EDITORA SINODAL
10 a 24
Brasil multicultural O legado do folclore Exemplo de diversidade Casamento pomerano Carnaval A ciranda é de todos Cultura nordestina Fé cristã e cultura Lendas brasileiras
ÍNDICE
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história
Os cem anos da Igreja do Relógio
Ano 10 –> Número 43 –> Janeiro/Fevereiro de 2012
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Leonardo Boff Elogio ao boteco
Ecumenismo de gestos concretos
COTIDIANO
entrevista
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COLÔMBIA Solidariedade internacional
SEÇÕES
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JUVENTUDE Sinal de esperança
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HISTÓRIA Primeiro cemitério protestante no Brasil
OLHAR COM HUMOR > 6 MOSAICO BÍBLICO > 6 ÚLTIMA HORA > 7 NOTAS ECUMÊNICAS > 8 DICA CULTURAL > 9 REFLEXÃO > 28 RETRATOS > 32 TESTEMUNHOS > 33 SUSTENTABILIDADE > 35 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Fev 2012
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AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, Ingelore Starke Koch, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina e Vera Regina Waskow. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte sobre fotos: Roberto Soares Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Antonio Carlos Ribeiro, Artur Sanfelice Nunes, Carine Fernandes,Carlos Artur Dreher, Cláudio Rieper, Elaine Tavares, Ester Delen Wilke, Gottfried Brakemeier, Ingelore Starke Koch, João Soares, Jorge Kuster Jacob, Leonardo Boff, Lizely Borges, Marcelo Schneider, Nana Toledo, Nelson Kilpp, Roberto Soares, Rolf Schünemann, Rui Bender, Santiago, Silvana Isabel Francisco, Suzanne Buchweitz e Suzel Tunes.
Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 30,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
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Cultura
Q
uem já não ouviu falar de Boitatá, Curupira, Mula-sem-cabeça e SaciPererê? Quem já não ouviu falar de danças folclóricas? De comidas típicas de cada país? De canções folclóricas, como Prenda Minha e Negrinho do Pastoreio? Lendas, mitos, comidas, canções, festas, danças, músicas são manifestações do folclore. Em cada país vamos encontrar manifestações pupulares que podem ser consideradas de caráter folclórico porque vêm da tradição popular. A palavra folclore tem origem na língua inglesa: “folk” em inglês quer dizer povo, e “lore” quer dizer cultura. Folclore é manifestação cultural, manifestação de um povo. O Brasil tem diferentes manifestações culturais. De Norte a Sul, Leste a Oeste podemos identificar tais manifestações que têm raízes nas etnias que formam a nossa gente e impregnam a nossa história. Nosso folclore é rico e diversificado. Se no Sul falamos em chula como uma dança típica, o maracatu é uma dança nordestina. Já no Sudeste vamos dançar a Catira e no Norte o Carimbó. Nesta edição, a Novolhar traz aos seus leitores e leitoras uma abordagem sobre o tema do folclore a partir da experiência exitosa de uma cidade gaúcha que promove um festival internacional de grupos folclóricos. É uma tentativa de buscar no cultivo de diferentes tradições as nossas raízes, a nossa identidade e a valorização da diversidade cultural que forma o nosso povo brasileiro. Longe de querer esgotar este assunto tão rico e tão variado, essa edição traz em seu tema de capa artigos instigantes e motivadores para que valorizemos nossas tradições culturais a fim de promover o entendimento e a alegria de pertencemos ao povo brasileiro. Destacamos ainda a entrevista com o Rev. Nilton Giese, secretário-geral da Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), com sede em Quito, Equador. Giese defende um ecumenismo de gestos concretos. Outro artigo fala da solidariedade internacional na Colômbia, que ajuda famílias de agricultores ameaçadas por guerrilheiros e forças paramilitares. Duas novas colunas marcam a primeira edição de 2012: Mosaicos bíblicos e Sustentabilidade. Desejamos aos leitores, às leitoras, aos colaboradores, às colaboradoras e aos anunciantes um novo ano repleto de alegrias, realizações e esperança renovada naquele que é o Senhor da humanidade. Equipe da Novolhar
opinião DO LEITOR
LIVROS DA SINODAL
Profundidade e leveza
Boas reportagens
A última edição da revista Novolhar está excelente sob todos os aspectos: apresentação, conteúdo e diversidade. A matéria central “Quem é Jesus Cristo?” foi muito oportuna, abordando as questões centrais sobre Jesus Cristo com profundidade e, ao mesmo tempo, com leveza. Pude usar parte dos textos em estudo bíblico na comunidade. Parabéns. Que Deus continue inspirando toda a equipe! Nilo O. Christmann – por e-mail Cuiabá (MT)
Assim com eu, a maioria dos luteranos, inclusive pastores, não sabia da existência de um templo luterano que servia a leprosos no extinto Hospital Colônia Itapuã, próximo a Lagoa dos Patos. Parabéns ao jornalista Rui Bender por essa reportagem. Também na edição da revista de novembro e dezembro, mais uma vez Rui Bender está de parabéns com o artigo: “Jesus existiu de fato!”. Gerda Höher – por carta São Sebastião do Caí (RS)
Conte sua história A Novolhar lança um desafio às comunidades da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) para 2012: Envie a história da construção do templo de sua comunidade. O texto deve ter até 2.500 caracteres com espaço e fotos em alta resolução. O Conselho Editorial escolherá seis histórias para publicar em 2013. Conte a sua história para os nossos leitores. Com o passar do tempo, muitas vezes, ricas experiências na construção de templos são esquecidas. Por isso a Novolhar disponibiliza esse espaço para passar à história esses momentos importantes. Prazo para envio das histórias é o dia 31 de agosto de 2012. Envie por e-mail: novolhar@editorasinodal.com.br ou para Editora Sinodal (Caixa postal 11 – 93000970 São Leopoldo/RS).
Desculpe, Leonardo! A Novolhar de novembro e dezembro de 2011 publicou o artigo Proclamação do Cristo do Corcovado sob a autoria de Orlando Eller. No entanto, o verdadeiro autor desse artigo é Leonardo Boff. A falha foi da equipe da Novolhar, que vem a público desculpar-se junto ao Leonardo pelo equívoco e também perante os leitores e leitoras da revista.
Predominância masculina Trabalho com mulheres e com o tema justiça de gênero. Chamou minha atenção o artigo de Rui Bender sobre o Plano de Monitoramento da Mídia, promovido por WACC. Muito interessante fazer esse exercício de olhar onde estão as mulheres na mídia. Comecei a olhar na mesma edição da revista: dos 22 colaboradores (no masculino, p. 4) 5 são mulheres. No tema principal, as mulheres escrevem sobre temas de mulheres! Os artigos restantes da pesquisa são de homens. A constatação da notícia “mulheres em desvantagem” se reflete também na edição dessa revista. Sugiro que um novo olhar possa ser feito nessa direção! Elaine Neuenfeldt – por e-mail Genebra-Suíça Novolhar esclarece: A questão de gênero está entre as principais preocupações da revista. Nas últimas seis edições, o artigo principal de capa foi redigido por mulheres em quatro oportunidades e somente em duas o autor foi um homem. No período, as mulheres foram maioria na lista de colaboradores/as em três das seis edições, superando em muito os índices sugeridos pela FLM.
Visite nosso site Os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar.com.br
Tema da próxima edição A edição nº 44, de Março/Abril de 2012, irá tratar em sua capa o tema MUNDO FEMININO. O papel e a situação da mulher na sociedade brasileira.
por Gottfried Brakemeier A Reforma do século 16 é um desses eventos universais cujos impulsos não se limitam a uma fase da história nem a um só país. Desenvolve uma dinâmica ainda quinhentos anos depois. Congratulamo-nos com o lançamento da tradução da obra de Manfred Wolf, que teve a feliz ideia de submeter o Reformador a uma entrevista. É claro que ela é “artificial”. As perguntas são formuladas por preocupações da atualidade, enquanto as respostas se baseiam em posicionamentos dados por Lutero em seu tempo. Para tanto, o autor fez uma ampla pesquisa. Coletou respostas “luteranas” a um elevado número de questões relativas à fé, à conduta, à vida social e política. Esse livro aproxima Lutero das pessoas neste país, revelando os tesouros escondidos no legado que deixou. A entrevista não somente amplia o conhecimento sobre Lutero. Ela também presta um valioso auxílio pastoral às pessoas que procuram orientação em meio às confusões da vida. Lutero ainda hoje é capaz de indicar caminhos. Recomendo, pois, a leitura desse livro. Ele oferece a possibilidade de uma leitura seletiva de acordo com o interesse. Desejo aos leitores e às leitoras que obtenham muito proveito N dessa genial entrevista. GOTTFRIED BRAKEMEIER é teólogo e pastor aposentado da IECLB em Nova Petrópolis (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Fev 2012
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olhar com humor
Santiago
MOSAICO BÍBLICO
Tábuas de argila Na antiga Babilônia, a argila para escrever era moldada na forma de placas finas, planas e retangulares. Para escrever, usava-se um buril em forma de cunha e depois assava-se a placa de argila ao sol. A tinta era feita de uma mistura de fuligem e óleo ou resina.
Os registros Um dos papiros de Qumran
Tábuas revestidas de cera Assírios, gregos e romanos usavam tábuas de madeira ou marfim cober tas de cera. Qualquer objeto pontiagudo servia como instrumento de escrita.
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Pedra Na Bíblia, a primeira referência à escrita é relacionada aos Dez Mandamentos, que foram registrados em pedra. O primeiro instrumento de escrita foi o cinzel.
Papiro Os egípcios antigos já haviam aprendido a produzir uma espécie de papel chamado papiro, feito da parte interna do talo do papiro, um tipo de junco do rio Nilo. Ainda úmidos, os talos eram enfileirados de forma sobreposta e socados até formar uma superfície plana de papel. (A palavra “papel”, aliás, vem de “papiro”.) Depois de secar as folhas ao sol, era possível escrever nelas. O instrumento de escrita era um pincel feito de junco e tinta derivada de plantas e insetos. Couro Peles de carneiros, bodes, bezerros e antílopes secas, raspadas e limpas formavam um material liso chamado pergaminho. Depois de secas e limpas, as peles eram esticadas e socadas para formar uma superfície plana na qual se podia escrever. O instrumento de escrita era feito de junco, com uma extremidade cortada na diagonal e partida. Fonte: Bíblia Sagrada com Enciclopédia Bíblica Ilustrada – Sociedade Bíblica do Brasil – 2011
última hora
por Suzanne Buchweitz
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Divulgação Novolhar
coordenador de programas do Departamento de Serviço Mundial (DSM) da Federação Luterana Mundial (FLM), Rudelmar Bueno de Faria, assessorou os trabalhos no Seminário de Capacitação em Preparação e Resposta a Emergências, promovido pela Fundação Luterana de Diaconia (FLD). Ele apresentou as estratégias do DSM na preparação e resposta a emergências para os pastores sinodais e outras lideranças da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Um dos pontos destacados é a coordenação das iniciativas. Sem um trabalho coordenado, boas intenções não salvam ninguém. Em momentos tão graves, a eficiência é fundamental. “Para se ter resultados, o trabalho de diaconia na ajuda humanitária exige a
melhor utilização possível dos recursos financeiros e humanos disponíveis”, ressaltou Bueno de Faria. Isso significa também perguntar e ouvir o que as pessoas estão precisando, uma vez que quem sofreu e está sofrendo sabe melhor sobre suas necessidades e dificuldades. “A vontade de ajudar e de ser solidário deve atender exigências e determinações globais de ajuda humanitária”, lembrou o coordenador do DSM. O Código de Conduta para o socorro da população em casos de desastre é uma delas. Proposto pela Cruz Vermelha Internacional em 1994, tem dez princípios: a primeira atitude é o dever humanitário; a ajuda prestada não está condicionada pela raça, credo ou nacionalidade dos beneficiários, nem nenhuma outra distinção de índole adversa. A ordem de prioridade da assistência estabelece-se unicamente em função das necessidades. O Seminário de Capacitação em Preparação e Resposta a Emergências (28 a 30 de novembro) é uma realização da FLD, com o apoio da Ajuda da Igreja da Noruega (AIN). A iniciativa da FLD se dá pelo fato de ser membro da Aliança ACT e ter como uma de suas áreas de atuação a resposta a emergências. De acordo com o secretário executivo Carlos Gilberto Bock, “a expectativa é que a FLD possa auxiliar os sínodos e as comunidades da IECLB em processos de capacitação e prevenção a emergências e na assessoria em situações de desastres”. N SUZANNE BUCHWEITZ é jornalista e assessora da Fundação Luterana de Diaconia em Porto Alegre/RS
As igrejas e a Comissão da Verdade
Divulgação Novolhar
Ajuda com planejamento
O procurador de justica Marlon Weichert esteve na sede do Conselho Mundial de Igrejas em novembro
A Comissão da Verdade no Brasil vai fazer sentido se as igrejas continuarem utilizando os valores da fé na proteção dos direitos humanos, declarou o procurador de justiça Marlon Weichert em visita à sede do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em Genebra, em novembro passado. Ele destacou o papel das igrejas no apoio ao Brasil no momento em que o país procura curar feridas de seu passado doloroso e vislumbra um futuro melhor. A Comissão da Verdade, com a tarefa de investigar atrocidades cometidas no país, incluindo o regime militar de 1964 a 1985, aguarda sanção da presidenta Dilma Rousseff para ser transformada em lei. O CMI apoia a implementação da comissão, o que foi externado, também formalmente, pelo moderador do Comitê Central do CMI, pastor Walter Altmann, à ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, em recente audiência em Brasília. Weichert é procurador regional do Ministério Público Federal do Brasil. N Fonte: www.alcnoticias.net
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Notas ecumênicas
ALÉM DA FAMOSA TORRE DE PISA, existem diversas torres de igrejas antigas que estão inclinadas em toda a Europa. Uma delas é esta, da igreja de Bad Frankenhausen, no Leste da Alemanha. É a maior das torres inclinadas no território alemão, com mais de 600 anos, 56 metros de altura e 4,6 metros fora do prumo. Infelizmente, será demolida em 2012 por razões de segurança.
Confiança Vigilância profética na igreja É preciso manter a perspectiva profética de vigilância e denúncia das situações de violação dos direitos humanos e da natureza, assim como seguir dedicandose às tarefas teológicas e pastorais de formação de lideranças com os mesmos princípios proféticos e evangélicos.
