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CONSUMO
Liberdade? Escravidão? Prazeres e Perigos Consumismo é doença? A crise moral do consumo Educação financeira Hora de consumir menos Consumir com limites
ÍNDICE
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ecumenismo
O amor será o nosso maior testemunho
Ano 12 –> Número 56 –> OUTUBRO A DEZEMBRO DE 2014
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O exercício da fé cristã na política
Um Natal diferente, mas verdadeiro!
eleições
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enchentes
juventudes Extermínio em nosso quintal
SEÇÕES palavras cruzadas > 6 MOSAICO BÍBLICO > 6 NOTAS ECUMÊNICAS > 7
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CULTURA DE PAZ SERPAZ, uma década a serviço da paz
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PASTORAL Finados aos olhos da fé
consultório da fé > 25 O REFORMADOR > 34 REFLEXÃO > 38 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Out/Dez 2014
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AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, Ingelore Starke Koch, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina e Vera Regina Waskow. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Cristiano Zambiasi Jr. Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Alexander Busch, Alfredo Jorge Hagsma, Carine Fernandes, Carolina Rispoli Leal, Cristiano Zambiasi Júnior, Denise Kern, Emilio Voigt, Inácio Lemke, João Artur Müller da Silva, Leandro Hofstaetter, Lucia Sevegnani, Magali do Nascimento Cunha, Marcelo Schneider, Mariane Luzia Folador Dominicini Berger, Marie Ann Wangen Krahn, Nestor Paulo Friedrich, Osvino Toillier, Paula Oliveira, Rui Bender, Vera Maria Immich e Verner Hoefelmann. Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 30,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
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Consumo consciente
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ão é um tema novo alertar para os graves problemas que atingem o nosso já combalido planeta e seus recursos por conta do consumo desenfreado da humanidade. O Homo Erectus, descobridor do fogo, tornou-se Homo Sapiens e construiu uma trajetória evolutiva admirável e única. Ao transformar-se em Homo Consumus, entretanto, inventou necessidades das quais não depende a sua sobrevivência e deixou um rastro que a Criação de Deus desconhecia: o lixo. Confrontado com um futuro difícil, marcado pelas mudanças climáticas e pela escassez de recursos fundamentais para a sua sobrevivência como espécie, é urgente que a humanidade herdeira da civilização do consumo encontre saídas eficazes. É tempo de reduzir, reciclar, reaproveitar. Mas o consumo não deixa apenas problemas e crises em sua passagem. A humanidade vive tempos de fartura nunca antes experimentados, e a maioria vive como nem os reis do passado sonharam. A migração de milhões de pessoas para um novo patamar de consumo, também no Brasil, trouxe conforto, facilidades e acesso à qualidade de vida nunca sonhados há pouco mais de vinte anos. Mas o risco, como já ocorreu no passado nos países do primeiro mundo, é que, também por aqui, se exagere. O consumismo não só desrespeita o direito de mais pessoas a ascender, como pode tornar-se patologia pessoal de difícil tratamento. O debate está aberto nas reportagens que a nossa equipe produziu para esta edição. Há nessas páginas um rico material para sua informação e reflexão; e desafios suficientes para lançá-lo num novo projeto de vida. Como sempre, reportagens adicionais trazem informação, lazer e desafios a você, leitor e leitora. Uma década de caminhada pacífica do SERPAZ faz contraponto ao extermínio de nossos jovens, em dramático relatório sobre a violência em nossa sociedade. A volta dos megaprojetos e de obras faraônicas nas igrejas brasileiras contrasta com a finitude da nossa vida, abordada em matéria sobre Finados. Nossos olhos já se voltam para o final do ano, quando se aproxima mais um tempo de Natal em nosso apressado calendário. Ainda é cedo para desejar-lhe um Feliz Natal. Mesmo assim, já voltamos os nossos olhos para a salvação que brota da palha da manjedoura e lhe desejamos tempos de bênçãos. Equipe da Novolhar
OPINIÃO
Parabéns
Lutero e política
Parabéns pela volta da ótima revista Novolhar! Parabéns pelos artigos de um modo geral! Gostei muito das Cruzadas com ênfase em “Diaconia”. Claro que a gente é a favor de justiça e contra torturas, mas, no artigo “As igrejas e os resquícios da ditadura”, dizer que as igrejas foram levadas a lutar contra o comunismo por conta de distorções creio ser uma visão distorcida (e tendenciosa) da história… Que Deus abençoe todos vocês nesta Novafase da Novolhar!
Engana-se quem pensa que Martim Lutero se tenha ocupado somente com as questões espirituais da igreja. O reformador era uma pessoa pública engajada nas questões sociais de seu tempo, procurando oferecer orientação e até mesmo censura quando necessário. A educação, o comércio e a política eram temas importantes para Lutero. Sobre a política, Lutero tem um escrito quanto à responsabilidade cristã das autoridades políticas. Citando Rm 13, entre outros textos bíblicos, Lutero insiste que a ordem política é parte da boa criação de Deus, necessária para a administração de leis e restrição do mal. É verdade que suas palavras foram dirigidas num tempo e lugar quando a Alemanha era governada por príncipes, cada qual administrando o seu território. Quero destacar, entretanto, que essa percepção de Lutero não perdeu sua importância para o Brasil atual. Precisamos de uma ordem política e de pessoas governando bem nosso país. Isso não significa endossar em nome de Deus a candidatura de uma pessoa ou partido em particular. Significa sim que dar as costas para o processo político é dar as costas para a boa ordem criada por Deus. Em outras palavras, a ordem política é uma bênção de Deus para organizar a justa e boa convivência entre as pessoas. Lutero, porém, também ressalta a responsabilidade de quem ocupa um cargo político. Ele escreve: “O príncipe, ao invés de pensar ‘a terra e as pessoas pertencem a mim. Vou fazer o que melhor me agrada’, deve, pelo contrário, pensar: ‘eu pertenço à terra e às pessoas. Devo fazer o que é útil e bom. Não dominar, mas sim promover a paz e prosperidade’”. Também aqui a percepção de Lutero é bastante atual. Quando exercemos nosso voto, estamos optando por pessoas comprometidas com o bem público? Procuramos conhecer bem os candidatos e candidatas, suas propostas e carreiras políticas? No dia a dia, após as eleições, continuamos a chamar à responsabilidade social e comunitária essas pessoas que nos representam na ordem política? São perguntas que nós, como pessoas cristãs, precisamos considerar seriamente para fazer bom uso dessa bênção que Deus nos dá a ordem política.
