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Agricultura Familiar
Uma aposta Mudando vidas há 35 anos Agroecologia na Amazônia Trabalho infantil ou aprendizado? Aproximar agricultores e consumidores Espalhe essa ideia! Eliminando o fumo pela raiz
ÍNDICE
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mistura
Uma deliciosa viagem pelos sabores do Peru
Ano 11 –> Número 54 –> Novembro/Dezembro de 2013
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Igualdade para além do sonho
Coragem para mudar
PROAME
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AL-ANON
ORIENTE MÉDIO
Conflito longe da solução
SEÇÕES OLHAR COM HUMOR > 6 MOSAICO BÍBLICO > 6 NOTAS ECUMÊNICAS > 7
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NATAL
Alegria autêntica
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TESTEMUNHOS > 33 O REFORMADOR > 34 REFLEXÃO > 38
Estatuto de Natal
ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2013
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AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, Ingelore Starke Koch, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina e Vera Regina Waskow. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Cristiano Zambiasi Jr. Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Fernando Guimarães, Leandro Hoffstatter, Leonídio Gaede, Lore K., Marina Zoppas de Albuquerque, Micael Vier Behs, Roberto Soares, Rui Bender, Santiago, Sighard Hermany, Silvana Isabel Francisco, Susanne Buchweitz, Tiago Klug, Vera Cristina Weissheimer, Vera Lucia Engelhardt Prediger e Vitor Gans.
Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 30,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
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A comida sobre a mesa
A
o passar pelas gigantescas centrais de abastecimento de hortifrutigranjeiros em nossas metrópoles, como a CEASA e a CEAGESP, ou pela diversidade dos mercados públicos, a maioria das pessoas nem sabe de onde vêm todos aqueles produtos. Muitos até imaginam que tudo aquilo tem origem num conceito colado em nosso imaginário como decisivo para a economia tupiniquim: a agroindústria. Mas não é a agroindústria que coloca o alimento em nossa mesa. A agroindústria é esmagadoramente exportadora. O pão nosso de cada dia vem de milhões de pequenas propriedades rurais, que realizam um penoso e desprotegido serviço de formiguinha. Mal reconhecido e mal pago, esse serviço é realizado por famílias de agricultores e agricultoras que, na maioria, dependem de atravessadores para fazer sua produção chegar às cidades e suas centrais de abastecimento, não raro ao custo da própria sobrevivência digna. É nessa dura realidade que algumas iniciativas importantes estão organizando as famílias produtoras para que tenham vida mais digna. Entre elas estão algumas organizações da igreja luterana (IECLB), como o CAPA e o PROASA. O CAPA tem um papel fundamental na afirmação da agricultura familiar nos núcleos em que atua nos estados da Região Sul. Acaba de completar 35 anos de forte atuação. O PROASA é um trabalho similar, realizado entre famílias de agricultores na Rondônia pelo Sínodo da Amazônia (IECLB). Grande parceira dos dois é a Fundação Luterana de Diaconia (FLD), que desenvolve a Rede de Comércio Justo e Solidário, aproximando produtores e consumidores. Já é um começo. Ainda há muito por fazer, e a Novolhar quer contribuir, por meio desta edição, para a divulgação dessas iniciativas e a construção da utopia de que elas podem e devem ser multiplicadas. Como sempre, há muita variedade nas páginas a seguir. Destaque especial, desta vez, vai para a época do Natal e do final de ano. Vários artigos refletem sobre esse período tão apreciado entre nós. Aproveitamos para desejar a vocês, nossas leitoras e nossos leitores, um Feliz Natal e um abençoado 2014. Quiçá um novo ano com a sobrevivência desta nossa amada Novolhar! EQUIPE DA NOVOLHAR
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OPINIÃO
O fim da Novolhar 1 Há notícias que nos derrubam. Uma dessas é a comunicação do diretor da Editora Sinodal e coordenador da revista Novolhar (nº 53/2013) de que a revista nº 54 será a última da sua história de dez anos. Não é de acreditar que uma revista inovadora como a Novolhar não tenha assinantes suficientes para sobreviver economicamente. A Novolhar não é “mais uma” entre as milhares de revistas no Brasil, entre as quais boa parte nada de importante, edificante e educativo acrescenta à vida dos leitores. A Novolhar primou pelo seu formidável conteúdo, sua linguagem acessível e seu elevado nível cultural. Quanto mais penso sobre a decisão de encerrarem a edição da revista, mais se abate sobre mim um sentimento de luto e de tristeza. Como é possível que,
em uma igreja como a IECLB, uma revista com essa qualidade não encontre espaço e chão suficiente para ampliar o conhecimento e oferecer fundamentos para o exercício crítico da cidadania a partir da fé cristã? Sei que uma revista não pode agradar a todos. É possível que a revista, aqui e ali, não tenha lidado com a esperada isenção e objetividade com questionamentos e críticas. Mesmo assim, deveria haver um público mais do que suficiente que garantisse a sua sobrevivência. Seguramente, ficamos mais pobres sem a Novolhar. Nesta hora, vêm-me à mente outras situações semelhantes. Por exemplo, a Luterprev. Para alcançar a solidez com que hoje se apresenta, ela teve que suportar as críticas dos “profetas do insucesso” e até mesmo
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O fim da Novolhar 4
Fiquei surpreso com a notícia de que a revista Novolhar deixará de circular. Como diretor da revista Ultimato, posso imaginar o quanto isso é doloroso para vocês. Em algumas ocasiões, quase fizemos o mesmo. Nós todos envolvidos com a Ultimato sabemos por experiência própria como é quase impossível manter uma revista, tanto no passado como no presente. Temos sobrevivido pela graça de Deus! Vocês fizeram uma revista muito boa em todos os sentidos. Contem com a nossa simpatia. Elben César, Redator da Ultimato Por e-mail
Fiquei surpreso e muito indignado quando recebi a Novolhar e no editorial consta que ela irá acabar neste final de ano. Lamento, mas não posso aceitar essa decisão passivamente. Para sua informação, estive na IXª Convenção Nacional da Lelut-Legião Evangélica Luterana em Barra Velha (SC). Lá conversei sobre o assunto com o presidente do Sínodo Norte Catarinense, Elemer Kroeger, com o Pastor Sinodal do Sínodo Vale do Itajaí, Breno Willrich, e com o 1º vice-presidente da IECLB, pastor Carlos Möller, solicitando que a revista não deixe de ser editada. A revista é em minha opinião de alto padrão, inclusive a utilizo em meu programa de rádio. Tenho a intenção de ajudar a manter a revista. Solicito que a decisão seja reavaliada e que possamos fazer campanha de assinaturas. Gilberto Raul Zwetsch Por e-mail
O fim da Novolhar 3 Soube do fim da revista Novolhar por intermédio da agência ALC. Notícia péssima! A revista destaca-se dentre as publicações eclesiais pela variedade das pautas, alcance social, qualidade editorial, projeto gráfico... O fim é definitivo, não tem jeito de a igreja bancar o projeto, mesmo deficitário? Suzel Tunes, jornalista Por e-mail
O fim da Novolhar 5 Fiquei realmente consternada quando li o editorial anunciando o término da publicação da Novolhar. É lamentável que uma revista séria, inteligente e com assuntos de interesse
o incrível “fogo amigo”. Se ela hoje está aí, vigorosa e promissora, é porque ela teve e tem pessoas capazes de colocar o bem comum acima das vantagens egoístas pessoais. Também a AMA ainda sofre restrições da parte de pessoas que muito falam em comunhão e comunidade, mas que não sabem fazer a conversão da sua grandiloquência em prática. Se há algo na IECLB que ainda precisamos aprender com a urgência que o momento da história está a exigir, é ser mais solidários, colocar o bem comum acima dos desejos particulares e praticar a tão falada “inclusão”, deixando para trás frases bonitas e lições para os outros. Assim seremos, quem sabe, merecedores de maior aceitação na sociedade em que vivemos como cidadãos e como igreja. Rolf Droste, pastor emérito da IECLB Por e-mail geral não consiga mais assinantes. Os pastores sinodais foram notificados das dificuldades que a revista estava enfrentando? Não há possibilidade de reverter a situação? Será uma perda significativa para todos e todas nós que apreciamos boa leitura. Margarida W. Schmid Antonoff Por e-mail NOTA: As manifestações sobre o fim da Novolhar aqui publicadas são algumas que foram enviadas à redação. Não publicamos as numerosas manifestações postadas no FaceBook, onde a notícia foi alvo de intenso debate.
Inclusão Quero cumprimentar a equipe da Novolhar pelas impressionantes reportagens sobre o tema “Inclusão” na edição nº 52. Dentre essas destaco aquela sobre o casal Harald e Verena Schulze, que demonstra um amor excepcional na criação de seus filhos Heitor e Rosângela e, além disso, tem forças para a criação da Casa para Pessoas Deficientes em Campo Alegre/SC. Günther Seifert, por e-mail NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2013
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olhar com humor
MOSAICO BÍBLICO
O incenso, a mirra e o ouro (no sentido horário, a partir da esquerda) foram os presentes para Jesus em Belém.
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Fotos: Divulgação Novolhar
Presentes simbólicos Os presentes dos “magos” (não sábios, mas “astrólogos”) simbolizavam o futuro da vida e do ministério de Jesus: Ouro, metal mais caro da época, simbolizava a sua realeza. Incenso, material queimado no culto a Deus, simbolizava seu papel de sacerdote. Mirra, usada para embalsamar, simbolizava sua morte em favor de toda a humanidade. Esses três presentes deram origem à tradição dos três reis magos, mas a Bíblia não especifica esse número. A visita dos magos é comemorada todos os anos no dia 6 de janeiro por ocasião da Festa da Epifania (palavra derivada de um termo grego que significa “aparecer”). N Fonte: Guia Prático da Bíblia, Mike Beaumont – Sociedade Bíblica do Brasil
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Notas ecumênicas
CUBA: O Conselho de Igrejas de Cuba entregou, durante celebração litúrgica no templo batista de Havana, distinção ao pastor batista e ativista dos direitos civis estadunidense Jesse Jackson pela contribuição que deu ao ecumenismo solidário ao povo cubano. Ao receber o reconhecimento, ele condenou o bloqueio econômico norte-americano imposto à Cuba. Pediu que, ao invés do bloqueio, que já dura mais de 50 anos, se construíssem pontes de aproximação entre os dois povos.
Oração pela paz
MISSÃO Discutir o tema da missão é um desafio para todas as igrejas diante duma pergunta que todos se fazem: Como fazer missão hoje quando as confissões são as mais variadas?
Divulgação Novolhar
SETRI NYOMI é secretário-geral da Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas
ROMI MÁRCIA BENCKE é pastora da IECLB e secretária-geral do CONIC
Divulgação Novolhar
Divulgação Novolhar
Oremos também pelos líderes mundiais para que eles usem seu poder para trabalhar sem descanso a fim de encontrar soluções promotoras de vida que acabem com a crise naquele país. Deve-se fazer todo o esforço necessário para pôr as partes em diálogo e procurar soluções diplomáticas. A resposta militar só serve para aumentar o sofrimento do povo da Síria, que já está sofrendo em demasia.
Presença luterana
Arcebispa
O teólogo luterano e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos, Valério Guilherme Schaper, é um dos integrantes do Comitê Estadual de Diversidade Religiosa do Rio Grande do Sul como representante da Faculdades EST. O comitê deu início às atividades em agosto.
