8 a 19
Destino
VOCÊ NO CONTROLE? Poder de escolha? Meu destino é perdoar O que esperar do amanhã? Fé e destino Felizes coincidências? Livre-arbítrio
ÍNDICE
28
REDES SOCIAIS A arte de bloquear amigos
Ano 11 –> Número 50 –> Março/Abril de 2013
22
24
Saída: Mudança nas leis
CIDADES
NUTRIÇÃO
Mobilidade saudável
Alimente-se com qualidade
IMPUNIDADE
26
SEÇÕES OLHAR COM HUMOR > 6 MOSAICO BÍBLICO > 6 NOTAS ECUMÊNICAS > 7
31
BÍBLIA
A terra é de Deus
36
TESTEMUNHOS > 33 O REFORMADOR > 34
VIOLÊNCIA
REFLEXÃO > 38
Nenhuma mulher está livre
ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
3
AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, Ingelore Starke Koch, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina e Vera Regina Waskow. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Diego Oliveira Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Ani Cheila Kummer, Bianca Daiane Ücker Weber, Carlos Arthur Dreher, Emannuel Costa. Flávia Durante, Friedrich Gierus, Leandro Hofstaetter, Luciana Reichert, Luciana Thomé, Marcelo Schneider, Marilena Marasca, Oliver Burkeman, Roberto Zwetsch, Sheila Rubia Lindner, Silvana Henzel, Vera Nunes, Willy Schumann, Yedo Brandenburg e Yole Brasil Luz.
Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 30,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
4
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
Cinquenta revistas
E
ste exemplar em suas mãos é muito especial para nós da equipe editorial da Novolhar. Muito mais do que ter produzido cerca de duas mil páginas de conteúdo rico e diversificado, sentimos que cada uma dessas páginas representa um pedaço de conhecimento que nós mesmos agregamos às nossas vidas. Sentimo-nos gratos e enriquecidos por tantas pessoas queridas e solícitas, que nos ajudaram a produzir este pedaço de informação e repartiram parte do seu conhecimento conosco e com os leitores e as leitoras da Novolhar. Além da equipe de redação e do conselho editorial, todo esse trabalho criativo e desafiador envolveu especialistas, jornalistas, teólogos e profissionais das mais diferentes áreas do conhecimento humano. Além de acumular muita informação de qualidade ao longo de quase dez anos, juntamos uma preciosa carteira de amigos e amigas. Por isso expressamos gratidão a essas pessoas; e também ao nosso Deus, que nos iluminou copiosamente através delas. A jornalista Luciana Thomé foi convidada para registrar essa caminhada, que nos enche de justificado orgulho. Nesta edição comemorativa, tratamos de uma das mais intrigantes questões da humanidade. Desde tempos sem registro, perguntamo-nos sobre o destino e sobre quem decide acerca da nossa vida e seus rumos. Verdadeiros mundos místicos paralelos floresceram no imaginário humano para justificar o sentimento de impotência no controle dos nossos passos e na decisão sobre o que irá acontecer no tempo além do presente. A humanidade não está pronta com essa reflexão. Teólogos, psicólogos, filósofos, gurus e sábios de toda ordem tomam essa tarefa para si desde sempre, tudo com o objetivo de encontrar respostas. A Novolhar também não as encontrou irrefutáveis e definitivas. Mas buscamos abrir algumas portas que nos ajudem a garantir que o castelo de areia do destino, caprichosamente esculpido na palma da nossa mão, não escorra por entre os dedos. Há, como sempre, uma gama de outras matérias, sobre temas como a violência doméstica, a mobilidade urbana, as redes sociais e até dicas para que você se alimente com mais qualidade. Também oferecemos reflexão e lazer num pacote bem embalado. No final da leitura, não esqueça de erguer um brinde por essas duas mil páginas que enriqueceram todos nós até aqui. Equipe da Novolhar
opinião
O cartaz que faltava Vi na revista Novolhar a reportagem com os diversos cartazes dos temas da IECLB. Parece que não foi possível obter uma imagem do cartaz do tema de 1991/92. Olhei em meus arquivos e também em materiais daqueles anos e encontrei a imagem do cartaz no Roteiro da OASE de 1992. Não sei se já conseguiram e se existe o cartaz colorido; em todos os casos, compartilho como ele está no Roteiro da OASE. Sonja H. Juaregui Por e-mail
NOVOLHAR RESPONDE: Muito obrigado, Sonja, por sua contribuição. Com a sua ajuda, conseguimos completar as imagens dos cartazes dos temas dos anos. O tema daqueles anos (1991-1992) era “Comunidade de Jesus Cristo - A Serviço da Vida”, que tinha como suporte o lema bíblico de Mateus 5.13: “Vós sois o sal da terra; se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens”. CORREÇÃO: No rodapé com os cartazes de todos os temas dos anos, Novolhar errou na página 17 ao afirmar que o cartaz de 2005 e 2006 era o mesmo da 9a Assembleia da FLM em Porto Alegre. A assembleia que ocorreu em Porto Alegre em fevereiro de 2006, com o mesmo tema, era do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e elegeu o então pastor presidente Dr. Walter Altmann como moderador do Comitê Central do CMI. Pedimos desculpas pelo erro.
Visite nosso site Os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar.com.br
Tema da próxima edição
A edição nº 51, de Maio/Junho de 2013, irá tratar de SEXUALIDADE. O tema atinge a nossa vida em todas as idades, envolve fatores físicos e culturais e está ligado à nossa felicidade.
Peter Lund Ao receber e ler a Novolhar, tive a agradável surpresa de apreciar o artigo escrito pelo pastor Geraldo Graf, que gentilmente há poucos anos levou a minha esposa e eu ao cemitério onde está sepultado Peter Lund. O artigo merece ser lido por pessoas fora do alcance da Novolhar. Solicito permissão para enviar o artigo eletronicamente aos membros da SOBRESK (sociedade kiekegaardiana). É de largo conhecimento o fato de que Kierkegaard e Lund tiveram uma relação cordial, e SK até cogitou a possibilidade de vir ao Brasil. Em nome de todos os que consideram Kierkegaard o luterano mais famoso de todos os tempos (há quem conheça as obras de SK, mas não sabe quem é Lutero), agradeço ao autor e à prudência em publicar o artigo. Donald Nelson Por e-mail
Acabo de ler o belo e instigante artigo escrito por Geraldo Graf sobre a vida, o trabalho e o testemunho de Peter Lund, luterano dinamarquês, primo de Kierkegaard, que desde 1833 decidiu viver definitivamente no Brasil, na abençoada terra de Minas Gerais. Nesse irmão temos um exemplo do que significa viver como luterano na terra brasileira. Lund foi fiel à sua fé ao tornar-se um precursor da ecologia no Brasil com suas pesquisas sobre paleontologia, arqueologia e espeleo logia. Ele nos ensina o que é viver da fé e do amor, como vemos no seu testamento, em que transparece um profundo amor pelo povo mineiro de Lagoa Santa, próximo da capital Belo Horizonte. Ser luterano, isto é, cristão evangélico, é descobrir um caminho próprio para viver a fé na profissão e no amor à nossa gente. Parabéns também à Novolhar por abrir espaço a artigos dessa qualidade. Roberto Zwetsch Por e-mail NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
5
olhar com humor
MOSAICO BÍBLICO
Divulgação Novolhar
A última ceia
A última ceia de Jesus com os discípulos, segundo Juan de Juanes
A ceia de Páscoa, ocasião em que o povo de Deus comemorava a libertação do Egito (Êxodo 12.1-42), foi a última refeição de Jesus com seus discípulos. É provável que Jesus tenha observado a liturgia tradicional da Páscoa, que durava cerca de quatro horas, porém alterado o simbolismo da refeição: a partir de agora, o pão simbolizava seu corpo e o vinho, seu sangue, que em breve seriam oferecidos na cruz (Mateus 26.17-30; Marcos 14.12-26; Lucas 22.7-23; João 13.1-30). Em outras palavras, Jesus estava dizendo que sua morte traria um novo tipo de libertação a seu povo. Foi nessa ocasião que Jesus pediu a seus discípulos que repetissem aquela refeição “em memória de mim” (Lucas 22.19), simbolismo que, em pouco tempo, se tornou parte central do cristianismo, embora no início a ceia estivesse relacionada a um contexto de refeição normal e não parte do culto religioso. Atualmente, os cristãos ao redor do mundo continuam partindo o pão e bebendo vinho como forma de rememorar a morte de Jesus, ocasião chamada por nomes diferentes, tais como Ceia do Senhor, o partir do pão e Santa Comunhão ou Eucaristia. N Fonte: Bíblia Sagrada com Enciclopédia Bíblica Ilustrada – Sociedade Bíblica do Brasil – 2011
6
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
Notas ecumênicas Indignação
É inaceitável que o governo dos EUA crie obstáculos que impeçam o encontro de um organismo cristão significativo como o clai. mostra que o bloqueio contra cuba está fora da realidade do mundo de hoje e deve ser suspenso em nome da justiça e da paz. OLAV FYKSE TVEIT, Secretáriogeral do Conselho Mundial de Igrejas-CMI.
O retiro de Bento XVI
Manifesto das Igrejas
O Papa Bento XVI surpreendeu o mundo católico e cristão com o seu pedido de renúncia. Diplomático, ele alegou sentir-se cansado e impossibilitado de continuar desempenhando o ministério petrino plenamente, por conta da idade avançada. Ele é o primeiro papa a renunciar desde o século 13. A notícia provocou uma onda de especulações sobre as causas reais da renúncia e sobre o futuro da Igreja. Problemas graves no Vaticano, como a mal resolvida questão da pedofilia, corrupção e espionagem estão entre as reais causas do retiro de Joseph Ratzinger.
A cultura da impunidade garante que determinados criminosos jamais serão alcançados pelos rigores da lei, gerando a descrença no sistema judicial, que funciona apenas para os que não podem contratar advogados de renome. Trecho do manifesto assinado pelas igrejas Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Luterana do Brasil, Metodista, Metodista Wesleyana, Metodista Livre, Presbiteriana Unida, Presbiteriana Independente e Presbiteriana Renovada do Brasil.
BÍBLIAS DE OBAMA: No ato de posse do seu segundo mandato, o presidente dos EUA, Barak Obama, usou a Bíblia de Abraham Lincoln para prestar juramento. Mas colocou uma segunda Bíblia debaixo dessa, que foi de Martin Luther King Jr., ativista pelos direitos dos negros, assassinado em 1968.
Paz e segurança O desafio de interromper a proliferação de armas de fogo e combater o tráfico de drogas na América Latina é essencial para reduzir os níveis de violência e estabelecer condições de segurança humanitária, paz e desenvolvimento. Benjamin Marchena durante consulta do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) realizada em Antígua, Guatemala
Apoio a Casaldáliga
Queremos juntar nossas vozes por sua valente atitude de solidariedade para com os povos indígenas e por seus questionamentos a um modelo agroexportador que tanto ameaça a vida dos povos indígenas e o meio ambiente. Nilton Giese é secretário-geral do Conselho LatinoAmericano de Igrejas (CLAI), com sede em Quito, Equador NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
7
Divulgação Novolhar
CAPA
AS MOIRAS: Três irmãs, Cloto, Láquesis e Átropos, definiam o destino das pessoas e dos deuses, segundo a mitologia grega
Destino: poder de escolha? 8
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
por Luciana Reichert
N
a mitologia grega, Cloto, Láquesis e Átropos eram três irmãs que definiam o destino das pes soas. As moiras, como eram chamadas, eram responsáveis por tecer a vida dos mortais e deuses. De certa maneira, na mentalidade popular, essa é uma fatalidade amplamente aceita ainda hoje. Tudo já está determinado, e nada pode ser feito para alterar qualquer coisa. Por conta disso, fazem tanto sucesso incontáveis maneiras que buscam governar o destino para superar o desamparo, no sentido de crer em forças ocultas que governam o nosso destino.
Reprodução Novolhar
Já na doutrina calvinista, criada pelo reformador protestante João Calvino no século 16, o princípio da predestinação seria o responsável por explicar o destino dos homens. Segundo a vontade de Deus, alguns escolhidos teriam direito à salvação eterna. Não há livre-arbítrio, pois a soberania de Deus prevalece. Diversas religiões, como o catolicismo, o luteranismo, o espiritismo, o budismo, o judaísmo e a umbanda, aceitam o livre-arbítrio. Ou seja, que temos a opção de escolher; que somos livres para pensar e agir e, por isso, construímos a nossa própria história. Na teologia islâmica, não existe contradição entre destino e livre-arbítrio. Todos são livres para agir. O ser humano só será julgado em relação às situações sobre as quais tenha o poder de escolha, mas Deus
SIGMUND FREUD: Pai da Psicanálise
já possui pré-conhecimento de todas as escolhas que o ser humano tomará em sua vida.