Helmut Fertsch – por e-mail Canoas/RS
Contribuição e afastamento Li o artigo na edição de número 55, de autoria do Pastor Emérito Geraldo Schach, acerca dos membros inadimplentes. Em muitas comunidades, o afastamento de membros é um grande problema, sendo grande a dificuldade dos pais em manter os filhos na igreja, principalmente nas grandes cidades, em virtude das atividades do trabalho ou estudo, como também as múltiplas atividades de lazer, vivendo no anonimato religioso. Apesar das mudanças do Código Civil Brasileiro de 2002, ainda muitas comunidades mantêm a estrutura de associação religiosa de luteranos batizados, com fichas de membros para rigoroso controle de contribuições. Muitos membros consideram isso uma mensalidade, contribuindo com valores fixos mensais para ter o direito de participar nas atividades e cultos, de batizar e confirmar os filhos, celebrar casamentos e sepultamentos. No caso de atraso nas contribuições, muitos membros consideram-se inadimplentes, se afastando das atividades das comunidades. O assunto financeiro sempre vem à tona, inibindo esses membros de servir a Deus com os seus dons, perdendo a confiança e a credibilidade na igreja luterana, permanecendo no anonimato religioso. O afastamento e a evasão de membros das comunidades devem ser preocupação de todos nós luteranos, quer seja nas cidades ou nas comunidades rurais ainda existentes, mantendo-os informados das atividades comunitárias, sendo que cada membro deve ser um multiplicador da doutrina luterana. Na minha opinião, a reconciliação entre membros e comunidade deve ser prioridade nas discussões. Wainer Quitzau – por e-mail Indaiatuba/SP
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Tema da próxima edição
A edição nº 57, de Janeiro/Março de 2015, abordará a IGREJA DO FUTURO. Como será a igreja em 2050? Qual o futuro da instituição Igreja? Como a igreja pode ser presença no futuro?
ALEXANDER BUSCH é teólogo e ministro da IECLB em Blumenau (SC) NOVOLHAR.COM.BR –> Out/Dez 2014
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olhar com humor
mosaico bíblico
Consumo Túnica e manto por Emílio Voigt
Com que roupa eu vou? Esta pergunta nem sempre é uma constatação de falta de roupa. O armário pode estar abarrotado, mas não se quer repetir um traje ou se imagina que a veste não seja adequada. Na época do Novo Testamento, havia duas vestimentas básicas: a túnica e a capa. A túnica era usada em casa ou no trabalho. Era feita normalmente de algodão ou linho e tinha comprimento até os joelhos. A capa (manto) era feita de lã grossa e usada em público sobre a túnica. Por causa dos altos preços, boa parte das famílias conseguia comprar apenas uma capa por ano. Em uma família com quatro integrantes, a pessoa receberia uma capa nova a cada quatro anos! A capa era tão valiosa, que podia ser penhorada (Êxodo 22.25s; Mateus 5.40) e era objeto cobiçado por ladrões (Lucas 6.29). Não ter uma capa (manto) significava um status social muito baixo. Manto e túnica eram usados por mulheres e homens. A diferença estava no tipo do corte e no material utilizado. Por causa da forma indefinida do figurino, um acessório importante era o cinturão, que ajudava a prender a roupa ao corpo durante o trabalho ou em outras atividades. Os calçados eram geralmente feitos de couro e podiam ser abertos, como uma sandália, ou fechados. Calçados para uso diário eram feitos de pele de camelo, com solas de casca de palmeira ou junco.
Resposta do Palavras Cruzadas da edição anterior.
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Quando Jesus disse para não se preocupar com a vestimenta (Mateus 6.25), pensava em pessoas que não tinham esse elemento básico garantido. Hoje talvez ele nos faria uma pergunta: precisamos de tanto? Até que ponto o guarda-roupa define a nossa vida? Não é a vida mais importante do que as roupas? N
EMILIO VOIGT é teólogo e assessor de formação do Sínodo Vale do Itajaí da IECLB em Blumenau (SC)
Divulgação Novolhar
Notas ecumênicas Questionador
LUTERO E CATARINA: Um par de sinos com os nomes do casal de reformadores foi instalado na torre do templo de Alto Santa Maria do Garrafão (ES) no dia 28 de setembro. A pequena comunidade de 134 membros juntou 33 mil reais para ouvir o Dó sustenido de Martin (175Kg) e o Mi maior de Katharina (110Kg) em seus cultos dominicais.
JUSTIÇA E PAZ
“Rubem Alves [falecido em julho, aos 80 anos] não estava interessado em nos dar lições de moral ou passar as verdades absolutas e incontestáveis. Como bom teólogo, filósofo e educador, estava mais interessado em nos fazer pensar, questionar as verdades imutáveis da teologia e nos instar a imaginar novas possibilidades e novas formas. Ele nos abria desertos e nos convidava a ser jardineiros e jardineiras.” SONIA MOTA GOMES é pastora da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil (IPU) e secretária executiva da CESE em Salvador (BA)
“Os profetas são visionários que anunciam um futuro que está por vir, são poetas que estão projetando um futuro que pode acontecer. Poetas sugerem um caminho.” RUBEM ALVES (1933-2014)
Ações urgentes O Conselho Mundial de Igrejas (CMI) emitiu um apelo urgente às Nações Unidas pedindo uma resposta imediata ao assassinato de cristãos e outros grupos por parte de militantes do autoproclamado Estado Islâmico no Iraque e na Síria. O pedido, enviado ao secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, reforça e amplia o apelo urgente feito pelo Patriarca Caldeu da Babilônia, Louis Raphael Sako, que pediu ajuda aos cristãos da planície de Nínive, no Iraque, que estão fugindo de suas casas e comunidades depois de dois dias de ataques de morteiros feitos por militantes do Estado Islâmico no Iraque e na Síria. O CMI também enviou uma carta às suas 345 igrejas-membro informando acerca da situação em Nínive e pedindo-lhes não apenas para orar e dar apoio humanitário ao povo do Iraque e Nínive, mas para pressionar seus governos para que peçam o fim das agressões brutais do Estado Islâmico.