A bispa Drª Antje Jackelén foi eleita arcebispa da Igreja Luterana da Suécia, a maior do mundo, e será investida em 15 de junho de 2014. A pastora Antje é a primeira mulher arcebispa. Casada e mãe de dois filhos e dois netos, ela nasceu há 58 anos na Alemanha e foi ordenada na Suécia em 1980. Desde 2007 exerce as funções de bispa de Lund. NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2013
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Apoio ao pequeno por Rui Bender
a agricultura familiar é RESPONSÁVEL POR CERCA DE 70 POR CENTO DE TODOS OS ALIMENTOS QUE CHEGAM À MESA DOS BRASILEIROS. ALÉM DISSO, TEM COMPROMISSO COM A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS SAUDÁVEIS E COM A DEFESA AMBIENTAL. MESMO ASSIM, FALTA APOIO DO PODER PÚBLICO. 8
Foto: Rui Bender
CAPA
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o almoço e na janta, ingerimos uma considerável dose de venenos. Nossos alimentos estão excessivamente contaminados, porque as lavouras de todo o Brasil são pulverizadas com uma enorme quantidade de agrotóxicos. Calcula-se que a quantidade de venenos jogada anualmente nas lavouras equivale a 5,2 litros por habitante. “O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo desde 2008”, denuncia a engenheira agrônoma Rita Surita, coordenadora do Núcleo de Pelotas (RS) do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA),
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“A saída é fortalecer a agricultura familiar”, DIZ o técnico agrícola Hélio Musskopf, que há 35 anos (1978) buscava isso por meio da criação do Centro de Aconselhamento ao Pequeno Agricultor.
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organização que em 2013 completa 35 anos de existência. “No entanto, o Brasil representa apenas 5% da área agrícola entre os 20 maiores produtores agrícolas do mundo”, constata. “O uso de agrotóxicos aumentou significativamente com o advento das sementes de variedades transgênicas, pois a maioria dessas sementes é adaptada para a utilização de algum tipo de agrotóxico”, lamenta a agrônoma, 31 anos de CAPA. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Agrícola (SINDAG), entre 2004 e 2008, o crescimento da área cultivada no país foi de 4,59%, enquanto que, no mesmo período, o crescimento das quantidades de agrotóxicos vendidas foi de 44,6%. “E os venenos vão continuar sendo usados ainda por muito tempo no Brasil”, lastima o técnico agrícola Hélio Lailheno Musskopf, que 35 anos atrás, portanto em 1978, buscava o fortalecimento da agricultura familiar por meio da criação do Centro de Aconselhamento ao Pequeno Agricultor (CAPA).
SAÚDE – Ao contrário do que dizem as grandes empresas, é possível uma produção em que todos comam alimentos saudáveis e diversificados. “A saída é fortalecer a agricultura familiar”, apregoa Hélio. Ela é constituí da de pequenos e médios produtores rurais, comunidades tradicionais, assentamentos da reforma agrária. Para Rita, a agricultura familiar é um “modo de vida sustentável e solidário, já que produz essencialmente alimentos”. Segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, apesar de cultivar uma área menor (17,7 milhões de hectares), a agricultura familiar é a principal fornecedora de alimentos básicos para a população brasileira. Ela é responsável por cerca de 70% dos alimentos consumidos no Brasil, aquilo que realmente chega à nossa mesa. Produz 87% da mandioca, 70% do feijão, 58% do leite, 46% do milho. Na produção animal não é diferente. “Apesar de cultivar em uma área menor com pastagens (36,4 milhões de hectares), a agricultura familiar é responsável por produzir
grande parte da fonte de proteína animal”, acentua Rita. “A agricultura familiar, por suas características, busca uma maior integração e equilíbrio com o meio ambiente, com a produção de alimentos mais saudáveis, que são comercializados através de cooperativas, nos mercados locais, abastecendo o mercado interno brasileiro”, observa a agrônoma do CAPA. Os agricultores “moram em suas propriedades, vivem em comunidades rurais e cultuam tradições locais. Além disso, potencializam o desenvolvimento rural, dinamizando a economia, distribuindo renda e gerando milhares de empregos”. “Eles plantam o que lhes dá mais lucro por metro quadrado”, observa Hélio. SEGURANÇA – Quantas pessoas estão envolvidas na agricultura familiar? “No período de 1996 a 2006, enquanto a população do país crescia 18,1%, a população rural manteve a rota de declínio desde 1970. De 33,9 milhões de pessoas em 1996, ou 22% da população total, passou para 28,7 em 2006, o equivalente a 15% da população total. Devemos lembrar que, nesse período, houve êxodo rural, mas também houve a emancipação de vários municípios, estritaDivulgação Novolhar
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A AGRICULTURA FAMILIAR É UM MODO DE VIDA SUSTENTÁVEL E SOLIDÁRIO, QUE PRODUZ ESSENCIALMENTE ALIMENTOS. 10
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Foto: Duda Lessa
RITA SURITA: GARANTIA DE SEGURANÇA ALIMENTAR PARA O BRASIL, COM VOLUME E DIVERSIDADE.
mente rurais, que se transformaram em cidades, levando zonas rurais ao status de zonas urbanas”, esclarece Rita. A agricultura familiar é responsável hoje por garantir a segurança alimentar do Brasil, assegura o técnico agrícola. “Ela possui a capacidade de fornecer volumes de alimentos ao mercado, assim como é responsável pela diversidade de produção de alimentos. Dessa forma, apesar de possuir menor quantidade de terra, assistência técnica e pouco acesso às inovações tecnológicas adequadas, a agricultura familiar possui grande capacidade produtiva, contribuindo de forma efetiva para o abastecimento do país”, salienta a agrônoma do CAPA. Por isso “é necessário o apoio produtivo à agricultura familiar como um mecanismo de fortalecimento da segurança alimentar”. Essa forma de cultivo vem ganhando importância no mundo todo. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) escolheu 2014 como o Ano Internacional da Agricultura Familiar. “Com o aumento dos preços dos alimentos e as mudanças climáticas, percebemos que o mo-
delo de grandes fazendas não é um modelo a ser seguido no futuro”, ressalta Salomón Salcedo, encarregado de políticas da FAO. CRESCIMENTO – No Brasil e no mundo, a produção agroecológica tem avançado nos últimos anos. Hélio constata esse crescimento nas grandes feiras, onde cada vez mais a agricultura familiar se faz presente. “O consumo desses alimentos tem sido priorizado por muitas famílias, não sendo considerado apenas mais uma tendência, mas sim algo que veio para ficar e gradativamente ser incorporado no dia a dia das famílias”, observa a agrônoma Rita. “A produção agroecológica é capaz de dar respostas aos desafios de produzir com quantidade, qualidade e regularidade, conservando os recursos naturais, e alimentar a população brasileira”, emenda. Para acelerar esse processo, há que desenvolver mais pesquisas, tecnologias adequadas e assistência técnica contínua e permanente, entende Rita. É possível hoje que todos tenham acesso a alimentos saudáveis? “Ainda não – responde Rita. É preciso aumentar a produção, apoiando os agricul-
tores familiares com políticas públicas e recursos facilitados e baratos para a produção de alimentos puros.” É necessário que se crie uma “aliança estratégica entre agricultor
e consumidor”. O consumidor tem força para exigir, procurar e comprar produtos de qualidade, procurando consumir o que é melhor e comprar produtos dos agricultores familiares de sua região. Isso vai dar segurança aos agricultores, para que seus produtos tenham mercado e preço. Assim é possível aumentar a produção e ter preços acessíveis para os alimentos saudáveis, garante a agrônoma do CAPA. Atualmente, 74,4% da população rural está ocupada na agricultura familiar, o que representa uma população de 12,3 milhões de pessoas. “Dessa forma, os estabelecimentos familiares são os principais geradores de postos de trabalho no meio rural. Enquanto estabelecimentos patronais precisam, em média, de 67 hectares para gerar um posto de trabalho, os familiares precisam de apenas 8 hectares. As propriedades com menos de 50 hectares ocupam um total de 41% das pessoas ocupadas no meio rural”, explica a agrônoma. ORGANIZAÇÃO – Onde a agricultura familiar está mais forte? “A experiência do CAPA mostra que a agricultura familiar está mais forte
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CAPA
Foto: Rui Bender
Mudando v
O CAPA, FUNDADO NO FINAL DA DÉCADA DE 1970 POR HÉLIO, RESGATA O SABER DAS COMUNIDADES E O ALIA A TÉCNICAS MODERNAS.
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ali onde há maior organização social dos agricultores em associações, coo perativas de produção e de crédito e sindicatos. Essa rede forma um tecido social que se fortalece, pois há ações complementares entre elas”, salienta Rita. “A organização social permite uma maior eficiência dos processos de sustentabilidade local, pois essa rede de relações possibilita que a produção possa ser escoada através das cooperativas de produção, que pode ser financiada através das cooperativas de crédito. O sindicato luta por melhores políticas públicas e aproxima programas do governo. Com a organização social a assistência técnica consegue chegar com mais ações, trabalhando assuntos de interesse coletivo”, acrescenta a agrônoma. O CAPA tem um papel importante na afirmação da agricultura familiar. Seu trabalho “tem como base o reconhecimento e o resgate do saber tradicional que existe nas comunidades, aliado ao conhecimento científico, com suas técnicas modernas, que potencializam a produção e facilitam o trabalho e a vida dos agricultores e
agricultoras”, afirma Rita. No final da década de 1970, a IECLB, preocupada com o crescente empobrecimento do homem do campo, havia decidido organizar um serviço específico para os agricultores familiares. A convite da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), o técnico agrícola Hélio elaborou um projeto voltado para a agricultura familiar. Então, em maio de 1978, foi criado o Centro de Aconselhamento ao Pequeno Agricultor (CAPA). Dez anos depois, em 1988, por uma questão de linguagem comum entre diversos projetos dentro da IECLB, o nome mudou para Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor. Portanto, já 35 anos atrás, a IECLB entendia – segundo Rita – que tinha “um papel importante e que era necessário dar um testemunho junto a esse setor da sociedade que vem ficando à margem do desenvolvimento social e econômico, apesar da relevância de seu trabalho para o N sustento de toda a sociedade”. RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)
desde sua criação há 35 anos, o capa vem mudando muitas vidas no campo e na cidade. por Susanne Buchweitz
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esde sua criação há 35 anos, o Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA) vem mudando milhares de vidas. “Fomos apoiados pelo CAPA quando as comunidades quilombolas estavam esquecidas”, conta Jerri Eliano Quevedo. “A partir desse apoio, passamos a tomar conhecimento das políticas na área social e na área rural, e nossas condições de vida mudaram.” As palavras de Jerri, que representa 42 comunidades quilombolas na Setorial Quilombola do Território da Cidadania Zona Sul do RS, são repetidas sempre de novo de outras formas por outras pessoas. “O trabalho do CAPA sempre foi de muita importância por causa da assistência técnica e da certificação. As famílias que querem produzir de forma ecológica recebem apoio”, diz o agricultor e vice-presidente da Associação Central dos Produtores Rurais Ecológicos (ACEMPRE) de Marechal Cândido Rondon (PR). O CAPA é uma organização da sociedade civil que tem como parceiros Pão para o Mundo, na Alemanha, e a Fundação Luterana de Diaconia (FLD) e a Instituição Sinodal de Assistência, Educação e Cultura (ISAEC).
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o vidas há 35 anos Formado por cinco núcleos – Erexim, Santa Cruz do Sul e Pelotas, no Rio Grande do Sul, e Marechal Cândido Rondon e Verê, no Paraná –, o CAPA contribui de forma decisiva para a prática social e de serviço junto a agricultoras e agricultores familiares, assentados da reforma agrária, quilombolas e pescadores artesanais, organizados em grupos, associações e cooperativas. Seu objetivo é afirmar a agricultura familiar como parte de uma estratégia de desenvolvimento rural sustentável – considerando que o respeito à diversidade biológica, cultural, étnica e religiosa é fundamental para a manutenção da vida e para a construção de independência e autonomia e que o cuidado com a
natureza e as pessoas pode conviver com a sustentabilidade financeira. Aliás, sobre o envolvimento com a questão financeira, Ellemar Wojahn, que foi coordenador do antigo núcleo de São Lourenço do Sul (RS), lembra: “Quando passamos a nos envolver com a comercialização, isso não era visto com bons olhos dentro da rede das organizações não governamentais”. De acordo com ele, a ideia naquele tempo era que quem se envolvia com comercialização de certa forma “sujava” as mãos, pois se envolvia com o capital, o mercado. A partir do constante investimento na organização e na ação coletiva dos agricultores surgiu cada vez mais a discussão sobre a necessidade de agregar valor aos produtos por meio
da instalação de pequenas agroindústrias locais e da promoção de feiras orgânicas. “O debate sobre a questão das feiras e das agroindústrias começou em 1996” – conta a coordenadora do Núcleo Erexim, Ingrid Margarete Giesel – “já como fruto da conscientização para a formação de grupos, associações e cooperativas”. MULHERES – Ao longo da história, o CAPA sempre valorizou a participação das mulheres. No início de sua atuação, a mulher e seu papel na propriedade e no sistema de produção eram praticamente invisíveis. Uma vez que as atividades sempre envolveram toda a família, o resultado foi o empoderamento das mulheres, contribuindo para a construção de relações mais igualitárias. Esse empoderamento transcendeu o espaço familiar e chegou à esfera pública com a participação em reuniões e na tomada de decisões.