Divulgação Novolhar
De modo geral, as pessoas acreditam que o destino é imutável, mas confiam que, conhecendo em parte o que está oculto, têm mais poder de controlá-lo, nem que seja através de subterfúgios como a religião, a magia, a filosofia e até mesmo a ciência. O destino – uma sucessão de fatos que podem ou não ocorrer e que constituem a vida do homem, considerados como resultantes de causas independentes de sua vontade – sempre moveu filosofias e religiões. A ideia de fado, sorte, uma entidade misteriosa que determina as vicissitudes da vida, aquilo que acontecerá, em muitas culturas já é predeterminado antes mesmo do ser humano nascer ou até mesmo em outras vidas. O carma, conjunto de ações do homem e suas consequências, é utilizado na Índia e por muitas correntes filosóficas religiosas. Segundo a lei do carma, todos os atos na vida de uma pessoa são consequências de suas ações em existências passadas. Ela explica causa e efeito. Todo o bem ou o mal que a pessoa fizer na vida trará consequências boas ou más para ela nesta vida ou nas próximas existências. Se a pessoa agir com virtude, pode “descontar” a carga das vidas passadas e será recompensada na próxima reencarnação. No estoicismo, escola filosófica grega iniciada por Zenão de Cítio (336-265 a.C.), há uma oposição radical entre o que depende de nós e pode ser bom ou mau e objeto de nossa decisão e o que não depende de nós, mas de causas exteriores, do destino, e é indiferente e inalterável. Na escola do filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.), a morte era o fim do corpo e da alma e, portanto, não se devia temer os deuses. A filosofia de Epicuro não acreditava em destino ou qualquer tipo de vontade divina.
OS GENES DEFINEM A COR DOS OLHOS E DOS CABELOS, MAS TAMBÉM O JEITO DE SER. Daniela Martí Barros
NEUROCIÊNCIA E DESTINO – Segundo algumas correntes da moderna ciência, nós herdamos diversas características dos nossos antepassados, que determinam o que somos, como reagimos às situações e ao ambiente e como enfrentamos os problemas, por exemplo. Tais pesquisadores levantam questões como até que ponto a genética pode alterar o futuro de uma pessoa. Os genes podem definir o nosso destino? Daniela Martí Barros, doutora em Ciências Biológicas (Bioquímica) na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Laboratório de Neurociências do Ins tituto de Ciências Biológicas (ICB), explica que há um novo paradigma envolvendo genes e comportamento. Segundo ela, embora se saiba que nos genes está a base de muitos traços
>>
NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
9
Divulgação Novolhar
PREVISÕES – Em todos os tempos, o futuro é motivo de curiosidade, e o homem recorre a horóscopo, tarô e oráculos para tentar desvendá-lo. Karin Wondracek, psicóloga, psicanalista, doutora em Teologia e professora na Faculdades EST em São Leopoldo (RS), afirma que muitas pessoas se agarram a previsões do destino por ser uma atitude mais fácil do que adotar estratégias de enfrentamento. “Queremos controlar o futuro. Temos medo de morrer, no fundo de tudo. Por isso queremos que algo se mostre ‘controlado’ nessa imprevisibilidade”, comenta. A psicóloga cita Freud, que trabalhou esse tema na primeira parte de seu livro “O futuro de uma ilusão”. “Claro que lá a resposta a essa questão está de um modo muito cientificista, como
>>
10
humanos, como a cor dos olhos e do cabelo entre outros, o comportamento humano também depende deles. Mas a interação com fatores ambientais e sociais é crucial para o aparecimento de alterações psicológicas e/ou psiquiátricas. “Mesmo os gêmeos monozigóticos (gêmeos idênticos) criados juntos na mesma família apresentam comportamentos diferentes diante das situações. Saliento que o comportamento sofre influência do humor, da forma como cada um percebe determinada situação, ainda que os gêmeos monozigóticos possam apresentar ao longo da vida genes diferentes resultantes de mutações aleatórias”, pondera Daniela. A professora esclarece que os genes codificam proteínas, as quais podem sofrer alterações. Essas modificações nas proteínas são sutis e podem não provocar alterações comportamentais ou doenças mentais, “mas produzem um viés nos circuitos cerebrais”. Daniela falou que os genes por si só não são necessariamente suficientes para causar uma doença mental ou alterações comportamentais importantes. Muitas vezes, o estresse também tem contribuí do para que isso aconteça.
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
Divulgação Novolhar
VIKTOR FRANKL: Experiência marcante
previsões nos dão uma sensação de controle, para neutralizar a angústia interna. Karin Wondracek
se a ciência pudesse nos retirar do desamparo, e isso não tem sido assim”, explica. Desde o nascimento, o ser humano enfrenta uma situação após a outra, nas quais se rompe o que proporcionava bem-estar e segurança. “O útero materno, depois a certeza da presença e do seio da mãe, e assim por diante. Isso sem falar nas grandes tragédias, como a que vivemos em Santa Maria recentemente”, menciona Karin. “Parece que, para conseguir controlar a angústia interna, queremos ter certeza quanto ao externo; por isso as previsões, que nos dão uma sensação de controle.” Karin também cita o psiquiatra e psicoterapeuta brasileiro Joel Birman, segundo o qual, o mal-estar contemporâneo é maior porque as antigas certezas foram tiradas do imaginário popular. “Diz-se que Deus está morto, o que produziu um desamparo imensurável. A ciência já não é vista como aquela que nos trará a segurança perdida em Deus. Por tudo isso, o desamparo se incrementou, trazendo a sensação de vazio e falta de sentido.” NEUROSE DE DESTINO – Prisioneiro por três anos num campo de extermínio nazista durante a Segunda Guerra Mundial, o psiquiatra e escritor aus tríaco Viktor Frankl passou por uma experiência pessoal marcante. Fundador da Logoterapia, que explora o sentido existencial do indivíduo e a dimensão espiritual da existência, Frankl distinguiu várias formas de neurose e aferiu algumas delas à incapacidade de encontrar sentido e um senso de responsabilidade em sua existência. Enquanto Freud reforçou as frustrações da vida sexual, Frankl conferiu a frustração da vontade de sentido. Em seu livro “Em busca de sentido – Um Psicólogo no Campo de
Concentração”, Frankl descreveu que todas as circunstâncias conspiravam para que o prisioneiro perdesse o controle no campo de concentração. Mas o que restava era a “última liberdade humana”, a capacidade de “escolher a atitude pessoal que se assume diante de determinado conjunto de circunstâncias”. O psiquiatra relatou que a experiência de vida no campo de concentração mostrou que a pessoa pode agir “fora do esquema”. Aquele lugar onde ele viveu podia privar a pessoa de tudo, menos da liberdade última de assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas. A pessoa não precisava ser um mero joguete e objeto das condições externas. Havia uma decisão interior. Uma decisão contra ou a favor da
sujeição aos poderes do ambiente que ameaçavam privar daquilo que é a sua característica mais essencial: sua liberdade. Frankl citou em seu livro a frase do escritor russo Fiódor Dostoiévski: “Temo somente uma coisa: não ser digno de meu tormento”. Essas palavras provaram ao psiquiatra que, inerente ao sofrimento, há uma conquista, que é a interior. Segundo Frankl, “a liberdade espiritual do ser humano, a qual não se lhe pode tirar, permite-lhe, até o último suspiro, configurar sua vida de modo que tenha sentido”. E se a vida tem sentido, da mesma forma o sofrimento necessariamente terá, pois o sofrimento faz parte da vida de alguma forma, assim como o destino e a morte.
Para o escritor, na maneira como uma pessoa assume seu destino inevitável, assumindo com esse destino todo o sofrimento que lhe é imposto, revelam-se, mesmo nas mais difíceis situações ou no último minuto de vida, fartas possibilidades de dar sentido à existência. A pessoa interiormente pode, no entanto, ser mais forte do que o seu destino exterior e transformar o sofrimento numa realização interior de valores. A sabedoria que Frankl enxergou na frase do filósofo alemão Friedrich Nietzsche resume também, de certa forma, a sua sobrevivência aos horrores do Holocausto: “Quem tem por que viver aguenta N quase todo como”. LUCIANA REICHERT é jornalista em São Leopoldo (RS)
Divulgação Novolhar
LOGOTERAPIA: “A liberdade espiritual do ser humano permite-lhe, até o último suspiro, configurar sua vida de modo que tenha sentido”
NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
11
capa
O que esperar do amanhã? A cigana leu o meu destino. Eu sonhei! Bola de cristal. Jogo de búzios, cartomante. E eu sempre perguntei: O que será o amanhã? Como vai ser o meu destino?
por Silvana Henzel
Q
uando se fala em neurose de destino, podemos entender que alguém que sofre de tal mal vive às voltas com bolas de cristal, cartomantes, videntes, ciganas ou desfolhando a flor em mal-me-quer
e bem-me-quer. Podemos pensar em alguém que vive em busca de descobrir o futuro. Pois bem, as pessoas neuroticamente estruturadas, e quando falo disso, refiro-me à maioria, carregam dentro de si suas histórias, suas vivências infantis que as constituíram da única forma como são. Portanto levam em si conflitos psíquicos que foram recalcados ou reprimidos, de origem infantil, agora inconscientes. Algumas vivências da infância foram tão intensas, por repetição ou por impacto traumático, que, ao fazer parte da constituição do sujeito, criam como que caminhos facilitados. Dizendo de outro modo: constituem um jeito inconsciente de
Divulgação Novolhar
BUSCA: Para saber do futuro, há que se procurar dentro de si mesmo
12
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
funcionar, de lidar com a vida e com as outras pessoas. Os atos e comportamentos são consequências disso. Ficamos, assim, sujeitos a repetições inexoráveis, passíveis de ser assimiladas à ideia de destino. Transferimos para a vida e para as relações clichês estereotipados inconscientes, como uma maneira de reviver, de lembrar sem conscientizar, de tentar elaborar revivendo, mas principalmente como uma maneira de manter um estado de coisas como sempre foram. Exemplo disso são as identificações inconscientes com as figuras paterna e materna ou com os desejos deles, que, sem que o sujeito perceba, obrigam-no a reproduzir atos, ideias, pensamentos e têm então uma insistência conservadora. Essa é uma dimensão constitutiva da noção de inconsciente. Então, a neurose de destino, diferente do que pensávamos, não tem a ver com descobrir o futuro, mas com des-cobrir ou re-velar o passado nesse jogo que mostra, mas esconde por ser inconsciente. E é isso que se revela em um tratamento psicanalítico: busca-se saber do inconsciente do sujeito singular que o constitui e determina por compulsão a repetir. Busca saber do que sofremos para que possamos, somente assim, criar um novo destino. Por fim, para saber do futuro, não há que se buscar na cartomante, na bola de cristal ou no jogo de búzios. Há que se buscar dentro de si, nos registros da própria história, as cartas marcadas do jogo de representações psíquicas que nos constituíram e que nos determinam como sujeitos de nosso próprio inconsciente. O futuro é imprevisível. O destiN no, não! SILVANA HENZEL é psicóloga e psicanalista em Porto Alegre (RS)
Divulgação Novolhar
capa
Felizes coincidências? por Marcelo Schneider
T
enho testemunhado tantas coincidências ao longo da vida, que, em determinado momento, passei a me perguntar se elas, afinal, não eram demonstração de algo maior do que o acaso. Foi assim que descobri a palavra serendipity. Esta edição da Novolhar dedica-se a um dos assuntos que mais tem tomado minha atenção nos últimos dez anos: destino. Dentro desse tema, serendipity é a chave para (começar a tentar)
entender a maravilhosa lógica das coisas e a presença de Deus na vida de cada um de nós. Alguns exemplos de serendipity são a aparição daquela pessoa com palavras importantes quando estamos tomando uma decisão crucial, uma carona que chega quando estamos nos sentindo perdidos ou a aparição da pessoa certa que nos mostra que não existe hora errada para o amor. Terá sido o acaso o fator determinante de tantos momentos e situações
emblemáticas ao longo da nossa vida? Não pode ser. O acaso está para a vida assim como o chuchu está para a salada. A gente sabe que está ali, mas, a rigor, ele acrescenta muito pouco ao sabor deste prato incrível que é a vida. O acaso não explica muita coisa sobre o que estamos tentando desvendar. E se explica, não se sustenta. “Estamos cumprindo nosso destino! Tudo estava escrito!”, irão decretar outros. Será mesmo? Uma das marcas mais expressivas da vida é a liberdade de escolha. Então, como sustentar tantas possibilidades de escolha se tudo já foi escolhido antes de nós? Somos, então, apenas atores encenando um roteiro previamente aprovado pelo diretor dessa tragicômica aventura? Os infinitos caminhos possíveis em cada escolha que podemos tomar são um privilégio enorme, tão grande que não cabe na caixinha da teoria de que tudo está escrito. Palavra complicada essa tal serendipity. Já tentei traduzir de tantas
>>
NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
13
formas e, mesmo assim, nunca fico satisfeito. Ela já foi considerada uma das dez palavras mais difíceis de se traduzir no idioma de Shakespeare e Mick Jagger. Trata-se de uma categoria complicada. No entanto, quanto mais a gente se apropria dela, mais se torna clara a sua presença em toda a parte. A definição mais corrente é que serendipity é “uma série de felizes coincidências”. Com isso acho que já consigo dar a você, leitor, uma vaga impressão do que estou falando. Mas tem mais. À medida que passamos a prestar atenção nessa sequência de “coincidências”, damo-nos conta de que elas funcionam em nossa vida como uma