Rev. Nilton Giese – secretário-geral do Conselho LatinoAmericano de Igrejas (CLAI) – no Seminário Latino-Americano de Formação em Diaconia, realizado em São Leopoldo (RS) em novembro de 2011
Embora em queda, a igreja é a instituição na qual os latino-americanos mais confiam, mostra pesquisa do Latinobarômetro de 2011. Paraguaios, com 78%, brasileiros, com 76%, e bolivianos, com 74%, são os povos que mais confiam na igreja, bem acima da média regional, que é de 64%.
ALERTA O bispo protestante Mark Dröge, da Igreja Evangélica de Berlim-Brandenburgo, declarou-se, em entrevista ao Serviço de Imprensa Evangélica (EPD, a sigla em alemão), “profundamente chocado” com a extensão da violência da extrema-direita na Alemanha. Ele orientou as paróquias a prestar atenção aos movimentos de extrema-direita em sua área.
Reação papal A decisão do Vaticano de empreender ações legais contra a fotomontagem em que o papa Bento XVI beija o imã sunita Ahmed el Tayeb, anunciada pela Secretaria de Estado da Santa Sé, ampliará as condições para a divulgação da campanha. As fotos da campanha UNHATE (Não Ódio) da Benetton, empresa italiana, destaca a luta contra o ódio e a intolerância. Os maiores líderes mundiais foram incluídos e não anunciaram atitudes judiciais contra a empresa.
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Diaconia O fio condutor entre todas as nossas experiências é a compreensão de que diaconia é uma parte essencial do ser igreja na América Latina. David Cella Hefel, membro da equipe de diaconia e projetos e responsável pelas relações ecumênicas da Igreja Evangélica do Rio da Prata (IERP), da Argentina
DICA CULTURAL
Muito além dos quadros por Artur Sanfelice Nunes
Arte: Artur Sanfelice Nunes
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ocê já prendeu bandidos com o Batman, bateu nos romanos com o Obelix, resgatou a moedinha nº 1 do Tio Patinhas e também já deu nós nas orelhas do coelho da Mônica, não é? Então não adianta negar: já leu histórias em quadrinhos e maravilhou-se com elas. É assim mesmo: quem já leu histórias em quadrinhos (HQs) sabe o que é ter experiências tão incríveis quanto inesquecíveis. Nisso não há mistério, porque elas tratam de todo e qualquer assunto, são criadas por pessoas extremamente talentosas, destinam-se a todas as idades e, quando bem feitas, influenciam até nossa vida cotidiana. Espere um pouco! Será que não é exagero dizer que até nossas vidas são influenciadas por HQs? Claro que não! Seus personagens fazem parte de nosso imaginário e também constituem objetos de desejo (coleções, brinquedos, roupas etc). Em temas adultos, muitas vezes a realidade é invadida pela ficção. Aquelas máscaras sorridentes dos protestos em Wall Street não vieram do carnaval. Vieram de “V, de Vingança” e são baseadas no rosto do inglês Guy Fawkes, que em 5 de novembro de 1605 tentou explodir o parlamento da Inglaterra e assassinar seus membros juntamente com o rei Jaime I, sabia? Ler histórias em quadrinhos ajuda a conhecer, questionar e amar o mundo em que vivemos. Elas podem abrir as portas de outros mundos incríveis, onde tudo pode acontecer (não há limites nas HQs, assim como não há limites para a criatividade humana). Pare para pensar: você já assistiu muitos filmes baseados em quadrinhos: Batman, Super-homem, X-men, 300... A lista é imensa. A criatividade é uma das grandes características
(senão a maior) das HQs, em que uma mesma história pode render incontáveis versões e histórias clássicas podem ser mais facilmente compreendidas. Existem quadrinhos para todos os gostos e bolsos. Não perca tempo e vá procurar a obra que mais lhe agrada ... na banca de jornais ou na livraria de arte mais próxima, você escolhe. N ARTUR SANFELICE NUNES é designer gráfico em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Fev 2012
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CAPA
O legado do folclore
folclore é um conjunto de mitos e lendas passados de geração em geração, criadas para passar mensagens importantes. Muitos deram origem a festas populares, que ocorrem nos quatro cantos do país.
Mauro Stoffel
por Carine Fernandes
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Mauro Stoffel
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o Oiapoque ao Chuí, o Brasil é marcado pela diversidade cultural. O legado de seus antepassados deixou costumes e crenças transmitidas de geração a geração. No Nordeste, por exemplo, o maracatu e o frevo divertem a população em datas especiais, e a capoeira tornou-se um dos esportes mais valorizados na região. Já no Sul, a lenda do Negrinho do Pastoreio é conteúdo em sala de aula, e o chimarrão e o churrasco são itens obrigatórios na mesa do gaúcho. Esses costumes e tradições que caracterizam a identidade de um povo compõem o folclore, que nada mais é do que a ciência das tradições e usos populares. “O folclore é a manifestação espontânea do homem em sociedade. É uma ciência sociocultural que tem como objeto de estudo a cultura espontânea. Ele mostra como um povo manifesta seus sentimentos de alegria, tristeza, amor, importância e valorização do pensamento social”, explica a presidente da Organização Internacional de Folclore e Artes Populares (IOV), Terezinha Pasqualini Miquilin. Essas diferentes culturas que compõem a diversidade folclórica no Brasil se devem à influência de vários povos e etnias que formaram o povo brasileiro. Embora seja um país de colonização portuguesa, outros grupos étnicos deixaram influências profundas na cultura nacional, destacando-se os povos indígenas, os africanos, os italianos e os alemães. “O Brasil, além de possuir um território muito grande, foi colonizado por países da Europa e sempre recebeu bem os imigrantes de todo o mundo. Por esses fatores, a diversidade cultural fica evidente, pois são muitos povos e muitas culturas”,
A DIVERSIDADE É O QUE NOS UNE: O slogan do festival deixa claro o objetivo dos organizadores
salienta Terezinha. Ela acrescenta que o folclore enquanto ciência tem por obrigação resguardar todas as culturas em sua raiz, tornando o país um território repleto de características de povos distintos e de uma cultura miscigenada. Além disso, é preciso considerar que o folclore não é um conhecimento cristalizado; ele se transforma no contato entre culturas distintas, nas migrações e através dos meios de comunicação, formando essa miscelânea de tradições e costumes. A cem quilômetros de Porto Alegre, uma cidade da serra gaúcha aprendeu a valorizar não somente suas tradições, mas também outras culturas do Brasil e do mundo. Fundada por imigrantes alemães, Nova Petrópolis cultiva fortemente as tradições germânicas, expressadas na arquitetura, gastronomia, dança e língua. A valorização das raízes é tão intensa, que o município instituiu aulas de dança típica alemã nas esco-
las municipais. Mas isso não impediu que a cidade deixasse de receber e divulgar outras culturas. Ela promove o Festival Internacional do Folclore com a participação de dezenas de grupos nacionais e internacionais, que vêm à cidade divulgar suas tradições por meio da dança, da música e do artesanato (leia artigo “Exemplo de diversidade” na página 14). “Considerando que um país forma sua identidade pela tradição, pela preservação dos costumes populares e por sua cultura, existiu uma preocupação em continuar perpetuando os costumes aqui existentes e também trazendo para a cidade novas perspectivas de vida cultural. Enfatizando o artesanato, a dança, a música, o canto, o teatro, a culinária e a história que perpassa gerações, o evento divulga o estado para toda a nação, bem como países de todos os continentes, demonstrando o valor cultural atribuído pelo povo gaúcho”, destaca a diretora do Departamento de Cultura de Nova
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Mauro Stoffel
INTERNACIONAL: Com a internacionalização do festival, muitas oportunidades surgiram para ampliar o intercâmbio cultural
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Petrópolis, Carla Cristiane Ferreira. Durante os 15 dias de programação, a cidade respira cultura e vive intensamente o festival. A rede hoteleira fica lotada, as ruas fecham para desfiles, as escolas e empresas mobilizam-se para receber grupos e o transporte da cidade é alterado para atender a comunidade. Com uma intensa programação na praça central da cidade, os moradores e visitantes fazem uma verdadeira viagem cultural ao conhecer a dança, a música, a gastronomia e o artesanato de países como Argentina, Peru, Estados Unidos, Cuba, Bolívia, Turquia e Alemanha. Também participam grupos do Rio de Janeiro, Alagoas, Pará, Paraíba, Maranhão, Ceará, São Paulo, Minas Gerais e Paraná. Além dos moradores da região, o evento é prestigiado também por visitantes de fora. Nos dois últimos anos, a média de público foi de 60 mil pessoas, quase três vezes mais do que o número de habitantes da cidade. Em 2011, o evento deu um passo importante para marcar o seu propó-
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sito ao apresentar o tema “A diversidade é o que nos une”. A mensagem repercutiu de forma positiva entre a comunidade. A Escola Municipal de Ensino Fundamental Augusto Guilherme Gaedicke, por exemplo, promoveu “O Dia da Diversidade”, reunindo toda a comunidade escolar. Durante as comemorações pela Semana da Pátria foi trabalhado o tema “No Brasil, país de dimensões continentais, a diversidade nos une em busca de prosperidade”, envolvendo todas as entidades do município. A diversidade não une apenas povos distantes geograficamente, mas também culturas próximas no estado, como a gaúcha e a alemã. A integração dos grupos germânicos da cidade com o CTG Pousada da Serra resultou na apresentação da coreografia “A diversidade é o que nos une”, que foi aplaudida de pé pelo público na última edição do evento. A partir da internacionalização do festival, muitas oportunidades surgiram para ampliar o intercâmbio cultural, por exemplo com a República Tcheca
e com Sunchales, na Argentina. A cada ano, grupos desses países participam do Festival do Folclore e grupos de Nova Petrópolis levam a cultura gaúcha até esses países. Para 2012, o CTG Pousada da Serra já recebeu convite para participar do Srbija Dukai Fest – tradicional festival na Bósnia. Com o festival, Nova Petrópolis mostra a importância das manifestações folclóricas em todos os seus segmentos, entendendo, assim, que o folclore é feito pelo povo e deve ser levado ao povo de uma forma totalmente acessível e democrática. O povo de Nova Petrópolis vive a verdadeira essência do folclore, transformando informações e vivendo a cultura popular de forma intensa e única. “Acima das novas amizades que o evento proporciona e da alegria que traz aos olhos daqueles que visitam a cidade estão a troca de experiências, o enriquecimento cultural, o contato com as comunidades interior anas e a divulgação da cultura local nas regiões brasileiras, bem como com países do mundo inteiro”, lembra a diretora de Cultura.