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Arquivo do CAPA
OBJETIVO: Firmar a agricultura familiar como parte de uma estratégia de desenvolvimento sustentável
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HISTÓRIA – A origem do CAPA está ligada diretamente à história da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), cuja trajetória acompanhou o mesmo movimento que trouxe os imigrantes alemães para as “colônias velhas”, ou seja, as primeiras regiões colonizadas a partir de 1824 na região do Vale dos Sinos (próximo a Porto Alegre/RS). A necessidade de expandir a fronteira agrícola criou um novo fluxo de deslocamentos para outras regiões do país, e a IECLB também foi ampliando a sua área de intervenção. Primeiramente em direção às “novas colônias” e, mais tarde, para o noroeste do Rio Grande do Sul e oeste de Santa Catarina, para onde foram deslocados os descendentes dos colonos alemães. O processo de ocupação do solo através da atividade agropecuária moldou o perfil da base social da IECLB; até 1972, 70% dos membros eram pequenos agricultores, descendentes de colonos alemães. Preocupada com
a significativa redução no número de membros e com o crescente empobrecimento daqueles que permaneciam, a IECLB decidiu organizar um serviço específico para os agricultores familiares. “A situação era dramática e nos perguntávamos: O que a igreja pode fazer? E que responsabilidade temos diante desse crescente empobrecimento e da falta de esperança dos pequenos agricultores? Muitas vezes, percebemos que foram exatamente os membros mais dinâmicos e mais corajosos que saíram”, lembra o ex-pastor presidente da IECLB, Huberto Kirchheim, um dos grandes motivadores da criação da organização. Na Conferência dos Pastores Regionais realizada nos dias 17 e 18 de maio de 1978, foi então criado o Centro de Aconselhamento ao Pequeno Agricultor. Suas atividades tiveram início no dia 15 de junho de 1979 na cidade de Santa Rosa (RS). Em 1988, por uma questão de linguagem comum entre diversos projetos, pro-
gramas e atividades afins dentro da IECLB, mudou-se o nome de Centro de Aconselhamento ao Pequeno Agricultor para Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor. Conforme aparece num estudo de impacto realizado em 2008 pelos 30 anos do CAPA, suas atividades possuem um alto grau de relevância e atendem as demandas dos públicos atendidos. Seu trabalho volta-se a grupos muitas vezes vulneráveis, inclusive com aqueles que ainda enfrentam grandes preconceitos na sociedade. O grau de relevância das atividades e dos processos apoiados pelo CAPA aumenta ainda mais à medida que as instâncias e órgãos relevantes do Estado continuam priorizando um modelo de desenvolvimento rural voltado para os grandes, esquecendo N os pequenos. SUSANNE BUCHWEITZ é jornalista e assessora de comunicação da Fundação Luterana de Diaconia (FLD) em Porto Alegre (RS)
Arquivo do CAPA
RELEVÂNCIA: As atividades do CAPA atendem as demandas dos públicos atendidos e voltam-se para grupos vulneráveis no campo
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Divulgação Novolhar
CAPA
CAPACITAÇÃO: Fundado em 2011 na Rondônia, o PROASA tem por objetivo capacitar agricultores com o apoio da Fundação Luterana de Diaconia
Agroecologia na Amazônia PARA MOTIVAR A PERMANÊNCIA DAS FAMÍLIAS EM SUAS TERRAS, O SÍNODO DA IECLB NA AMAZÔNIA CRIOU O PROASA. O PROJETO REÚNE FAMÍLIAS EM TORNO DA PRODUÇÃO AGROECOLÓGICA NA REGIÃO. por Vera Lucia Engelhardt Prediger
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cultivo da terra e a produção de alimentos na região amazônica necessitam de muitos cuidados para que o solo não seja destruído, as fontes de água não sequem e que a diversidade e a riqueza da flora e fauna não terminem. A população
migrante que nesta terra se estabeleceu trouxe consigo suas formas de trabalhar na agricultura. Enfrentou e enfrenta grandes desafios: conhecer o solo, o clima e as possibilidades de produzir alimentos respeitando as condições específicas da região amazônica.
Motivado pela fé e amparado pelo amor de Deus, nasceu nessa região o Projeto de Agroecologia do Sínodo da Amazônia (PROASA). É resultado do sonho, da dedicação e do planejamento de muitas pes soas. O PROASA tem como objetivo principal motivar a permanência das famílias em suas propriedades rurais, optando pelo modo de produção agroecológica, adaptada à região amazônica. Para tornar esse objetivo realidade, trabalha com famílias que já têm experiência com produção agroecológica e são agentes multiplicadoras da agroecologia na região em que vivem. O PROASA iniciou suas atividades em 2011. Para sua viabilidade conta com o apoio da Fundação Luterana de Diaconia (FLD) na busca e gestão de recursos financeiros. A área geográfica de abrangência é a região central do estado de Rondônia: os municípios de Cacoal, Espigão do Oeste, Rolim de Moura, Pimenta Bueno, Ministro Andreazza, Alta Floresta do Oeste e Alto Alegre dos Parecis.
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O PROASA tem por objetivo capacitar agricultores e agricultoras para trabalhar de forma sustentável e agroecológica, diversificando a sua produção e gerando renda; buscar a soberania e segurança alimentar através do resgate, da multiplicação e da disseminação de sementes e espécies crioulas; estimular que práticas agroecológicas já consolidadas sejam reaplicadas nas propriedades; incluir mulheres e jovens no planejamento, na produção e na venda da produção da propriedade; reconhecer multiplicadores e multiplicadoras da agroecologia por agir em defesa da vida e de um mundo melhor. O trabalho junto aos agricultores e agricultoras é realizado por Rodrigo Vendruscolo. Trinta famílias fazem
parte do PROASA. São produzidos hortaliças (alface, rúcula, almeirão, chicória, cheiro verde), legumes (tomate, berinjela, abóbora, pimentão, jiló) e frutas (maracujá, cupuaçu, abacaxi, laranja e limão). No momento busca-se estimular o plantio de guaraná e café clonal. A comercialização da produção acontece de forma direta ao consumidor em feiras livres e nos programas governamentais de merenda escolar. As principais dificuldades enfrentadas são o controle de pragas e doenças, especialmente quando se inicia um cultivo agroecológico na propriedade. Na hora da comercialização, existe muita desinformação, o que gera preconceitos negativos entre os consumidores, havendo até mesmo
Divulgação Novolhar
INSTRUMENTO DA IGREJA: Produção de alimentos saudáveis e vida digna com cuidado ambiental
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intriga entre os próprios comerciantes nas feiras livres, boicote e propaganda contra produtos agroecológicos. O solo da região amazônica compacta-se com mais facilidade do que em outras regiões do país, e a fertilidade do solo é baixa em comparação com outras regiões. Assim, o desafio da produção agroecológica é bem maior nessa região. Não se pode deixar de cuidar da fertilidade do solo. A principal potencialidade é quanto ao clima. As condições climáticas são definidas e, sabendo conviver com elas, consegue-se uma boa produção durante todo o ano. O projeto de agroecologia do Sínodo da Amazônia é um instrumento da IECLB para auxiliar os agricultores e as agricultoras a produzir nesse chão alimentos saudáveis e vida digna para si, seus familiares e a população. É uma semente lançada nessa imensa área de terras e junto às pessoas que ali vivem. Em Ezequiel 47.12, temos uma visão do profeta dando conta de que “nas duas margens do rio, crescerão árvores frutíferas de todo tipo. As suas folhas nunca murcharão, e as árvores nunca deixarão de dar frutas. Darão frutas novas todos os meses, pois são regadas pelo rio que vem do Templo. As frutas servirão de alimento, e as folhas, de remédio”. É preciso cuidar para que nós e as futuras gerações tenhamos alimentos saudáveis e terra saudável que os produza. O PROASA tem semeado com amor e dedicação a agroecologia. Pedimos a Deus que ampare e sustente todas as pessoas que estão envolvidas nas atividades do PROASA e que sopre novas ideias e novos pensamentos que levem a todas as pessoas o cuidado N para com a criação de Deus. VERA LUCIA ENGELHARDT PREDIGER é teóloga e pastora sinodal do Sínodo da Amazônia em Cacoal (RO)
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CAPA
Trabalho infantil ou aprendizado? segundo estudiosos, o trabalho infantil na agricultura familiar não é exploração, mas um processo de aprendizado social, que passa os conhecimentos de pais para filhos. por Tiago Klug
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trabalho infantil é um as sunto que vem ganhando destaque nos meios de comunicação e também na sociedade. Não é permitido o trabalho a crianças menores de 16 anos; somente o trabalho de aprendiz, quando uma crian-
ça completa 14 anos. Mas o que pode ser considerado trabalho infantil? Para compreender isso, observemos primeiramente a definição de agricultura familiar, conforme a Lei 11.326, de 24 de julho de 2006: Agricultor familiar não detém, a qualquer
título, área maior do que quatro módulos fiscais; utiliza na propriedade mão de obra da própria família; tem percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas em seu estabelecimento ou empreendimento e dirige sua propriedade com sua família. Segundo o sociólogo Sérgio Schneider em seu artigo “Agricultura e trabalho infantil: uma apreciação crítica do estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, o trabalho da criança na agricultura familiar é “uma estratégia para viabilizar sua reprodução social e um traço de sua identidade”. O trabalho na propriedade familiar não é visto como uma exploração dos filhos através dos pais. São repassados ensinamentos pelos pais aos filhos para que esses possam fazer a gestão e a sucessão das propriedades. São ensinamentos para formar um novo profissional da agricultura familiar e até mesmo um herdeiro da propriedade.
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Os trabalhos feitos por uma criança na agricultura familiar são semelhantes aos trabalhos feitos por crianças urbanas (auxiliar nas atividades domésticas, como, por exemplo, arrumar seu quarto e cama ao levantar-se). Os pais introduzem as crianças no dia a dia da propriedade e preparam-nas para assumir outras tarefas futuramente. Quando lembro minha infância, recordo o que aprendi com meus pais, tios e avôs. No período da tarde, após chegar da escola, saía correndo para colher morango na horta, corria ao galinheiro para colher os ovos, ajudava a tirar leite, dar ração para as vacas... Não havia brincadeira melhor. Lembro ainda quando ia para a casa de meus tios e eles me deixavam plantar um canteiro de cebolas; cada vez que eu ia lá, via as cebolas crescendo até a hora de colher. Essas tarefas ninguém me obrigava a fazer, mas elas criaram a minha identidade e laços que jamais vou esquecer. Há muitas coisas que envolvem a família hoje em dia. Por exemplo, da minha mãe sempre ouvi: “Estuda bastante e vai procurar um trabalho na cidade para não sofrer o que o teu pai sofre na lavoura”. Ela se referia à dificuldade do trabalho na lavoura, enquanto o pai sempre tentava passar a ideia de escolher o que se gosta de fazer: seja agricultor, seja a profissão que você escolher, faça aquilo com paixão. Quando falamos de trabalho infantil na agricultura familiar, falamos de um processo de aprendizado que passa de pai para filho, criando uma identidade que podemos comparar a uma brincadeira que permite aprender a ser agricultor. No final dessa faculdade, sai um profissional completo: aquele que se torna um agricultor familiar e ajuda a produzir 70% dos alimentos que chegam à mesa de toN dos os brasileiros. TIAGO KLUG é secretário-geral da FETRAF-SUL/ CUT/RS em Porto Alegre (RS)
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Aproximar agricultores e consumidores aproximar o produtor do consumidor contribui para o desenvolvimento local, estimulando a economia e fixando a família de agricultores na terra. por Sighard Hermany
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o examinarmos o tema dos circuitos de mercado, podemos fazê-lo sob diferentes aspectos, desde a sua produção até sua chegada à mesa do consumidor: formas de produção, beneficiamento e comercialização, distâncias geográficas entre quem produz e quem consome, processos de transformação, armazenamento e outros. Produção – É essencial que a produção siga os princípios da agroecologia, sem uso de agrotóxicos, adubos químicos de alta solubilidade ou sementes geneticamente modificadas (transgênicas). A preocupação com a qualidade do alimento que consumimos é cada vez mais atual. São cada vez mais frequentes as notícias sobre a contaminação dos alimentos por agrotóxicos. Por suas características, a agricultura familiar tem um papel importante na produção agroecológica de alimentos.