espécie de sinalização ao longo da estrada. Por isso tratar as coincidências boas da vida como fruto do acaso pode estar fazendo a gente perder muitas oportunidades ou tornar o nosso caminho mais árduo e penoso. Voltemos aos exemplos que enumerei alguns parágrafos acima. No primeiro deles, dos conselhos preciosos que chegam em horas cruciais, cabe a nós reconhecermos que o valor das palavras de ajuda estão acima das circunstâncias que levaram essa pessoa a estar à nossa frente naquela hora. É preciso estar acima do próprio medo e preconceito para poder enxergar novos caminhos. Quanta coisa já deixamos de aprender pelo simples fato de que fechamos os ouvidos para gente
Divulgação Novolhar
>>
14
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
desconhecida ou diferente de nós? Não raro, sentimo-nos perdidos nessa jornada. Mais do que perdidos, desamparados e dependendo apenas das forças de nossas pernas para ir adiante. Mesmo assim, muitas vezes, por não enxergarmos os sinais ao longo do caminho, negamos a carona que aparece e ignoramos um sinal que a vida nos dá. Deus não escreveu a nossa história, e tampouco ele é o diretor desse filme. O roteiro de nossa vida não foi decidido antes da gente nascer. Deus desenhou a nossa história em traços simples. Ele fez e dá o suficiente para que a gente percorra o caminho com toda a liberdade, colorindo o desenho e escrevendo nossa própria história. Mas Deus não está lá em cima, jogado numa poltrona assistindo aos desdobramentos de sua criação e às mudanças de roteiros que os próprios protagonistas efetuam. Ele está aqui, ali e em toda a parte, acompanhando cada um de nós. Gosto muito de uma canção do músico inglês Sting chamada If you love somebody set them free (Se você ama uma pessoa, liberte-a). Que desafio para o nosso egoísmo! Amar não significa corrigir a pessoa amada, tentar reescrever sua vida, de acordo com nossos valores e prioridades. Quem ama liberta. Então, no amor que Deus tem pelas pessoas, não existe espaço para uma leitura fatalista da vida como fruto do destino. O amor Dele nos liberta – até para que a gente negue sua própria existência (de Deus ou do amor). Serendipity é uma das tantas formas de Deus acompanhar aqueles que ama. Há tantos sinais deixados por Ele ao longo da estrada. Você já percebeu? N MARCELO SCHNEIDER é teólogo e trabalha para o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Porto Alegre (RS)
capa
Uma serpente decide por nós? Muitas vidas foram interrompidas prematuramente na tragédia em Santa Maria. Choro, dor, tristeza, inconformidade e perguntas insistentes: Por quê? Negligência humana? Fatalidade? Destino? Vontade de Deus? Há livre-arbítrio? por Yedo Brandenburg
>>
ERASMO DE ROTERDÃ: Pensador humanista respeitado na época de Lutero, defendia que temos livre-arbítrio, isto é, que somos capazes de escolher e decidir sobre o rumo que queremos dar à nossa vida
Reprodução Novolhar
N
a Alemanha do século 16, pensava-se que o ser humano podia contribuir para sua salvação eterna por meio de boas obras. Em 1524, o humanista Erasmo de Roterdã escreveu “Da vontade livre” (De libero arbitrio). Diz Erasmo: “Por liberum arbitrium entendemos a força da vontade humana pela qual o ser humano pode voltar-se para as coisas que levam à salvação eterna ou afastar-se delas”. Erasmo era da opinião de que o ser humano ainda possuía uma capacidade de escolha frente à sua salvação, ou seja, livre-arbítrio. O reformador Martim Lutero respondeu, em 1525, ao escrito de Erasmo com “Da vontade cativa” (De servo arbitrio). Para Lutero, o livre-arbítrio é sem fundamento, pois o ser humano já nasce escravo do pecado devido à queda (Gênesis 3). Ele não tem controle nenhum sobre sua salvação, haja vista que sua vontade sempre está atrelada à de outrem. A vontade humana é
cativa de Deus ou de Satanás tal qual um cavalo que obedece às rédeas de quem o monta: “Se Deus está sentado nele, ele quer e vai como Deus quer... Se Satanás está sentado nele, ele quer e vai como quer Satanás, e não está em seu arbítrio correr para um dos dois cavaleiros ou procurá-lo; antes, os próprios cavaleiros lutam para o obter e possuir” (Obras Selecionadas de Lutero, v. 4, p. 49). Por conseguinte, a pessoa sempre será “possuída” por Deus ou por Satanás. Salvação nunca é a conjugação de esforço humano e graça divina. Unicamente pela graça de Deus, mediante o poder do Espírito Santo, e pela fé em Cristo, a pessoa é tornada livre de Satanás e encontra sua verdadeira identidade. Decorre daí a liberdade cristã. O livre-arbí trio é, portanto, prerrogativa ex-
NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
15
>>
clusiva de Deus. Isso é libertador, pois não cabe a nós julgarmos se pessoas são salvas ou condenadas no juízo final. Lutero, no entanto, não exclui o livre-arbítrio no que diz respeito à escolha de profissão, amigos, cônjuge etc. Serpente – Há um livro do teó logo Harvey Cox intitulado “Que a serpente não decida por nós”. Segundo Cox, a vida humana é feita de decisões. Somos responsáveis pelas escolhas que fazemos. Tem sido comum identificar o orgulho (hybris) como o mais perigoso pecado humano. O ser humano quer assumir o lugar de
Deus, deixar de ser criatura para ser o criador. Gênesis 3, contudo, mostra que o problema não é o orgulho, mas a nossa preguiça, a nossa pouca disposição para ser o que Deus nos destinou: sua imagem (Gênesis 1.27). Antes de estender o braço para o fruto, Eva renunciou à sua posição de poder e responsabilidade para com um dos animais. Também Adão foi preguiçoso ao não cumprir a vontade de Deus e ao transferir a responsabilidade e a culpa de seu ato para Eva e até para Deus (Gênesis 3.12). Adão e Eva não assumiram a responsabilidade pela escolha de seu destino. Deixaram isso à “serpente”.
Reprodução Novolhar
MARTIM LUTERO: Em sua resposta a Erasmo, o Reformador definiu que o ser humano não tem liberdade de escolha diante de Deus, pois já nasce escravo do pecado. Ele só tem livre-arbítrio para escolher coisas como profissão, amigos...
16
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
O ser humano foi criado para modelar e realizar seu destino a partir da palavra de Deus. Jogamos nosso destino fora ao permitir que uma “cobra” qualquer nos diga o que fazer e abdicamos da administração responsável do mundo a nós confiado. Responsabilidade – Na tragédia da boate Kiss são apontadas várias causas: negligência, superlotação, fiscalização insuficiente, estrutura deficiente e uso de pirotecnia inadequada em ambiente fechado com produtos de revestimento altamente inflamável e tóxico. Descaso, preguiça e administração incompetente fazem, portanto, parte do quadro que resultou em tantas mortes. Nós fomos criados para decidir, modelar e realizar nosso destino sob a vontade de Deus. Ao cedermos esse privilégio a alguém outro, perdemos nossa identidade. Em Jesus Cristo, porém, nós temos o Segundo Adão, que assume integralmente a imagem de Deus e a responsabilidade daí decorrente. Em Cristo, o Deus crucificado solidariza-se com quem sofre. Por meio da ressurreição de Cristo, Deus protesta contra a morte tão presente em nosso cotidiano e dá-nos a esperança por um novo tempo. No que concerne à salvação eterna, nós dependemos da graça de Deus. Não há livre-arbítrio, mas vontade cativa. Mas também no tocante às coisas deste mundo, nós somos seres “possuídos” por Deus ou por Satanás. Roguemos, pois, a Deus para que nosso pensar, falar e agir sejam orientados por Cristo e direcionados para a administração responsável do que foi confiado a nós. Não permitamos que uma “serpente” qualquer N decida por nós! YEDO BRANDENBURG é teólogo e editor da Comissão Interluterana de Literatura (CIL)
Divulgação Novolhar
capa
Fé e destino por Friedrich Gierus
A
s perguntas que, entre outras, sempre ocuparam a mente humana são: Onde estou? De onde eu venho? Qual o sentido de minha existência? Qual meu destino? Os primeiros três capítulos da Bíblia procuram dar respostas a essas indagações. A Bíblia afirma que Deus é o autor do universo e da vida – de toda forma de vida. O ser humano, tendo sido “criado à imagem de Deus” (Gênesis 1.27), é incumbido com a responsabilidade de cuidar dos animais, da natureza e do meio ambiente. Ao mesmo tempo, Deus impõe uma limitação: a proibição de comer da árvore do bem e do mal (Gênesis 2.17). Em seguida, a
Bíblia mostra que a desobediência teve sua consequência: Adão e Eva foram expulsos da proximidade imediata de Deus, sofrem uma drástica diminuição da qualidade de vida e uma limitação radical. O salmista descreve essa limitação assim: “Os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; nesse caso, o melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapidamente e nós voamos” (Salmo 90.10). Inocência perdida – O que a Bíblia quer transmitir nos primeiros capítulos podemos observar nas crianças. Fala-se muito na inocência das crianças. De fato, não sabem muito
sobre o que é bom e o que é mau, o que prejudica e o que constrói. Por isso perguntam muito “por quê?”, e os pais têm dificuldade para dar sempre respostas à altura da pergunta. As crianças aprendem perguntando, experimentando, tateando. Aos poucos, descobrem seu “eu” e perdem sua “inocência”. Lembro-me de uma observação que fiz um dia. No pátio, meu filho brincava com seus amiguinhos. Em determinado momento, começaram a jogar areia e pedras uns nos outros. Eu chamei a atenção para o perigo dessa brincadeira. A gurizada não parou de jogar pedras – e uma delas quebrou o vidro da janela da igreja. Furioso, saí de novo para o pátio e perguntei: Quem foi? A resposta não foi de crianças inocentes. Pois cada guri apontou para seu vizinho. Fugindo da responsabilidade – Isso nos remete de volta ao paraíso de Gênesis. Adão não assumiu sua
>>
NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
17
>>
desobediência. Empurrou a culpa para Eva. E, por fim, para Deus. Pois ele afirmou: “A mulher que (tu) me deste...”. Analisando bem o comportamento do cidadão, da sociedade, dos povos no mundo, podemos afirmar que os três capítulos da Bíblia estão descrevendo o que aconteceu sempre e acontece hoje. No exemplo das crianças, já mostrei o quanto o ser humano protege sua “integridade”, empurrando a culpa para os outros, e assim coloca seu eu acima de todos (isso também acontece nas igrejas).
o problema desenhado pelo apóstolo Paulo é bem a realidade também em nossa vida. Se nenhum sistema político, nenhuma ideologia, nenhuma organização religiosa é livre de preconceitos, mas prega a discriminação, faz diferença entre pobre e rico, não consegue limitar a poluição, evitar a destruição do meio ambiente e dar o mínimo de garantia de sobrevivência e de qualidade de vida, não sobra muita esperança para nosso planeta. E nosso destino está selado. Ficamos sem esperança.
Mundo perdido – O apóstolo Paulo afirma de si: “Não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço. Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim”. Todos nós temos momentos na vida em que
Esperança da fé – O nascimento, a vida, a morte na cruz e a ressurreição de Jesus são a resposta de Deus, sua interferência no destino da humanidade para acender uma luz de esperança, que vai além da morte. Através de sua pregação, sua maneira de tratar as pessoas, seu jeito de valorizar os excluídos, enfim, de viver, orar, servir e amar, Jesus alimentou uma esperança que vai além da morte. Como ressurreto, Jesus mostrou que o caminho para a vida é possível. Ele nos convida a seguir seu exemplo. Agarrando suas mãos estendidas na fé, somos capazes de acender a luz da esperança. Somos pessoas que sabem de suas fraquezas e limitações, que sabem de sua condição de pecadores, mas também sabem do perdão e da promessa de Jesus: “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, eu vos aliviarei” (Mateus 11.28). Nesses termos também podemos interpretar o lema que a IECLB escolheu para o ano de 2013: “Eu sou o seu Deus. Eu lhes dou forças, ajudo e protejo com a minha forte mão” (Isaías 41.10). Essa promessa vale para todos os seres humanos, N sem distinção.
Divulgação Novolhar
DILEMA: Querer o bem e fazer o mal
18
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
FRIEDRICH GIERUS é teólogo e ministro emérito da IECLB em Blumenau (SC)
Meu destino é perdoar por Marilena Marasca
C
omo perdoar o mal que sofremos? Quando somos atingidos em nossa integridade física, psicológica, moral ou espiritual, é como se uma parte de nós mesmos tivesse sido profanada. Qual é a reação frente à ofensa? As respostas mais instintivas são a raiva e o desejo de vingança, de justiça. A satisfação trazida pela vingança dura pouco, e ela nunca compensa o que foi perdido. O efeito é que envenenamos a alma, e o ódio destrói quem odeia e não o odiado. Outra reação é permanecer num constante estado de ruminação; a raiva se disfarça em ressentimentos. O rancor que a gente mastiga dentro de si mostra que a ferida se tornou uma infecção crônica. Esse estado emocional negativo destrói o sistema imunológico. Podemos também escolher perpetuar em nós mesmos e nos outros o mal sofrido. Quando somos machucados profundamente, é como se o ofensor tivesse entrado em nossa intimidade. Segundo a psicanalista francesa Marie Balmary, “nós carregamos a ofensa que nos foi feita como se fôssemos os autores e acabamos cometendo os mesmos atos”.
