b) Destinatários e local da redação

A Carta a Filemom muito provavelmente foi endereçada à cidade de Co lossos. Essa tese baseia-se na coincidência de oito nomes mencionados em Filemom (1-2,23-24) e Colossenses (1.1; 4.7ss), mesmo que o nome de Filemom não esteja explicitamente mencionado em Colossenses (ao contrário de “Onésimo”:

265 13º Domingo após Pentecostes

cf. Cl 4.9). A carta é enviada a Filemom, Áfia (por muitos, aventada como esposa de Filemon), Arquipo e à igreja que se reúne na casa de Filemom (Fm 1-3). Mas Paulo escreve de onde? São três as respostas possíveis: de Roma (At 28.16-31), Cesareia (At 23.23 – 26.32) ou Éfeso (com base nos textos de 1Co 15.32; 2Co 1.8s; 11.23), locais em que Paulo esteve preso por mais tempo. A melhor hipótese nos parece ser a de Éfeso, distante uns 170 km de Colossos.

c) A situação do escravo Onésimo

Não fica clara a situação de Onésimo na carta. Parece ter conhecido Paulo na prisão (v. 10). Ele tinha cometido algum delito para ser preso no mesmo lugar da prisão de Paulo? Ou foi visitar Paulo deliberadamente em sua prisão para que esse viesse a interceder por ele junto a Filemom? Difícil de responder. De qualquer forma, o encontro dos dois na prisão deu ocasião a Paulo para convertê-lo ao cristianismo (v. 10). Uma vez convertido, Paulo demonstra interesse em que Onésimo participe e ajude na obra missionária realizada pelo apóstolo (v. 13). Mas para que coisa assim fosse possível, Filemom, o senhor do escravo, teria que lhe conceder primeiramente a alforria. Paulo não pode nem pretende passar sim plesmente por cima das leis de escravidão vigentes (v. 14). Por isso ele intercede a Filemom pela alforria/libertação de seu escravo Onésimo na carta (v. 12-14). Nos v. 18-19, um detalhe tem chamado a atenção dos intérpretes. Paulo fala que se Onésimo causou dano ou deve alguma coisa a Filemom, ele mesmo fará questão de pagar. Daí costuma-se inferir que Onésimo provavelmente teria furtado bens ou dinheiro do seu senhor e fugido. Mas isso não passa de conjetura. A frase é condicional: “se...”, “caso...”. É só uma conjetura! Pode ser, claro, que Onésimo tenha de fato roubado dinheiro ou bens de Filemom, se evadido para a cidade onde Paulo se encontrava preso, e que Paulo, depois de tê-lo convertido, estivesse procurando alcançar o beneplácito do seu patrão, mandando-o de volta. Do contrário, as possibilidades que se ofereciam para um escravo fugitivo eram, em resumo: (a) juntar-se a bandidos e ladrões; (b) submergir nas subculturas das grandes cidades, com chance de voltar a ser empregado; (c) evadir-se para um outro país, ou (d) procurar asilo temporário num templo. Mas também é possível que Onésimo simplesmente se tenha ausentado de Colossos a serviço e/ou mando de Filemom (ou devido a outro motivo não mais identificável) por um tempo mais prolongado do que o previsto, causando assim eventuais danos ou prejuízos ao seu patrão por ausência de atividade em seu local usual de trabalho.

2 Interpretação

V. 1-3 – Saudações iniciais de Timóteo e Paulo a Filemom, o irmão amado e cooperador, e à comunidade que se reúne na casa de Filemom.

A carta é enviada por Paulo e Timóteo não só a Filemom, a quem chama de irmão amado e cooperador, mas igualmente a Arquipo, companheiro de lutas, a Áfia e a toda a comunidade que se reúne na casa de Filemom. Que consequências tem esse envio da carta a toda a comunidade da casa de Filemom? A conse

266 13º Domingo após Pentecostes

quência é que, dessa forma, Paulo e Timóteo induzem ele a responder pela sua fé publicamente e também a vivê-la publicamente, pelo menos diante de toda a comunidade. Isso é muito edificante, pois impede que a gente tenha duas caras: uma dentro e diante da igreja, e outra na esfera privada. Há muitos cristãos que são assim: na igreja e na celebração da Santa Ceia repartem o pão, fora das igrejas não conseguem doar um quilo de alimentos para os mais necessitados; nos ban cos das igrejas dão-se o abraço da paz, mas dentro e fora de casa as brigas e os desentendimentos ficam cada vez piores.

V. 4-7 – Paulo elogia Filemom pela fé que o senhor de escravos tem por Jesus e pelo amor que dedica a “todos os santos”, ou seja, aos membros da sua comunidade caseira, pelo que agradece a Deus.

O elogio dedicado por Paulo a Filemom tem base em sua fé em Jesus e em seu amor aos membros de sua comunidade. A finalidade do agradecimento a Deus vem descrita no v. 6: Para que a comunhão/koinonía da tua fé se torne eficiente no conhecimento de todo o bem que há em vós, para Cristo. A interpretação desse versículo é altamente controvertida. “Comunhão” é o ato ou efeito de “co mungar”, ou seja, de coparticipar, tomar/ter parte com outros de ou em alguma coisa como, p. ex., sentimentos, convicções, modos de pensar e agir, crenças, fé, ações etc. Por isso mesmo, como escreve Lohmeyer (1956, p. 17), o termo religioso da “comunhão” não representa simplesmente os fortes laços que unem irmãos e irmãs crentes entre si, mas

a participação que o indivíduo recebe num valor objetivo ou que ele oferece a um “irmão” em determinado ato. No primeiro sentido passivo, ela está direcionada para e fundamentada sobre o objeto da fé, seja este o Senhor, o Espírito, o corpo e sangue de Cristo, o evangelho [...]; no segundo sentido ativo ela está direcionada para o irmão crente. No primeiro caso, passivo, ela se manifesta através de rece bimento e aceitação de coisas que provêm de Deus; no segundo, ativo, através de ajuda e serviços, através de “esmolas” ao próximo.

Parece-nos que no v. 6, bem provavelmente, “comunhão” esteja empre gada em seu primeiro sentido, passivo: “comunhão da fé” expressaria então toda a participação que Filemom e a comunidade em sua casa receberam e rece bem em forma de fundamento de fé: eles têm em comum a Cristo como Senhor e Salvador, o Espírito como iluminador e animador dos dons e o evangelho como orientação para pensar e agir.

Só que, de acordo com o v. 6, essa fé comum no amor de Cristo, na anima ção do Espírito e na orientação ética do evangelho deve agora mostrar sua eficácia no “conhecimento de todo o bem” existente na comunidade. Ou seja, o amor de Cristo por nós deve nos tornar eficazes para a prática de nosso amor em favor dos irmãos e irmãs. O apóstolo se refere aqui ao conhecimento de todo o bem existen te em vós! Paulo é um fervoroso incentivador da prática do bem (Rm 12.17,21; Gl 6.9-10; 1Tm 6.18; cf. também Tg 4.17 e 3Jo 11: aquele que pratica o bem, procede de Deus). Para o apóstolo, o “bem” (agathos) é tudo aquilo que genui namente provém do amor (agape), mas não de qualquer “amor”, e sim do amor

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vivido e pregado por Cristo. É por isso que, para Paulo, o amor redentor de Cristo requer “conhecimento” (epígnōsis) para se tornar eficaz. Nem todo conhecimento interpreta Cristo de forma correta, autêntica. Basta só olhar ou considerar as e os pastores das diferentes igrejas ou, inclusive, de uma mesma igreja. Por isso não adianta só reafirmar a necessidade de praticar o bem. Precisa-se dizer, ao mesmo tempo, de que “bem” estamos falando, que práticas de “bem” estamos defenden do. Em 2021, houve pastores e pastoras que acharam que o “bem” seria deixar igrejas abertas para a prática de cultos/missas presenciais; outros e outras já criam o contrário; uns achavam que não era necessário usar máscaras, Deus haveria de providenciar a cura caso houvesse problemas com a Covid-19; outras já não concordavam: “Se não usa máscara porque Deus protege, para que deseja uma arma?” (Mara Parlow, Facebook, abril de 2021) etc. Esses são só poucos exem plos para mostrar que o “bem” a que Paulo se refere não é óbvio, pelo menos não o “bem” que se espera de um cristão: requer conhecimento, sabedoria, depuração, aclaramento. E quem é que vai dar esse aclaramento, essa depuração? É Jesus, sua obra e seus ensinamentos.

O v. 7 não faz mais parte do agradecimento direto de Paulo a Deus. Ele repete, em forma de constatação, aquilo pelo qual já havia sido agradecido a Deus no v. 5: o amor de Filemom, que chegou a consolar as entranhas, ou seja, o mais íntimo dos seres participantes de sua comunidade caseira

V. 8-20 – O pedido de Paulo para que Filemom receba o escravo Onésimo como irmão amado [...], tanto na carne como no Senhor.

Nos v. 8-12, Paulo contrapõe, por um lado, a parresía/ousadia, o destemor (aqui, inclusive, talvez até no sentido de “a autoridade”) para epitassein/ordenar/ exigir de Filemom o que convém, e, por outro, o ágape/amor, com o qual não exige/ordena, mas tão somente parakaléo/solicita/pede (v. 9 e 10) a Filemom. Significa que o amor não funciona com ordens e mandados, ele trabalha com convicções e em liberdade, o que o apóstolo reafirma mais uma vez no v. 14: o bem concreto que Paulo espera ser realizado por Filemom não pode ser impos to, forçado, mas requer espontaneidade, livre vontade. Paulo pede a Filemom por Onésimo, a quem denomina de filho gerado (= convertido) por ele na prisão (Paulo assume aqui a “paternidade espiritual” de Onésimo: v. 10) e splanchma mou/minhas entranhas” (v. 12 [cf. o mesmo termo também nos v. 7 e 20] para designar o coração do apóstolo, isto é, seu “centro de sensibilidade, afeto, ter nura” (Houaiss), sua “personalidade total no nível mais profundo” (MARTIN, 1984, p. 168). Isso é uma grande identificação, ou seja, Paulo dá a entender que aquilo que vai pedir por Onésimo é praticamente como se estivesse pedindo por ele próprio (cf. v. 17). Afirma ainda que Onésimo antes havia sido inútil, mas que atualmente é útil tanto ao apóstolo como a Filemom. Pode-se interpretar essa inutilidade de antes assim: “A utilidade que constitui o objeto escravo é uma falsa utilidade. Ela é na verdade ‘inutilidade’, ela é o contrário de um bem” (COMBLIN, 1986, p. 98). Mas também é possível que Paulo considere Onésimo como “inútil” no passado por ter causado – concretamente – algum dano ou dado algum prejuízo ao seu senhor (v. 18).

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V. 13-16 – O pedido de Paulo para que Onésimo seja recebido por File mom como irmão amado, tanto na carne como no Senhor.

Os v. 13-14 são uma espécie de entrelinhas, em que o apóstolo confessa o desejo de ter podido conservar Onésimo consigo – em vez de Filemom (em teu lugar) – para diakonein/praticar diaconia, ou seja, para auxiliá-lo nas algemas do evangelho, isto é, para auxiliar Paulo como preso em suas necessidades físicas e materiais, mas também na divulgação do evangelho dentro e fora da prisão (cf. At 13.5; 24.23; Fp 2.25ss). Mas, como assim hyper sou/em teu lugar? Por que acha Paulo que o lugar de Filemom seria do seu lado nas algemas do evangelho? A ideia é, provavelmente, que Filemom “devia” a Paulo tais serviços como gratidão “que o convertido deve ao Apóstolo que lhe deu a vida nova” (COMBLIN, 1986, p. 98), ou seja, como gratidão à fé em Cristo, a quem foi conduzido pelo apóstolo (cf. v. 19). Mas, como afirma Paulo, está mandando primeiramente o escravo de volta para que o aludido (agatos) “bem” (Almeida = “bondade”; Bíblia Sagrada: “benefício”; Bíblia de Jerusalém: “boa ação”) que Filemom poderia fazer não re sultasse de imposição, mas de livre vontade, uma característica do agape/amor. Há males que vêm para o bem? Nos v. 15-16 Paulo parece defender essa tese. A formulação do v. 15 é toda cuidadosa. Ela não fala em fuga ou coisa parecida de Onésimo, mas num eventual ato de afastamento deliberado dele de Filemom, mas isso também só por determinado tempo. Mas, afinal, quem poderia tê-lo afastado de Filemom, se ele não fugiu? Paulo provavelmente está empre gando aqui um “passivo divino”; quando diz talvez ele tenha sido afastado, em verdade o que estava querendo dizer é que talvez ele tenha sido afastado tempo rariamente por Deus! E o benefício feito por Deus com esse seu agir providencial de separação foi que, com a conversão de Onésimo ao cristianismo, os laços de fé e união entre Onésimo e Filemom seriam perenes. A fé não une só para essa vida, une para a eternidade (a fim de que o recebesses para sempre).

O v. 16 complementa a novidade do aspecto temporal da união entre File mom e Onésimo com a novidade do aspecto cristológico e social. A incorporação de Onésimo ao cristianismo tem por consequência que ele passa a se tornar irmão de fé com os demais cristãos. Por meio de Cristo não recebemos um espírito de escravidão, mas o espírito de adoção, que nos reúne numa nova família, a família dos filhos e filhas de Deus (Rm 8.12-17; Gl 4.3-7). A consequência é que viramos irmãos e irmãs, ou como diz Paulo aqui: irmãs e irmãos amados no Senhor, em Cristo. Se o amor de Cristo por nós nos irmana na fé, nosso amor mútuo e recíproco nos irmana econômica e socialmente. É bem a isso que o apóstolo se refere quando diz que o afastamento temporário de Onésimo foi para que ele pudesse ser recebido como irmão amado no Senhor e na carne. Esse como irmão amado no Senhor e na carne significa que o apóstolo espera por uma fraternidade cristã entre Filemom e Onésimo que não seja só de “coração”, só “espiritual”, mas também “carnal”, ou seja, que abarque igualmente toda a materialidade da vida em seus múltiplos aspectos econômicos, sociais, culturais, trabalhistas, empre gatícios etc. Assim também Comblin: quando Paulo explicita que Onésimo seja recebido não mais como escravo, mas como irmão amado no Senhor e na carne, significa que a “materialidade da relação humana senhor-escravo [...] fica des

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truída” (COMBLIN, 1986, p. 99). Em outros textos Paulo também alude a essa verdadeira revolução nas relações entre as pessoas quando a fraternidade cristã é assumida com todas as suas consequências: são dissolvidas as antigas distinções de raça, cultura, religião, classe social etc. (Gl 3.28; 1Co 12.13; Cl 3.11). Em textos das cartas deuteropaulinas, geralmente, essa radicalidade não é assumida, optando-se mais por uma mera humanização das relações senhor-escravo, como nos mostram Cl. 3.22 – 4.1; Ef 6.5-9; 1Tm 6.2; Tt 2.9s; 1Pe 2.18-25. Na mesma linha vai também o AT, que admitia escravos e escravidão, embora com várias leis para coibir abusos (Êx 21.1-11,16,26s; Dt 15.12-24; 23.15-16; Lv 25.8ss,39ss etc.). Entre as comunhões religiosas da Antiguidade (essênios, religiões de mis térios, outros cultos pagãos da época do AT/NT etc.) foram só os terapeutas que praticavam uma real igualdade entre senhores e escravos; certos cultos antigos integravam os escravos às demais pessoas livres em suas celebrações, mas sem a pretensão de real abolição da escravidão fora dos limites de celebração (STUHL MACHER, 1975, p. 46s). A radicalidade de Paulo está a sugerir que é, sim, possível viver a profundidade do amor cristão também “na carne”, ou seja, também fora dos limites das celebrações e ajuntamentos de louvor e adoração. Do contrário, haverá cristãos de duas caras, duas práticas: uma dentro e outra fora das igrejas.

Os v. 17-20 encerram a carta.

No v. 17 Paulo reforça mais uma vez seu pedido de que Onésimo seja recebido por Filemom como se fosse o próprio Paulo (cf. o v. 12: [...] ele, isto é, as minhas entranhas). A condição para que isso aconteça é Filemom considerar Paulo como koinōnós (Bíblia de Jerusalém: “amigo”; Almeida e Bíblia Sagrada da CNBB: “companheiro”; Comblin: “associado”; outras: “parceiro”), ou seja, integrante da koinonía = comunhão cristã. Essa comunhão que, como já vimos no v. 6, é tanto a comunhão passiva naquilo que Deus nos concede quanto a ativa, naquilo que nós nos concedemos reciprocamente em amor e serviços. Nos v. 18-19a Paulo atesta de próprio punho que devolverá ou pagará qualquer prejuízo que porventura Onésimo tenha causado ao seu senhor. Com isso ele procura evitar eventuais castigos pelos erros cometidos que Onésimo poderia receber em seu retorno como escravo. Para que Filemom não leve em conta as dívidas do seu escravo Onésimo, Paulo o lembra ainda do seu próprio proce dimento: também ele, o apóstolo, que converteu Filemom à fé cristã (v. 19: [...] também a ti próprio te deves a mim), poderia considerar-se no direito de “cobrar” pela fé que Filemom lhe deve a partir de sua conversão, mas não o faz. Paulo, portanto, abdica dos seus direitos: o mesmo ele espera que Filemom faça com Onésimo como escravo, depois de ter se tornado irmão amado (v. 16).

O v. 20 reforça mais uma vez a esperança de Paulo de que seu coração será reconfortado e alegrado com a acolhida que Filemom dispensará ao retorno do seu escravo.

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Síntese

V.1-3 – Esses versículos introdutórios nos remetem às antigas comuni dades eclesiais caseiras. Eram comunidades em que geralmente as mulheres tinham papel ativo. A menção explícita de Ápia fala nesse sentido. Ela dificilmente é a esposa de Filemom, pois nesse caso Paulo terminaria o v. 2 mencio nando a igreja que está em “vossa”, e não, como no texto, em “tua” casa. Nes sas comunidades caseiras os relacionamentos também são muito transparentes, pois todos se conhecem. Por isso Paulo, embora trate de assunto concernente particularmente a um só dos escravos de Filemon, dirige a carta para toda a comunidade! E uma última coisa: Paulo se apresenta como desmios/prisioneiro de Jesus Cristo (cf. v. 9-10,13,23). Aqueles primeiros tempos de cristianismo ainda eram tempos em que o testemunho tinha um elevado preço: podia levar a perseguições, prisões e morte (Mt 5.10-12). As pessoas cristãs não seguiam quaisquer ordens, leis ou costumes que tivessem herdado de tradição ou família ou de governos. Tudo tinha que corresponder ao amor e à verdade de Cristo, do contrário era criticado como egoísmo e não praticado por ser mentira. Isso criava oposições e perseguições. Cristo havia gerado um primeiro amor muito firme e forte; importava não abandonar esse “primeiro amor” (Ap 2.4).

V. 5-7 – Aqui temos um agradecimento de Paulo a Deus pela fé e amor vi vidos por Filemom em sua comunidade caseira. Esse trecho me lembra de uma reflexão do P. Clovis Lindner (cf. Facebook, dia 23/04/2021, sob o título “Pratique a fofoca reversa”), em que ele realça a importância de nós “bendizermos” as pessoas, isto é, de dizermos/falarmos o bem sobre elas. Pois é justamente isso que o apóstolo pratica aqui: ele “bendiz”, realça, exalta a fé e o amor de Filemom. Faz bem para ele e faz bem para o Filemom. V. 8-20 – Esses versículos, que compreendem o miolo da carta, contém: a) Um pedido: que Onésimo, quando retornar ao seu senhor Filemom, seja recebido por ele como irmão amado que se tornou com sua conversão ao cristia nismo por Paulo e não como escravo que era anteriormente, o que poderia implicar uma série de castigos e penalidades. Paulo não exige, só solicita (v. 9,14). Por quê? A razão é que a base para essa solicitação é o amor de Cristo (agape), que nos irmanou numa grande família de irmãos e irmãs (Rm 8.12-17; Gl 4.3-7; cf. as várias referências à irmão/irmã na carta: v. 1,2,7,16,20), tendo Deus como pai/mãe (v. 3) e provocando idêntica prática de amor (v. 5,7,9; as pessoas tornam-se agapetos = “amadas”: v. 1,2,16) e do bem/bondade (agathos: v. 6,14) entre os crentes. Ora, o amor não impera por imposição, mas por livre e espontânea vontade, por liberdade (2Co 3.17; Gl 5.1-15).

b) Duas consequências práticas. A primeira é para dentro das igrejas: a fraternidade conseguida por Cristo não permite mais desconsideração, discri minação ou desatenção para qualquer irmã ou irmão de fé dentro das igrejas e celebrações. A segunda é para fora das igrejas: a fraternidade construída pelo amor vai romper e implodir também “na carne”, ou seja, fora das igrejas, tudo o que nos desune, marginaliza e inferioriza.

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c) Um desejo manifesto com todo o cuidado: de Filemom liberar o Oné simo para auxiliar o apóstolo no serviço do evangelho (v. 13). E, ao que tudo indica, esse desejo foi atendido por Filemom (cf. Cl 4.9).

d) A certeza de que Filemom haverá de fazer até mesmo mais do que o apóstolo está lhe solicitando (v. 21).

3 Meditação

À luz da exegese da perícope de Filemom, olhamos para os textos de Deuteronômio 30.15-20 e Lucas 14.25-33. O servir a Deus e pertencer ao Corpo de Cristo exigem de nós uma decisão em favor desse mesmo Deus que promo ve vida. Ingressar na Terra Prometida implica comprometer-se com uma nova ética, um novo modo de viver e encarar o relacionamento com Deus, com as pessoas e com a terra. Não se trata de uma mera postura piedosa e individual, mas é um discipulado (Lc 14), que espera comprometimento individual e tam bém de todo o entorno, a começar no lugar mais próximo, o lar, e abarcando todas as dimensões do viver.

Preparamos este auxílio homilético no decorrer do ano dois da pandemia por Covid-19. Não há um único aspecto da vida humana e de nossa existência no planeta que não tenha sido afetado. A economia mundial, já combalida, entra em grave colapso. A justiça ambiental – tema estudado pelo CONAJE ao longo de 2021, traz no seu âmago o clamor pela exaustão da natureza, hiperexplorada e poluída. A solidificação de uma visão cada vez mais polarizada e maniqueísta da realidade tem produzido um ambiente degradante de falta de diálogo e in tolerância. Há manifestações extremas de violência contra qualquer pessoa ou grupo que não comungue ideias e princípios. É um momento de cacofonia e alarido, onde só se falam todas as versões sobre todas as coisas, e aparente mente não há meios de chegarmos a consensos mínimos, nem mesmo sobre o mais urgente dos assuntos. Tornamo-nos senhores e senhoras de nossas próprias verdades. Somos A verdade sobre todas as coisas.

No exato momento da redação deste auxílio, o Brasil chega a recor des históricos de desemprego (<https://forbes.com.br/forbes-money/2021/05/ brasil-tem-desemprego-de-147-no-trimestre-ate-marco-diz-ibge>/), aumento da fome (<https://www.ecodebate.com.br/2021/05/21/a-pandemia-agravou-adesigualdade-de-renda-e-a-pobreza-no-brasil/>), violência nos lares, no campo, contra pessoas indígenas e contra pessoas LGBTIs.

O fraco engajamento da população brasileira e de outros países na adoção de condutas preventivas à disseminação da Covid-19 tem prolongado a dura ção da pandemia e tem possibilitado o surgimento de variantes mais mortais e transmissíveis do vírus.

As comunidades passam pela transição do modelo presencial para o híbri do, não sem sofrimento. Há, em alguns momentos, sentimento de desânimo, di ficuldades de manter a sustentabilidade dos Campos de Atividades Ministeriais (CAMs), bem como a interrupção ou suspensão de várias atividades, grupos e

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departamentos. Ao abrir este auxílio, em 2022, o quanto dessa situação terá me lhorado, piorado ou permanecido?

O texto da carta de Paulo a Filemom pode nos levar a refletir sobre o tema da escravidão, e como ele se apresenta atualmente: o subemprego, a falta de segurança alimentar, a falta de estabilidade no emprego, nas novas modalidades de trabalho, como a jornada intermitente, que precarizam ainda mais o emprego em nosso país. Também podemos falar da escravidão ideológica produzida por visões maniqueístas e polarizadas da realidade. Por fim, podemos olhar para as maiores vítimas dessa crise humanitária mundial: as pessoas vítimas de desemprego, violência, fome. Diante dessa reflexão, a resposta da comunidade de fé certamente vem da inspiração paulina: pessoas libertas, libertadas das realida des de escravidão, não apenas pela ação piedosa individual, mas por convicção de fé e compromisso de amor, essas são “úteis” para Deus, pois a sua libertação produz uma nova realidade, um novo relacionamento com a comunhão de fé e com a “nova terra” que habitamos (Dt e Lc). Diante de uma sociedade que se apoia em “verdades individuais absolutas”, sobressaem-se a carta de Paulo a Filemom, tão importante ao tratar do tema da libertação da escravidão e do compromisso com Deus, assim como as admoestações e apelos: Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência […] (Dt 30.19b); Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu discípulo (Lc 14.33).

4 Imagens para a prédica

A escravidão é um tema controverso até mesmo entre pessoas cristãs. Há pes soas que se dizem cristãs, mas apoiam situações ou realidades análogas à escravidão. Quais são as pessoas, os grupos e as situações mais afetados pela crise sa nitária e humanitária causada pela Covid-19? Agora, um ano antes desta prédica e culto serem preparados, podemos afirmar: mulheres negras, pessoas LGBTIs, povos indígenas e tradicionais (quilombolas e grupos que baseiam seu sustento na agricultura familiar), jovens que moram nas periferias e que têm dificuldade de acesso à formação no sistema híbrido. Essas situações, pessoas e esses gru pos, movidos pelo desamparo e pela fome, facilmente, estão sendo empurrados para situações de escravidão. A comunidade de fé que se sabe amada por Cristo não tem dúvida nenhuma de que o seu compromisso é com essas mais pequeninas irmãs e irmãos do Reino.

O movimento de Paulo, em sua carta, também carece do movimento da comunidade cristã, por meio da empatia, da compaixão, da diaconia, que visa aliviar os sofrimentos sem preconceitos, transformar realidades e promover a vigília e escuta atenta e constante em relação a todas as situações de sofrimento. Seria importante lembrar onde a diaconia está acontecendo, onde pode acontecer. Quem sabe trazer o testemunho de trabalhos e grupos que estão com prometidos com a diaconia transformadora, ligados ou não à igreja, mas que podem envolver, motivar, engajar.

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Subsídios litúrgicos

Hino: LCI 566 – Que estou fazendo?

Palavra de saudação: O campo de ação da pessoa cristã é o mundo. Aqui ela deve colocar a mão na massa, cooperar e agir, fazer aqui a vontade de Deus.

Por isso o cristão não é um pessimista resignado, mas alguém que vive, no mundo, alegre e animado. (Dietrich Bonhoeffer)

Súplicas – Kyrie 11 do Livro de Culto (p. 252)

L: Somos igreja amada e carregada por Deus. E Deus nos ama e carrega para darmos testemunho no mundo. Pois é neste mundo que muitas pessoas sofrem, gemem e clamam.

L1: Sofrem, gemem e clamam pessoas por causa do medo e da violência diante das armas.

L2: Sofrem, gemem e clamam pessoas porque as dádivas de Deus estão injus tamente repartidas.

L1: Sofrem, gemem e clamam pessoas porque há demais governantes que usam a política para favorecer seus compadres.

L2: Sofrem, gemem e clamam pessoas porque a religião é usada para enganar.

L1: Sofrem, gemem e clamam pessoas porque o testemunho das comunidades cristãs é tímido.

L: Reunidos em culto, unamos nossas vozes e roguemos ao Senhor: C: Pelas dores deste mundo, ó Senhor.

Para o momento da interpretação da palavra, se for possível o uso de material audiovisual, sugerimos que se compartilhe, do Portal Luteranos, ini ciativas diaconais que sejam promotoras de transformação social. São uma mo tivação para uma comunidade cristã compassiva e diaconal! Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/organizacao/missao-diaconia>.

Bibliografia

COMBLIN, José. Epístola aos Colossenses e Epístola a Filêmon. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1986.

HOEFELMANN, Verner. Auxílio homilético sobre Fm 9b-17(18-21). In: Procla mar Libertação. São Leopoldo: Sinodal. v. 29, p. 254-264.

LOHMEYER, Ernst. Der Brief an die Philipper, an die Kolosser und an Phile mon. 11. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1956.

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MARTIN, R. P. Colossenses e Filemom. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1984.

MARTINI, Romeu R. Auxílio homilético sobre Fm 9b-17(18-21). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1991. v. 17, p. 201ss.

STUHLMACHER, Peter. Der Brief an Philemon. Zürich: Benziger; Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1975.

DIA DA PÁTRIA

PRÉDICA: LUCAS 20.19-26 DANIEL 4.31-32,34 1 TIMÓTEO 2.1-7

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14º DOMINGO APÓS PENTECOSTES 11 SET 2022

1 Introdução

A alegria do encontro

PRÉDICA: LUCAS 15.1-10

ÊXODO 32.7-14

1 TIMÓTEO 1.12-17

As três leituras bíblicas para este domingo apontam para a misericórdia de Deus. No Antigo Testamento, a perícope de Êxodo 32.7-14 narra a conversa entre Deus e Moisés após o povo ter feito o bezerro de ouro para adorar. Inicialmente, Deus deseja castigar, descarregar sua ira para acabar com o povo. No entanto, Moisés intercede em favor do povo e Deus muda de ideia. Ele tem misericórdia do povo teimoso e cabeça dura, que se corrompe facilmente.

Já o evangelho traz duas parábolas das coisas perdidas (a ovelha e a moe da), dirigidas aos fariseus e mestres da lei que murmuravam contra Jesus por causa da sua atitude acolhedora em relação às pessoas pecadoras. Tal atitude era reprovada por aqueles que tinham conhecimento das leis de Deus e eram respon sáveis por seu ensino e aplicação. Porém Jesus procura mostrar que Deus vai ao encontro justamente daquela pessoa que está perdida e se alegra ao encontrá-la.

E, para completar, em 1 Timóteo 1.12-17, o pior dos pecadores, como Paulo assim se intitula, reconhece em sua vida a graça de Deus, que transbordou em Jesus Cristo. E, de perseguidor, ele passa a pregador. Sua própria história se torna exemplo para seus ouvintes.

2 Exegese

Jesus está viajando a caminho de Jerusalém. Durante essa viagem, Lucas registra diversos episódios, iniciando com “certa vez” ou “certa ocasião” (na si nagoga, na casa de um fariseu, na companhia de uma multidão). Em nosso texto, a ocasião é caracterizada pelo fato de Jesus reunir-se com pessoas de má fama (pecadoras) e tomar refeições com elas. Jesus, então, é criticado pelos fariseus e mestres da lei. Diante dessas críticas, ele conta três parábolas.

As parábolas são empregadas por Jesus como ponte de ligação entre a realidade do ser humano e a realidade do reino de Deus. Jesus não apenas fala sobre Deus em suas parábolas. Ele aproxima Deus dos seres humanos, a ponto de estes serem transformados pelo seu encontro com Deus. As parábolas de Lucas 15 pode riam ser chamadas de parábolas das coisas perdidas (a ovelha, a dracma e o filho) e estão conectadas com a própria compreensão de Jesus e seu ministério, conforme Lucas 5.29-32: Não vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento.

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O conjunto de três parábolas do capítulo 15 tem, em sua conclusão, pala vras voltadas aos mestres e fariseus que contestavam Jesus (Lc 15.25-32). Nossa perícope abarca as duas primeiras parábolas desse conjunto.

Os publicanos ou cobradores de impostos não eram benquistos, porque costumavam cobrar além do que era justo. Eles também representavam a opressão romana pelo sistema de coleta de impostos. Já as pessoas pecadoras eram aquelas consideradas sem lei. Estavam fora da sociedade israelita, seja por sua conduta, por levar uma vida de vícios, por não observarem todas as regras farisai cas, seja por apresentarem alguma condição que era tida como consequência de pecado (p. ex. deficiências, doenças, possessões).

Às pessoas excluídas Jesus se abre e abre as portas do reino de Deus. A afirmação dos fariseus e escribas de que Jesus comia com essas pessoas denota seu espanto. Participar de uma refeição indicava profunda comunhão e identificação entre as pessoas. O julgamento dos fariseus e escribas demonstra o quanto eles mesmos se consideravam justos e, de forma alguma, pecadores. Ao mesmo tempo, lhes parece que o próprio Jesus é um pecador por misturar-se com tais pessoas. O termo “este” para referir-se a Jesus (este aí recebe os pecadores e come com eles) no v. 2 demonstra seu desprezo.

O tema central dessas duas parábolas é a busca pelo que estava perdido e a alegria do reencontro. Essa alegria não se dá unicamente pelo reencontro com o pastor, mas com todo o rebanho, nem só pelo reencontro com a dona das moe das, mas pelo retorno da moeda perdida ao conjunto das dez moedas. Jesus deixa claro para aqueles que murmuravam sobre ele o porquê de ele ter comunhão com pessoas pecadoras. Elas pertencem a Deus e ao seu rebanho.

Será que alguém, de fato, largaria 99 ovelhas no campo para ir em busca de uma única ovelha que se perdeu? Qual o valor de uma ovelha? Fica claro pela narração de Jesus que uma ovelha representa grande valor. Assim também um pe cador arrependido. Tanto ou até mais do que 99 pessoas justas. Ovelhas forneciam carne, lã, pele e também eram usadas como sacrifícios (Ez 34.3). Das ovelhas pro vém o sustento do pastor e de sua família. Por isso um bom pastor levava a sério o seu trabalho e ia atrás das ovelhas desgarradas (Ez 34.12). O rebanho, novamente completo com o resgate daquela que estava perdida, é motivo de alegria. Essa ale gria é comunitária: do pastor, dos seus amigos e vizinhos e até de todo o rebanho, considerando que o povo de Deus é representado por esse rebanho.

A conjunção “ou” no início do versículo 8 conecta as duas parábolas, de maneira que a segunda não apresenta uma nova mensagem, porém sua essência se equipara à da primeira e a reforça. A mulher, assim como o pastor de ovelhas, investe todos os seus esforços para procurar sua moeda perdida. Uma dracma equi valia a um denário, que era o pagamento por um dia de trabalho. Com uma moeda era possível comprar alimento para dois dias, dependendo do tamanho da família.

A mulher trabalhou para receber seu salário. No entanto, vale ressaltar que essa dracma valia ainda mais para ela, pois as diárias das mulheres não tinham o mesmo valor das dos homens, chegando a pouco menos da metade do pagamento que era dado aos homens (SCHOTTROFF, 2007, p. 189). Ela “suou dobrado” para receber aquela moeda. Portanto as dez dracmas correspondiam ao paga

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mento por mais de vinte dias de trabalho. Assim, fica ainda mais claro o quanto a moeda perdida era importante para o sustento da mulher e de seus dependentes. Uma moeda, num total de dez, representava grande valor. Não pode ser compara do a perder uma moeda de um real, por exemplo.

A fala de Jesus no v. 8 (Ou qual é a mulher [...]) pressupõe que haja mulheres no grupo de ouvintes de Jesus. Além disso, Cristo coloca uma figura feminina como personagem principal da parábola, revelando marcas importantes na ação divina: zelo, trabalho, amizade e alegria.

É quase contagiante a alegria da mulher e de suas vizinhas e amigas. Da mesma forma que acontece com a alegria dos homens na parábola da ovelha, aqui também é valorizada a alegria conjunta. Provavelmente não houve festa e banquete, pois as condições não permitiam. Mas certamente houve conversa, co munhão e partilha. Mais uma vez encontrar a que estava perdida foi motivo de alegria para muita gente. Mais uma vez Jesus apresenta a alegria de Deus ao encontrar quem estava perdido. Alegria partilhada é alegria multiplicada. Deus se alegra, os anjos se alegram, nós nos alegramos.

3 Meditação

Três verbos se repetem nessas parábolas: perder, achar e alegrar-se. Esses verbos podem formatar a estrutura da pregação. Perder-se ou estar perdido refere -se ao ser humano em sua condição de pessoa pecadora, afastada de Deus e da comunhão com irmãos e irmãs na fé. A ovelha encontrava-se longe do rebanho. Podemos relacioná-la com as pessoas que se encontram afastadas da comunidade ou que não querem saber do evangelho, ou até mesmo que ainda não conhecem a boa-nova. Para os mestres da lei e fariseus, essa ovelha era a pessoa de má fama e o publicano. E para nós, quem são as pessoas que consideramos ovelhas perdidas? Antes de tudo, é necessário reconhecermos que não cabe a nós realizar nenhum tipo de julgamento entre as ovelhas.

Interessante destacar que a moeda estava perdida dentro da casa de sua dona. Assim também há pessoas que se encontram perdidas mesmo que estejam dentro das igrejas. Até mesmo aquela pessoa que se considera uma cristã exem plar pode estar, na verdade, perdida, se ela coloca sua confiança em si mesma. Somos pessoas justas e pecadoras simultaneamente. Facilmente podemos cair na tentação de entender que somos unicamente parte das nove moedas ou das 99 ovelhas (as pessoas justas) que não se perderam. Quando, na verdade, também somos aquele ou aquela perdida que precisa ser achada.

A murmuração não nos torna mais santos e santas. Sobre o que são os nossos murmúrios? Murmúrios ferem e podem facilmente tornar-se violência em nossa sociedade polarizada, que está perdendo a capacidade de dialogar e de sen tir compaixão. O desafio, a partir da fé, é acolher assim como Deus nos acolheu, ir ao encontro sem murmurações e com o coração aberto.

Achar é ação divina. O pastor e a mulher que vão em busca das suas coisas perdidas são metáforas para Deus, em sua busca pelo ser humano perdido. É Deus quem acha! Deus nos achou por meio de Jesus, seu Filho, enviado para encontrar

278 14º Domingo após Pentecostes

o ser humano que está no buraco, no fundo do poço, perdido. Jesus Cristo é o bra ço estendido de Deus que apanha a moeda caída, é o bom pastor que traz a ovelha de volta para casa. Em Cristo, Deus demonstra atenção para com cada ovelha e cuidado para com todo o rebanho.

Sua vida, morte e ressurreição reconciliaram-nos com Deus e também com as outras pessoas. Deus realiza a ação de achar a pessoa perdida por meio da sua igreja, da pregação da palavra, dos sacramentos, da diaconia e da evangelização. Somos ovelhas que podem participar da busca. Somos moedas que atraem a que está perdida.

Já o verbo alegrar-se está relacionado à alegria celeste, de Deus e de seus anjos, porém também podemos compreendê-la como uma alegria coletiva esten dida a nós. O contraste entre os números um e 99, bem como a conduta do pastor de deixar as 99 para ir em busca de uma perdida são empregados por Jesus para expressar a dor da perda – tão grande que mobiliza uma busca – e a alegria pelo reencontro – tão expressiva que se estende aos amigos e vizinhos (SCHNELLE, 2010, p. 123). Os termos gregos para o verbo alegrar-se trazem consigo o prefixo syn, indicando o caráter comunitário da alegria. É um convite para alegrar-se em conjunto. Deus se alegra por resgatar quem estava perdido e estende o convite para nos alegrarmos com ele.

Trata-se de uma alegria de caráter escatológico, pois aponta para a reali dade na plenitude do reino de Deus. Todavia, já é também alegria experimentada aqui. Felicidade e alegria já agora, mesmo em meio à dura realidade. Que alegria saber que Deus acolhe todas as pessoas em seu rebanho! Que alegria saber que todas as pessoas são de grande valor para Deus. Deus vai reunir todo o seu povo, as pessoas perdidas e justas. Essa grande festa não será lugar para o ser humano julgar quem merece ou não estar ali, qual pessoa é digna ou não. Pelo contrário, será lugar de uma grande alegria para todos.