Beneficiamento – Outro aspecto importante para a preservação da qualidade do alimento é que seu processamento seja mínimo, próximo ao local de sua produção. Quanto mais o alimento viaja e quanto maior o seu processamento, maior é a perda de sua qualidade e maior é a quantidade de aditivos nele colocados, como corantes, conservantes e outros. Comercialização – Essa aproximação é desejável tanto no aspecto geográfico como no encurtamento entre os processos de produção e transformação e a mesa do consumidor. Muito importante é a aproximação das pessoas. Quanto mais próxima for essa relação, maior informação o consumidor poderá ter sobre o processo de produção e a qualidade do alimento. A aquisição e o consumo de alimentos próximo aos locais onde são produzidos contribui para o desenvolvimento local à medida
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DOENÇAS RARAS AGRICULTURA ECOLÓGICA: É essencial que a produção siga os princípios da agroecologia, sem o uso de agrotóxicos. O consumidor exigente procura por produtos diferenciados para pôr na sua mesa. Assim também entende o casal de agricultores Lori e Clécio Weber, da Linha Santa Emília em Venâncio Aires (RS)
da agricultura familiar. Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Compras Coletivas/RS cumprem um papel social extremamente importante para o fortalecimento da agricultura familiar, o acesso a alimentos de boa qualidade pelas pessoas mais necessitadas e a reeducação alimentar de nossas crianças. No comércio justo, em boa medida, as formas de circuito curto de comercialização dialogam, em maior ou menor grau, com os princípios do comércio justo e solidário, como aproximação entre produtores e consumidores, prática de preços mais justos para os dois lados, oferta e acesso a alimentos de melhor qualidade, melhor distribuição de renda, preservação ambiental e outros. Cabe registrar aqui a iniciativa do AGIR, um grupo de jovens adultos vinculado à Paróquia Matriz da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) em Porto Alegre, em parceria com a Ecovale, o Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor Foto: Arquivo do CAPA
que os recursos envolvidos tendem a permanecer e circular próximo ao local, estimulando a economia e seu desenvolvimento. Feiras locais representam a forma mais conhecida e mais praticada de circuito curto de comercialização. Elas acontecem próximo aos locais de produção e oportunizam o encontro direto entre quem produz e quem consome. Oportunizam a oferta de uma grande diversidade de produtos, típicos dos hábitos e do ambiente local, mesmo que em pequenas quantidades e volumes. Tem como limitantes um teto em relação às quantidades que podem ser comercializadas, oportunidade para um número reduzido de famílias agricultoras e dificuldades para a ampliação desse número. Em muitas situações, a tendência é de redução. As feiras por si só não garantem a oferta de produtos livres de agrotóxicos, orgânicos/ecológicos. É importante dar preferência a feiras reconhecidamente ecológicas. Pontos de venda, lojas e quiosques são espaços importantes de circuito curto de comercialização. Podem ser das organizações dos agricultores, suas cooperativas ou de cooperativas de consumidores. Normalmente mantêm a proximidade entre agricultores e consumidores. A exemplo das feiras, conseguem ter uma grande oferta de produtos, típicos e próprios da região. Exigem um maior grau de organização das pessoas envolvidas, tendem a estimular a coo peração e possibilitam a inclusão de um número maior de pessoas. Com relação ao mercado institucional, cabe destacar três programas extremamente importantes da política governamental federal e estadual. São espaços concretos de circuito curto de mercado, de encurtamento das distâncias entre quem produz e quem consome e de fortalecimento
(CAPA) e a Fundação Luterana de Diaconia (FLD). O AGIR realiza feiras de produtos orgânicos em sua comunidade a cada terceiro domingo do mês. A proposta está integrada à Rede de Comércio Justo e Solidário, que está sendo organizada pela FLD com empreendimentos da Economia Solidária e comunidades luteranas. O evento foi resultado direto de uma visita realizada pelo grupo às cidades de Santa Cruz do Sul (RS) e Venâncio Aires (RS), com a intenção de conhecer o trabalho desenvolvido pela N Cooperativa Ecovale. SIGHARD HERMANY é engenheiro agrônomo do CAPA em Santa Cruz do Sul (RS)
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Espalhe essa ideia! alternativa de geração de trabalho e renda para pessoas organizadas em associações e cooperativas, o comércio justo e solidário é promovido pela fld. por Susanne Buchweitz
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ESPAÇO: Mais de 40 empreendimentos solidários participam da Rede. Em torno de 70 por cento são formados por mulheres, que buscam nessa atividade econômica uma forma de complementação da renda familiar ou até mesmo a renda de toda a família
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Durante o acompanhamento aos grupos ligados à Economia Popular Solidária – os empreendimentos solidários –, a FLD identificou a fragilidade na comercialização de produtos e na sustentabilidade dos próprios
Fotos: Arquivo FLD
ntre suas muitas outras atividades, a Fundação Luterana de Diaconia (FLD) desenvolve, há 13 anos, ações de promoção da Economia Popular Solidária através do apoio a projetos em todo o território brasileiro. A Economia Popular Solidária é uma alternativa de geração de trabalho e renda na qual as pessoas se organizam em grupos, associações ou cooperativas, adotando a autogestão para administrar seu empreendimento, em que o trabalho e o lucro são divididos de forma igual e as decisões são compartilhadas. As atividades de produção buscam valorizar o conhecimento individual, cultural e geracional e o desenvolvimento comunitário.
grupos, verbalizada muitas vezes por seus integrantes. A partir desse contexto, nasceu a Rede de Comércio Justo e Solidário da FLD. A rede é um instrumento de aproximação entre o produtor e o consumidor, de um lado, empreendimentos da Economia Solidária, parceiros da FLD e, de outro, comunidades e instituições luteranas da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). A ideia é que, através da aquisição de um produto feito a partir de uma forma alternativa ao da economia que conhecemos, os compradores tenham a chance de fazer a escolha por um consumo mais consciente. Atualmente, participam da rede 43 empreendimentos solidários, sendo que, desses, 70% são formados por mulheres que buscam nessa atividade econômica uma forma de complementação da renda familiar ou até mesmo a renda de toda uma família. Alimentam seus filhos, educam e, muitas vezes, superam
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COOPERBOM: A cooperativa na área da alimentação surgiu como forma de gerar renda para as famílias de um bairro de Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre (RS). Aos 15 anos, conta com restaurante e confeitaria, onde prepara coquetéis e refeições para eventos, além de fornecimento de lanches
situações de violência e de discriminação por meio de seu trabalho coletivo. A Cooperbom, uma cooperativa da área da alimentação, por exemplo, surgiu como forma de gerar renda para as famílias de um bairro do município de Viamão, região metropolitana de Porto Alegre (RS). O período era de total crise econômica no Brasil, alto desemprego, e pais e mães das crianças atendidas em uma creche decidiram então criar um empreendimento próprio. A Cooperbom já completou quinze anos. Atua na área de prestação de serviços, mas seu principal trabalho é na área da alimentação. Atualmente conta com um pequeno restaurante e confeitaria em sua sede, que garante a manutenção do dia a dia da cooperativa, porém a contratação de coffee breaks, coquetéis, almoços, jantares, eventos em geral e fornecimento de lanches é o que realmente gera renda para as cooperadas.
Atualmente, a cooperativa conta com 56 pessoas, entre mulheres e homens, sendo que 12 são jovens da comunidade em busca de seu primeiro emprego. Isabel Cristina de Souza Cunha, uma das líderes, relata que seu principal público consumidor é composto por órgãos ligados ao poder público. Devido à burocracia, ficam semanas, às vezes meses, sem receber o pagamento. “Isso gera um enorme transtorno, pois não conseguimos ter um capital de giro para dar conta por tanto tempo do fornecimento de produtos e serviços”, diz. “Com a Rede de Comércio Justo, com o público diferenciado ao qual estamos tendo acesso, temos maior garantia de sobrevivência. O retorno financeiro vem na hora, e a certeza da sustentabilidade é muito maior.” Além da comercialização, a Rede de Comércio Justo e Solidário desenvolve atividades de fortalecimento dos empreendimentos por meio de oficinas, encontros e formações. Também promove a sensibilização das comunidades
e instituições luteranas através de rodas de conversa, palestras e oficinas. Outro viés é a conscientização de crianças, adolescentes e jovens de que existe uma opção de comércio solidário. Esse trabalho de conscientização está vinculado à proposta da Rede de Comércio Justo e Solidário a partir de outra iniciativa da FLD, chamada Educação pela Solidariedade. Depois de uma atividade promovida pela FLD no Colégio Sinodal de Portão (RS), da Rede Sinodal de Educação, com crianças e adolescentes, a coordenadora pedagógica Cynthia Cristina von Mühlen afirmou: “A escola é o lugar do conhecer, do aprender, do descobrir, do refletir e, por isso, deve proporcionar aos alunos diversas e diferenciadas experiências. O que foi trabalhado aqui, tanto na palestra sobre Economia Solidária como nas atividades de comercialização de produtos de grupos e do café da tarde servido pela Cooperbom, permitiu à comunidade escolar conhecer outras formas de organização e vivência de pessoas de outros lugares e realidades. Abriu a percepção de mundo e por isso foi muito proveitoso. Os alunos receberam muito bem essas experiências e certamente refletirão sobre elas”. A Rede de Comércio Justo e Solidário poderá ser acessada através de seu site www.comerciojustofld.com. br. Conheça a rede e, como diz o nosso slogan, “Junte-se a nós e espalhe essa ideia!”. N SUSANNE BUCHWEITZ é jornalista e assessora de comunicação da Fundação Luterana de Diaconia (FLD) em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2013
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CAPA
Eliminando o fumo pela raiz Trabalho do CAPA é modelo para países que buscam alternativas para o plantio de fumo, segundo o programa nacional de diversificação em áreas de cultivo de tabaco. por Susanne Buchweitz e Fernando Guimarães
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epresentantes de 11 países, integrantes do grupo de trabalho da Organização Mundial da Saúde da Organização das Nações Unidas (OMS/ ONU), que debate os artigos 17 e 18 da Convenção-Quadro para o Con-
trole do Tabaco, analisaram durante três dias o trabalho do Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor (CAPA), decidindo apresentá-lo como uma alternativa possível de ser adotada em outros países (a Convenção-Quadro para Controle do Tabaco é um tratado
internacional, aprovado em 2003, que reúne cerca de 180 países na adoção de medidas para restrição ao consumo de tabaco e derivados. O Brasil é signatário da convenção desde 2005). A reunião do grupo da OMS aconteceu em Pelotas (RS), extremo sul do Brasil, de 1 a 3 de outubro, articulada pelo Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Saúde e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A razão da escolha do local foi o resultado do trabalho do CAPA, considerado de excelência, no Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com o Tabaco. O CAPA, que recebe apoio da agência Pão para o Mundo e tem parceria com a Fundação Luterana de Diaconia, ambas organizações membro da Aliança ACT, comemora 35 anos em 2013. “Um belo presente de aniversário”, comemorou a coordenadora do CAPA Pelotas, Rita Surita. “Significa o reconhecimento do nosso trabalho, que tem por base a construção de redes e o fortalecimento das potencialidades das famílias de agri-
Foto: Elias Wojahn
OMS: Representantes de onze países estiveram em Pelotas representando a Organização Mundial da Saúde e analisaram o trabalho do CAPA
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cultores. Temos uma proposta teórica que está provada na prática.” O relatório de Pelotas/Brasil será apresentado em Genebra, na Suíça, no ano que vem, e o documento final com recomendações e diretrizes para a implementação de um programa para substituir a produção do fumo por outros produtos será levado à Convenção das Partes, programada para outubro do mesmo ano na Rússia. Diversificação – O Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com o Tabaco do MDA é a resposta ao compromisso assumido pelo Brasil em 2012 na COP 5, em Seul, na Coreia do Sul, em ter uma proposta metodológica e política que estimule a substituição de culturas nas propriedades rurais. Baseado nos princípios do desenvolvimento sustentável, segurança alimentar, diversificação produtiva e participação social, o programa atua na qualificação do processo de produção e de desenvolvimento nas áreas de fumicultura, assim como na perspectiva da produção ecológica, mediante a redução do uso de agrotóxicos. Depois de participar de um edital público do MDA e ter aprovado o seu projeto, o CAPA, entre 2012 e 2013, passou a atender 960 famílias de oito municípios gaúchos nessa perspectiva. “No início, os produtores tinham medo, sofriam pressão, não queriam receber nossos técnicos. Hoje eles se sentem seguros para fazer a mudança”, avalou Rita Surita. Segundo ela, o sucesso do programa leva em conta três fatores: o estabelecimento de parcerias dos produtores com cooperativas e associações que garantem suporte técnico e econômico, o aproveitamento do potencial da agricultora familiar na produção de alimentos e a liberdade de escolha dada aos produtores na hora de definir que tipo de cultura