Embora haja iniciativas para preservar as tradições locais, como o caso de Nova Petrópolis, é preciso fazer um esforço para que o folclore seja preservado em meio a tanta informação e transformação surgidas com as novas tecnologias. “Isso precisa começar dentro de casa. As famílias devem fazer um trabalho junto às crianças para que elas conheçam a sua origem. Os pais e avós devem conservar seus costumes, como festas, celebrações, pratos típicos, religião, crenças e outros. A escola também deve ser uma forte aliada. As comemorações das datas importantes devem possuir um significado”, orienta a presidente da Organização Internacional de Folclore, Terezinha Miquilin. O doutor em História e professor universitário aposentado Moacyr Flores lembra que o folclore se modifica de acordo com os interesses sociais,
políticos e econômicos. “Toda a tradição é inventada, e a reconstrução da memória é formada de lacunas, as coisas ruins são esquecidas e as lacunas preenchidas pela imaginação e pela fantasia”, afirma. Ele acrescenta que o folclore é uma relação do indivíduo com o meio em que ele vive, e essa relação depende da tecnologia. “Assim que muda a tecnologia, muda a cultura. As gerações atuais não podem viver com a tecnologia de seus antepassados de cem anos atrás”, alerta. Independente das transformações sociais, a certeza que se tem é que só por meio do conhecimento das diferentes culturas é que se pode respeitá-las, promovendo, assim, a paz entre as nações. Esse é o legado do folclore. N
Folclore Azul e Vermelho Todo ano, no último fim de semana de junho, acontece na cidade de Parintins, no estado do Amazonas, o Festival Folclórico de Parintins. É uma festa popular realizada a céu aberto, marcada pelas impressionantes alegorias representadas por carros confeccionados por artistas parintinenses. Nessa grande festa popular competem duas associações: o Boi Garantido (de cor vermelha) e o Boi Caprichoso (de cor azul). Durante as três noites do festival, os dois bois exploram temáticas regionais como lendas, rituais indígenas e costumes dos ribeirinhos através de alegorias e encenações. A música que acompanha o festival durante todo o tempo é a toada, apresentada por um grupo de mais de 400 ritmistas. As letras das canções resgatam o passado de mitos e lendas da floresta amazônica. Por isso o Festival de Parintins é considerado um dos maiores divulgadores da cultura amazônica. O festival é realizado desde 1965 e acontece atualmente no Bumbó dromo (Centro Cultural e Esportivo Amazonino Mendes), um tipo de estádio com formato de uma cabeça de boi estilizada, com capacidade para 35 mil espectadores. N
CARINE FERNANDES é jornalista em Porto Alegre (RS)
Mauro Stoffel
CELEBRAÇÃO: A vida, a paz e a diversidade celebradas em culto ecumênico em Nova Petrópolis
Fonte: Wikipedia
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Mauro Stoffel
CAPA
FESTIVAL DE NOVA PETRÓPOLIS: Para além do germanismo que dominou o encontro por trinta anos, desde 2005 participam grupos do Brasil e exterior
Exemplo de diversidade por Rui Bender
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omeçou com um acanhado festival de inverno em 1973. Quarenta anos depois, transformou-se num prestigiado festival internacional do folclore. A cidade de Nova Petrópolis, na serra gaúcha, inscreveu definitivamente sua maior manifestação cultural na lista dos grandes eventos internacionais. Hoje, esse festival integra o calendário oficial da Organização Internacional de Festivais de Folclore e Artes Populares. A população de Nova Petrópolis orgulha-se do evento, que neste ano de 2012 completa sua 40ª edição. Na década de 1970, havia uma grande estagnação econômica em Nova Petrópolis. Algo precisava ser feito para alavancar a economia do
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município. Surgiu então a ideia de realizar um evento diferente, voltado ao folclore. E assim nasceu o festival do folclore em julho de 1973, tendo como palco a praça central da cidade serrana. É o pioneiro dos festivais realizados até hoje em Nova Petrópolis. Havia poucos grupos na primeira edição, recorda Paulo Roberto Staudt, atual diretor do Departamento de Projetos Especiais do município de Nova Petrópolis. Ao longo de mais de três décadas, o evento valorizou sobretudo os grupos locais e regionais de folclore germâ nico. Em 2005, caminhou-se para uma mudança no evento. Paulo lembra que o público estava “enjoando” de assistir apenas a grupos do folclore germânico. Abriu-se então espaço para grupos
folclóricos de outros estados. Assim, alguns conjuntos do Nordeste brasileiro começaram a participar. Paulo entende que toda novidade é difícil de ser aceita no princípio. “Ousamos em oferecer uma novidade”, admite. Hoje se tem em Nova Petrópolis uma consciência de abertura para outras manifestações culturais. “O diferente é o que faz a diferença”, acentua Paulo. Por sua vez, Carla Cristiane Ferreira, diretora do Departamento de Cultura de Nova Petrópolis, acrescenta que “as pessoas querem novidades, mas alguém precisa instigá-las”. Felizmente, o povo comprou a ideia, reconhece Paulo. O festival já se tornou um evento esperado por todos, festeja Carla. Por isso vai ser difícil mudar a sua concepção. A gente tem que se permitir gostar de coisas diferentes, concordam Paulo e Carla. Carla entende que “não tem preço a evolução do ser humano”. Ela está convicta de que em Nova Petrópolis se quebraram paradigmas internos com a abertura para outras expressões culturais. Isso está expresso sobretudo no próprio lema do festival: “a diversidade é o que nos
CAPA
RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)
Casamento pomerano por Jorge Kuster Jacob
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e cada dez imigrantes germânicos no Espírito Santo, sete vieram da Antiga Província da Pomerânia. Esses imigrantes isolaram-se nas serras e matas capixabas e, longe dos grandes centros, mantiveram muitas tradições de sua etnia. Os pomeranos capixabas são os mais tradicionais do mundo. Eles conseguiram “aculturar” outros grupos étnicos, como holandeses, poloneses, hunsrückers, tiroleses e até mesmo negros e descendentes italianos que vivem nas proximidades ou nas comunidades pomeranas. No Espírito Santo, é comum encontrar negros, italianos ou outras etnias falando a língua pomerana. A língua, o coração de uma cultura, arrasta manifestações culturais pomeranas na culinária, na arquitetura, na música, na dança, na arte, na religiosidade, na maneira de vestir e no ritual do casamento pomerano. Para ir a um casamento pomerano, antes de tudo se precisa ser convidado de forma tradicional; e para participar dos três dias de festa, precisa-se dar cinco presentes. O convite é feito pelo irmão mais jovem da noiva. A cavalo ou de moto, enfeitada com fitas coloridas, ele chega ao terreiro, entra na sala de visitas, recita o convite e, no final, oferece um gole de bebida de sua garrafinha enfeitada com murta e fitas. O convidado bebe e entrega o primeiro presente: dinheiro. Sua espo-
LOUÇA ESPATIFADA: Tradição no baile de casamento
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une”. Enfim, o festival consolidou-se como uma grande festa multiétnica de dança (também de artesanato e gastronomia). Os participantes tecem muitos elogios ao festival de Nova Petrópolis. Consideram-no um dos melhores do mundo em termos de organização. A partir do ano de 2007, ele passou a ser um evento internacional. Grupos folclóricos de toda a América Latina, Alemanha, Ucrânia, Turquia, Coreia do Sul, Ilha de Páscoa e Ilhas Cook, entre outros, já passaram pela praça de Nova Petrópolis. Na última edição, em agosto de 2011 (a 39ª), participaram onze grupos nacionais e onze internacionais, além dos regionais. O festival envolveu cerca de 1.700 dançarinos e músicos. A organização do festival busca um equilíbrio entre conjuntos nacionais e internacionais. Para evitar a transformação num megaevento, a organização faz uma criteriosa seleção dos grupos, sempre procurando trazer conjuntos diferentes a cada ano. Não há espaço para crescer, pois a área junto à praça (rua coberta) não permite isso. E não se cogita abandonar a praça, pois ela é um espaço democrático por onde circula muita gente. Entretanto, pode-se buscar sempre mais a qualificação do festival, concordam Carla e Paulo. O intercâmbio cultural com grupos de perto e de longe contribui também diretamente para o fortalecimento do movimento folclórico da região. Os nova-petropolitanos encaram o festival como uma vitrina para seu legado histórico-cultural. Por isso os grupos locais sentem que têm a responsabilidade de se aperfeiçoar cada vez mais. Até porque alguns já saíram de Nova Petrópolis para correr o mundo. N
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FOTO FAMÍLIA: Uma grande foto com todos os participantes e os noivos
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sa vai ao baú, pega uma fita colorida e prende-a nas costas do “hochtijbirer” (convidador de casamento), sinal de que o convite foi aceito. Manda a tradição que, uma semana antes, amigos da família ajudem na preparação da mesma numa espécie de mutirão. O paiol é preparado para ser o bar, a sala de visitas, o salão de baile, e no terreiro coloca-se uma enorme mesa para as refeições. O noivo busca o maior varão da mata para ser o mastro, que terá uma bandeira e as iniciais dos noivos, sinal de que ali tem festa e que somente os convidados poderão chegar e participar. No início da semana, entrega-se um frango para ajudar na alimentação dos três dias. Na quintafeira, acontece o tradicional baile da “quebra-louça”. Na sexta-feira
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CONCERTINA: Prato recolhe o cachê do músico
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cedo, começa a festa. Os convidados são recepc ionados no portão do terreiro pelos “brudeinen” (ajudantes/garçons) ao som da tradicional concertina executando a música da chegada. Ali o convidado entrega seu terceiro presente, também dinheiro, num prato enfeitado com murta. Esse dinheiro será o cachê do tocador. Em seguida, é servido o tradicional e colonial café pomerano na longa mesa montada no terreiro para servir todas as refeições da festa. Após o suculento café, é hora de ir ao cartório e à igreja para as cerimônias oficiais. Na volta, o tocador de concertina continua recepcionando os convidados no portão. Agora os noivos estão casados. Nesse momento, entrega-se o quarto presente: um utensílio doméstico. Em seguida, é servida a grande e tradicional refeição da festa. Os noivos sentam na cabeceira da enorme mesa e saem dali somente depois que todos os convidados almoçaram. Após a sessão de fotos, começa a “dança da noiva”. Ao som da concer tina, todos os convidados podem dançar com a noiva e todas as convidadas com o noivo. Os convidados dão uma volta no salão e são conduzidos estrategicamente pela noiva a entregar
num prato enfeitado com murta seu quinto presente: dinheiro (gorjeta), que ajudará no cachê do tocador de concertina. Cada pessoa que dançar com os noivos receberá um crachá: cor azul para os homens e cor rosa para as mulheres, como sinal de que realizou esse ritual e que também servirá de lembrança do casamento. Depois segue o baile normal. O sábado reserva o ritual de encerramento desse grande evento. Começa com o “tiro ao alvo”. O alvo é a garrafinha com dinheiro no alto do mastro junto à bandeira. Quem acertar terá como prêmio o dinheiro colocado na garrafinha. Há casamentos em que se colocam três vidros de tamanhos diferentes e valores diferentes. Após o tiro ao alvo, o noivo pega o machado e derruba o mastro, buscando provar que está preparado para encarar a nova realidade. O mastro no chão é um sinal de que a festa acabou. A noiva pega a maior panela e a mais suja para arear e limpar. Hoje, a juventude ainda preserva a tradição dos antepassados como uma forma de valorizar sua identidade histórica e cultural pomerana. N JORGE KUSTER JACOB é sociólogo, pesquisador da história e cultura pomeranas e secretário municipal de Cultura e Turismo de Vila Pavão (ES)
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A ciranda é de todos por Nana Toledo
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inha ciranda não é minha só, ela é de todos nós, ela é de todos nós. Esse é o trecho da canção “Minha Ciranda”, composta por Capiba, que me fez refletir sobre o grande valor da cultura popular tão diversa e rica e do poder que tem uma ciranda para aproximar e unir pessoas diferentes num mesmo círculo. A cultura da roda é muito antiga e precisa ser resgatada em nossas comunidades, a fim de trazer à tona o vasto repertório folclórico de brincadeiras e canções com o intuito de despertar o espírito coletivo, a ludicidade e a alegria de celebrar a vida, como faziam nossos antepassados. Crianças, jovens e adultos, tão isolados em suas televisões e computadores, precisam de um espaço para reavivar o ser brincante que existe em sua essência. Na roda, todo mundo se vê, não há hierarquia, nem come-
ço, meio e fim. No círculo que nos une, com as mãos dadas e o coração ritmado, a energia e o calor humano dissipam as diferenças. Na roda somos um, enquanto somos indivíduos. Por isso essa ciranda é de todos nós, seres naturalmente brincantes e musicais, pois som e movimento são inerentes ao ser humano. Como arte-educadora e musico terapeuta, sempre pesquisei e ouvi diversos gêneros musicais e fui ampliando meu repertório no contato com pessoas e grupos com quem trabalho, mas foi depois de participar de uma formação em danças circulares que acabei expandindo ainda mais minha visão sobre a cultura da roda. Danças circulares são basicamente danças de roda recolhidas de diferentes partes do mundo em diferentes períodos. Podem ser danças para a celebração ou a saudação.
Dançam-se desde cantigas infantis, folclóricas e étnicas até rodas contemporâneas, coreografadas por focaliza dores de diversas partes do mundo. Para mim, participar de danças de diferentes etnias foi um modo de entrar em contato com o sentimento do povo ao qual pertence aquela dança. O mais interessante nessa prática é que o foco não é a técnica, mas sim o sentimento de coletividade e união. Pessoas de qualquer idade podem participar dessas danças, que foram criadas pelo alemão Bernard Wosien, bailarino, pedagogo da dança, desenhista e pintor. Ele dedicou muitos anos de sua vida a coletar danças étnicas. Já havia passado dos sessenta anos quando encontrou, nos grupos de danças folclóricas, o que estava procurando. Nessas rodas, ele viven ciou a alegria, a amizade e o amor tanto para consigo mesmo como para com os outros.
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CULTURA DA RODA: É muito antiga e precisa ser resgatada em nossas comunidades para recuperar um vasto repertório de canções e danças
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Trazendo essa prática para o cotidiano das crianças na escola ou na formação de educadores e outros grupos, percebi o quanto as cantigas de roda, brincadeiras cantadas e danças folclóricas contêm símbolos fecun dadores e subjetivos da vida de uma comunidade. As rodas continuam funcionando como pretextos maravilhosos para o indivíduo experimentar o corpo, a linguagem, descobrir-se a si próprio, ao mesmo tempo em que se revela para o outro inserindo-se no convívio social. Do ponto de vista pedagógico, a atividade lúdica constitui o aspecto mais autêntico do comportamento da criança. Ao brincar de roda, ela está correspondendo a suas necessidades vitais, dando vazão a seus impulsos e afirmando-se como indivíduo. É um movimento que faz parte de seus esforços de compreender o mundo e que a torna capaz de lidar com dificuldades. Essas experiências e pesquisas impulsionaram-me a criar o Projeto Giramundo de Danças Circulares Infantis e Brinquedos Cantados, que tem como objetivo resgatar a cultura das rodas brincantes, trazendo à tona cantigas de roda, cirandas, brincadeiras, contos populares e danças circulares de diversos povos. Aprovado pelo Conselho Municipal de Apoio à Cultura de Blumenau (SC), o projeto irá iniciar em fevereiro de 2012 e permitirá que as comunidades envolvidas participem de oficinas gratuitas. Desse modo, pretendo estimular educadores, jovens e adultos para que deem continuidade à missão de expandir a grande roda. Afinal, “minha ciranda não é minha só, ela é de todos nós”. N
NANA TOLEDO é cantora, compositora, escritora e contadora de histórias em Blumenau (SC)
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DENÚNCIA SOCIAL: Com o tempo o carnaval passou a tratar de temas sociais e políticos
Carnaval: do folclore à paixão por Antonio Carlos Ribeiro
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palavra carnaval vem do latim carne levare (abstenção de carne), que passou por variantes nos dialetos italiano, francês e alemão até chegar ao português. O carnaval caracterizase como os folguedos populares dos três dias que antecedem o início da Quaresma, associados a atividades lúdicas fortemente refreadas pelos poderes político e religioso, sendo a igreja a guardiã da ordem.
Esse confronto entre a instituição-síntese dos poderes e os populares sempre teve um alto custo humano. A repressão produziu sofrimento, obrigando a igreja à atitude de tolerância. As elites perceberam que a festa proporcionava uma catarse, sem a qual o ressentimento surgido da exploração, dominação e opressão poderia resultar numa reação popular explosiva. A sacralização da festa pagã afirmou o sagra-
do, impôs as cinzas da penitência e a aprisionou no calendário religioso. A um só tempo. No Brasil, as festas do carnaval desenvolveram-se nos últimos séculos como manifestações populares que traduzem as facetas originais e inconfundíveis de nossa cultura, cujas principais matrizes são o frevo e o maracatu, de Pernambuco, os afoxés e o samba, da Bahia, e os diversos amálgamas que acompanharam as transformações do entrudo (jogar água) no Rio de Janeiro. Isso estimulou a manifestação das ricas culturas regionais, especialmente nas últimas décadas. O primeiro baile carnavalesco foi em janeiro de 1840 no largo do Rocio, centro da capital imperial, tendo vindo com a notícia dos bailes de máscaras na Europa. Depois se passou às casas de espetáculos. Chegaram os “arrastados”, feitos em casas de família, ao ar livre, em matinês dançantes, em circos e apenas para crianças. A partir de 1900, passaram a ser feitos em clubes, em hotéis de luxo, em cassinos, boates, grêmios recreativos e, por último, chegaram os ensaios de escolas de samba e blocos. Os ritmos que animaram essas expressões folclóricas também mudaram. Inicialmente vieram a polca, a quadrilha, a valsa, o tango, o cake walk, o charleston e o maxixe. Eram as overtures de ópera, os corpos de coros e instrumentos de percussão que faziam o salão pular. De 1834 a 1930, a participação exigia máscaras – introduzidas pelos franceses em 1834 –, retratando personagens folclóricos como o diabinho, o velho, a caveira, o burro doutor, o palhaço, o índio, a mula-ruça, o sujo e as disformidades. As máscaras eram de cera, veludo, papelão e tinham um acabamento sofisticado.