É por isso que neste tempo em que vidas inocentes perecem por políticas injustas, seja em terras longínquas ou na esquina, vale a pena juntar-nos à peregrinação de justiça e paz. Vale a pena que comunidades e líderes religiosos convertam discursos falados e cantados em palavras e ações que tornem possível que a justiça e a paz se beijem. MAGALI DO NASCIMENTO CUNHA é professora da Universidade Metodista de São Paulo
Quilombolas O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) une-se às organizações que expressam sua solidariedade aos quilombolas de Oriximiná, no Pará, ameaçados pela exploração minerária em seus territórios tradicionais e desrespeitados em seu direito à consulta livre, prévia e informada. A pressão continua comprometendo os princípios da boa-fé e da liberdade. E a principal reivindicação dos quilombolas é a titulação de suas terras. As Terras Quilombolas Alto Trombetas, Jamari/Último Quilombo e Moura ainda não tiveram sequer o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação publicado, apesar de pronto. NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2013
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CAPA
Os prazeres e os perigos do consumo AUMENTO DA RENDA, OFERTA MACIÇA DE CRÉDITO E UMA CRESCENTE CLASSE CONSUMIDORA VAI ÁVIDA AO MERCADO EM BUSCA DE CASA PRÓPRIA, CARRO, BENS DE CONSUMO E ATÉ LAZER E TURISMO. OS SONHOS DE CONSUMO ESTÃO AO ALCANCE DE MAIS PESSOAS E SONHOS VIRARAM REALIDADE. NAS PÁGINAS A SEGUIR, UMA ANÁLISE DA SATISFAÇÃO E DOS RISCOS DESTE BOOM DO CONSUMO SOBRE ECONOMIA E MEIO AMBIENTE.
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por Carine Fernandes
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país viveu, na última década, um forte crescimento econômico, impulsionado pelo consumo das famílias brasileiras. De 2009 a 2013, a economia cresceu 11% e o consumo das famílias, 16,2%. A estabilização da inflação, a abertura para o mercado internacional, a redução das taxas de desemprego e o investimento do governo em programas sociais ofereceram à população maior estabilidade econômica e mais dinheiro no bolso. Os últimos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam um crescimento de 29,6% na renda média geral do brasileiro entre 2003 e 2013. A casa própria, os eletrodomésticos, o carro e até os estudos, que
faziam parte dos sonhos de consumo de boa parte da população, viraram realidade. Muitas dessas conquistas foram financiadas pelo crédito. Entre 2003 e 2013, a parcela de crédito na economia pulou de 30% do Produto Interno Bruto (PIB) para 58%. O consumo também foi o aliado do país para enfrentar a crise econômica mundial de 2008. Nesse período, o governo ampliou os incentivos para a população continuar comprando e assim manter a economia interna aquecida. E os reflexos positivos no cenário internacional se mantêm. Em 2013, o Brasil subiu 20 posições no ranking de crescimento econômico, que inclui os 188 países sobre os quais o Fundo Monetário Internacional (FMI) tem dados disponíveis. A taxa de expansão do PIB brasileiro foi de 2,3%, o que o coloca em 119º lugar no ranking, à frente de países como Estados Unidos, México e Alemanha. a nova classe média – Dessa política econômica, mais de 100 milhões de pessoas, que antes faziam parte da classe C, ascendem economicamente e formam a nova classe média brasileira. “Ela surge das condições favoráveis do mercado de trabalho e de maior facilidade ao crédito. Ressalto também a inclusão educacional, sobretudo no ensino universitário”, afirma o economista e professor da PUCRS, Gustavo de Moraes. O especialista diz que ainda não se chegou a uma definição consensual sobre como se caracteriza essa nova classe média. “Arriscaria dizer que é formada por pessoas residentes nas áreas metropolitanas (ao redor das grandes cidades) e, de um ponto de vista religioso, não possui um perfil mais tão católico, em comparação a um perfil anterior”. Segundo critério estabelecido pela Secretaria de Assuntos Estraté-
gicos da Presidência da República, estão nesse grupo famílias com renda per capita que varia entre R$ 292 e 1.019 reais. Isso representa 53% da população do Censo de 2010 e equivaleria a aproximadamente 102,6 milhões de pessoas. Um movimento que ampliou fortemente a ascensão dessa fatia da população foi a criação dos programas sociais no governo Lula, como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, ProUni, Fies, entre outros. Essas iniciativas ampliaram a renda e facilitaram o acesso à moradia e ao ensino superior. Dados do governo federal apontam que cada R$ 1,00 de investimento do Bolsa Família gera R$ 1,78 para a economia e possui efeito multiplicador de R$ 2,40 sobre o consumo final das famílias. Os números apresentados até aqui apontam para um cenário positivo não só na economia brasileira, mas na vida das pessoas. Mas a realidade não é tão colorida se aprofundarmos a análise para verificar como essas pessoas administram o dinheiro. Segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE, as despesas das famílias brasileiras em 2009 era dividida desta forma: 21,54% com transporte, 14,22% com habitação, 13,77% com alimentação, 10,02% com despesas pessoais, 7,73% com saúde, 6,38% em artigos para a residência (móveis e equipamentos eletroeletrônicos) e 3,66% com educação. Percebe-se que o item educação, que se torna um investimento para o futuro, é um dos componentes em que menos se gasta. Na avaliação do professor da PUCRS, essa não é a classe mais consumista, uma vez que o consumo das famílias mais abastadas é maior em volume, mas é a classe que menos poupa. “Assim, qualquer ganho salarial tende a ser repassado ao consu-
mo. Dizemos que há uma propensão marginal a consumir grande, ou seja, do que se ganha, muito é alocado ao consumo”, completa. Para ele, o que contribui para um consumo desenfreado é a oferta de novos produtos a cada instante. “Novas linhas de produtos surgiram em eletrônicos, carros, telecomunicações, alimentos e cosméticos e produtos de beleza (academia e odontologia, por exemplo), notadamente. São produtos símbolos dessa nova classe média, além de carros e motos. Essas últimas tiveram ‘explosões de venda’ nos últimos anos em todas as regiões do país”. Para estimular o acesso a bens de consumo, não faltou crédito para os consumidores. Pesquisa feita pelo Banco Itaú no final de 2013 mostrou que as classes de renda mais baixas – C, D e E – da população brasileira detêm 60% dos cartões de crédito ativos do país. As facilidades para ter um cartão de crédito com generosos limites e para buscar empréstimos no banco trouxeram maior consumo e também mais endividamento. De
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INADIMPLÊNCIA: Segundo pesquisa do Serasa divulgada em março 5,9 milhões de brasileiros estão com as contas atrasadas. Um quarto da nova Classe C tem mais de 200% de sua renda comprometida.