A parábola que vem em sequência, nos versículos 11-32, fecha esse bloco também narrando uma festa. E assim Jesus mais uma vez ressalta a alegria do Pai pelo retorno daquele que estava perdido. Mais uma vez a festa é comunitária e o convite está aberto. Se é convite, há a opção de participar da festa ou não. O que iremos escolher? Não somos todas nós também pessoas pecadoras que foram recebidas pelo Deus amoroso e gracioso? Vamos colocar-nos entre o grupo dos que murmuram e julgam, que reclamam e excluem? Ou nos deixaremos contagiar pela alegria do Reino, alegria conjunta pela salvação e pela comunhão proporcionadas por Jesus?

4 Imagens para a prédica

Para ler ou encenar pela pregadora (se for uma mulher) ou por uma mulher da comunidade ou ainda gravar e transmitir no culto:

Alegrem-se comigo! Amigas, venham! Alegrem-se comigo! Entrem e vamos conversar!

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14º Domingo após Pentecostes

Eu já vou contar o motivo de tanta alegria: lembram como ontem vocês me viram aflita? Pois eu estava com um peso enorme sobre os ombros.

Vocês sabem o quanto cada uma aqui trabalha duro. As coisas não estão fáceis para nenhuma de nós e colocar o pão na mesa de nossas crianças é nossa maior preocupação. Nem sempre nosso trabalho tem pagamento justo. Nem sempre conseguimos trabalho todos os dias. Quem é diarista como eu sabe bem como é! Imaginem como é perder uma parte desse salário! Foi o que me aconte ceu. Quando fui pegar as dez moedas que recebi neste mês e que havia guardado na minha carteira, adivinhem! Apenas nove estavam lá! Onde estaria a décima moeda? Será que perdi na rua? Será que fui roubada? Não me lembro de ter tirado nenhuma delas daqui! Só pode ter caído em algum canto da casa.

Procurei em todos os lugares, dentro do armário, no bolso do casaco. Varri toda a casa. E nada de encontrá-la. Já era tarde, mas antes de pensar em desistir, acendi uma lamparina e achei a moeda que faltava! Ela estava embaixo da cama! No fim das contas, ela nem estava tão longe assim das demais. Apenas escondida, perdida por um momento.

Há quem pense que era só uma moedinha. Mas vocês sabem que não! Vocês compreendem o valor de cada moeda para mim, o quanto cada uma significa.

Ah, minhas amigas! Que bom compartilhar essa alegria com vocês! Sei que vocês me entendem e sua companhia neste momento me deixa ainda mais contente! Sabem, estive pensando sobre isso ontem à noite, depois que encontrei mi nha moeda perdida: assim também é Deus! Ele sente uma alegria imensa quando uma pessoa se arrepende dos seus pecados.

5 Subsídios litúrgicos

Oração do dia: Deus de amor e bondade. Em tua graça infinita, acolhes cada pessoa, ainda que sejamos orgulhosas, desobedientes, egoístas, fracas na fé e no amor. Tu nos acolhes e nos perdoas sem que o mereçamos. Envia a nós o teu Espírito Santo, para tornar nossos ouvidos abertos à tua Palavra, nossa mente despojada de nossos preconceitos, nossos corações dispostos à alegria e à comunhão. Em nome de Jesus Cristo, que vive e reina, e na unidade do Espírito Santo é que te pedimos. Amém.

Sugestão de hinos: Corações em fé unidos (LCI 13); Sou cordeiro de Jesus (LCI 600); Meu bom pastor (LCI 619); Alegrai-vos sempre no Senhor (LCI 153); En sina-nos, Senhor (LCI 112).

Bibliografia

SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010.

SCHOTTROFF, Luise. As parábolas de Jesus: uma nova hermenêutica. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

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14º Domingo após Pentecostes

PRÉDICA: AMÓS 8.4-7

LUCAS 16.1-13

1 TIMÓTEO 2.1-7

15º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Ouvi!

1 Introdução

Amós, originário de Tecoa, um povoado ao sul de Jerusalém, era homem do campo. Ganhava a vida como vaqueiro e riscador da fruta do sicômoro, uma espécie de figueira (7.14). Esta atividade consistia em talhar a fruta ainda verde a fim de que se extraísse parte do suco amargo, deixando a outra porção para ser transformada em açúcar. Parece que Amós não estivera ligado nem a santuários e palácios nem a confrarias de profetas (7.14), porém, tal qual a pessoa que tremia ao ouvir o rugido do leão, profetizou porque ouvira a palavra do Senhor YHWH (3.8). Conforme veremos a propósito de Amós 8.4-7, sua profecia se destinava à defesa das pessoas empobrecidas em Israel (ZENGER, 2003, p. 490-491).

As duas leituras, Lucas 16.1-13 e 1 Timóteo 2.1-7, vinculam-se ao texto da prédica provavelmente por meio dos temas da fraude e da pregação. Lucas 16.1-13 é a parábola sobre o administrador que, sob acusação de roubo e ameaça de de missão, favorece dois devedores de seu senhor com descontos nos valores das dívidas, esperando com isso que lhe retribuíssem quando precisasse. Com essa história, Jesus recomenda aos seus discípulos que usem prudentemente as rique zas da iniquidade fazendo amigos que possam recebê-los futuramente nas tendas da eternidade. Lucas 16.13 possivelmente fornece a chave para a compreensão: trata-se de submeter o uso do dinheiro a serviço de Deus e do seu reino, em vez de se tornar escravo do dinheiro. 1 Timóteo 2.1-7, por seu turno, enfatiza a oração e a pregação sobre Cristo Jesus como práticas cristãs indispensáveis para o cumpri mento da missão apostólica, que é levar todas as pessoas à verdade e à salvação.

2 Exegese

Esse oráculo do livro de Amós, ainda que se valendo de uma estrutura básica muito simples, comunica uma mensagem fortemente consternadora. A composição possui apenas duas partes: uma chamada para ouvir (8.4-6) e uma declaração conclusiva (8.7). Como é característico desse tipo de pronunciamen to profético, qualificado habitualmente como oráculo de juízo (LIMA, 2004, p. 190), há uma acusação e uma sentença. O que chama atenção, porém, é que se identificam diretamente por suas ações reprováveis aqueles que são chamados para ouvir. Ademais a sentença não envolve a explicitação de alguma desgraça que concretizaria o juízo divino contra os culpados. Assevera-se, em lugar disso,

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18 SET 2022
Ruben Marcelino Bento da Silva

que YHWH jamais esquecerá o que os acusados fizeram. Vamos agora observar mais de perto essa breve unidade literária.

V. 4 – O imperativo shim‘û (Ouvi!) instaura a comunicação do orador com aqueles a quem se dirige. Esse recurso linguístico de apelo a alguém se chama apóstrofe e, com o verbo hebraico shāmá‘ (ouvir), tanto ocorre outras vezes em Amós (3.1,13; 4.1; 5.1) e demais livros proféticos (por exemplo, Os 4.1; Mq 3.1; Is 1.10; Jr 7.2) como integra uma das mais importantes formulações teológicas da Torá (Dt 6.4-5): Shemá‘ Iśrā’ḗl YHWH ’elōhếnû YHWH ’eḥád. We’āhavtá ’ēt YHWH ’elōhéykā bekol-levāvká ûvekol-nafsheká ûvekol-me’ōdékā. (Ouve, Israel: YHWH, nosso Deus, é um só YHWH! Portanto amarás YHWH, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua vida e com toda a tua força!). Constata -se, desse modo, que se trata de um elemento estilístico muito significativo.

E quem é chamado para ouvir? Conforme assinalado anteriormente, são pessoas cuja identidade é associada aos atos de que estão sendo acusadas: hashshō’afîm ’evyốn welashbît ‘anwê-’árets ([vós] que pisais o necessitado, a fim de exterminar os oprimidos da terra). Imputam-se-lhes feitos terrivelmente hostis que cometiam contra determinada porção social, a qual, neste e no v. 6, é referida com as palavras ’evyốn (necessitado), ‘anāwîm (oprimidos) e dallîm (fracos). “Esses três termos são, em Amós, os mais importantes para designar as pessoas e os grupos, em defesa dos quais vai sua profecia” (SCHWANTES, 2004, p. 88). Com base em 2.7, pode-se atribuir ao verbo shā’áf o sentido de “pisar”. A Bíblia de Jerusalém é mais enfática e o traduz por “esmagar”. Por sua vez, o verbo shāvát (na modalidade ativa causativa [hifil]: “fazer cessar”, “exterminar”), em outros contextos, indica a cessação dos sons efusivos dos instrumentos musi cais, o emudecimento do burburinho das pessoas em festa e o desaparecimento da alegria das danças por causa da destruição de uma cidade (cf. Is 24.8; Lm 5.15). Aqueles, pois, contra quem a fala da profecia se volta deixavam atrás de si um rastro de vítimas por onde passavam.

V. 5 – A descrição dos acusados continua, agora os caracterizando por aqui lo que dizem. Nessa fala deles destacam-se basicamente estas duas coisas: uma preocupação e um comportamento. Preocupam-se por causa de duas ocasiões específicas: a lua nova ou neomênia (ḥṓdesh; de ḥādásh, na modalidade ativa intensiva [piel]: “renovar”) e o sábado (shabbát; de shāvát, na modalidade ativa simples: “cessar” e, em decorrência, “descansar”). A lua nova ocorria no primeiro dia do mês de tishrî ou ’ētānîm, o sétimo mês do calendário religioso, enquanto que o sábado encerrava o ciclo semanal. Os textos bíblicos referentes a esses dias os designam como dias de repouso, tempos sagrados e momentos festivos, nos quais se proibiam desde tipos peculiares até quaisquer formas de trabalho, tanto de seres humanos quanto de animais não humanos (Êx 20.8-11; 23.12; 34.21; Lv 23.23-25; Nm 10.10; 15.32-36; 29.1-6; Dt 5.12-15; 1Sm 20.5,18,24; 2Rs 4.22-23; 11.5-8; 16.18; Os 2.13[11]; Is 1.13-14; 66.23; Jr 17.21-27; Ez 46.1-12; Sl 81.4[3]; Ne 10.32; 13.15-22). Inclusive, como justificativas teológicas para a reverência ao sábado, Êxodo 20.11 e Deuteronômio 5.15 oferecem, respectivamente, a santificação do sétimo dia por YHWH após ter criado os céus e a terra em seis dias e a escravidão no Egito, da qual YHWH libertou Israel poderosamente.

282 15º Domingo após Pentecostes

Note que aqueles que estão sendo apontados pelo discurso profético es peravam pelo fim da lua nova e do sábado precisamente porque estavam impe didos de realizar sua atividade econômica por conta da exigência sociorreligiosa associada àqueles dias. Mas que atividade era essa? Eles diziam que aguardavam para pôr o grão à venda e abrir o trigo, isto é, abrir a saca do cereal e oferecê-lo aos compradores. Tratava-se, pois, de comerciantes (SCHWANTES, 2004, p. 60). Ao negociar seu produto, todavia, comportavam-se de maneira desonesta, mostrando-se ansiosos para tornar o ’êfấ menor, para tornar o shéqel maior, para fraudar com balanças de falsidade. De acordo com Wolff (1977, p. 327), o ’êfấ, unidade de medida para sólidos, equivalia a cerca de 40 litros, enquanto o shéqel, correspondente a aproximadamente 11,5 gramas, era usado para calcular numa balança a quantia da prata relativa ao valor da compra. Logo, mediante adulteração do sistema de cálculo, aqueles comerciantes superfaturavam a mercadoria, lesando os compradores.

V. 6 – Esse versículo e o anterior exibem juntos um recurso estilístico chamado inclusão (PAUL, 1991, p. 259), que é quando uma “[...] palavra, uma frase ou um conceito presente no início reaparece no fim e funciona como um enquadramento, que delimita e encerra tudo o que ficou ‘incluído’ entre elas [...]” (SILVA, 2000, p. 74). O esquema a seguir ilustra isso:

Dizendo:

5aα2 Quando passará a lua nova, a fim de pormos à venda o grão, A 5aβ e o sábado, a fim de abrirmos o trigo, B

5bα para tornar o ’êfấ menor, para tornar o shéqel maior, C 5bβ para fraudar com balanças de falsidade,

6aα para comprarmos com a prata o fraco 6aβ e [para compramos] o necessitado por um par de sandálias, C’ 6b e o refugo do trigo B’ pormos à venda? A’

283
5aα1
15º Domingo após Pentecostes

A estrutura literária da composição revela ainda um arranjo característico da poesia bíblica conhecido como quiasmo, que “[...] consiste em organizar o texto em dois períodos consecutivos, de modo que, no segundo período, reapa reçam os mesmos signos ou elementos do primeiro, mas em ordem inversa (a-b-b’-a’) [...]” (SILVA, 2000, p. 162). Além do conteúdo, observe principalmente a sequência das palavras wenashbírâ (a fim de pormos à venda [o grão]) e bār (tri go) em 5aα2-5aβ, a qual se repete em 6b, porém invertida. Desse modo, 5aα2-5aβ e 6b formam uma moldura redacional e conjuntural para a inclusão de 5bα-6aβ. Ao lado da falsificação de medidas e balanças, outra prática lamentável também estava vinculada ao âmbito das atividades dos acusados: a mercantilização de pessoas transformadas em escravos. Com base em passagens como Amós 3.9-10; 4.1 e 5.11, Schwantes (2004, p. 90-96), descrevendo o cenário socioeconômico durante o governo de Jeroboão II no Norte (788-747 a.C.), aponta que tanto o Estado monárquico quanto o luxo das elites citadinas e o lucro de negociantes eram sustentados pela contínua extorsão dos produtos dos trabalhadores do campo.

A situação desses lavradores empobrecidos é grave. Em 8,4-6, obtemos um quadro de sua fome. Denunciam-se aí os comerciantes, em particular talvez os pequenos mercadores. Os “pobres” aparecem como fregueses principais desses vendedores afoitos e gananciosos. Espoliados e empobrecidos tornam-se presa fácil, quando necessitam adquirir de terceiros sua comida de cada dia. São aniquilados (v. 4), transformados em mercadoria (v. 6), em escravos. A escravidão dos lavradores deve ter abalado nosso profeta de maneira muito intensa. Afinal, menciona-a diversas vezes. Denuncia a transformação de pobres em escravos por causa de suas dívidas [...] “Prata” e “par de sandálias” são o preço da mercadoria chamada lavrador es cravizado. A vida de tais pessoas era degradante (SCHWANTES, 2004, p. 92-93).

V. 7 – A sentença divina contra os acusados vem na forma de um juramen to. A expressão gue’ốn ya‘aqṓv (o orgulho de Jacó) assume um sentido negativo em 6.8, o que possivelmente é também o caso aqui. De modo irônico, YHWH estaria, por conseguinte, jurando pela mesma arrogância que as palavras dos acu sados ostentavam (PAUL, 1991, p. 260). E o juramento é este: Não esquecerei jamais quaisquer de suas obras. Nessa declaração, emprega-se a lítotes, ou seja, uma figura de linguagem em que se afirma algo mediante a negação do contrá rio. É o mesmo que dizer isto: “Eu me lembrarei sempre de suas obras todas”. É curioso que essa associação entre lembrança e obras aparece também no mandamento do sábado (Êx 20.8-11). Lembrar (zākar) o sábado significava abster-se de fazer (‘āśấ) qualquer trabalho nesse dia. Assim, ficavam garantidos o descanso e a dignidade para seres humanos e animais não humanos, circunstâncias que re fletiam a sabedoria e a bondade de Deus (Êx 23.12; 34.21; Dt 5.14-15). Segundo essa perspectiva, o trabalho não deveria ser alienante, mas promover a vida. Por isso é possível entender que, com o juramento de que não esqueceria (shākáḥ é antônimo de zākar) quaisquer das obras (ma‘aśîm) dos que estavam sendo acusa dos no oráculo profético, YHWH demonstrava sua veemente oposição à conduta ultrajante deles. Por serem desprovidos de generosidade, probidade e compaixão,

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15º Domingo após Pentecostes

não admira que aqueles comerciantes estivessem contrariados por causa da lua nova e do sábado!

3 Meditação

Ouvi! A ganância é mortal!

Os acusados no oráculo profético deixaram-se dominar pela ambição, de maneira que para eles o trabalho e as pessoas perderam seu valor autêntico. Trabalhar tornara-se atividade subordinada ao desejo exclusivo de lucrar a qualquer preço, uma desfiguração do empenho por subsistência e liberdade. Pessoas fo ram convertidas em utensílios para provimento do indivíduo, não importando que para isso fossem roubadas, escravizadas, abusadas. Em decorrência das atrocidades cometidas contra grupos vulneráveis, o tecido social em Israel do Norte tornara-se tão apodrecido, que o profeta Amós receberia de Deus o comunicado de uma resolução tenebrosa: Chegou o fim para Israel, meu povo! Não tornarei novamente a passar sobre ele! (8.2b; cf. 7.8). É importante reparar que esse anúncio de que não haveria mais perdão faz parte da visão do cesto de frutos de verão (8.1-3), passagem bíblica que vem imediatamente antes desta que ora estudamos. Com sua ganância, pois, os comerciantes acusados não só desgraçaram as vidas daquelas e daqueles a quem exploravam, mas também contribuíram para o des mantelamento permanente da sociedade israelita. De fato, o fim chegou em 722 a.C., quando os neoassírios invadiram e derrubaram o reino de Israel do Norte, deportando milhares de pessoas para a Mesopotâmia e a Média. Elas nunca mais voltaram (DONNER, 2010, p. 361).

Ouvi! Deus se opõe a situações de opressão e desigualdade!

A lua nova e o sábado eram momentos para celebrar a vida. É significativo que os israelitas tenham associado a festividade e a alegria em comemoração dos produtos hauridos do trabalho com a devoção ao Sagrado mediante a fixação de momentos para interrupção da rotina diária. Como fundamento do ser, YHWH era visto como doador de tudo que era necessário para a manutenção da integri dade e paz do seu povo. Portanto era justo que todas e todos não só trabalhassem, como também experimentassem tempos de repouso durante os quais pudessem usufruir dos resultados do trabalho. Sábado é descanso (shabbát)!

Ao contrário, as ações dos que são denunciados pelo oráculo profético pri vavam muitos de seu sustento digno, relegando mulheres e homens à miséria, à marginalidade, à morte. Pensando apenas em seu próprio benefício, cooperavam para fazer desaparecer (shāvát, no sentido ativo causativo) da terra aquelas pes soas oprimidas. Em vista disso, Deus jurara jamais esquecer o que os comercian tes acusados haviam feito. YHWH se mostrava solidário com a gente sofredora e injustiçada!

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15º Domingo após Pentecostes

Imagem para a prédica

Um conto brasileiro fascinante diz que dois lenhadores iam à mata para cortar árvores que usariam para fazer carvão. Tonho tratava bem a natureza, ten tando retirar das árvores somente o que precisava, com todo cuidado, de modo a causar o menor dano possível. Todavia Chico não só destruía a vegetação, mas também, vez por outra, matava um animal para treinar pontaria. Num dia, Tonho foi sozinho à floresta e se encontrou com o Caipora, o deus das matas de pés vi rados para trás. Este lhe pediu fumo e o lenhador lhe deu. Mais tarde, ao queimá-la no forno, percebeu que obtivera da lenha um carvão de excelente qualidade. Pensou, então, que fora agraciado pelo deus das matas. Mesmo assim, decidiu não voltar mais à mata. Chico, com inveja dele, foi à mata. Quando viu o Cai pora, ofereceu-lhe fumo para conseguir também o carvão milagroso. O Caipora, enfurecido, atacou o lenhador. Foi então que uma nova assombração começou a aparecer na floresta: um homem que vagava virado pelo avesso (GUIMARÃES; JUNQUEIRA; ABDALLA, 1988, p. 17-24).

A partir desse conto, sugiro fazer pontes com o texto de Amós por meio dos seguintes temas: trabalho colaborativo e construtivo; compaixão e solidariedade; relação entre a divindade e a vida; ganância como desumanização.

5 Subsídios litúrgicos

Sugestão de hinos: HPD 2, 381 – Pela palavra de Deus (antes da prédica); HPD 2, 417 – Igreja que serve (após a prédica).

Bibliografia

DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2010. v. 2.

GUIMARÃES, Ruth; JUNQUEIRA, Sonia; ABDALLA, Sandra. Caipora, o pai -do-mato. In: URIBE, Verónica (Ed.). Contos de assombração. Coedição Latino-americana. Trad. Neide T. Maia Gonzalez. 4. ed. São Paulo: Ática, 1988. p. 17-24.

LIMA, Maria de Lourdes Corrêa. Exegese bíblica: teoria e prática. São Paulo: Paulinas, 2014.

PAUL, Shalom M. Amos: a commentary on the book of Amos. Minneapolis, MN: Augsburg, 1991. (Hermeneia).

SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras: reflexão e es tudo sobre Amós. São Paulo: Paulinas, 2004.

SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo: Pau linas, 2000.

WOLFF, Hans Walter. Joel and Amos: a commentary on the books of the prophets Joel and Amos. Translated by Waldemar Janzen, S. Dean McBride, Jr., and Charles A. Muenchow. Philadelphia, PA: Fortress, 1977. (Hermeneia).

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4
15º Domingo após Pentecostes

Domingo após Pentecostes

ZENGER, Erich. O livro dos Doze Profetas. In: ZENGER, Erich et al. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Werner Fuchs. São Paulo: Loyola, 2003. p. 460-544. (Bíblica Loyola, 36).

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15º

16º DOMINGO APÓS PENTECOSTES 25 SET 2022

PRÉDICA: LUCAS 16.19-31

AMÓS 6.1a,4-7 1 TIMÓTEO 6.6-19

Os Lázaros à nossa porta

1 Introdução

Este texto acerta em cheio. Ele toca diretamente o coração. Há mais de um ano eu vejo como Lázaro está sentado em frente à minha casa. E como gostaria de saciar sua fome com restos de comida. É o ano de Covid-19. É o primeiro ano da pandemia ou quem sabe o ano um desde o surgimento da pandemia. Pois, no momento em que redijo este artigo, está totalmente incerto em que direção se desenvolverá a situação. Há mais de um ano observo como aumenta o número de pessoas que batem à porta das casas e pedem por ajuda. Tornam-se mais insisten tes, mais desfigurados, marginalizados e arruinados. Eu observo isso, converso com as pessoas e procuro estabelecer relações: com informações e esclarecimentos por parte de colegas na EST ou com vizinhos. Cada vez mais pessoas per dem seus empregos, resvalando em situações ainda mais precárias. Por causa da pandemia tornaram-se ainda mais vulneráveis e descartáveis. Eu observo como muda a maneira de as pessoas pedirem por algo. Tornam-se mais insistentes e exigentes. As histórias que contam para justificar os pedidos tornam-se mais crassas e aventureiras. Mas, ao mesmo tempo, eu observo como eu mesmo me transformo ao longo desse ano. A garagem, o portão da rua, que seguidamente permaneciam abertos possibilitando o diálogo com vizinhos, permanecem cada vez mais trancados. São fechados por dentro. Eu percebo uma consciência suja em mim mesmo por ter a possibilidade de solicitar o fornecimento das compras diretamente em casa. E por haver outras pessoas que precisam prestar esse servi ço para mim, correndo o risco de se expor a uma contaminação por Covid-19. Eu percebo como estou ficando cada vez mais nervoso e como as pessoas que batem mais insistentemente à minha porta me irritam. Um processo de mudança, uma transformação em mim mesmo que, na realidade, não me agrada.

Ao mesmo tempo eu me sinto desamparado, entregue. Como estrangeiro, forasteiro; como alguém que só entende pela metade as regras que regem a sociedade. Como alguém que, em meio à pandemia, com todas as imprevisibilidades, tem a responsabilidade não só por si mesmo, mas também por sua família. Estou entregue e exposto às divisões políticas e sanitárias no país em que estamos vi vendo. E às irresponsabilidades associadas a elas.

Será que não estamos nós dois desfigurados? Lázaro diante da porta e eu mesmo? Esse texto toca diretamente no coração! Pois a história do homem rico e do pobre Lázaro se enquadra na minha situação e ao mesmo tempo não. Enquadra

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Heiko Grünwedel

-se, porque lá e cá tem os dois lados. Pessoas que estão separadas e só se comu nicam à margem. Ela não se enquadra comigo, porque – assim eu penso – eu não ofereço grandes festas e não me visto com roupas caras. E mesmo assim ele bate na minha porta: Lázaro.

O texto fala ao meu coração e por isso lança questionamentos inquietantes: onde está o evangelho, a boa nova desse texto aparentemente tão duro? Com quem eu posso me identificar e que porta ele está querendo abrir para mim? Para que ele quer me encorajar? Para que ele me fortalece e com que me capacita?

2 Exegese

O texto toca diretamente o coração. Por isso convém dar novamente um passo para trás e apreciá-lo à distância, num horizonte mais amplo. A opção para tal é a exegese.

Inicialmente algumas observações com relação a local, contexto e estrutu ra do texto.

Lucas 16.19-31 faz parte do relato de viagem ou também chamado de grande inserção no Evangelho de Lucas (9.51 – 19.27). Portanto a presente perícope faz parte da tradição exclusiva de Lucas, um texto único sem versão paralela nos outros evangelhos.

O tema central da riqueza no Evangelho de Lucas, ou melhor, o correto trato com a mesma, marca todo o capítulo 16. Esse capítulo poderia ser o ou, no mínimo, um enfoque central de todo o relato de viagem. Contornam esse capítu lo, por um lado, o relato do envio dos setenta discípulos no cap. 10, bem como as três parábolas da ovelha perdida, da moeda perdida e do filho pródigo, no cap. 15. Por outro lado, nos cap. 17 e 18, constam as orientações aos discípulos em que a relação entre riqueza e discipulado é tematizada novamente sob duplo enfoque: o perigo da riqueza representado pelo jovem rico (cap. 18) e as possibilidades de salvação no exemplo de Zaqueu (cap. 19).

O texto de Lucas 16.19-31 segue uma estrutura simétrica espelhada das partes: os v. 19-21 descrevem a vida do rico e de Lázaro no aquém. Os v. 22-23 apresentam a mudança de maneira que a morte de ambos passa a ser o ponto de mudança de foco. Os v. 24-31 relatam o diálogo do rico com Abraão no além. Esse diálogo segue uma sequência de três partes: v. 24-26, v. 27-29 e v. 30-31.

Essa artística estruturação literária feita pelo evangelista não é mera coincidência, mas está a serviço da contraposição contrastante de ambos os perso nagens: de um lado, Lázaro (em hebraico Elazar/Eleazar – “Deus ajuda”/“Deus ajudou”), o único personagem no Novo Testamento que é citado com o próprio nome numa parábola. Do outro lado se encontra o contraente, que, como em geral nas parábolas é apresentado como “um certo homem”, aqui é caracterizado como “um rico”.

Essa contraposição do “sem nome” com quem é denominado nominalmen te pelo seu nome é continuada pela descrição de suas condições de vida: enquanto um se veste com roupas caras de púrpura, no outro o que cobre o seu corpo são chagas. Essa situação cruel ainda é acentuada pela imagem dos cães de rua, que,

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na procura por comida, lambem as feridas, e que o pobre Lázaro enfraquecido nem consegue espantar. Diariamente o rico pode se deleitar com lautos banque tes. Lázaro, que jaz à frente de sua porta, não recebe nem parte da profusão ou os restos que caem da mesa do rico.

A descrição do contaste é continuada depois da morte de ambos. Enquanto durante a vida o rico não toma conhecimento de Lázaro, sequer menciona o seu nome, ele o descobre a partir de sua atual situação fatal como possível ajudador e inclusive lhe dirige a palavra com o seu nome.

Mediante a leitura da perícope, o leitor atento do Evangelho de Lucas pode redescobrir diversos temas e motivos, para os quais o evangelista já o sensibili zara anteriormente. Essas referências textuais e relações temáticas poderiam ser expostas exemplarmente na prédica. Com isso poderia ser acolhida a dinâmica mais ampla do Evangelho de Lucas e a ressonância dos outros textos de temática semelhante poderiam ser contextualizados:

• A mudança radical das condições de rico e pobre (Lc 1.51-53)

• A bem-aventurança dos pobres no reino de Deus (Lc 6.2-26)

• O correto cuidado e a relação para com a propriedade (Lc 12.13-34)

• As consequências de não querer fazer parte do reino de Deus (Lc 13.28)

• O grande banquete e o desafio para convidar os pobres (Lc 14.12-24)

• A injustiça das riquezas (Lc 16.10-13)

• A validade da lei e dos profetas (Lc 16.16-17)

• Seguimento e as consequências para com a riqueza (Lc 18)

• A possibilidade de arrependimento e salvação dos ricos, veja Zaqueu (Lc 19.1-10)

• A comunhão de bens da comunidade primitiva (At 2.44s) e dos crentes (At 4.32-37)

3 Reflexão sistemática

Com base nessas considerações e contextualizações bíblico-exegéticas, podemos concordar com a tese de Mineshige (2003): como nenhum outro evan gelista, Lucas revela grande interesse no tema da pobreza e riqueza. Segundo Mineshige, isso se evidencia, entre outros aspectos, no fato de que o anúncio público de Jesus inicia com a afirmação de que a missão dada por Deus a Jesus é anunciar o evangelho aos pobres. E ao mesmo tempo a postura de Lucas se situa numa tensão constante: por um lado, os pobres são avaliados positivamente; por outro lado, há a conclamação para um trato responsável com bens, ou seja, ele pressupõe a posse de bens.

O que isso significa para uma reflexão sistemática do presente texto de Lucas 16.19-31 com a finalidade de detectar a dimensão específica desse texto dentro dessa dinâmica geral?

Sob a consideração específica de uma perspectiva luterana, podemos des tacar os três seguintes temas centrais:

1. A fé é para nós orientação e ânimo para a percepção.

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2. Jesus aprofunda a nossa consciência em relação ao poder inconsciente da riqueza sobre nós.

3. Deus cria uma feliz mudança de perspectiva: a justificação e bem-aven turança de Lázaro (constatação da justiça externa).

A fé é para nós orientação e ânimo para a percepção

A perícope de Lucas 16.19-31 nos oferece, com as diversas mudanças de perspectiva, uma pequena instrução na fé em relação à percepção. Um exercício para ver o outro e a si mesmo. Um estímulo à disposição de permitir que as con dições de vida do outro se acheguem a mim.

O rico, na primeira parte da perícope, está totalmente envolvido com seus banquetes e o olhar voltado para suas caras vestes, de maneira que nem toma conhecimento de Lázaro que jaz à sua porta e pede por restos de comida. Ele não dá atenção a ele e, desta forma, também não admite a existência de pessoas nessa situação de pobreza. Por isso também não o conhece pelo nome e para ele é inconcebível que Deus possa ajudar justamente uma pessoa miserável dessas como está expresso no nome de Lázaro (em hebraico: Elazar/Eleazar – “Deus ajuda”/“Deus ajudou”). A menção do nome da pessoa como sinal de redenção (Is 43.1) aparece, portanto, aqui em sentido negativo. A indiferença que o rico de monstra, preso à sua riqueza, à sua impossibilidade de ver, não tem consequências apenas para Lázaro, mas também para o próprio rico: o fato de que ele, após a sua morte, no mundo dos mortos, de repente deseja se dirigir diretamente a Lázaro e até o chama pelo nome, tudo isso, porém, somente após a sofrida experiência no mundo dos mortos, evidencia também que anteriormente o acesso a si mesmo, ao seu íntimo, estava bloqueado.

Portanto a perícope nos anima a aprender a ver as outras pessoas e a si mesmo. Qual poderia ser a minha participação interior nessas condições distorci das? O que importa ser ouvido de dentro do meu interior o que tão seguidamente é sufocado pelas riquezas as mais variadas? A que eu poderia ser seduzido a ver antes que seja tarde, como o próprio texto sugere, e tenha surgido um abismo por cima do qual nenhuma percepção se torna possível?

Na realidade, para produzir esse processo, ou seja, aprender a ver, bastam a Lei e os Profetas. Assim o indica o texto de Lucas 16.31. A Lei e os Profetas são um bom auxílio para perceber e espaço suficiente de visão para a fé. Não estará escondida aí uma sutil mensagem concreta a todos os cristãos que se baseiam exclusivamente na ressurreição? Não estará Lucas incluindo aí dentro da pers pectiva salvífica de seu evangelho uma consideração de se ver a força reveladora da ressurreição, por um lado, em combinação com o agir persistente de Deus há muito tempo em prol de nossas capacidades de ver e perceber, por outro lado?

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16º Domingo após Pentecostes

Jesus aprofunda a nossa consciência em relação ao poder inconsciente da riqueza sobre nós

Para o evangelista Lucas, um fator determinante nesse processo de serem abertos os olhos para ver é uma visão clara em relação ao poder da riqueza.

É interessante que, nessa perícope, o rico não é criticado por não ter aju dado o Lázaro no sentido de Mateus 25, mas por ter estruturado a sua vida de tal forma que o cegou. Ele, por assim dizer, caiu nas armadilhas enganadoras da ri queza, que nos ilude com falsas seguranças. A riqueza prende o coração e a razão. Ela nos faz girar em torno de nós mesmos.

E ela nos insere como seus trabalhadores que se dispõem a fazer pronta mente esse trabalho, a construir nós mesmos nossos infernos aqui na terra. Por nossas finas roupas íntimas e banquetes, nós nos tornamos cegos uns para com os outros. Nós não conhecemos mais o nome daquele que jaz à nossa porta. E ele desvia o olhar de nossas próprias ocupações com nossas mazelas.

Por isso essa perícope, contrariamente a muitas interpretações, é um texto radicalmente do aquém, da realidade presente. No além, segundo Lucas 16.26, é tarde demais para a discussão e explicação de nós mesmos. O salutar processo de reconhecimento e de transformação deve iniciar aqui e agora. Isso é o que o texto sugere.

Portanto participar dessa divina possibilidade de ver e reconhecer, segun do Lucas, nos motiva e nos capacita a desvendar e compreender as promessas salvíficas do capitalismo especialmente em sua força estética. Nisso consiste a promessa do texto para o rico: ser libertado de promessas ilusórias. Olhem para os abismos, a apatia, a indiferença que a riqueza cria e não deixem se envolver e enganar com as seduções enganadoras de segurança material. Em lugar disso, sejam benévolos para com vocês mesmos e usem os bens materiais deste mundo de tal forma que eles não os prendam. Isso poderia ser, em poucas palavras, o cerne da mensagem de Lucas.

Deus cria uma feliz mudança de perspectiva: a justificação e bem-aventurança de Lázaro

Vejamos ainda um terceiro aspecto que a perícope de Lucas 16.19-31 nos apresenta. A mudança de perspectiva que o texto apresenta e para o qual ele nos motiva aponta para o fato de que com isso está relacionada uma alteração de nos sa situação e um deslocamento para dentro do reino de Deus que está irrompendo. Os pobres – e entre eles, segundo Lucas, devem ser incluídas todas as pessoas –, aos quais são cometidas de múltiplas formas injustiças, são bem-aventurados (Lc 6). Porém não no sentido de que Jesus lhes promete que um dia tam bém serão ricos, mas porque terão parte na força que procede de Deus. A força de Deus é o evangelho (Rm 1.16), que torna bem-aventurado e justifica.

Por isso Lázaro, junto com todos os pobres, é bem-aventurado e justificado. Ele pode repousar no colo de Abraão. E usando expressão de Lutero: a ele é imputada a justiça externa e isso o torna feliz e bem-aventurado. Mesmo que o

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16º Domingo após
Pentecostes

rico tente, a partir do inferno dirigindo-se diretamente a Lázaro e tentando usá -lo como instrumento, Abraão se intromete e impede essa tentativa. O rico, que durante toda a vida ignorara Lázaro, agora não tem mais acesso a ele.

Isso é muito importante, uma vez que nós poderíamos estar tentados a questionar: por acaso o próprio Lázaro é culpado de sua situação miserável? Será que ele não caiu na miséria por suas próprias decisões erradas, por recusa de tra balho ou por uma vida além de suas possibilidades? Uma analogia com a situação do filho pródigo (Lc 15) até seria possível, considerando que ambos, de forma semelhante, procuram se alimentar dos restos de comida de outras pessoas e mesmo isso lhes é negado. Mas justamente esses questionamentos o próprio texto não apresenta. Ele não direciona nossa atenção para especulações a respeito da própria culpabilidade de Lázaro ou de que ele teria se acostumado a viver na rua. Pelo contrário, o texto está focado no agir incondicional de Deus. Deus, que chama Lázaro (em hebraico Eleazar: Deus ajuda, Deus ajudou) pelo nome mesmo na pobreza, não se enoja agora das chagas de Lázaro. Sob a pressuposi ção teológica da corporalidade da ressurreição, o contato físico com as chagas de Lázaro no colo de Abraão não poderia ser mais íntimo. Em outras palavras, Deus assume para si essas chagas. Cristo tornou-se pobre em nosso favor a fim de que nos tornássemos ricos nele (2Co 8.9).

E mais, quem sabe poderíamos falar em justificação pelo fato de o rico aprender a ver e a chamar Lázaro pelo nome. E mesmo que isso significa para ele um processo por demais sofrido.

Logo, para que esse aspecto do texto nos motiva? A nos deixar envolver nesse movimento de solidariedade. Assim como Deus oferece de presente o que não se merece, assim também nós estamos sendo convidados, diante do reino de Deus que irrompe, a dar aquilo que não é devido.

4 Sugestões para a prédica e para os cantos Exemplos de tópicos para a prédica

1. Como embarque na prédica, sugiro manter distância do texto. Mediante distanciamento, por estímulos a questionamentos etc. Parece-me ser importante conseguir de saída um ambiente interpretativo distante da rápida e mui repetida especulação sobre o além que o texto sugere apenas superficialmente, a fim de motivar os ouvintes a prestar atenção para a radicalidade do aquém que o texto apresenta e a descobrir a si mesmos nessa radicalidade.

2. Como segunda sugestão de interpretação, sugiro que o pregador ou a pregadora se identifique a si mesmo com o rico falando na primeira pessoa. Porém direcionando o enfoque da perspectiva de julgamento em direção ao evan gelho. Para que o texto me anima, me capacita, me convida, me desafia? De que prisões e deslumbramentos ele quer me libertar? Para que metanoia, para que mudança de opinião, ou melhor, percepção mais clara ele quer me motivar? Nisso pode ser útil uma interessante perspectiva: o texto oferece para mim algo que o

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16º Domingo após
Pentecostes

rico espera tarde demais de Lázaro para si, para sua família, ou seja, a possibili dade de mudança de opinião.

3. Como terceiro passo para a continuação da exploração, inclusive numa esfera mais profunda da experiência e da alma, sugiro uma identificação com o pobre Lázaro, especialmente em sentido simbólico: que chagas, que precariedades, que vergonha, que sensação de abandono percebo em mim mesmo, mas não tenho coragem de enfrentar? O que há em mim, para o qual preferiria deixar de ver, mas que Deus deseja acolher integralmente em mim como ser humano?

4. Um quarto enfoque poderia ser a reflexão sobre o reino de Deus em sua dinâmica transformadora para com o nosso convívio humano e para a con tinuidade da reflexão dos ouvintes: que alternativas o texto me sugere e oferece para sair do poder de sedução da riqueza, da paralisia por causa da cegueira, da indiferença por causa do não-poder ver ou não-querer ver, da letargia, da rigidez, do choque? Como eu poderia aqui e agora aceitar concretamente o convite para seguir o reino de Deus, de me identificar com ele? O que eu preciso para ingressar liberto e justificado no seguimento do discipulado? Eu arriscaria me integrar num exercício espiritual em via pública, ou seja, dirigir-me a uma via pública e orar sem proteção e experimentar seja lá o que for?