DESCER NO FUNDO – Aquele que quer voltar a viver plenamente depois da ofensa não pode economizar um trabalho de interiorização. A ofensa nos conduz à necessidade de abrir caminho dentro de nós, de olhar o que foi destruído, de questionar a nossa identidade, de buscar quem somos realmente. Humildemente, devemos aceitar o estado de impotência que o sofrimento impõe e perder aquilo que havíamos imaginado para a vida. Cada um de nós construiu um modelo, uma ideia sobre a vida, e nós somos contrariados a ter que tomar um outro caminho. Fazer esse caminho permite cortar a ligação imaginária que tínhamos com o agressor, sair da ilusão de que é necessário que a injustiça seja reparada para poder começar a viver e ver, enfim, que é justamente essa reivindicação de justiça que nos impede de viver. PERDOAR – Curiosamente, é aquele que sofreu a ofensa que pode mais facilmente tomar a iniciativa do perdão. Isso porque é ele quem conhece o mal que foi feito. Simone Weil escreve em seu livro “La pesanteur et la grâce”: “O inocente que sofre sabe a verdade sobre seu algoz, o algoz não o sabe. O mal que o inocente sente nele mesmo está no seu algoz, mas ele não é sensível”. O algoz não está consciente de que o mal que ele comete o destrói tanto quanto aquele que sofre seu ato. “A vítima é menos cega do que o algoz.” Entre os dois é o algoz que está mais perdido e que necessita de
Divulgação Novolhar
Outros ainda podem negar a ofensa. Eles escolhem ignorar o que se passou, pensam que as coisas vão voltar a ser como antes. Para o filósofo francês Vladimir Jankélévitch, “existe uma coisa que Deus mesmo não pode fazer: fazer com que as coisas feitas não tenham jamais sido feitas”.
Perdoar a si mesmo e ao outro são dois movimentos inseparáveis
mais ajuda, pois ele deve reconhecer o mal que está nele. É por isso que filósofos e teólogos falam que tomar a iniciativa de perdoar é algo profundamente favorável ao ofendido; é ele que tem todas as vantagens nesse processo; é ele quem “ganha”. Em outras palavras, podemos escolher perdoar o outro para “fazer o bem a nós mesmos”. Pois o perdão tem uma função reparadora. Ele oferece a possibilidade de existir de novo. Mas nunca é fácil chegar a esse perdão. Lytta Basset, teóloga, pastora e psicanalista suíça, diz: “Não é natural perdoar. Um perdão fácil tem toda a possibilidade de ser um perdão não autêntico. Sem um trabalho de fundo, o perdão pode ser superficial”. Todo voluntarismo nesse processo precisa ser evitado. Não é uma questão de vontade nem de obrigação moral, mas de caminho interno. Para perdoar, devemos abandonar duas imagens: a minha, a boa, a intacta, e a do agressor como sendo um monstro, alguém irrecuperável, definitivamente perdido. “Perdoar a si mesmo e perdoar o outro são dois movimentos inseparáveis”, explica Basset. A expressão de revolta também é uma etapa importante. Nós temos o dever de censurar o agressor para
expulsar o mal. É uma ilusão acreditar que vamos chegar a perdoar esquecendo ou não censurando a ofensa. Ao contrário, quando dizemos exatamente aquilo que nos machucou, o perdão tem mais possibilidade de acontecer. As pessoas que podem dizer “eu perdoo, mas não esqueço” tem boa saúde. Mas isso não quer dizer que nós podemos nos reconciliar com a pessoa que nos ofendeu. Perdoar é um ato de liberdade individual. Somos colocados frente a esta escolha: deixar sair o mal sofrido (o verdadeiro sentido do perdão) ou retê-lo? Na realidade, se nós recusarmos o perdão, afundamos no lodo com o outro. Ou então, se nós escolhermos tomar o mal do outro sobre nós, nosso sofrimento tornar-se-á redentor, pois nós transfiguramos o mal. Pessoas que fizeram essa escolha tornaram-se, por meio desse ato de amor, bem mais fortes, mais humanas, ricas em vida interna. Por outro lado, aquelas que não deixaram o mal partir de si afundaram em depressão ou autodestruição. Então, perdoar é o destino de todo ser humano que quer N escolher a vida acima de tudo. MARILENA MARASCA é jornalista, psicoterapeuta e trabalha num centro espiritual dos jesuítas em Lyon, na França NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
19
ESPECIAL
Um novo olhar em 50 edições A revista Novolhar chega à sua 50ª edição. Ao longo de quase uma década, a publicação discutiu temas relevantes para a comunidade e para o mundo com compromisso e qualidade. por Luciana Thomé
A
porta da sala abre, e você entra. Logo à frente, uma grande janela de vidro ilumina a mesa de madeira, cercada por uma dezena de cadeiras. Duas térmicas, xícaras e algum lanche indicam que o trabalho vai render, começando às 9h e terminando perto do meio-dia. Num dos cantos, um quadro branco com o planejamento das páginas e a divisão das matérias. A equipe editorial está a postos e pronta para decidir os enfoques e textos que serão publicados. Em suas mãos, a edição número 50 da revista Novolhar. Você é nosso convidado hoje: seja bem-vindo a essa retrospectiva especial. Foi exatamente como a descrição acima que participei, pela primeira vez, de uma reunião de pauta da revista Novolhar. Era maio de 2010, e a publicação já existia desde 2003. Então foi com prazer que aceitei fazer esse “passeio” pelas 49 edições da revista com o objetivo de elaborar um texto apreciativo para a 50ª edição. “É possível” – Essa foi a chamada da primeira Novolhar, publicada em dezembro de 2003. E já apresentava os objetivos principais da editora e da equipe reunida para executar a tarefa: fazer uma publicação plural que estivesse ligada aos princípios da IECLB, mas que falasse sobre o mundo. Estava sendo plantada a primeira ideia, a semente: mensagens, reflexões, notícias e perfis, além de textos sobre agricultura familiar, lideranças e paz. A última página publicava a (agora já tradicional) seção Penúltima Palavra, com artigos de profissionais de diferentes áreas. Na parte gráfica, foram muitos os avanços editoriais conquistados ao longo das 50 edições. O projeto gráfico foi ficando cada vez mais limpo e objetivo, priorizando a matéria
20
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
OS TEMAS DAS 50 EDIÇÕES Número 1 – É possível Número 2 – Dádiva e cuidado Número 3 – Jovem – Sonho e atitude Número 4 – Educação – Compromisso com a inclusão Número 5 – Felicidade – Quem não a quer? Número 6 – Água Número 7 – Turismo Número 8 – Mais vida aos anos Número 9 – Criatividade Número 10 – A riqueza da diversidade – Etnias e culturas Número 11 – Joga comigo! O prazer de brincar Número 12 – Planeta multimídia Número 13 – Nós e as árvores Número 14 – Cultura – Patrimônio de todos os povos Número 15 – Vida com qualidade Número 16 – Chá – Tradição / satisfação / terapia Número 17 – Cidadania ética – Um quebra-cabeça para montar em parceria Número 18 – Reconciliação Número 19 – Descanso – Tempo de brincar e meditar Número 20 – Dinheiro – Como surgiu e como é usado Número 21 – Identidade em construção – História e realidade dos negros Número 22 – Tem pai de todo jeito – Família e paternidade responsável Número 23 – 200 anos de imprensa no Brasil Número 24 – O pão nosso de cada dia
Número 25 – Música – O toque da alma Número 26 – Adolescência – Eta fase complicada Número 27 – A lição do lixo Número 28 – O nó da mobilidade Número 29 – Clima Número 30 – Bíblia Número 31 – Alimentação – Você é o que você come Número 32 – Casa – Lugar para viver Número 33 – Trabalho – Um direito e um dever Número 34 – Prevenção e saúde Número 35 – Reconstruindo a família Número 36 – Fé e ciência – Humildade e diálogo Número 37 – Ler faz crescer Número 38 – Internet e família Número 39 – Morte e ressurreição Número 40 – Sustentabilidade – Em defesa do planeta Número 41 – As idades do ser humano Número 42 – Quem é Jesus Cristo? Número 43 – Folclore – Brasil multicultural Número 44 – Um olhar sobre o mundo feminino Número 45 – O que é missão Número 46 – Crises conjugais Número 47 – Os desafios da educação Número 48 – Virtudes Número 49 – Ser / participar / testemunhar – Eu vivo Comunidade Número 50 – Destino, poder de escolha?
principal e seus textos secundários. As revistas passaram a contar com a produção e o empenho de jornalistas, que incrementavam ainda mais a discussão, alinhando os seus textos aos de especialistas convidados. Na edição de março/abril de 2007, a Novolhar passou a ter periodicidade bimestral (antes era trimestral). E, a partir do número 20, iniciou a discussão de temas importantes da vida em sociedade, como a questão do dinheiro. O projeto gráfico foi ainda mais aperfeiçoado e, com o passar das edições, as matérias principais ficaram mais definidas, trazendo a apresentação do tema na abertura e abrindo os vários leques possíveis de debate em textos secundários. Nitidamente, a revista possuía, desde a sua criação, um compromisso com a missão e com a palavra cristã. Muitos temas de capa falaram sobre fé e religião, enfocando prioritariamente essas questões e trazendo outras notícias do mundo para dentro da revista. O tempo foi passando, e ocorreu um movimento em sentido contrário: a revista virou-se para o mundo e passou a debater temas relevantes e, muitas vezes, polêmicos, introduzindo novas informações e conhecimentos para a comunidade leitora. Sempre com coragem, profissionalismo e fornecendo uma visão positiva e renovadora sobre os problemas. Os assuntos ligados às relações humanas e suas mudanças e ao aspecto humano do mundo foram a maioria. As manchetes ressaltaram os jovens, a nova família, as crises conjugais, a criatividade e o envelhecimento. A revista também investiu no debate social, falando sobre educação, inclusão, cidadania, realidade dos negros, conquistas das mulheres e muitos direitos básicos atuais (trabalho, moradia, alimentação e saúde).
A Novolhar não esqueceu da cultura e enfatizou a riqueza existente no Brasil, o patrimônio dos povos, o folclore, além de itens essenciais para o dia a dia, como o pão, o chá, a música e a leitura. Também abordou o desenvolvimento, destacando o turismo, falando sobre a relação das pessoas com o dinheiro e os problemas da mobilidade e do transporte urbano. E, mantendo-se ligada às tendências, discutiu o meio ambiente, com temas como a preservação dos recursos, a água, a reciclagem, as mudanças climáticas e a sustentabilidade e falou sobre o mundo atual, debatendo a influência da internet, as novas multimídias e a questão da África do Sul e as heranças do apartheid. Desde o início, a equipe editorial também se preocupou em disponibilizar o rico conteúdo da revista nos meios eletrônicos de comunicação. Todo o conteúdo da Novolhar está disponível no site www.novolhar. com.br, espaço onde também notícias de última hora são divulgadas periodicamente, mantendo o público informado sobre fatos que a linha editorial da revista contempla. O aprimoramento da publicação é visível ao longo das edições. E pensar que tudo começa dentro de uma sala da Editora Sinodal e acaba em suas mãos, entregue em sua casa. A revista já muito se diferencia de outras publicações de entidades e comunidades. E, com certeza, continuará avançando, rompendo barreiras e apresentando temas relevantes que precisam estar no centro dos debates. É esse o tipo de motor que faz o mundo girar e que, acima de tudo, pode trazer a semente da mudança e da renovação, construindo a sociedade que queremos. N LUCIANA THOMÉ é jornalista em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
21
IMPUNIDADE
Saída: mudança nas leis por Vera Nunes
22
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
Divulgação Novolhar
“A
responsabilidade por toda a impunidade que assola a sociedade brasileira é sua, minha, de todos nós” – com essa frase o desembargador Túlio de Oliveira Martins tenta apontar um problema num país onde os crimes são muitos e as punições tão poucas. Para ele, a dificuldade está na legislação vigente, no legislador e, por consequência, em quem o elege. Ele vai além: “Enquanto continuarmos elegendo pessoas sem compromisso, celebridades, trocando o voto por favores, nada vai mudar”, sentencia. Ele lembra que a Câmara está prestes a aprovar uma lei que obriga o fornecimento de xampu, condicionador e creme hidratante para os presidiários. Ao juiz, esclarece, cabe cumprir o que determina a lei, muitas vezes parecendo absurdo aos olhos da sociedade. Existem muitas leis, mas as penas são extremamente brandas, na opinião do desembargador e presidente do Conselho de Comunicação Social do Tribunal de Justiça do RS. Segundo Túlio Martins, a origem do problema está na Constituição de 1988, construída ainda sob o espectro da guerra fria no mundo e da ditadura
TÚLIO MARTINS: Muitas vezes, o juiz vive um impasse: se manda para a cadeia alguém que não cometeu um crime grave, sabendo que lá ele só vai piorar, ou se deixa a vaga para alguém mais perigoso. Presídios abarrotados fazem o preso entrar em acordo com o grupo dominante, e isso é um caminho sem volta, com raríssimas exceções
no Brasil, quando a sociedade clamava por direitos e liberdade. “Hoje, já temos essas garantias asseguradas, passaram 25 anos, e ninguém tem medo de ditadura. Já se pode falar, sim, na necessidade de revisar a Constituição, aprovando regras mais severas”, afirma.