As fantasias retratavam princesas, pajens, dançarinas, dominós, pierrôs, arlequins, colombinas, fidalgos, poli chinelos, vivandeiras, guerreiros, oda liscas, borboletas e jardineiras. Essa diversidade fez com que surgissem concursos de fantasias, com fino acabamento e disputas entre figurinistas. A população foi perdendo a inibição para brincar no carnaval, e os trajes ficaram sumários, em resposta ao calor e à liberdade de movimentos. Depois veio o corso, uma carreata carnavalesca de foliões que brincavam entre si e com os pedestres, confraternizando nas calçadas. São dessa época o confete, o lança-perfume e a serpentina; a população cantava músicas de carnaval, ouvidas no rádio. A moda passou quando os carros conversíveis deram lugar aos de teto fechado. E a etapa atual é a
das escolas de samba, que se apropriaram do prestígio dessas manifestações e as disseminaram pelo país. Do folclore o carnaval avançou para o conteúdo. Nas últimas décadas, ganhou consistência para confrontar credos religiosos, criticar costumes e fazer denúncias sociais contra o poder conservador das elites, a corrupção nos poderes republicanos, o sofrimento das classes populares e sobretudo contra o poder religioso com apoio dos demais. Esses perceberam o efeito da publicidade ao ridicularizar suas falhas. Esse avanço propiciou a maturidade. No carnaval passado, a igreja conseguiu proibir uma imagem, mas a escola de samba venceu o desfile. No júri popular e no oficial. N ANTONIO CARLOS RIBEIRO é teólogo e jornalista no Rio de Janeiro (RJ)
História trançada “Trançar também é uma maneira de contar histórias e de pensar no sentido da vida.” Essa “escrita” é dos povos indígenas, que têm o artesanato como expressão da identidade cultural, transformando igualmente a natureza em cultura material. “A natureza nos ensina. É dela que aprendemos a trançar, a tecer, a modelar e a utilizar diversos materiais”, atestam os próprios indígenas na publicação “Artesanato Indígena – Kaingang e Guarani”(Guia do Professor). O livro é resultado de pesquisa sobre a diversidade da arte indígena no Brasil, organizada por José M. Palazuelos Ballivian (Manolo). Ele atua há mais de nove anos junto aos povos Kaingang e Guarani no noroeste do Rio Grande do Sul e no oeste de Santa Catarina como obreiro do Conselho de Missão entre Índios (COMIN) da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Cada trançado indígena tem significado e utilidade. Por exemplo, quando alguém da tribo está com problemas no coração, faz-se um cesto com o desenho pya tytya. Quando o enfermo é levado à casa de reza, é presenteado com esse cesto, que contém pão sagrado, N frutas e mel. Informações (51) 3590.1440 ou e-mail cominsecretaria@est.edu.br
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“Achamos importante abrir esse espaço a outros tipos de manifestações musicais, sem perder o foco, que é a cultura nordestina”, afirma Valterci. Lá também há uma biblioteca, quartos nos quais se hospedam os artistas que vêm de outros estados e cozinha na qual são preparados pratos típicos em eventos. A Casa do Cantador vai intensificar vários projetos, entre eles o Cantoria Escola, no qual músicos vão a escolas para se apresentar aos estudantes e conversar com eles sobre o repente e a embolada nordestina. O movimento também ocorre no sentido contrário: a casa costuma receber visitas de estudantes, universitários, pesquisadores de diversas áreas, tanto do DF como de outros estados. Outro espaço com várias atividades é a Casa do Ceará, que começou a funcionar na época da construção de Brasília, com o objetivo de reunir os cearenses com saudades de sua terra. Pouco a pouco, o lugar foi se incre mentando e hoje conta com cursos abertos à comunidade e atividades assistenciais. Também promove shows e, anualmente, uma festa junina já bem tradicional no Distrito Federal, além de outros eventos.
TOQUE ESPECIAL: Forte influência da cultura nordestina vem do tempo da construção de Brasília
Cultura nordestina
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rasília recebe influências de todas as regiões do Brasil. Entretanto, é possível perceber ali um toque especial da cultura do Nordeste: na comida, nas festas, em espaços específicos de convivência, entre outros. Se o brasiliense fica com vontade de apreciar uma comida nordestina, é fácil satisfazer esse desejo, seja por meio da tapioca, da carne de sol, do acarajé ou de outros pratos daquela região, presentes em variados estabelecimentos ou feiras da capital e de suas cidades-satélites. É o caso da Feira de Ceilândia (uma das maiores cidades-satélites de Brasília e considerada a mais nordestina delas), na qual encontramos pratos típicos, como a buchada de bode e o sarapatel, entre tantos outros.
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Mas se a fome do brasiliense é por música e eventos do Nordeste, há vários espaços nos quais eles estão presentes também. Um deles é a Casa do Cantador do Brasil, que, assim como aquela feira, também está localizada em Ceilândia. A casa, considerada o “templo da cultura nordestina no Distrito Federal”, completou 25 anos de fundação em novembro de 2011 e conta com apresentações periódicas, tanto de repentistas e emboladores como também de outros estilos musicais. “Tivemos aqui um evento chamado De Repente Outros Cantares meses atrás, no qual se apresentaram artistas de diferentes estilos, como o samba, o rap e outros”, conta Valterci da Silva, um dos assessores da Casa.
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por Silvana Isabel Francisco
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SILVANA ISABEL FRANCISCO é jornalista em Brasília (DF)
Monumento aos candangos O “candango” designava os operários das grandes obras da construção de Brasília, vindos do Nordeste. No cotidiano, o nome designa qualquer pessoa que nasceu em Brasília ou coisa produzida na cidade. Remete também à escultura de 8 metros em bronze, elaborada por Bruno Giorgi em 1957, um dos principais símbolos de Brasília. A obra está localizada no meio da Praça dos Três Poderes, próxima ao Palácio do Planalto.
Diálogo sem preconceito por Suzel Tunes
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colorido da folia de reis, a energia dos atabaques, o ritmo do samba, o gingado da capoeira... isso tudo é “coisa de crente”? É possível que você já tenha ouvido pergunta similar. E a resposta a essas e outras manifestações culturais brasileiras costuma ser uma clara negação ou, no máximo, uma tolerância desconfiada. Afinal, para muitos protestantes, a beleza da cultura brasileira faz parte de um outro mundo, profano e pecaminoso, do qual se deve ficar cautelosamente afastado. Segundo a professora Sandra Duarte de Souza, teóloga e coordenadora da área de Religião, Sociedade e Cultura do Programa de PósGraduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, o protestantismo tem muita dificuldade para entender-se ele próprio como expressão cultural, o que também dificulta seu diálogo com a cultura mais ampla na qual se insere. É como se afirmasse o tempo todo que está “fora do mundo”, numa interpretação muito estreita da oração sacerdotal de Jesus citada a partir de João 17, explica a professora. Outra característica da cultura brasileira e latino-americana pesa nessa atitude: “Ainda temos a tendência a considerar que a cultura do outro é ‘melhor’ do que a nossa”, lamenta Sandra. Verdade seja dita: não foi apenas o protestantismo que desvalorizou a
SANDRA: O protestantismo tem muita dificuldade para entenderse ele próprio como expressão cultural, o que também dificulta seu diálogo com a cultura mais ampla na qual se insere.
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Na cidade-satélite de Sobradinho, o Centro de Tradições Populares é conhecido pela festa do Boi do seu Teodoro, de inspiração maranhense, que já chegou em sua 48ª edição. Nessa festa se encena uma dança com a história de uma grávida que sente grande desejo de comer a língua de um dos bois de seu patrão, um rico fazendeiro. No carnaval, uma das manifestações culturais nordestinas de mais sucesso é o bloco do Galinho da Madrugada de Brasília, que arrasta milhares de pessoas por algumas ruas próximas ao centro da cidade. O Galinho foi criado sob a inspiração do famoso bloco do Galo da Madrugada de Recife, Pernambuco, em 1992, por um grupo de pernambucan os que sentiam falta dos carnavais de Recife e Olinda. Já o bloco Suvaco da Asa começou na capital em 2006, enchendo as ruas do Cruzeiro e do Setor Sudoeste Econômico, dois bairros de Brasília, duas semanas antes do carnaval. “Eu aproveito para frequentar o Suvaco, que, na minha opinião, é mais fiel à folia pernambucana”, conta um folião que não quis se identificar, brasiliense, cujos pais são pernambucanos. N
cultura local. O catolicismo também chegou ao Brasil impondo uma cultura nascida em terras estrangeiras. “A desqualificação do outro acontecia desde os primeiros tempos da colonização”, afirma o teólogo Lauri Wirth, pastor luterano e professor da área de Teologia e História da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo. Ele destaca que as igrejas católicas no Brasil foram construí das nos lugares sagrados indígenas, e santos foram ungidos com as ervas usadas nos rituais numa nada sutil estratégia de dominação cultural. “A cristianização dos povos conquistados era condição fundamental para a conquista da América Latina como extensão da Europa”, diz o professor.
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Contudo, a tentativa de “roma nização” da cultura local nunca foi absoluta. Em 1551, D. Pedro Fernandes Sardinha, primeiro bispo a atuar no Brasil, ficou escandalizado quando viu padres dançando com meninos indígenas e cantando hinos à Nossa Senhora no idioma nativo. De lá para cá, mesmo nos períodos de maior resistência à cultura brasileira, floresceu por aqui um catolicismo mais autônomo e aberto à cultura popular. O protestantismo foi menos tolerante com a cultura local, sobretudo o chamado protestantismo de missão, que, no século 19, chegou ao Brasil alçando uma bandeira civilizatória cujo parâmetro era a cultura anglosaxônica. Minoria em número, era pela “superioridade” cultural e religiosa que ele procurava se destacar no cenário religioso dominado pela Igreja Católica. Enquanto o catolicismo, associado aos povos latino-americanos, representava o atraso, a ignorância e a superstição, o protestantismo vindo do mundo anglo-saxão era o progresso, a civilização, a verdade.
Caminho Pomerano Em torno de 80% dos imigrantes que colonizaram São Lourenço do Sul (RS) em 1858 eram pomera nos. A Pomerânia, nação eslava que se localizava entre a Alemanha e a Polônia, foi destruída no final do século 18. Essa história é transmitida aos turistas por meio do Caminho Pomerano. A associação reúne criadores de gansos, galinhas coloniais, horta orgânica e agroecológica, café colonial, almoço típico, artesanato com flores secas e tematizados, pães, cucas, schimiers, queijos, linguiças, peito de ganso defumado e sucos naturais e ecológicos de frutas nativas. Essa rica culinária é apresentada com a envolvente transmissão do conhecimento histórico da colonização pomerana, associada às belezas naturais da zona rural de São Lourenço do Sul. No roteiro destacam-se ainda as histórias do casamento com a noiva de preto e do “convidador”. Agende sua visita por intermédio de um destes parceiros: Doce Lagoa (53) 3251 4104, UP Tour (53) 32511627 e N Rodrigo (53) 91640914.
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LAURI: A cristianização dos povos conquistados era condição fundamental para a conquista da América Latina como extensão da Europa.
“Ainda que de forma inconsciente, o protestante tende a desqualificar quem é diferente. E isso até os dias de hoje”, diz Lauri. “Aprendemos a ver o diferente numa postura hierárquica; diferente é visto como inferior.” Além do anticatolicismo, enfatiza o professor, encontra-se na resistência à cultura brasileira uma boa dose de preconceito. Assim, a cultura anglo-saxônica marcou a religiosidade evangélica, como se pode observar na hinologia adotada pelas igrejas protestantes, por exemplo. Curiosamente, muitas melodias entoadas nas igrejas foram emprestadas de canções populares da Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha, lembra Sandra Duarte. O que também demonstra que, por mais fechado que seja o protestantismo, ele também sofre influências e influencia a cultura local. O dinamismo da cultura não é totalmente tolhido pelas normas institucionais. “O distanciamento da cultura brasileira era a postura oficial”, acrescenta o professor Lauri. “Não significa que, na prática, os fiéis seguissem as normas à risca. A cultura popular está no universo mental dos fiéis”, afirma. Nas casas dos brasileiros, protestantes ou não, o folclore está nas
histórias infantis com suas bruxas e fadas; está nas canções de ninar com a cuca e o boi da cara preta; está nos costumes; está nas festas populares. A professora Sandra lembra que seu pai, presbiteriano de berço, sempre foi contrário às festas juninas, consideradas uma herança católica. “Hoje a igreja que ele frequenta faz festa no mesmo período. As igrejas costumam dar outros nomes – festa das nações, festa da fogueira... –, mas os elementos culturais estão quase todos ali: a música, as roupas, comidas típicas....”, diz ela. Esse é um movimento natural, ponderam os especialistas; tradições tendem a se renovar. Contudo, os professores alertam para o risco de uma ruptura da tradição, motivada pela mercantilização da cultura. Ao mesmo tempo em que ainda existem restrições ao uso de um atabaque ou berimbau na liturgia do culto, é cada vez mais comum encontrar versões “gospel” de produtos culturais: balada gospel, bloco de carnaval gospel... “Em um contexto cultural no qual os sujeitos estão cada vez mais utilitaristas, a igreja também está se comportando como uma prestadora de serviços”, afirma a professora Sandra. Transformados em mercadoria, os valores culturais tornam-se efêmeros. “Existe a tendência do surgimento de gerações que não se vinculam a nada. Mas quem não se situa perde a perspectiva de futuro”, alerta Lauri. Para se renovar sem perder sua identidade, sugere o professor, o que a igreja precisa é “mergulhar no mundo real” e assumir sua condição de serva de Deus na sociedade, consciente de que tem muito a ofertar, mas também pode se enriquecer com a beleza deste mundo no qual é chamada a servir. N SUZEL TUNES é jornalista em São Paulo (SP)
CAPA
O saci e a luta anticolonial por Elaine Tavares
Nas cabeças das crianças plantaram novos conceitos. E isso chegou aos mitos. De repente, já ninguém mais falava em saci, curupira, mula sem cabeça. No cinema cresceram as figuras dos vampiros e das bruxas. Até 15 anos atrás havia Halloween só nas escolas de inglês. Depois, de mansinho, entrou no cotidiano dos jardins de infância, espaço de terra virgem, perfeito para a colonização mental. Os elementos mais enraizados da cultura estadunidense fizeram morada nas crianças. Coloniza-se a cultura e roda a máquina do capital, já que aqui o Halloween é apenas uma data para vender coisas. No Brasil, ativistas do interior de São Paulo iniciaram um trabalho de conscientização sobre a história da cultura nacional. A Sociedade dos Observadores do Saci, a Sosaci, produz vídeos e materiais educativos visando recuperar os antigos mitos e lendas. Ela quer que o 31 de outubro seja o dia do saci, fazendo com que o moleque, de raiz indígena e negra, vença a dominação cultural do Halloween.