Sugestões de hinos: LCI 591; LCI 566.

Bibliografia

COSTALUNGA, Agnese; SOUZA, Tarlei Navarro Pádua. Ética econômica e solidariedade na Obra Lucana. Encontros Teológicos, Florianópolis, v. 34, n. 3, p. 573-594, 2019. Disponível em: <https://facasc.emnuvens.com.br/ret/ article/view/953/1253>. Acesso em: 30 abr. 2021.

MINESHIGE, Kiyoshi. Besitzverzicht und Almosen bei Lukas. Wesen und For derung des lukanischen Vermögensethos. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003. (WUNT II/163). SRUBE, Sonja Angelika. Lazarus. wibilex.de, 2013. Disponível em: <http:// www.bibelwissenschaft.de/stichwort/51951/>. Acesso em: 06 jun. 2021.

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16º Domingo após Pentecostes

PRÉDICA: 2 TIMÓTEO 1.1-14

SALMO 37.1-10 LUCAS 17.5-10

17º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

O Espírito habita em nós!

1 Introdução

As duas cartas a Timóteo e a carta a Tito estão entre os textos paulinos chamados de cartas pastorais. Nelas, o leitor ou a leitora encontrará subsídios para o pastoreio nas comunidades. São textos que têm em comum a linguagem e o estilo, e dão pistas sobre as condições e formas de organização que havia nas comunidades do cristianismo primitivo. Têm semelhantes formas de combater as heresias, por exemplo, caracterizando uma teologia em comum, por isso muitos estudiosos as situam como uma unidade dentro do Novo Testamento.

Lorenz Orbelinner (1999) aponta que a linguagem utilizada na Carta a Timóteo, ou a qualquer outra liderança de comunidade local, demonstra que o autor já possuía uma intimidade com o destinatário. Esse fato faz com que o texto difira de outras cartas paulinas sem ter, por exemplo, as longas admoestações presentes nos conjuntos de escritos enviados a coletivos ou igrejas como as cartas aos coríntios e aos efésios. O texto da Carta a Timóteo tem um tom muito mais paternal e fraterno que em outros escritos paulinos.

Tanto Timóteo como Tito são colaboradores próximos de Paulo. Timóteo, conforme a narrativa de Atos 16, foi escolhido por Paulo para acompanhá-lo nas ações missionárias. Esse convívio gera cumplicidade e torna-o um dos colaboradores mais próximos e, em muitos casos, o representante do apóstolo quando da sua ausência.

O endereçamento a Timóteo pode ser a primeira chave de compreensão para o texto constante em 2 Timóteo 1.1-14. Orbelinner assevera que a Carta a Timóteo aponta para um discurso de despedida em clara dependência dos textos do Antigo Testamento (Gn 47.29 – 49.3; 1Rs 2.1-9, p. ex.). Nesses textos, formu lados como discursos de despedida pelos diversos patriarcas, o modelo estrutural sempre se repete: o patriarca, que prevê sua morte iminente, diz aos seus filhos o que vai acontecer; diz-lhes como se comportar, mas acima de tudo instiga-os a seguir seu exemplo e preservar fielmente seu ensino. Nas cartas a Timóteo é possível perceber esse modelo de estrutura. O caráter testemunhal e testamentário que o autor utiliza demonstra a amizade e a cumplicidade entre Paulo e Timóteo, aquilo que Paulo espera que seus “herdeiros na fé” façam a partir de então, bem como estimulá-los com a certeza de que Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e de moderação

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2 Exegese

A carta começa com a saudação tradicional, presente em outras cartas pau linas. Os v. 1 e 2 dessa introdução mostram características peculiares da carta. Paulo apresenta-se como apóstolo pela vontade de Deus e de acordo com a promessa de vida em Cristo. Timóteo é apresentado como seu filho na fé, aquele a quem a carta-testamento é destinada e de quem se espera que se atente aos desíg nios que nela se encontram.

Os v. 3 a 5 demonstram que a graça de Deus se manifesta pela fé. O apóstolo deixa claro seu vínculo emocional com Timóteo, o conhecimento de suas origens, seus antepassados, suas lágrimas, sua fé sem hipocrisia e da lealdade para com ele. A fé de Timóteo é, por isso, sincera. Não se envergonha nem de sua história nem de suas lágrimas. Esse bloco, mais do que demonstrar a relação de cumplicidade de fraternidade existente entre os dois, mostra que o motivo dessa união é a manifestação absoluta da graça de Deus em suas vidas.

O bloco que compreende os v. 6 a 14 é uma grande exortação a um tes temunho sem medo e que possua constância na fé. No v. 6, Paulo afirma que o mesmo Espírito que habita nele opera também em Timóteo. Aqui a cumplicidade mostrada nos versículos anteriores ganha outra nuance. Não são íntimos só por afinidades humanas. Suas afinidades também vêm do reconhecimento de que o dom provém de um mesmo Espírito, e que esse Espírito não é de covardia e de medo, mas de poder, amor e moderação (v. 7).

Esse bloco central está claramente articulado como um sanduíche. Estão intimamente ligados. Os sofrimentos expostos pelo apóstolo estão presentes tanto nos versos iniciais como nos finais, e há a afirmação clara de que esses sofrimen tos não são motivo de vergonha (v. 8); pois o Espírito que “nos” foi dado não é nem de covardia nem de medo (v. 7 ). O sofrimento só pode ser compreendido à luz do evangelho conforme expresso no texto.

O carisma recebido de Deus e expresso no texto no v. 6 é o que motiva tan to a salvação como a vocação expressa nos v. 9 a 11. A designação que foi dada a Paulo como apóstolo, pregador e mestre é transmitida a Timóteo pela imposição de mãos. Este, por sua vez, é chamado a perseverar no caminho, não só pela in timidade pessoal com o apóstolo, mas pela intimidade demonstrada pela sua fé. Assim como no v. 5, Paulo recorda que Timóteo possui uma fé sem fingimento, verdadeira, que habitou em sua história pessoal que Paulo conhecia. Timóteo não deve se envergonhar dos sofrimentos a que Paulo está passando. A fé que Paulo reconhece em Timóteo não deixa espaço para dúvidas, vergonha ou medo, pois o Espírito que fortalece Paulo é o mesmo carisma que está presente na vida e no ministério de Timóteo.

Os dois versículos finais da perícope reafirmam que é necessário manter o padrão e a coerência das palavras que Timóteo ouviu de Paulo. Não deixa dúvidas nem espaço para medo, para incertezas, tampouco covardia. Termina no v. 14 pedindo que Timóteo guarde as palavras e os ensinamentos mediante o Espírito Santo que os une. Assim, mais que unidos por afinidades fraternais e humanas,

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agora são unidos por um mesmo Espírito, que não possui medo nem covardia, mas sim poder, moderação e amor.

3 Meditação

Essa perícope aponta para a necessidade de vivermos a experiência cristã a partir da comunhão. Entende-se comunhão não como um momento de cele bração apenas, mas comunhão no sentido pleno, que é capaz de compreender o sofrimento pelo que o próximo passa. Quando batizados, passamos pela mesma experiência mística que Timóteo passou quando Paulo impôs as mãos sobre ele. Somos convidados e convidadas a viver o evangelho sem medo, sem covardia, plenos no amor e na moderação. Somos convidados e convidadas a compreender o sofrimento humano e, principalmente, que, a partir do batismo, não temos superpoderes que nos isentam de qualquer sofrimento. E, sim, que temos um “su perpoder”, absolutamente verdadeiro, que nos ensina a conviver com o sofrimen to e compreender o sofrimento do outro.

Nas palavras do apóstolo Paulo, não existe espaço para um descompromisso com a criação. Viver o batismo não é se isentar do mundo, é compreendê-lo. Quando aponta para a verdadeira comunhão, para o exercício do carisma que Deus nos concede, Paulo não deixa espaços para dúvidas, medo ou covardia. Misericórdia é, como a própria palavra diz (misere – ter compaixão / cordis co ração), ter a capacidade de sentir o que o outro sente, compreender o sofrimento que está no outro, ser solidário. Corações solidários não são indiferentes. Sofrem juntos, mas visam atenuar o sofrimento do outro, compreendendo.

Enquanto escrevemos isso, estamos no auge da pandemia da Covid-19. Mais de dois mil mortos por dia. A vida relativizada ao extremo, a morte banalizada. Descompromisso com a vida notado em diversos momentos pela inativi dade governamental. Pela incapacidade humana de compreender o sofrimento do outro. E Paulo nos ensina, assim como ensinou a Timóteo, a exercer nosso carisma neste mundo. Viver o batismo diariamente, compreendendo que estamos unidos pelo Espírito Santo que habita em nós, é muito mais do que estarmos unidos pela língua que falamos, pelo time que torcemos, pelo bairro ou país em que moramos. Somos, assim como Timóteo, herdeiros de uma boa nova que deve ser propagada aos quatro cantos da terra. Nesse anúncio não existe espaço para dúvidas ou medo. Somente para o amor. Mário de Andrade no título do romance Amar, verbo intransitivo subverte uma regra da gramática portuguesa. Na norma culta o verbo amar é um verbo transitivo direto, ou seja, quem ama, ama algo ou alguém. Porém, por mais que a norma culta exigida em vestibulares e provas afirmem isso, no exercício do nosso batismo, havemos de concordar com Mário de Andrade. Para nós, cristãos e cristãs, a única maneira de compreendermos verdadeiramente o amor é tratá-lo como verbo intransitivo, daqueles que não necessitam de complementação, de um destinatário. Amemos apenas.

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17º Domingo após Pentecostes

E amando verdadeiramente exercemos o carisma a que Paulo se refere no início do nosso texto. Compreendemos por meio do amor o sofrimento. Afasta mos por meio do amor o medo e a covardia.

4 Subsídios litúrgicos

Sugerimos iluminar o templo com lanternas ou velas e dar um destaque à fonte batismal com alguma ornamentação. Indicamos o hino 332 do HPD 2 (Deus está aqui) para ser uma boa moldura para o culto.

Oração: Querido Deus! Que habitas os montes e as colinas e desceste para habi tar em nossos corações por meio de seu Santo Espírito! Reunimo-nos em tua presença para que por meio de tuas palavras possas abrir nossas mentes e corações e que assim, a cada dia, sejamos convidados a compreender e a resistir aos sofri mentos que nos cercam. Ajuda-nos para que por meio do teu amor consigamos levar alento àqueles que pelo medo se afastam de teu caminho de justiça. Que o nosso carisma seja a expressão maior de teu amor. Por nosso Senhor Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo reina de eternidade a eternidade. Amém.

Bibliografia

ANDRADE, Mário. Amar, Verbo Intransitivo. Itatiaia: Garnier, 2002.

OBERLINNER, Lorenz. Le lettere pastorali – Tomo Scondo: La seconda lettera a Timoteo. Brescia: Paideia, 1999.

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17º Domingo após Pentecostes

PRÉDICA: LUCAS 17.11-19

SALMO 111 2 TIMÓTEO 2.8-15

18º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

O amor que nasce da gratidão

1 Introdução

A perícope de Lucas 17.11-19 já foi trabalhada nos volumes IV, X, 20, 26, 34 e 40 do Proclamar Libertação. Sugiro a leitura para enriquecimento da abor dagem na prédica.

As leituras complementares apontam para a ação de Deus no mundo e na coerência de seu plano de salvação. Deus é poderoso e está interessado no bem do seu povo. Ele é Senhor da vida e da morte; aqueles que perseveram no segui mento reinarão com ele.

Salmo 111: O Salmo é um poema acróstico de 22 linhas. Cada linha inicia com a sucessão do alfabeto hebraico. Há uma apresentação desse Deus que é verdadeiro e senhor de tudo. Há demonstração de várias realizações de Deus, que incluem desde o cumprimento da aliança até o fornecimento de alimentos. Deus mesmo envia redenção para o seu povo. Esse Senhor demonstra o poder de suas obras, que são descritas como grandes, cheias de honra e majestade, fiéis e justas. São fiéis todos os seus preceitos.

2 Timóteo 2.8-15: Essa leitura, na carta a Timóteo, filho na fé de Paulo, trata de uma exortação a permanecer firme naquilo que tem importância primária. Timóteo deve lembrar-se do conteúdo central da pregação evangélica, para que não se perca em “brigas a respeito de palavras”, que, segundo Paulo, “não servem para nada” e prejudicam os ouvintes.

2 Observações exegéticas

V. 11 – Lucas apresenta Jesus a caminho de Jerusalém. O início da jornada se dá em 9.51 e termina em 19.28. O texto aponta que Jesus estava passando pelo meio da Samaria e da Galileia. Essa localização na fronteira explica a presença de um grupo de leprosos judeus samaritanos. Normalmente essa relação não seria possível. Mas há algo que os une em sua miséria comum. Lucas faz menção a uma história de séculos de rivalidade religiosa e atrito étnico.

Vale ressaltar que a Samaria, junto com a Galileia, fazia parte das tribos israelitas do norte, que se separaram de Judá no séc. X a.C., a fim de estabelecer uma outra monarquia. Após dois séculos, essas tribos do norte foram conquista das pelo Império Assírio, que deslocou povos distantes da Mesopotâmia para a região, resultando em séculos de casamentos com gentios. Da perspectiva judai

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ca, isso resultou em um comprometimento étnico, seguido de deturpação das tra dições religiosas. Os samaritanos tinham sua ênfase religiosa na devoção à Torá e estavam ligados ao santuário no monte Gerizim, construído na volta do exílio. No séc. II a.C., grande parte da Galileia converteu-se ao judaísmo, reconhecendo Jerusalém como local de culto, isolando a Samaria. A rivalidade acentua-se com a destruição do santuário do monte Gerizim em 128 a.C. por parte dos judeus.

Isso torna bastante significativo o fato de Jesus apontar para a fé desse estrangeiro. Há certamente um impacto na fala de Jesus, que em outras ocasiões também destaca positivamente os samaritanos, como na parábola do bom samaritano (Lc 10.29-37) e na passagem da mulher samaritana (Jo 4.1-42). Os desti natários do evangelista Lucas, vindos de fora da tradição judaica, devem ter se alegrado e se sentido acolhidos por essa passagem que aponta para a universali dade da missão de Jesus.

V. 12-13 – Dez leprosos saem ao encontro de Jesus. A lepra deles não era necessariamente o que chamamos de hanseníase. Ela incluía uma variedade de doenças de pele como micose, psoríase e vitiligo. Algumas dessas doenças eram contagiosas, outras não. Umas tinham cura, outras não. Os sacerdotes eram responsáveis de fornecer o diagnóstico da lepra e a Torá trazia diretrizes bem específicas para esse fim (Lv 13.1-44). Um diagnóstico de lepra era considerado uma sentença de morte, um castigo da parte de Deus. As condições de vida eram degradantes, pois deviam, por exigência, isolar-se de todas as pessoas saudáveis. As roupas do leproso, em que está a praga, serão rasgadas, e os seus cabelos deixados sem pentear; com a mão sobre a boca, gritará: Impuro! Impuro! Será impuro durante os dias em que a praga estiver nele; está impuro, habitará só; a sua habitação será fora do arraial (Lv 13.45-46).

Aqueles leprosos, tendo ouvido sobre Jesus, dirigem o seu grito a ele, chamando-o de mestre. Em sua situação deplorável, reconhecem e expressam a fé de que Jesus pode trazer cura e devolvê-los à plenitude de vida.

V. 14 – Jesus vê sua condição. Talvez seja um detalhe pequeno, mas sa bemos também hoje o que significa invisibilidade social de algumas classes de pessoas marginalizadas. Daqui podemos também nós depreender que aquele que enxerga os leprosos, conhece, ouve e vê a nossa dor.

Jesus não cura de imediato os leprosos, antes ordena que se apresentem aos sacerdotes. Aqui é necessário um passo de fé, seguir o caminho como se estivessem curados. Eles poderiam tomar o caminho do templo em Jerusalém, mas também podiam encontrar sacerdotes em outras localidades, visto que esses serviam periodicamente no templo e retornavam para suas casas no restante do tempo. Para o retorno à vida normal, o sacerdote teria de certificar a condição de pessoa não mais impura.

V. 15-16 – Assim como Jesus vê a condição dos leprosos, há um deles que vê o que os outros não foram capazes de ver: que foi curado, que Deus merece louvor e que precisa retornar a Jesus para agradecer. Sente-se tocado por graça imerecida, e com isso impelido ao louvor e à ação de graças. Cabe aqui destacar a surpresa por esse retorno a Jesus. Os outros nove podem também ter sido gratos por sua cura, mas foram tomados pela ansiedade de retorno, de serem readmitidos

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em suas aldeias, suas casas e seus familiares. Depois da completa marginalização, o desejo pela volta a uma vida digna deve ter soado irresistível. Por isso é impor tante que esse um, resistente ao impulso de seguir a vida e aproveitar a sua cura, tenha voltado para agradecer.

V. 17-18 – Cada etapa de questionamento e acolhimento de Jesus demonstra cuidado com os marginalizados:

1 – Não foram dez curados? Onde estão os nove?

2 – Não se achou quem voltasse para dar glória a Deus, a não ser esse estrangeiro?

3 – A resposta de Jesus ao samaritano prostado em agradecimento aos seus pés: a sua fé salvou você. Mesma expressão dita à mulher que ungiu os pés de Jesus (7.50); à mulher hemorrágica (8.48) e ao cego de Jericó (18.42).

A prostração e ação de graças do samaritano aos pés de Jesus demonstram o reconhecimento de que Deus está agindo por meio dele. Ele percebe o que os outros não conseguiram, que agradecer a Jesus é glorificar a Deus. Isso parece mais forte nas pessoas que mais necessitam, aquelas pessoas que são ignoradas, desprezadas, intocáveis. Jesus observa isso na mulher que o unge, ao receber um grande perdão, ela também ama muito (7.47). O amor que nasce da gratidão é a essência da fé.

3 Meditação

A interpretação de Martim Lutero sobre o primeiro artigo do Credo Apos tólico no Catecismo Menor parece captar a síntese do nosso texto:

Creio que Deus me criou junto com todas as criaturas, e me deu corpo e alma, olhos, ouvidos e todos os membros, inteligência e todos os sentidos, e ainda os conserva; além disto, me dá roupa, calçado, comida e bebida, casa e lar, família, terra, trabalho e todos os bens.

Concede cada dia tudo de que preciso para o corpo e a vida; protege-me de todos os perigos e guarda-me de todo o mal.

E faz tudo isso unicamente por ser meu Deus e Pai bondoso e misericordioso, sem que eu mereça ou seja digno.

Por tudo isso devo dar-lhe graças e louvor, servi-lo e obedecer-lhe. Isto é certamente verdade.

Afirmamos pela fé que Deus é o criador de todas as coisas. Todas as pessoas foram criadas por ele. Assim vemos muitas pessoas, as que creem e as que não, que recebem todo o necessário para uma vida digna: comida, roupas, traba lho, família, proteção. Recebem não por mérito, mas por pura graça e misericór dia da parte de Deus. O que diferencia os que creem dos que não creem é o fato dos primeiros, à semelhança do leproso samaritano, reconhecerem que todo o bem provém da mão bondosa de Deus. Ao reconhecer a ação de Deus, a resposta se dá em gratidão e louvor por meio de Jesus.

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Uma forma de aproximação e reflexão na prédica poderia partir da dinâ mica do olhar, do ver. Os leprosos clamaram e Jesus os viu, como dissemos, nem todos querem ser confrontados, enxergar a miséria que está ao lado, envolver -se. Há quem prefira passar ao largo; Jesus não é assim. Por outro lado, aquele leproso, ao ver que estava curado, retorna dando glória e louvando até prostrar-se diante de Jesus.

Muito mais do que um conjunto de crenças e rituais, a fé cristã se apresenta como uma forma de ver, de compreender-se no mundo. Por vezes, não podemos mudar as coisas ao nosso redor, mas podemos mudar a maneira de ver as mesmas coisas, e isso, por si só, já pode fazer toda a diferença.

Um ponto a se observar é a relação da fé e da cura em nosso texto, e o que o olhar sobre a situação muda em relação aos personagens. O que logo se evidencia é que os dez foram curados, mesmo os que não retornaram. A lepra não voltou sobre eles. Aquele que voltou ouviu de Jesus que a sua fé o curou/salvou. O que acontece com os outros nove? Não tiveram fé? Aqui nos lembramos de quantas vezes a fé, ou a falta dela, é usada contra as pessoas em nosso contexto religioso. Muitas pessoas, além do fardo de suas crises, dores, miséria, recebem ainda outro, que é o fato de não receberem alívio/ajuda por não possuírem fé suficiente. Nós cremos no Deus que age primeiro, que vai ao encontro primeiro, que toma a iniciativa. Lembramos a caminhada da libertação do Egito: não houve um condicionante de fé. Caso houvesse, a libertação seria cancelada logo de início, na confecção do bezerro de ouro. Deus não espera uma prova de fé para enviar seu Filho Jesus, muito pelo contrário, Deus prova o seu próprio amor para co nosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós, quando ainda éramos pecadores (Rm 5.8). A questão está em como reagimos diante da ação de Deus, mais uma vez, uma questão de ótica.

A fé, em nosso texto, é representada pela ação de graças. A pessoa que crê é aquela que sabe responder à ação misericordiosa de Deus com gratidão. A graça de Deus manifesta-se para todas as pessoas, Jesus morre por todas, mas apenas algu mas pessoas compreendem/veem a ação de Deus e a necessidade de voltar e louvar.

A palavra usada para agradecimento é eucharisteō, empregada quatro vezes em Lucas. Duas vezes quando Jesus rende graças sobre a ceia no cenáculo (22.17), e a outra, em contraste, quando o fariseu “rende graças”, por não ser como os outros homens e o publicano que está próximo dele (18.11). Em nosso texto, é possível crer que os outros nove podem ter atribuído suas curas a Deus, dando graças de outros locais, mas não fizeram a conexão entre Deus e seu Filho Jesus. Aquele que viu, o fez com os olhos da fé, e compreendeu que Jesus (feito ser humano) é o poder de Deus. A fé é a capacidade de crer no que não pode ser visto. Mais adiante a fé consegue enxergar, em um Jesus agonizante, o poder de Deus, ali aos pés da cruz ensanguentada. Interessante notar que esse homem, por ser estrangeiro, não poderia adentrar os pátios internos do templo de Jerusalém para adorar, mas tem livre aces so e é bem-vindo para adorar aos pés do Filho de Deus. Sobre as questões de ótica, cabe a pergunta sobre o que fazer quando se vê. Jesus viu a miséria, a necessidade, e agiu em favor das pessoas que passavam por sofrimento. Já o leproso que viu a sua cura, não apenas se contentou com sua

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boa sorte, voltou para louvar e agradecer. A autossuficiência e o egocentrismo impedem a gratidão. Há quem ache que merece todas as coisas e que o mundo lhe é devedor. De nossa parte, pelo que vemos com os olhos da fé, por tudo o que nos cerca na explicação do primeiro artigo do Credo Apostólico, cabe-nos o retorno, o louvor e a gratidão aos pés de Cristo.

4 Imagens para prédica

Um bom caminho para a condução na prédica está posto na própria estrutura do texto. Há uma grande variedade de abordagens. Pode-se apontar para o que é inesperado entre os personagens, que a ação de Deus em Cristo seja tão mais abrangente do que era admitido naquela época e hoje. Deus está aberto e usa de misericórdia para quem está em um povo estranho, que parece adorar em local estranho, que tem um jeito diferente de expressar espiritualidade, com uma teologia estranha. A gratidão brota também de onde não se espera e gera aprova ção de Jesus.

Bibliografia

CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado: versículo por versículo São Paulo: Hagnos, 2002. v. 2, p. 167-169.

MESTERS, Carlos. O Samaritano, exemplo de gratidão. Disponível em: <https:// cebi.org.br/reflexao-do-evangelho/o-samaritano-exemplo-de-gratidao/>.

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18º Domingo após Pentecostes

19º DOMINGO APÓS PENTECOSTES 16 OUT 2022

1 Introdução

PRÉDICA: GÊNESIS 32.22-31

LUCAS 18.1-8

2 TIMÓTEO 3.14 – 4.5

Gênesis 32.22-31 é uma narrativa ou saga muito bonita. Parece negligen ciada no Proclamar Libertação. Diferentemente da maioria de outros textos do lecionário, há somente dois auxílios, em 1976 (PL II) e em 1992 (PL XII), que tratam desse texto. Por quê? Não sei. Mas eu gostei de escrever a partir da men sagem desse texto. Foi maravilhoso sonhar com os autores e as autoras do texto. Convido você para ler o texto no seu conjunto e em detalhes particulares.

Outubro é o mês em que as atividades comunitárias se dedicam aos estu dos, encontros, cultos e outras em questões relacionadas à Reforma Protestan te. Sempre me senti honrado em compartilhar e pensar a partir de conteúdos da Reforma. As comunidades, de certa forma, esperam que temas relacionados às redescobertas de reformadores e reformadoras do século XVI estejam na agenda das mensagens. Os quatro somente, isto é, somente Cristo, somente a fé, somente a Escritura; somente a graça, são reconhecidos e valorizados pelas comunidades como pilares da Reforma.

Os textos do presente auxílio não falam diretamente sobre os pilares da Re forma. Mas os temas não estão isolados, em exclusão mútua. Pelo contrário, estão em comunhão simbiótica como a Trindade Santa, onde não é possível separação. Além disso, estão em simbiose com outros temas significativos, como misericórdia, perdão, amor, humildade, confiança, perseverança, morte, vida e outros. Jacó chegou ao fim da rua sem saída com suas estratégias de querer tudo para si, enganando e roubando. As lutas de Jacó daquela noite na solidão são pertinentes à vida cristã. A persistência da mulher viúva que luta para ser atendida pelo juiz em sua causa é sintomática de todas as lutas de causas justas. As lutas expressas por Paulo e Timóteo na pregação do evangelho, a confiança perseverante da viúva que mudou o comportamento do juiz também são mensagens da prática teológica da Reforma Protestante que remonta ao dia 31 de outubro de 1517.

2 Os três textos bíblicos

Lucas 18.1-8 apresenta uma mulher e um juiz. A mulher é uma viúva. Ela tem uma causa. Busca justiça. Mas o juiz é indiferente. Não é temente a Deus. Não respeita ninguém. E não está a fim de atender a mulher. No entanto, ela insis te para que o seu direito seja respeitado. Então o juiz, reconhecendo sua insensa

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A travessia do vau, caminhos humanos fragmentados

tez, conclui que é melhor atender essa viúva que o importuna, antes que o moleste. A atitude persistente e perseverante da viúva mudou o comportamento do juiz. Jesus pede para que a comunidade preste atenção: se o juiz iníquo atendeu a viúva por ela não ter desistido, muito mais Deus vai tratar com justiça quem lhe pede. E conclui com uma pergunta: haverá fé na terra? A parábola demonstra a necessidade de insistir, orar, vigiar e nunca desistir, pois se até mesmo um juiz injusto que não teme a Deus e não respeita ninguém acabará por ouvir e atender a mulher, então muito mais rápido o Deus da justiça e misericordioso atenderá vocês.

2 Timóteo 3.14 – 4.5 é mensagem sobre a fidelidade da pregação da Palavra e a importância de permanecer naquilo que foi aprendido, sabendo de quem foi aprendido desde a infância e está de acordo com a Palavra de Jesus Cristo. A per severança nas Escrituras torna as pessoas sábias para a salvação em Cristo Jesus. Mas haverá tempo em que as pessoas estarão cercadas por seus próprios mestres, que somente lhes ensinarão conteúdos que lhes proporcionem o seguimento de suas próprias cobiças e detestarão a verdade, preferindo fábulas humanas. Nesse contexto, o pregador suporta até aflições, mas não desiste de evangelizar, cum prindo o ministério.

Gênesis 32.22-31 apresenta Jacó e sua luta de uma noite. Ele sai ferido, manco, dessa luta. Ao final da luta, Jacó pede para ser abençoado e pergunta pelo nome da pessoa com quem lutou. Ele não recebe uma resposta. Mas foi abençoado. Seu nome é mudado de Jacó para Israel. E Jacó dá nome ao lugar da luta – Peniel – e diz: Vi a Deus face a face, e a minha vida foi salva (Gn 32.30). São temas que perpassam os três textos bíblicos: confiança, orar sem ces sar, persistência, perseverança, morte, vida. A mulher viúva, Jacó, Paulo e Timó teo, cada pessoa tem sua prática e o testemunho do seu jeito, suas atitudes são paradigmáticas.

3 Gênesis 32.22-31 no contexto

Jacó parece ser a história do próprio povo de Israel. É patriarca, mas não qualquer um. É apresentado como o pai das doze tribos. Jacó era neto de Abraão e Sara e filho de Isaque e de Rebeca. Jacó é uma das figuras centrais da tradição judaica. É nele que se encontra a origem das doze tribos de Israel. Na armadura imediata da leitura do texto bíblico (Gn 32.3-21 e Gn 33.1-17), Jacó se encontra numa “sinuca de bico”. Por quê? Sua vida tem trapaças, derrotas, vitórias. Envolve-se em muitos conflitos, fugas e tentativa de retornos. No ventre da mãe segurou o calcanhar de seu irmão, Esaú. Quer ser o primeiro a nascer. Depois, ba jula, mente e engana seu pai. E furta a bênção que estava destinada para ser de seu irmão. Este anuncia que vai se vingar e matar Jacó. Persegue o irmão. Jacó põe-se em fuga. Peregrina. Acumula numerosos rebanhos. Arregimenta numerosa mão de obra humana e a transforma em mão de obra corveia. Casa com Lia e Raquel, filhas de Labão, irmão de sua mãe, após sete anos de trabalho por cada mulher. Na casa de Labão, surge e cresce a desconfiança dos filhos de Labão. Foge para não ser morto. Na peregrinação, usa uma pedra como travesseiro, deita e teve um sonho. No sonho, vê uma escada que atinge a porta do céu. Sobre a escada, anjos

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desciam e subiam, no caminho entre o céu e a terra. Ao seu redor, estava Deus, que se apresentou e reafirmou as promessas feitas a Abraão: descendência, terra, posteridade (Gn 28.10-17). Temeroso, reconhece a presença de Deus no território em questão. Teve medo de morrer ao ser encontrado por Deus. Como homem, lutou com Deus. Lutou com o anjo e saiu vencedor. Chorou e implorou o seu apoio. Em Betel encontrou a Deus que ali conversou com ele. Passou por noites de pesadelos. Depois da aliança entre Labão e Jacó, foi preparado o encontro entre os irmãos Jacó e Esaú, segundo Gênesis 32.3-21. O encontro era temido, porque poderia ser de acerto de contas entre eles, com violência e morte. Jacó ficou com medo e perturbado quando teve notícias de seu irmão Esaú (v. 7). Jacó, com seu grupo, preparou estrategicamente o encontro com o irmão: enviou men sageiros para o diálogo, enviou presentes, promessa de boa acolhida, plano A para o encontro que contem mais presentes, e plano B para a fuga, se fosse necessário. Já em Gênesis 33.1-17, o encontro foi efetivado. Jacó vai ao encontro do irmão, desarmado, se humilha, expressa grande disposição para o diálogo e o perdão. Assim, Esaú correu ao seu encontro para abraçá-lo e se reconciliar. Entre esses últimos dois textos, localiza-se a narrativa da luta de Jacó com Deus (Gn 32.22-32). Independentemente da compreensão de que se trata de personas ou povos, de acontecimentos reais ou não, do tipo de texto, é importante considerar a narrativa para a mensagem comunitária. Ela é muito linda, porque Deus, por sua graça, faz acontecer o encontro desses dois grupos orgulhosos, gananciosos e egoístas.

4 Gênesis 32.22-31

O texto é a narrativa do encontro de Deus com Jacó. É uma espécie de “saga”. Inicialmente, expressa uma noite em que Jacó tomou sua família e atravessou o vau de Jaboque. Suas esposas, filhos e servas passaram pelo ribeiro. Passaram também seus pertences todos. Jacó não fez a travessia. Ficou para trás sozinho. Durante a noite, lutou com um homem misterioso. A luta se prolongou até ao romper do dia seguinte. Na sequência, o texto explica que aquele encontro no vau de Jaboque não era algo simples. Havia sentido profundo naquela luta. O homem que lutou com Jacó parecia ser uma manifestação visível do próprio Deus. Isso quer dizer que Deus apareceu a Jacó em forma humana. Num certo momento do texto está a narrativa de que o homem tocou na articulação da coxa de Jacó e deslocou sua junta (articulação da coxa de Jacó no nervo do quadril, v. 32). Isso fez com que Jacó perdesse suas forças. Então, Jacó agarrou-se a ele e rogou por sua bênção. Jacó foi abençoado e teve seu nome mudado de Jacó para Israel. O significado do novo nome do patriarca não apenas revelava a natureza daquele encontro no vau de Jaboque, mas também demonstrava que ele havia sido transformado. Já não te chamarás Jacó, e sim Israel, pois como príncipe lutaste com Deus e com os homens e prevaleceste (v. 28). O testemunho de Jacó, após a luta e a bênção de Deus, é muito significativo na teologia bíblica: Vi a Deus face a face, e a minha vida foi salva (v. 30). Ou em outras palavras: vi Deus e não morri. Ou ainda: morrer é ver Deus.

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Sobre a temporalidade e territorialidade, Martin Noth supõe que os contos (“saga”) sobre Jacó e Labão, bem como aqueles sobre Jacó e Esaú (Gn 27 – 33), surgiram na terra nova, ao leste do rio Jordão. Pouco tempo depois da imigração em Canaã, algumas tribos israelitas começaram a ocupar aquelas regiões. O vale de Jaboque era uma porta de entrada importante para esse campo. Como sempre acontece, os colonos enfrentaram condições duras na terra. Nesse sentido, a saga de Jacó, então, se localizaria ao leste do Jordão (Gn 31.23: montanha de Gileade; Gn 31.49: Mispa; Gn 32.3; Maanaim; Gn 32.31: Peniel; Gn 33.17: Sucote). Para Gerstenberger (1977, p. 03), “a tese de Noth parece plausível. Consequentemente, podemos considerar também as implicações teológicas deste lugar vivencial. Pioneiros na colonização via de regra parecem ser menos sofisticados e mais re alistas nos seus pensamentos”. Os contos de Jacó confirmariam essas qualidades. Fazem uma “narrativa grosseira de Deus e dos seres humanos, seu destino, suas negociatas, suas lutas, suas certezas, suas interrogações” (GERSTENBERGER, 1977, p. 3).

5 Meditação

5.1. Morrer é ver Deus – No curso sinodal com coordenadores e coordena doras de cultos comunitários, em julho de 2001, em Chapada dos Guimarães/MT, entre as duas pessoas que assessoraram o curso estava Leonardo Boff. Em sua di nâmica de trabalho fez referência a Jacó: Vi a Deus face a face, e a minha vida foi salva (v. 30). Construiu uma ligação pertinente do encontro de Moisés com Deus, conforme Êxodo 33.18-20: Então Moisés disse: Rogo-te que me mostres a tua glória. Porém Deus disse: Eu farei passar toda a minha bondade por diante de ti, e proclamarei o nome do Senhor diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer. E disse mais: Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá. Disse mais o Senhor: Eis aqui um lugar junto a mim; aqui te porás sobre a penha. E acontecerá que, quando a minha glória passar, pôr-te-ei numa fenda da penha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja passado. E, havendo eu tirado a minha mão, me verás pelas costas; mas a minha face não se verá. Muitas pessoas consideram a morte um assunto desvinculado da vida. Pelo fato das pessoas doentes irem ao hospital e, geralmente, serem retiradas após o falecimento. Não é comum haver velórios nas casas, nem nas igrejas. Os momentos junto às pessoas doentes, falecimentos e sepultamentos não educam para a realidade da morte. No entanto, a morte não é algo estranho à vida. Faz parte. Não existe morte sem vida e não há vida sem morte. Também não é algo estranho à fé, pois a vida e a morte estão em comunhão, “dialogando e se espetando”. Ambas são realidades humanas e divinas. Mas Deus é o limite. Ele é o princípio entre uma e outra. Segundo os textos de Gênesis e Êxodo, Deus faz a análise de risco. Para quê? Para possibilitar o autocuidado. Jacó estava entre a vida e a morte. Havia fugido da perseguição de Labão. Depois se reconciliaram. Mas agora estava diante de um fato terrível. O encontro no amanhecer estava se encaminhando para ser com

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seu irmão Esaú, a quem defraudou, enganando e roubando-lhe a bênção do pai Isaque. Estava “jurado de morte”. Não havia mais saída, porque devia ir à terra prometida, passando pelos campos de Esaú. Na solidão da noite, curte a clausu ra. Durante a noite, luta com alguém que não sabe quem é. Dessa luta fica com ferimento na coxa que o deixou manco. Mas permanece vivo e recebe a bênção. Estranha o fato de ter visto Deus e não ter morrido. “Morrer é ver Deus”, diz Boff. Também Estêvão o expressa assim, antes de morrer apedrejado: agora vejo o céu aberto e o Filho de Deus em pé à sua direita (At 7.56).

5.2. Perseverança – Perseverar é a qualidade de quem não desiste com facilidade, persistência. Característica ou particularidade de quem persevera, in siste e não desiste de uma coisa específica. Jacó não desistiu de lutar durante a noite em busca do nome com quem luta e receber sua bênção. A viúva perseverou até que o juiz insensato atendesse sua demanda. E Jesus pregou que a oração da comunidade fosse de tamanha insistência que lembrasse Deus de sua promes sa de atender ao que lhe pede. Neste sentido de orar e confiar, Martim Lutero expressa suas preocupações e o caminho a seguir: “Lançai nele todas as vossas preocupações. Jogue-as longe de si, resoluta e confiantemente. Não os jogue num canto qualquer, mas coloque-os nas costas de Deus, pois ele tem ombros fortes e é bem capaz de carregá-los” (Palavras, site Luteranos, junho de 2021). Perseve rantemente pede, confia e receberás.

5.3. Confiança – A confiança é o sentimento de segurança ao embarcar no ônibus, no avião ou em outro meio de transporte em que outro alguém dirige o veículo. A gente não tem controle. Tem que confiar no motorista, senão não vai dar certo. Ou quando se submete à cirurgia e é sedado. A vida, o corpo, todo ser está totalmente à mercê, dependente de terceiros. Jacó tentou sempre fugir do confronto. Do encontro com Labão teve sucesso em suas estratégias de sair vivo do confronto, em paz negociada. Mas com Esaú não vislumbra saída. Para ir à terra da promessa, precisa cruzar a terra de Esaú. Mas estava “jurado de morte”. E ficou sabendo, por seus mensageiros, que Esaú já está a caminho, com seu exército, para o confronto. Sem saída, Jacó se recolhe em sua solidão durante a noite. Luta até amanhecer. Dessa luta sai machucado, ferido. E se agarra ao que lhe resta: suplicar pela bênção. Abençoado, confia que sairá melhor na luta. Con fia que Deus não permitirá que será morto. E que o perdão do irmão é possível.

6 Prédica

6.1. Recontar, brevemente, referências significativas a Jacó que tenham elo com o texto em questão.

6.2. Perseverança: Jacó não desistiu de lutar durante a noite em busca do nome com quem luta e receber sua bênção. (O ponto 5 Meditação tem inspira ções para a prédica.)

6.3. Morrer é ver Deus. A morte não é algo estranho à vida. Faz parte. Não existe morte sem vida e não há vida sem morte. Também não é algo estranho à fé,

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pois a vida e a morte estão em comunhão, “dialogando e se espetando”. Ambas são realidades humanas e divinas. Mas Deus é o limite ou o princípio entre uma e outra. (O ponto 5 Meditação tem inspirações para a prédica.)