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acordo com a pesquisa da Serasa Experian, divulgada em março, no ano passado 5,9 milhões de brasileiros estavam com suas contas atrasadas. O levantamento revelou que 25,6% de pessoas endividadas da classe C, que ganham entre R$ 993 a R$ 3.147, estavam com mais de 200% da renda comprometida com débitos. Os dados também mostram que a falta de organização financeira atinge todas as classes: na A (renda superior a R$ 6.502), essa percentagem de comprometimento com dívidas superior a 200% é de 11,7%; na B (renda de R$ 3.147 a R$ 6.502), o quantitativo era de 23,1%; e na D (ganhos de R$ 300 a R$ 993), 21,9% estavam nessa situação. Para Moraes, não se percebe um consumo consciente na população. “O brasileiro ainda não sabe como aproveitar promoções e conter o impulso para aquisições.” O OUTRO LADO – A doutoranda em Ciências Sociais Carolina Leal apresenta um outro lado do consumo, como forma de inclusão social. “Se antes as camadas mais baixas da população não conseguiam ter acesso a bens,
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hoje, a partir do crédito, foi possível acessar esses recursos. Por exemplo, basta observar o número de veículos circulando nas ruas, assim como os celulares (temos mais celulares do que pessoas)”. Mas ela reconhece que a falta de regulamentações claras e educativas para acesso ao crédito e a pouca educação financeira das pessoas para lidar com o dinheiro tornam-se um problema. “A ‘vida a crédito’ é um modo perigoso de ingressar no universo do consumo de massas: de um lado, porque tornaria a expansão econômica nacional cada vez mais dependente da oferta e circulação de crédito; de outro, porque a simples presença potencial dessa espécie de ‘dinheiro fácil’ daria vazão a práticas de consumo desenfreadas”. O problema não é só a instabilidade econômica das famílias com esse consumo sem limites, mas também a sustentabilidade do planeta. Um estudo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), de 2013, procurou entender o que a nova classe média pensa sobre sustentabilidade. A pesquisa mostrou que o consumo sustentável não é prioridade para essas
famílias e que as questões ambientais são percebidas como distantes da realidade. Há um abismo entre a necessidade do planeta, de economizar recursos, e os desejos dos consumidores por uma vida mais confortável e de acesso a bens. Talvez o caminho seja investir na educação financeira das novas gerações, que podem ajudar seus pais e avós a administrar melhor o dinheiro e cuidar mais dos recursos naturais. Cabe um novo comportamento dos consumidores: de reflexão sobre seus atos de compra. Para nos ajudar nesse caminho, terminamos com as sábias palavras de Gandhi: “A civilização, no verdadeiro sentido da palavra, não consiste em multiplicar necessidades, mas em limitá-las voluntariamente. É o único modo de conhecermos a felicidade e de nos tornarmos mais disponíveis aos outros… Querer criar um número ilimitado de necessidades para ter depois que satisfazê-las é como correr N atrás do vento…” CARINE FERNANDES é jornalista em Porto Alegre (RS)
CAPA
Comprar demais pode ser uma doença Roupas, sapatos, objetos para decorar a casa, eletrônicos e outros diversos: não importa o quê, o consumidor compulsivo está sempre em busca de algo novo para comprar. por Paula Oliveira
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e acordo com uma pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), três em cada 100 brasileiros não resistem ao impulso de comprar, sem se importar com o valor da compra ou com o objeto em si. Essas pessoas não fazem um planejamento financeiro e não pensam nas consequências a longo prazo, apenas na satisfação imediata no ato da compra. Acontece que comprar em quantidade exagerada pode representar um problema de saúde, e esse problema tem nome: é o distúrbio chamado oneomania, caracterizado pelo consumo desenfreado. Os primeiros sinais do distúrbio costumam surgir ainda na adolescência, mas o problema demora a ser identificado muitas vezes, e a pessoa só percebe quando passa a ter problemas financeiros, pois as dívidas se tornam maiores do que a capacidade de pagá-las. Segundo a psicóloga Tatiana Zambrano, a doença é desencadeada por questões emocionais. “A pessoa busca por meio da compra e do acúmulo de bens o alívio
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para frustrações ou sentimentos negativos. Mas o prazer conquistado com a compra é momentâneo e dá lugar à vergonha e à culpa, principalmente quando o comprador compulsivo contabiliza os prejuízos financeiros, pessoais ou afetivos”, explica. Antigamente, essa doença atingia mais as mulheres do que os homens. No entanto, o cenário está atualmente bem equilibrado. Os objetos dos sonhos dos homens são aqueles que trazem algum status. “São mais produtos eletrônicos, carros, laptops. Já as mulheres preferem coisas que dão mais prazer momentâneo: roupas, maquiagem, sapatos e bolsas.” Ao contrário do que muitos pensam, a oneomania não é um distúrbio tão moderno. Ele foi descrito pela primeira vez na literatura médica pelo psiquiatra alemão Emil Kraepelin no início do século passado, porém somente por volta de 1990 é que voltou a ser estudado pela medicina. Mas as características do mundo atual acentuam e agravam o problema. Nunca se consumiu tanto como agora devido aos valores invertidos da cultura do ter e às muitas facilidades de oferta de crédito.
Out/Dez 2014 –> NOVOLHAR.COM.BR
O Ambulatório de Jogos Patológicos e Outros Transtornos do Hospital das Clínicas registrou, nos últimos dois anos, um aumento de dez vezes no número de pacientes que procuravam auxílio por conta do vício em gastar. “A doença sempre existiu, mas os efeitos do capitalismo e o fato de se falar mais sobre o problema fez com que pessoas se identificassem com a situação e pedissem ajuda”, explica a psicóloga, que também é coordenadora do grupo de tratamento a compradores compulsivos do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) em São Paulo. Os grupos de autoajuda são um recurso valioso no controle da oneomania. Inspirados nos Alcoólicos Anônimos (AA) e nos Devedores Anônimos (DA), surgiram no Brasil em 1997 justamente para ajudar quem perde o controle sobre seus gastos e, consequentemente, suas dívidas. Outro grupo é o PRO-AMITI, Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Hospital das Clínicas e da Faculdade de Medicina da USP, que estuda e trata de transtornos compulsivos, alimentares e outras
dependências. Tatiana Zambrano, coordenadora do grupo, alerta para o fato de que os compulsivos em compras normalmente possuem outros casos de descontrole na família: não necessariamente se tratando de dinheiro, podem ser transtornos alimentares, dependentes de álcool etc. O importante é detectar o problema e buscar ajuda. O tratamento tem duas frentes: a médica e a psicológica. O psiquiatra irá avaliar problemas como impulsividade, ansiedade e depressão, e o psicólogo irá auxiliar a pessoa a entender e mudar o padrão de consumo. “A proposta não é não comprar mais nada, mas sim aprender a comprar e perceber o mal que o consumo desenfreado pode causar não só para a saúde financeira, social e afetiva, mas também para a saúde do planeta, já que, quanto maior o consumo, maior a produção de lixo”, conclui. Precisa de ajuda? Entre em contato com PRO-AMITI pelo telefone (11) 2661-7805 ou por e-mail contato@ N amiti.com.br. PAULA OLIVEIRA é jornalista em São Paulo (SP)
CAPA
Vivemos uma crise moral do consumo? por Carolina Rispoli Leal
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famosa antropóloga britânica Mary Douglas percebeu, ainda na década de 1970, que para entender uma sociedade é necessário entender como ela consome e se relaciona com os objetos consumidos. O consumo é, antes de tudo, um fenômeno fundamental para a análise das relações sociais e dos processos que se constituem a partir dele.