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té os anos 1960, as crianças conheciam e compartilhavam figuras míticas, moradoras das florestas e dos cantos escuros. Sabiam que, à noite, vagava um negrinho pasto reando uma boiada. Se alguma coisa se perdesse, era só acender uma vela, que ele ajudava a encontrar. Era visto nas noites em que os relâmpagos riscavam o céu, imponente no seu baio, cavalgando no rumo das estrelas. No inverno, tempo dos redemoinhos, a gurizada saía para aprisionar os saci-pererês. Afinal, aprendiam que o moleque de uma perna só brincava no vento, e só aí, distraído e girando, é que se poderia pegá-lo. À noite, as crianças ficavam em casa. Sabiam que lá na mata haveriam de estar o boitatá, a cobra de fogo que come os olhos dos bichos, o curupira, a mula sem cabeça. Esse era um universo conhecido e reproduzido nas escolas, na família, nas rodas de conversa ao pé do fogo. Mas, aos poucos, a dominação cultural foi tomando conta. Entraram a moda da calça jeans e a música com a guitarra e o rock, abafando a marchinha, o xaxado, o baião. No cinema, dava-se adeus a Mazzaropi e chegava Hollywood com seus enlatados cheios de ideologia. A partir daí ocuparam-se os territórios mentais. Bom mesmo era cantar em inglês. Cantar em português era coisa brega. O conceito de colonização diz: é a conquista de um território com o estabelecimento de novos moradores. Pois foi o que aconteceu com a gente.
“Nós temos nossos próprios mitos, que nada devem aos importados, usados para anestesiar a autoestima do povo, e não queremos que eles sejam usados pela indústria cultural como predadores dos nossos.” Essa não é uma discussão xenó foba. Festas como o dia dos mortos no México ou o Inti Raimi na América Andina representam a essência cultural de seus povos. Pois a celebração dos mitos autóctones seria a retomada de nosso território cultural há tanto tempo colonizado. Dialogar com as demais culturas é saudável, mas o preço não pode ser a destruição de nossas memórias ancestrais. Faz-se muita política, discute-se o capitalismo, mas pouco se fala do pilar de todas as mudanças, que é o ima ginário popular. A partir daí se pode avançar com eficácia no processo de transformação da sociedade. Se desde pequenas as pessoas tomarem contato com a beleza que está em seu próprio espaço de vivência, muito mais fácil será trabalhar conceitos como soberania, liberdade, pensamento crítico, transformação. A proposta de um dia do saci não é fantasiosa. É uma resposta inteligente e criativa a um longo processo de co lonização mental que reina desde a invasão europeia. Destruíram culturas originárias, impuseram crenças e, hoje, buscam homogeneizar a cultura. Mas por todo o Brasil se levantam os amantes de saci, curupira, boitatá, mãe d’água e outros. Prometem vencer a abóbora, fazendo festa com carne seca, mandioca e viola. Pois nossa cultura autóctone tem beleza demais para render-se aos interesses do capital. Mas, para isso, é preciso fazer algo. Pais e mães deveriam retomar as velhas histórias, as escolas ensinar os antigos mitos e todos celebrarem o 31 de outubro como o dia do saci e seus amigos. N ELAINE TAVARES é jornalista em Florianópolis (SC) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Fev 2012
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PÃES ÁZIMOS: Uma tradição judaica que também é usada em celebrações cristãs
Festas bíblicas por Carlos Artur Dreher
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árias festas marcam o calendário israelita. Três delas sempre foram consideradas as principais, porque são as mais antigas: a Festa da Páscoa, a Festa das Semanas e a Festa dos Taber náculos ou das Tendas. Quatro textos bíblicos apresentam uma relação dessas festas: Êxodo 23.14-19; Êxodo 34.18-23; Levítico 23.1-44 e Deute ronômio 16.1-17. Nesses percebe-se que, na primeira festa, celebram-se duas coisas distintas: a Páscoa e os Ázimos. De fato, na origem eram duas festas distintas. A Páscoa era celebrada por pastores seminômades, que, na primeira lua cheia do início da estação da seca, abandonavam as estepes e migravam para a região de agricultura, onde suas ovelhas e cabras poderiam encontrar pasto. No dia anterior à partida, imolavam um cordeiro de menos de um ano, cuja carne assada era comida à noite pela família prestes a viajar. Com o sangue do cordeiro, pintavam as estacas da tenda, que permaneceriam no local. Esse rito servia para prender ali o pequeno demônio amigo da família, mas que não queria que ela saísse do lugar.
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Na mesma ocasião, os agricultores celebravam o início da colheita do cereal. Agora havia farinha nova. Para que a colheita, que continuaria por sete semanas, fosse bem-sucedida, era necessário preservar o pequeno demônio que vivia no germe do grão. Fermento podia matá-lo, e isso estragaria a colheita. Por isso o pão de farinha nova era feito sem fermento, sem aquele pequeno pedaço da massa anterior, guardado para a fermentação. Nossos antepassados chamavam esse pedaço de massa anterior de Sauerteig. Assim, durante sete dias, comiam-se pães ázimos. Assim, as celebrações de Páscoa e de Ázimos foram lentamente integradas numa única festa. A partir daí, a festa passou a celebrar a saída do Egito. O sangue do cordeiro passou a ser entendido como a proteção diante do anjo exterminador de Deus, que, durante a última praga, entrara nas casas egípcias para matar o primo gênito. Não entrara nas casas dos heb reus, protegidas pelo sinal do sangue. Os ázimos passaram a ser compreendidos como os pães sem fermento preparados para durar mais tempo no percurso da viagem.
Sete semanas depois da Festa dos Ázimos, agora chamada de Páscoa, os agricultores celebravam o fim da colheita. Em sua origem, essa celebração era chamada de Festa das Semanas ou dos Sábados – sete sábados, ou sete semanas, haviam passado desde o início da colheita. No dia seguinte, celebrava-se a festa em gratidão pelo resultado da colheita. Sete semanas são 49 dias. Assim, na língua grega, essa festa passou a ser conhecida como Pentecostes, cujo significado é 50 dias. No fim do ano israelita, ocorria a Festa dos Tabernáculos. Ela recebeu esse nome porque, naquela época, colhiam-se as azeitonas e as uvas. Para realizar a colheita, os camponeses iam morar em meio aos olivais e aos parreirais, fazendo tendas cobertas com ramos. Essas tendas são os assim chamados tabernáculos. Mais tarde, cada uma dessas festas foi relacionada a um livro bíblico, lido durante a celebração. Na Páscoa, lia-se o Cântico dos Cânticos; na Festa das Semanas, o Livro de Rute; e, na Festa dos Taber náculos, o Livro de Eclesiastes. Jesus subiu a Jerusalém para celebrar a Páscoa judaica com seus discípulos. Durante a Semana da Páscoa, foi preso, crucificado e ressuscitou dos mortos. Os cristãos passaram a entender a Páscoa como Festa da Ressurreição. Durante a celebração da Festa das Semanas, os discípulos receberam o dom do Espírito Santo. Pentecostes passou, então, a ter um novo significado para os cristãos. Mais difícil é achar uma relação entre a Festa dos Tabernáculos e as festas cristãs. Talvez se possa pensar em nossa Festa de Ação de Graças pela Colheita. Talvez também no Natal, porque se trata de uma festa de fim de ano. Importante, porém, é que tenhamos em mente a relação entre as festas cristãs e as festas celebradas N na tradição judaica. CARLOS ARTUR DREHER é teólogo e professor de Teologia na Faculdades EST em São Leopoldo (RS)
Cotidiano
Elogio ao boteco por Leonardo Boff
Reprodução Novolhar
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m razão de meu “ciganismo intelectual”, falando em muitos lugares e ambientes sobre um sem-número de temas, que vão da espiritualidade à responsabilidade socioambiental, e até sobre a possibilidade do fim de nossa espécie, os organizadores, por deferência, costumam convidar-me para um bom restaurante da cidade. Lógico, guardo a boa tradição franciscana e celebro os pratos com comentários laudatórios. Mas me sobra sempre um pequeno amargor na boca, impedindo que o comer seja uma celebração. Lembro que a maioria das pessoas amigas não pode desfrutar dessas comidas, especialmente os milhões e milhões de famintos do mundo. Parece-me que lhes estou roubando a comida da boca. Como celebrar a generosidade dos amigos e da Mãe Terra se, nas palavras de Gandhi, “a fome é um insulto e a forma de violência mais assassina que existe”? É nesse contexto que me vêm à mente como consolo os botecos. Gosto de frequentá-los, pois aí posso comer sem má consciência. Eles se encontram em todo o mundo, também nas comunidades pobres nas quais trabalhei por anos. Aí se vive uma real democracia: o boteco ou o pé sujo (o boteco de pessoas com menos poder aquisitivo) acolhe todo mundo. Podese encontrar lá tomando seu chope um professor universitário ao lado de um peão da construção civil, um ator de teatro na mesa com um malandro, até com um bêbado tomando seu traguinho. É só chegar, ir sentando e logo gritar: “Me traga um chope estupidamente gelado”.
Mesa de bar: Obra de Di Cavalcantti
O boteco é mais do que seu visual, com azulejos de cores fortes, com o santo protetor na parede, geralmente um Santo Antônio com o Menino Jesus, o símbolo do time de estimação e as propagandas coloridas de bebidas. O boteco é um estado de espírito, o lugar do encontro com os amigos e os vizinhos, da conversa fiada, da discussão sobre o último jogo de futebol, dos comentários sobre a novela preferida, da crítica aos políticos e dos palavrões bem merecidos contra os corruptos. Todos logo se enturmam num espírito comunitário em estado nascente. Aqui ninguém é rico ou pobre. É simplesmente gente que se expressa como gente, usando a gíria popular. Há muito humor, piadas e bravatas. Às vezes, como em Minas, se improvisa até uma cantoria, que alguém acompanha ao violão. Ninguém repara nas condições gerais do balcão ou das mesinhas. O importante é que o copo esteja bem lavado e sem gordura, senão estraga o colarinho cremoso do chope, que deve ter uns três dedos. Ninguém se incomoda com o chão e o estado do banheiro.
Os nomes dos botecos são os mais diversos, dependendo da região do país. Pode ser a Adega da Velha, o Bar do Sacha, o boteco do Seu Gomes, o Bar do Giba, o Botequim do Joia, o Pavão Azul, a Confraria do Bode Cheiroso, a Casa Cheia e outros. Belo Horizonte é a cidade que mais botecos possui, realizando até, cada ano, um concurso da melhor comida de boteco. Os pratos também são variados, geralmente elaborados a partir de receitas caseiras e regionais: a carne de sol do Nordeste, a carne de porco e o tutu de Minas. Os nomes são engenhosos: “mexidoido chapado”, “porconóbis de sabugosa”, “costela de Adão” (costelinha de porco com mandioca), “torresminho de barriga”. Há um prato que aprecio sobremaneira, oferecido no Mercado Central de Belo Horizonte, o qual foi premiado num dos concursos: “bife de fígado acebolado com jiló”. Se depender de mim, esse prato deverá constar no menu do banquete do reino dos céus que o Pai celeste vai oferecer aos bemaventurados. Se bem repararmos, o boteco desempenha uma função cidadã: dá aos frequentadores, especialmente aos mais assíduos, o sentimento de pertença à cidade ou ao bairro. Não havendo outros lugares de entretenimento e de lazer, permite que as pessoas se encontrem, esqueçam seu status social e vivam uma igualdade, geralmente negada no cotidiano. Para mim, o boteco é uma metáfora da comensalidade sonhada por Jesus, lugar onde todos podem sentar à mesa e celebrar o convívio fraterno e fazer do comer uma comunhão. E, para mim, é o lugar onde posso comer sem má consciência. Dedico este texto ao cartunista e amigo Jaguar, que aprecia botecos. N LEONARDO BOFF é teólogo e escritor em Petrópolis (RJ) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Fev 2012
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HISTÓRIA
Badalar centenário por Ingelore Starke Koch
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o dia 15 de novembro de 2011, a Comunidade de São Leopoldo, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), pôde celebrar uma importante data: o centenário de seu templo, a Igreja de Cristo. Essa havia sido inaugurada em 15 de novembro de 1911 sob a orientação do pastor Wilhelm Rotermund. A escolha daquela data não foi um acaso:
representava um reconhecimento à proclamação da República, ocorrida em 15 de novembro de1889, que estabelecia a liberdade de culto e de crença no Brasil. Quando foi inaugurada, a Igreja de Cristo com seus 49 metros de altura não era apenas o prédio mais alto da cidade. Era também o mais belo e majestoso, um monumento à presença evangélico-luterana em São Leopoldo,
anunciando: “Estamos aqui. Até aqui nos trouxe Deus!” Conhecida amplamente como a Igreja do Relógio, pois sua torre tem um relógio com mostradores nos quatro lados. Mais de trezentas pessoas participaram do culto dos cem anos do templo, tendo como celebrantes o pastor presidente da IECLB, Dr. Nestor Friedrich (pregador), e os ministros da comunidade, o pastor Walter Hoppe e a pastora Carmen Siegle. Em sua mensagem, o pastor presidente enfatizou que a celebração dos cem anos lembra “as lutas, conquistas, lágrimas e alegrias de mulheres e homens, jovens e adultos e idosos que foram antes de nós e que nos possibilitaram continuidade de confissão de fé. Trata-se, na verdade, da história de milhares de imigrantes e descendentes dos primeiros imigrantes de confissão luterana por
CARINHO: No dia da festa do centenário do templo, a comunidade de São Leopoldo envolveu a Igreja de Cristo (a do relógio) num abraço
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LAR RELIGIOSO – “A igreja me identifica. Ela é uma parte de mim mesmo, algo como um lar religioso. Aqui, nós que somos membros da paróquia, membros da IECLB, membros ecumênicos do corpo maior de Cristo, aqui, digo eu, nós estamos em casa”, havia declarado o ex-pastor presidente da IECLB Dr. Gottfried Brakemeier em sua prédica no culto dos 95 anos do templo em 2006. Foi na comunidade de São Leopoldo que ele iniciara sua trajetória pastoral em 1962.