Na legislação atual, prossegue o desembargador, a presunção da inocência transformou-se em inocência absoluta. Além disso, lembra ele, muitas vezes, o juiz vive um impasse: mandar para a cadeia uma pessoa que não cometeu um crime tão grave, sabendo que lá ela só vai piorar, ou deixar a vaga para alguém mais perigoso. “Os presídios estão abarrotados, e a tendência do preso é ficar em acordo com o grupo dominante. É um caminho sem volta, com raríssimas exceções”, observa. Diante desse quadro, Túlio Martins não vê outra saída senão o
esclarecimento da opinião pública e o consequente clamor social pela mudança. O caso do “mensalão”, acredita, será emblemático nessa tomada de consciência, já que, diante de tantos recursos e embargos processuais, poucos cumprirão penas. “Acho que assim a sociedade vai entender por que é preciso mudar a lei”, avalia. Para o advogado Carlos Alberto Cavalheiro, a sociedade é um sistema no qual a previsibilidade da aplicação das regras é a garantia de seu funcionamento. “Ocorre que essas regras têm que valer para todos os integrantes da sociedade. Quando o sistema falha na sua aplicabilidade, cria o sentimento de impunidade”, observa. Especialista em Processo Civil e mestre em Direito Público, advogando desde 1994 na área de contratos públicos e licitações, ele reconhece que a compreensão que se universalizou é que basta ter dinheiro (e aí não importa a que custo) para que um indivíduo (ou empresa) não esteja sujeito às regras que deveriam ser observadas e, quando não cumpridas voluntariamente, impostas a todos. “Esse sentimento mostra-se visível desde o simples estacionar um automóvel em fila dupla, por
exemplo, até o desempenho de cargos públicos, em que a compreensão é servir-se da coisa pública em proveito pessoal ou do grupo político do qual se faz parte.” Assim, observa, “não é o sistema que favorece a impunidade, é a opção político-ideológica do povo brasileiro”. “Entenda-se, aqui, ideologia como o conjunto de valores que orientam as escolhas pessoais de cada um. Vivemos numa sociedade que se orgulha em gritar: ‘eu tenho, você não tem’. Então somos igualados pelo sentimento de impunidade: certeza de não haver punição”, observa. Na opinião de Cavalheiro, para haver mudanças, “precisamos criar um pacto social de rejeição a atos ilegais (inclusive os de trânsito) dentro de nosso microcosmo de relações pessoais, amigos e parentes, como a imposição de uma multa moral. Uma vez claro o nosso dever de proteger o sistema, poderemos exigir isso de outros grupos, já que não é o rigor da punição que cria o respeito ao sistema, mas o nível de consciência e de educação da população”, afirma N o advogado. VERA NUNES é jornalista em Porto Alegre (RS)
NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Fev 2013
23
CIDADES
Divulgação Novolhar
por Rui Bender
BICICLETÁRIO: A locação de bicicletas em Paris é um sucesso: 23 mil delas espalhadas por 1.700 pontos abertos 24 horas por dia
Mobilidade saudável por Emannuel Costa
O
desafio da mobilidade urbana no século 21 é ser sustentável dentro de uma lógica consumista. Mas, antes de pensar em diferentes meios de transporte, precisamos libertar-nos da dependência do automóvel. É possível? Ainda vivemos sob a mesma estrutura da cidade do século 20: a cidade do carro, onde ruas são mais importantes do que calçadas, estacio-
24
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
namentos merecem mais espaço do que parques e viadutos existem para carros e não para pedestres. O assunto é complexo, mas basicamente essa dependência pode ser explicada por dois motivos. O primeiro é economia: o automóvel é uma mercadoria e possui papel fundamental na regulação da economia brasileira. É um fato histórico, ligado à consolidação da indústria automobilística no país até os dias de hoje: no ano passado, o governo adotou um grande pacote econômico para garantir redução
dos impostos sobre a compra de automóveis, um evidente estímulo ao aumento do consumo, em função do próprio crescimento econômico e do fácil acesso ao crédito. O segundo é cultural. Ao longo do tempo, o automóvel foi legitimado como um símbolo do bem-estar e prosperidade da vida contemporânea e, se antigamente o carro era um bem de consumo de luxo destinado a poucos afortunados, hoje há marcas e modelos para todos os gostos e condições financeiras. São itens de série, designs e opcionais que dividem o “carro do rico” e o “carro do pobre”; o “carro de homem” e o “carro de mulher”; o “carro de jovens” e o “carro de idosos”. O consumidor é constantemente tentado ao desejo por meio dos mais variados tipos de mídia, e cria-se o hábito da “paixão do brasileiro por carro”.
Divulgação Novolhar
O futuro é animador, apesar de nossa dependência do automóvel. Já existem algumas soluções em prática para que as cidades sofram menos com trânsito e poluição. Uma boa estratégia é buscar referências e inspirações para um projeto viável dentre os diversos modos de transporte alternativo, tais como: BRT (ônibus rápido, com faixa exclusiva), VLT (veículo leve sobre trilhos), Trem de Superfície, Bicicleta, Teleférico, Transporte Marítimo ou Fluvial, Metrô, e até mesmo a caminhada com calçadas seguras e equipadas também é considerada. Claro, desde que em concordância com um plano maior para que os meios de transporte se adaptem à cidade da maneira que melhor convir, e não o contrário. Dois exemplos simples e eficazes. Paris, além de possuir um dos melhores sistemas de metrô, conta desde 2007 com o Vélib’, sistema de aluguel de bicicletas, que oferece 30 minutos gratuitos de pedalada e uma taxa adicional pelo tempo extra de utilização. Funciona 24h por dia, sete dias por semana. Hoje são 23 mil bicicletas em 1.700 pontos espalhados pela cidade.
FREEBEE: Ônibus 100% gratuito em Sheffield Inglaterra, para reduzir carros na região central
Em Sheffield, na Inglaterra, há o FreeBee, serviço 100% gratuito de ônibus que circula apenas na região central, de segunda a sábado, e é totalmente integrado com trem, ônibus e até mesmo estacionamentos de carro. A ideia é diminuir o fluxo de trânsito sem necessariamente tirar do cidadão a opção do trem ou do carro próprio. É importante frisar que simplesmente copiar ou importar modelos prontos e bem-sucedidos não é uma solução viável. Cada cidade possui uma realidade geográfica distinta,
que favorecerá um ou outro modo de transporte. Todavia, antes de adotar um projeto que seja viável, a primeira solução para uma mobilidade urbana decente é desenvolver políticas públicas para desacostumar o cidadão a utilizar o carro, de maneira segura e economicamente sustentável. A partir disso, será muito mais fácil adotar hábitos sustentáveis para a mobilidade em nossas cidades. N EMANNUEL COSTA é bacharel em Geografia e mestrando em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade pela UFSC em Florianópolis (SC)
Aqui nós cuidamos de suas contas. Para que você aproveite a vida tranquilo. Av. Alberto Bins, 392 - Conj. 1003 Centro Histórico - Porto Alegre/RS - CEP 90.030-140 contato@ludwigelocatelli.com.br
51 3062.1277
assessoria | consultoria | contabilidade NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
25
nutrição
Alimente-se com qualidade
Frutas, muitas frutas, pelo menos cinco tipos diferentes todos os dias
COMER BEM NÃO É COMER MUITO OU DEIXAR DE COMER. DESDE A ESCOLHA DO ALIMENTO ATÉ O MODO DE MASTIGAR SÃO FATORES DETERMINANTES DA BOA ALIMENTAÇÃO. por Yole Brasil Luz
P
ara falar em alimentação sadia, é necessário conhecer e aplicar os princípios básicos para uma nutrição saudável, independente de fazer as refeições em casa ou na rua. Vamos começar pelos líquidos: ingerir de seis a oito copos de água diariamente, fora das refeições. A mastigação adequada é outra aliada nossa. Mastigar corretamente proporciona maior saciedade e auxilia-nos a não cometer excessos alimentares. O número de refeições diárias é mais um fator que nos ajuda na busca de qualidade alimentar. Pelo menos cinco refeições devem fazer parte de nosso dia a dia: café da manhã, lanche, almoço, lanche da tarde e jantar. Intervalos muito grandes entre uma refeição e outra aumentam nosso apetite, e a consequência é que ingerimos quantidades maiores do que necessita nosso organismo. O segredo é não sentir fome. Mas o que comer para ajudar nosso organismo? O arroz (de preferência integral) e o feijão são uma combinação perfeita no almoço. Os
26
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
vegetais crus, de cores variadas, devem estar presentes no almoço e no jantar. Criatividade é importante para deixá-los apetitosos, como por exemplo: acrescentar azeite de oliva, ervas aromáticas, queijos, grãos torrados (amêndoas, gergelim). Peixes, como salmão, sardinha e atum, são ricos em ômega 3, 6 e 9, que nos auxiliam a controlar os níveis de colesterol, devendo aparecer nas refeições no mínimo duas vezes por semana. Evite as frituras, dê preferência aos grelhados e assados. Frutas, muitas frutas, pelo menos cinco tipos diferentes todos os dias. Na hora do lanche, lembre das oleaginosas como castanhas, nozes e amêndoas, ricas em gordura monoinsaturada e poli-insaturada, vitaminas e minerais, que podem ser carregados até no bolso, já que três ou quatro unidades são suficientes. Frutas secas são outra alternativa. Em relação às quantidades diárias de calorias necessárias para cada indivíduo, é preciso levar em consideração idade, sexo, atividade física e intelectual, altura, metabolismo e outras características. Na dúvida, pro-
Os vegetais crus, de cores variadas, devem estar presentes no almoço e no jantar. Criatividade é importante para deixá-los apetitosos, como por exemplo: acrescentar azeite de oliva, ervas aromáticas, queijos, grãos torrados (amêndoas, gergelim)
Peixes, como salmão, sardinha e atum, são ricos em ômega 3, 6 e 9, que nos auxiliam a controlar os níveis de colesterol, devendo aparecer nas refeições no mínimo duas vezes por semana. Evite as frituras, dê preferência aos grelhados e assados
SUCOS: A opção por sucos naturais é prática e de fácil aceitação, mas é preciso desenvolver o hábito desde pequeno
FAÇA VOCÊ MESMO: Alimentos preparados em casa, como bolos, sanduíches, cookies, são ótimos, ainda mais se envolvermos nossos filhos na confecção
cure um profissional de nutrição, que vai ajudá-lo a equilibrar suas refeições. As crianças necessitam e muito de nossa atenção nesse quesito. Bombardeadas pela mídia, o apelo para o consumo de salgadinhos e outros alimentos pobres em nutrientes é grande. O cuidado na elaboração do lanche que vai para a escola já é um bom começo, mas nosso exemplo é muito mais convincente para os pequenos. Alimentos preparados em casa, como bolos, sanduíches, cookies, são ótimos, ainda mais se envolvermos nossos filhos na confecção. Nos produtos prontos, ler com atenção sua composição, cuidando do teor de sódio, gordura trans e açúcar refinado. Negociação é a palavra-chave na hora de sugerir uma fruta com alguma guloseima. Quando o lanche for uma fruta, tenha o cuidado para que ela se apresente agradável aos olhos e ao paladar da criança. Frutas descascadas devem ser consumidas em seguida, pois perdem muito de seus nutrientes quando em contato com o ar, além da alteração da cor. O ideal é levar aquelas que podem ser consumidas com casca ou que sejam fáceis de descascar, como pera, maçã, ameixa, banana ou bergamota. A opção por sucos naturais é prática e de fácil aceitação, mas é preciso desenvolver o hábito desde pequeno. Iogurtes também são bem aceitos e muito nutritivos. Uma dica é acrescentar cereais integrais como aveia, flocos de arroz ou milho, mel, açúcar mascavo e linhaça. Hoje em dia, é fácil alimentar-se com qualidade. A oferta de produtos é grande e variada. A informação nutricional no rótulo dos alimentos pode não ser muito visível, mas é obrigatória e ajuda-nos a decidir a favor de uma nutrição saudável. N YOLE BRASIL LUZ é especialista em Nutrição Clínica em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
27
REDES SOCIAIS
A arte de bloquear amigos por Oliver Burkeman
A