Entendemos que nosso modo de viver e consumir hoje está muito diferente de 30, 40 anos atrás: somos impactados com muito mais informação do que antes. Há também disponíveis mais marcas e produtos para adquirir. Grandes conglomerados econômicos fazem circular bens que nos conectam globalmente na mesma ‘onda capitalista’. Assim, fazemos parte, muitas vezes, da mesma ‘tribo’ e usamos até
as mesmas ‘modas’. Nestor Canclini, autor de origem argentina, já havia observado que estilos de vestir e comportar-se repetiam-se em contextos urbanos diversos.
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Afinal, que identidade estamos imprimindo? É única ou segue os ditames publicitários dessas companhias? Precisamos adquirir anualmente um aparelho de celular com uma versão que, veja só, é duas polegadas maior do que a versão ‘antiga’? Comprar o carro de modelo mais atual? Gastar milhões com cirurgias plásticas (o Brasil é líder em número de procedimentos, estando à frente, inclusive, dos Estados Unidos). Precisamos, enfim, comprar tanta coisa? Por outro lado, é preciso refletir de que maneira é produzido tal volume de consumo. A resposta pode estar no crescimento do incentivo ao crédito. Esse acesso cada vez mais facilitado talvez seja a face mais perigosa e comum para o consumo ocorrer. Afinal, é por meio da capacidade de financiar em milhares de parcelas que se pode submeter ao procedimento para o implante nos seios ou realizar o sonho
da casa própria. As luzes de alerta para isso foram acesas em 2008 com a crise oriunda da inadimplência de empréstimos hipotecários nos Estados Unidos. Distribuição indiscriminada, baixa regulamentação, além da criação de produtos feitos a partir desses empréstimos, impactaram todo o sistema financeiro, com repercussão internacional. Mesmo assim, hoje, seis anos após eclodir a crise, o consumo via disponibilização do crédito continua sendo praticado como instrumento não apenas econômico, mas político – especialmente em países que seguem uma doutrina dita neoliberal. O aumento do endividamento da população, seja no México, no Brasil ou na Espanha, deixa as luzes de ameaça de novas crises bem cintilantes no cenário global. Cada vez mais atores sociais, como entidades de defesa do consumidor, institutos de pesquisa e imprensa, mostram-se preocupados com os índi-
ces crescentes e o impacto das dívidas na vida desses indivíduos. Como então explicar a nossa sociedade por meio do consumo? Será que o consumo via crédito não desvirtuou nosso modo de viver? O que buscamos com a aquisição de tantos produtos? Ser feliz, relacionarse ‘bem’ significa submeter-se às pressões sociais para comprar determinada marca? Finalizamos este texto com a provocação do título e um convite para refletir: Vivemos uma crise moral do crédito? O que a sociedade – incluindo aí governo, instituições financeiras, imprensa, cada um de nós – pode fazer para repensar esse modo de consumir e que prejudica desde economias pessoais, de países até a ‘saúde’ ambiental do planeta? N CAROLINA RISPOLI LEAL é jornalista e antropóloga, doutoranda em ciências sociais pela PUCRS em Porto Alegre (RS)
REFLEXÃO DE LUTERO
Bondade de Deus, ingratidão humana Rendei graças ao Senhor, porque ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre. (Salmo 118.1) Este versículo é um agradecimento geral por todos os benefícios que Deus, o Senhor, demonstra ao mundo inteiro diariamente, sem cessar, em todas as coisas, tanto aos bons como aos maus. Deus cria corpo e alma, protege-nos dia e noite, conserva-nos a vida incessantemente, faz brilhar sobre nós o sol e a lua, põe céu, fogo, ar e água a nosso serviço, da terra faz brotar vinho, centeio, pasto, alimento, roupas, lenha e tudo de que necessitamos. Esses bens de Deus são os maiores e os mais desprezados, e por serem comuns, ninguém agradece a Deus por eles; tomamo-los e os usamos diariamente como se não pudesse ser diferente e como se fosse nosso direito, sem agradecer a Deus uma única vez por eles. Entrementes, fazemos todo o empenho, é nosso único desejo, nos preocupamos, contendemos, brigamos, lutamos e nos enfurecemos por dinheiro e bens supérfluos, por honra e prazer. Isso é obra do enfadonho diabo, que não quer admitir que usemos e reconheçamos diariamente a bondade de Deus e os ricos benefícios diários, pois seríamos felizes demais. Fonte: Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero – Sociedade Bíblica do Brasil
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Hora de consumir menos por Lucia Sevegnani
Lúcia Sevegnani
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odos sabem que o consumo move a produção, o emprego e a renda, mas não necessariamente nesta ordem. Nos tempos atuais, a produção vem antes do consumo e, para mantê-la em alta, é preciso consumir. Para que a aquisição seja cada vez mais intensa e veloz, entram em campo a publicidade e a propaganda para gerar demandas, desejos e sonhos por determinado produto. A propaganda age sobre o imaginário da sociedade, fazendo com que as pessoas, independentes de sua classe social ou país, desejem e consumam avidamente. A moda e a obsolescência programada dos bens fazem com que sejam descartados rapidamente, em geral em tempo in-
FEIRA ORGÂNICA: Consumo sustentável investiga a origem dos produtos que consumimos
ferior a seis meses, gerando milhões de toneladas de resíduos altamente poluentes e desperdício de material. A produção e o consumo sem necessidade levam à explotação (exploração de um recurso até sua exaustão) das matérias-primas e do trabalhador, bem como concentram
renda nas mãos de poucos e endividam a maioria. Esse ciclo inexorável tem efeito deletério sobre os ecossistemas, que são convertidos para outros fins (ex.: florestas convertidas em pastagens ou áreas agrícolas) ou explotados em seus componentes de maior valor econômico, desencadeando teias de perdas, alterando ou impedindo seu funcionamento, estrutura e biodiversidade. Com a globalização não existem mais limites nacionais para a exploração das matérias-primas, do trabalho, nem mais barreiras para seu comércio. Dessa forma, bilhões de contêineres atravessam os oceanos levando as riquezas e o produto do trabalho, muitas vezes gerados sem justiça social e muita degradação ecológica.