desejam plantar, criando assim novas oportunidades. Para garantir o sucesso do projeto, oito cooperativas da região participam do programa dando assistência técnica, produção de sementes, apoio ao crédito e produção entre outras áreas. “No mundo todo, existe um grande ceticismo de que é possível mudar”, afirmou o conselheiro para políticas da Secretaria da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da OMS, o indiano Vijay Trivedi. “Mas o que vimos aqui é um modelo viável, que oferece uma opção possível aos agricultores que querem deixar a produção de tabaco.” “O que mais chamou minha atenção foi o fato dos produtores não estarem preocupados apenas com a renda e sim com a saúde da família”, disse Francis Simeda, do Zâmbia. Já para o diretor-geral de Comércio Exterior da Nicaragua, Jesus Bermudez, o trabalho em rede garante o sucesso da iniciativa. “Há o convencimento do produtor, o apoio do governo, cooperativas, é um grupo bem estruturado e com resultados incríveis.” Além de cooperativas locais de agricultores, de crédito e de produção (Cresol e Coopar), outras seis instituições fazem parte do projeto de diversificação de culturas coordenado pelo CAPA: Sul Ecologica, Coopal, Unaic, Cooperativa União, Cafsul e Assafsul. Cerca de 15 técnicos dão suporte às famílias de agricultores participantes. E essa rede é apontada como o grande diferencial. “O agricultor não fica apenas com um único sistema produtivo. Ele tem uma diversidade de opções para sua renda e perspectiva de mercado. A organização social é fundamental para o sucesso do projeto”, confirmou Ernesto Martinez, engenheiro agrônomo do Capa. “Com certeza, a construção de um tecido social faz toda a diferença. A ideia é que o produtor pense apenas
em produzir, essa é a função dele. Por isso a importância de todo esse suporte dentro do projeto”, avaliou a consultora do MDA, Christianne Belinzoni, que acompanhou a reunião do grupo da OMS. Realização – Em uma das propriedades visitadas, Marcio Tessmann é hoje um agricultor mais realizado. Em 2008, ele deu início à substituição do tabaco por outras culturas. Em meio aos parreirais, ele comemora a realização de um sonho. “Desde 1992 eu sonhava em plantar uva e produzir vinho, e hoje meu sonho é realidade.” Aos 46 anos, ele conta que o fumo aprisionou o desejo de diversificar. “Entre dezembro e março, você fica envolvido com colheita e secagem das folhas. Você não dorme direito, não come direito, respira veneno”, diz. Hoje, a partir da diversificação, a família produz 9 mil quilos da fruta e pouco mais de 5 mil litros de vinho. “Se conseguir produzir bem e comercializar, além de agregar valor ao produto, dá pra ganhar mais dinheiro que o fumo. Em um hectare de tabaco você pode ganhar R$ 15 mil, no de uva e produção de vinho alcança R$ 20 mil.” Mas não é só pelo dinheiro que a família de Marcio decidiu mudar. “Eu tenho um filho de 11 anos, e nós queríamos deixar um bom futuro pra ele. Ele é muito otimista e nos incentivou muito a seguir em frente nessa mudança”, finaliza o agricultor. O Brasil é um dos maiores produtores mundiais de tabaco. Os estados da Região Sul do Brasil concentram a maior parte da produção de folhas de fumo, com 96,4% do total. Nessa região, aproximadamente 150 mil produtores cultivam o tabaco, 90 mil N somente no Rio Grande do Sul. SUSANNE BUCHWEITZ E FERNANDO GUIMARÃES são assessores do CAPA NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2013
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GASTRONOMIA
Sabores, saberes e cultura por Silvana Isabel Francisco
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Mistura, maior feira gastronômica da América Latina, realizada desde 2008 em Lima, capital do Peru, é um paraíso para os amantes da boa comida e bebida. Você pode provar uma diversidade assustadora de pratos, experimentar diferentes tipos de chocolate e outros doces, geleias, queijos, lácteos, frutas, entre outros produtos. Enquanto isso, também se pode deliciar com belas apresentações de grupos de música e danças típicas, passando pelos corredores da feira (pasacalles),
com os grandes shows noturnos, palestras, além de outras atrações. É um grande e fascinante caleidoscópio de sabores, saberes e cultura. A cada edição, a feira aumenta de tamanho, a ponto de seus organizadores levá-la, este ano, para um espaço de 120 mil metros quadrados à beira da praia no bairro de Magdalena del Mar. O evento teve, aproximadamente, 500 mil visitantes em dez dias, dos quais cerca de 24 mil eram estrangeiros, segundo informações da Sociedad Peruana de Gastronomia
(APEGA), organizadora do evento. 420 produtores rurais expuseram no “Gran Mercado”; comidas típicas das três grandes regiões peruanas – Costa, Serra e Selva (Amazônia) – podiam ser provadas em centenas de estandes, além de espaços bem específicos, como o “Choco Expo”, “Mundo de la Quinua”, “Mundo del Pan” e outros. “Na Mistura tenho a sensação de estar na Disneyworld da gastronomia... Tenho viajado pelo mundo e nunca vi tanta variedade junta, sem falar que, diferente de outros congressos ou feiras, na Mistura não se valorizam somente os restaurantes ‘estrelados’, e sim todo tipo de negócio relacionado à gastronomia, inclusive a comida de rua”, analisa David Lechtig, chef de cozinha peruano, proprietário dos restaurantes El Paso, El Paso Latino e Sancho Pança em Brasília. Ele também comenta que, no ano passado, assistiu na Mistura a uma palestra sobre os produtores andinos, situados a mais de 4.000 metros acima do nível do
Fotos: Silvana Isabel Francisco
MISTURA: A feira gastronômica peruana em Lima reúne cerca de 500 mil visitantes em dez dias, uma Disney da gastronomia
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mar, e sua importância para os restaurantes em Lima e outra sobre creches para filhos de produtoras de produtos caprinos em Huaraz. “Acho que isso é um bom exemplo de como podemos melhorar socialmente sem assistencialismos, valorizando nossos produtos e produtores; é a inserção social da gastronomia”, completa ele. Um dos pontos interessantes da feira foi a apresentação de produtos tradicionais peruanos processados, para que o consumidor possa utili zá-los de maneira mais rápida e prática. Nélida, da Innova Alimentos, de Puno, trouxe uma novidade para a Mistura: a quinua instantânea, que fica pronta em apenas três minutos, facilitando a vida de quem tem pouco tempo para cozinhar. “Nosso produto passa por um processo especial de pré-cozimento, sem perder suas qualidades nutricionais”, explica, lembrando que a quinua comum deve ficar algumas horas de molho, com várias trocas de água antes de ser levada ao fogo. Já Percy Peixo-
VARIEDADE: Alimentos preparados e os produtos da terra podem ser encontrados na Mistura
to, da Amazon Basin Treasures, de Loreto, levou produtos da Amazônia peruana processados, como a aguaje (fruta conhecida no Brasil como buriti) e a sachapapa (batata típica dessa região) em pó, com os quais se podem fazer saborosas sobremesas mais facilmente. “Hoje em dia, a maioria das pessoas consome mui-
DE TUDO: Não só pratos sofisticados, mas todo tipo de comida, até mesmo a comida de rua
ta comida industrializada“, alerta Percy. “O ideal é buscar cada vez mais produtos naturais para ter uma saúde melhor”, afirma. “É preciso ter muita paciência com as filas para comprar comidas, mas vale a pena vir, pois, além de gostar muito de comer, gosto também de observar o movimento das pessoas e dos pasacalles”, conta Isabel Nuñez, que visitava a feira com sua filha. O campeão de filas na Mistura costuma ser o Chancho Al Palo, carne de porco assada em espetos fincados no chão. O ceviche, um dos pratos-bandeira do Peru, preparado à base de peixe marinado no limão, cebola, alho, pimenta e alguns outros ingredientes, também provocava filas caprichadas. Os ingressos normais em setembro deste ano custaram 25 soles (cerca de 10 dólares). Às segundas e quartas, o ingresso tinha desconto promocional a 15 soles. Os pratos de comida custavam entre 13 e 17 soles. Quem se interessar em conhecer um pouco mais do evento ou acompanhar suas notícias pode visitar a página www.mistura.pe. N SILVANA ISABEL FRANCISCO é jornalista em Brasília (DF) NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2013
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DIREITOS HUMANOS
Igualdade para além do sonho por Marina Zoppas de Albuquerque
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o dia 23 de agosto de 2013, o Centro de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente Bertholdo Weber – CEDECA PROAME celebrou 25 anos em São Leopoldo. Foi um momento de comemoração do trabalho desenvolvido por mulheres e homens que buscam uma sociedade mais justa e igualitária. Também foram homenageadas aquelas pessoas que, mesmo em tempos difíceis, acreditaram no
sonho de um outro mundo. Foi o momento de recarregar as energias para os trabalhos do presente e para dar continuidade à projeção do futuro. Foi uma noite de recordar e viver intensamente. A história da organização acompanha as transformações sociais do Brasil no processo de redemocratização, que se fez na mobilização social, na busca de liberdade e dos direitos humanos. Em 1988, o Programa
de Apoio a Meninos e Meninas – PROAME iniciou sua atuação em duas comunidades da periferia de São Leopoldo: São Jorge e COHAB/ Feitoria, vinculado ao Departamento de Ação Social da comunidade pertencente à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). O trabalho era direcionado a garantir direitos às crianças e aos adolescentes em situação de vulnerabilidade, ao compreendê-los como sujeitos de sua história e agentes participativos no processo de transformação da realidade. Nesse período, percebeu-se a necessidade de ações junto às crianças e aos adolescentes em situação de rua, na prevenção e no atendimento às situações de maus-tratos e violência sexual contra crianças e adolescentes. Esse diagnóstico levou à realização da abordagem e educação social na região central de São Leopoldo. Concomi-
Fotos: Arquivo PROAME
JUBILEU DE PRATA: Equipe de trabalho 2013 do PROAME e homenageados na celebração dos 25 anos da entidade
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tante a isso, iniciaram os primeiros estudos e pesquisas nessas áreas, que foram sistematizados nas práticas institucionais. O PROAME participou ativamente do processo de implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, adequando-se à nova legislação, em 1990 implantou o primeiro Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA) do estado do Rio Grande do Sul – denominado CEDECA Bertholdo Weber, em homenagem a um dos fundadores e principais colaboradores –, tornando-se referência na defesa dos direitos da criança e do adolescente. Em maio de 1993, constituiu-se como organização não governamental, com sede em São Leopoldo, resultado de um processo de discussão desencadeado com comunidades, associados, colaboradores, ONGs, movimentos sociais e equipe de trabalho. Hoje sua ação visa à proteção jurídico-social dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes, priorizando a integração com os demais atores sociais numa perspectiva
Trabalho do PROAME na comunidade São Jorge (1988) em São Leopoldo
interdisciplinar e intersetorial. As estratégias de ação estão concentradas na mobilização social, no atendimento técnico, na vigilância social e na incidência política, no assessoramento e na produção de estudos e pesquisas. Entre seus principais financiadores estão, em nível internacional, a KNH
O saudoso pastor Bertholdo Weber inaugura o CEDECA que leva seu nome
– World Childhood Foundation-Brasil e, em nível nacional, a PETROBRAS. Essa última renovou, em agosto de 2013, seu investimento por mais dois anos no Projeto Comunidade Ativa através do Programa Petrobras Desenvolvimento e Cidadania. Ao longo de sua trajetória, o CEDECA PROAME construiu parcerias estratégicas, possibilitando a qualificação da equipe de trabalho e de suas ações. Somada a uma Diretoria – Conselho Diretor e Fiscal – atuante e um quadro de associados que legitimam nossas ações, demonstra ser capaz de inovar e agregar relações para a continuidade do trabalho. São 25 anos de uma história construída por muitas mãos e ideias, permeada por inúmeras dificuldades, mas acalentada pelo sonho de igualdade e justiça. Nosso carinho e gratidão a todas as pessoas que fizeram e fazem parte dessa caminhada! N
MARINA ZOPPAS DE ALBUQUERQUE é assessora de comunicação do PROAME em São Leopoldo (RS)
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Foto: Lore K.