tecnologia nos expõe a uma gama enorme de conexões sociais. Facebook e Twitter são exemplos dessa nova dinâmica de possibilidades. Para muita gente, o acúmulo de novos amigos e seguidores torna-se uma obsessão. Não há como sentir-se sozinho cercado de tantos contatos. No entanto, a mesma plataforma que possibilita tantas amizades também gera novos dilemas. Com o passar do tempo, a partir de fatores subjetivos, surge a vontade (às vezes necessidade) de apagar alguém de nossa lista de contatos. Há quem diga que “deletar” um amigo ou bloquear um seguidor é o tapa na cara da era das redes sociais. A tarefa é muito complicada e, não raro, acaba mostrando um lado de nossa personalidade que preferimos manter longe das câmeras. O próprio Facebook, por exemplo, tenta diminuir as possibilidades da gente poder apagar alguém de nossa lista, oferecendo nuances de distanciamento entre as pessoas, como classificá-las de acordo com o grau de proximidade ou simplesmente escolher deixar de ler o que elas escrevem. Longe de querer promover as amizades ou a paz mundial através de infinitas inter-relações, o objetivo da criação desses mecanismos é puramente comercial. Quanto mais estivermos interligados, mais os anúncios circulam entre públicos-alvo afins. São muitos os fatores que levam a gente a decidir romper a fina membrana que nos conecta a alguém no universo das redes sociais. Entre nossos contatos há amigos com quem a gente quer dividir tudo, mas há outros que a gente mal conhece. É verdade que
28
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
FACEBOOK E TWITTER: O acúmulo de amigos nas redes sociais torna-se uma obsessão para muitos. Isso tem traços similares ao do consumismo desenfreado. O que antes era restrito à vida real, agora nos coloca no risco de ter amigos supérfluos, que podem parar no limbo das relações
podemos criar listas e classificá-los por grau de amizade, mas isso gera um outro problema: decidir quem pertence ao círculo dos mais chegados. Mais tarde, vamos deparar com a tarefa de mover gente de um círculo para outro e colocar alguns na “lixeira” – para usar uma linguagem usual dos sistemas operacionais de computadores. O acúmulo de amizades hoje em dia tem traços muito similares ao do consumismo desenfreado. Antes da chegada da internet, a maioria esmagadora das relações estava relacionada ao convívio real, ou seja, aquelas que exigiam tempo e contato direto para ser cultivadas por meio de encontros, cartas ou telefonemas. Da mesma forma, mas por conta de outros fatores, naquele tempo as pessoas compravam aquilo que lhes
era necessário. Com o avanço das possibilidades de compra, passamos a acumular uma quantidade enorme de quinquilharias, como bicicletas ergométricas, facas elétricas, miniaspiradores de pó e tantos outros supérfluos inventados para satisfazer nossa sede por novidades. Todos eles estão invariavelmente fadados a tornar-se obsoletos e esquecidos no porão. O problema é que as bicicletas ergométricas e as facas elétricas não se ofendem quando são relegadas a passar o resto de seus dias no porão. O mesmo não acontece com as pessoas. Por isso deixamo-las naquela espécie de limbo de relações, no congelador da convivência. Reconhecer que temos amigos supérfluos não é uma condenação de todas as possibilidades de amizade que as redes sociais proporcionam, mas um alerta sobre como essas mesmas plataformas nos podem fazer sentir cada vez mais sozinhos quando a ilusão das amizades infinitas acaba. Entre 1985 e 2004, o número de norte-americanos que dizia não ter um melhor amigo subiu de 10% para 25%. Outros 20% disseram ter apenas um. Um dos principais motivos do
aumento desses números é o tempo que passamos on-line, conectados, mas sem profundidade alguma. Nenhum dos fatores e situações listadas acima mostram que as amizades reais estão sendo substituídas ou transformadas pelas redes sociais. A questão é como classificar contatos e, muitas vezes, ter que tomar a decisão de retirá-los de nossas listas de pessoas próximas. Amizades não são eternas, mas hoje em dia sentimos que terminá-las requer expor-se aos nossos outros contatos e, o que é pior, à pessoa de quem nos queremos livrar. “Como é ruim saber que fulano sabe que não queremos mais contato com ele! Como é ruim perceber que fulano não quer mais contato comigo!” Ou será que, na verdade, essa nova realidade oferece uma ferramenta interessante para aquele lado de nossa personalidade que não gostamos de mostrar? Será que, no fundo, não estamos dizendo: “Como é bom que fulano pode ver que não quero mais contato com ele! Agora sim ele vai ver!”. N
Crônica de Oliver Burkeman, publicada em setembro de 2012 no jornal inglês The Guardian, traduzida e adaptada por Marcelo Schneider
NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
29
telejornalismo
Subversão da imagem
O
telespectador que recebe diariamente a informação de um conteúdo jornalístico em sua casa acredita que aquilo que ele está vendo e ouvindo é totalmente real. Há uma linha tênue entre a realidade e a ficção. Programas pseudodocumentais geralmente mostram a coragem e a determinação de um intrépido repórter de TV que mergulha em águas geladas do Mar do Norte europeu, cruza pântanos infestados de crocodilos, passa noites em iglus improvisados na Groenlândia, como se ele estivesse ali, sozinho, à beira de uma hipotermia, testando seus próprios limites, quando, na verdade, está cercado por um grupo de técnicos que são fundamentais para a realização do documentário. Há sempre um cinegrafista, o operador de áudio, um produtor e um diretor. Uma equipe empenhada em mostrar as aventuras quiméricas do audacioso repórter, cujo objetivo principal é instigar o telespectador a acreditar que aquilo que ele está assistindo é realidade e não ficção. Quando há uma interferência fictícia em um documentário, esse passa a ser um docudrama, que essencialmente vai contar uma história real por meio de relatos, material fotográfico, documentos, mas utiliza recursos ficcionais, tais como simulação dos fatos, inserção de imagens e animações que
30
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
Divulgação Novolhar
por Willy Schumann
Há uma linha tênue entre a realidade e a ficção
não tenham compromisso direto com a realidade, mas com o sentido único de amplificar a realidade a partir de uma visão e de um conceito arbitrário, fundamentado em um fato real. No telejornalismo, não é diferente. Em uma escala menor, depois que uma reportagem é gravada e segue para a ilha de edição, lá recebe um tratamento que altera sua forma cronológica, consequentemente perde a sua característica de veracidade, ocasionando o que eu chamo de subversão da imagem. Geralmente, a equipe de reportagem utiliza apenas uma câmera na gravação do tema proposto pelo pauteiro. Além das entrevistas, que na linguagem jornalística chamam-se sonoras, o repórter cinematográfico grava também a introdução do repórter, que explica de forma resumida o teor da matéria, comumente chamado de gravação de cabeça. O cinegrafista faz imagens extras que poderão ser utilizadas na pós-produção, ou seja, na edição. As gravações extras incluem, quando necessário, registrar separadamente imagens de planos detalhes de um objeto ou personagens sociais que poderão ser inseridos posteriormente na matéria. Tecnicamente, o procedi-
mento é correto, mas, se analisarmos do ponto de vista do que é realidade e do que é ficção, a partir do momento em que as imagens captadas sofrerão algum tipo de alteração de tempo e espaço na pós-produção, perde-se essencialmente a totalidade daquilo que é real, transformando a reportagem em uma obra que beira a ficção. É o caso também das câmeras de segurança, que hoje são estrelas de programas jornalísticos da TV, por ser utilizadas pela polícia como prova substancial de um crime ou acidente, mas, não raro, são manipuladas inescrupulosamente antes que caiam nas mãos da justiça, o que ocasiona a perda do sentido documental, frustrando a opinião pública. Para que uma reportagem esteja calcada na realidade e fidedignidade, a captação de imagem deve ser feita em plano sequência, cujo objetivo principal é a gravação, do início ao fim, sem interrupção e sem manipulação de um fato. Enquanto a realidade e a ficção forem inseparáveis, o conteúdo dos telejornais será apenas possibilidades. N WILLY SCHUMANN é jornalista e documentarista em Curitiba (PR)
BÍBLIA
Também a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha; pois vós sois para mim estrangeiros e peregrinos. Portanto, em toda a terra de vossa possessão dareis resgate à terra.
Levítico 25.23s
por Carlos Arthur Dreher
I
srael surgiu como povo de irmãos. Tais irmãos tinham origens diferentes: escravos no Egito, seminômades errantes como Abraão, fugitivos como Jacó. E havia também prostitutas como Raabe de Jericó, além da pobre viúva moabita Rute. Essas pessoas, e tantas outras, não eram, de fato, irmãos e irmãs de sangue. Todas, porém, sabiam-se
totalmente dependentes da graça de Deus. Em sua aflição, haviam gritado a Deus, que ouvira seu clamor e descera para libertá-las. Por isso todas elas confessavam: “Éramos escravos de faraó no Egito...” (Deuteronômio 6.21-23; compare com Deuteronômio 26.5-9 e Josué 24.2-13). Movidas por essa fé, aquelas pessoas sabiam que, sem terra – sem um lugar de onde tirar o sustento –, irmãos não poderiam sobreviver. Sabiam também que a terra era de Deus (Levítico 25.23). Deus mesmo havia dito: “A terra é minha”. Deus era – e é! – o único dono da terra. As pessoas não eram mais do que estrangeiros e peregrinos. Por isso a terra não podia – e não pode! – ser mercadoria, sujeita a troca, compra ou venda. Ela devia – e deve! – estar a serviço do sustento de todas as pessoas – também dos pobres.
>>
Divulgação Novolhar
A terra é de Deus
Várias leis e práticas falam disso na Bíblia. Viúvas, órfãos e forasteiros podiam recolher as sobras das colheitas, como lemos na história de Rute (cf. Deuteronômio 24.19-22). Pessoas com fome podiam colher uvas e espigas para se saciar (Deuteronômio 23.24s). E, principalmente, quando pessoas empobrecidas perdiam seu direito de propriedade, podiam contar com que, a cada sete anos, haveria remissão de dívidas, e todas poderiam voltar a ter a sua terra (Deuteronômio 15.1-6, cf. 15. 7-18). Nem sempre a sociedade israelita soube viver como tal povo de irmãos. Ganância e egoísmo levaram constantemente ao surgimento de divisões, criando abismos entre ricos e pobres. Pessoas juntavam “casa a casa, campo a campo”, até que não houvesse mais lugar, e ficavam “como únicos moradores no meio da terra” (Isaías 5.8). No tempo da monarquia, tais desmandos aumentaram, como se vê no triste caso do lavrador Nabote, assassinado porque o rei queria tomar
NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
31
>>
SEMANA DOS POVOS INDÍGENAS
Kaiowá: um povo que caminha Entre os dias 14 e 20 de abril, lembramos a Semana dos Povos Indígenas de 2013. Por ocasião dessa data, há mais de dez anos, o Conselho de Missão entre Indígenas (COMIN) da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) tem elaborado material de divulgação para comunidades e escolas sobre esses povos. É um espaço onde os próprios indígenas falam sobre sua vida e seus valores. Em 2013, com o título “KAIOWÁ: UM POVO QUE CAMINHA”, o material tematiza a história, a cultura e os desafios dos Kaiowá do Mato Grosso do Sul. O povo Kaiowá vive em diversas aldeias e acampamentos, tendo em comum uma profunda relação e convivência com a terra. A busca de um território, no qual possam morar e viver conforme seus costumes, criar o sustento e conviver com toda a criação é um dos aspectos centrais de sua caminhada. Para os Kaiowá, a terra tradicional onde viviam foi-lhes dada por herança pelo Ser Criador, Nhanderu. Por isso eles têm o compromisso de cuidá-la e protegê-la. A cultura Kaiowá remete-nos a um universo de sabedorias que representam fonte de aprendizagem para toda a sociedade nacional. Também nos motiva a conhecer um pouco mais da realidade brasileira, caracterizada pela pluralidade étnica e cultural. O material, composto por um cartaz e um caderno, pode ser solicitado ao COMIN pelo e-mail cominsecretaria@est.edu.br ou pelo site www.comin.org.br.