6.4. Confiança: A confiança é o sentimento de segurança ao embarcar no ônibus, no avião ou em outro meio de transporte em que alguém outro dirige o veículo. E quando se submete à cirurgia e é sedado. A vida, o corpo, todo ser está totalmente à mercê, dependente de terceiros. (O ponto 5 Meditação tem inspira ções para a prédica.)

7 Subsídios litúrgicos

Reaprender a viver

Valdir foi acometido de infecção causada pelo coronavírus. Seu estado de saúde foi se agravando. Teve que ser internado no Centro de Tratamento Inten sivo. No dia seguinte, foi sedado e intubado. Ficou quarenta e oito dias nessa situação, com picos alternados de melhora e de piora na saúde. Melhorou. Recebeu alta hospitalar. E permaneceu vários dias sem caminhar, articulando apenas palavras desconexas e frases fragmentadas. Aos poucos conseguiu melhoras e pôde trabalhar. Inicialmente de forma remota. Relatou que se lembrava de pouco do período de intubação. Nas suas narrativas, mencionou momentos de intuba ção, quando participou de reuniões. E lhe apareciam lances. Disse que se lembrava de momentos de sofrimento durante as reuniões. “Até mesmo o demônio aparecia, às vezes”, disse. Outras teriam sido bem agradáveis. E Deus estava no meio. Seis meses depois, ainda tem sequelas. Sente alegria em ter vencido a luta difícil contra a Covid-19. Sente-se como num novo amanhecer. Disse que está reaprendendo a viver. Essa é uma de suas travessias pelo vau. Talvez seja a mais difícil. No caso de Jacó, depois das suas lutas durante a noite, sai fragilizado, manco. Teve mudanças profundas em sua vida. Em humildade, espera o encontro com seu irmão de joelhos, suplicando por perdão. E reaprende a viver como gente reconciliada que é perdoada e que perdoa.

Perdão: Querido Deus, tua ajuda e tua ternura curam nossas feridas; tua bondade e tua generosidade enriquecem a nossa pobreza; tua proteção nos liberta do medo; tua força reanima nossa fraqueza; teu amor generoso satisfaz nossa carência.

Pedimos perdão, pois falhamos em alimentar de amor nossa vida. Somos egoístas, mas não amamos a nós mesmos como tu nos amas, bondoso Deus. So mos humanos, mas falhamos em amar e cuidar da humanidade.

Perdoa-nos, quando caminharmos na escuridão e insistirmos nela em vez de procurar o caminho da luz, pois tu, Senhor, és a única e verdadeira luz.

Perdoa-nos por nossa falta de fé e por não sermos pessoas esperançosas e solidárias. Perdoa-nos por termos causado dor, dificuldades e angústia para outras pessoas. Perdoa-nos por nos isolarmos e permanecermos indiferentes, em vez de vivermos a hospitalidade, especialmente, a migrantes e refugiados.

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19º Domingo após Pentecostes

Anúncio do perdão: O apóstolo João, na sua primeira carta, escreve: Porém, se vivemos na luz, como Deus está na luz, então estamos unidos uns com os outros, e o sangue de Jesus, o seu Filho, nos limpa de todo o pecado. Mas se confessamos os nossos pecados a Deus, ele cumprirá a sua promessa e fará o que é correto: ele perdoará os nossos pecados e nos limpará de toda a maldade. Amparados nessa palavra, podemos crer que nossos pecados foram perdoados, em nome do Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.

Kyrie: Clamamos a Deus pelas dores do mundo humano e pelas dores da natureza: pelas pessoas que diariamente são violentadas pelas relações de poder, pela exclusão, pela falta de oportunidades. Clamamos pelos países onde falta a digni dade de vida, onde as pessoas são oprimidas por guerras, conflitos e destruições. Clamamos por toda a criação de Deus, por lugares dominados pela seca, outros dominados pelas enchentes, pelo desmatamento, poluição e queimadas. Supli camos pelas pessoas que vivem na escuridão, são escravizadas pelo medo, pela escuridão da ignorância, pelo poder que escraviza, por ameaças, pela fome, pelo desemprego, pelos diversos tipos de drogas, por seus problemas não resolvidos e pelas doenças, pelos seus remorsos e rancores. Pensamos, especialmente, nas mães e crianças que estão em situações de vulnerabilidade. Pelos casais e pelas famílias que vivem em confrontos, pelas que têm pessoas doentes em casa ou no hospital, pelas famílias enlutadas. Suplicamos, querido Deus.

Bibliografia

GERSTENBERGER, Erhard S. Gênesis 32.22-32. In: KAICK, Baldur van (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1976. v. II, p. 207ss. NOTH, Martin. Überlieferungsgeschichte des Pentateuch. 2. Aufl. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1960.

RAD. G. v. Das Erste Buch Mose. 9. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1972. (ATD 2-4).

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19º Domingo após Pentecostes

PRÉDICA: LUCAS 18.9-14

JEREMIAS 14.7-10,19-22

2 TIMÓTEO 4.6-8,16-18

20º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

Jesus nos ensina a orar com humildade

1 Introdução

As leituras bíblicas propostas para este 20º Domingo após Pentecostes ofe recem uma reflexão importante a respeito da prática da oração com humildade. Estamos na proximidade da celebração dos 505 anos da Reforma Luterana. Vale destacar que o tema da humildade, no que se refere à relação da pessoa humana com Deus, é assunto central na doutrina luterana. Como lemos no comentário de Lutero ao Magnificat: “[...] Deus é aquele que está no mais alto e nada existe acima dele, ele não pode olhar para além de si. Também não pode olhar para os lados, porque ninguém é igual a ele. Por isso precisa olhar fatalmente para si mesmo e para baixo. Quanto mais baixo alguém está, tanto melhor Deus o enxerga” (LUTERO, 1999, p. 13).

O texto do livro do profeta Jeremias traz a oração do povo de Judá feita em um momento de sofrimento por causa de uma grande estiagem. A seca trouxe fome e miséria. A crise atingiu o povo, que orou reconhecendo seus pecados e pedindo por perdão e misericórdia divina. Não são palavras de reivindicação, mas sim de humildade e clamor ao socorro de Deus.

Em 2 Timóteo, a passagem prevista não trata sobre uma oração propria mente dita, mas sobre uma confissão de fé do apóstolo Paulo. Pois ele, sentindo que o fim de sua vida se aproxima, deposita toda a sua confiança em Deus. Paulo, mesmo tendo do que se orgulhar diante de Deus, não coloca a sua esperança em seus feitos ou méritos, mas tão somente na preciosa e imerecida graça de Deus.

2 Exegese

No texto de Lucas 18.9-14 Jesus conta uma parábola em que dois homens de diferentes segmentos da sociedade se dirigem até o templo para orar. É válido lembrar que a oração é um tema pertinente no Evangelho de Lucas. O fariseu, que do ponto de vista religioso e social é bem visto por suas obras, não vai para casa justificado. Por sua vez, o publicano, cobrador de impostos, que é mal visto pela sociedade e também pela religião, vai embora justificado. Os fatores que a sociedade, a religião e os próprios personagens usam como critério de superioridade religiosa ou espiritual não refletem os critérios que Deus usa para a justificação.

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23 OUT 2022
Antonio Carlos Oliveira Gabriel Henrique de Oliveira

A relação de Jesus com os fariseus é conturbada, como fica claro em várias passagens de conflitos. E a questão que complica essa relação é a forma como os fariseus se relacionam com Deus e com o próximo e também porque se con sideram melhores ou superiores às outras pessoas do ponto de vista religioso e espiritual. Jesus sempre chama a atenção deles de que Deus vê aquilo que as pessoas não podem ver: as intenções do coração. Pouco antes dessa parábola, Jesus contou a parábola do administrador infiel e foi zombado pelos fariseus. Mas ele respondeu à altura (Lc 16.15): Vocês são os que se justificam diante dos homens, mas Deus conhece o coração de vocês; pois aquilo que é elevado entre homens é abominação diante de Deus. Nesse mesmo sentido, encontramos em Mateus 23.27-28: Ai de vocês, escribas e fariseus, hipócritas, porque vocês são semelhantes aos sepulcros pintados de branco, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda podridão. Assim também vocês, por fora, parecem justos aos olhos dos outros, mas, por dentro, estão cheios de hipocrisia e de maldade. Essas situações anteriores à parábola do fariseu e do publicano ajudam a entender seu significado, como também fica evidente no início do texto de que ela é para as pessoas que estão convictas da própria justiça e, por isso, desprezam os outros (v. 9).

Os fariseus ou “os separados”, que é o significado de origem da palavra no aramaico, representavam um partido religioso do judaísmo. Eles eram radicais na observação da Lei. Por isso se achavam melhores e desprezavam as outras pessoas. Eram extremamente legalistas, ou seja, o cumprimento das regras e das leis era mais importante para eles do que qualquer outra coisa, para alcançar a justiça divina. Dessa forma, até mesmo a misericórdia com o próximo é despre zada. Isso é expresso pelos fariseus em relação aos publicanos não somente na comparação e desprezo demonstrado na oração (v. 11). Em outros questionamentos os fariseus perguntaram para os discípulos de Jesus sobre sua relação com os publicanos (Lc 5.30): Por que vocês comem e bebem com os publicanos e peca dores?. Afinal, os publicanos eram tidos pela sociedade como ladrões e evitados pelas pessoas, com bastante desprezo. Isso se deve ao fato de que os publicanos eram cobradores de impostos, faziam isso como arrendatários dos romanos e, para ganharem alguma coisa, deveriam arrecadar mais do que deveriam pagar em impostos, o que fazia com que fossem odiados e desprezados pela sociedade como um todo, inclusive no âmbito religioso.

As orações do fariseu e do publicano expressam como eles se sentem e como se julgam em relação a Deus. O fariseu agradece a Deus por não ser como as outras pessoas, por se considerar melhor que elas. Para ele, as outras pessoas são ladras, injustas e adúlteras. Entre as “piores pessoas” ele menciona o publica no com desprezo. Ao seu modo de ver a justificação, o fariseu acredita fielmente que suas boas obras e ações religiosas lhe garantem méritos com Deus. Ele in clusive pontua as práticas exteriores e espirituais em sua oração. Por isso chega a apontar para as outras pessoas, julgando-se espiritualmente superior, mesmo que tenha pecados encobertos no interior, pela prática externa da religião. O fariseu confiava em si mesmo e até orava de si para si mesmo, evidenciando que ele não se mostrava confiante na graça e na justificação de Deus, mas nos seus próprios

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méritos (v. 11). No extremo oposto, o publicano orou reconhecendo seus erros, de uma forma tão profunda e com tamanha demonstração de arrependimento, que sequer levantava os olhos ao céu, batendo no peito (tristeza extrema) e clamando por seus pecados, ou seja, demonstrava isso também fisicamente. Provavelmente se sentia inferior às outras pessoas na religião e na vivência de sua espiritualidade (orava de longe) das demais pessoas no templo. Seu único pedido é como uma súplica pela misericórdia de Deus, como demonstra sua oração (v. 13).

A conclusão da parábola é que o publicano foi para sua casa justificado por Deus e o fariseu não (v. 14a). O motivo dado é de que todo aquele que se exalta (o fariseu que confiou sua justificação em si mesmo, e não demonstrou nenhuma necessidade de Deus) será humilhado; mas o que se humilha (o publicano, ao reconhecer seus pecados perante Deus em oração e demonstrar que confia sua justificação na misericórdia de Deus) será exaltado (v. 14b). Na Carta aos Filipenses, o apóstolo Paulo se descreve nas duas situações. Como fariseu, quanto à justiça que há na lei, era irrepreensível (Fp 3.5-6). Mas para ser achado em Cristo, ele admite não ter mais justiça própria que proceda da lei, senão a justiça que pro cede de Deus, baseada na fé (Fp 3.7-9). Portanto a passagem de Lucas está muito próxima ao pensamento paulino da justificação por graça e fé.

3 Mensagem

A temática da oração recebe de Jesus uma atenção especial, sendo refletida e recomendada em muitas passagens dos evangelhos. De modo especial, Lucas se dedica ao tema da oração, dando grande importância a uma comunicação efetiva e afetiva com Deus. O próprio Jesus é apresentado como uma pessoa orante e que estimula seus seguidores e suas seguidoras a ter na oração uma de suas atividades principais. Pois algo fundamental para o seguimento de Jesus é a prática constan te da comunicação com Deus. “Os discípulos de Jesus são convidados a orar o Pai-nosso [sic] (Lc 11.1), a perseverar na oração (Lc 18.1ss; 21.36), a orar com fé e com a familiaridade de um amigo (11.9-13), com a convicção de alcançar o que pedem; na luta pela justiça (Lc 18.1-8), com a humildade do publicano (Lc 19.9-14), a confiança do filho que abandonou o Pai (Lc 15.21) e com a consciência de Pedro que se sente pecador (Lc 5.8)” (MOREIRA, 2004, p. 48-49).

Lucas leva-nos a compreender que o ato da oração é uma forma de comunicação em que o mais importante é falar com sinceridade e humildade, expressar os sentimentos com confiança e fé, ou seja, abrir o coração para Deus na certeza de que ele ouve e acolhe. No entendimento judaico, o coração é o centro da vida, local das opções fundamentais e das decisões (Lc 6.45). Portanto uma oração, para ser verdadeira, precisa vir do coração, do concreto da vida, tratar do que é importante e impactante, daquilo que mobiliza nossos pensamentos e ações. A oração verdadeira deve nos levar ao coração da vida, nos fazer ouvir do que o coração está cheio, “seus sentimentos mudos, os medos inconfessos e as quei xas silenciosas; entender o que está errado e atender às suas reais necessidades” (MOREIRA, 2004, p. 49).

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Na perícope anterior, Lucas 18.1-8, a parábola da viúva persistente e do juiz iníquo é apresentada como um exemplo de que a oração deve ser perseveran te. Orar sempre e nunca desanimar é um conselho valioso de Jesus para seus se guidores e suas seguidoras. Em Lucas 18.9-14 Jesus aborda mais uma importante dimensão da oração, a saber, a humildade.

Na sociedade em que vivemos, valorizam-se os méritos. Ou seja, consi dera-se uma pessoa melhor ou mais importante devido ao cargo que ela ocupa, à sua profissão, à sua formação, a títulos acadêmicos, à conta bancária e a suas propriedades. Tudo isso que uma pessoa ostenta faz com que ela seja considerada pelas demais pessoas como uma pessoa importante, bem-sucedida. Em outras palavras, “abençoada por Deus”. Esse era também o caso do fariseu, que se con siderava melhor que as outras pessoas, como demonstra sua fala arrogante. Mas, na visão de Jesus, esse comportamento não tem sentido algum. Não importa quem é a pessoa, seus status ou o lugar que ela ocupa na sociedade. Deus não liga para aparências, títulos ou posses. Deus busca apenas corações sinceros, arrependimento e a mudança de atitudes erradas. Conforme Hebreus 10.22, apro ximemo-nos com um coração sincero, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e o corpo lavado com água pura. Jesus ensina que, diante de Deus, ao orarmos, precisamos ter sinceridade e humildade, colocando-nos humildemente diante de Deus, sem autoelogios ou nos comparando a outras pessoas. Na relação com Deus, seremos sempre “pobres”, pessoas necessitadas de seu perdão. Pois nada que tenhamos ou façamos é capaz de comprar as benesses e as misericórdias de Deus. Sendo humildes, somos o que realmente somos, estaremos em nosso lugar e Deus estará no lugar dele.

Ao destacar a atitude do publicano, Jesus aponta para a correta relação com Deus. Na “justificação por graça e fé” entendemos que, diante de Deus, não somos pessoas justificadas por méritos ou boas obras, mas unicamente recebemos a justificação pela infinita graça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo. O publica no não exige ser justificado. Ele apenas expressa o profundo arrependimento que sente em seu coração, batendo no peito, entregando suas incoerências ao único que pode perdoá-lo. Talvez existam na vida desse publicano aspectos positivos que poderiam ser lembrados por ele, mas isso não vem ao caso. Diante de Deus ele é apenas um humilde pecador. O texto seguinte, Lucas 18.15-17, exemplifica essa relação com Deus. No v. 17, lemos: [...] Quem não receber o Reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele. Uma criança não pode ressaltar seus méritos ou se autojustificar com suas boas ações. Ela é totalmente dependente daquele que a pode cuidar, abençoar e salvar.

4 Imagens para a prédica

“Você sabe com quem você está falando?” Essa expressão é usada quando alguém quer dar um “carteiraço” e mostrar que se trata de alguém importante, não se tratando de uma pessoa qualquer. Assim na base do “carteiraço”, às vezes, se consegue o que se quer, passar na frente, receber primeiro, se livrar de uma multa. O fariseu, no texto citado, quer dar um “carteiraço” em Deus. Ele enumera

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para Deus seus méritos e boas ações para provar que é muito melhor que as outras pessoas, inclusive, do que aquele publicano ao seu lado. Não se sabe exatamente o que esse fariseu quer, pois sua oração é apenas autoengrandecimento diante de Deus. Talvez este seja justamente seu problema: sua arrogância pode camuflar sua baixa autoestima e o fato dele sentir em seu íntimo justamente o oposto, sua insignificância. Ele não pede nada, mas precisa que Deus o considere mais impor tante que as outras pessoas. Também podemos entender que nós somos uma mistura de fariseu e pu blicano. Se “shipparmos” as palavras, resultaria em “faricanos” ou “publiseus”. Nossos comportamentos diante de Deus contêm, muitas vezes, esses dois lados, sendo uma falsa humildade. Isso porque, ao reconhecer a culpa e pedir perdão a Deus, já nos consideramos melhor que outros infiéis que não buscam a misericór dia divina. Ao orar, agradecemos por tudo de bom que recebemos de Deus e com isso rebaixamos as outras pessoas que não receberam o mesmo. Ao contribuir com a igreja, pensamos em outras pessoas que poderiam ajudar e não o fazem.

5 Subsídios litúrgicos

Oração silenciosa de confissão de pecados:

L.: (costura) Orar de maneira humilde significa, primeiramente, abrir o coração e desnudar-se de suas aparências diante de Deus. É preciso ser igual a uma criança que estende os braços e confia, que se aninha no colo de Jesus para ser abençoada, que chora quando sente vontade, que fala com sinceridade onde dói, onde pesa a consciência, onde não consegue melhorar. Agora coloquem as mãos próximas ao coração, fechem os olhos e silenciosamente falem para Deus os seus pecados, os seus erros e as suas omissões. Peçam humildemente e sinceramente o perdão de Deus.

C.: (A comunidade ora em silêncio por cerca de um minuto.)

L.: A Palavra de Deus em Lucas 18.13 nos diz: O publicano, estando em pé, lon ge, nem ousava levantar os olhos para o céu, mas batia no peito, dizendo: “Ó Deus, tem pena de mim, que sou pecador!”.

Anúncio da graça:

L.: (Mostre um cartaz com a palavra coração.) Dentro da palavra coração está a palavra oração. Isso significa que Deus acolhe a oração que vem do coração. Assim ele acolheu a confissão humilde e silenciosa que fizemos. Deus em seu amor e sua misericórdia perdoa quem com sinceridade e coração arrependido lhe confessa seus pecados. Deus também dá forças para que possamos corrigir nossos erros e reparar o mal que praticamos. Assim, a vocês que “abriram seu coração para Deus”, por ordem de Jesus Cristo, anuncio o perdão de seus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém!

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Bibliografia

LUTERO, Martim. O louvor de Maria (O Magnificat). São Leopoldo: Sinodal, 1999. 122 p. (Coleção Lutero para hoje).

MOREIRA, Gilvander Luís. Lucas e Atos: uma teologia da história teologia lu cana. São Paulo: Paulinas, 2004.

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PRÉDICA: LUCAS 19.1-10

ISAÍAS 1.10-18

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2 TESSALONICENSES 1.1-4,11-12

Hoje houve salvação nesta casa!

1 Introdução

O desafio de pregar sobre a história de Zaqueu é grande. Uma vez porque a narrativa é bem conhecida e muita gente na comunidade, ao escutar a leitura, vai pensar: “Ih, novamente essa história do rico que se converte!”. Por isso mesmo, em segundo lugar, cabe estudar com afinco o texto, ler comentários, refletir sobre o que se passa em nosso país e na comunidade, para então ajustar a embocadura de forma a dizer algo consistente, que desafie para uma mudança de vida. A composição das leituras com o texto do evangelho pode ser um sinal para sua incidência nos dias de hoje. Isaías 1.10-17 (não acho justo incluir o v. 18, pois muda o tema!) questiona rituais religiosos baseados na injustiça, num sacrificialismo estéril e cruel. O profeta é duro ao criticar uma forma de religiosidade autossuficiente e convencida de sua justiça. O Deus da justiça não suporta um culto que esconde a iniquidade: sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue (v. 15). Palavras dirigidas aos príncipes ou governantes do país! Palavras muito atuais num país assolado pela tragédia da pandemia da Covid-19 e pelo descalabro da criminosa ausência de políticas de saúde que preservem vidas. Já a leitura de 2 Tessalonicenses 1 nos remete a um outro ambiente, uma pequena e jovem comunidade cristã na Mace dônia, que conheceu o Evangelho de Jesus por meio do apóstolo Paulo, que vem exercitando o que aprendeu com fé e coerência. Paulo dá graças a Deus porque a fé em Jesus cresce sobremaneira e se expressa concretamente no amor mútuo que aumenta a cada dia no meio da comunidade. Fé e amor mútuo são dois lados da mesma experiência de nova vida a partir do evangelho da graça e do amor de Deus. Se pudesse sugerir, como o faz Paulo Roberto Garcia (PL 40), ambos os textos nos desafiam a superar a injustiça e a pôr em prática a fé que atua pelo amor. “Fé ativa que promove a prática da justiça” ou do amor mútuo. Esse é o desafio na narrativa do encontro de Jesus com Zaqueu na beira do caminho passando por Jericó rumo à Jerusalém.

A narrativa de Lucas 19.1ss foi estudada anteriormente nos seguintes vo lumes de Proclamar Libertação: II (1977), VIII (1982), XIV (1988), 37 (2012) e 40 (2015). Como todos esses exemplares estão disponíveis no Portal Luteranos, sugiro que quem puder dê uma olhada. Cada contribuição traz informações e perspectivas de análise do texto muito interessantes para o desafio de atualizar essa narrativa hoje.

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Roberto

Informações exegéticas

Como é sabido, Lucas é o evangelista de língua grega, que possivelmente vivia em Antioquia e que escreveu os dois relatos complementares: o evangelho, que narra a caminhada de Jesus de Nazaré, e o livro de Atos, que narra a caminhada da comunidade das discípulas e dos discípulos de Jesus, depois chamada de igreja de Deus, após sua ressurreição. Lucas faz parte dos evangelhos sinóticos, com Mateus e Marcos. Marcos lhe serviu de base, contando ainda com a outra fonte chamada de Q. Se Lucas se associa aos dois outros evangelhos, não deixou de imprimir sua particularidade, pois quase a metade do seu evangelho é consti tuída de material exclusivo, como a narrativa do encontro de Jesus com Zaqueu. Lucas, porém, oferece ainda mais algumas características que vale resgatar. A Bíblia Pastoral (Paulinas, 1990) traz uma breve introdução a esse evangelho e afirma o seguinte: ele narra o caminho de Jesus como caminho que se realiza na história, começando em Nazaré e terminando tragicamente em Jerusalém. Trata -se dos caminhos da salvação ou da libertação de tudo o que escraviza as pessoas, a começar pelas mais pobres e vulneráveis. É por isso que, nesse evangelho, pobres e pessoas oprimidas ganham tanto destaque (desde o Magnificat de Maria até a narrativa da cruz e ressurreição). A caminhada de Jesus estabelece um con fronto com um sistema religioso, político e econômico que marginaliza e sacrifica pessoas. Jesus expõe as raízes desse sistema ao exaltar pessoas insignificantes e tirar o chão das pessoas que se autodefinem como justas, piedosas e sem mácula (Lc 18.9-14, entre outros). Jesus fez de sua vida e testemunho um ato de entrega plena ao Pai, que chama os pobres de bem-aventurados ou felizes (Lc 6.20ss), mas adverte: Ai de vocês, os ricos porque já têm a sua consolação (6.24).

Verner Hoefelmann, num artigo sobre missão em Lucas (1988), enfatizou que esse evangelho tem como agentes privilegiados os pobres. O termo grego ptochos designa os pobres em sentido social e econômico, incluindo doentes, ce gos, paralíticos e leprosos (hoje se usa a palavra hansenianos). Em Lucas 4.18ss e 7.18ss, Jesus imagina o jubileu prometido como um programa messiânico, sinal do reino de Deus. Nele está reservado um lugar especial para os pobres, os mendigos, os sem terra e sem teto, sem trabalho e sem direitos. Hoefelmann então ex plica as razões dessas ênfases: a) são essas pessoas que mais necessitam da graça libertadora de Deus; b) são as que mais se mostram abertas ao projeto do reino de Deus; c) são as que mais estão interessadas em mudar a atuação.

A narrativa do encontro de Jesus com Zaqueu, à primeira vista, parece um desvio desse roteiro básico. Literariamente, o texto encontra-se na terceira parte do evangelho, que descreve a caminhada de Jesus rumo à Jerusalém, com relatos de viagem e encontros os mais diversos (9.51 – 19.27). Mais próximo do nosso texto, encontramos as seguintes narrativas, depois da interessante parábola do juiz iníquo: 18.9ss – o confronto entre duas piedades contrastantes, a do fariseu e a do publicano; 18.15ss – Jesus abençoando crianças num gesto duro contra seu grupo; 18.18ss – um diálogo compreensivo com um jovem rico, que rejeitou o caminho de Jesus, mesmo que a tristeza tomasse conta de sua vida, porque não

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aceitou abrir mão de sua riqueza; o texto que segue complementa essa narrativa para o assustado grupo de seguidoras e seguidores: Sendo assim, quem pode ser salvo?; 18.31ss – Jesus prediz sua morte e ressurreição, enquanto Lucas adverte a comunidade a quem dirigiu o evangelho: o sentido dessas palavras era-lhes encoberto, de sorte que não percebiam o que ele dizia (v. 34); 18.35ss – a narrativa da cura de um homem cego já perto de Jericó, a cidade por onde deveria passar. É um texto paradigmático, porque quem acompanhava o pobre homem o repreendia para que se calasse, mas ele gritava: Filho de Davi, tem misericór dia de mim! (v. 38). Jesus, ouvindo o grito, chamou o homem e perguntou: Que queres que eu te faça? O homem nem pensa para responder e diz: Senhor, que eu torne a ver (v. 41). O resultado é que esse homem volta a ver e sai saltitando dando glória a Deus. Na sequência temos a narrativa de Jesus e Zaqueu, que também acontece na caminhada através da cidade e no meio de uma multidão. Jericó é uma cidade de fronteira, situada entre o mundo sírio-palestinense e o mundo greco-romano, não muito grande, mas importante na chamada Era Herodiana. Cidade de comér cio forte e próspero, alimentado por muitos peregrinos, era usada por Herodes como capital de inverno. Diferente de outras cidades, parece ter tido muitas ár vores nas ruas, entre elas o sicômoro mencionado, uma espécie de plátano que produz um fruto semelhante ao figo, com ramos que vinham até quase o chão e muito fortes. Essa cidade serve de palco para um encontro inédito. Sobre o texto, eu o divido em duas partes: v. 1-4, em que o personagem principal é Zaqueu; v. 5-9, em que se destacam a figura e a ação de Jesus. Nessa divisão didática, o v. 10 é como a moral da história. V. 1-4 – Jericó é a cidade através da qual Jesus caminha. Ele a atravessa. Nela havia um homem, Zaqueu (é a forma abreviada de Zacarias, que significa “Deus lembra”; outra possibilidade é “justo, puro”). Ele é apresentado como chefe de publicanos, uma categoria odiada pelos judeus porque eram pessoas que trabalhavam na coleta de impostos, que beneficiavam a nobreza sacerdotal e o Império Romano. Como chefe, tinha vários subordinados, mas sua posição permitia facilidade de enriquecer às custas dos trabalhadores e trabalhadoras, seja de forma legal ou ilegal. Os impostos eram cobrados não diretamente pelos roma nos, mas por gente judaica aliada aos romanos, que arrendavam a cobrança aos da terra, gerando um conflito permanente no país. Para ser lucrativo o negócio, as taxas tinham de ser superiores ao arrendamento e demais despesas, mas seguidamente superavam o cobrado pelos romanos, sendo arbitrariamente elevadas e gerando o ódio da população. Não por acaso, essa categoria de cobradores de impostos era colocada junto com pecadores, pagãos e prostitutas.

A convivência com essas pessoas era sumariamente condenada e causa de impureza ritual grave. Uma hipocrisia, pois eram as próprias autoridades judaicas que aceitavam obrigatoriamente o sistema como parte da invasão e opressão roma na. No Evangelho de Lucas, porém, encontramos um contraponto desconcertante: em dois textos, publicanos são elogiados, não tanto pelo que fazem enquanto tais, mas por sua honesta abertura para sair de si e mudar de vida (18.9sss; 19.1ss).

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Um último aspecto que chama a atenção na narrativa é um certo humor com o qual o evangelista apresenta esse homem Zaqueu. De baixa estatura e curioso para ao menos conhecer mais de perto a figura desse mestre que vem de Nazaré, ele trepa numa árvore – como faria qualquer criança – e de cima consegue acompanhar a caminhada de Jesus. Dá para imaginar a cena. Lucas é hábil no relato, pois desfaz toda aquela figura odiosa e rica por meio de um gesto quase infantil.

V. 5-9 – Ao passar pelo local, surpreendentemente, Jesus olha para cima e fala com esse Zaqueu estranho: Desce depressa, pois me convém hoje ficar em tua casa. Há aqui uma inversão da lei da hospitalidade (Gn 18.1ss), pois nesse caso é Jesus que se convida. E a reação do homem rico é imediata e também fora do comum: ele desceu depressa e o recebeu com alegria. A murmuração ou falação no meio do povo se volta contra Jesus. É a típica forma de intolerância religiosa ou social, pois a acusação era cruel: ele se hospeda com um homem pecador. Portanto se torna pecador e impuro como Zaqueu.

A sequência nos surpreende ainda mais, pois a reação à visita de Jesus –que não fala mais nada! – é algo impensável no sistema de cobrança de impostos, ainda mais vinda de quem vem. Ao invés de ouvirmos um sermão de Jesus, uma reprimenda ou lição de moral, o que ouvimos é uma decisão de um homem pe cador que é quem fala aqui: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e se alguma cousa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais Informações bíblicas nos dizem que aqui Zaqueu superou o exigido pela Lei. Conforme Êxodo 22.1, que trata de roubo de gado, a restituição exigia o seguinte: um boi paga cinco furtados, e quatro ovelhas por uma. Quer dizer, o que temos por baixo dessa narrativa é a prática de extorsão dos mais pobres.

Zaqueu reconhece seu pecado e procura mudar de vida. O que intriga no texto é que não ficamos sabendo o que – eventualmente – Jesus e Zaqueu conversaram no caminho até a casa deste. Então é importante, a meu ver, não inventar o que porventura se passou na consciência de Zaqueu ou seu coração. Aqui temos um exemplo forte de como lidar com os evangelhos. Seguir a narrativa e as ações que nela são mencionadas com a maior fidelidade possível, sem cair em psicologismos ou sentimentos que desconhecemos e que o texto não informa.

A única reação claramente indicada é que – ao receber o autoconvite sur preendente de Jesus – Zaqueu o recebeu com alegria. Não deve ser acaso o uso da palavra por Lucas, porque o evangelho é a boa nova de grande alegria (Lc 2.10). Seguremos essa palavra, então! No caso, a reação de Zaqueu talvez seja resultado da grande alegria que a presença de Jesus em sua casa lhe proporcionou. De qualquer forma, sua decisão de repartir metade dos seus bens e restituir a quem defraudou até quatro vezes mais não é algo comum ou esperado. É uma atitude única e, talvez, incomum. Só nesse momento, após ouvir o que o seu anfitrião acabara de lhe anunciar, Jesus fala nessa narrativa. E então ele diz algo que tam bém nos desafia: Hoje houve salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão. Segundo um dos comentários, ser filho de Abraão significa que Zaqueu foi reincorporado na comunhão dos filhos de Deus, contra as leis de pureza e as diferenças sociais e políticas que o separavam das demais pessoas de suas rela

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ções. Jesus o coloca num novo espaço social, religioso e cultural na sociedade judaica. Algo inusitado para um publicano.

Por meio dessa ação de visitação, Jesus anuncia que Deus restaura a vida desse corrupto, se lembra dele e o torna justo. Mas há um detalhe que não encontrei antes: Jesus afirma que a salvação ou libertação aconteceu na casa de Zaqueu. Que significa isso? Por que Jesus não fala em conversão ou de um novo coração (Jr 31.33s; Ez 36.26)? A presença ou visita de Jesus abrange bem mais do que a interioridade da pessoa. Jesus afirma que a salvação acontece na casa. Isso quer dizer que a salvação atinge toda a família e as relações vivenciais de Zaqueu. Creio que se pode afirmar – com o texto – que ela atinge os pobres que foram defraudados e que – na sequência da visita de Jesus – serão beneficiados com uma justiça relacional inesperada e libertadora.

O foco do texto, então, está na salvação da casa, esse nó de relações familiares, de parentesco e de trabalho (incluir os subordinados de Zaqueu nessa salvação não seria despropositado) que transforma a vida de Zaqueu e de sua família restituindo-lhes uma dignidade que ele desconhecia, portanto gratuita e cheia de misericórdia. Salvação aqui é mudança holística portanto, e não apenas uma experiência espiritual genuína, que certamente ocorreu. O que me parece importante é mostrar aqui que mudanças de mentalidade e conversão de espírito não podem ser sentidas a não ser mediante manifestações concretas que se dão na vida cotidiana, nas relações próximas ou distantes, e que se tornam paradigma de outras formas de ser humano.

V. 10 – Esse versículo é como um resumo teológico do ensinamento que a narrativa propôs: “O Filho do homem veio buscar e salvar o perdido”. É inte ressante colocar essa narrativa junto com a parábola do rico e do publicano que Lucas apresentou no capítulo 18.19ss. Ali o rico é confrontado com o mendigo Lázaro e a distância entre a riqueza de um e a miséria do outro. A parábola mostra os sofrimentos do rico após a morte e a sua consciência de que errou fatalmente em vida. Chama a atenção que, na sua conversa com o pai Abraão, ele aprendeu a interceder pela família ainda viva para que, ao menos ela, seja poupada dos tormentos pelos quais ele está passando na eternidade. A resposta de Abraão é dura e objetiva: Eles têm Moisés e os profetas; ouçam-nos. O rico não se conforma: Não, pai Abraão, se alguém dentre os mortos for ter com eles, irão se arrepender Abraão conclui dramaticamente: Se não ouvem Moisés e os profetas, tão pouco se deixarão persuadir, ainda que alguém ressuscite dentre os mortos. Parece que a história de Zaqueu, o encontro com Jesus e a salvação ou libertação que sua casa experimentou mostram uma possibilidade de retomar a vida conforme a justiça, a graça e o amor de Deus. Nesse caso, porém, se trata do encontro com o Jesus terreno e não ainda com o Ressuscitado.

3 Meditação

Li muitas vezes essa narrativa. E a cada leitura mais me sentia desafiado a pensar como anunciar a mensagem que está nela escondida. Pois não é prudente espiritualizar esse texto ou ficar na sua superfície. Tem muito em jogo no que se

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passou entre Jesus, Zaqueu, sua casa e suas relações sociais, políticas, étnicas e religiosas ou espirituais. É uma história exemplar e não consegui deixar de lê-la como contraponto do drama vivido pelo rico da parábola em que o miserável Lázaro é quem encontra a vida plena e não o rico autossuficiente e que despreza o resto da humanidade.

Zaqueu foi visto por Jesus, chamado pelo nome e visitado em casa. Jesus ultrapassou todas as medidas de segurança e de pureza previstas na Lei para se hospedar em sua casa. Gesto ousado e sem comparação. O gesto de Jesus, porém, repercutiu profundamente na vida daquela casa como nunca antes. E a transformação da casa atinge Zaqueu e sua parentela, traz para o seu convívio gente pobre e gente que foi ludibriada por ele e seus subordinados. A vida jamais foi a mesma para essa família depois da visita de Jesus. E teve consequências sem precedentes. É interessante observar que não foi preciso que Jesus fizesse qualquer exigência ao anfitrião corrupto. Ele mesmo sabia o que deveria fazer. Houve aqui uma transformação abarcadora, uma libertação holística que envolveu a pessoa, a família, o projeto de vida, e até mesmo a sociedade mais próxima.

Não se pode exagerar, porém, pois um caso como esse não acontece todo dia, nem em Jericó e muito menos no Brasil. Mas será que poderíamos encontrar algum exemplo de um possível Zaqueu contemporâneo? Imagino que colegas que estarão preparando sua prédica nesses dias encontrarão aqui e ali, em sua experiência mi nisterial, algum caso correlato, mesmo que com as diferenças compreensíveis de distância no tempo, de cultura e tradições religiosas. Cabe analisar – quem sabe – um desses casos e ver como ele poderia ilustrar a compreensão do que aconteceu com Zaqueu em seu encontro com o mestre Jesus, o filho da nova humanidade.

O que penso ser importante enfatizar a partir da narrativa desse encontro é que a visita de Jesus em nossa casa não acontece por acaso. Ele chama e se convida a entrar nela. Ele busca a hospitalidade em nossas casas, em nossas vidas e em nossas relações para nos abrir mente, coração e vida para o que é de fato importante: que se rompam os preconceitos do que é justo e injusto, do que seja puro e impuro, do que significa viver com alegria ou tristeza, do que é ser livre ou dominado pelos demônios da riqueza, do poder e da autossuficiência egoística.

Zaqueu – ao tomar uma decisão crucial em sua vida e que transformou sua casa – pode servir de inspiração para a nossa vida hoje em dia. Salvação ou liber tação acontecem, por vezes, sem aviso e de forma a nos surpreender no fundo da alma e da nossa vida.

Zaqueu pode servir como inspiração hoje para compreender que uma vida com sentido e dignidade não se encontra na solidão de uma vida higienicamen te apartada. É preciso abrir-se para as pessoas, sobretudo, para as mais pobres, vulneráveis e sem quem as reconheça. É preciso reconhecer nossos pecados, nossa cegueira, nossa falsidade para receber salvação e libertação. E assim, possi velmente será junto daquelas pessoas aparentemente desprezíveis que uma nova qualidade de vida será experimentada.

Mesmo nesses tempos de pandemia, de distanciamento social e de cuidados extremos para evitar infecções ou contaminação de outras pessoas. Então

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sim, será possível experimentar o que significa o dito de Jesus: “Hoje houve sal vação nesta casa”.

4 Subsídios litúrgicos

Se me fosse permitido sugerir passos para a pregação, eu dividiria o texto nas duas partes mencionadas e destacaria o que enfatizei aqui: a salvação que a visita de Jesus traz envolve ou abrange toda a casa, as pessoas que nela vivem, suas relações, seus projetos pessoais e sua incidência no ambiente de vida. Gostaria de deixar dois exemplos que me impressionaram já há algum tempo. Um da Ásia e outro do Brasil.