AL-ANON
O anonimato faz com que o Al-Anon seja um lugar seguro para conseguir ajuda, onde tudo o que se diz é mantido em confidência
Coragem para mudar por Lore K.
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u era um poço de medo. Medo de que meu familiar viesse do trabalho alcoolizado. Medo dos finais de semana, do churrasco de domingo, de qualquer festa, pois era quando ele bebia bem mais. O resultado? Discussões e brigas, ofensas e ameaças.
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Eu tinha a falsa ilusão de que eu podia controlar meus familiares alcoólicos, mas, na realidade, eram eles que me manipulavam, e eu, muitas e muitas vezes, paguei suas dívidas, cobri cheques sem fundo... Para quê? Para eles continuarem bebendo “tranquilamente”.
Esses são fragmentos de histórias de vida de pessoas que encontraram acolhida e compreensão nos Grupos Familiares Al-Anon – uma associação de parentes e amigos de alcoólicos, que compartilham sua experiência, força e esperança, a fim de solucionar os problemas que têm em comum. “Os mais desencontrados sentimentos povoam nossas mentes na convivência constante com uma pessoa alcoólica. ‘Minha vida é um caos...’; ‘Perdi o sentido da vida’; ‘Não sei que rumo tomar...’; ‘Tudo para mim é sofrimento ...’. São essas e inúmeras outras expressões negativas que ouvimos de familiares e pessoas próximas a um alcoólico”, relata Julia F., membro do Al-Anon em Porto Alegre. De acordo com sua experiência, quem convive com uma pessoa alcoólica vaga anos a fio sem saber o que
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fazer, que decisão tomar. Até que, finalmente, para muitos surge um fio de esperança ao descobrir a existência de um programa como o Al-Anon, que acena com a compreensão e o esclarecimento de que o alcoolismo é uma doença, como é catalogado pela Organização Mundial da Saúde. É uma doença com diversas características de mudança de comportamento, como agressividade, descontrole nas finanças, apatia, inércia, irresponsabilidade, indiferença... “Esposas, maridos, mães, pais, filhos – ah, os filhos! –, namorados, amigos, colegas de trabalho... muita gente sofrendo em torno de uma outra”, aponta Julia. Conhecer o Al-Anon é uma descoberta incrível, garante ela. Como um programa baseado nos Doze Passos de Alcoólicos Anônimos, “fala de espiritualidade, da existência de um poder superior, que faz por nós o que não somos capazes de fazer por nós mesmos”. O Al-Anon propicia “uma caminhada em busca de nosso autoconhecimento, quando lentamente tentamos praticar em nossas vidas desorientadas o Passo Quatro: ‘Fizemos um destemido inventário moral de
conhecer o al-anon é uma descoberta incrível para pessoas que lidam com alcoólicos na família. baseado nos doze passos dos alcoólicos anônimos, o programa ajuda a diminuir a ansiedade e faz surgir a firmeza de atitudes.
nós mesmos’”. Isso leva tempo, pede humildade, disposição para mudar, reconhecer erros, descobrir a grandeza do perdão, da tolerância, da compreensão, observa Julia. “E nós, que fomos à procura da solução para uma doença, um belo dia descobrimos que estamos fazendo uma caminhada para o nosso interior. Começamos a crescer espiritualmente, descobrimo-nos mais
seguros, mais fortes, mais capazes de entender o doente alcoólico.” Ansiedade, medo, insegurança, raiva, obsessão vão empalidecendo lentamente, e começam a brotar o entendimento, a aceitação, a coragem para mudar, a firmeza de atitudes... O Al-Anon estimula a não tolerar o intolerável, a colocar limites. Isso sim leva muitos alcoólicos a querer parar de beber. Na maioria dos grupos, as reuniões realizam-se uma vez por semana e em total compromisso com o anonimato. O anonimato faz com que exista um lugar seguro para conseguir ajuda, onde tudo o que se diz é mantido em confidência. O estudo da vasta literatura do Al-Anon dá uma dinâmica especial às reuniões e é um instrumento indispensável para a recuperação. O Al-Anon conta hoje com aproximadamente 700 grupos no Brasil, que têm sua sede na cidade de São Paulo, e inclui também o Alateen para os membros mais jovens da família. Saiba mais sobre o Al-Anon no site www.al-anon.org.br N LORE K. é membro do Al-Anon em São Leopodo (RS)
os doze passos de alcoólicos anônimos 1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas. 2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade. 3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos. 4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos. 5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano a natureza exata de nossas falhas. 6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter. 7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições. 8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem
tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados. 9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem. 10. Continuamos fazendo o inventário pessoal, e quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente. 11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós e forças para realizar essa vontade. 12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.
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ISRAEL E PALESTINA
Um conflito longe da solução por Micael Vier Behs
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utor de trabalhos que destacam a relevância de textos bíblicos para a interpretação dos tempos atuais, o teólogo alemão Erhard S. Gerstenberger defende a eliminação de convicções religiosas absolutas e discriminantes como única solução viável para os remotos conflitos envolvendo israelenses e palestinos. “Temos que negar a eternidade das reclamações políticas fundamentadas
na religião e que contaminam as relações entre Israel e Palestina”, advogou Erhard a estudantes, pesquisadores e comunidade geral durante conferência pública ministrada na Faculdades EST recentemente. Segundo o palestrante, 70% das terras em disputa são ocupadas por israelenses. O espírito absolutista presente na teologia dos judeus ortodoxos, relatou Erhard, representa o gran-
de impasse para uma solução pacífica do conflito, tendo em vista que esses grupos rejeitam “qualquer centímetro quadrado de terra aos árabes”. Desde a guerra árabe-israelense de 1948, iniciada logo após a declaração de independência de Israel, até a Guerra do Líbano em 1982, cinco conflitos de curta duração assolaram a Terra Prometida, deixando milhares de pessoas mortas. “A crise no Oriente Médio tende a agravar-se ainda mais com a interferência dos Estados Unidos na Guerra da Síria, que, apesar de ter outras raízes históricas, faz parte da contenda entre Israel e vizinhos árabes”, afirmou o teólogo alemão, para quem Barack Obama representou apenas a continuação da política militarista de seu antecessor, “não conseguindo caminhar pelo caminho da paz”. Espalhados por todos os continentes desde a antiguidade, explicou Erhard, a deportação de judeus remonta ao século
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A convivência pacífica de povos e nações depende do respeito mútuo e da aceitação das diferenças, inclusive de ordem religiosa
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Foto: Dilceu Locir Witzke
Gerstenberger foi recepcionado na Faculdades EST pelo reitor Dr. Oneide Bobsin e pelo professor de Teologia Dr. Carlos A. Dreher
6 a.C, tendo crescido a reimigração desse povo à Terra Santa no último século. “O movimento denominado de sionismo pretende criar um Estado próprio capaz de oferecer aos judeus um lugar seguro no mundo, livre das perseguições religiosas”, assinalou. Mesmo dispersos ao redor do mundo, o professor enfatizou a “incrível e misteriosa” capacidade do povo judeu
em manter durante milênios a sua identidade, ritos, costumes e cultura espiritual. “Acho que isso é consequência da constituição dessas pessoas como corpo eclesial, como comunidade confessional e como grupo de fé orientado pela Torá, texto de referência do judaísmo, que resgata relatos sobre a libertação dos filhos de Israel e sua peregrinação até a Terra Prometida”, frisou.
Para o teólogo alemão, a convivência pacífica de povos e nações depende do respeito mútuo e da aceitação das diferenças, inclusive de ordem religiosa. “Se admitirmos discriminações religiosas, simplesmente não poderemos conviver num mesmo planeta, tese que reforça a necessidade de excluirmos preceitos religiosos de conflitos, como o israel-palestino.” Números trazidos na palestra pública indicam que cerca de 8 milhões de israelenses vivem nas terras em disputa, totalizando 1 milhão a população árabe no mesmo território. Nascido em 1932 na cidade de Rheinhausen, Gerstenberger estudou teologia nas faculdades alemãs de Marburg, Tübingen, Bonn e Wuppertal. Foi docente universitário assistente em Wuppertal e Yale, nos Estados Unidos, e concluiu o doutorado com a produção de tese sobre o Direito Apodítico em 1960. N MICAEL VIER BEHS é jornalista em São Leopoldo (RS)
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natal
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Quando aceitamos que o Menino Jesus veio por nossa causa, então a alegria será maior do que a alegria dos presentes e ceias. E será uma alegria autêntica e duradoura, que nos fará olhar o mundo com os olhos da ternura de uma criança.