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Diante do quadro exposto, qual o real significado de consumo sustentável? Esse é um conceito exigente, que nos propõe a investigar a origem dos produtos e toda a sua cadeia produtiva (desde a extração da matéria-prima até seu consumo e descarte dos resíduos), o bem-estar e a renda dos trabalhadores nele envolvidos e os impactos ambientais positivos e negativos inerentes, ou seja, leva em conta muito mais do que preço e qualidade. Ainda estamos aprendendo como consumir de modo sustentável. Mas temos que nos esforçar para aprender logo, pois o planeta com seus ecossistemas está apresentando sinais claros de colapso: de falta de água potável, de recursos minerais, de animais e de plantas, de solo fértil e de ar puro, e as
sociedades estão cada vez mais doentes. As mudanças climáticas que estão em curso exigirão colocar os “óculos do clima” no momento do consumo, ou seja, levar em conta o impacto da cadeia produtiva e do ciclo de vida do produto sobre o agravamento dos desastres naturais. Cada vez mais serão ou deverão ser privilegiados produtos com cadeia produtiva curta e ciclo de vida longo antes do descarte, maximizando assim a utilidade das matérias-primas, valorizando o trabalho empregado e diminuindo o impacto sobre os ecossistemas. No dia a dia, convém comprar produtos locais ou regionais, gerados com tecnologias limpas, não contaminadas por produtos tóxicos, menos poluentes, cujas matérias-primas sejam mais naturais para facilitar seu
consumo, processamento e descarte (reutilização e reciclagem). Em relação aos alimentos, privilegiar aqueles oriundos da agricultura orgânica e dos pequenos produtores familiares, sem muitos atravessadores, que encarecem o produto e exploram o produtor. Produzir alimentos orgânicos em casa ou nos condomínios também se torna uma importante ação em direção à saúde familiar, social e ambiental. Chegou a hora de consumir menos para fazer a roda da produção girar mais devagar, evitando a exaustão dos recursos e a perda da N biodiversidade. LÚCIA SEVEGNANI é bióloga, professora, mestre em Botânica (UFRGS), doutora em Ciências-Ecologia (USP) e presidente da Associação Catarinense de Preservação da Natureza em Blumenau (SC)
Lúcia Sevegnani
SOLUÇÃO CASEIRA: Produzir alimentos orgânicos em casa ou nos condomínios é importante ação de saúde familiar, social e ambiental
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Divulgação Novolhar
CAPA
Educação financeira - um novo olhar por Denise Kern
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s questões do “mundo financeiro” são uma constante na vida de todas as pessoas. Todos os dias, ao acessar a internet, abrir o jornal, ligar a televisão ou sair na rua, somos assediados com os mais variados tipos de apelos. Como resistir/conviver com esses apelos? Como aprender a dizer “não” e consumir menos? Nosso mundo tornou-se instantâneo. Conseguimos tudo, ou quase
tudo, em apenas um clique. Precisamos consumir! E consumimos além de nossas necessidades básicas, porque somos constantemente incentivados a aproveitar promoções, a comprar certos produtos que “nunca mais” estarão por aquele preço. Já não estamos mais no passado, quando o homem consumia para sua subsistência, poluía uma determinada área e procurava outra. Mesmo porque, naquela época, os recursos naturais existiam em abundância e os produtos não eram industrializados, não agredindo tanto o meio ambiente.
Hoje, a educação financeira possibilita discutir assuntos que normalmente só faziam parte do “mundo adulto”, mas que são uma necessidade, mesmo para os que ainda não são alfabetizados. Em nossa cultura, não era comum discutir no grupo familiar assuntos relacionados ao dinheiro. Tampouco falar em consumir com responsabilidade para viver em um mundo sustentável. O desafio que se apresenta é educar para a vida. Devemos preparar cidadãos que possam agir de forma adequada, saudável e com responsa-
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bilidade diante de situações relacionadas à educação financeira, mas de maneira que se leve em conta o meio em que o sujeito está inserido. Todos sabem que o exemplo educa mais do que as palavras. Como cada um está agindo para modificar o mundo consumista em que vivemos? O desafio é ter bom senso, suprindo as necessidades consumistas, mas se preocupando tanto com o equilíbrio financeiro quanto com o equilíbrio sustentável do planeta. O futuro está comprometido! Precisamos preservar o ambiente, pensando em recuperar o que já degradamos e parar de cometer danos à natureza. Existem questões urgentes, como o caso de nosso lixo, que precisam da atenção de cada cidadão. A reciclagem é uma das saídas para que se possa ajudar a dar conta dessa questão. Porém nem todos colaboram com a separação em casa, o que faz com que muito material com potencial para ser reaproveitado vá parar em lixões ou aterros sanitários. Precisamos fazer a nossa parte, porque a mudança começa em cada um de nós. Ao consumir, é necessário optar por produtos de boa qualidade e com preços adequados. Devemos, entretanto, também levar em conta como descartá-los de forma correta no futuro. Nos dias atuais, já existem pontos de coleta para os mais variados tipos de resíduos, desde pilhas, celulares e lâmpadas até tintas e óleos. Devemos tomar consciência de que os resíduos são uma responsabilidade compartilhada entre empresas, governo e sociedade. Não podemos esquecer que vivemos todos no mesmo mundo e dependemos dele. O que traz o questionamento: Quem depende de quem? É o planeta que depende de nossas ações para estar em equilíbrio e que a vida continue sendo possível nele? Ou somos nós
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que dependemos de que o planeta se recupere por si mesmo, pois as pequenas ações não farão diferença? Temos a necessidade de consumir, mas temos a obrigação de consumir com responsabilidade. O consumo descontrolado traz um novo problema: descartar tudo o que virou “lixo”. Com o agravante de que ainda não somos totalmente conscientes de nossa responsabilidade pela destinação adequada do que não vamos mais usar. Que cada um faça a sua parte, por mais irrelevante que ela possa parecer. Buscar rotinas que evitem o desperdício de recursos naturais, energéticos ou financeiros; separar e destinar os resíduos corretamente; colaborar com catadores e outros trabalhadores que fazem o “serviço sujo” para nós; cobrar e acompanhar as ações do governo... Essas e outras ações simples fazem a diferença.