O primeiro exemplo é a história de Muhammad Yunus, economista e ban queiro de Bangladesh que, em 2006, foi laureado com o Nobel da Paz. É autor do livro O banqueiro dos pobres, publicado no Brasil pela Editora Ática (2003). Ele afirma que é possível acabar com a pobreza por meio do investimento em favor das pessoas pobres, como faz no banco que fundou e do qual é presidente, sendo o governo de Bangladesh seu principal acionista. Trata-se do Grameen Bank, que já chegou a ter mais de dois milhões de acionistas e cuja experiência exitosa é oferecer microcrédito para milhões de famílias, especialmente mulheres. Um de talhe importante desse banco é o fato de praticamente não ter inadimplência das pessoas que recebem os créditos, que variam de dez a cem dólares. A conclusão de Yunus é que as pessoas pobres são ciosas em relação a suas contas e procuram sempre pagar em dia os seus débitos. Ele afirma que é impossível ter paz com os níveis de pobreza que existam atualmente no mundo.

O segundo exemplo é o ex-banqueiro de investimentos Eduardo Moreira, que atuou no mercado financeiro por vários anos. Ele é empresário, engenheiro, palestrante, escritor, dramaturgo. Formou-se em Engenharia Civil pela PUC do Rio de Janeiro e foi aluno de intercâmbio na Universidade da Califórnia em San Diego, EUA, onde estudou economia. Moreira deu uma reviravolta em sua vida quando foi convidado pela Coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) para conhecer alguns assentamentos e as cooperativas de produção de alimentos orgânicos. O MST é o maior produtor de arroz orgâ nico e livre de venenos no Brasil e na América Latina. Ao conhecer de perto a luta dessas famílias e o sucesso da agroecologia, Eduardo Moreira tornou-se um defensor da Reforma Agrária, com o uso das tecnologias orgânicas e a aposta nos trabalhos coletivos das cooperativas. Sua virada foi completada por visitas a comunidades indígenas. Uma das que mais o impactou foi conhecer aldeias dos Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, o sofrimento dessas comunidades cercadas por fazendas de gado e produção de soja, a invasão de seus territórios e a luta para preservar seu modo de vida. Moreira abandonou o mercado financeiro e hoje se especializou em propor uma nova economia para o Brasil, baseada na cooperação, em novas tecnologias e na defesa do meio ambiente. Um de seus livros recentes é Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019).

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21º Domingo após Pentecostes

Ainda assim, é preciso reafirmar que esses exemplos, se existem, não são facilmente seguidos. Pelo contrário, a experiência ensina que a riqueza no mundo e no Brasil fica cada vez mais concentrada em poucas mãos, enquanto a pobreza voltou a crescer, o desemprego avulta sem parar e a fome já atinge, de alguma forma, quase a metade da nossa população. Zaqueu encontrou a salvação e libertação de sua casa a partir da chegada de Jesus no seu meio; e tirou as consequên cias dessa nova de grande alegria. E nós? E nossas comunidades? Como um contraponto à narrativa de Zaqueu, trago um poema do pastor Lindolfo Weingärtner, publicado em 1981, no seu livro Prática da esperança (p. 9s), no qual ele, com sensibilidade e sabedoria, nos fala de um velho pescador e o que aprendeu dele:

Uma canoa à beira da laguna. Um velho pescador, os pés firmados na popa, lançando a tarrafa. Há meia hora que o estou observando. É um senhor tarrafeador: em círculo perfeito a rede cai sobre a água.

Ele espera, enquanto a tarrafa afunda, até que suas bordas, pesadas de chumbo, tocam o fundo lamacento. Depois começa a puxar a corda, cauteloso, com mãos esperançosas, ansiosas, sentindo se há vida na rede, ou se vai ser outra esperança desfeita.

A rede está vazia. Ele a sacode, prepara o próximo lance. Contei os arremessos: Vinte e três vezes seguidas ele lançou a tarrafa. Vinte e três vezes a tirou da água, vazia.

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21º Domingo após Pentecostes

Ele sabe: Há dias em que é preciso lançar a rede contrariando as expectativas, contrariando o bom senso –vinte vezes, cinquenta vezes, cem vezes.

Porque é preciso lançar a rede, ensaiando esperança, praticando esperança –porque deixar de lançá-la seria o mesmo que desistir, e desistir seria igual a morrer. Prática da esperança: agradeço-te, velho pescador. Teu trabalho não foi em vão. Hoje eu necessitava desesperadamente que alguém me desse o recado que me acabas de dar. Eu o entendi.

Bibliografia

ADEHEYMO, Tokunboh (Ed.). Comentário bíblico africano. Trad. Heloisa Mar tins et al. São Paulo: Mundo cristão, 2010.

HOEFELMANN, Verner. A missão de Jesus e a missão da comunidade no Evangelho de Lucas e em Atos dos Apóstolos. Estudos Teológicos, v. 28, p. 71-98, 1988. Disponível em: <http://periodicos.est.edu.br/index.php/ estudos-teologicos/article/view/1144/1089>.

WEINGÄRTNER, Lindolfo. Prática da esperança. Poemas e meditações para refletir e orar. São Leopoldo: Sinodal, 1981.

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21º Domingo após Pentecostes

DIA DA REFORMA 31 OUT 2022

PRÉDICA: FILIPENSES 2.12-13

ISAÍAS 45.19-25 MATEUS 10.26b-33

A graça de Deus – nossa salvação

1 Introdução

Novamente celebramos o Dia da Reforma. Essa data relaciona-se com anunciar e proclamar a palavra de Deus, sua verdade e justiça. Esses são va lores centrais para a Reforma e não devem ser deixados em segundo plano. A celebração da Reforma deve ser vista como uma oportunidade para olhar para a pregação como sendo algo mais amplo do que subir ao púlpito e proferir palavras. A palavra vem de Deus e por nosso meio, por meio do testemunho das comuni dades deve chegar às pessoas, promover consolo, mudança de vida e mudança de posturas em meio à sociedade.

O culto no Dia da Reforma deve ser encarado como uma oportunidade para falar de aspectos centrais da Reforma promovida por Lutero. Em 2022, a Reforma cairá numa segunda-feira e a tendência de juntar com a celebração de domingo deveria ser evitada. A relevância da data é nobre e merece ser priori zada, independentemente de ser feriado ou não. Onde não é feriado, que possa ser celebrado na segunda-feira à noite, mesmo que seja por meio de celebração on-line. A data, todavia, deve ter prioridade e ser mantida exclusivamente para celebrar a Reforma, dando-lhe caráter e oportunidade de apresentar a obra de Lutero, suas ênfases e descobertas teológicas e os frutos decorrentes. Feitas essas considerações, olhemos os textos que motivarão a reflexão do dia. A leitura do Antigo Testamento, Isaías 45.19-25, tem como ponto central a exclusividade de Deus, criador do mundo e da vida, sobre toda a criação. Não pode haver outros deuses (v. 20: [...] pessoas carregando suas imagens [...]). Nisso encontramos um pilar largamente apontado por Lutero e a Reforma, cuja mensagem deve perpassar a celebração do dia.

A passagem do Novo Testamento, Mateus 10.26b-33, tem como uma das principais características a narrativa de incluir os discípulos na atuação de Jesus. Mateus 9.35-38 aponta para a amplitude do desafio presente, ou seja, grande colheita, apresentando o clamor para que trabalhadores sejam agregados na jorna da. Mateus 10 também apresenta Jesus chamando os discípulos, instruindo-os e advertindo-os sobre seu papel frente à sociedade. Mateus 10.26b-33, por sua vez, tem caráter consolador e encorajador frente aos desafios colocados (v. 26: não tenham medo de ninguém; v. 28: não tenham medo de quem mata o corpo), sem deixar de lado dimensões da promessa, conforme v. 31. A mensagem da palavra

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Odair Airton Braun

de Deus não pode e não deve ficar oculta. Sua luz, com potencial de transformar realidades, deve ser posta em destaque.

Isaías e Mateus, juntamente com a passagem de Filipenses 2.12-13, indi cada para a pregação, estão perpassados pela intencionalidade de fortalecer os ouvintes diante dos desafios que os mesmos enfrentam no dia a dia. E uma vez desafiados, deve haver compromisso e envolvimento na busca do novo, da trans formação. Sendo dia de celebrar a Reforma, essa perspectiva deve ser explorada a partir da atuação e exemplo de vida de Lutero.

2 Exegese

Importante observar que a cidade de Filipos, local do destino inicial da Carta aos Filipenses, foi uma importante colônia militar romana. Paulo esteve nessa cidade na sua segunda viagem missionária, entre o ano de 50 e 51 d.C. Pesquisadores defendem que ali foi o primeiro local na Europa onde chegou a palavra de Deus, que teria tido início na casa de uma mulher, Lídia, comerciante, que ouviu e acolheu a mensagem de Paulo, sendo batizada, como pode ser visto em Atos 16. Conforme 2 Coríntios 8.2, essa comunidade de Filipos teria levan tado uma oferta destinada para o sustento de Paulo ao longo de suas viagens. O encarregado de levar e entregar essa carta teria trazido de volta, aos filipenses, a carta em estudo. Exegetas também apontam que Paulo teria, para com essa comunidade, zelo, cuidado e carinho, razão pela qual a linguagem é cordial. Em resumo, a carta visa avivar e fortalecer a alegria em Deus.

Filipenses 2.1-11 é perpassado pelo ensino de Paulo, que aponta de modo contundente para a humildade de Cristo, que deve ser o exemplo a ser seguido. Isso é possível, pois Cristo concede discernimento e confiança, força e orientação, de modo gratuito, encorajando-nos e dando inspiração por intermédio de seu amor e sua atuação. Em Filipenses 2.12-13 deve ser observado que Paulo não se dirige a uma pessoa. Ele afirma meus amados, do qual se entende estar falando com um grupo de pessoas, com uma comunidade. Igualmente fica evidente que Paulo tem estima e consideração por aquela comunidade que é tratada com pala vras carinhosas e de estima.

Filipenses 2.12-13 precisa ser visto dentro de um conjunto maior, ou seja, deve ser lido levando em consideração o hino cristológico de Filipenses 2.(5)6-11. Nessa passagem, destaca-se que olhar para o exemplo de Cristo e procurar ter a mesma linha de conduta e atuação, ou seja, obedecer a Deus, é a vontade e o convite que o Criador faz. Os v. 12 e 13 são desdobramento do exemplo de Jesus Cristo, o qual manteve obediência até a morte na cruz para, desse modo, cumprir os propósitos de Deus. Celebrando a Reforma, essa verdade deve ser destacada com intensidade. Também é importante observar que o v. 10 faz referência à obediência e à oração, que, de certa forma, abrem as portas para a salvação, des tacada no v. 13.

A partir de Filipenses 1.27 pode-se deduzir que os destinatários da carta enfrentavam alguma ameaça e possíveis influências estranhas vindas do mundo externo. A passagem de Filipenses 2.2 deixa transparecer a existência de intrigas

327 Dia da Reforma

no contexto dos receptores da carta. Ao que parece, a intenção de Paulo é prover e incentivar a unidade do grupo/da comunidade e seus integrantes. Isso tem estreita relação conosco e com os desafios que experimentamos. Filipenses 1.27 apresen ta uma exortação no sentido de buscar resistência conjunta e perseverança diante dos desafios, e elas, a resistência e a perseverança, precisam estar ancoradas em Jesus Cristo.

Olhando de modo mais atento à passagem de Filipenses 2.1-13, percebe -se que humildade, harmonia e unidade são definições que descrevem aquilo que Paulo profere e que deve servir de admoestação também para os nossos dias. A vida cristã tem sua razão de ser unicamente em Deus e em seu seguimento. Na passagem em estudo, reforça-se a certeza de que a salvação é ação de Deus, sendo o fim último de vivermos em unidade e em comunidade. Essa salvação vem a nós por meio da graça de Deus; um presente por ele concedido de modo soberano. Contudo, também deve estar evidenciado que isso não elimina a responsabilidade que temos. Salvação não é resultado de esforço humano, mas é ação primeira de Deus a favor da humanidade, ou seja, das pessoas.

O texto indicado para orientar a pregação na Reforma de 2022 expressa o clamor e o desejo de Paulo para que a comunidade permaneça firme e perse verante no seguimento a Jesus, em cumprimento à vontade de Deus, que faz da comunidade um espaço diferenciado em meio ao mundo. O v. 12 inicia afirmando portanto ou por isso. Deste modo, estabelece-se contundente ligação com o hino cristológico que antecede a passagem em estudo, ou seja, Filipenses 2.5-11, assim como as exortações formuladas em Filipenses 1.27-2.4.

Desenvolver a salvação, assim como referido por Filipenses 2.12, pressu põe que Deus já agiu e nos alcançou. Receber a salvação de Deus de modo total mente gratuito é um belo presente. Mas não pode ser visto e entendido como carta de alforria que leva ao descompromisso. A salvação precisa ser assumida com gratidão, levando ao comprometimento e a ações de transformação e preservação da vida e do meio ambiente. A salvação é obra de Deus a nosso favor. Por força própria não a alcançaríamos. Deus o efetua por nós (v. 13), por isso é presente. E presente recebido deve ser integrado na vida, deve ser usado, como forma de demonstrar gratidão.

O v. 13 deixa bem explicitado que tudo depende de Deus, o qual não mediu e não mede esforços para se colocar ao lado de seu povo em todos os momentos da caminhada. Creio que, em se tratando de culto da Reforma, essa verdade pode ser explicitada com a vida e atuação de Lutero, os riscos e ameaças que sofreu e, especialmente, a forma amorosa com a qual Deus o guardou e sustentou diante de cada situação e desafio por ele enfrentado. Portanto cruzar os braços e ficar aguardando soluções, sem tomar o caminho da ação, não condizem com o que Deus de nós espera. Novamente, ligando isso a Lutero, diante das inconsistências que observou, entre a Sagrada Escritura e seus ensinamentos e a prática cotidiana da igreja de então, se tivesse se omitido ou calado, nada teria sido alterado e a Reforma teria sucumbido.

328 Dia da Reforma

Meditação

De Deus recebemos incumbências e isso nos compromete por meio do Batismo. Os discípulos foram chamados. Nós também somos. Também nisso re side papel essencial que não deveria ficar em segundo plano num culto que celebra a Reforma. A partir dessas passagens é possível questionar: como, em nossa vida pessoal, familiar e comunitária, temos pregado e testemunhado a boa-nova? Como temos anunciado a salvação? Onde, como e com quem colocamos nossos dons a serviço? Estamos em meio ao mundo e seus desafios e não podemos ficar omissos. É preciso repetir à luz do dia e anunciar abertamente (Mt 10.27).

Comunidade luterana tem como papel primordial apontar, testemunhar e anunciar que Cristo salva e que dele vem a justiça, o ânimo e a força para viver e enfrentar percalços que se apresentam. Entrega e submissão a Deus, que concede a salvação por meio de Jesus Cristo, deve ser o anúncio irrestrito de toda a comunidade. É papel central da comunidade viver e anunciar essa verdade. Isso não pode deixar de ser proclamado por ocasião da celebração da Reforma. Como batizados e integrantes de uma comunidade, temos o dever de dar testemunho público convincente, ao ponto de convidar e encantar mais pessoas a seguir nessa vereda. Novamente destaco que a vida e a obra de Lutero é exemplo reluzente de uma vida vivida nesse sentido. Por essa razão, a Reforma deve ser celebrada com alegria e gratidão. Reitero, culto de Reforma é razão de gratidão e alegria, devendo ser momento especial de impulsionar para ensinamentos, comprometendo para as mudanças que são necessárias diante das agruras e descaminhos colocados em nosso contexto. Portanto Reforma deve e precisa ser comemorada com temor e tremor, mas, especialmente, perpassada por alegria e gratidão. Importante reiterar ainda que a passagem de Filipenses 2.5-11 deve estar como pano de fundo no momento de preparar a mensagem para este Dia da Reforma, pois aponta com precisão a centralidade de Cristo. O que aconteceu com Cristo precisa ser o exemplo para as pessoas cristãs, para as comunidades. Isso equivale a dizer que Cristo não procurou seus próprios interesses; ele se esvaziou e se entregou, na cruz, por nós. Esse é o caminho a ser seguido. Dito de modo resumido, olhar para a salvação requer olhar para Cristo. A comunidade cristã precisa agir e atuar a favor do reino de Deus, opondo-se às forças que se con trapõem a ele. Novamente, o exemplo da vida de Lutero e sua atuação nos dão parâmetros nessa direção.

O evangelho é força de Deus que vem em nosso socorro. Essa verdade é ressaltada e recordada por Paulo aos filipenses. Também para nós, hoje, se confi gura numa grande riqueza. Destaca-se que em Cristo está a salvação eterna; longe dele, a perdição eterna. Esse é o juízo de Deus. Nesse entremeio a comunidade cristã, a fim de enfrentar percalços e oposições, precisa estar fortalecida e em perfeita harmonia e união. A pessoa cristã precisa se mostrar ativa para assegurar a salvação recebida de Deus, fazendo-o com temor e tremor. Mesmo que enfrente muitas dificuldades, ela deve resistir à força do desalento. E essa resistência deve estar ancorada no auxílio da graça de Deus.

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Dia da Reforma

4 Imagens para a prédica

Conforme visto anteriormente, percebemos que Cristo fez por nós tudo o que precisamos para a salvação. Diante disso, uma singela estrutura para a pre gação poderia ser: a) as descobertas de Lutero sobre graça e salvação; b) a graça de Deus – nossa salvação; c) somos vistos por Deus pela fé, não pelas obras.

5 Subsídios litúrgicos

Saudação: Proponho fazer uso de Filipenses 2.14-15: Façam tudo sem murmurações nem discussões, para que sejam irrepreensíveis e puros, Filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração pervertida e corrupta, na qual vocês brilham como luzeiros no mundo.

Hinos: Importante que nesta data sejam recordados hinos de autoria de Lutero, como forma de apresentar às pessoas o seu pensamento teológico. Sugerimos: HPD I, 88, 97, 106, 147, 155.

Confissão de pecados: Sugiro usar o Salmo 32.1-5,8,10-11.

Liturgia da palavra: Poderia ser usado o Salmo 46, fazendo a leitura intercalada entre o oficiante e a comunidade reunida, de modo que o versículo final seja lido em conjunto.

Oração do dia: Deus da vida, tu nos deste teus ensinamentos, tua palavra, como luz e orientação para a caminhada. Tu nos chamas e acolhes para te seguir e servir com fé e coragem, com júbilo e alegria. Permite que sempre possamos ser por ti fortalecidos e por tua graça orientadas. Que tua palavra seja sempre lâmpada para os pés e luz para o viver, concedendo sabedoria e discernimento. Permite que possamos seguir teus ensinamentos e, assim, dar testemunho ao mundo. Amém.

Bênção: O Senhor te dê paz. Para o corpo, bem-estar; para a vida, salvação; para tua família, futuro. Assim te abençoe o Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.

Bibliografia

STAAB, Karl; BROX, Norbert. Cartas a Los Tesalonicenses. Carta de La Cautividad. Cartas Pastorales. Barcelona: Herder, 1974.

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Dia da Reforma

PRÉDICA:

ROMANOS 8.31-39

ISAÍAS 25.1,8-9 JOÃO 11.1-5,17-21

Amor que não abandona

1 Introdução

Na religiosidade cristã popular brasileira, o Dia de Finados é vivenciado como um feriado dedicado à lembrança, orações e homenagens às pessoas que já faleceram. Nós, pessoas cristãs luteranas, colocamos a ênfase desse dia no reme morar e na mensagem da ressurreição.

Para a reflexão deste Dia de Finados somos confrontados com os textos bíblicos de Romanos 8.31-39, Isaías 25.1,8-9 e João 11.1-5,17-21.

No texto de Isaías 25.1,8-9 lemos sobre uma realidade nova e uma mudan ça radical da nossa experiência de vida. Isso é possível não por nossas próprias capacidades, pelo contrário, é realidade instaurada por Deus. Por isso não precisamos permanecer abatidos e tristes. Pelo contrário, na sua salvação exultaremos e alegraremos (v. 9b).

O texto de João 11.1-5,17-21 relata-nos sobre a morte de Lázaro. Ao pensar nele, é quase impossível não relembrarmos de sua ressurreição. Mas aqui o texto está delimitado de tal forma que o foco permanece na realidade do adoecimento e da finitude da vida.

Os dois textos de apoio para a mensagem retratam a vida delimitada e passageira que nós como seres humanos experimentamos. Essa realidade e a pro messa de uma nova existência inaugurada por Deus, como ouvimos de Isaías, são as pontes temáticas com o nosso texto da prédica.

2 Exegese

Agora queremos observar detalhes referentes ao nosso texto de Romanos 8.31-39.

V. 31 – Paulo conclui o até agora escrito e declara: Deus é por “nós”. Aqui o “nós” inclui os destinados, chamados e justificados. Fazendo uso da forma literária diatribe (diálogo, conversação), Paulo anuncia sua mensagem servindo -se de perguntas e respostas. A pergunta retórica: Se Deus é por nós, quem será contra nós? retrata Deus como o ser decisivo. Deus é mais poderoso do que todos os outros seres e poderes, e seu partidarismo por aqueles “justificados” elimina qualquer acusação contra eles (v. 34).

V. 32 – Deus aparece como aquele que se doa e defende as pessoas. Ele dá a elas o seu próprio Filho como a coisa mais preciosa. E isso não de qualquer

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02 NOV 2022
FINADOS
Daniel

forma nem como um presente comum, mas por meio do não poupar sua vida e na entrega dele na cruz. Romanos 8.32 assemelha-se a Gênesis 22.12,16, onde Deus afirma a Abraão frente ao sacrifício de Isaque: não me negaste teu único filho. Contudo, não é certo até que ponto essa formulação se encontra como pano de fundo do nosso versículo. Da doação do mais valioso Paulo conclui que Deus também não poupará nada que seja menos valioso e dará todas (ta panta) as coisas aos justificados. Portanto Jesus Cristo não é o único presente, tudo o mais também será dado com ele. Mas o que se entende por “tudo”? Em sentido amplo, ta panta pode incluir o mundo em que as pessoas se movem e o mundo além, pode estar relacionado com o mundo terreno ou apenas com a justificação e a glória seguinte na vida eterna. Paulo não deixa isso explícito.

V. 33 – O verbo “trazer acusação” (enkaleō) demonstra que Paulo está pen sando em um julgamento, numa audiência, onde pessoas são intimadas frente a outras. Aqui Deus é o que elegeu e separou para si e, acima de tudo, é o juiz que justi fica. Paulo continua fazendo uso da retórica e pergunta: quem intentará acusação?. A pergunta pode, por um lado, testemunhar a improbabilidade de um ser aparecer como acusador das pessoas cristãs em face do poder de julgamento e defesa de Deus. Por outro lado, também pode significar que o ser que ousa fazer a acusação não tem chance contra o poder de Deus de trazer sua acusação com sucesso.

V. 34 – Se Deus é defensor e juiz misericordioso, quem é aquele que con dena? Paulo aponta para Cristo. No entanto, não fica claro se é Jesus aquele que condena ou se ele aparece aqui como resposta a uma pergunta retórica, mostrando ser ele quem não condena. A falta de clareza surge devido à falta de sinais de pontuação do texto. Se alguém ignora os detalhes sobre a vida e mensagem evangélica sobre Jesus Cristo, pode entender Jesus Cristo como aquele que con dena. No entanto, as especificações sugerem a afirmação oposta: Cristo Jesus está morto e morreu pelos pecados dos seres humanos. Mais do que isso, ele é aquele que ressuscitou dos mortos. Como Ressuscitado, ele se senta à destra de Deus e aparece como que um assessor do juiz gracioso, sendo por “nós” por meio da sua intercessão. Jesus não é o que condena.

V. 35 – Apontar para o “amor de Cristo” também fala contra o fato de que Jesus Cristo poderia condenar; pelo contrário, ele ama! Nesse versículo Paulo continua com perguntas retóricas. Ele aponta para a pergunta existencial sobre a possibilidade ou não de que alguém ou algo possa separar as pessoas cristãs do amor de Deus e, assim, colocá-las em perigo de condenação. Essas possíveis realidades ameaçadoras Paulo enumera em sequência e relata as necessidades da vida terrena que ele experimentou em primeira mão durante as suas viagens missionárias (cf. 2Co 11.23-28).

Os termos “nudez” (gymnotēs) e “espada” (machaira) não são claros. Assim como gymnotēs pode significar nudez física, também é um termo para a falta de proteção devido a roupas e equipamentos inadequados, mas também devido a condições de vida geralmente instáveis e inseguras. O termo machaira pode ser entendido como um perigo das armas. A machaira não aparece na lista de perigos descrita em 2 Coríntios 11.23-28, mas isso não significa que Paulo não foi

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Finados

ameaçado com uma arma. Afinal, ele escreve de si mesmo que foi espancado com açoites e castigado com apedrejamento.

Como todos esses perigos podem separar a pessoa crente do amor de Deus? A melhor coisa a lembrar é que os perigos afetam o relacionamento da pessoa cristã com Deus por levar a dúvida da existência ou assistência dele em tempos de necessidade. Sem fé e pela falta de relacionamento com Deus, a pessoa cristã teria arriscado a participação na salvação e seria exposta a julgamento divino. Mas se as necessidades mencionadas podem separar a pessoa cristã do amor de Cristo, não podemos deduzir baseados no v. 35. Somente os v. 37-39 trazem a resolução para essa pergunta.

V. 36 – Aqui Paulo menciona o sofrimento escatológico já previsto na Bí blia Hebraica ao fazer uma citação literal de Salmo 44.22. Esse trecho do salmo foi interpretado na literatura rabínica como uma menção aos mártires macabeus. A inserção dele aqui quer mostrar que o sofrimento pode ser consequência de vi venciar e testemunhar a fé. As pessoas cristãs podem sofrer “o dia todo”, ou seja, incessantemente. A implacabilidade não afeta apenas um dia particular de juízo, mas se estende por todos os dias da vida cristã.

V. 37 – Diante dessas adversidades, as pessoas cristãs são “vitoriosas” na medida em que não são separadas do amor de Deus. O verbo hypernikaō significa “ser extremamente vitorioso”, sublinhando assim o aspecto triunfante da vitória. Embora a vitória já esteja presente, pode-se presumir que a conclusão da vitória com a justificação final e a entrada na vida eterna ainda estão pendentes. A vitória não pode ser atribuída aos próprios esforços das pessoas cristãs, pois ela não pode ser experimentada sem aquele “que nos amou”. “Aquele que nos amou” certamente é Jesus Cristo. Esse amor aconteceu no passado e está relacionado com a morte vicária de Cristo na cruz, que perdoa o pecado e é base da justificação e vida eterna.

V. 38, 39 – Aqui Paulo deixa claro que nada pode separar as pessoas cristãs do amor de Cristo. Para sublinhar essa impossibilidade, ele enumera os poderes e seres que não conseguem efetuar essa separação. A lista é dividida em quatro pares, sendo que os dois membros do par sempre se complementam e formam um todo. Assim, fica evidente que o amor de Cristo não pode ser limitado de forma alguma e dele a pessoa cristã não pode ser separada, seja pela “morte – vida”, “anjos – principados”, “presente – futuro”, “poderes”, “altura – profundidade” ou “outra criatura”.

Por fim, Paulo fala do “amor de Deus” em vez do “amor de Cristo”. No entanto, a adição “em Cristo Jesus” mostra que o amor de Deus não pode ser separado de Jesus Cristo. O amor de Deus é demonstrado no fato de que ele deu seu Filho unigênito por nós (v. 32).

3 Impulsos para a mensagem

Deus é por nós – esse é o centro da mensagem. Toda a pregação do apóstolo se resume nessa boa notícia. A reflexão que Paulo faz não é se Deus existe ou não. Sua afirmação é categórica: Deus está a nosso favor e ao mesmo tempo

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Finados

conosco. Ouvir no tempo de Finados essa mensagem de fé é confortador, tendo em vista as pessoas queridas que rememoramos neste dia, e, por outro lado, de safiador, não querendo deixar-nos esmorecer e abater diante dos sinais de morte do nosso mundo. Saber que Deus é por nós quer encorajar-nos a erguer nossas cabeças diante das dificuldades, fortalecendo nosso ânimo para lutar pela vida. Deus é por nós. Nada tem mais importância do que isso.

Para Paulo não há outra maneira de falar sobre Deus. Isso só é possível a partir deste saber: Deus é por nós! Não há outra maneira de falar sobre o início e o fim da nossa vida pessoal, sobre nossa concepção e nascimento e sobre nosso processo de morrer e a morte como acontecimento, que está logo aí à nossa fren te. Tudo isso é determinado por este Deus que é por nós. Deus era por nós ontem, é por nós hoje e será por nós no futuro.

Mas como podemos afirmar isso convictamente, tendo vista a situação do nosso mundo? Percebemos suas dores, suas doenças, sua crescente miséria. Ve mos seus gemidos, suas próprias catástrofes, que não podem ser interrompidas quando todos esperam que alguém faça algo, enquanto quase ninguém se desaco moda para lutar por um mundo melhor, enquanto quase ninguém mais consegue ser empático e praticar a misericórdia. Percebemos o morrer e a morte do outro/ da outra sem nos sentir realmente tocados e sem ter a com-paixão que atua pela promoção da vida.

Nossa experiência neste mundo parece ser a de que Deus está ausente ou que ele é indiferente frente à morte e seus sinais. Nosso mundo parece abandonado à sua própria sorte. De qualquer forma, nós vivemos neste mundo longe de correspondermos ou sermos fiéis no amor e na justiça, características do Deus que é por nós. Os sinais de morte que lançamos no mundo são prova da nossa falta de amor e da injustiça perante as pessoas e a criação. Como Deus pode ser por nós, se nós vivemos envoltos e envolvemos outros e outras com nossos sinais de morte? Ele não deveria ser, acima de tudo, contra nós? Paulo direciona nosso olhar para a cruz de Cristo. Aquele que ali está pen durado é um ser humano. O crucificado morre em meio à sua angústia e suplica: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Nessa morte na cruz, a huma nidade vivencia as consequências do seu desejo por uma vida independente de Deus. Na cruz, o ser humano aparece realmente abandonado por Deus. Deus permitiu que esse abandono atingisse precisamente aquela pessoa na qual ele veio ao mundo, na qual ele se aproximou de nós e em quem nós, humanos, vemos o rosto revelado de Deus em nosso meio. Deus não poupa seu Filho na cruz, e com isso, por todos nós o entregou [...] (Rm 8.32).

Nosso abandonar a Deus leva Deus ao Crucificado, leva Deus ao esvazia mento e abandono de si mesmo. E nesse abandono, num estar “contra”, ele é por nós. Em sua própria doação, naquele que Deus deu por nós, Deus é conosco e a nosso favor. Deus, diante de quem não podemos ser/fazer justiça, se faz justiça por nós. Quem não poupou o próprio Filho, mas o deu por todos nós, como não nos dará tudo nele? Tudo! Não sobra nada contra nós. Nada! Nem mesmo a morte.

Deus é por nós. Essa é a história e o resumo da vida de Cristo Jesus. Ele é chamado de Emanuel na história do Natal e é o Crucificado-Ressuscitado na his

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Finados

tória da Páscoa. Ouvimos do Deus que está conosco e é por nós quando ouvimos a história de Jesus: quando ele abençoou os pobres e lhes prometeu o reino dos céus, quando consolou os que sofriam, quando deu vista aos cegos, quando não condenou a mulher adúltera que seria apedrejada, quando anunciou o evangelho aos desprovidos, quando orou por aqueles que o crucificariam e pediu perdão divino por nós seres humanos.

Deus é por nós, pois ele é puro amor. E esse amor está encarnado no Cristo vivo. Por amor ele se fez fraco e Deus colocou-se contra si mesmo. Logo, exata mente onde ele estava tão fraco por causa do seu amor, seu amor foi mais forte do que a morte. Poderoso sobre a morte. Assim sendo, seu amor é o poder que mudou o mundo e o torna nova realidade. Seu amor está no agir em prol da vida, no agir motivado pela fé a partir do Crucificado-Ressuscitado. Seu amor é um “sim” para o nosso futuro. Nada pode nos separar de seu amor, diz o apóstolo. Nenhum poder no mundo possui essa capacidade. Os poderes e sinais de morte do nosso mundo só têm força o suficiente para nos ameaçar. Eles podem nos assustar no presente e assombrar um futuro seguro. Morte e vida, anjos e principados, presente e futuro, altura e profundidade, Paulo nomeia toda a extensão do nosso mundo, que se estende em dimensões materiais, cósmicas, mentais ou espirituais. Mas nenhum desses poderes pode nos separar do amor de Deus. Seu amor é mais alto que as alturas e mais profundo que as profundezas de nosso mundo, vem de sua eternidade e se estende por sua eternidade, abrange nossas origens e o nosso futuro.

Estou bem certo, diz o apóstolo. Ter certeza? A partir de nós mesmos, de forma alguma. Manter e viver da fé em dias tão conturbados nos coloca um de safio: perguntas nos perseguem e assediam. Dúvida: Deus está realmente lá para nós? Jesus realmente ressuscitou dos mortos? O amor de Deus por nosso mundo é realmente mais poderoso do que as forças de destruição? Por que não notamos nada disso e por que nosso mundo ameaça perecer por si mesmo? E quando se trata de minha morte, estou realmente certo do amor de Deus, que não me deixará extinguir e me chamará para a vida? Não, por minhas próprias forças, entendimento e convicções não há certezas. Talvez quanto mais experimentamos e vivenciamos, menos seguros ficamos de nossas “certezas”. No humano não há certeza. Por isso devemos nos refugiar com o nosso pequeno eu e com nossas perguntas e dúvidas e apegar-nos ao “Eu” da grande declaração de amor de Deus pelo nosso mundo: Eu sou a ressurreição e a vida (Jo 11.25). Neste “Eu” amoroso está o Deus vivo, Cristo Jesus, ressurreição e vida. Sobre todas as coisas: Ele é por nós!

Que ao visitarmos nossos cemitérios e rememorarmos nossos queridos que nos antecederam na morte possamos lembrar e confessar isso.

Bibliografia

SCHMITHALS, Walter. Die theologische Anthropologie des Paulus. Auslegung von Röm 7,17- 8,39 . Stuttgart: Kohlhammer Taschenbücher, 1980.

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Finados

WISCHMEYER, Oda. Beobachtungen zur Gedankenwelt von Römer 8,31-39. In: SCHNELLE, U. [ed.]. The Letter to the Romans. Leuven, 2009. p. 799-809. (BETL, 226).

22º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

PRÉDICA: JÓ 19.23-27a LUCAS 20.27-38

2 TESSALONICENSES 2.1-5,13-17

Pesquise: Proclamar Libertação, v. 37, p. 329ss www.luteranos.com.br (busca por Jó 19.23-27a)

336
Finados

PRÉDICA: LUCAS 21.5-19

MALAQUIAS 4.1-2a

23º DOMINGO APÓS PENTECOSTES

2 TESSALONICENSES 3.6-13

Em tempos de ódio, anuncie que Deus é amor

1 Introdução

Ao sentar-me diante do notebook para escrever este texto, em pleno Do mingo de Ramos de 2021, lembrei o que escrevi para o Proclamar Libertação, v. 45, de 2020, justamente um texto para o Domingo de Ramos, de 28 de março de 2021. Aquela esperança de que hoje celebraríamos o Culto de Confirmação aqui na Igreja da Paz em São Paulo não se confirmou. Como será nossa celebração em novembro de 2022?

Para este PL 46, estamos no Penúltimo Domingo do Ano Eclesiástico, ou seja, um domingo antes apenas do Domingo da Eternidade (Cristo Rei). Em muitas das nossas comunidades, inclusive naquelas onde atuo, é nesse culto que lembramos e citamos todas as pessoas da comunidade que faleceram após o Do mingo da Eternidade anterior. Os últimos domingos do Ano da Igreja, normal mente, são textos que apontam o fim, ou melhor dizendo, a transformação para um novo começo. Todavia, vocês podem imaginar, após um ano da pandemia da Covid-19, as muitas perdas (agora quando escrevo, batemos a triste marca de 300 mil falecidos no Brasil), os sofrimentos, os medos e as incertezas, nós trazemos ao púlpito textos tão difíceis para o momento que vivemos. Porém, vamos ver que, ao mesmo tempo, abre-se uma boa oportunidade (Lucas 21.13, Jesus diz: E isso dará oportunidade a vocês para anunciarem o evangelho). Confesso que fico até constrangido de abordar esses textos depois que dois colegas o fizeram de maneira tão esclarecedora. No PL 20, para o mesmo Penúlti mo Domingo, celebrado em 19/11/1995, Teobaldo Witter escreveu um artigo – com o mesmo conjunto de textos bíblicos – lembrando da finitude da vida. Sempre que estamos em um sepultamento diante de uma pessoa querida, recordamos nossa pró pria vida. A morte, no meu pensar, aponta para a vida. Teobaldo nos lembra também da possibilidade de uma vida banal. Ele nos alerta que nós pessoas cristãs somos chamadas a “ajudar outras (pessoas) a ter sentido na vida e a chegar à salvação”. No PL 37, para o mesmo Penúltimo Domingo, celebrado em 17/11/2013, Eloir Weber também aborda um estudo sobre o mesmo conjunto de textos que agora estamos tratando. De maneira precisa, ele aponta:

Basicamente, três tipos de pregadores destacam-se diante de um conjunto de tex tos como o que se apresenta para este domingo: aqueles que leem e “fogem do texto”; os fundamentalistas, que apontam para as catástrofes atuais e dizem que a

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“Bíblia já previa tudo” (para esses, o texto é ótimo – não dá trabalho); e os que en caram o texto e o respeitam em seu contexto histórico. Esse último grupo tem um desafio, mas também tem a oportunidade de trazer uma mensagem de esperança para a comunidade reunida.

Estou, assim, como Teobaldo e Eloir, abraçando esta terceira opção: pre cisamos sempre – e principalmente nos momentos mais difíceis – despertar a esperança que pode estar sendo ocultada ou adormecida diante de acontecimen tos terríveis. Portanto vamos em frente. A minha diferença com os colegas é que escrevo, como diz o verso 11: Em vários lugares haverá grandes tremores de terra, falta de alimentos e epidemias. Acontecerão coisas terríveis [...]. Eu sei, essas coisas sempre existiram. Entretanto, acredito que jamais pensaríamos numa situação tão diferente e inusitada como a que vivemos em plena pandemia da Covid-19. Semeamos a esperança diante das incertezas. Uma esperança ativa e preocupada com a realidade e as recomendações de saúde que recebemos de quem estuda e trabalha o assunto: pesquisadores da saúde e médicos.

2 Os textos complementares à prédica

Primeiro, vejamos o texto do Antigo Testamento que se encontra em Ma laquias 4.1-2a. O profeta Malaquias foi contemporâneo de Esdras e Neemias. Aliás, Malaquias pode não ser o nome de um profeta concreto – já que não temos nenhuma referência a esse nome em todo o Testamento –, mas o título de um “mensageiro de Deus”. Seu livro provavelmente é datado de 430 a.C. Portanto, diante do contexto da época, desesperança diante do exílio e a cidade destruída de Jerusalém, a palavra profética de Malaquias carrega um sentido apocalíptico de um fim e um novo começo. No texto que lemos acima, Malaquias aponta para o julgamento. Em um novo começo não deveria haver espaço para o orgulho – e orgulhosos, arrogantes, malvados, soberbos (Zedym) – nem espaço para a mal dade – e ímpios, os que praticam o mal (Reshaym). Malaquias, último profeta menor, “fechando” o Antigo Testamento e abrindo espaço para o Novo, celebra a “conversão” e a chegada de um Messias.

Agora, vejamos a Carta aos Tessalonicenses 3.6-13: Muitos aguardavam a parousia, a vinda de Cristo e a complementação do reino de Deus para os dias ime diatos. Alguns continuavam esperançosos e seguindo a vida normalmente. Porém muitos largaram tudo, inclusive o trabalho, achando que o fim era iminente. Aqui no texto bíblico vemos uma exortação contra os que não trabalhavam. Aliás, a reco mendação era: Mas vocês, irmãos, não se cansem de fazer o bem (v. 13).