Alegria autêntica por João Artur Müller da Silva
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s cidades e as casas estão com aspecto de festa. Muitas luzes, brilhos e arranjos indicam que é Natal. Ninguém melhor do que o comércio para nos lembrar que estamos em dezembro. E o foco principal está no consumo. Aqui e ali, algumas tímidas mensagens de paz e amor. De fato, Natal é motivo para despertar a alegria nas pessoas. Essa alegria vem de longe e é transmitida de geração em geração. Em muitas celebrações natalinas será ouvida a mesma boa-nova que foi anunciada aos pastores nos arredores de Belém na Judeia. Hoje, repete-se a boa-nova do nascimento do Salvador: “Não temais: eis que vos trago boa-nova de grande alegria, que o será para todo o
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povo: é que hoje vos nasceu na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor” (Lucas 2. 10-11). Martim Lutero nos faz rir quando pergunta: “Será que Cristo veio por causa dos gansos, patos ou vacas? Você precisa ver como ele é. Se ele quisesse ajudar qualquer outra criatura, teria assumido a forma dessa criatura. Mas ele se tornou homem”. Sim, rimos de nervosos, porque sentimos uma pontada de crítica à nossa maneira de celebrar o Natal e tudo o que ele significa de sentido e valores para nossa vida. E Lutero continua incomodando com suas perguntas e testemunho: “Pois bem, e quem é você? Quem sou eu? Não somos todos pessoas humanas? É claro que sim. Portanto quem
deve receber essa criancinha senão as pessoas? Os anjos não precisam dele, e foi por nossa causa que ele se tornou homem. Por isso é necessário que o recebamos com alegria, como o anjo diz em nosso versículo: ‘Hoje vos nasceu o Salvador’. Não é maravilhoso que um anjo venha do céu trazer-nos essa mensagem? Não é maravilhoso que, junto com ele, milhares de anjos, cheios de alegria, anunciam e desejam que nos alegremos também e recebamos essa graça com gratidão em nossos corações? Por isso devemos tomar essa palavra ‘vos’ e inscrevê-la com letras douradas em nossos corações e receber o nascimento desse Salvador com alegria”. Quando aceitamos que o Menino Jesus veio por nossa causa, então a alegria será maior do que a alegria dos presentes e ceias. E será uma alegria autêntica e duradoura, que nos fará olhar o mundo com os olhos da ternura de uma criança. N JOÃO ARTUR MÜLLER DA SILVA é teólogo e gerente editorial da Editora Sinodal em São Leopoldo (RS)
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testemunhos
Pedro Sobre o futuro de seus seguidores Jesus virou-se para nós e disse: “Assim será o seu amanhã; o presente mostra como será o futuro de vocês. Todas as portas serão fechadas na cara de vocês, e sequer os jardins, que ficam sob as estrelas, lhes serão lugares de descanso. Se seus pés puderem ter um pouco mais de paciência e vocês puderem me seguir, pode ser que achem água e cama, talvez até pão e vinho. Mas, se não acharem nada disso, lembrem-se de que atravessaram um de meus desertos. Venham, vamos adiante!”. O homem rico ficou perturbado. Desorientado, ficou olhando para nós e murmurou algumas palavras para si mesmo, que eu não consegui entender. Então virou-nos as costas e entrou no jardim. Nós seguimos Jesus em seu caminho. Fonte: KHALIL GIBRAN – autor do livro “Jesus – Filho do Homem” – Editora Sinodal
Arte: Roberto Soares
Certa vez, ao entardecer, Jesus levou-nos até o vilarejo de Betsaida. Formávamos uma companhia exausta, coberta pelo pó da estrada. Chegamos até uma grande casa em meio a um enorme jardim. O dono da casa estava no portão. Jesus disse-lhe: “Estes homens estão cansados, e seus pés, doloridos. A noite está fria, e eles precisam de um pouco de calor e descanso. Eles podem dormir em sua casa?”. O homem rico respondeu: “De jeito nenhum; eles não vão dormir em minha casa”. Então Jesus disse: “Permita que passem a noite em seu jardim”. O homem respondeu: “Não, eles não vão passar a noite em meu jardim”.
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o reformador
A liberdade cristã em Lutero
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o ano de 1520, o reformador Martim Lutero publica um artigo em alemão e em latim intitulado “Acerca da liberdade da pessoa cristã”. Nesse texto, Lutero desenvolve a tese de que, em uma mesma pessoa, existem duas realidades, que, apesar de não a dividirem, fazem diferença na sua vida: a pessoa espiritual e a pessoa corporal. E isso não quer dizer uma separação entre corpo e alma, mas que existe a pessoa diante de Deus e a pessoa diante do mundo e de si mesma. E é justamente a pessoa diante de Deus – Coram Deo em latim – que vai definir como essa pessoa se encontra diante do mundo, dos outros e de si mesma. Ora, o contexto de Lutero era marcado por uma Igreja Católica Romana avarenta, que pensava e vivia mais diante do mundo do que diante de Deus. Por isso as suas ações não tinham nada a ver com a pregação do evangelho, mas com arrecadar fundos que dessem mais poder ao papa e seus comparsas, os arcebispos, bispos e todo o clero. Para conseguir isso, usavam o medo como método pedagógico e a morte na fogueira como punição. De repente, um monge lá do interior da Alemanha ousa dizer o seguinte depois de ler as Escrituras: “O cristão é Senhor sobre tudo e não deve sujeitar-se a ninguém – pela fé. O
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cristão é servo de todos e a tudo deve sujeitar-se – pelo amor”. Imagine como foi bombástica essa expressão dentro de uma igreja que pregava que os cristãos deviam pagar por cadeiras no céu, deviam pagar para fazer peregrinações, pagar para ver as relíquias dos santos e dos apóstolos, pagar para receber os sacramentos! Uma igreja que pregava que era através daquilo que o cristão fazia para a igreja que ele seria salvo ou não. Se ele não fizesse o que a igreja prega, ele iria para o purgatório ou para o inferno. E Lutero ousou dizer: “Quem não tem fé, mesmo tendo tudo em relação ao mundo, não tem nada. Quem tem fé, mesmo não tendo nada em relação ao mundo, tem tudo”. Diante de Deus não há barganha. Se eu orar, Deus vai me amar; se eu for na igreja várias vezes, ele vai me aceitar; se eu der muito dinheiro para a igreja, eu serei parte do seu povo; se eu fizer isso ou aquilo, eu serei aceito! Não há esse “se” em relação a Deus. Até pode haver em relação ao mundo e às pessoas, pois nós fazemos as coisas e exigimos algo em troca: nós amamos, mas só se a outra pessoa nos amar; nós ajudamos, mas só se os outros também nos ajudarem; nós fazemos um favor, mas esperamos outro em troca. Lutero afirmava que é somente pela fé que a pessoa é livre, pois
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por Leandro Hofstaetter
LIBERDADE: Diante do mundo eu sou livre para cuidar da
houve a troca maravilhosa: Cristo assumiu os meus pecados e deu-me a sua santidade. E essa liberdade transforma a pessoa, realizando a obra de Deus nela. A partir de então, sua relação com o mundo, com os outros e consigo mesma passa por uma metanóia e tudo é visto pelos olhos de Deus, tudo mesmo: alegrias, sofrimentos, até mesmo as coisas que ela não entende. Não precisa mais garantir nada; tudo já está garantido pela fé em Cristo.
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justamente dentro da igreja? Qualquer semelhança com a igreja de hoje é mera coincidência! A liberdade para a qual Cristo nos libertou é interpretada por Lutero da seguinte forma: “Liberdade do pecado: as obras ou qualquer barganha não salvam; Cristo salva! Liberdade verdadeira gera servidão: quem é liberto do pecado é escravo do bem e do amor. Essa é a inevitável consequência da liberdade cristã. Liberdade das estruturas: sejam elas da igreja ou da sociedade. Não são elas que têm o que dizer, mas Deus é Senhor do mundo. Não são elas que salvam, mas o Deus que desceu aos pecadores. A cada vez que as estruturas (igreja ou sociedade) se rebelam contra Deus, querendo tomar o seu lugar, Reforma nelas! Pois elas devem servir ao ser humano para que ele possa servir aos demais; elas devem prostrar-se perante a palavra e a ela responder. E é aqui que começa o nosso problema. A gente achou que era fácil. Mas não é! O nosso problema é algo prático; envolve decisão tanto tua como minha: liberdade cristã traz em si consequências. Estamos dispostos a encará-las? N natureza, do próximo e de mim mesmo. Essa é uma liberdade difícil, pois requer responsabilidade
Assim, diante do mundo eu sou livre para trabalhar e cuidar da natureza; diante do próximo eu sou devedor por amor, pois recebi de Deus o dom de amar e, por isso, eu vou amá-lo e ajudá-lo no que for preciso; diante de mim mesmo não preciso mais provar que sou bom, merecedor, pois Deus me mostrou o pecado e a minha vontade, que nem sempre quer o bem para o mundo, para com os outros e para comigo mesmo. Por isso tenho humildade para me agarrar a Cristo, que me livrou do mundo, dos outros
LEANDRO HOFSTAETTER é teólogo e doutor em Filosofia em Joinville (SC)
e de mim mesmo, fazendo com que a tentação de sempre provar que sou merecedor perecesse com o velho homem, afogado no Batismo. Por que será que essa liberdade é tão difícil de ser entendida e ainda mais de ser vivida? Por que os pastores e os membros da igreja da época de Lutero lutavam por reconhecimento, por poder? Por que tinham prazer em ver os outros caírem, aos quais na verdade deviam amor, e ainda ficavam contentes com sua desgraça? Por que tinham esse tipo de atitude NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2013
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ladainha
natal
Litania de Advento por Vitor Gans
Não saber… Nós não sabemos de Ti, criança que vais nascer, Jesus Cristo – criança que vem de Deus Pai, criança que os anjos cantam, criança que os pastores adoram, criança que reis sábios do Oriente procuram com seus presentes – Não sabemos mais quem Tu és no silêncio da noite santa, na palha do pobre presépio. E por não saber mais quem és, já não sabemos quem somos… Não querer… Nós não te queremos mais, criança que vais nascer, Jesus Cristo. Não queremos a voz dos anjos, nem a muda oração dos pastores, nem o brilho da estrela-guia
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nem a adoração dos reis sábios. Nós queremos ouvir os jingles nos alto-falantes das lojas, nós queremos buscar o brilho fugaz dos presentes caros e fugir do vazio e do tédio abraçando Papai Noel. Não poder… Não podemos mais te amar, criança que vais nascer, Jesus Cristo. Nós somos vazios de poder, nós somos pobres de amor, nós somos vazios de fé, nós somos pobres de alma. Mas, pobres, vazios que somos, esperamos o Teu advento, chegamos ao Teu presépio, com almas vazias e pobres, pedindo que Tu as enchas de novo com fé e amor. Não poder saber, não saber querer, não querer poder! Esperando o Teu Natal, criança que veio do Pai, Jesus Cristo, pedimos que Tu nos faças saber e querer e poder – que enchas de fé e amor as nossas almas vazias, que enchas a nossa vida com a graça do Deus Eterno, fazendo-nos renascer para a vida eterna no Reino. Queremos saber poder ser parte do Teu Advento.
VITOR GANS é arquiteto aposentado em Nova Petrópolis (RS)
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Estatuto de Natal por Ernest Sarlet (1932-2006)
Art. I: Que a estrela que guiou os Reis Magos para o caminho de Belém guie-nos também nos caminhos difíceis da vida. Art. II: Que o Natal não seja somente um dia, mas 365 dias. Art. III: Que o Natal seja um nascer de esperança, de fé e de fraternidade. Parágrafo único: Fica decretado que o Natal não é comercial, e sim espiritual.
Art. VII: Que as pessoas não sigam a corrida consumista de “ter”, mas voltem-se para o “ser”, louvando o Seu Criador. Art. VIII: Que os canhões silenciem, que as bombas fiquem eternamente guardadas nos arsenais, que se ouçam os anjos cantarem Glória a Deus no mais alto dos céus. Parágrafo único: Fica decretado que o Menino de Belém deve ser reconhecido por todas as pessoas como Filho de Deus, irmão de todos! Art. IX: Que o Natal não seja somente um momento de festas, presentes.
Art. IV: Que as pessoas, ao falarem em crise, lembrem-se de uma manjedoura e uma estrela, que como bússola apontem para o Norte da Salvação.
Art. X: Que o Natal dê a todos um coração puro, livre, alegre, cheio de fé e de amor.
Art. V: Que, no Natal, as pessoas façam como as crianças: deem-se as mãos e tentem promover a paz.
Art. XI: Que o Natal seja um corte no egoísmo. Que as pessoas de boa vontade comecem a compartilhar, cada uma no seu nível, em seu lugar, os bens e conquistas da civilização e cultura da humildade.
Art. VI: Que haja menos desânimos, desconfianças, desamores, tristezas. E mais confiança no Menino Jesus. Parágrafo único: Fica decretado que o nascimento de Deus Menino é para todos: pobres e ricos, negros e brancos.