O alto consumo e, por consequência, a geração exagerada de lixo em todo o mundo é preocupante. Porém se pode constatar que muito já é feito e que existem pessoas empenhadas na busca de soluções. Devemos todos colaborar, sem esperar que os outros arrumem uma saída para tudo. A educação financeira traz um novo olhar sobre a questão do consumo irresponsável e aponta que a solução é uma revisão básica de rotinas e formas de pensar. Através de um consumo planejado e sustentável será possível amenizar tanto problemas ambientais como financeiros. Essas atitudes revertem em qualidade de vida, deixando um planeta mais equilibrado para as N próximas gerações. DENISE KERN é mestre em Ensino de Ciências Exatas, autora e professora no Instituto de Educação Ivoti em Ivoti (RS)
livros e filmes sobre consumo Para quem quiser se aprofundar no tema do consumo e do crédito, aqui vão dicas de filmes e livros. Há sugestões que contemplam desde a crise econômica de 2008 (um exemplo de distribuição de crédito malsucedido) até outras que abordam o tema de forma mais leve, mas não deixam de propor uma reflexão sobre o ato de consumir.
FILMES
Os delírios de consumo, de Becky Bloom (2009). Baseado num livro com o mesmo nome, o filme conta a história de Rebecca Bloomwood, uma garota que adora comprar e que vai à falência devido a seu comportamento muitas vezes compulsivo. A partir do trabalho como colunista numa revista de finanças, ela repensa suas escolhas e ambições. Trabalho interno (2010). Documentário premiado com o Oscar em 2011, “Trabalho interno” trata da crise financeira global de 2008. Dividido em cinco partes, o filme explora como as alterações no ambiente político e as práticas bancárias ajudaram a criar a crise econômica. Wall Street – Poder e cobiça (1987). Um filme dos Estados Unidos, realizado em 1987 por Oliver Stone e que conta com as participações de Michael Douglas, Charlie Sheen, Daryl Hannah e Martin Sheen. O filme evidencia a busca pelo mito, entendido como a ascese capitalística representada pelo acúmulo de riqueza e poder nas mãos de poucos e seletos indivíduos através da valorização da ganância e da cobiça.
LIVROS
Mentes consumistas: do consumismo à compulsão por compras; Ana Beatriz Barbosa Silva; Principium Editora e Globo Livros, Rio de Janeiro, 2014 Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria; Zygmunt Bauman; Zahar, Rio de Janeiro, 2008 Vida a crédito: Conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo; Zygmunt Bauman; Zahar, Rio de Janeiro, 2010.
CAPA
DOENÇAS RARAS
Consumir com limites por Marcelo Schneider
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eres humanos são, inegavelmente, corporais e, como tais, necessitam de uma certa quantidade de bens materiais. De acordo com Tomás de Aquino, o consumo é necessário e até natural, mas devemos diferenciar entre o consumo adequado e o princípio do consumismo, que está tão presente na economia de hoje. A norte-americana Annie Leonard, uma das mais célebres críticas do consumismo, descreve essa diferença da seguinte forma: “Há o consumo natural, que se baseia na aquisição e utilização de produtos e serviços para atender as necessidades de cada um, e há o consumismo, que é aquela relação especial de consumo em que procuramos satisfazer nossas necessidades emocionais e sociais através de compras, definindo e demonstrando nossa autoestima através dos bens
que possuímos. Acabamos tomando muito mais do que precisamos e do que o planeta pode sustentar. Consumismo é, portanto, excesso”. Muitos cristãos acreditam que o valor de uma pessoa deve ser julgado por suas ações, não pelo dinheiro ou pelos bens que possui. Eles lembram que Jesus ensinou que a riqueza leva à ganância e ao egoísmo e não leva à felicidade verdadeira. Eles também acreditam que a riqueza, às vezes, pode ser usada para o bem ou para o mal. Outros acreditam que o dinheiro é a raiz de todo mal. E as igrejas? Será que todas elas têm posições iguais acerca desses temas? A chamada “teologia da prosperidade” não tem problemas com o acúmulo de riqueza e o consumo exacerbado. Toda riqueza é uma bênção, e o alcance dessa bênção vem através do pagamento, por parte
do fiel, da parte que lhe cabe, colocando, assim, Deus em dívida com o povo que lhe paga o devido tributo. Toda riqueza seria, então, sinal dessa bênção. O acúmulo é a bênção multiplicada, o que tem consequências missionárias. Recentemente, o papa Francisco emitiu um forte pronunciamento sobre a questão do consumismo exagerado. “Frequentemente, somos levados pelo orgulho da dominação, dos bens, da manipulação, da exploração; não cuidamos da criação, não a respeitamos e não a consideramos um presente de Deus de que precisamos cuidar. Estamos perdendo a atitude contemplativa, a capacidade de ouvir a criação pedindo socorro diante de nossa cultura de consumo sem limites”. Francisco também chamou particular atenção à maneira como essa cultura do desperdício NOVOLHAR.COM.BR –> Out/Dez 2014
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ECUMENISMO acaba resultando num enorme descarte de comida, enquanto muitos ao redor do mundo estão morrendo de fome. Em 2012, o programa do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) sobre Pobreza, Riqueza e Ecologia emitiu o resultado de uma série de consultas globais em torno dos três eixos que davam nome à iniciativa. O documento chamado “Economia da Vida, Paz e Justiça para Todos/as: Um Chamado à Ação” alerta para o fato de que nenhuma transformação da cultura do consumismo será sem sacrifício e risco, “mas a nossa fé em Cristo exige que nos comprometemos a ser igrejas transformadoras”. Em outras palavras, as igrejasmembro do CMI, em sua maioria ortodoxas, luteranas, reformadas, anglicanas, presbiterianas, metodistas e pentecostais, comprometeramse em “cultivar a coragem moral necessária para testemunhar a espiritualidade da justiça e da sustentabilidade e construir um movimento profético por uma Economia da Vida para todos”. A convicção das igrejas que formam o CMI é de que o crescimento econômico sem restrições estrangula o florescimento de nosso próprio habitat natural, gerando mudanças climáticas, desmatamento, acidificação dos oceanos, perda da biodiversidade e assim por diante. “O consumismo sem limites gera uma enorme dívida social e ecológica dos países desenvolvidos do Hemisfério Norte em relação aos povos do Hemisfério Sul global, bem como uma dívida com o próprio planeta”. N