Miquéias H. Mügge
este vasto Brasil”. Friedrich frisou que, ao referir-se à Igreja de Cristo, é feita uma menção a uma contribuição decisiva da imigração germ ân icoluterana para o que é São Leopoldo e para o que é a IECLB. O ex-pastor da comunidade e historiador Martin N. Dreher apresentou o livro dos cem anos sob o título “Igreja de Cristo – um templo centenário”. Organizado por Dreher, ele quer preservar a memória, legá-la a futuras gerações e ser expressão de gratidão a Deus e aos que fizeram história na comunidade de São Leopoldo e preservam a fé.
Em estilo neogótico, a Igreja de Cristo é uma réplica da Igreja de Kreinitz, na Alemanha, cujo projeto foi trazido pelo pastor Wilhelm Rotermund.
Brakemeier, pastor e professor emérito, baseou sua mensagem no texto de 1 Reis 8.22-24 e 26-28. Ele registra a oração proferida pelo rei Salomão quando, após anos e anos de luta, ele e seu povo conseguiram finalmente inaugurar o primeiro templo em Jerusalém no nono século antes de Cristo. Em relação ao fato do templo leopoldense ser conhecido como a Igreja do Relógio, Brakemeier observa que o relógio não é nenhum distintivo típico de um templo, e para os cristãos a cruz é mais importante. Ainda assim, esse relógio parece ser portador de um profundo simbolismo. Mas essa é apenas parte da verdade. “Relógio em igreja é sempre mais do que um indicador de horários. É expressão de que também o nosso tempo está nas mãos de Deus”, ensina Gottfried Brakemeier. Ele ressalta ainda que Deus não se deixa prender em edifícios, em templos, nem mesmo em e por comunidades. “Ele é sempre maior. Quer ser cultuado não num único lugar. Ele tem muitas moradias, também fora de nossa igreja.” N INGELORE STARKE KOCH é jornalista em São Leopoldo (RS)
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Divulgação Novolhar
REFLEXÃO
As lições que vêm de Deus Ensina-me, Senhor, o teu caminho, e andarei na tua verdade.
Salmo 86.11
por Ester Delene Wilke
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ma grande aflição coloca Davi diante de Deus. As suas palavras externam a súplica: “Ensina-me, Senhor, o teu caminho, e andarei na tua verdade”. As circunstâncias de sua vida percebemos no todo do Salmo 86. É um desabafo de alguém que
anda atribulado. Faz uma oração que é fruto da adversidade, da perseguição e do cansaço. As suas capacidades e o seu poder conduziram-no a um “beco sem saída”, pois experimenta a presença real da morte. Outrora homem forte e errante, agora o salmista quer que Deus lhe ensine o caminho da vida e da verdade. Já basta de andar por seus próprios pés. Os caminhos trilhados pelas pessoas podem trazer profundas decepções consigo mesmas e com os outros. Podem, sim, existir muitos caminhos, mas diante da desesperança ele busca o único caminho viável e seguro: o caminho do Senhor. Nas entrelinhas da oração transparecem
a sua humildade e seu sentimento de impotência. O salmista ensina-nos que externar fragilidades diante de Deus é o único caminho de empoderamento verdadeiro para o ser humano. Maravilhoso é saber que diante de Deus não precisamos contar com a própria justiça. A dependência total de Deus não é doentia. É parte da cura da alma e do coração. Quando a justiça de Deus nos abraça, podemos conhecer-nos profundamente, assumindo nossa humanidade. A súplica do salmista não é apenas um pedido que traduz a ânsia da preservação da própria vida em face à morte, senão o desejo de vida verdadeira. Mostra-se como alguém que sabe que o ser humano não alcança a salvação por si mesmo. É alguém que tem sede de sentido de vida que procede de Deus. É um pedido esperançoso e confiante diante de um Deus disposto a ajudar. Um Deus que espera de antemão pelo desejo humano de “ser gente” conforme a sua vontade. Dizer a Deus esse desejo já é um princípio de sabedoria. Esse versículo traduz o agir de Deus na vida das pessoas. O princípio da mudança está em Deus, e quando a pessoa descobre isso, encontra o caminho da vida. A pessoa por si mesma não sabe confiar em Deus até que seu coração comece a ser transformado. Então os mistérios de Deus e os mistérios da vida vão sendo desvelados no caminho da vida, ainda que parcialmente. Podem ser caminhos duros, tortuosos, por vezes caminhos de calmaria, ou ainda podem ser exuberantes e de glória. Deixar-se ensinar por Deus faz toda a diferença, não importa em qual circunstância de vida nos encontramos: boas ou difíceis. Ganhamos um preparo para a vida. Desde o Antigo Testamento, o ensino relaciona-se com o termo hebraico “Torá”, que significa “lei”, “direção” ou “instrução”. Expressa,
portanto, um desejo profundo do salmista por rumo e direção, que corresponde a um estilo de vida comprometido com Deus. Já por meio dos relatos do Novo Testamento sabemos que a “lei” foi direcionada ao caminho do amor através de Jesus Cristo. Ele mesmo se dá a conhecer: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14.6). Diferentemente do salmista, hoje sabemos que é Cristo quem dá a direção e a instrução. Para conhecermos a Deus e seus caminhos, procuramos entender a sua Palavra por meio de Cristo. Descobriremos inevitavelmente que o sentido de nossa vida é servir conforme aquele que nos instrui. Por mais que a pessoa possa contar com uma fé forte e firme, corre o risco
de criar “versões” da verdade ou mesmo “meias” verdades. Por isso o caminho que Jesus aponta é a verdade que está em Deus. Sempre espelhado na atitude do salmista: em humildade e confiança como eternos aprendizes. Coloca-se então um belo desafio para a atual circunstância de nossa vida, ou seja, buscar direção e instrução em Deus por intermédio do conhecimento de Cristo no transcorrer do ano que ora inicia. Diante do novo tempo, que é tempo de graça, podemos amadurecer na presença de Deus, perseverando em oração e tornando-nos praticantes da Palavra, comprometidos com o amor de Cristo. N ESTER DELENE WILKE é teóloga e ministra da IECLB em Nova Santa Rosa (PR)
CLAUDIUS
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ENTREVISTA
Ecumenismo de gestos concretos por Rui Bender
Quando nasceu o CLAI? Giese – O CLAI surgiu em 1978 e foi constituído oficialmente em 1982 em Lima, no Peru. Tem cinco objetivos: Promover a unidade do povo de Deus na América Latina como expressão e sinal de contribuição para a unidade do povo latino-americano. Manifestar a unidade que já temos em Cristo, reconhecendo a riqueza que representa a diversidade de tradições, confissões e expressões de fé. Ajudar seus membros a descobrir sua própria identidade e seu compromisso como cristãos na realidade latinoamericana em busca de uma ordem de justiça e fraternidade. Estimular e apoiar seus membros na tarefa evangelizadora como sinal de sua fidelidade ao mandato de Cristo. Promover a reflexão e o diálogo teológico
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e pastoral em torno da missão e do testemunho cristão no continente e no resto do mundo. Quantos membros estão filiados? Giese – Atualmente, o CLAI tem 180 membros em vinte países da América Latina e do Caribe. Para ser membro, uma igreja ou organização ecumênica deve declarar-se ecumê nica, aceitar os estatutos do CLAI e ser recomendada por dois membros do organismo em seu país. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) é a maior. A menor é a Igreja Luterana do Equador. Como se estrutura o CLAI? Quem é o presidente do organismo? Giese - A cada seis anos, o CLAI tem uma Assembleia Geral, que en-
JAMS
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le viaja bastante. Mas lamentavelmente vem muito pouco ao Brasil. Em novembro último, Nilton Giese esteve no Brasil para participar do Seminário Internacional de Formação em Diaconia, organizado pelo Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) e pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em São Leopoldo (RS). Esse seminário quis estimular os centros de formação pastoral da América Latina a incluir em seu currículo o curso de diaconia. Nilton nasceu em Jaraguá do Sul (SC) em 1959, é casado com Roseli Schrader e tem uma filha, Gabriela. Ele estudou teologia na Escola Superior de Teologia em São Leopoldo de 1980 a 1984. De 1985 a 2005, atuou em comunidades luteranas no Brasil e no exterior. Em 2005, foi escolhido para ser o diretor do Departamento de Comunicações do CLAI em Quito, no Equador. Em fevereiro de 2008, assumiu a secretariageral interina do CLAI e, em março de 2009, foi eleito secretário-geral do CLAI por um período de quatro anos.
GIESE: O pastor brasileiro (IECLB) é secretário-geral do
tre outras coisas elege uma diretoria de 16 pessoas e um presidente. Essa diretoria reúne-se uma vez por ano. É o órgão de decisões do CLAI. O secretário-geral é o executivo do CLAI. O atual presidente é um bispo episcopal do Panamá: Julio Murray. O que são as mesas regionais? Giese – Desde 2008, quando assumimos a secretaria-geral interina, nossa proposta era criar mecanismos para que as igrejas e organizações ecumênicas se apropriassem do CLAI. Não acreditamos num ecumenismo de pessoas ou de representantes. Queremos um ecumenismo prático, de gestos concretos. Queremos ouvir das igrejas os seus desafios e suas preocupações. Queremos escutar suas propostas
movimento ecumênico na América Latina e no Caribe.
CLAI desde 2008
para os problemas de sua realidade. Esse é o objetivo das mesas nacionais. Elas funcionam em quase todos os países e têm dinamizado o
Quais são os temas com os quais o CLAI se preocupa? Giese – Por intermédio das mesas nacionais, nosso principal objetivo é fortalecer o ecumenismo nacional. A partir das mesas nacionais, o CLAI definiu para os próximos três anos (2011-2013) as seguintes prioridades: Fortalecer os processos de democratização na região, na qual o CLAI pode assumir um papel mais estratégico. Empoderar as mulheres e assim contribuir para a conquista de igualdade de gênero das mulheres, que em nosso continente são, ao lado das crianças, as vítimas mais vulneráveis da crescente violência. Apoiar e fortalecer as populações indígenas e afrodescendentes em sua luta contra a violação de seus direitos fundamentais. Criar, impulsionar e acompanhar estratégias educativas para a juventude. Organizar campanhas contra a violência em nossas sociedades latino-americanas. Onde será e qual o tema da próxima assembleia geral? Giese – A próxima assembleia do CLAI será em Havana/Cuba em
fevereiro de 2013. O tema será: Afirmando um ecumenismo de gestos concretos. Quantos participantes são esperados? O que você espera dessa assembleia como secretário-geral? Giese – Uma assembleia do CLAI reúne mais de 500 pessoas. Uma parte da despesa no hotel será destinada por seus funcionários a um hospital de câncer em Havana. Esse hospital atende muitos latino-americanos que buscam tratamento em Cuba. Todo o tratamento é gratuito para o doente, mas não para o Estado. Nossa contribuição será para a compra de remédios e equipamentos para o hospital. – Eu espero que o CLAI possa fortalecer-se em cada país por meio das mesas nacionais. Que as igrejas se apropriem cada vez mais do ecumenismo de gestos concretos e que assim consigamos testemunhar o que Jesus pediu ao Pai no Evangelho de João 17.21: “Que todos sejam um para que o mundo creia que tu me enviaste”. N
RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)
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RETRATOS
Um discípulo em busca da verdade por Nelson Kilpp
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Arte: João Soares
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ara muita gente, fé e dúvida são incompatíveis. Porém muitas pessoas de fé têm dúvidas. E isso não é nenhum escândalo. Pelo contrário, diria que é normal. Ao tentar entender a realidade, a fé depara-se com contradições reais ou aparentes, que exigem esclarecimento. O bom senso e a inteligência costumam então questionar a fé, exigindo uma explicação. Tomé é exemplo dessa fé que não se contenta com respostas fáceis e ingênuas, mas está em constante busca da verdade. Tomé – o nome aramaico significa gêmeo (em grego Dídimo) – é caracterizado como “incrédulo”. Indevidamente, como veremos. Tomé aparece em quatro ocasiões marcantes da história de Jesus. Na primeira vez, destaca-se como discípulo intrépido, disposto a morrer por Jesus. Quando soube da doença de Lázaro, Jesus quer voltar à Judeia. Mas os discípulos tentam dissuadi-lo porque os judeus tinham a intenção de apedrejar Jesus (João 11.8). Tomé parece ser o único discípulo que não tem medo. Afoitamente diz: “Vamos também nós para morrer” (11.16). Revela-se de zelo e coragem, que se contrapõe aos demais e coloca-se totalmente ao lado de Jesus, assumindo as consequências do discipulado. Esse entusiasmo inicial vai transformar-se aos poucos em busca insistente por compreensão. Como também acontece com os outros, Tomé nem sempre entende tudo o que seu mestre diz ou faz. Em João 14.5, faz-se porta-voz dos discípulos ao perguntar
a Jesus: “Senhor, não sabemos para onde vais, como saber o caminho?” Os discípulos não entendem que Jesus deve ir pelo caminho do sofrimento para chegar ao Pai. E que o acesso dos discípulos ao Pai passa por Jesus, que é “o caminho, a verdade e a vida” (14.6). Aqui transparece a grande sede de Tomé de conhecer melhor o significado das palavras e dos atos do mestre. O discípulo fiel e intrépido começa a revelar o seu espírito inquieto e inquiridor, que busca a verdade. Tomé aparece, pela terceira vez, na cena da revelação de Jesus a seus discípulos oito dias após a ressurreição (João 20.24-29), quando Jesus lhe mostra suas feridas para que possa crer que ele é, de fato, o Jesus crucificado. Dois aspectos são significativos nesse episódio. Em primeiro lugar, trata-se da segunda aparição de Jesus a seus discípulos. Quando Jesus apareceu pela primeira vez, Tomé não se encontrava entre eles. Onde teria estado? Sabemos que os outros se haviam trancado numa casa por medo dos
judeus (20.19). Tomé parece não ter sido tão medroso assim. Após a morte de Jesus, ele não se afastou do grupo, mas também não se escondeu. Em segundo lugar, Tomé responde ao relato dos colegas que diziam que Jesus havia ressuscitado e aparecido a eles: “Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo algum acreditarei” (20.25). Não se trata, na verdade, de falta de fé, mas de uma desconfiança natural diante do insólito. Os discípulos podiam ter tido uma visão irreal. Isso não era coisa incomum. O desespero e a decepção levam a ilusões. Tomé acha que deve haver uma relação entre a pessoa vista pelos colegas e a que sofreu a morte na cruz. Para Tomé, a diferença entre sonho e fé legítima é a marca da cruz. A fé não é algo aéreo, que deixa “no mundo da lua”, mas tem a marca da realidade do sofrimento. Não se trata, portanto, de “descrença”, mas de zelo e compromisso com a verdade. Tomé aparece, pela última vez, na terceira aparição de Jesus junto ao mar da Galileia (João 21.2). Vemos aí que Tomé não se afastou da comunidade nem dela foi excluído por causa de suas dúvidas. Diversos escritos posteriores foram atribuídos a Tomé. Num deles, relata-se que foi enviado como missionário à Índia, onde sofreu martírio. A tradição diz que sua sepultura está em Chenai (Madras). Tomé foi um discípulo com posição própria. Como entusiasmado e fiel seguidor de Jesus, nunca deixou de usar seu raciocínio para questionar quando algo fugia à sua compreensão. Ele nos ensina que, quando temos compreensão, talvez possamos testemunhar de forma mais convincente: “Senhor meu e Deus meu” (20.28). N NELSON KILPP é especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB, residindo em Kassel, na Alemanha
TESTEMUNHOS
Tomé Sobre os antepassados de suas dúvidas
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Fonte: Khalil Gibran – autor do livro “Jesus – Filho do Homem”, Editora Sinodal
Arte: Roberto Soares
eu avô, que era advogado, falou certa vez: “Sigamos a verdade, mas apenas quando a verdade nos é revelada”. Quando Jesus me chamou, eu o segui, pois seu chamado foi mais forte do que meu desejo. Mesmo assim, eu preservei minha razão. Quando ele falava e os outros dobravam-se como galhos ao vento, eu o escutava sem mexer um músculo. Mas eu o amava. Três anos atrás, ele nos deixou. Ficou uma pequena comunidade para cantar o seu nome e testemunhá-lo a todas as nações. Naquele tempo, chamavam-me de Tomé, aquele que duvida. A sombra do avô ainda me acompanhava, e eu queria sempre que a verdade fosse revelada. Ia ao extremo de colocar minha própria mão na ferida para sentir o sangue antes de acreditar em minha dor. Contudo, uma pessoa que ama com seu coração, mas duvida com sua razão, é como um escravo na galé que adormece ao remo e sonha com sua liberdade até ser acordado por uma chicotada de seu mestre.