Atualmente, ouvimos palavras “proféticas” muito estranhas: feijão que cura a Covid-19, “remedinhos” contra o vírus, drogas milagrosas contra a pandemia, palavras contra as vacinas e a vacinação, e muita, muita desinformação.

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O texto da prédica

O texto de Lucas 21.5-19 faz parte de um bloco maior (capítulos 19 a 24) que apresenta o contexto de acontecimentos em Jerusalém nos últimos dias antes da morte e ressurreição de Jesus. Podemos ler nesse bloco vários embates entre Jesus e seus adversários. O contexto do nosso texto se dá no templo de Jerusalém, como mostra o texto anterior da viúva pobre e a ênfase já no v. 5.

A perícope é conhecida como o “pequeno apocalipse”. Isso porque Jesus faz uma série de prenúncios: destruição do templo de Jerusalém, os cuidados com os falsos messias, guerras e revoluções, tremores de terras, fome e epidemias, sinais nos céus, perseguição e prisão de pessoas cristãs, ódio aos seguidores e seguidoras de Jesus. Como já observei anteriormente, essas coisas sempre acon teceram na história. Entretanto, quero ressaltar aqui um ponto em que podemos depositar nossa ênfase em uma prédica. Irei fazer um recorte em nossa perícope (v. 11-17). Aqui, acredito, devemos nos concentrar na realidade em que hoje vi vemos. Duas ênfases poderiam ser contempladas:

a) Vivemos momentos de ódios e confrontos Embora ódios e confrontos façam parte de todas as realidades, em um cur to período de uma geração, do pós-guerra até os tempos atuais, podemos dizer que vivemos dias difíceis nesse sentido. Na sociedade e mais restritamente na família, na igreja, nas mídias sociais, está muito difícil dialogar devido ao ódio e às intransigências. Você, ao ler este texto, deve, provavelmente, ter observado alguns conflitos na sua igreja devido a posicionamentos, ideias, que antes pode riam ser perfeitamente dialogados, mas que, no momento, infelizmente, temos construído relações em que não há espaço para o respeito a ideias de outra pessoa. Como enfrentamos isso?

O v. 13 poderia ser central em nossa prédica: E isso dará oportunidade a vocês para anunciarem o evangelho. A meu ver, só o tema central do amor anun ciado pelo Cristo pode quebrar esse ódio. Os raciocínios estão deveras estranhos. Parece não haver espaço para a lógica e o bom senso. Prevalecem decisões e posicionamentos emocionais. Confesso que também sofro com isso tudo. Não quero mais sequer tocar em assuntos como as muitas conspirações. Cansei. E isso exige de mim, como de você, uma busca pelo amor de Deus em nossos corações. Reforce o amor nesta prédica. Com certeza será uma mensagem de esperança em meio a um possível desejo de só anunciar a dor.

b) Jesus nos dá palavras de sabedoria

Aqui é um pouco mais delicado. Qualquer pessoa, ou melhor, qualquer pessoa cristã pode reivindicar para si esta premissa: “O que eu digo são palavras de sabedoria vindas de Jesus”. O que posso dizer? Sempre achei e resisto à ideia de que as religiões, de maneira geral, possuem sempre algum ingrediente positivo

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que contribui para a vida. Elas apontam sinais de vida para as pessoas. Entretanto, também sou obrigado a admitir que, pelo contrário, as religiões, principalmente as ditas evangélicas, atualmente colaboram com o ódio e a discórdia. Não preciso entrar em detalhes sobre isso. Não é uma opinião. É um fato. Como sabemos se nossas mensagens de vida são ou não conteúdos de sabedoria?

A maneira adequada, a meu ver, é a mesma que uso para compreender tex tos do Antigo Testamento de maneira hermenêutica. Aliás, vocês percebem que a minha ênfase aqui é muito mais hermenêutica do que exegética (os colegas acima fizeram um bom trabalho exegético dos nossos textos para este domingo). O fio vermelho em toda a Bíblia é a essência dos ensinamentos e a vida de Jesus. Da rei um exemplo. Como posso apoiar e enfatizar uma “teologia da prosperidade” baseada em Abraão, Salomão, por exemplo, sem considerar a realidade de vida dos apóstolos e discípulos de Jesus e, principalmente, do próprio Mestre? Deus abençoa com bens materiais seus filhos e suas filhas fiéis? Todos os apóstolos, inclusive Pau lo, sofreram perseguições e pobreza, e morreram martirizados. Se acham pouco, o que dizer do Filho de Deus? Nasceu em pobreza, viveu de maneira singela e sofreu em uma cruz. Resumindo: o fio vermelho é Cristo e o seu evangelho. Voltando ao nosso assunto da sabedoria de Jesus, a mesma coisa poderia ser dita. A essência da mensagem do Cristo pode ser resumida por ele mesmo: Respondeu Jesus: Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: Ame o seu próximo como a si mesmo (Mt 22.37-39). Jesus respondeu a uma provocação que lhe foi feita de maneira ardil por um fari seu: Mestre, qual é o mais importante de todos os mandamentos da Lei? (v. 36). Aliás, a melhor e a mais concisa definição sobre Deus está na Primeira Carta de João 4.16: Deus é amor. Portanto palavras de sabedoria precisam levar em consideração essa essência da mensagem cristã. Não sou eu que diz isso. Continuem lendo o texto de 1 Joao 4 e perceberão essa ideia. Essas são as duas ênfases que eu daria numa prédica sobre os nossos textos para o dia de hoje. Espero que com isso possa ter ajudado, de alguma maneira, a provocar uma reflexão sua sobre esses conteúdos abordados. Uma boa celebração!

Bibliografia

STÖGER, Alois. O Evangelho segundo Lucas. Segunda Parte. Petrópolis: Vozes, 1974. v. 3/2, p. 184-193.

WEBER, Eloir Enio. Auxílio homilético sobre Lucas 21.5-19. In: HOEFEL MANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sino dal, 2013. v. 37. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/conteudo/ lucas-21-5-19-1>.

WITTER, Teobaldo. Auxílio homilético de Lucas 21.5-19. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1995. v. 20. Disponível em: <https://www.luteranos.com.br/conteudo/lucas-21-5-19>.

340 23º Domingo após Pentecostes

PRÉDICA: LUCAS 23.33-43

JEREMIAS 23.1-6 COLOSSENSES 1.11-20

DOMINGO CRISTO REI

1 Introdução

Que rei é este?

O Domingo Cristo Rei é o último domingo do Ano Eclesiástico e é, por assim dizer, o elo entre o longo período depois de Pentecostes e o período de Advento. Na tradição da igreja é também conhecido como Domingo da Eternidade. Vinculado ao Domingo da Eternidade está a questão da esperança cristã que se distingue de to das as outras esperanças, porque ela está ligada à ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, que prefigura a ressurreição de nossos entes queridos, inclusive nossa própria. A rigor, não se trata de uma questão meramente pessoal, mas da Igreja de Jesus Cristo como um todo. Em todos os casos, a fé em Jesus Cristo e a esperança são inseparáveis, podem inclusive figurar como sinônimos.

O texto para a pregação deste domingo e as demais leituras já foram abor dados em outros momentos na série Proclamar Libertação, quer na mesma ordem listada para este domingo (p. ex.: PL 34, p. 365ss), quer em outra ordem (p. ex.: PL 23, p. 229ss; PL 37, p. 342ss). Em outros momentos, o texto da pregação deste domingo foi abordado no período da Quaresma, mais precisamente na semana da Páscoa, o que também é muito coeso (cf. PL 37, p. 127ss). A delimitação do texto para a prédica não deveria ser entendida como rigorosamente restritiva, o que é confirmado pelo fato de em outros números da série Proclamar Libertação delimitar-se o texto núcleo da pregação de outra forma (cf., p. ex., PL 37, p. 127ss). À primeira vista, o texto da pregação e as demais leituras parecem destoan tes. Em Jeremias 23.1-6 ecoam palavras de promessas de um “renovo” que go verna e age com sabedoria e justiça à vista da negligência daqueles que deveriam cuidar do povo de Deus, mas não o fazem. Nesses termos, a situação na época de Jesus por volta do ano 30 do nosso tempo não era diferente: quem deveria cuidar do povo de Deus – a elite religiosa e teológica – não só negligenciou o povo de Deus, mas “eliminou” quem veio para agir e governar com sabedoria e justiça. Desse viés, as palavras do profeta Jeremias não se cumpriram. Colossenses 1.11-20, por sua vez, destaca pessoas – o povo de Deus que in clui pessoas de origem gentílica – que foram libertas de um poder opressor (império das trevas) e transferidas para um outro domínio, o reino do seu filho amado. E o texto da pregação escancara de que reino ou rei se trata: rei e reino em nada parecido com os reis e reinos deste mundo. Isso visto, não só cabe bem o título Domingo Cristo Rei, mas se realça a natureza do reino que se estabelece em Jesus Cristo e a partir dele. Esse reino não deve ser cooptado por nenhum outro reino.

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20 NOV 2022
Werner

2 Exegese

Parte do texto para a prédica (v. 33-38) está registrada nos quatro relatos do evangelho, exceto as palavras sobre o perdão (v. 34a). E parte do texto (v. 39-43) é material exclusivo do Evangelho de Lucas.

V. 33-34 – Esses versículos tratam da crucificação como tal. Chama a aten ção que o registro da crucificação é brevíssimo. Esse também é o caso em todos os quatro relatos do evangelho. Não há espaço bíblico para colorir a crueldade da execução nem para evocar os sentimentos humanos. Foca-se no fato da crucificação como tal. Vale ressaltar que mencionam não só a crucificação de Jesus, mas a de duas outras pessoas também. Nesse quesito, não há nenhuma diferença entre os crucificados. Os sofrimentos são os mesmos. Por isso o significado da morte de Jesus não deriva do tamanho do sofrimento que passou. Não é a morte como tal que tem valor de salvação, também não a injustiça sofrida. Fosse assim, conviria que outros mais fossem injustamente crucificados e os sofrimentos pro longados ao máximo. Isso sugestionaria e legitimaria tanto o processo impetrado contra Jesus bem como isentaria tanto os mandantes da crucificação quanto os executores de Jesus.

A crucificação aconteceu no lugar chamado Calvário (kranion). Em he braico, kranion é gulgolät e em aramaico é gulgalta. Daí formou-se a palavra Gólgota em língua portuguesa (cf. Mt 27.33; em Mc 15.22 explica-se: “Gólgota, que quer dizer lugar da Caveira”). Da etimologia da palavra não se deve inferir que o nome indicasse para a existência de crânios de humanos crucificados nesse lugar. O Calvário situava-se fora do muro da cidade de Jerusalém, pois não era permitido que uma crucificação fosse feita do lado de dentro do muro da cidade (MAIER, 1992, p. 650). A crucificação de Jesus entre duas outras pessoas descri tas como malfeitores é um claro insulto contra Jesus, que de alguma forma indica que se imputou a Jesus ser ele o principal dos malfeitores executados. Numa releitura neotestamentária do Antigo Testamento, cumpre-se nesse fato de forma insuperável o texto de Isaías 53.12 (SCHIWY, 1966, p. 384).

As palavras Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem (v. 34; cf. 6.27-28;) têm uma nítida conotação teológica e evoca perguntas: o pedido de perdão é para quem? Para todos os envolvidos no processo contra Jesus que re sultou na sua condenação, incluindo os executores da sentença? A eles não cabia inquerir a culpa dos condenados, mas apenas cumprir ordem superior, cuja maldade eles não conheciam. Mas por isso eles não sabiam o que estavam fazendo (cf. At 3.17; 1Co 2.8 [RENGSTORF, 1978, p. 271)? Novamente se cumpriram as Escrituras (Sl 22.18).

V. 35-38 – Esses versículos destacam o escárnio do Jesus crucificado que envolve três grupos de pessoas distintas: – “O povo (o laos)” como expectador coletivo, talvez como massa de manobra de um interesse escondido ou como massa intimidada pela força imperial empregada. – “As autoridades (archontes)” – lideranças religiosas, em boa parte protagonista oculta dos acontecimentos que na prática nega o que teoricamente era sua esperança – a vinda do rei dos judeus.

342 Domingo Cristo Rei

Soa irônico: os que detinham as chaves hermenêuticas das Sagradas Escrituras e da história do povo de Deus tornaram-se vítimas da sua própria interpretação, ou seja: produziram um imaginário messiânico que os tornou cegos em relação ao que estava acontecendo na pessoa de Jesus de Nazaré – o Cristo/Ungido de Deus de verdade. Depara-se aqui com um misto de verdade e ironia: Salvou os outros; a si mesmo se salve; se é, de fato, o Cristo de Deus, o escolhido (v. 35). Verdade é que Jesus salvou muitos: uns de suas moléstias e carências físicas, outros por meio do perdão, incluindo-os no espaço do reino de Deus – lugar em que as pessoas revigoram. – O terceiro grupo são “os soldados” (v. 36-37). Eles, além de serem os carrascos da sentença, estão familiarizados com a linguagem simbólica da crucificação: quem nega a autoridade absoluta de César e seus coadjuvantes sabe o que lhe espera: o patíbulo. Esse é o recado de César, Pilatos e seus coad juvantes. Dito diferente: a Pax Romana é a paz alcançada e mantida pela força. Fora dela não há espaço para “cidadania”.

Enquanto que as autoridades judaicas usam a linguagem político-teológica “o Cristo de Deus, o escolhido”, os soldados usam a linguagem político-romana. Essa é uma diferença clara. Contudo, ambos os grupos zombam de Jesus e se irmanam em torno de um inimigo maior, capaz de unir grupos diametralmente opostos, desde que seja conveniente para os dois lados, no mínimo por um tempo. Ambos pensam em categorias de poder e são reféns da sua própria ideologia. Num caso do imaginário teológico messiânico. No outro do imperialismo político. A rigor, a expressão “Este é o Rei dos Judeus” é escárnio para os próprios judeus que, na verdade, almejam por um rei não subserviente à política externa maior.

V. 39-43 – Nesses versículos o evangelista lançou mão de uma tradição desconhecida aos outros evangelistas. Chamam a atenção a compreensão dos acontecimentos e a postura dos dois malfeitores na cruz: enquanto que um, em tom blasfemo, desafia Jesus à autossalvação e ao livramento dos malfeitores do suplício da cruz, o outro reconhece que a punição deles é justa, e ele clama por misericórdia que transcende o momento. Segundo Mateus 27.44 e Marcos 15.32, os dois malfeitores insultaram Jesus. Isso não precisa ser necessariamente uma contradição, pois é possível que um deles mudou de convicção e postura. Face à morte inevitável, às vezes pessoas mudam radicalmente de postura, às vezes acirram a postura de sempre. Destaque merece a resposta de Jesus ao segundo malfeitor: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. Há quem tente traduzir: Em verdade te digo hoje, que estarás comigo no paraíso. As diferenças na tradução não alteram a essência da assertiva de Jesus. O cerne da questão não está no fator tempo (estar hoje ou em outro momento no paraíso). Com a morte, a categoria tempo como nós a conhecemos é transcendida. O cerne da questão é que Jesus cumpre até o fim sua função de salvador testemunhada em outros momentos do evangelho (Lc 2.11; 5.29-32; 15.2 [RENGSTORF, 1978, p. 272-273]). Independente de como se entende paraíso, a promessa de Jesus [...] estarás co migo no paraíso atesta que quem se deixa atrair para a comunhão com Jesus está ou estará no lugar dos justos por conta da presença de Jesus e não haverá mais condenação (cf. também Rm 8.31-39).

343 Domingo Cristo Rei

3 Meditação para a prédica

Domingo Cristo Rei – como pregar sobre isso? Promessas de salvação e clamor por libertação perpassam a história da humanidade e nos dias atuais se tornam agudos. Até hoje não faltaram os que sempre se declararam a favor dos que clamam por socorro e que assumiriam a causa desses. O que não faltou e não falta são grandes e boas promessas. Apesar de evidências de promessas descum pridas, é difícil alguém admitir que não honrou as promessas feitas. Na melhor das hipóteses, se diz, em termos: chego ao final do meu mandato com o sentimento de dever cumprido, mas ainda há muito para ser feito, por isso peço mais uma vez sua confiança, isto é, seu voto... Certamente não são muitos mandatários e mandatárias que digam: não cumpri com as promessas. E toda vez que surgem novas promessas, promessas de um mundo melhor, uma sociedade mais justa (que é uma aspiração compreensível e legítima e necessária), surge também um ceticismo em relação ao que se promete, e não é por acaso, pois sem promessas de mudar a realidade que impera ninguém chega lá.

O Domingo Cristo Rei quer preparar para os domingos de Advento, que culminam no nascimento do Rei nada parecido com reis, rainhas, presidentes e muitos outros líderes deste mundo. Por isso há de se cuidar com a maneira como se fala de Cristo como Rei, principalmente por causa da carga negativa acumula da em torno de governos e governantes, notadamente a conotação de dominação por vezes arbitrária. É lamentável e foi péssimo testemunho que no decorrer da história, às vezes, a igreja lançou mão desse título para legitimar o uso da força para levar pessoas a aderirem ao cristianismo como única opção para sobreviver, em outros casos como opção de obter privilégios. E não raras vezes, usou-se o título Cristo Rei como ameaça individual para quem não se curvar diante dele ou, melhor, diante das exigências da igreja como instituição. Isso está em nítida contradição com o texto da pregação e proposta do evangelho, cujo anúncio é tarefa primordial da comunidade cristã, nitidamente de quem tem a tarefa para pregar. O Cristo Rei é Jesus Cristo crucificado. Seu reinado e seus sofrimentos são inseparáveis. Ele não se presta para ser “figura de projeção de poder político”, tampouco a palavra de Deus deve ser transformada em “caixa de ressonância” para projetos internos ou externos da comunidade cristã que visam a qualquer projeção humana, individual ou coletiva. Os “súditos” do Cristo Rei apostam em um poder estranho. O meio pelo qual o governo de Cristo se realiza é, em primeiro lugar, a palavra que alcança seus ouvintes na sua consciência e os convence e desperta para a fé em Jesus Cristo e forma uma nova comunhão, transforma a vida, produz frutos do Espírito Santo na comunidade cristã e fora dela e atua para dentro dos reinos deste mundo e dessa maneira coloca sinais do reino de Cristo.

O núcleo teológico do texto para a pregação deste domingo está nas palavras de Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem, e Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso. Essas palavras rompem com um círculo vicioso em duplo sentido: um é círculo da violência, do ódio e da vingança; o outro é o círculo da culpa e desesperança. Evidentemente, essas palavras não são

344 Domingo Cristo Rei

bagatelas ou, como diria Bonhoeffer, fonte inesgotável da graça de Deus disponí vel como um produto em liquidação ou venda de estoque numa loja. Consequen temente, elas não deveriam sair da boca de anunciantes da Palavra como algo óbvio ou lógico. No texto para a pregação nada é óbvio. O que se torna óbvio na pregação desgasta. Ademais, na presença do Cristo Rei crucificado vem à tona o que de mais profundo há no coração humano: seja a violência, o ódio, a vingança ou o desespero. Justamente para dentro dessa realidade ecoam as palavras Jesus nos v. 34a e v. 43. Destacar isso de forma clara é tarefa nobre neste domingo.

4 Subsídios litúrgicos

Sugerimos recorrer aos manuais de culto que têm várias propostas litúrgi cas para cada época e domingo do calendário eclesiástico.

Bibliografia

L’EPLANTTENIER, Charles. Leitura do Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulinas, 1993. (Pequeno Comentário Bíblico NT).

MAIER, Gerhard. Lukas-Evangelium 2. Teil. Neuhausen-Stuttgart: Hänssler, 1992. ( Edition C-Bibelkommentar zum Neuen Testament, 5).

RENGSTORF, Karl Heinrich. Das Evangelium nach Lukas. Göttingen: Vanden hoeck & Ruprecht, 1978. (NTD, 3).

SCHIWY, Günther. Weg ins Neue Testament. Kommentar und Material. Das Evangelium nach Matthäus – Markus – Lukas. Würzburg: Echter, 1966. Ers ter Band.

345 Domingo
Cristo Rei

AUXÍLIOS ESPECIAIS

TEXTO-BASE

– TEMA DO ANO 2022

TEMA: Amar a Deus e as pessoas LEMA: Não amemos de palavra, nem da boca para fora, mas de fato e de verdade (1 João 3.18).

PALAVRAS INTRODUTÓRIAS

1. Após muito diálogo e reflexão, definimos o Tema e o Lema do Ano para 2022. Esse processo contou com a participação da Presidência, das Pastoras Sinodais, dos Pastores Sinodais e de pessoas que trabalham na Sede Nacional da IECLB. Foi uma caminhada muito frutífera, que nos trouxe aprendizados e estimulou a sonhar com uma Igreja e um mundo cada vez melhores. Agora convidamos você a participar das reflexões e, especialmente, a colocar em prática a vivência do amor a Deus e às pessoas.

2. Os motivos para a escolha do Tema e do Lema são vários, e destacamos aqui três questões importantes: em primeiro lugar, o amor a Deus e às pessoas é a característica básica da fé. Quem tem fé, ama a Deus. Quem ama a Deus, ama as pessoas. Em segundo lugar, é preciso refletir sobre o sentido e as consequências do amor a Deus e às pessoas. O que significa amar? Quais as implicações desta “palavra-ação” em nossa vida? Por último, diante da situação de polarização em que vivemos, é necessária uma ação vigorosa e transformadora. Sem amor prejudicamos o presente e dificultamos o futuro. Sem amor, nada seremos.

O AMOR COMO CARACTERÍSTICA DA FÉ

3. O Tema do Ano nos remete a uma palavra de Jesus, que resume todos os mandamentos. “Chegando um dos escribas, que ouviu a discussão entre eles e viu que Jesus tinha dado uma boa resposta, perguntou-lhe: – Qual é o principal de todos os mandamentos? Jesus respondeu: – O principal é: ‘Escute, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e com toda a sua força.’ O segundo é: ‘Ame o seu próximo como você ama a si mesmo.’ Não há outro mandamento maior do que estes” (Marcos 12.28-31).

4. “Qual é o principal de todos os mandamentos?” A pergunta dirigida a Jesus não estava relacionada apenas aos Dez Mandamentos. Segundo a tradição judaica, existem ao todo 613 mandamentos, organizados em 248 preceitos “positivos” (orientações para fazer alguma coisa) e 365 preceitos “negativos” (orientações que proíbem algo). Ao perguntar pelo principal de todos os mandamentos, a pessoa queria saber qual dos 613 mandamentos do Antigo Testamento deve ser seguido em primeiro lugar. Trata-se de uma pergunta legítima e até necessária.

5. A ideia de resumir os mandamentos ou de indicar o mais importante é anterior a Jesus. No livro de Miqueias, nós lemos: “Ele já mostrou a você o que é bom; e o que o Senhor pede de você? Que pratique a justiça, ame a misericórdia e ande humildemente com o seu Deus” (Miqueias 6.8). Na mesma linha de resumir e facilitar o seguimento da vontade de Deus, o profeta Isaías escreveu: “Assim diz o Senhor: Mantenham o direito e pratiquem a justiça” (Isaías 56.1).

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6. A resposta de Jesus uniu dois textos bíblicos. O primeiro deles constitui a expressão de fé do povo de Israel: “Escute, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR. Portanto, ame o SENHOR, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com toda a sua força” (Deuteronômio 6.4-5). O segundo texto que Jesus utiliza em seu resumo é Levítico 19.18: “Não procure vingança, nem guarde ira contra os filhos do seu povo, mas ame o seu próximo como você ama a si mesmo. Eu sou o SENHOR”.

7. Os dois textos citados por Jesus estão vinculados ao primeiro dos Dez Mandamentos, que aprendemos no Catecismo: “Eu sou o Senhor, seu Deus. Você não deve ter outros deuses além de mim”. A expressão “Eu sou o Senhor” é fundamental para falar do amor a Deus. Qual é o Deus a quem amamos? Na Bíblia, a palavra “SENHOR” escrita em letras maiúsculas é a representação do nome de Deus, revelado a Moisés (Êxodo 3.13s). Este é o Trino Deus que nós amamos e em nome de quem recebemos o Batismo. Este é o único Deus que cria, salva e santifica. 8. O amor a Deus, o SENHOR, decorre do amor de Deus. Em primeiro lugar, Deus agiu na vida do seu povo: “Ele amou os pais de vocês e escolheu os seus descendentes depois deles; por isso o SENHOR os tirou do Egito com a sua presença e com a sua grande força” (Deuteronômio 4.37). O povo de Israel foi escolhido por Deus, e é considerado por Deus um filho: “Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei o meu filho” (Oseias 11.1). Deus ama todo o seu povo, não apenas uma pessoa ou algumas pessoas em especial. Obviamente existe a relação entre Deus e a pessoa individual, mas sempre no pressuposto de que a pessoa integra um grupo, o povo de Deus.

9. A eleição de Israel não é baseada em méritos ou qualidades, mas no amor de Deus. A graça de Deus, fundamental nos escritos do apóstolo Paulo e na teologia luterana, já está bem presente no Antigo Testamento. Quem era o povo de Israel para ser eleito por Deus? Era um povo insignificante, era praticamente nada, e, ainda assim, foi escolhido por Deus! Foi amado por Deus!

10. Embora tenha feito uma aliança com o povo de Israel, o amor de Deus alcança todas as pessoas. Assim lemos no Evangelho de João: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). O amor de Deus é também o amor de Cristo: “logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. E esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gálatas 2.20). Pelo amor de Deus e de Jesus Cristo, fazemos parte da nova aliança (Marcos 14.24; 1 Coríntios 11.25). Em Cristo, nos tornamos povo de Deus: “Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (1 Pedro 2.10).

11. “Portanto, ame o SENHOR, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com toda a sua força” (Deuteronômio 6.5). Coração e alma representam a integralidade do ser humano. Na Bíblia, o coração é lugar de emoções, sentimentos, conhecimento, percepção. Dele partem a decisão, a vontade e a determinação para a ação. A alma designa o fôlego da vida, a energia vital do ser humano. É também a personalidade da pessoa, com tudo o que a move. Não está em oposição ao corpo, mas, junto com o corpo, constitui o ser humano. Corpo e alma não são separáveis.

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Tema do Ano 2022

O terceiro elemento – “com toda a sua força” – reforça a ideia de que o ser humano deve amar a Deus com todo seu ser, sem reservas e restrições.

12. Ame o SENHOR, ame o seu próximo! “Ame” é um imperativo, e o imperativo tem a função de levar uma pessoa a fazer algo. Isto significa que o amor é uma exigência, que somos obrigadas e obrigados a amar? Embora seja um mandamento, não se trata de amor por obrigação. Para entender isto, é necessário considerar aquilo que antecede o mandamento. Primeiro, Deus amou e agiu em favor do seu povo. A partir do amor de Deus surge o amor a Deus e às pessoas. O amor de Deus é o fundamento, o nosso amor é o efeito. Por isso, o amor não será praticado por imposição ou medo, mas como resposta à ação de Deus. Quando reconhecemos o que Deus faz por nós, amamos a Deus. Quando amamos a Deus, amamos também as pessoas.

QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS DO AMOR?

13. O amor vai além do sentimento, da mística ou da afetividade. Também não se limita a palavras. Falar de Deus e chamar Jesus de “Senhor” não significa necessariamente amar a Deus. Jesus já advertiu: “Nem todo o que me diz: ‘Senhor, Senhor!’ entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” (Mateus 7.21). Amar a Deus requer disposição para seguir os seus mandamentos. Não se trata apenas de conhecimento teórico, mas de vivência prática no dia a dia. Significa submeter-se à vontade de Deus e direcionar toda a vida de acordo com ela. Amar a Deus e fazer a sua vontade é o mesmo procedimento, o mesmo ato.

14. Quem conhece e fala do amor de Deus não pode agir de maneira oposta à sua vontade. Não é da vontade de Deus que exista violência, ódio, discriminação, opressão, miséria, injustiça. Por isso não podemos nos conformar e calar diante da violência sofrida por pessoas idosas, mulheres, homens, crianças, pessoas negras, indígenas. A fé cristã é contrária a todo tipo de violência. Não podemos nos conformar com o aumento da pobreza e das desigualdades sociais. Não podemos nos conformar com a destruição da criação de Deus. A responsabilidade com o meio ambiente faz parte da fé! Não podemos nos conformar com a mentira disfarçada e enfeitada com o termo “fake news”. O amor não permite conformação, mas chama à conversão: “não vivam conforme os padrões deste mundo, mas deixem que Deus os transforme pela renovação da mente, para que possam experimentar qual é a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Romanos 12.2).

15. “Ame o seu próximo como você ama a si mesmo” (Levítico 19.18). Esse mandamento está relacionado à compreensão de Israel como povo de Deus. Pessoa próxima pode ser alguém da família, da vizinhança, ou, de forma genérica, toda pessoa pertencente ao povo de Israel. E as pessoas que não faziam parte do grupo social “Israel”? O próprio texto de Levítico traz indicações: “Tratem o estrangeiro que peregrina entre vocês como tratam quem é natural da terra; amem o estrangeiro como amam a vocês mesmos, pois vocês foram estrangeiros na terra do Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Levítico 19.34). Na parábola do bom samaritano (Lucas 10.25-37), aprendemos que o próximo pode ser a pessoa que necessita de

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Tema do Ano 2022

ajuda e a pessoa que oferece ajuda. A pergunta não é somente “quem é a pessoa próxima?”, mas “quando e como eu me disponho a ser pessoa próxima” de alguém.

16. Em Levítico 19 há uma série de instruções que mostram as consequências do amor às pessoas. Os versículos 9 e 10 tratam da colheita e determinam que parte dela seja deixada para pessoas pobres e estrangeiras. Na linha dos Dez Mandamentos, os versículos seguintes falam de roubo, mentira, falsidade, falso testemunho. Quem engana, utilizando o nome ou a Palavra de Deus, profana a santidade do nome de Deus e descumpre o segundo mandamento. Na compreensão hebraica, oprimir é utilizar violência para impor sua própria opinião e interesse. Também significa enganar, ludibriar e chantagear com o objetivo de obter vantagens. Isto é contrário à vontade de Deus, assim como reter ou atrasar o salário de pessoas trabalhadoras diaristas. O pagamento deve ser pago no fim do dia, para que a pessoa possa adquirir alimentos. Em resumo, prejudicar outra pessoa é absolutamente contrário à vontade de Deus. 17. Além de não prejudicar, o mandamento do amor às pessoas inclui a promoção do bem-estar. Não fazer o mal e promover o bem são as duas dimensões do amor às pessoas. Neste tempo de pandemia de Covid-19, enfrentamos muito sofrimento e percebemos também muita solidariedade. Pessoas, comunidades e instituições vinculadas à IECLB praticaram diversas ações diaconais, ajudando pessoas em necessidade. Pessoas mantiveram distanciamento, usaram máscaras e seguiram protocolos de saúde para proteger a própria vida e a vida de outras pessoas. Mensagens de consolo e esperança foram divulgadas de diferentes formas. Na dor e no luto, pessoas se uniram em oração e ação para diminuir o sofrimento. Isto tudo é prática do amor, é promoção do bem.

18. A execução da vontade de Deus pressupõe o aprendizado: “Ensina-me a fazer a tua vontade, pois tu és o meu Deus” (Salmo 143.10). É preciso aprender a vontade de Deus, guardá-la no coração e transmiti-la: “Estas palavras que hoje lhe ordeno estarão no seu coração. Você as inculcará a seus filhos, e delas falará quando estiver sentado em sua casa, andando pelo caminho, ao deitar-se e ao levantar-se” (Deuteronômio 6.6-7). É para a dimensão do aprendizado que aponta uma das palavras – ensine – da arte do Tema do Ano.

“SE

NÃO TIVER AMOR, NADA SEREI” (1 Coríntios 13.2)

19. Não existia Internet quando Deus deu os mandamentos ao povo de Israel e quando Jesus resumiu todos os mandamentos no amor a Deus e às pessoas. Neste tempo de pandemia, percebemos a importância dos meios de comunicação para realizar a missão que Deus nos confiou. Graças à Internet, um sistema global de aparelhos interligados, podemos nos conectar e propagar a vontade de Deus. Infelizmente este espaço de comunicação e contato também se tornou terreno fértil para disseminação de mentiras e de ódio. Em vez de edificar e promover o bem das outras pessoas, buscam-se o aniquilamento, a destruição. E isso, algumas vezes, é feito em nome de Deus. Tais pessoas pensam que estão na luz, mas seguem as trevas: “quem odeia o seu irmão está nas trevas, anda nas trevas e não sabe para onde vai, porque as trevas lhe cegaram os olhos” (1 João 2.11).

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Tema do Ano 2022

20. O Tema e o Lema do Ano 2022 chamam a atenção para a característica básica da fé: o amor. Sem amor, a fé não se efetua. Sem amor, nada somos. A arte do Tema do Ano traz cinco verbos: acolher, servir, ensinar, pacificar, dialogar. Neles, manifesta-se o amor a Deus e às pessoas. Também aqui os verbos estão no imperativo e representam um chamado, uma necessidade. Para viver a fé e ter um mundo melhor, precisamos colocar esses verbos em prática. “Não amemos de palavra, nem da boca para fora, mas de fato e de verdade” significa amar através de ações. Ame, acolha, sirva, ensine, pacifique, dialogue: este é convite que o Tema do Ano e o Lema do Ano nos fazem!

353 Tema do Ano 2022

TEMAS E TEXTOS NOS VOLUMES I – 46

A ceia do Senhor – O sacramento do altar 34, p. 369 Advento – Celebração 29, p. 325 AIDS – Um grande desafio ................................................................................................XV, p. 304 Ação de graças .............................................................................. XII, p. 300; 20, p. 322; 33, p. 394 Ação de graças pela colheita ...................... 32, p. 212; 34, p. 371; 35, p. 370; 36, p. 365; 37, p. 348 Achados e perdidos – experiências ................................................................................ XVII, p. 288 A indústria da ilusão: como encarar o “Feliz e Próspero Ano Novo”? (Tg 4.13-17) ........... IX, p. 34 Armas da morte: “Quem brinca com fogo acaba se queimando” (Zc 9.9-10) X, p. 91 Associação popular: “A união faz a força” (Ne 5.1-12) IX, p. 83

As três primeiras petições do Pai-Nosso 39, p. 359 A velhice VI, p. 43 Batismo, alocução para ...................................................................................................... 26, p. 357 Batismo, culto de ............................................................................ 21, p. 327; 24, p. 358; 27, p. 299 Bênção matrimonial ......................................................................................... XIX, p. 310, 317, 319 (Jr 29.13) ............................................................................................................................. 20, p. 351 (Ct 8.7) ................................................................................................................................ 20, p. 353 (Ec 4.9-12) 21, p. 329 (Ct 1.2-3) 21, p. 332; 22, p. 311

Bíblia e arte XV, p. 77 Breve exortação à confissão 39, p. 375 Cadê a mulher? (Jz 5.24-31) .................................................................................................. X, p. 37

Carnaval: festejar é preciso (Jo 2.1-11) ................................................................................ IX, p. 41 Celebração da Santa Ceia (Lc 24.13-35) .............................................................................. VI, p. 40 (Sl 133.1-3) ......................................................................................................................... 22, p. 300

Coluna social – promoção da fraternidade ou projeção egoísta? (Gl 3.28) ........................ XII, p. 70 Como pode peixe vivo viver fora d’água fria? O colono na cidade (Ec 4.1-4) X, p. 84 Componentes éticos da organização popular XVII, p. 281 Comunidade cristã: instrumento ou entrave para as lutas populares – uma avaliação (Ap 22.10-16) X, p. 11 Confirmação (Fp 3.12-16) .................................................................................................... II, p. 187 (Dt 30.11-20) ...................................................................................................................... VIII, p. 23 (Jo 6.66-69) ....................................................................................................................... XII, p. 293 (Mt 5.14-16) ........................................................................................................................ 20, p. 339 (Ap 1.9-18) ........................................................................................................................ XX, p. 342

Constituição – as leis a serviço de quem? (Dt 17.14-20) XII, p. 51 Contribuição para a igreja – Pago para ter (2Co 8.1-5) XIII, p. 18 “Criança, não verás país nenhum como este!” (Êx 1.8-22)

IX, p. 107

Culto como evento celebrativo XIV, p. 9 Culto de instalação de lideranças de comunidade (Hb 13) ................................................. 21, p. 309

Culto em época de eleição (1Sm 11.1-15) ............................................................................V, p. 337

Culto eucarístico (Mc 14.32-42) ......................................................................................... 20, p. 346 Culto eucarístico (alocução para)........................................................................................ 23, p. 237 (Lc 22.14-15) ...................................................................................................................... 20, p. 349

Culto para o Dia dos Povos Indígenas 22, p. 295

Cultura popular: quando a vida se faz escola (1Co 8.2) XIII, p. 42

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ÍNDICES

Curandeirismo: um “jeitinho” popular de cura? (Mc 5.25-34) ........................................... XII, p. 27

Deus na marginalidade ......................................................................................................... XVI, p. 9 Dedicação de templo 26, p. 361

Dia das Crianças (Zc 8.1-8) 24, p. 337

Dia de Ações de Graças (Gn 8.15-22) I, p. 68 (Jo 4.31-38) II, p. 256 (Ec 3.1-8) VI, p. 48 (1Tm 4.4-5) ...................................................................................................................... XIII, p. 298 (Mt 13.24-30,36-43)...................................................................................................... XVIII, p. 289

Dia da Colheita (2Co 9.6-15) ................................................................................................V, p. 323 (Dt 26.1-11) ......................................................................................................................... 20, p. 317

Dia do Colono (Gn 2.4b-15) V, p. 330

Dia de Finados (Is 25.1,(6-7)8-9) 34, p. 353 (Fp 3.20-21) I, p. 143 (1Co 15.50-58) III, p. 176 (1Co 15.35-39,42b-44) V, p. 256 (Mt 22.23-33) ................................................................................................................... VIII, p. 336 (2Pe 3.8-14).................................................................................................................... XVII, p. 237 (Jo 5.24-29) ................................................................................................................... XVIII, p. 267 (1Co 15.12-20) .................................................................................................................... 32, p. 311 (Is 35.1-10) 35, p. 347 (1Ts 4.13-18) 36, p. 335

Dia da Independência (1Pe 2.13-17) I, p. 109 (1Tm 2.1-4) II, p. 336 (Mc 12.13-17) III, p. 138 (Hb 13.12-16) ........................................................................................................................V, p. 205 (Mt 6.9-13) ..........................................................................................................