32
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
seu pequeno terreno, que ficava ao lado do palácio (1 Reis 21). Retomando a antiga base de sua fé, os profetas levantaram sua voz contra aqueles desmandos. Deus queria justiça, diziam. Deus queria que todas as pessoas tivessem seu lugar no povo de Deus. Diante da insensibilidade dos poderosos cometedores de injustiças, os profetas anunciaram o fim daquela situação. E ela de fato ocorreu quando, em 587 a. C., Jerusalém foi destruída e as elites foram levadas para o exílio. Os profetas, porém, também anunciaram a esperança. Assim, Miqueias pode dizer: “Assentar-se-á cada um debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira, e não haverá quem os espante” (Miqueias 4.4; cf. Zacarias 3.10). Também os primeiros cristãos compreenderam que o amor de Deus era para todas as pessoas. Aprenderam a viver em comunidades, onde todas as pessoas tinham tudo em comum. Se Pedro entendia que essa nova vida, trazida por Jesus Cristo, valia apenas para judeus, Paulo compreendeu que a salvação era para todas as pessoas, pois “não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo” (Gálatas 3.28). Salvação é sempre integral. Não é só questão de “alma ou espírito”. É questão de vida plena, em abundância (João 10.10). É vida que pressupõe tudo o que é necessário para viver: sustento, comida, saúde, espaço, liberdade, felicidade – para todas as pessoas! A terra pertence a Deus. Ele a dá a todas as suas criaturas, para que dela possam viver, ter vida em abundância. E isso vale para todas as pessoas, de qualquer origem, como no antigo Israel. Vale hoje para homens e mulheres, adultos e crianças, brancos, negros e, principalmente também, para povos indígenas, pois vale sempre para as pessoas N mais frágeis. CARLOS ARTHUR DREHER, pastor voluntário da IECLB em São Leopoldo, professor de Teologia na Unilasalle de Canoas (RS) e na Faculdades EST de São Leopoldo (RS), é também presidente do Conselho de Missão entre Indígenas (COMIN)
testemunhos
Georgos, de Beirute Sobre estrangeiros Certa vez, Jesus e seus amigos estavam no pinheiral que ficava além da minha sebe, fora das minhas terras, e ele falava a eles. Eu estava perto da sebe e fiquei ouvindo. Sabia quem ele era, porque sua fama já havia chegado a essas redondezas antes de ele visitá-las. Quando ele parou de falar, aproximei-me dele e disse: “Senhor, venha com esses homens e dê a honra a mim e minha casa”. Ele sorriu para mim e disse: “Não hoje, meu amigo. Não hoje”. Havia uma bênção em suas palavras; e sua voz envol veu-me como uma manta em uma noite fria. Então, virou-se para seus amigos e disse: “Eis um homem que não nos considera estrangeiros. Mesmo que nunca nos tenha visto antes deste dia, convida-nos para atravessar a soleira da porta de sua casa. “Em verdade, no meu reino não há estrangeiros. Nossa vida nada mais é do que a vida de todas as pessoas, dada a nós para que conheçamos todas as pessoas e, conhecendo-as, as amemos. “Os atos de todas as pessoas são nossos atos, tanto os escondidos como os revelados. “Desafio-os a não viver sozinhos, mas em comunidade: o proprietário da casa e o sem-teto; o semeador e o pardal que rouba a semente antes de ser enterrada na terra; a pessoa que dá por gratidão e a pessoa que recebe com dignidade e reconhecimento. “A beleza do dia não está apenas naquilo que você vê, mas também naquilo que outros veem. “Por causa disso, eu os escolhi entre os muitos que me escolheram”. Depois, virou-se novamente para mim, sorriu e disse: “Também disse essas coisas para você; você também deverá lembrar-se delas”. Repeti meu pedido, dizendo: “Mestre, você não quer visitar minha casa?”. E ele respondeu: “Conheço seu coração; visitei sua casa maior”. Quando estava se afastando, juntamente com seus discípulos, ele disse: “Boa noite. Que sua casa seja grande o suficiente para abrigar todos os peregrinos da terra”.
Arte: Roberto Soares
Fonte: KHALIL GIBRAN – autor do livro “Jesus – Filho do Homem” – Editora Sinodal
NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
33
o reformador
Divulgação Novolhar
CASTELO DE WARTBURG: Foi aqui que Martim Lutero teve que se esconder de seus perseguidores, que ele afastou o tédio da prisão com muito trabalho. Durante dezoito horas por dia, ele traduzia o Novo Testamento. Essa rotina de trabalho lhe causou um grave problema de saúde, que quase o fez abandonar o trabalho de tradução.
Prisão de ventre e tradução da Bíblia por Leandro Hofstaetter
Q
uanto mais a história da vida pessoal de Lutero, de sua esposa Käthe e de seus filhos e filhas na cidade de Wittenberg é pesquisada, mais as pessoas se defrontam com um Lutero bem diferente daquela imagem de super-homem que realizou a Reforma no século 16 e que mudou o mundo. Quando se descobre o monge e professor de Teologia inquieto e CDF, um homem que
34
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
depois se casou e teve vários filhos, que bebia cerveja com seus alunos e que se tornou pastor da comunidade de Wittenberg, sofrendo e se alegrando com seus membros; quando se descobre isso, se tem acesso ao verdadeiro homem Lutero: normal, como você e eu! A reação a essa descoberta dá-se, na maioria das vezes, de duas formas. Algumas pessoas decepcionam-se por encontrar uma pessoa tão comum,
pois esperavam um herói. Outras apaixonam-se ainda mais por sua figura emblemática, justamente porque o incomum dá-se na vida ordinária do dia a dia. Uma dessas passagens de sua vida ordinária está ligada à sua estadia no castelo de Wartburg. A tradução do Novo Testamento em poucos meses quase não saiu (imaginem o que seria do movimento reformatório!) por conta de um probleminha de saúde com o qual Lutero conviveria por toda a sua vida. Imaginem uma pessoa trancada entre os muros de um castelo sem ter nada para fazer. Ele começou a ficar quase louco! Decidiu então, pois não conseguia ficar sem trabalhar, traduzir o Novo Testamento. Pensou: já que vou ser queimado mesmo, vou fazer algo que realmente faça a diferença na vida da igreja cristã. O quê? Facilitar o acesso das pessoas à palavra de Deus. E iniciou a tradução.
COMPAIXÃO
LEANDRO HOFSTAETTER é teólogo e doutor em Filosofia em Joinville (SC)
Uma joia em meio à tragédia por Roberto Zwetsch
P
or meses, quem sabe, no RS vamos comentar e chorar pela tragédia que resultou na morte de mais de 200 jovens estudantes na boate de Santa Maria. Tristemente, ela tem um nome que – a posteriori – revelou-se fatal: KISS. O Dicionário A. Houaiss de inglêsportuguês traduz a palavra assim: beijo, ósculo, contato leve, suspiro. Só num segundo momento, sugere: consolar, confortar com carinhos e beijos. Adiante o dicionário anota: aceitar a perda, sucumbir, ser vencido, prostrar-se, aceitar submissamente o
Divulgação Novolhar
No entanto, é aqui que entra o probleminha de Lutero: ficar trancado em um quarto trabalhando quase 18 horas por dia fez com que piorasse o seu problema de prisão de ventre. Sim, prisão de ventre! Ficou doente e, imaginem, por conta desse probleminha, quase ficamos sem a tradução, que seria uma das mais lidas e comentadas de todos os tempos. Mas o que tornava essa tradução tão querida e elogiada? Justamente o comum, a linguagem usada como se fosse a conversa da mãe com seu filho no momento da amamentação. O que faz Lutero ser tão incomum é que ele torna o acesso à palavra de Deus como tem que ser: fácil e sem dois problemas que podem surgir desse “fácil”. Ou o tradutor e pregador cai no vício de pensar que linguagem acessível é sem conteúdo. É sinônimo de conversa sem sentido. Ou pensa que, por ser tão importante, Deus acaba se tornando inatingível e incompreensível, de tão difícil que se fala. Lutero conseguiu escapar desses dois perigos, o que poderia ser um exemplo a ser seguido. O que torna Lutero uma pessoa tão incomum é o fato de que ele é bem comum, como você e eu. A grandiosidade do que ele fez depende de Deus, que escolhe e capacita e que dá, principalmente, força, que é castelo forte e bom nos momentos difíceis. Descobrir que Lutero era um ser humano como você e eu, com prisão de ventre e tudo, com dificuldades na família e na igreja, dá-me forças para seguir vivendo e contribuindo com os outros ONDE EU ESTOU E COM O QUE POSSO FAZER. Somos todos dependentes de Deus. Essa é a N grande lição!
castigo. Lá para o fim dos diferentes usos do termo em outras expressões, o filólogo coloca: acariciar com um beijo, entrar em contato leve. À medida que fui buscando informações desde segunda cedo, 28/01, sobre a tragédia de Santa Maria, entre consternado, abalado como milhares de pessoas, particularmente as famílias das vítimas, procurava compreender os fatos e confesso que foi difícil. A imprensa cumpre o seu papel. Repete à exaustão os motivos mais evidentes que provocaram a desgraça. Agora começa a focar o noticiário na urgente e necessária fiscalização de casas noturnas, teatros e outros locais públicos, que irão passar por rigorosas inspeções. Isso é uma boa notícia, apesar de toda a tristeza e do verdadeiro calvário por que passam as famílias que começaram a sepultar filhas e filhos, enquanto outras aguardam vigilantes, exaustas, mas cheias de fé e esperança, que os sobreviventes nos hospitais se recuperem e possam, com o tempo, voltar à vida de estudos e sonhos. Uma palavra, porém, me chamou especial atenção no artigo escrito por Martha Medeiros, palavra que a invadiu desde a madrugada de domingo: compaixão. É bom dizer logo que não se trata de pieguice, ter pena, lamentar simplesmente. Compaixão é algo muito mais forte, profundo, singular. Diz respeito à capacidade humana de se identificar com a dor do outro e, na medida do possível, amenizá-la, participando de atos de solidarie-
>>
NOVOLHAR.COM.BR –> Mar/Abr 2013
35
>>
dade, escutando a revolta de quem perdeu a filha querida, abraçando as pessoas, compartilhando recursos sem segundas intenções, dando a mão literalmente para que as pessoas atingidas não caiam completamente prostradas. Concordo com Martha Medeiros. Ela encontrou uma joia no meio da tragédia, do fogo e da fumaça preta que cegou os jovens, o ambiente e os obrigou a inalar o beijo da morte. Compaixão é um conceito bíblico central, que aparece de modo especial nos profetas. Deus tem compaixão do seu povo. Ele o levanta do solo como uma mãe ergue seu filho para lhe dar de mamar ou para protegê-lo (Oseias). A compaixão é algo tão sagrado, que no profeta Isaías se torna um atributo exclusivo, em sua mais alta acepção, da ação de Deus para com o ser humano. Nesse momento em que tantas famílias sofrem um luto desesperado, quase sem volta, como falar de esperança? Como acompanhar essas pessoas de modo a respeitar sua dor, mas ao mesmo tempo inspirar-lhes amor, carinho, esperança, verdadeiro consolo e conforto? Como não sucumbir diante da desgraça? Temos muito pela frente nas próximas semanas. Essa dor provocada da forma mais absurda e – deixem-me dizer – irresponsável ainda irá nos acompanhar por muitos dias. Vamos precisar nos apoiar mutuamente, familiares, amigos, amigas, sociedade civil, comunidades de fé, grupos voluntários. A meu ver, será necessário exercitar a compaixão do modo mais terno, concreto e criativo possível. Para que não venhamos a sucumbir como se tudo fosse um castigo, de N resto imerecido e brutal. ROBERTO ZWETSCH é teólogo e professor da Faculdades EST em São Leopoldo (RS)
36
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
Divulgação Novolhar
VIOLÊNCIA
Nenhuma mulher está livre por Sheila Rubia Lindner
N
este exato momento em que estou escrevendo este texto, são 17h34min. Provavelmente, ao terminar a redação, terão passado muito mais do que dez minutos. Você deve estar se perguntando o que as horas e os minutos têm a ver com a violência doméstica... Eu respondo: – Tem tudo a ver! Pois, a cada dez minutos, 25 mulheres são espancadas no Brasil. Faça
uma conta simples; em uma hora, 150 mulheres são machucadas violentamente. É um número absurdo. Se pensarmos em números mais abrangentes, um relatório organizado e publicado pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) recentemente afirma que até 53% das mulheres da América Latina já sofreram algum tipo de violência, a maioria das vezes de seu cônjuge ou familiar. Até 82% dos casos inclu
íam ferimentos físicos, como ossos quebrados, abortos involuntários ou queimaduras. Mas o relatório aponta que entre 28% e 64% dessas mulheres não buscaram ajuda nem falaram com ninguém sobre o trauma, porque não sabiam a quem se dirigir. Apesar de muitas mulheres ainda não saberem a quem recorrer em casos assim, a realidade no Brasil vem mudando gradativamente. Somente no primeiro semestre de 2012, o Disque-Denúncia do Governo Federal prestou cerca de 390 mil atendimentos, quase 100 mil a mais do que no ano anterior. Além do drama pessoal de cada agressão ou estupro, “a violência contra as mulheres também tem consequências intergeracionais: quando as mulheres experimentam violência, seus filhos também sofrem”, explicou a diretora da OPAS, Mirta Roses. As causas dos espancamentos são variadas e muitas vezes fúteis, mas predominam o ciúme e a não aceitação do fim do relacionamento. A violência doméstica também é responsável por uma em cada cinco faltas ao trabalho, segundo dados do Banco Mundial.