Eu fui um escravo assim. Sonhava com a liberdade enquanto o sono de meu avô me entorpecia. Minha carne precisou da chicotada de meus próprios dias. Até mesmo na presença do Nazareno meus olhos mantinham-se fechados e minhas mãos, presas ao remo. A dúvida é uma dor solitária demais para que possa acreditar que a fé é sua irmã gêmea. A dúvida é uma criança errante infeliz. Até mesmo se sua própria mãe, que lhe deu a vida, a reencontrasse e abraçasse, ela se retrairia de medo e desconfiança. A dúvida somente reconhecerá a verdade quando suas feridas forem tratadas e curadas. Duvidei de Jesus até que ele mesmo se revelou a mim, quando pegou minha mão e a fez tocar suas feridas. Então acreditei e fiquei livre do meu passado e do passado de meus antepassados. O morto em mim enterrou seus mortos, e o vivo em mim viverá pelo Rei Ungido, que era o Filho do Homem. Ontem fui informado de que devo ir e pregar seu nome entre os hindus e persas. Eu irei. De hoje até o último dos meus dias, ao nascer do sol e ao entardecer, verei o meu Senhor erguendose em majestade e ouvirei suas N palavras.
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COLÔMBIA
Solidariedade internacional por Marcelo Schneider
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Marcelo Schneider/CMI
stávamos numa acanhada igreja metodista na cidadezinha de San Onofre, no noroeste da Colômbia, na segunda semana de Advento do ano passado. O calor era intenso, mas, mesmo assim, tínhamos diante de nós cerca de 30 moradores que vieram partilhar suas expectativas em relação à possibilidade da chegada de uma equipe de observadores internacionais naquela localidade. San Onofre é uma das localidades que deve receber, ao longo do primeiro semestre deste ano, os primeiros voluntários do Programa Ecumênico de Acompanhamento na Colômbia (PEAC). Para a maioria das pessoas reunidas na igrejinha, o medo da violência é a marca mais expressiva de sua vida cotidiana. Segundo estatísticas do governo colombiano, há cerca de três milhões de pessoas desplazadas pelo conflito armado no país, mas organizações de direitos humanos dizem que o núme-
ro real beira os cinco milhões de pessoas deslocadas dentro das fronteiras do país por conta da violência. Em sua maioria, são pessoas que foram expulsas de suas próprias terras por conta da ocupação de grupos armados. A região de Montes de María, onde se localiza San Onofre, é uma das áreas mais críticas no contexto da violação de direitos humanos na Colômbia. A violência contra civis é perpetrada, principalmente, por grupos armados ilegais. Segundo o relatório do Alto Co missariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas de 2009, os grupos que surgiram a partir do processo de desmobilização dos paramilitares são responsáveis por massacres, assassinatos seletivos, deslocamento forçado, violência sexual e ameaças. As vítimas são líderes sociais, camponeses, indígenas e afro-colombianos. Da mesma forma, guerrilheiros das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e do ELN (Exército de Libertação Nacional) cometeram massacres, ataques indiscriminados,
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deslocamentos forçados, tortura, se questros e violência sexual. O PEAC surge como uma resposta ao pedido de solidariedade que as comunidades afetadas pela violência fizeram ao Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) numa reunião em outubro de 2009. Naquela ocasião, representantes das comunidades afetadas partilharam as ameaças que estavam sofrendo e solicitaram o apoio de igrejas-membro do CLAI, do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e das organizaçõesmembro da ACT Aliança, organismo ecumênico formado por mais de cem organismos, agências, igrejas e conselhos de igrejas especializados no trabalho de ajuda humanitária, projetos de desenvolvimento e ações de incidência pública e política. O programa de acompanhamento é uma iniciativa ecumênica na qual voluntários internacionais irão passar cerca de três meses vivendo em comunidades de risco. A expectativa, baseada no pedido das próprias comunidades, é que a presença desses observadores iniba a ação dos grupos armados. O PEAC é promovido em nível internacional pelo CLAI e, segundo o documento-base, “baseia-se no testemunho bíblico da presença de Deus acompanhando seu povo” e contribui com processos de defesa, proteção e fortalecimento das comunidades que são acompanhadas por igrejas e organizações ecumênicas. No final da reunião, os representantes da associação de desplazados mostraram as escrituras das terras das quais foram expulsos (foto ao lado). Eles levam esses documentos consigo por toda parte como atestados da legitimidade de sua causa. Uma vez implementado, o PEAC deve ser uma ferramenta importante para garantir a segurança dessas pessoas em sua luta por justiça. N MARCELO SCHNEIDER é teólogo e correspondente de comunicações para a América Latina do Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre (RS)
FUTURO NO CAMPO: Hayratha (9 anos) e seus dois irmãos têm mais chance de permanecer na terra
“A nossa vida mudou” por Suzanne Buchweitz
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m 2006, a Comunidade Evangélica Luterana de Funil (IECLB), na pequena São José do Mantimento (cerca de 3 mil habitantes) em Minas Gerais, elaborou um projeto para o Fundo de Projetos da Fundação Lu terana de Diaconia (FLD), buscando apoio para a criação de uma cooperativa de produtores rurais familiares que estariam mudando da produção convencional, com uso de agroquími cos, para a produção ecológica.
O projeto “Semeando” tinha como principal objetivo a criação de uma cooperativa, permitindo a co mercialização da produção do grupo. Os recursos financeiros obtidos assim serviriam para implementar o projeto seguinte ao Semeando, o “Bicho do Mato”, com formação dos agricultores, melhoria técnica da produção ecológica e meio ambiente, buscando aumentar a renda das famílias associadas (cerca de R$ 182,00/mês por família).
Arquivo FLD
SUSTENTABILIDADE No entanto, os dois projetos foram elaborados com pouca participação dos agricultores e com uma lógica de que primeiramente se deveria alocar uma grande soma de recursos para dar início aos trabalhos. A Comissão de Avaliação de Projetos da FLD, juntamente com a Assessoria de Projetos, analisou o projeto em setembro de 2006. Ainda que fosse interessante e mostrasse possibilidades de parceria com a Universidade Federal de Viçosa e o Sebrae, além da preocupação com autossustentabilidade, o valor solicitado era bastante alto e não havia clareza sobre os resultados. A comissão decidiu deixar o projeto Semeando em suspenso, com a recomendação de que os agricultores familiares deveriam realizar um Diagnóstico Rápido Participativo para verificar se era a melhor solução. Em outubro de 2007, a assessora de projetos Angelique van Zeeland e o engenheiro agrônomo Ellemar Wojahn, assessor do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA), foram a Funil para conversar com os agricultores e visitar propriedades para verificar se e como estavam sendo implementadas as recomendações feitas. “Tivemos reuniões com agricultores e agricultoras, que relataram os avanços alcançados. Além de avaliar questões de produção, na visita também foi possível verificar a preocupação com as águas, com a proteção das nascentes e o destino das águas servidas”, conta Wojahn. Após a visita, a Associação dos Pequenos e Médios Produtores da Comunidade do Funil e Região (Aprocafir) e a Comunidade Luterana de Funil enviaram em 2008 a proposta Bicho do Mato, que foi aprovada. Com a criação da Cooperativa Regional Funil Solidário (Coopersol) em 2009, foram criados a marca e os produtos Natsol. Hoje, os produtos
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JUVENTUDE
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Um sinal de esperança
são vendidos em mercados de Minas Gerais e do Espírito Santo. Outro grande avanço foi a inserção no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA/Governo Federal). A Aprocafir recebeu o valor de 48,6 mil reais pela entrega de produtos a escolas e creches em 2007; em 2008, o valor foi de 105 mil reais, e em 2009/2010 os projetos da Aprocafir e da recém-criada Coopersol receberam 290 mil reais. “Nossa vida mudou. As oportunidades para nós e para os vizinhos aumentaram muito”, conta Lauderson Keler, um dos agricultores beneficiados. A família Keler, o casal e os filhos, passou a trabalhar de forma associativa, trocou a produção convencional pela agro ecológica e participa de cursos. Assim como muitas outras famílias, os Keler passaram a ser donos associados de seu negócio e de sua marca – a Natsol – e puderam dispensar os atravessadores, diversificar sua produção e ter controle sobre sua vida. N
por Marcelo Schneider
O
SUZANNE BUCHWEITZ é jornalista da Fundação Luterana de Diaconia em Porto Alegre (RS)
Arquivo FLD
A família Keler é beneficiada direta do projeto
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ano de 2011 trouxe novos ventos ao movimento ecumênico. No Brasil, jovens articulados nacional e regionalmente oferecem pistas muito visíveis para uma nova e dinâmica maneira de transformar o convívio entre diferentes confissões numa atitude capaz de gerar cooperação inter-religiosa e incidência política. O alvo é a intolerância religiosa. Criada em 2007, a Rede Ecumêni ca da Juventude (REJU) assumiu, ao longo de 2011, o compromisso de chamar a atenção para o escândalo da intolerância religiosa. A “Campanha Nacional Contra a Intolerância Religiosa”, lançada no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 21 de janeiro, tem mobilizado as cinco regiões da REJU com reflexões, parcerias e ações de grupos de jovens, visando à denúncia de casos de intolerância e propostas de práticas de diálogo e cooperação entre as religiões. Para Daniel Souza, coordenador nacional da REJU, o contexto brasileiro está tristemente marcado pela realidade da intolerância para com o outro. “Mesmo que sejamos um Estado laico, que traz em sua base a liberdade de consciência, de crença e de culto, há, em toda parte, exemplos de desrespeito e violência contra outras expressões religiosas, principalmente as minoritárias, como aquela expressa pelos povos que têm a sua es piritualidade enraizada nas religiões de matriz africana”, afirmou.
Como rede estabelecida, a REJU (redeecumenicadajuventude.org.br) busca o fortalecimento político das ações das juventudes e o apoio e o intercâmbio para a garantia de direitos dos jovens, assim como o estímulo à capacitação e à articulação das juventudes para que ocupem espaços de incidência junto aos governos regionais e nacional e também em círculos não governamentais. Na prática, a campanha contra intolerância teve três eixos: Capacitação das juventudes: construção de espaços de aprendizagem nas organizações ligadas à REJU, como a produção de estudos bíblicos que procuram ler textos da tradição religiosa judaico-cristã a partir da hermenêutica ecumênica, para ser partilhados em comunidades de fé mais amplas. Incidência pública: intervenção em conselhos municipais, estaduais e nacionais, em órgãos do governo e no ministério público, buscando trazer a dimensão religiosa para o tema dos direitos e das políticas públicas, acompanhando as ações do Estado no combate à intolerância e as soluções dos casos de negação da liberdade religiosa denunciados ao judiciário. Comunicação: espaço de partilha do impacto gerado pelas ações e intervenções, dando visibilidade ao tema da liberdade religiosa nas mídias a que os jovens têm acesso direto.