VI, p. 53; 20, p. 328

Dia das Mães (Lc 15.8-10)............................................................................................... XIX, p. 305 Dia da Reforma (Gl 5.1-11) ...................................................................................................I, p. 125 (Jo 8.31-36) II, p. 383 (Rm 3.19-28) III, p. 169 (Mt 5.1-10) IV, p. 212 (Ap 14.6-7) V, p. 249 (Mt 10.26b-33) VI, p. 291 (Is 62.1-12) ....................................................................................................................... VIII, p. 331 (Mt 10.26b-33) ................................................................................................ XII, p. 268; 34, p. 347 (Gl 5.1-6)........................................................................................................ XIII, p. 267; 35, p. 341 (Fp 2.12-13) .......................................................................................................................XV, p. 282 (Jo 8.31-36) XVII, p. 225 (Mt 5.1-10) 32, p. 307 (Jr 31.31-34) 36, p. 329

Dia de Penitência (Is 1.10-17) XV, p. 297

Dia do Trabalhador (Dt 5.12-15) III, p. 62 (2Ts 3.6-13) .............................................................................................................................V, p. 97

Dia do Trabalho (1Co 7.29-32a) .......................................................................................... II, p. 213 (Ez 34.1-2 (3-9), 10-16, 31) ................................................................................................ VI, p. 170 (Tg 5.1-6) ......................................................................................................................... XIII, p. 285

Dia dos Pais (Pv 4.10-19) ................................................................................................... 21, p. 321

Dia Internacional da Mulher (Ct) 21, p. 316 Domingo de Louvor através da Música 33, p. 401; 37, p. 353

356

Domingo de Penitência (vide também: Dia de Penitência [Mt 12.33-35, (36-37)])......... XII, p. 307 (Ap 3.14-22)

..................................................................................................................... XIII, p. 304

Domingo de Ramos (Mc 14.3-9; Jo 12.12-16) 20, p. 309; 36, p. 134

Ecologia – A vida está a perigo (Gn 2.8-15) XIII, p. 74

Educação: para a liberdade ou para a opressão? (Ec 9.13-18) X, p. 25

Em busca de espaço – o deficiente na igreja e na sociedade (Mt 4.23-25) XII, p. 34

Empregadas domésticas (Gn 21.8-21) XIII, p. 60

Entre morte e eternidade: morrendo um pouco a cada dia (Is 65.17-25)

.............................. IX, p. 15

Epifania, reflexões para o período de .................................................................................. 27, p. 303 Época da Paixão I (Is 55.6-7)

................................................................................................ VI, p. 24

Época da Paixão II (Mt 26.36-46)

......................................................................................... VI, p. 29

Época da Paixão III (Sl 130.4) VI, p. 34

Época da Paixão IV (Mt 11.28-30) VI, p. 37

Estado, pátria, governo (Jz 9.7-15) IX, p. 98

Estudo bíblico numa conferência (Jo 1.1-18) XVI, p. 42

Estudos bíblicos com pequenos agricultores XIV, p. 60

Exercício homilético

........................................................................................................... XII, p. 91 “E viu Deus que isto era bom...” ...................................................................................... XIV, p. 101

Férias: alienação ou antecipação do reino de Deus? (Ec 3.9-15) .......................................... X, p. 16

Festa da Ascensão de Jesus Cristo ...................................................................................... 30, p. 303 Fome, instrumento de submissão (Mq 3.1-4) XI, p. 45

Formatura – estudar para ganhar mais? (Jr 22.13-19) XIII, p. 80 (Is 65.17-25) 20, p. 334

Futebol: lazer ou instrumento de alienação? (Jz 2.11-15) XI, p. 20

Hermenêutica feminista latino-americana XIV, p. 101 Ídolos da opressão (Is 44.9-20) .......................................................................................... XIII, p. 50

Inauguração da igreja (Mc 4.30-32; Mt 13.31-32; Lc 13.18-19) ...................................... XII, p. 313 Inauguração de uma igreja (Is 24.12-16a) ....................................................................... XIII, p. 312 Introdução a Dêutero-Isaías ............................................................................................... VIII, p. 16

João Batista: por que rolou sua cabeça? (Mc 6.14-29) X, p. 74 Joga limpo, Brasil 38, p. 363 Jubileu 500 anos da Reforma 38, p. 373 Kurusu Ñe’engatu – Palavras que a história não pode esquecer XVII, p. 275 La comunidad luterana y la práctica de una pastoral de vida XV, p. 71 La lucha por la tierra en el Paraguay ...................................................................................XV, p. 55 Leitura da Bíblia entre indígenas .........................................................................................XV, p. 61 Lepra – uma doença que assusta? (Nm 12.9-16) ................................................................ XII, p. 18

Libertação: vitória sobre a cruz! (1Jo 3.13-18) ..................................................................... IX, p. 57 Lutero e a educação.............................................................................................................41, p. 345 Lutero e a música 40, p. 335 Marketing e igreja 24, p. 7

Medicina popular – mutirão da saúde (Mt 12.22-28) XI, p. 77

Meditação sobre a oração 31, p. 303 Meditação sobre o tema “Terra” – I: terra na nova sociedade (At 4.32-37) .........................V, p. 310 Meditação sobre o tema “Terra” – II: terra para todos ..........................................................V, p. 316

Migração: esperança ou desespero? (Lv 25.8-17, 23-28, 35-43) .......................................... XI, p. 65 Missão (1Co 12) ................................................................................................................. XIII, p. 34

Movimento negro: “Alma não é branca, negro não é luto, preto não é cor!” (Am 9.7-10) .... X, p. 128

Movimentos populares: povo unido jamais será vencido (Mc 10.32-45) X, p. 106

Mulheres agricultoras XVI, p. 15

357

Mulheres na Reforma Protestante ....................................................................................... 40, p. 341

Na estrebaria do mundo a criança é esperança (1Co 1.26-31)

.............................................. IX, p. 24

O assalariado empobrece produzindo riqueza (Ec 5.18) X, p. 65

Observações introdutórias referentes ao Evangelho de Mateus II, p. 176 Lucas X, p. 139

João VIII, p. 7

O deficiente na igreja e na sociedade (Mt 4.23-25) XII, p. 34

O desafio de ser autor de PL ................................................................................................XV, p. 12

O ecumenismo na formação de lideranças...........................................................................XV, p. 33

O evangelho no Clube de Mães – ocupação do solo urbano em Canoas .............................XV, p. 17

O índio: nosso irmão na caminhada pela libertação (Ef 2.11-22) .......................................... X, p. 48

O Lecionário Ecumênico XV, p. 315

O nosso Pai que está no céu 39, p. 351

O trabalho na Rondônia com agricultores vindos principalmente do Espírito Santo XV, p. 46

O veneno nosso de cada dia (Dt 8.6-10) XII, p. 11

Pago para ter (2Co 8.1-15) XIII, p. 18

Pai-Nosso: pão, perdão e liberdade ..................................................................................... 39, p. 364

Palavra e pregação em Lutero ............................................................................................. 40, p. 348

Pastoral Ecumênica de Periferia ........................................................................................ XIV, p. 91

Pentecostes: o Espírito sopra onde quer e quando aprouver (1Jo 4.1-6) .............................. IX, p. 72

Perdas – Alocução para Sepultamento (Jo 11.17-37) 22, p. 304

Planejamento familiar: genocídio planejado? (Sl 112) XII, p. 77

Por uma linguagem integradora de mulheres e homens XVII, 257

Posse de novo Presbitério, Conselho Sinodal ou Conselho Diretor (liturgia) 28, p. 368

Posto de Saúde: vitrine da miséria (Mc 3.1-6) X, p. 114

Proclamar Libertação I – aspecto político (Lc 4.14-21)

......................................................... VI, p. 7

Proclamar Libertação II – aspecto eclesial (1Pe 2.15-17)

.................................................... VI, p. 13

Proclamar Libertação III – aspecto individual (Lc 4.14-21)

................................................. VI, p. 19

Propriedade e expropriação (Ne 5.1-6 [6-12]) ................................................................... XIII, p. 11

Quaresma: dor solitária ou solidária? (Is 58.1-12) IX, p. 50

Quem não faz política sofre política (1Rs 12.1-15) XI, p. 95

Relato de una caminata del pueblo con la Biblia XVI, p. 21 Ressurreição de que e para quê? (1Co 15.35-38) XIII, p. 29 Roteiro para encontros de preparação visando à ordenação ao pastorado junto à IECLB 31, p. 307 Sacerdócio geral – vamos pegar juntos! (Ef 4.7-16)............................................................. XI, p. 85

Semana do excepcional .................................................................................................. XVII, p. 264 Semana dos povos indígenas .............................................................................................. 24, p. 347 Sepultamento..............................................................

XIX, p. 321, p. 323, p. 325, p. 327; 22, p. 240 (Jo 6.28-40) 20, p. 355 (Jo 19.25-27) 20, p. 360 (Sl 39.5-7) 20, p. 362 (Sl 142.1-2,5a) 21, p. 336 (Ec 3.1-8) 28, p. 365

Servo-arbítrio / livre-arbítrio............................................................................................... 40, p. 329

Sindicato: órgão de assistência ou instrumento de defesa dos trabalhadores? (1Co 12.20-26) ...................................................................................................................... XI, p. 55

Superstição: produto de angústias (Rm 8.31-39) .................................................................. IX, p. 91 Teatro popular com crianças, adolescentes, jovens e adultos na periferia urbana de Belém XVI, p. 37 Tema e Lema da IECLB 2017 …........................................................................................41, p. 339

358

Tema e Lema da IECLB 2018............................................................................................. 42, p. 343

Tema e Lema da IECLB 2019............................................................................................. 43, p. 355

Tema e Lema da IECLB 2020 44, p. 351

Tema e Lema da IECLB 2022 46, p. 349

Tendências atuais de valorização das nações de indivíduos, individualidade na sociedade e influências dos novos movimentos religiosos nesse quadro 20, p. 7

Tóxicos – exploração e dependência (Pv 24.10,14) XII, p. 45

Trabalhador: entre a carência e o desemprego (Dt 24.14-35) ............................................... IX, p. 63

Trabalhando com agricultores sem terra ............................................................................ XIV, p. 78

Trabalho com agricultores assentados ............................................................................... XIV, p. 20

Trabalho com idosos ..................................................................................................... XVIII, p. 297

Todas as religiões são boas? (Cl 2.8-10) XI, p. 35

Uso da Bíblia em estudos com colonos que migram XIV, p. 68

Vida: celebração da esperança em meio à morte (Sl 138.1-8) XI, p. 9

Vida está em perigo: socorro! (Gn 2.8-15) XIII, p. 74

Vigília pascal XVI, p. 146

Violência no campo (Js 8.1-8) ............................................................................................ XII, p. 61

359

PERÍCOPES DOS VOLUMES I – 46

ANTIGO TESTAMENTO

Gênesis

1.1-4a, 26-31; 2.1-4a ....................... VIII, p.185 1.26-31; 2.1-3 III, p. 105 2.4-15 28, p. 301 2.4b-15 V, p. 330; 35, p. 211 2.7-9,15-17; 3.1-7 30, p. 66; XVIII, p. 84; ......................................... 35, p. 127; 40, p. 150

2.8-15 ............................................... XIII, p. 74 2.18-24 .......... 22, p. 254; 25, p. 282; 33, p. 343 3.1-9 .................................................XII, p. 170 3.1-19(20-24) ................................... 25, p. 214 3.1-24 VI, p. 133 3.8-15 39, p. 195 4.1-16 VII, p. 203; XIII, p. 246 8.1-13 XV, p. 135 8.15-22 ......................................... I, p. 71; p. 78 11.1-9 ........................ XII, p. 205; XVII, p. 130 12.1-4 ............................................ XVIII, p. 88 12.1-4a ........ VII, p. 165; 38, p. 125; 44, p. 108 15.1-6 ............ 26, p. 256; 34, p. 283; 40, p. 231 15.1-12,17-18 43, p. 122 17.1-13 27, p. 40 18.1-10a(10b-14) .............20, p. 208; 37, p. 223 18.20-21(22),23-32 20, p. 214 18.20-32 ............................................ 46, p. 236 21.8-21 ............................................. XIII, p. 60 22.1-13 .............................................. VI, p. 144 22.1-14(15-18) .................................... 22, p. 65 28.10-17(18-22) .................................. 22, p. 71 32.22-31 46, p. 305 32.23-31 XVII, p. 240 32.23-33 II, p. 207(374) 45.3-11,15 43, p. 98 50.15-21 ......................... 24, p. 272; 27, p. 240; ......................................... 35, p. 295; 38, p. 284 Êxodo 1.8-22 ............................................... IX, p. 107 2.1-10 ................................................ 28, p. 181 3.1-14 XII, p. 154 3.1-8,13-15 26, p. 108 6.2-8 XVIII, p. 218; 30, p. 214 12.1-14 21, p. 108; 40, p. 109 13.20-22 .............................................. 25, p. 46 16.1-5(6-11),12-21(22-30) ................ 28, p. 276 16.2-4,9-15 ........................................ 36, p. 251 16.2-3,11-18 ....................................XIV, p. 283

19.2-8a ............................................. 21, p. 176 20.1-3(4-6),7-8(9-11),12-17 22, p. 75 20.1-17 .............................................. 42, p. 101 22.21-27 21, p. 280 24.1-11 ............................ 32, p. 123; 38, p. 146 24.3-11 ....... XVI, p. 224; 25, p. 164; 28, p. 272 24.12,15-18 21, p. 78; 32, p. 79 32.7-14 .......... XV, p. 225; 23, p. 177; 37, p. 272 33.18-23 VI, p. 102 34.4b-10 ......................... III, p. 153; XV, p. 273 34.29-35 25, p. 123; 37, p. 87 Levítico 19.1-2,9-18 ........................................ 38, p. 101 Números 6.22-27 ................ 33, p. 58; 36, p. 48; 40, p. 48 11.11-12,14-17,24-25 VIII, p. 205 11.24-30 .......................... 32, p. 169; 41, p. 196 12.9-16 XII, p. 18 21.4-9 VII, p. 101; XIII, p. 159; 22, p. 80; ......................................... 33, p. 146; 39, p. 114 24.15-19 XV, p. 120 Deuteronômio 4.1-2,6-8 22, p. 235; 36, p. 274 4.32-34,39-40 ................................... 27, p. 148 5.12-15 .............................. III, p. 43; 38, p. 171 6.1-9 33, p. 373 6.4-9 ............................ XV, p. 246, XIX, p. 164 7.6-12 VI, p. 219 8.6-10 ................................................. XII, p. 11 8.7-18 37, p. 348 10.12-22 26, p. 336 11.18-21,26-28 ................ 21, p. 164; 32, p. 184 17.14-20 XII, p. 51 18.15-20 .......... XIX, p. 67; 31, p. 57; 33, p. 92; 39, p. 81 24.14-15 .............................................. IX, p. 63 26.1-11 .............................. 33, p. 394; 40, p. 81 26.3-11 26, p. 91 30.9-14 .............................................. 34, p. 257 30.11-20 VIII, p. 23 30.15-20 ............................ 34, p. 303; 35, p. 93 32.36-39 23, p. 79 34.1-12 ............................XVII, p. 74; 29, p. 77 Josué 1.1-9 VII, p. 36 8.1-8 ...................................................XII, p. 61 24.1-2a,13-25 III, p. 117; 39, p. 262

361

Juízes

4.1-7 32, p. 319 5.24-31 ................................................. X, p. 37 9.7-15 IX, p. 98 Rute

1.1-19a .............................................. 29, p. 289 1 Samuel

2.1-10 .................... II, p. 176 (343); VII, p. 113 2.18-20,26 40, p. 43 3. 1-10(11-20) ..................................... 42, p. 64 3.1-10(19) XIX, p. 55; 31, p. 44 3.1-10,19 25, p. 86 11.1-15 ................................................ V, p. 337 2 Samuel 7.1-11,16 ............................................ 36, p. 24 7.4-6,12,14a,16 25, p. 35 11.26-12.10,13-15 .......... 29, p. 199; 34, p. 231; ........................................................... 40, p. 189 12.1-10,13-14 IX, p. 264 12.1-10,13-15a ................................. XV, p. 261

1 Reis

3.5-12 .............................. 24, p. 240; 32, p. 236 3.16-28 30, p. 143 8.(21-23,27-30)41-43 XVII, p. 141 8.22-24,26-28 .................................... VI, p. 189 8.22-30 XII, p. 191 8.41-43 .............................................. 29, p. 188 17.8-16 XVI, p. 292; 31, p. 286; 36, p. 346; .......................................... 39, p. 332; 42, p. 323 17.17-24 ... XVII, p. 146; 29, p. 192; 37, p. 193 19.1-8(9-13a) 22, p. 226 19.1-13a .................. XIV, p. 185; XVIII, p. 204 19.1-18 III, p. 92 19.4-8 ................................................ 33, p. 285 19.9-13a 30, p. 204 19.9-18 .............................................. 44, p. 246 19.(14-18)19-21 ..........XVII, p. 159; 29, p. 205 19.15-16,19-21 46, p. 213

2 Reis

2.1-12 36, p. 105 2.9-18 ................................................ 37, p. 174 4.42-44 39, p. 238 5.1-14 31, p. 71 5.1-19a ...............................................VII, p. 58 Neemias

5.1-5(6-12) ....................................... XIII, p. 11 5.1-12 IX, p. 83 8.1-2,5-6 ............................ 20, p. 183; 34, p. 95 11.(1-3)4-6,10-11,16,24-29(30-36) ... 31, p. 263 Jó

7.1-7 ................................ XIX, p. 73; 31, p. 63

19.23-27a .......................................... 37, p. 329 38.1-11 25, p. 221; 42, p. 208 Salmo 1 39, p. 177 8 43, p. 50 16....................................................... 38, p. 165 22....................................................... 40, p. 115 22.1-19 .............................................. 35, p. 169 22.1-12,17-20 .................................... 30, p. 104 22.2-12,17-20 ...............................XVIII, p. 116 23 35, p. 187; 40, p. 137 29 44, p. 61 31.1-5,15-16 41, p. 171 46.1-7(1-11) 26, p. 313; 37, p. 311 67....................................................... 46, p. 181 68.1-10,32-35 .................................... 44, p. 183 84.1-6 ................................................ 43, p. 313 105.1-7 .............................................. 38, p. 356 111 ....................................................... 26, p. 27 112 XII, p. 77 116.1-2,12-19 42, p. 124 118.1-2,19-29 41, p. 130 118.14-29 43, p. 166 130.4.................................................... VI, p. 34 147.12-20 ............................................ 39, p. 54

Eclesiastes 1.2,12-14; 2.18-23 ............................ 43, p. 254 1.2; 2.18-26 ....................................... 20, p. 225 3.1-8(-13) VI, p. 48; 35, p. 51 3.1-13 44, p. 43 3.9-15 X, p. 16 4.1-4 X, p. 84 5.18....................................................... X, p. 65 9.13-18 ................................................. X, p. 25 10.12-18 ........................................... 43, p. 275 Provérbios 8.22-31 .............................................. 23, p. 109 9.1-6 42, p. 248 9.1-6,10 22, p. 230 9.7-13 23, p. 172 16.1-9 VIII, p. 80 24.10-14 ............................................XII, p. 45 30.5-9 ................................................ 26, p. 215 Isaías 1.1-9 ............................................... XIII, p. 116 1.10-17 ............................................. XV, p. 297 2.1-5 VI, p. 225; XVIII, p. 9; 30, p. 9 5.1-7 VII, p. 87; XIII, p. 147; 21, p. 252; 44, p. 296 6.1-13 VI, p. 198; XII, p. 213; 42, p. 187

362

7.10-14 ................................................ 21, p. 37 7.10-14(15-17) . ..............XIII, p. 104; 32, p. 27

7.10-16 44, p. 27

9.1-4 38, p. 80 9.1-6 XVIII, p. 31 9.1-6,10 22, p. 230 9.2-7 V, p. 294; 38, p. 39 11.1-5 ............................................... XVI, p. 63 11.1-9 ............ XVIII, p. 58; 33, p. 31; 37, p. 31; .............................. 39, p. 30; 43, p. 33; 46, p. 33 11.1-9(10-11)...................................XIV, p. 148 11.1-10 27, p. 16; 38, p. 15 12.1-6 26, p. 114 24.12-16a XIII, p. 312 25.1,8-9 43, p. 324 25.6-8 XIX, p. 114 25.6-9 ............ 21, p. 258; 31, p. 128; 34, p. 353 29.17-24 ...........................................XII, p. 233 29.18-24 ............................................ III, p. 130 30.(8-14),15-17 ................................... VI, p. 97 33.13-17,22 36, p. 187 35.1-10 21, p. 273; 24, p. 306; 28, p. 346; 35, p. 22; 35, p. 347; 38, p. 334; 41, p. 19 35.3-7 31, p. 248; XIX, p. 237 35.3-10 X, p. 158; XIV, p. 115 35.4-7a .............................................. 33, p. 315 40.1-11 ...... VIII, p. 40; XIV, p. 124; XIX, p. 15; ..................................................31, p. 9; 42, p. 15 40. 21-31 ............................................. 42, p. 81 40.25-31 IX, p. 216 42.1-7(-9) 21, p. 51; 25, p. 80; 35, p. 69; 39, p. 131; 41, p. 64 42.14-21 XVIII, p. 92; 30, p. 72 43.1-7 II, p. 132 (299); 40, p. 58 43.16-21 .............................................. 40, p. 97 44.1-5 ................................................ 33, p. 401 44.6-8 .............................. 35, p. 246; 38, p. 242 44.9-20 ............................................. XIII, p. 50 45.1-7 21, p. 264; 32, p. 293 45.19-25 40, p. 298 45.22-25 28, p. 49 49.1-6 III, p. 85; 37, p. 58 50.4-9 II, p. 28, (195); XIII, p. 166 50.4-9a .............................. 30, p. 94; 42, p. 268 50.4-10 ......................... XIX, p. 241; 31, p. 252 51.1-6 ................................................ 32, p. 259 52.7-10 ............XV, p. 100; 22, p. 37; 33, p. 70; ............................................................. 39, p. 58 52.13 – 53.12 V, p. 72; IX, p. 196; XV, p. 185; XII, p. 109; 36, p. 146

53.4-12 .............................................. 39, p. 310 53.10-12 ............................................ 25, p. 294 54.7-10 IX, p. 183; XV, p. 170 55.1-5 III, p. 68; VIII, p. 213; XVIII, p. 198; 30, p. 197; 41, p. 244 55.1-9 34, p. 120; 46, p. 123 55.6-7 VI, p. 24 55.6-11 ................................................ 34, p. 63 55.(6-9),10-12a .............................. VIII, p. 119 55.10-11 ............................................ 24, p. 223 55.10-13 ............................................ 44, p. 227 56.1,6-8 XVIII, p. 213; 30, p. 209; 35, p. 274; 38, p. 263 58.1-9a XV, p. 147 58.1-12 IX, p. 50; 33, p. 125; 39, p. 97 58.5-9a 24, p. 88 58.7-12 .............................................XII, p. 300 58.9b-14 ............................................ 46, p. 251 60.1-6 ........... V, p. 11; VIII, p. 92; XVII, p. 39; ............................. 24, p. 63; 29, p. 54; 38, p. 63 61.1-3(4-9),11 XIII, p. 120 61.1-3,10-11 28, p. 20 61.1-3,11,10 VII, p. 44 61.10 – 62.3 XIX, p. 42; 25, p. 68; 28, p. 59 62.1-5 20, p. 23; 28, p. 31; 46, p. 69 62.1-12 ................ II, p. 256, (423); VIII, p. 331 62.6-7,10-12 ............... XIX, p. 279; 22, p. 272; ........................................................... 24, p. 297 63.7-9 .................................................. 44, p. 49 63.7-9(10-16) 24, p. 44; 32, p. 46 63.15-64.3 XIII, p. 91 63.15-16;19b-64.3 I, p. 152, (159) 63.15-17,19; 64.(1-2)3-7 22, p. 9 64.1-9 33, p. 9; 39, p. 9 65.17-25 ............................ IX, p. 15; 30, p. 133 66.10-14 ........ 29, p. 213; 37, p. 217; 43, p. 234 Jeremias

1.4-10 ........................ VII, p. 184; XIII, p. 228; 37, p. 82; 46, p. 80 7.1-11 VIII, p. 257 7.1-11(12-15) XIV, p. 301 7.21-26 30, p. 15 8.4-7 VIII, p. 349; XIV, p. 390 9.22-23 ...............................................VII, p. 71 11.18-20 ...... XIX, p. 246; 31, p. 256; 39, p. 287 14.7-10,19-22 .................. 37, p. 305; 40, p. 286 15.15-21 ....XVIII, p. 222; 30, p. 220; 41, p. 266 17.5-8 .................................................. 23, p. 55 20.7-13 VIII, p. 145; 21, p. 181; 38, p. 219; 44, p. 211

363

22.13-19 ........................................... XIII, p. 80 23.1-6 ........................... XVI, p. 217; 42, p. 232 23.2-6 20, p. 301 23.5-8 VI, p. 62; XII, p. 103 23.16-29 II, p. 144, (311); XIII, p. 209; 37, p. 251 26.8-15 26, p. 97 28.5-9 .............................. 21, p. 186; 32, p. 208 29.1,4-14a ........................................... III, p. 34 31.1-13 ................................................ 29, p. 35 31.7-14 ................................................ 46, p. 58 31.7-9(-14) 25, p. 301; 35, p. 58 31.10-13(14) XVII, p. 34 31.31-34 ............................ 22, p. 85; 36, p. 329 33.14-16 .................................. 26, p. 9; 43, p. 9

Lamentações

3.21-26,31-32 .................................... VI, p. 269 3.21-33 25, p. 226; 39, p. 212 Ezequiel

2.1-5 36, p. 226 2.1-8a ................................................ 25, p. 231 2.3-8a;3.17-19 ............................ II, p. 96, (263) 17.22-24 33, p. 239 18.1-4,21-24,30-32............................ IX, p. 247 18.1-4,25-32 41, p. 291 18.1-4,25-37 ...................................... 27, p. 243 33.7-9 27, p. 230 33.7-11 44, p. 269 34.1-2(3-9),10-16 .............................. 21, p. 192 34.1-2(3-9),10-16,31 VI, p. 170 34.11-16,23-24 ............... 24, p. 328; 35, p. 363; 38, p. 347 37.1-3(4-10),11-14 ..................... XVIII, p. 103 37.1-3,11-14 ........................................ 30, p. 89 37.1-14 XV, p. 193; 24, p. 117; 32, p. 108; ......................................... 33, p. 228; 44, p. 128 37.24-28 VIII, p. 55

Daniel

5.1-30 III, p. 188 7.(1-12)13-14(15-28) XVI, p. 311; 39, p. 344 12.1-3 .......................... XIX, p. 296; 31, p. 293

Oseias

5.15 – 6.2....................... XVIII, p. 95; 30, p. 83 5.15 – 6.6 21, p. 169 11.1-4,8-9 ........................ 24, p. 323; 27, p. 284

Joel

2.1-2,12-17 36, p. 111; 41, p. 98; 46, p. 107 2.12-18 .............................................XII, p. 166 2.21-27 32, p. 212 2.28-29 .............................................. 21, p. 153

Amós

3.1-8

24, p. 75; 30, p. 54 5.6-7,10-15 ...................... 36, p. 309; 42, p. 292 5.18-24 ............................ 35, p. 352; 41, p. 326 5.21-24 VII, p. 76 6.1a,4-7 ............................................. 43, p. 291 6.1-7 23, p. 189; 37, p. 286 7.7-15 ................................................ 33, p. 264 7.10-15(16-17) XVI, p. 211 8.4-7 23, p. 181; 46, p. 281 9.7-10 ................................................. X, p. 128 Jonas 3.1-5(6-9),10 ................... XIX, p. 61; 31, p. 52; 36, p. 81 3.10-4.11 ........................................... 32, p. 274 Miqueias 3.5-12 ................................................ 44, p. 325 5.1-4a .............................. VI, p. 88; XII, p. 114 5.2-4 29, p. 21 5.2-5 XVI, p. 63; 27, p. 29; 34, p. 30; 40, p. 24; 46, p. 27 6.1-8 24, p. 79; 27, p. 58; 35, p. 87 6.6-8 VIII, p. 324; XIV, p. 385 Habacuque 1.2-3(4); 2.1-4 ..............................XVII, p. 219; ......................................... 29, p. 281; 34, p. 327 Sofonias 3.14-20 20, p. 20; 37, p. 20 Zacarias 7.9-10 26, p. 267 8.1-8 24, p. 337 9.9-10 X, p. 91; XIX, p. 106; 31, p. 107 9.9-12 ................................................ 41, p. 227 12.7-10(11) .................................... XVII, p. 153 Malaquias (2.17)3.1-5......................................... 25, p. 207 3.1-4 46, p. 18 2.17 – 3.5 23, p. 9

NOVO TESTAMENTO

Mateus 1.18-25 ......................... XVIII, p. 25; 24, p. 29; ............................. 30, p. 19; 35, p. 28; 41, p. 24 2.1-12 .......... X, p. 193; XVIII, p. 49; 25, p. 74; 32, p. 62; 44, p. 56 2.13-18(-23) V, p. 304; 35, p. 46; 38, p. 47 3.1-12 XVIII, p. 15; 24, p. 24; 35, p. 14; 41, p. 14

364

3.13-17 ........ X, p. 206; XVIII, p. 53; 24, p. 67; ............................. 30, p. 44; 32, p. 66; 38, p. 68

4.1-11 IV, p. 14; 27, p. 70; 32, p. 85; 38, p. 119; 44, p. 102 4.12-17 XII, p. 142 4.12-23 XVIII, p. 61; 35, p. 81; 44, p. 71 4.23-25 XII, p. 35; XII, p. 34

5.1-10 ............ IV, p. 212; 32, p. 307; 41, p. 315 5.1-12 ............ XVIII, p. 64; 38, p. 85; 44, p. 79 5.13-16 ............................................... X, p. 390 5.13-16(17-20) .............................. XVIII, p. 69 5.13-20 41, p. 81 5.17-20 IV, p. 125 5.20-37 XVIII, p. 73; 38, p. 96 5.21-37 44, p. 84

5.38-48 II, p. 193,(360); X, p. 460; ............................................. 35, p. 99; 41, p. 92 6.1-4 ...........................VIII, p. 279; XIV, p. 332 6.1-6,16-21 34, p. 115; 37, p. 94; 38, p. 114; ................................................................ 44, p. 96

6.5-13 .................... II, p. 57, (224); XIV, p. 247 6.9-13 VI, p. 53; VIII, p. 192 6.16-18 .............................................. IV, p. 133 6.24-34 IV, p. 180; 32, p. 179 6.25-34 ............................ X, p. 428; 38, p. 352 7.15-23 IV, p. 140 7.21-29 XVIII, p. 157; 24, p. 178; 30, p. 163 7.24-27 .............................................. VI, p. 233 9.1-8 IV, p. 198 9.9-13 ..... VIII, p. 110; XVIII, p. 161; 32, p. 188 9.35-10.8 XVIII, p. 170; 44, p. 205 10.7-15 ..................................... II, p. 104, (271) 10.24-39 .......................... 32, p. 204; 41, p. 216 10.26-33 XVIII, p. 176; 30, p. 168; 34, p. 347 10.26b-33 .... VI, p. 291; XII, p. 268; 43, p. 318 10.26-36 XXIV, p. 203 10.34-39 ...........................................XII, p. 274 10.34-42 XVIII, p. 181; 30, p. 174 10.40-42 ....... 35, p. 229; 38, p. 225; 41, p. 222; ........................................................... 44, p. 216 11.2-10 X, p. 170 11.2-11 ............. III, p. 215; 21, p. 30; 27, p. 22; 32, p. 21; 38, p. 21; 44, p. 21 11.16-19,25-30 .................................. 32, p. 221 11.25-30 XVIII, p. 186; 24, p. 216; 30, p. 184 12.14-21 36, p. 63 12.22-30 ............................................ IV, p. 217 12.33-35(36-37) XII, p. 307 12.38-42 ............... II, p. 225, (292); XII, p. 175 13.1-9(18-23) 21, p. 196; 27, p. 188;

........................................ 30, p. 189; 35, p. 240; 38, p. 237; 41, p. 233 13.24-30(36-43) ....... XVIII, p. 289; 21, p. 203; ......................................... 32, p. 229; 44, p. 232 13.31-33 38, p. 247 13.44-46 ............. II, p. 150, (317); VIII, p. 253; XIV, p. 295; 35, p. 253 13.44-52 .......................... 21, p. 207; 27, p. 194 14.13-21 21, p. 213; 24, p. 245; ....................... 27, p. 198; 32, p. 241; 44, p. 242 14.22-33 .......VI, p. 109; 24, p. 249; 27, p. 202; 35, p. 267; 38, p. 258; 41, p. 249 15.21-28 .......................... X, p. 445; 21, p. 218; 27, p. 208; 32, p. 255; 44, p. 251 16.13-19 .............................................. 23, p. 40 16.13-20 24, p. 260; 27, p. 216; 35, p. 278; 38, p. 268; 41, p. 259 16.13-20(23).............................. II, p. 72, (239) 16.21-26 21, p. 223; 27, p. 222; 32, p. 264 16.21-28 ............................................ 44, p. 263 17.1-9 X, p. 216; XVIII, p. 78; 30, p. 60; ........................................................... 35, p. 114 18.1-5 ................ 37, p. 48; 38, p. 310; 46, p. 47 18.15-20 II, p. 123,(290); XVIII, p. 226; ....................... 30, p. 227; 35, p. 290; 41, p. 273 18.21-35 X, p. 467; XVIII, p. 232; ....................... 30, p. 234; 32, p. 269; 44, p. 277 19.16-26 II, p. 182, (349) 20.1-16a IV, p. 7; X, p. 221; XVIII, p. 236; ........................................................... 30, p. 239 20.1-16 29, p. 296; 35, p. 302; ......................................... 38, p. 290; 41, p. 285 20.17-28 21, p. 96; 27, p. 87 21.1-9 ............................... III, p. 194; X, p. 149 21.1-11 ............................ 38, p. 140; 44, p. 133 21.14-17 II, p. 52, (219); XII, p. 185; ........................................................... 37, p. 353 21.23-32 32, p. 282; 44, p. 290 21.28-32 .................... VI, p. 247; XVIII, p. 243 21.33-43(-46) XVIII, p. 250; 35, p. 315; ......................................... 38, p. 304; 41, p. 297 22.1-10 (11-14) XVIII, p. 254; 30, p. 243 22.1-14 ......... IV, p. 205; VI, p. 207; 32, p. 289; ........................................................... 44, p. 302 22.15-21(-22) XVIII, p. 259; 35, p. 323; ......................................... 38, p. 314; 41, p. 308 22.23-33 VIII, p. 336; XVI, p. 288; 20, p. 285 22.34-40 ............................................ IV, p. 194 22.34-46 44, p. 314 22.34-40(41-46) .............. 30, p. 253; 32, p. 298

365

23.1-12 ..................II, p. 158, (325); 30, p. 259; 35, p. 335

24.1-14 VI, p. 68; XVIII, p. 275

24.15-28 IV, p. 222 24.36-44 .............................................. 44, p. 11 24.37-44 .... 21, p. 21; 27, p. 9; 32, p. 9; 38, p. 9 25.1-13 IV, p. 243; XI, p. 336; 24, p. 312; ......................................... 30, p. 277; 44, p. 331

25.14-30 ................. II, p. 233, (400); X, p. 394; XVIII, p. 272; 30, p. 286; 41, p. 331; 44, p. 336

25.31-37 ...................................... XVIII, p. 297 25.31-46 .... IV, p. 231; X, p. 472; XVIII, p. 298; 21, p. 302; 27, p. 291; 32, p. 51; p. 324; 41, p. 44

26.14-27.66 ....................................... 35, p. 157 26.30-56 ...................................... XVIII, p. 109 26.36-46(-56) VI, p. 29; 35, p. 162; 38, p. 154 26.36-56 41, p. 135 26.57-75 ........................................... 24, p. 122 27.11-26 32, p. 116 27.33-50 44, p. 145 27.33-50(51-54) ........... VIII, p. 162; 38, p. 154 27.33-54 ............................ 21, p. 111; 27, p. 99 27.33-56 XIV, p. 201 28.1-10 VI, p. 167; 24, p. 139; ......................................... 35, p. 176; 41, p. 147 28.16-20 ........ X, p. 374; 30, p. 156; 34, p. 203; ...................... 35, p. 222; 40, p. 156; 41, p. 205; ........................................................... 46, p. 186

Marcos

1.1-8 22, p. 14; 28, p. 13; 33, p. 16; 39, p. 13

1.4-11 22, p. 48; 28, p. 64; 36, p. 69; 42, p. 56

1.9-15 33, p. 132; 39, p. 102 1.12-15 XIX, p. 79; 25, p. 129; 31, p. 84 1.14-20 ............... 22, p. 56; 28, p. 73; 33, p. 84; ............................................. 39, p. 75; 42, p. 71

1.21-28 ............. XVI, p. 99; 28, p. 79; 36, p. 86 1.29-39 .............. 28, p. 87; 33, p. 101; 39, p. 87 1.32-39 VI, p. 284; XII, p. 261 1.40-45 VI, p. 258; XII, p. 241; 36, p. 100

2.1-12 X, p. 453; 28, p. 100 2.18-22 VIII, p. 105 2.23-28 VIII, p. 311; XIV, p. 367; 22, p. 169; ........................................................... 28, p. 228

2.23-36 .............................................. 42, p. 193

3.1-6 .................................................... X, p.114 3.20-35 ....... XVI, p. 192; 28, p. 233; 36, p. 209 3.31-35 VI, p. 252 4.26-29 VI, p. 113

4.26-34 ......... 22, p. 175; 28, p. 240; 36, p. 216; ........................................................... 42, p. 203 4.30 32 .............................................XII, p. 313 4.35-41 ...... XVI, p. 200; 22, p. 182; 28, p. 247; 32, p. 244; 39, p. 209 5.21-24a,35-43 28, p. 253; 33, p. 378; 39, p. 327 5.21-43 42, p. 216 5.24b-34 ............................................ 22, p. 188 5.25-34 ...............................................XII, p. 27 6.1-6 ........... XVI, p. 205; 22, p. 200; 28, p. 260 6.1-13 .............................. 33, p. 256; 39, p. 218 6.6b-13 ......................... XIX, p. 201; 25, p. 236 6.14-29 X, p. 74; 36, p. 235; 42, p. 225 6.30-34 XIX, p. 206; 25, p. 241; 31, p. 208; 33, p. 270 6.30-34,53-56 39, p. 231 6.34-44 ............................................. 30, p. 247 7.1-8,14-15,21-23........ XIX, p. 233; 31, p. 242; ......................................... 33, p. 309; 39, p. 270 7.24-37 ............................ 36, p. 279; 42, p. 263 7.31-37 .......... IV, p. 163; X, p. 408; 22, p. 239; 28, p. 307 8.22-26 VIII, p. 269; XIV, p. 317 8.27-35 XVI, p. 247; 33, p. 323; 39, p. 280 8.31-38 X, p. 234; XIX, p. 83; 25, p. 134; ........................... 31, p. 91; 36, p. 121; 42, p. 97 9.2-9 .......... XVI, p. 105; 28, p. 108; 33, p. 119; ............................................................. 42, p. 87 9.17-29 .............................................. VI, p. 278 9.30-37 XVI, p. 255; 22, p. 245; 36, p. 289; 42, p. 273 9.38-50 22, p. 250; 28, p. 322; 33, p. 334; 39, p. 293 9.43-48 ................II, p. 138, (305); XVI, p. 263 10.2-12 .......... 28, p. 326; 36, p. 303; 42, p. 283 10.13-16 ............................................ 28, p. 313 10.17-27 ....XII, p. 256; XVI, p. 268; 22, p. 260; 33, p. 348 10.17-31 39, p. 305 10.32-45 X, p. 106 10.35-45 28, p. 289; XVI, p. 277; 34, p. 270; 36, p. 316; 42, p. 298 10.46-52 ...... XVI, p. 283; 22, p. 265; 39, p. 315 11.1-11........... 33, p. 160; 39, p. 126; 46, p. 141 12.1-12 .............................................. X, p. 242 12.13-17 ............................................ III, p. 138 12.28-34 .......................... 36, p. 340; 42, p. 318 12.41-44 VI, p. 138; 22, p. 281; 33, p. 387 13.1-8 36, p. 353; 42, p. 329

366

13.1-13 ....... XVI, p. 302; 22, p. 286; 28, p. 351 13.24-31 ............................................ 28, p. 358 13.24-37 36, p. 9; 42, p. 9 13.31-37 XIV, p. 397 13.33-37 XIX, p. 9; 25, p. 17 14.3-9 VI, p. 149; 22, p. 93 14.6-9 XII, p. 181 14.12-26 .... XVI, p. 134; 22, p. 104; 28, p. 144; ........................................................... 36, p. 140