Os atos de violência doméstica podem ser classificados em abuso físico, quando a agressão pode ir até a morte; abuso sexual, em que o ataque físico redunda muitas vezes em violência sexual; pressão psicológica, que pode incluir ataques verbais constantes, possessão excessiva, isolamento da mulher de amigos e familiares; e privação de dinheiro, roupas, comida, além da destruição de sua propriedade privada. O Brasil foi o primeiro país do mundo a propor intervenções estatais, e a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) foi criada em São Paulo em 1985. Atualmente, as DDMs existem em todo o país e cons tit uem-se em delegacias especiais para crimes contra a mulher. Ao encontro disso vai a Lei Maria da Penha (Lei 11.340), que foi criada em 2006 e que aumenta o rigor das punições às agressões contra a mulher. Segundo a Wikipédia, “a lei alterou o Código Penal Brasileiro e possibilitou que agressores de mulheres no âmbito doméstico ou familiar sejam presos em flagrante ou tenham sua prisão preventiva decretada; esses agressores também não poderão mais ser punidos com
penas alternativas. A legislação também aumenta o tempo máximo de detenção previsto, de um para três anos; a nova lei ainda prevê medidas que vão desde a saída do agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação da mulher agredida”. Outro serviço muito importante é o Ligue 180, criado em 2005 pela Secretaria de Políticas para Mulheres e Parceiros, a Central de Atendimento à Mulher. O Ligue 180 é um serviço de utilidade pública que presta informações e orientações sobre os locais aos quais as mulheres podem recorrer caso sofram algum tipo de violência. O atendimento funciona 24 horas, todos os dias da semana, inclusive nos finais de semana e nos feriados. É importante lembrar que a violência doméstica não escolhe idade, raça ou estrato social. Nenhum tipo específico de mulher está mais ou menos sujeito a ser vítima de violência em sua casa por parte de seu parceiro, nem qualquer tipo de mulher está livre de não ser. N SHEILA RUBIA LINDNER é enfermeira, mestre em Saúde Pública, doutoranda em Saúde Coletiva pela UFSC e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Violência e Saúde em Florianópolis (SC)
NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2012
37
REFLEXÃO
Reprodução Novolhar
As mulheres e a ressurreição
o fato de JESUS aparecer às mulheres mostra que Ele não leva em conta aquilo que parece lógico. Jesus destina sua tarefa a homens e mulheres igualmente. por Bianca Daiane Ücker Weber
O
texto do Evangelho de Mateus 28.1-10 é de tirar o fôlego! Lá vemos que Maria Madalena e Maria foram ao sepulcro, assim como nós fazemos quando alguém que nos é querido parte desta vida. Vamos ao cemitério, colocamo-nos ao lado da sepultura e com o coração consternado certificamo-nos de que aquela pessoa de fato partiu e que a dor da saudade é uma realidade bem presente. Maria Madalena e Maria tiveram suas vidas transformadas por Jesus e tornaram-se devotadas seguidoras dele, trabalhando e auxiliando no sustento do ministério, estando na maioria das vezes nos bastidores. Foram testemunhas oculares do sofrimento, humilhação e crucificação do Mestre. Não o abandonaram naquela hora, e agora era o momento de levar especiarias para ungir o corpo de seu Senhor. O texto diz que o sepulcro era vigiado por guardas, mas que, de repente, houve um grande terremoto, Obra do Mestre trazendo consigo von Hohenfurth, pavor e a presença “Ressurreição de Cristo”, mostrando de um anjo, que o detalhe “Três imediatamente se Mulheres junto dirigiu às mulheao Túmulo”
38
Nov/Dez 2012 –> NOVOLHAR.COM.BR
res e aconselhou-as dizendo: “Não temais”. Além de procurar acalmar o coração das mulheres, o anjo convidou-as para ver o lugar onde Jesus jazia. Ele não estava mais lá. “Ele ressuscitou... Ide, pois, depressa e dizei a seus discípulos que ele ressuscitou dos mortos e vai adiante de vós para a Galileia; ali o vereis”(v. 6 e 7). Eu fico imaginando essa cena. Um anjo vem dos céus e anuncia algo extraordinário. Algo que jamais se tinha visto na face da Terra. A notícia que o anjo portava era tão grandiosa, que tornava a sua presença um fato comum. E olha que não é todo dia que se vê um anjo descendo dos céus com aspecto de relâmpago e as vestes alvas como a neve! Como pode um homem que foi morto tão brutalmente estar vivo? É incrível! Elas, apressadamente, carregando no coração o duplo sentimento do medo e da alegria, acataram a ordem do anjo e foram ao encontro dos discípulos. No caminho, elas tiveram uma grande surpresa. O próprio Jesus apareceu “em carne e osso”. O medo, antes presente no coração, foi literalmente expulso, dando lugar à mais plena alegria. Diante de Jesus não havia mais nada a fazer, senão abraçá-lo
você e eu, mulheres e homens, somos chamados a anunciar esse Deus que vence a morte, sendo testemunhas.
e adorá-lo. Creio que a vontade de Maria Madalena e Maria era ficar ali, aos pés de Jesus, não soltá-lo, não deixar que ele partisse e as deixasse. Jesus agradou-se da adoração, mas ele queria algo mais daquelas mulheres. Encarregou-as de portar e entregar a notícia de sua ressurreição aos discípulos: “Ide avisar a meus irmãos que se dirijam à Galileia e lá me verão”(v. 10). Sem titubear, elas foram. Maria Madalena e Maria foram as primeiras testemunhas da vitória da vida sobre a morte. Elas estavam inseridas numa sociedade patriarcal. Pela lógica, Jesus deveria ter aparecido aos homens. Mas o fato de aparecer
às mulheres mostra que Ele não leva em conta aquilo que parece lógico. Jesus destina sua tarefa a homens e mulheres igualmente. Ele inclui, jamais exclui. Assim é o nosso Deus. Nós podemos estar passando por dificuldades, que nos levam a olhar para o futuro e não ver nenhum sinal de vida, de alegria, de esperança. Isso não significa que Deus deixou de agir. Enquanto as mulheres choravam a morte de Jesus e tentavam tornar esse triste fato uma realidade que as acompanharia, Deus trabalhava e guardava Jesus no seu amor. Assim também é conosco. Ele não nos abandona, ele se revela a nós, mostrando que é o verdadeiro Deus de amor. E mais: Ele se revela a nós esperando nossa adoração e também nossa disposição para servi-lo. Hoje, você e eu, mulheres e homens, somos chamados a anunciar esse Deus que vence a morte. A exemplo de Maria Madalena e Maria, que estiveram ao lado de Jesus na sua morte e ressurreição, sejamos testemunhas fiéis dele em cada circunstância de nossas vidas! N BIANCA DAIANE ÜCKER WEBER é ministra da IECLB na Paróquia Bom Pastor em Curitiba (PR)
Em 2012 pense
GRÁFICA EDITORA
imprimindo inovação
Uma boa impressão é uma coisa de pele.
www.graficapallotti.com.br www.facebook.com/graficapallotti pallotti@pallotti.com.br NOVOLHAR.COM.BR –> Jul/Ago 2012
39
ESPIRITUALIDADE
Dia Mundial de Oração Através do DMO as mulheres são encorajadas a conscientizar-se do que acontece no mundo, unindo todos em torno da oração com informação.
O
Dia Mundial de Oração (DMO) é um movimento essencialmente ecumênico, que não se prende a nenhuma denominação religiosa ou igreja. A princípio, era um movimento iniciado por mulheres, que reunia somente mulheres cristãs de todo o mundo. Hoje, toda a comunidade participa das celebrações. É realizado em mais de 170 países e regiões sempre na primeira sexta-feira de março e é a culminância dos estudos e trabalhos realizados durante o ano. Através do DMO as mulheres de todo o mundo afirmam sua fé em Jesus Cristo; compartilham suas esperanças e temores, alegrias e tristezas, oportunidades e necessidades. Através do DMO as mulheres são encorajadas a conscientizar-se do que acontece no mundo e a não viver isoladamente; a enriquecer-se com experiências de fé vividas por cristãos de outros países; a levar as cargas de outras pessoas, orando com e por elas; a reconhecer os dons e os talentos e usá-los em benefício da comunidade; a reconhecer que a oração e a ação são inseparáveis e que ambas têm incontestável influência no mundo, unindo todos em torno da oração com informação. O programa é elaborado todo ano por outro país. Em 2013, foi elaborado pela França: “Era forasteiro e me hospedastes”. As ofertas são destinadas a partir de criterioso exame para três projetos que nos são enviados. Sempre relacionados ao trabalho com mulheres e crianças, cuja orientação de envio e as entidades bene-
40
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
Reprodução Novolhar
por Ani Cheila Kummer
XENOFOBIA O tema do DMO 2013, “Era forasteiro e me hospedastes”, foi elaborado pelas mulheres da França. A partir da reflexão bíblica, elas trabalharam a grave situação dos estrangeiros em seu país e trazem tal situação de exclusão para a oração das mulheres cristãs em todo o mundo. A presente obra de arte, que ilustra o material elaborado pelas mulheres francesas, é uma criação da artista plástica Anne-Lise Hammann Jeannot, de origem suíça e residente em Doubs, na França. A imagem em tons de cinza representa uma mulher estrangeira, deliberadamente separada das outras cores, para representar a sua essência diferente de tudo o que a cerca. Um clarão vindo do céu a acompanha em sua jornada. A obra toda quer representar receptividade de natureza festiva, dando destaque ao impacto do encontro.
ficiadas encontram-se no caderno de celebração. Inclusive, se alguma entidade tiver interesse em candidatar-se para receber uma dessas ofertas, pode contatar-nos. Para o ano de 2014, os estudos e a celebração já estão em tradução, inclusive para crianças. E o tema será “Mananciais no Deserto”, elaborado pelo Egito. Há um incisivo convite por parte do Comitê Central do DMO em Nova Iorque para o Brasil sediar a próxima quadrienal em 2016, que é a assembleia mundial realizada a cada quatro anos, sempre em outro país. Estamos acalentando o sonho e estudando as possibilidades. Nos dias 19 a 21 de abril próximo, teremos nossa Assembleia Ordinária; será em São Leopoldo (RS). Essa acontece a cada três anos e é eletiva. Com mandato de três anos com direito a uma reeleição. Nossa sede oficial é em São Paulo, na sede do Sínodo Sudeste. Para mais informações acesse o site do DMO (www.dmoracao.com) e não esqueça que em todo lugar perto de você há um grupo de DMO que aguarda sua participação. N ANI CHEILA KUMMER é presidente do Dia Mundial de Oração no Brasil
NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2012
41
penúltima palavra
Mulheres e homens precisavam ter a convicção de que não existe beleza perfeita. Toda beleza é imperfeitamente bela. Jamais deveria haver um padrão, pois toda beleza é exclusiva como um quadro de pintura, uma obra de arte. Augusto Cury
por Flávia Durante
D
epois da revolução sexual, da busca por espaço no mercado de trabalho e da divisão entre vida pessoal e carreira, a mulher contemporânea enfrenta uma nova batalha: a ditadura da padronização da beleza. Em tempos de carnaval, galerias de fotos que mostram “gordurinhas”, celulite e rugas de famosas espalham-se como uma praga. Geralmente mostram essas características como se fossem aberrações. E a cobrança da mídia por um corpo perfeito, quase que de plástico, acaba virando uma arma de destruição psicológica feminina. Não são poucas as mulheres que sofrem de algum tipo de distúrbio em relação ao próprio corpo. A cada ano aumentam os nomes que vão fazendo parte de nosso vocabulário: bulimia, anorexia, compulsão alimentar, drunkorexia, vigorexia, ortorexia. E mulheres vão se submetendo a cirurgias plásticas cada vez mais jovens. Dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) provam que, do total de cirurgias plásticas estéticas realizadas no Brasil entre 2007 e 2008,
42
Mar/Abr 2013 –> NOVOLHAR.COM.BR
13% foram feitas em adolescentes com idade entre 12 e 18 anos. O psiquiatra Augusto Cury, autor do livro “A Ditadura da Beleza e a Revolução das Mulheres”, cunhou essa busca de Síndrome PBI, o Padrão de Beleza Inatingível. Ele aponta diversos culpados por esse fenômeno: a indústria da moda e de cosméticos, as revistas e seus anunciantes. “Essa ditadura assassina a autoestima, asfixia o prazer de viver, produz uma guerra com o espelho e gera uma autorrejeição profunda. (...) uma pessoa satisfeita, bem-humorada, feliz, tranquila não é consumista, consome de maneira inteligente, não precisa viver a paranoia de trocar continuamente de celular, de carro, de roupas, de sapatos”, diz o autor. A padronização da beleza acabou virando a forma de escravidão e submissão do século 21. A mais nova insanidade na busca pelo corpo perfeito é a “barriga negativa”. Não basta ser magra, temos também que ter o abdômen com a curvatura invertida. Uma tendência que, quando apareceu no ano passado, foi considerada assustadora por muitos. Essa imposição de padrões virou uma questão não apenas feminina. A glamourização da “barriga tanquinho” e do “metrossexual” prova que a escritora norte-americana Naomi Wolf estava certa em seu famoso livro “O Mito da Beleza”, de 1991: “A próxima será a vez deles”. “Alguns psiquiatras estão prevendo um aumento nas estatísticas masculinas de distúrbios da alimentação. Começaram a surgir imagens que dizem aos homens heterossexuais
Reprodução Novolhar
A escravidão do século 21
“Menina em frente ao espelho” - obra do pintor espanhol Pablo Picasso
as mesmas meias-verdades tradicionalmente transmitidas às mulheres heterossexuais a respeito dos homens”, escreveu a escritora em sua obra. Os homens brasileiros sentiram isso na pele após a campanha de uma marca de lâminas de barbear que categorizava como repulsivos e não atraentes os corpos masculinos com pelos no peito. A propaganda foi considerada de mau gosto, a empresa recebeu milhares de protestos e a campanha foi retirada do ar. Mas nós mulheres não podemos ficar felizes porque os homens finalmente passaram pelo tratamento que recebemos da mídia há anos. Como também disse Naomi Wolf: “Se eles caírem nessa armadilha e ficarem presos, isso não será uma vitória para as mulheres. Na realidade, ninguém sairá ganhando”. Não vai tardar o dia em que agiremos como o Dorian Gray de Oscar Wilde: venderemos nossa alma em troca de beleza e juventude eternas. Para que tudo não caminhe para esse lado, precisamos rejeitar qualquer padrão imposto e mostrar que cada um de nós tem a sua beleza. A imperfeição só nos faz mais humanos e não seres de plástico. N FLÁVIA DURANTE é jornalista, editora dos sites das revistas Trip e Tpm em São Paulo (SP)