Marcelo Schneider/CMI
NOVO ESPAÇO: A REJU é a força da juventude dando novo impulso ao movimento ecumênico na busca pela unidade
A REJU surgiu como uma iniciativa do Fórum Ecumênico Brasil (FE ACT Brasil), um espaço amplo de partilha e diálogo sobre temas atuais do ecumenismo, que reúne agências de cooperação e apoio a projetos, igrejas e conselhos de igrejas. Hoje, o fórum é reconhecido como instância nacional da ACT Aliança, que reúne mais de cem organizações internacionais de ajuda humanitária, projetos de desenvolvimento e inci-
dência política. O tema da juventude surgiu como grande prioridade para o FE ACT Brasil, e desde então o apoio à criação e ao trabalho da REJU é constante. Após décadas de intenso impacto global (décadas de 1960 a 1980), atualmente o ecumenismo ainda procura seu formato ideal. Os modelos tradicionais, fortemente marcados pela limitação de espaço e mobilidade inerentes à institucionalidade dos
conselhos de igrejas, por exemplo, precisam respirar novos ares, principalmente num cenário onde a velocidade e a capacidade de participação são muito mais intensas. A REJU é um desses novos espaços e por isso um sinal concreto de esperança em que a busca pela unidade se transforma e se fortalece. N MARCELO SCHNEIDER é teólogo e correspondente de comunicações para a América Latina do Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre (RS)
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HISTÓRIA
Cemitério do preconceito a morte de um imigrante protestante enterrado por engano no cemitério de sorocaba há dois séculos deu origem ao primeiro cemitério luterano no brasil.
C
orre o ano da graça de 1811. Uma carta chega à corte de Dom João VI no Rio de Janeiro. Traz notícias pouco alvissareiras. O remetente, o sueco Carl Gustav Hedberg, informa que a paz deixara de reinar na longínqua e pacata Sorocaba, cidadezinha do interior de São Paulo. A animosidade tinha a ver com a morte de um trabalhador do Estabelecimento Montanís tico das Minas de Ferro de Sorocaba. Como a morte de um mineiro podia causar tanto alvoroço, a ponto de merecer comunicado oficial ao próprio imperador? Dom João VI e a família real portuguesa haviam chegado ao Brasil em 1808. A sua chegada havia promovido uma série de medidas que favoreceram o comércio e a indústria na Colônia promovida. Para garantir a defesa da Colônia que virara sede do Império português, a fabricação própria de armas passou a ser premente e urgente. O empreendimento siderúrgico em Sorocaba fazia parte dessa nova estratégia política. À parte as suspeitas em torno do contrato celebrado com
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Hedberg (o financiador seria credor de Hedberg e, assim, garantiria o retorno de seus haveres) nada podia comprometer o projeto. Os trabalhadores contratados, apelidados de “suecada”, mexeram com os valores e as leis que regiam a ordem da vida da pequena Sorocaba até então. Além de destoarem na aparência e língua diferentes, eram acatólicos. Traduzindo: eram luteranos! Um desses trabalhadores, Jonas Bergmann, que era carpinteiro de foles, já estava adoentado há mais tempo e morre em decorrência de escorbuto no dia 27 de fevereiro de 1811. Como era costume, o padre da vila doa o caixão para enterrar o morto no cemitério local. Rapidamente, entretanto, espalhase a notícia de que o defunto teria sido protestante ou, então, que havia cometido suicídio. A conversa deu origem a uma tremenda ebulição. O povo tirou o defunto da terra, largou-o no meio da rua e ainda por cima o caixão foi cobrado. O Tratado de Comércio e Navegação de 1810 previa o respeito à crença
Fotos: Carlos Kardoso
por Rolf Schünemann
CARTA RÉGIA: O próprio imperador D. João VI ordenou a
de pessoas não-católicas, mas os eventos de Sorocaba apontavam que o tratado carecia de regulamentação. Diante do inusitado fato real de um cadáver insepulto, é expedida uma Carta Régia, no dia 28 de agosto de 1811, com a assinatura de próprio punho do imperador. “Sendo muito vantajoso ao meu Real serviço e ao bem público de meus estados chamar povoadores estrangeiros hábeis, e inteligentes artistas, posto que eles não estejam alumiados, e não professem os dogmas da Nossa Santa Religião, tanto mais que até vivendo entre católicos, muitos deles sem violência, e por convicção abraçarão a verdade e abjurarão seus erros”, anota Dom João. “E havendo subido à minha Real presença algumas informações, que havendo morrido em Sorocaba um
observar fiel e religiosamente tudo o que sabiamente tenho ordenado a esse respeito, e que a vos muito vos encarrego de novo por esta minha Carta Régia de cuidares e vigiares na fiel observância de tão essenciais objetos, sendo sempre vossos olhos abertos para evitares qualquer mal efeito que possa resultar de prejuízo de povos que, mais por ignorância do que por fins sinistros, podem em tal matéria fazer a si e ao Estado um grande dano, levados de um mal entendido zelo religioso e contrário aos princípios de nossa Santa Religião”, ordena a carta régia. “Também vos encarrego o cuidares em que aí se estabeleça e conserve em boa ordem um terreno que sirva de Cemitério aos Ingleses e Suecos, e em geral aos que não forem membros de nossa Santa Religião, permitindo-lhes também que, nas suas casas particulares e sem forma de Igreja, possam
reunir-se para o culto particular que dirigem ao Ente Supremo e, no que vigiareis, não possam jamais ser inquietados pelos habitantes do país o que muito vos hei por recomendado”, ordena o soberano. Surge assim o primeiro cemitério evangélico luterano no Brasil. Ele se localiza em Iperó (SP) e permaneceu por bom tempo abandonado em meio à mata. Conserva o pórtico de entrada e várias cruzes, algumas delas foram fundidas na própria fábrica de São João do Ipanema. A fé tem seu lugar na vida real das pessoas. O pão de cada dia (economia) tem a ver com política. A história mostra que não tem como dissociar economia, política e religião. Como se dão essas conexões hoje? N
ROLF SCHÜNEMANN é teólogo da IECLB em São Paulo (SP)
criação do cemitério de Iperó em 1811
dos mineiros suecos, o Diretor e outros suecos tiveram um susto mal fundado, que os prejuízos populares dos habitantes os consideravam com horror, visto serem hereges”, escreve o imperador. “Ordeno-vos que tenhais particular cuidado em persoadir tanto ao Diretor, como aos mais suecos, que respeitando eles como devem a Nossa Santa Religião e prática da mesma podem estar seguros que ninguém os há de inquietar nas suas práticas religiosas que fizerem particularmente em suas casas e que não só hei de manter tudo que a tal respeito lhes mandei prometer pelo contrato, que com eles se celebrou, e a que estou obrigado pelos tratados que ultimamente celebrei com a Grã Bretanha, mas que conheço muito os meus reais interesses e da minha Coroa, para que deixe de fazer
Algumas das cruzes ainda permanecem no antigo cemitério, que foi recuperado do meio da vegetação que cresceu no local histórico. Algumas das cruzes que resistiram ao abandono foram fundidas na própria fábrica em que trabalhavam os suecos protestantes nos tempos do imperador D. João VI. Uma Carta Régia deu origem ao cemitério.
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ESPIRITUALIDADE
Três homens e uma estrela E, vendo eles a estrela, alegraram-se com grande e intenso júbilo. Mateus 2.10 por Cláudio Rieper
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silenciosa luz do menino Jesus continua a brilhar em nossas vidas, à espera de uma chance para nos levar a ter um encontro pessoal com Deus. Epifania é muito mais do que um evento isolado, que aconteceu há mais de dois mil anos numa manjedoura, ou uma simples data no calendário cristão, celebrada numa época do ano em que poucas pessoas estão conectadas à sua religiosidade. É o insistente desejo de Deus de manifestar sua presença e manter contato conosco, de iluminar o caos de nossa vida, em meio à correria do trabalho, festas, trânsito agitado, à violência das cidades e do campo ou às infindáveis disputas humanas pelo poder nas mais variadas áreas da vida.
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O mundo ainda celebra o Natal, mas a luz do Menino Jesus continua a brilhar de forma silenciosa e solitária. Deus insiste em anunciar que deseja construir junto com o ser humano um projeto muito maior do que ele pode sonhar sozinho, mas poucos se deixam guiar por essa luz. A história dos três reis magos fala de três homens sábios que saíram da Babilônia em direção a Jerusalém. Pelo deserto quente e seco, estradas sinuosas, cheias de altos e baixos, esses homens percorreram uma grande distância para encontrar aquela luz que anunciava a presença de Deus,
Faça como aqueles três homens sábios: Deixe que a estrela do menino Jesus brilhe e busque seu olhar e aponte a direção que você deve caminhar. Para que ela guie você para longe da correria e da agitação de mais um dia, onde reinam a paz e o silêncio. Ali Deus se revelará a você e o ajudará a encontrar alegria, descanso e sentido para a sua vida.
encarnado no mundo. Não sabemos muito a respeito deles, mas podemos falar que se tratava de sacerdotes e eruditos distintos de um reino distante do povo de Deus. Estudiosos que, a partir da astronomia, das ciências naturais e da teologia, orientavam as decisões de seu rei. Chama a atenção que são homens com um elevado grau de cultura para a sua época, que se deixaram guiar pela luz silenciosa de Deus, que despontava nos céus. Isso me faz lembrar uma frase do cientista francês Louis Pasteur: “Um pouco de ciência nos afasta de Deus. Muito nos aproxima”.
tem feito uso da luz do conhecimento científico em diferentes áreas, como a medicina, a genética, a física, a astronomia, a filosofia, entre outras, para negar a existência de Deus ao invés de buscar um encontro pessoal com seu Criador. Deus nunca deixou de manifestar sua presença e ainda o faz de maneira especial em Jesus Cristo. Ele continua à espera das pessoas. Isso o próprio apóstolo Paulo sinaliza na Carta aos Romanos 1.19-20, quando diz: “Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque
Os Reis Magos, Albrecht Dürer
Qual é a luz que tem guiado suas expectativas para o novo ano? Talvez não seja a luz da ciência, talvez ainda sejam as luzes do Natal, que apontam para o lucro ou o prejuízo das vendas do comércio. Uma coisa é certa: A luz que nos guia precisa apontar para muito além das expectativas humanas, pois são transitórias e passageiras, que encontram seu destino final na morte. Só a luz de Deus pode guiá-lo na direção certa. Mas o ser humano costuma caminhar na contramão. Em sua busca por respostas e na tentativa de superar a transitoriedade da vida, ele
os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas”. Como trazer essa percepção para a vida diária? Dê uma chance para encontrar-se pessoalmente com Deus. Transforme sua religiosidade em espiritualidade. Faça como aqueles três homens sábios: Deixe que a estrela do Menino Jesus brilhe e busque seu olhar e aponte a direção que você deve caminhar. Para que ela guie você para longe da correria e da agitação de mais um dia, onde reinam a paz e o silêncio. Ali Deus se revelará a você e o ajudará a encontrar alegria, descanso e sentido para a sua vida. Pois é na leitura das Escrituras e na oração, e na contemplação da criação que rodeia você, que Deus se revela todos os dias! Ao sair de sua casa para o trabalho, escola, supermercado ou para a cidade, preste atenção nas pessoas e na criação que acompanha a sua agitação, como aquela simples flor à beira do caminho. É nesses pequenos encontros que invadem a sua correria que Deus silenciosamente faz a sua epifania diária e convida você a ter um encontro pessoal com Jesus Cristo. Como está a sua rotina? Você é alguém que separa tempo para esse encontro pessoal com você, a família, amigos, mas especialmente com Deus? Ainda há espaço em seu dia para a felicidade, a alegria e a vida? Inicie bem este novo ano. Separe regularmente um tempo para ter um encontro pessoal com Deus. Feliz Ano Novo, que Deus o abençoe! N
CLÁUDIO RIEPER é teólogo e ministro da IECLB em Rurópolis (PA) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Fev 2012
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penúltima palavra
Produção de comunicação Como a relação com meios de comunicação fortemente presentes na vida das pessoas, em especial de crianças e adolescentes, pode gerar construção de conhecimento e reconhecimento de identidades?
Além da necessidade de regulação dos meios de comunicação pelo governo brasileiro, é importante assumir, do lado de cá da tela, um papel ativo de ressignificação da produção da mídia. Como primeiro passo, é necessário problematizar a ideia, muitas vezes presente no senso comum, de que a mídia atua em oposição à educação. Essa sensação é reforçada pela grande quantidade de programas de TV voltados ao entretenimento e sem função educativa. No entanto, é importante considerar que crianças e adolescentes, embora em condição peculiar de desenvolvimento, possuem uma relação mais ativa e autônoma com os meios do que se pode imaginar. A necessidade de interagir e o acesso mais facilitado pelas novas tecnologias à produção de
por Lizely Borges
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Divulgação Novolhar
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s meios de comunicação são companhias frequen tes na vida da população brasileira. É alto o número de horas diárias assistindo à TV ou no uso da internet: em média, as crianças assistem diariamente 4 horas e 54 minutos, e os adultos, cerca de 5 horas e 8 minutos; e a expansão da internet é galopante: de 315 sites em 1982 para 174 milhões em 2008 (Fonte IBOPE 2008). Se a escola e a família já não são, há tempo, os únicos espaços culturais de aprendizado, particularmente para as crianças e adolescentes, como construir estratégias para que a interação (ativa ou não) com os meios de comunicação gere construção de conhecimento e crítica às escolhas feitas pela mídia?
comunicação – imagens e vídeos pelo celular, redes sociais – delineiam um público que, ainda que timidamente, deseja uma diversidade de vozes e o fim da ideia única na mídia. É importante que a escola, a família, as organizações e demais atores sociais promovam espaços de reflexão sobre os conteúdos abordados pelos meios de comunicação, problema tiz em localizando-os na realidade concreta em que os indivíduos estão inseridos e estimulem a análise das motivações das escolhas pela mídia: por que abordam esses conteúdos, com que intencionalidade, quem é beneficiado e quem é prejudicado com tal escolha de abordagem? Agora, como indivíduos que desejam assumir a própria vida e transformá-la, é importante não ficar restrito à análise da mídia para a construção da crítica e do conhecimento – aquela ideia de levar o jornal e o vídeo para o ambiente escolar. Temos uma relação afetiva com os meios de comunicação. Nosso olhar não se descola das memórias dessa relação já de longa data. Assim, a construção de conhecimento e o reconhecimento de identidade passa necessariamente pela produção de comunicação pela população. A produção de comunicação não é algo complexo e não deve ficar restrita aos meios de comunicação de massa. As tecnologias estão aí, assim como os grupos sociais com urgência de ser ouvidos. Todos temos histórias para contar. É outra forma de conexão com a realidade por meio de uma efetiva comunicação, um novo sujeito social. Em que a fala e a escuta, de nós e do outro, dizem sobre quem somos, como vivemos e como transformamos nossa realidade. N LIZELY BORGES é jornalista em Curitiba (PR)