Art. XII: Que a manjedoura seja a convergência de todas as coordenadas das ideias, das invenções, das ações e esperanças das pessoas para a concretização da paz universal. Parágrafo único: Fica decretado que todos devem poder dizer, ao se darem as mãos:
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REFLEXÃO
O sentido do Natal para hoje por Leonídio Gaede
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s comunidades cristãs ritua lizam certos conteúdos da fé. A ritualização é como se fosse uma decoração. Ela representa o conteúdo. Quando, por exemplo, falamos o Credo Apostólico, que já decoramos, podemos fazê-lo no “piloto automático”, isto é, dizer as palavras sem a consciência de fazê-las produzir sentido. Não quer dizer que o Credo fique sem sentido, mas pode ser que o sentido migre da reflexão para o gesto. Algo semelhante acontece quando decoramos uma parede: o foco migra para o artifício da decoração. A pessoa que visita a sala vê a decoração antes de ver a parede. A decoração faz sentido. E quando algo faz sentido, é como experimentar o mel. Já o ritual da decoração é como se fosse um enxame de abelhas que pousa em lugar apropriado para produzir o mel. Lembro que minha mãe escrevia as palavras que nós precisávamos dizer na encenação natalina. Ela seguia o roteiro apresentado pelo Evangelho de Lucas: a) O anjo anunciava a Maria que ela seria mãe; b) Maria visitava Isabel e cantava de alegria; c) José e Maria “desciam” a Belém, onde “não havia lugar para eles na hospedaria” (esse era o momento mais dramático da peça: fazer cara de brabo não era fácil para meu irmão, que representava o hospedeiro); d)
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Os anjos anunciavam o nascimento aos pastores no campo; e) José e Maria apareciam ao redor da manjedoura, recebendo a visita dos pastores e dos magos guiados pela estrela (que, por sinal, vinha aos trancos, fazendo barulho, ao ser puxada num arame torto por alguém escondido atrás do altar). Sem mencionar a igreja cheia na véspera do Natal, essa ritualização acrescentava sentido ao viver da crianç ada pelo menos durante 25% do tempo de cada ano, pois a mobilização iniciava em setembro e terminava tarde da noite no dia 24 de dezembro. A meu ver, cabe ao evangelista João (1.14) o mérito do resumo mais bem feito do Natal: o verbo tornou-se carne, isto é, a palavra se concretizou; Deus virou gente. São, porém, as palavras de Isaías, puxadas lá do passado, que decoram o resumo feito por João. Isaías 11.1-9 pode ser compreendido como uma decoração do sentido do Natal, assim como a encenação mencionada acima. Isaías indica qual prática espiritual corresponde ao conteúdo anunciado. Segundo ele, uma plantinha nova e tenra, como um rebento, surge de uma planta velha, decepada e seca. Com isso o profeta passou a ser lido como quem prenunciou o Cristo. Ele conseguiu dar um sentido ao relacionamento entre o velho e o novo.
Segundo ISAÍAS, uma plantinha nova e tenra, como um rebento, surge de uma planta velha, decepada e seca. Com isso o profeta passou a ser lido como quem prenunciou o Cristo. Ele conseguiu dar um sentido ao relacionamento entre o velho e o novo. O novo irrompe do velho. Assegura, portanto, vínculo com ele.
O novo irrompe do velho. Assegura, portanto, vínculo com ele. Mas o novo não é, de jeito nenhum, perpetuação do velho através de um mascaramento. Isaías rejeitaria o costume de elogiar a boa metade, o mais ou menos. Chamar a atenção para o lado bom das coisas, dizer que nos devemos esforçar para ver a metade cheia do copo não basta. Isaías diria que não é assim que se relacionam o velho e o novo. O novo não aceita ser uma metade do velho. Isaías fala de uma espiritualidade criadora. Ela inclui sabedoria e entendimento. Importa saber criar e entender o que se cria, isto é, saber lidar com isso. Isaías fala de uma espiritualidade redentora. Ela inclui aconselhamento e empoderamento. É o que a versão de Almeida chama de conselho e fortaleza. Jesus justamente dava o conselho de tal forma que o poder da outra pessoa aumentava. “A tua fé te
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salvou”, dizia ele. Essa espiritualidade transfere poder ao público-alvo de uma ação diaconal. Isaías fala de uma espiritualidade conformadora, que inclui reconhecimento e temor de Deus. Não se trata de ter medo do castigo de Deus, mas de recolher-se à sua insignificância.
Andar no “temor de Deus” é andar sabendo que Deus está vendo o que é feito. Quem crê nunca está só. Diz-se que a “vantagem” de quem crê sobre quem não crê é que o primeiro está de mãos dadas com Deus, e o segundo não o vê. Uma espiritualidade criadora (Pai), redentora (Filho) e
conformadora (Espírito Santo) decora o sentido do Natal para os nossos dias. Está em Isaías 11.1-9 e em microexperiências comunitárias, como aquela N citada acima. LEONÍDIO GAEDE é teólogo e ministro da IECLB em Itati (RS)
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ESPIRITUALIDADE
As viradas e o nosso tempo em nada ponho a minha fé senão na graça de jesus. HINOS DO POVO DE DEUS 1, Hino No 161
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s festejos de Ano Novo remetem-nos invariavelmente a uma passagem de tempo: “Adeus ano velho, feliz ano novo, que tudo se realize no ano que vai nascer”. No dia 31 de dezembro, fazemos balanços e promessas de que tudo vai ser diferente. Depois da noite de festejos em que espocam fogos de todas as cores e tamanhos por todos os céus, acordamos no dia 1o de janeiro e tudo continua como antes. “Todos os dias, quando acordo, não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo”, canta Renato Russo. O tempo é só uma maneira de contar a vida. Concordo com Mario Quintana: “Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida”. Para Jean Yves Leloup, teólogo e filósofo, o tempo da eternidade é o tempo de agora – um tempo que já foi, é e será. Assim também escreve o poeta T.S. Elliot em seu poema “Quarta-feira de cinzas I”: “Porque sei que o tempo é sempre tempo. E lugar é sempre e apenas lugar”. Que bom que os rituais marcam a passagem do tempo – os aniversários, o fim e o começo de ano. Assim não sucumbimos a uma linha do tempo insossa. Gosto de pensar em uma li-
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nha do tempo cheia de curvas, picos, saltos, altos e baixos. Quando o aparelho de eletrocardiograma mostra uma linha reta, é porque a vida acabou. É preciso ter altos e baixos para que haja vida. Talvez, se não esquecêssemos tanto que somos seres espirituais – o sopro de vida inflado em nós na Criação nos conectou para sempre com o Criador –, não contaríamos a vida pelo tempo que passa, mas pelas bênçãos vividas. Não há quem não seja em algum momento questionado pela existência e, nesses momentos, volta-se para a busca espiritual. A espiritualidade aponta para uma vida que suporta perguntas sem respostas. A palavra espiritualidade tem origem no latim spiritus, que significa sopro de vida, é um tipo de experiência que se expressa pela consciência de que existe uma dimensão para além do visível e palpável. Em muitas culturas, a palavra espírito significa “a primeira respiração”; aquele que, ao nascer, entra em nosso ser físico junto com a primeira inalação. Os hebreus chamam isso de ruah. As comemorações de passagens do tempo remetem-nos ao que termina, àquilo que é finito. A espiritualidade,
Divulgação Novolhar
por Vera Cristina Weissheimer
ao contrário, nos vincula e conecta ao que é eterno. Ultimamente se tem visto o uso vago do conceito de espiritualidade. Ser “espiritualizado” parece ser muita coisa, mas não diz quase nada. O bem-estar, a busca da paz interior ainda não é espiritualidade, não é vivência religiosa, mas o fruto dessas. Tornou-se comum criticar a religião como sendo somente um código moral de condutas, enquanto a espiritualidade tornou-se popular e flexível, sendo utilizada para um infinito número de jeitos de vivê-la. Uma espiritualidade que não tenha suas raízes na religião pode funcionar por algum tempo e, com
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que possamos aceitar que no ano novo não vamos dar conta de tudo. haverá coisas que acontecerão à revelia da nossa vontade. por isso, necessitamos de serenidade. certeza, vai fazer bem, mas talvez não sustente numa crise. O psicólogo e pesquisador norte-americano Kenneth Paragament afirma: “Vejo a espiritualidade como uma busca pelo sagrado. Ela é, acredito, a função mais central da religião”. Acredito que religião e espiritua lidade são palavras-conceito que formam um par que não deveria ser jamais separado. Uma espiritualidade sem religião corre o risco de tornar-se uma vivência esvaziada de comunhão, individual e egoísta. Religião sem espiritualidade corre o risco de tornar-se seca, fundamentalista e regida por normas morais e de conduta. Que no novo ano possamos aceitar que nem de tudo vamos dar conta. Outras tantas coisas acontecerão à revelia de nossa vontade. A
Oração da Serenidade ensina-nos a aceitar que nem tudo está em nossas mãos. Que bom que não está! A oração é uma síntese dos esforços que devemos desenvolver para vencer a nós próprios e aprender a exercer nossa vontade. Em sua forma básica, mais conhecida, a oração diz assim: “Concede-me, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar as que eu posso e sabedoria para distinguir umas das outras”. Que possamos sair de um ano e entrar em um novo tendo a certeza de que o que mais importa é que, venha o que vier, “Deus é o nosso refúgio e a nossa força, socorro que não falta em tempos de aflição. Por isso não teremos medo, ainda que a terra seja abalada e as montanhas caiam nas profundezas do oceano. Não teremos medo, ainda que os mares se agitem e rujam e os montes tremam violentamente. O Senhor Todo-Poderoso está do nosso lado; o Deus de Jacó é o nosso refúgio” (Salmo 46.1-3,7). N VERA CRISTINA WEISSHEIMER é teóloga e escritora em Joinville (SC)
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penúltima palavra
A penúltima não será a última! por Clovis Horst Lindner
deve acontecer na semana em que esta edição vai para a gráfica, fixar essas palavras com tinta boa em papel couché. Posso apenas garantir que a “Penúltima Palavra” tem tudo para continuar sendo a penúltima. O que quer dizer, literalmente, que pode haver uma edição número 55 com a coluna “Penúltima Palavra”. Assim espero! Assim esperam os que apostaram todas as suas fichas nessa reunião do dia 28 de outubro.
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Arte: Hal Wildson
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o ser criada há dez anos junto com a Novolhar, esta última página de texto de cada uma das 54 edições publicadas teve o seu nome escolhido com uma argumentação filosófica e teológica irrefutável: a última palavra não nos pertence. A palavra definitiva cabe somente a quem de direito: o Criador de todas as coisas. Desde então, esta última página da Novolhar tem sido brindada com brilhantes reflexões, mas sempre apresentadas como uma cautelosa “Penúltima Palavra”. De fato, tudo à nossa volta é provisório, inclusive nós mesmos. Dentro dessa ajuizada percepção, por mais certeiro e definitivo que possa parecer o que afirmamos – tantas vezes com a presunção de encerrar o assunto –, também em relação às nossas “verdades” sempre cabe recurso. Isso vale com precisão matemática para todo aquele que lida com informação e se mete a comunicar. Pois é sabido que muito frequentemente as palavras não funcionam. Elas se quebram. Entram em pane assim que fixadas no papel ou saídas da nossa boca. E, segundo um antigo pensamento chinês, se há algo que não se pode recolher é a palavra dita. E eu acrescento: menos ainda a palavra escrita, especialmente quando o papel é couché e a tinta é boa.
Mesmo com o fatídico editorial publicado na edição anterior – e que gerou uma enxurrada de iradas cartas de pedidos de recurso –, esta “Penúltima Palavra” não há de ser a última. Essa é a firme esperança de cada vez mais gente, que apostou na Novolhar como um bom caminho para refletir, mesmo com “penúltimas palavras”, declarações imperfeitas ou provisórias. Tem muita gente acreditando que “cabe recurso”. Lamento não poder adiantar quaisquer resultados da reunião que
Entretanto, se as nossas fichas falharem, estaremos diante de um autêntico Paradoxo de Russel. Ou seja, se esta penúltima palavra vier a ser a última, estará negada a afirmação de que todas as nossas palavras são penúltimas. Assim, num absurdo da lógica, finalmente teremos conseguido formular a última palavra, e toda aquela ladainha de que ela não nos pertence terá sido desmentida. Pronto! N Deu pane na palavra de novo... CLOVIS HORST LINDNER é teólogo e editor da Novolhar em Blumenau (SC)
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