14.17-26 ............................................ VI, p. 156 15.1-15(16-20) ............. XVI, p. 129; 28, p. 139 16.1-8 IV, p. 144; X, p. 294; XVI, p. 153; 22, p. 112; 28, p. 159; 36, p. 152; 42, p. 136

16.9-14(15-20) VIII, p. 173; XIV, p. 225 16.12-18 33, p. 184; 39, p. 148 16.14-20 .............................................. IV, p. 77 Lucas

1.1-4 .................................................. 23, p. 200 1.26-33(34-37),38 ........... VI, p. 81; XII, p. 109 1.26-38 XVI, p. 56; XIX, p. 27; 22, p. 28; 28, p. 26; 33, p. 24; 39, p. 24 1.39-45(46-55) 26, p. 20; 37, p. 26 1.(39-45)46-55(56) X, p. 175

1.46-55 V, p. 288 1.47-55 ................................................ 43, p. 28 1.57-66 .............................................. 24, p. 200 1.67-79 ............................. V, p. 270; VIII, p. 30 1.68-79 ................................................ 43, p. 14

2.1-7 30, p. 24; 34, p. 38; 38, p. 33; 39, p. 36; ............................................................. 40, p. 29

2.1-7,8-14,15-20 XVI, p. 63

2. (1-7)87-20 ....................................... 42, p. 31

2.1-14 I, p. 161, (168); X, p. 181; 32, p. 41 2.(1-14)15-20 24, p. 41; 34, p. 69; 37, p. 54; ............................................. 41, p. 50; 44, p. 37

2.15-21 42, p. 46; 46, p. 53

2.1-20 ......... III, p. 218; IV, p. 273; XVII, p. 28; XIX, p. 26; 21, p. 41; 23, p. 21; ............................. 24, p. 34; 27, p. 34; 33, p. 37

2.22-40 ................................................ 36, p. 56

2.41-52 20, p. 35; 46, p. 42 3.1-9 .................................... V, p. 281; 37, p. 14 3.1-14 VI, p. 76

3.7-18 ............ XVII, p. 21; 23, p. 15; 29, p. 16; 34, p. 24; 40, p. 18; 46, p. 22 3.15-17,21-22 20, p. 40; 26, p. 36; 37, p. 64 4.1-13 ............... 23, p. 60; 29, p. 81; 37, p. 100; 43, p. 116 4.14-21 ...............VI, p. 19; 26, p. 47; 37, p. 76; 43, p. 77

4.14-21(22)................ 20, p. 50; p. 59; 27, p. 47 4.16-21 X, p. 186 4.21-30 .............. 26, p. 54; 34, p. 100; 43, p. 83 5.1-11 IV, p. 118; XVII, p. 57; 20, p. 65; 26, p. 59; 46, p. 85 6.17-26 ................ 20, p. 69; 26, p. 66; 43, p. 93 6.27-38 20, p. 73; 26, p. 74; 46, p. 100 6.36-42 ..............................IV, p. 112; X, p. 368 7.1-10 26, p. 206; 40, p. 176 7.11-17 ..........................IV, p. 186; VIII, p. 293 7.36-50 .... VIII, p. 262; XIV, p. 309; 26, p. 220 7.36-8.3 37, p. 199 8.4-10 ................................................. X, p. 228 8.26-39 34, p. 237; 40, p. 196; 46, p. 204 9.10-17 ........................................... VIII, p. 241 9.18-24(25-26) 20, p. 190; 26, p. 226 9.28-36 .............. 20, p. 82; 26, p. 85; 34, p. 109 9.28-36(37-43) .................................. 43, p. 104 9.51-56 XV, p. 167 9.51-62 .......... 20, p. 198; 37, p. 212; 43, p. 229 9.57-62 X, p. 251 10.1-11 .............................................. 46, p. 219 10.1-11,16-20 34, p. 252; 40, p. 209 10.1-12,16 ......................................... 20, p. 204 10.17-20 ............................................ 24, p. 285 10.21-24 II, p. 82, (249) 10.25-37 ... X, p. 413; XVII, p. 163; 23, p. 135; 43, p. 237 10.38-42 ....VI, p. 124; XVII, p. 170; 23, p. 140; 29, p. 216; 34, p. 264; 40, p. 214; ........................................................... 46, p. 231 11.1-13 ......... 23, p. 145; 29, p. 223; 37, p. 229; 43, p. 248 11.5-13 .............................................. VI, p. 184 11.14-23 VI, p. 297; XII, p. 283 12.13-21 23, p. 149; 29, p. 228; 34, p. 278; ......................................... 40, p. 224; 46, p. 242 12.32-40 XVII, p. 183; 37, p. 241; 43, p. 260 12.35-40 ........................................... III, p. 226 12.41-48 VI, p. 302 12.42-48 ...........................................XII, p. 289 12.49-53 .. XVII, p. 189; 23, p. 154; 29, p. 235; 34, p. 289; 40, p. 237 12.49-56 ............................................ 46, p. 247 13.1-9 XVII, p. 83; 23, p. 72; 29, p. 93; ......................................... 37, p. 111; 43, p. 128 13.10-17 37, p. 257; 43, p. 271 13.22-30 ..... XVII, p. 193; 23, p. 159; 29, p. 241 13.31-35 ........ XVII, p. 78; 23, p. 65; 29, p. 88; 40, p. 87; 46, p. 118 14.1,7-14 ...... 23, p. 167; 29, p. 247; 40, p. 248; 46, p. 260

367

14.7-14 .......................................... XVII, p. 196

14.15-24 ............................. IV, p. 96; X, p. 354

14.25-33 VIII, p. 235; 20, p. 251; 26, p. 277; 37, p. 266; 43, p. 280 15.1-3,11b-32 XII, p. 220; 34, p. 125; 46, p. 129 15.1-3,11-32 IV, p. 209; XVII, p. 88; ........................................... 29, p. 100; 40, p. 92

15.1-7(8-10) ....................................... X, p. 361 15.1-10 ......... IV, p. 106; 20, p. 255; 34, p. 309; ......................................... 40, p. 252; 46, p. 276 15.8-32 28, p. 265 16.1-9 IV, p. 147 16.1-13 20, p. 260; 26, p. 286; 37, p. 277; ............................................................... 43, p. 286 16.19-31 ......... IV, p. 88; 20, p. 265; 35, p. 321; ......................................... 40, p. 262; 46, p. 288 17.1-10 ............................ 20, p. 270; 26, p. 298 17.5-6 VIII, p. 286; XIV, p. 346 17.5-10 37, p. 291; 43, p. 296 17.7-10 VI, p. 117; XII, p. 160 17.11-19 ...... IV, p. 172; X, p. 421; XX, p. 275; ...................... 26, p. 305; 34, p. 371; 40, p. 275; ........................................................... 46, p. 299

17.20-35 V, p. 275

18.1-8a 20, p. 291; 23, p. 213 18.1-8 VIII, p. 343; 26, p. 325; 37, p. 301; ............................................................... 43, p. 307 18.9-14 ......... IV, p. 158; 28, p. 333; 34, p. 340; ........................................................... 46, p. 311

18.18-23 ...........................................XII, p. 249 18.31-43 VIII, p. 124 19.1-10 II, p. 112, (279); VIII, p. 219; XIV, p. 275; 37, p. 324; 40, p. 292; ........................................................... 46, p. 317

19.28-40 ....... 26, p. 121; 34, p. 138; 37, p. 116; ......................................... 40, p. 103, 43, p. 144

19.41-48 IV, p. 153; X, p. 401 20.9-19 XVII, p. 94; 29, p. 105 20.27-38 23, p. 223; 34, p. 359; 43, p. 335 21.5-19 .......... 20, p. 296; 37, p. 336; 46, p. 337 21.25-36 .......... III, p. 209; XVII, p. 9; 34, p. 9; ............................................................... 40, p. 9

22.7-20 ............................ 20, p. 116; 26, p. 126 22.31-34 VIII, p. 131; XIV, p. 172 23.33-43 26, p. 344; 34, p. 365; 40, p. 322; 46, p. 341

23.(26-32)33-49 .......... XVII, p. 102; 29, p. 119 23.33-49 ........ VI, p. 162; 37, p. 127; 46, p. 151 23.35-43 ........................................ XVII, p. 248

24.1-11(12) ........................................ 20, p. 127 24.1-12 ........... II, p. 201; 37, p. 132; 40, p. 121 24.13-35 ......... VI, p. 40; 21, p. 125; 27, p. 114; 32, p. 137; 38, p. 176; 44, p. 156 24.36b-48 42, p. 148 24.36-49 XVI, p. 164; XIX, p. 128; 36, p. 162 24.44-53 ........ 28, p. 201; 35, p. 206; 44, p. 177 24.(44-49)50-53 ........... XIX, p. 148; 22, p. 145 24.50-53 ............................................. X, p. 331 João

1.1-5,9-14 XIX, p. 35; 25, p. 39; 31, p. 24; 37, p. 36; 40, p. 35 1.1-14 43, p. 38 1.1-18 .................................. 33, p. 30; 29, p. 46 1.(1-9)10-18 ........................ 33, p. 64; 38, p. 59 1.6-8,19-28 XIX, p. 22; 25, p. 29; 31, p. 14; 42, p. 20 1.19-23(24-28) ................. VIII, p. 49; 36, p. 19 1.29-34 ............................................. VIII, p. 98 1.29-34(35-41) ............. XVIII, p. 57; 21, p. 55; 35, p. 75; 41, p. 70 1.35-42 XII, p. 227 1.43-51 ........ XII, p. 129; XVI, p. 92; 22, p. 52; ............ 28, p. 68; 34, p. 80; 36, p. 76; 40, p. 53; ............................................................. 43, p. 58 2.1-11 IX, p. 41; 20, p. 44; 26, p. 40; 34, p. 89; 40, p. 64; 43, p. 69 2.13-22 ........................... VI, p. 237; XIX, p. 87 3.1-11(15) ........................................... X, p. 347 3.1-17 ............. 22, p. 165; 28, p. 220; 32, p. 91; 33, p. 232; 39, p. 189; 41, p. 112 3.14-21 XIX, p. 95; 25, p. 144; 31, p. 96; 36, p. 128; 42, p. 107 4.1-11 ............................................... 31, p. 149 4.5-26 ................................ 21, p. 82; 35, p. 139 4.31-38 ...................................... II, p. 89, (256) 4.46-54 XII, p. 148 5.1-9 37, p. 168 5.1-16 ..............................................XIV, p. 360 5.1-16(18)....................................... VIII, p. 304 5.19-21 ............................................XIV, p. 215 5.24-29 XVIII, p. 267; 22, p. 277; 29, p. 302; 30, p. 271 5.39-47 .............................................. VI, p. 204 6.1-15 ........... IV, p. 24; X, p. 383; XIX, p. 211; ....................... 25, p. 247; 31, p. 213; 36, p. 245 6.(22-23)24-35 XIX, p. 217; 21, p. 218; 25, p. 254; 33, p. 280; 36, p. 365; 39, p. 245 6.35................................................. VIII, p. 151

368

6.35,41-51 ....................... 36, p. 257; 42, p. 242 6.37-40(41-43),44 ....................II, p. 200, (367) 6.41-51 XIX, p. 220; 25, p. 259; 28, p. 284; 31, p. 226

6.51-58 XIX, p. 225; 31, p. 232; 33, p. 292; ........................................................... 39, p. 257

6.56-69 ............................ 36, p. 269; 42, p. 253 6.60-69 XIX, p. 229; 25, p. 264; 31, p. 237 6.66-69 XII, p. 293 7.14-18 VIII, p. 87 7.37-39a ..... XVI, p. 187; 22, p. 158; 28, p. 211 7.37-39 ....... VI, p. 194; XII, p. 199; 22, p. 158; 35, p. 216

8.1-11 VIII, p. 228 8.21-30 .......................VIII, p. 138; XIV, p. 179 8.31-36 ................. II, p. 216, (383); VIII, p. 73; ......................................................XVII, p. 225; ......................................... 23, p. 209; 42, p. 307 9.1-7 ...........................VIII, p. 248; XIV, p. 290 9.1-11 38, p. 135 9.1-41 32, p. 104; 44, p. 121 9.13-17,34-39 21, p. 91; 27, p. 81 9.35-41 VIII, p. 299 10.1-5,27-30 ............................... II, p. 40, (207) 10.1-10 ......... 21, p. 133; 27, p. 119; 32, p. 144; ........................................................... 41, p. 165 10.11-16 .............................................. IV, p. 53 10.11-18 .... XIX, p. 135, 25, p. 181; 31, p. 139; 33, p. 199 10.11-18,27-30 X, p. 310 10.14-16,27-29 33, p. 50 10.22-30 29, p. 141; 37, p. 149; 46, p. 170 10.22-30(31-39) ............................ XVII, p. 117 11.1,3,17-27 ........... II, p. 188, (355); 35, p. 151 11.1(2),3,17-27(41-45) ....................... X, p. 434 11.1-5,17-21 .................... 37, p. 319; 40, p. 310 11.1-45 .............................................. 41, p. 123

11.47-53 VIII, p. 157; XIV, p. 192; ......................................... 21, p. 103; 33, p. 154

12.1-8 43, p. 140

12.12-16 .......................... 36, p. 134; 42, p. 118

12.12-19 X, p. 269; 20, p. 110 12.20-26 ............................................. X, p. 258 12.20-30 ............................................ 25, p. 150 12.20-33 XIX, p. 102; 31, p. 103; 33, p. 154; ........................................................... 39, p. 120 12.44-50 VIII, p. 65 13.1-15,34-35 ..................................... X, p. 277 13.1-17,31b-35 43, p. 149 13.1-17,34 30, p. 99; 34, p. 144

13.31-35 .... XVII, p. 121; 29, p. 149; 34, p. 144; p. 191; 40, p. 145; 46, p. 175 14.1-6 ...............................................XII, p. 134 14.1-12 21, p. 139; 27, p. 124; 39, p. 170; ............................................................. 42, p. 169 14.1-12(14)............... II, p. 63, (230); 35, p. 192 14.1-14 44, p. 168 14.8-17(25-27) ................ 34, p. 219; 43, p. 211 14.15-19 XV, p. 232 14.15-21 ........ 34, p. 165; 35, p. 200; 41, p. 177 14.23-27 IV, p. 82; X, p. 341 14.23-29 XVII, p. 126; 29, p. 154 15.1-8 .............. X, p. 317; XIX, p. 139; 25,189; 31, p. 146; 36, p. 174; 42, p. 158 15.9-12(13-17) ................................XIV, p. 374 15.9-17 VIII, p. 317; XIX, p. 143; ....................... 25, p. 192; 33, p. 211; 39, p. 165 15.(18)26-16.4.................................... X, p. 337 15.26-27; 16.4b-11 20, p. 171; 26, p. 191; ........................................................... 36, p. 197 15.26-27; 16.4-15 42, p. 181 16.5-15 ................................................ IV, p. 65 16.12-15 20, p. 177; 26, p. 200; 37, p. 184; ............................................................... 43, p. 217 16.16-23a .......................... IV, p. 57; VI, p. 179 16.16,20-23a VI, p. 129; p. 176 16.22-28 .............................................. IV, p. 72 16.23b-28,33 X, p. 323 17.1-11 ......... 21, p. 148; 27, p. 132; 38, p. 200; 41, p. 191 17.1a,6-19 33, p. 221 17.1-15 .............................................. 24, p. 159 17.9-19 IV, p. 31; 25, p. 197 17.(9-10)11-19 .............. XIX, p.153; 31, p. 157 17.20-26 VIII, p. 198; 29, p. 168 18.33-37 ....................... XIX, p. 299; 31, p. 296 18.33-38a .......................................... 36, p. 358 19.16-30 IV, p. 38; X, p. 284; XIX, p. 110; ..... 25, p. 170; 31, p. 123; 33, p. 168; 39, p. 136 20.1-18 34, p. 162; 38, p. 159; 43, p. 160; 44, p. 150 20.1-2,11-18 24, p. 230 20.1-9(10-18) XVIII, p. 120; 26, p. 136; 30, p. 109 20.11-18 .....................VIII, p. 166; XIV, p. 207 20.19-23 ........ 24, p. 173; 30, p. 150; 38, p. 206 20.(19,23)24-29............ X, p. 301; XIX, p. 119; ........................................................... 32, p. 134 20.19-31 .... XIX, p. 119; 21, p. 121; 27, p. 110; 29, p. 128; 31, p. 133 20.26-31 37, p. 138

369

21.1-14 ........................ XVII, p. 111; 29, p. 136

21.1-19 ............................ 34, p. 178; 40, p. 131

21.15-19 VIII, p. 179 21.20-25 34, p. 53

Atos

1.8-14 24, p. 168

1.1-11 20, p. 155; p. 160; 26, p. 182; ..... 29, p. 161; 32, p. 162; 38, p. 195; 43, p. 197

1.15-26 ......................... XVI, p. 184; 28, p. 206 1.3-4(5-7),8-11 .................................. XI, p. 242 1.15a,21-26 ....................................... 36, p. 193

2.1-13 XI, p. 249

2.1-21 XIX, p. 158; 27, p. 139; 40, p. 162 2.14a,22-32 24, p. 143; 41, p. 152 2.14a,36-47 24, p. 150 2.22-23,32-33,36-39 XV, p. 239

2.36-41 ................................................ III, p. 59

2.41a,42-47 ....................................... XI, p. 284 2.42-47 .............................................. 44, p. 162 3.1-10 ...............................................VII, p. 198 3.12-19 39, p. 153 3.13-15,17-26 XVI, p. 158; 28, p. 165 4.5-12 36, p. 168 4.8-12 28, p. 172 4.32-35 42, p. 141 4.32-37 ............................................... V, p. 310 5.12,17-32 ........................................ 20, p. 130 5.27-32 .............................................. 40, p. 126 6.1-7 ............................... III, p. 134; 24, p. 155 7.55-60 38, p. 182 8.14-17 34, p. 85; 43, p. 64 8.26-40 XIII, p. 222; XVI, p. 169; 28, p. 188; 33, p. 205

9.1-6(7-20) 46, p. 163 9.1-20 ................................................ 20, p. 136 9.36-43 .............................................. 34, p. 184 10.34-38 .............. 23, p. 35; 27, p. 52; 31, p. 38 10.34-48(10.1 – 11.18) ..................... XIX, p. 49 10.34-43 27, p. 105; 33, p. 177; 46, p. 157 10.44-48 42, p. 163 11.19-30 XVI, p. 178; 28, p. 196 13.16-17,22-25 22, p. 33 13.44-52 20, p. 140; p. 143 14.8-18 ............................................. 20, p. 148 16.6-10 .............................................. 20, p. 164 16.9-15 ........ IX, p. 171; XV, p. 141; 43, p. 191 16.16-34 ............................................ 34, p. 211 16.23-34 ...................... VII, p. 122; XIV, p. 233 17.1-15 24, p. 159 17.16-34 I, p. 34

17.22-31 ........................ XV, p. 213; 32, p. 156 19.1-7 .................................................. 39, p. 63 Romanos 1.1-7 XVI, p. 77; 25, p. 55; 28, p. 54; 32, p. 36; 36, p. 30; 38, p. 28; 42, p. 26; 44, p. 32 1.16-17; 3.21-28 38, p. 327 3.19-28 .......... II, p. 169; 20, p. 278; 21, p. 267; ......................................... 25, p. 287; 33, p. 364 3.21-25a ................................ 27, p. 156, p. 272 4.1-5,13-17 ...................... 24, p. 100; 35, p. 133 4.13-25 33, p. 138; 39, p. 108 4.18-25 24, p. 184; 27, p. 161 5.1-5 XVII, p. 137; 29, p. 180; 34, p. 224; 40, p. 168; 46, p. 197 5.1-8 32, p. 197; 41, p. 212 5.1-11 ................ V, p. 51; 28, p. 122; 32, p. 98; ......................................... 38, p. 129; 44, p. 114 5.6-11 .............................. 24, p. 190; 27, p. 166 5.12-15 .............................................. 27, p. 172 5.12-19 41, p. 104 6.1b-11 24, p. 211; 27, p. 183 6.3-8 XI, p. 278 6.19-23 V, p. 164; IX, p. 258 7.15-25a 35, p. 234; 38, p. 231; 44, p. 221 8.1-11 .............. I, p. 39; XIV, p. 253; 24, p. 111 8.12-17 .............................. V, p. 170; 36, p. 203 8.12-25 .............................................. 41, p. 239 8.14-17 .......... 25, p. 203; 37, p. 179; 46, p. 192 8.14-17,22-27 29, p. 174 8.18-23 V, p. 150 8.18-23(24-25) XVIII, p. 192 8.22-27 39, p. 183 8.26-27 30, p. 193 8.26-30 .............................................. IX, p. 233 8.26-39 .............................................. 44, p. 237 8.31b-39 ............................................ XI, p. 144 8.31-39 ............ IX, p. 91; 28, p. 115; 46, p. 331 8.(31-34)35-39 XVI, p. 110 9.1-5 35, p. 261; 38, p. 252 9.1-5,31-10.4 XIII, p. 235 9.1-5; 10.1-4 V, p. 185 9.30b-33 III, p. 124 10.5-13 ......................... XVI, p. 115; 32, p. 248 10.8b-13 ............................................ 46, p. 113 11.1-2a,29-32 .................................... 41, p. 255 11.13-15,29-32 .................................. 25, p. 255 11.25-32 ...................................... I, p. 95, (102) 11.32-36 V, p. 126 11.33-36 XI, p. 256

370

12.1-8 ............ XI, p. 152; 24, p. 265; 44, p. 256 12.9-12 .............................................. 35, p. 284 12.9-21 38, p. 273 12.6-16 V, p. 19 13.1-10 21, p. 229 13.8-10(13-14) XI, p. 107 13.11-14 IV, p. 251; 24, p. 19; ................................................. 35, p. 9; 41, p. 9

14.1-12 .............................................. 41, p. 278 14.5-9 ................................................ 21, p. 234 14.7-13 ............................................... III, p. 79 14.10-13 XI, p. 266 15.4-13 21, p. 25; 32, p. 16; 44, p. 16 16.25-27 31, p. 19

1 Coríntios

1.1-9 24, p. 70; 32, p. 72; 38, p. 75; 44, p. 65

1.3-9 .................................. XVI, p. 51; 28, p. 9 1.4-9 .................................................... V, p. 228

1.10-17 ................................ 21, p. 60; 41, p. 75 1.18-25 ................................................ 20, p. 97

1.26-31 V, p. 190; IX, p. 24; 21, p. 65 2.1-5 21, p. 71; 22, p. 60 2.1-10 VII, p. 50; XIII, p. 126 2.1-12(13-16) 38, p. 91

2.6-13 21, p. 74 2.12-16 .............................................VII, p. 150

3.1-9 .................................................... 41, p. 87 3.9-15 .............................XV, p. 266; IX, p. 269 3.16-23 .............................................. 22, p. 193 4.1-5 IV, p. 261; XI, p. 119 6.9-14,18-20 I, p. 78, (85) 6.9-14(15-17),18-20 I, p. 86, (93) 6.12-20 33, p. 76; 39, p. 69 6.24-34 35, p. 106

7.29-31 ............................................... 24, p. 90 7.29-32a ..................................... I, p. 46, (213) 8.1-3 .................................................... 42, p. 76 8.2 .................................................... XIII, p. 42 9.16-23 XIV, p. 264, 25, p. 96; 36, p. 90 9.24-27 XI, p. 165; 33, p. 112 10.1-13 V, p. 179; 20, p. 91 10.16-17 VII, p. 107; XIII, p. 171; 44, p. 139 10.16-17(18-21) 31, p. 113 10.31-11.1 ......................................... 25, p. 107 11.23-26 ......... 24, p. 127; 27, p. 94; 37, p. 120; ........................................................... 46, p. 146 11.23-29 ................................................ V, p. 65 12...................................................... XIII, p. 34 12.1,4-11 XVII, p. 47; 29, p. 59; 37, p. 70 12.3b-13 44, p. 188

12.12-21,26-27 .................... 23, p. 45; 29, p. 64 12.12-31a ............................ 40, p. 70; 46, p. 74 12.27-13.13 XVII, p. 52; 29, p. 71 12.31b-13.13 V, p. 32; XI, p. 182 14.1-3,20-25 VII, p. 158 14.12b-20 23, p. 49 15.1-11 XVII, p. 108; 324, p. 105; ........................................... 39, p. 142; 43, p. 88 15.1-20 ................................................ III, p. 13 15.12,16-20 ..................XVII, p. 63; 32, p. 311; ........................................................... 41, p. 321 15.12-20 46, p. 95 15.19-28 I, p. 16; IX, p. 207; XV, p. 207; XVIII, p. 280; 25, p. 175 15.20-28 XVIII, p. 280; 30, p. 293 15.35-38 XIII, p. 29 15.45-49 .......................................... XVII, p. 69 15.50-58 ........ V, p. 78; XIX, p. 286; 26, p. 320 2 Coríntios 1.3-7 ......................................... I, p. 112, (119) 1.18-22 VII, p. 14; XIII, p. 98; 25, p. 113 3.1b-6 25, p. 118 3.3-9 IX, p. 283 3.12-4.2 XIX, p. 76; 31, p. 78 4.3-6 IX, p. 157; XIV, p. 165; 39, p. 93; ............................................................. 46, p. 63 4.5-12 ........................... XIX, p. 169; 31, p. 171 4.6-10 ................................................ XI, p. 158 4.7-18 .................................................. III, p. 53 4.13-18 XIX, p. 173; 31, p. 177 4.13-5.1 42, p. 198 4.16-18 XIII, p. 192 5.1-10 IX, p. 295; XV, p. 288 5.6-10 XIX, p. 178; 31, p. 183 5.6-10,14-17 ...................................... 39, p. 203 5.14-21 ................................I, p. 7; XIX, p. 181 5.(14b-18)19-21 .......... XVI, p. 140; 28, p. 153; ........................................................... 41, p. 140 5.16-21 43, p. 135 5.20b – 6.10 35, p. 120; 40, p. 76; 43, p. 110 6.1-10 VII, p. 82 6.1-13 36, p. 221 8.1-9,13-14 ................................... XIX, p. 188 8.1-15 ............................................... XIII, p. 18 8.7-15 ................................................ 33, p. 251 8.9 ................................................... XV, p. 112 9.6-15 ............................... V, p. 323; XI, p. 272 (11.18,23b-30); 12.1-10 XIII, p. 142 12.1-10 V, p. 26

371

12.2-10 .............................................. 42, p. 220 12.7-10 ......................... XIX, p. 195; 31, p. 199 13.11-13 IX, p. 240; 21, p. 158; 32, p. 174; 38, p. 214; 44, p. 198

Gálatas

1.1-12 37, p. 189 1.11-24 23, p. 113; 40, p. 182 2.16-21 ........................VII, p. 192; XIII, p. 241 3.(23-25)26-29 ................ 23, p. 119; 37, p. 206 3.23-29 .............................................. 43, p. 223 3.28.....................................................XII, p. 70 4.1-7 IX, p. 144 4.4-7 XV, p. 106; XVIII, p. 38; 30, p. 31; 33, p. 44; 35, p. 33; 39, p. 43; 41, p. 29; 42, p. 40 5.1-6 XIII, p. 167 5.1-11 .................I, p. 118, (125), p. 124, (131); ......................................... 35, p. 341; 44, p. 320 5.1,13-25 ........ 23, p. 126; 34, p. 243; 40, p. 204 5.25-26; 6.1-3,7-10 .....VII, p. 214; XIII, p. 253 6.14-18 23, p. 131 Efésios

1.3-6,15-18 XVIII, p. 43; 24, p. 58; 30, p. 37 1.3-14 III, p. 62; 22, p. 204; 34, p. 75; 39, p. 225

1.3-6,15-18 .................................... XVIII, p. 43 1.15-23 ............................ 41, p. 181; 44, p. 341 1.(16-20a)20b-23 ............ 21, p. 144; 30, p. 138 1.20b-23 ........................................... IX, p. 227 2.1-10 30, p. 265 2.4-10 XVI, p. 120; 28, p. 128 2.11-22 X, p. 48; 36, p. 239 2.13-22 22, p. 209

3.1-12 31, p. 30; 35, p. 64; 41, p. 59 3.2-12 .............................. XVI, p. 83; 22, p. 43 3.14-21 .............................. V, p. 212; 33, p. 275 4.1-6 .............................. V, p. 218; XIV, p. 353 4.1-7,11-16 ........................................ 22, p. 215 4.1-16 42, p. 238 4.17-24 22, p. 220 4.20-32 V, p. 235 4.25-5.2 39, p. 251 4.30-5.2 XVI, p. 228 5.1-8a ............................................... XI, p. 205 5.1-9 ...................................................... V, p. 46 5.8-14 ............. 24, p. 105; 35, p. 145; 41 p. 118 5.9-14 ............................................... III, p. 100 5.15-20 ......................... XVI, p. 233; 36, p. 264 5.15-21 V, p. 241 5.21(22-25),26-31 XVI, p. 236

5.21-31 .............................................. 28, p. 294 6.10-20 ......................... XVI, p. 242; 33, p. 300 Filipenses

1.3-11 XI, p. 324; XVII, p. 14; 29, p. 9; 34, p. 16; 40, p. 14 1.12-21 VII, p. 95 1.20c-27 24, p. 280 1.21-30 .............................................. 44, p. 284 2.1-4 ................................................ VII, p. 173 2.1-5(6-11) ....................................... 21, p. 245 2.1-13 .............................. 35, p. 309; 37, p. 297 2.5-11 V, p. 57; XI, p. 216; XVII, p. 97; 25, p. 158; 29, p. 111; 32, p. 59; 39, p. 49 2.12-13 XV, p. 282; 46, p. 327 3.4b-14 34, p. 133; 46, p. 135 3.12-21 24, p. 290; 27, p. 251 3.7-11 ................................................ XI, p. 291 3.7-14 ................................................. V, p. 261 3.8-14 ................................................ 20, p. 102 3.12-16 ....................................... II, p. 20 (187) 3.12-21 27, p. 251 3.17-21 XI, p. 330 3.17-4.1 20, p. 86; 37, p. 105 3.20-21 I, p. 136, (137); 129,(143) 4.1-9 41, p. 303 4.4-7 .................................... 26, p. 15; 43, p. 23 4.10-20 .............................................. IX, p. 150 Colossenses

1.1-6 .................................................. 26, p. 233 1.1-14 46, p. 225 1.11-20 43, p. 346 1.12-20 23, p. 229; 37, p. 342 1.15-23 I, p. 47 1.15-28 43, p. 243 1.21-28 .............................................. 26, p. 240 1.24-27 ................................................ 42, p. 50 2.3-10 .............................................XIV, p. 140 2.6-15 .............................. 26, p. 250; 40, p. 218 2.12-15 XIII, p. 186 3.1-4 III, p. 48; 21, p. 117; 32, p. 127 3.1-11 37, p. 236 3.12-17 V, p. 107; 37, p. 42; 43, p. 45 4.2-6 V, p. 114; XIII, p. 199

1 Tessalonicenses

1.1-5a ............................. 24, p. 294; 27, p. 256 1.5b-10 .............................................. 27, p. 263 1.2-10 ...............................................VII, p. 210 1.1-10 ................................................ 44, p. 307 2.1-8 35, p. 329; 348, p. 321 2.8-15 27, p. 277

372

3.9-13 .................... 20, p. 15; 37, p. 9; 46, p. 11

4.1-8 ................................... V, p. 38; XI, p. 315

4.13-14(15-18) 21, p. 285

4.13-18 21, p. 292; 36, p. 335; 42, p. 313 5.1-8 IX, p. 288

5.1-11 21, p. 297; 35, p. 357; 38, p. 340 5.12-24 IX, p. 274 5.16-24 ................ 22, p. 19; 33, p. 20; 39, p. 18

2 Tessalonicenses

1.1-4,11-12 ........................................ 43, p. 330

2.1-17 .............................. III, p. 165; 40, p. 316 2.(13-15)16-17;3.1-5 29, p. 311

3.1-5 IX, p. 252 3.6-13 V, p. 97; 29, p. 317; 43, p. 341

1 Timóteo

1.12-17 III, p. 74; XVII, p. 206; 29, p. 265

2.1-4 ....................................... II, p. 169, (336) 2.1-6 .................................................. 38, p. 279 2.1-8 .........XVII, p. 211; 34, p. 314; 35, p. 370; ........................................................... 40, p. 257

3.16 XIV, p. 132 4.4-5 XIII, p. 298 6.6-16 XVII, p. 215; 29, p. 274 6.11b-16 IV, p. 255

2 Timóteo

1.1-14 ................................................ 46, p. 295 1.3-8(9-12),13-14 .............................. 23, p. 195 2.8-13 .............................. 23, p. 205; 37, p. 296 2.8a(8b-13) ..................................... XV, p. 198 2.8-15 43, p. 301 3.14-4.5 34, p. 333; 40, p. 280 Tito

2.11-14 II, p. 263, (430); XI, p. 128; 24, p. 34; 35, p. 40; 41, p. 37 3.4-7 .. IV, p. 280; 20, p. 29; 34, p. 45; 46, p. 37 Filemom

1-21 ................................................... 46, p. 264 8-21 ................................................... 29, p. 254 9b-17(18-21) XVII, p. 201 Hebreus

1.1-4(5-12) 36, p. 35; 39, p. 299; 40, p. 267 1.1-9 XVI, p. 70 2.9-11 XIX, p. 257; 31, p. 274 2.10-18 ............................................ IX, p. 188 3.1-6 .............................................. XIX, p. 262 4.9-16 ........................... XIX, p. 268; 31, p. 281 4.12-13 .............................................. XI, p. 171 4.14-16 .............................................. XI, p. 192 4.14-16; 5.7-9 24, p. 133; 34, p. 153; 43, p. 154 5.1-6(7-10) XIX, p. 273; 33, p. 356

5.5-10 ................................................ 42, p. 113 5.7-9 ........... XI, p. 211; XVI, p. 125; 28, p. 134 7.23-28 36, p. 322; 42, p. 304 9.11-14 39, p. 322 9.15-17,26b-28 20, p. 122 9.15,24-28 III, p. 7 9.15,26b-28 XIII, p. 179 9.24-28 ......................................... XIX, p. 291 10.11-25 ............................................ 39, p. 337 10.16-25 ............................................ 42, p. 130 10.19-25 ..................II, p. 241 (408); IX, p. 119 11.1-2,6,8-10 IX, p. 178 11.1-3,8-16 20, p. 229 11.1-4 28, p. 39 11.8-10 XV, p. 160 11.29 – 12.2 43, p. 265 12.1-3 ............................................... XV, p. 178 12.1-13 ............................................. 20, p. 233 12.12-18(19-21),22-25a ................... XV, p. 127 12.18-24 ........ 20, p. 242; 34, p. 296; 40, p. 242 13.1-8 20, p. 246 13.1-8,15-16 37, p. 262 13.(7)8-9b XIV, p. 153 13.12-16 V, p. 205 Tiago 1.12-18 ........................................... XV, p. 154 1.17-27 ........................... 25, p. 268; 42, p. 258 2.1-13 ........................................... XIII, p. 262 2,1-5,8-10,14-18.............. 25, p. 275; 39, p. 275 2.14-24 III, p. 110 3.1-12 36, p. 283 3.13-4.3,7-8a 33, p. 327 4.13-17 IX, p. 34; 29, p. 40 5.1-6 XIII, p. 265; XIX, p. 252; 37, p. 160 5.7-8 ................................................. XI, p. 114 5.7-10 ............................................ XVIII, p. 19 5.13-16 .............................................VII, p. 220 5.13-20 ............................ 36, p. 295; 42, p. 277 1 Pedro 1.(1-17)18-21

XIII, p. 152 1.17-21 30, p. 118 1.17-22 XVIII, p. 129; 35, p. 182; 41, p. 158 1.3-9 III, p. 22; XI, p. 221; XVIII, p. 125; ........................................................... 30, p. 114 2.1-10 ..... I, p. 55, p. 61; XV, p. 254; 32, p. 149 2.4-10 ........................ XVIII, p. 138; 30, p. 128 2.13-17 ....................................... I, p. 102 (109) 2.15-17 .............................................. VI, p. 13 2.18-25 30, p. 122 2.19-25 XVIII, p. 133

373

2.21b-25 ............................. V, p. 91; XI, p. 229

3.8-17 ................................................. V, p. 156

3.13-22 38, p. 188; 44, p. 173

3.15-18 XVIII, p. 146; 24, p. 165 3.18-22 36, p. 116; 42, p. 92 4.7-11 V, p. 120 4.13-19 XVIII, p. 152 5.1-5 .................................................... III, p. 27 5.5b-11 ............................. V, p. 144; XI, p. 307

2 Pedro

1.3-11 .............................................. III, p. 145 1.16-19(20-21) IX, p. 165

1 16-21 24, p. 95; 27, p. 65; 38, p. 108; 44, p. 91 3.8-14 XVII, p. 237; 23, p. 218; 25, p. 23; 36, p. 14

1 João

1.(1-4)5 – 2.2................... 22, p. 124; 36, p. 157 1.5-10; 2.1-6 ................. XIII, p. 216; 36, p. 181 2.21-25 ...............................................VII, p. 30 3.1-3 VII, p. 21 3.1-7 33, p. 191 3.13-18 IX, p. 57 3.16-24 42, p. 153 3.18-24 III, p. 159; 22, p. 130 4.1-6 .................................................. IX, p. 72 4.1-11 ................................................ 22, p. 135 4.11-16 .............................................. 31, p. 165 4.7-12 .............................................. XI, p. 299 4.7-16 V, p. 196 4.(7-16a)16b-21 22, p. 149; 39, p. 159 4.16b-21 V, p. 135

5.1-5 ................................... V, p. 84; XI, p. 235 5.1-6 ................................................ 22, p. 118 5.9-13 42, p. 175 5.11-13 XI, p. 138

Apocalipse

1.4-8 VII, p. 131; XIII, p. 204; 34, p. 169; 42, p. 334 1.9-18 ............................VII, p. 65; XIII, p. 133 1.9-20 ................................................ 26, p. 145 2.8-11 ..........................VII, p. 228; XIII, p. 275 1.9-20 .................................................. 23, p. 84 3.1-6 IX, p. 127; IX, p. 135; XV, p. 89, p. 95 3.7-13 II, p. 248 (416); 36, p. 42 3.14-22 XIII, p. 304 4.1-11 I, p. 144(151) 5.1-14 VII, p. 7 5.11-14 ........... 23, p. 90; 26, p. 150; 37, p. 144; ........................................................... 43, p. 172 7.9-12 .......................................... XVII, p. 230 7.9-17 .......... III, p. 182; XIII, p. 110; 23, p. 94; 26, p. 159; 43, p. 178 12.1-6 23, p. 26 12.7-12 21, p. 241 14.6-7 V, p. 249 15.2-4 XV, p. 218 19.11-16 .......................................... III, p. 195 21.1-5 .............. 26, p. 170; 37, p. 155; 38, p. 52 21.1-6 ................................................ 43, p. 183 21.10-14,22-23 .................................. 26, p. 176 21.10,22 – 22.5 34, p. 195 22.10-16 X, p. 11 22.12-14,16-17,20-21 43, p. 205 22.12-17,20 23, p. 99

Observação: Os números das páginas relativas aos volumes I e II referem-se à edição desses dois volumes num só tomo; os números do volume III referem-se à 2ª edição de 1981.

374

Texto: Times New Roman 11 Títulos: Bangkok 15 Datas: Arial 10 Subtítulos: Times New Roman 18/12

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