MARCELO SCHNEIDER é teólogo e trabalha para o Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre (RS)
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O amor será nosso maior testemunho
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Simpósio Ecumenismo e Missão – Testemunho Cristão em um Mundo Plural, além de criar um ambiente de convivência e diálogo é um momento forte de reflexão e partilha à luz da Palavra de Deus. Promovido pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), o evento reuniu nos dias 21 a 24 de agosto cerca de 100 pessoas em Vargem Grande Paulista (SP). A pastora luterana Dra. Wanda Deifelt, professora de teologia no Luther College em Decorah (IA) EUA, fez uma leitura sobre metodologias missionárias a partir de Atos dos Apóstolos. Segundo a professora, o texto apresenta desafios e possibilidades para a missão. Ao avaliar a história da missão na América Latina, a Dra. Deifelt destaca “críticas severas ao modelo missionário seguido, com a associação entre a cruz e a espada, e a cruz imposta aos povos indígenas e missionários”. Hoje o cristianismo predomina nesses países. Para a biblista, neste terceiro milênio “cabe-nos fazer uma avaliação sobre a diferença que a presença do cristianismo tem causado na vida das pessoas. Creio que as igrejas já se deram conta que a preocupação única pela salvação da alma já não é impulso suficiente para a missão. Este fim já não justifica mais os meios. Cada
vez mais as igrejas se apercebem que a prática de Jesus não era só salvar a alma do mal, mas também pregar a ressurreição do corpo e anunciar que o evangelho é boa notícia no presente. Também o como da missão deve ser motivo de reflexão”. Segundo a pesquisadora, o autor de Atos dos Apóstolos tenta pintar uma imagem um tanto uniforme e otimista do crescimento do cristianismo. A pastora selecionou cinco exemplos de desafios missionários presentes no livro que, segundo ela, continuam sendo atuais. Eles mostram as possibilidades e discrepâncias no agir missionário. Pelas narrativas dos evangelistas, junto com os discípulos havia algumas mulheres. Apesar de o texto mencionar os homens, com exceção de Maria, a mãe de Jesus, as demais mulheres não são identificadas. Uma leitura mais criteriosa, porém, mostra que as mulheres também haviam tido uma presença no ministério de Jesus, fazendo parte do círculo mais próximo de amizade. Elas haviam estado com Jesus até o fim e sido as primeiras a testemunhar sua ressurreição. Muitos peritos na área de missiologia tomam o texto de Atos 4.32-35 como uma explicação para o sucesso e a expansão do cristianismo. Quem possuía casas e terras vendia sua
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o que faz o jovem sonhar? Como seus AUTISMO E DEFICIÊNCIA
APESAR DOS DOGMAS: Mesmo discordando, devemos manter o diálogo e exercitar o amor
propriedade e o valor correspondente era distribuído aos que tinham necessidade. Tinham tudo em comum. A caridade é tida como um dos grandes motivadores para a adesão de novos membros à comunidade cristã. Isso certamente nos provoca, nestes tempos de disparidade social em que, ao invés da solidariedade, o evangelho de Cristo tem sido reduzido à teologia da prosperidade. Nos EUA, muitos defendem que os ricos devam ficar mais ricos para então poder fazer mais caridade. Na América Latina se fez muita missão a partir da assistência social, o que foi de grande valor para um modelo de diaconia. A pergunta para a missão hoje é se este modelo ainda serve. Será que o modelo da economia solidária serve como alternativa ao da generosidade dos ricos para com os pobres? Por que não pensar em participação e sustentabilidade em vez de dependência e assistencialismo?
Os jovens são mencionados várias vezes no livro de Atos. O exemplo mais contundente do papel dos jovens na missão está em Atos 20.712. Paulo encontra-se em Trôade e a congregação se reúne para partir o pão com ele, mas Paulo se estende com sua pregação até a meia-noite. Um jovem chamado Êutico, que estava sentado numa janela, adormecendo profundamente durante o prolongado discurso de Paulo, vencido pelo sono, caiu do terceiro andar e foi encontrado morto (Atos 20.9). Paulo desce, abraça o rapaz e declara que ele está vivo. Sobe outra vez ao cenáculo, parte o pão e continua pregando até o romper do dia. A igreja com seus longos discursos e dogmas não é atraente para os jovens. A ação missionária com jovens em nossos dias deveria ser analisada. “O sono do jovem deveria abrir nossos olhos. Por outro lado, quem adormece sonha. O desafio missionário me parece evidente e nos instiga a perguntar
sonhos podem ser transformados em realidade?”, interpela Wanda. Já o discurso de Paulo no areópago (Atos 17.16-31) é o melhor exemplo do diálogo entre o cristianismo e as demais religiões. O cristianismo tem uma capacidade incrível de adaptar e cooptar – incluindo aspectos de outras religiões e práticas, o que provavelmente atesta para a sua sobrevivência e sucesso. Mas nisso há também uma tensão. Os fins ou os meios? Exclusivismo, inclusivismo ou pluralismo? No Brasil percebe-se que dentro da mesma comunidade coexistem diversas expressões religiosas de matriz diferente. A mulher luterana vai à benzedeira, o católico também é do candomblé, a anglicana é ao esmo tempo kardecista. “Estas múltiplas fidelidades merecem uma atenção maior das igrejas, pois gente acha que a igreja vai dialogar com outras religiões, mas às vezes elas já moram na própria casa”, sugere a pastora. Os desafios missionários hoje são tão intensos como eram no início do cristianismo. Assim como a missão é um movimento para fora, da comunidade cristã para o mundo, ela também tem uma dimensão para dentro, dos desafios que o mundo apresenta para a reflexão e prática cristãs. Como humanidade, nos damos conta que a diversidade é dom de Deus. Descobrimos a nossa capacidade criativa e criadora, que nos permite pôr em prática os nossos sonhos. Mesmo discordando devemos nos manter em diálogo e exercitando o amor. “Não os dogmas, os mitos ou os ritos, mas o amor será nosso maior testemunho”, enfatiza Wanda, cujas reflexões devem contribuir para a elaboração de um documento com orientações para a vivência do ecumenismo no Brasil, N a ser montado pelo CONIC. NOVOLHAR.COM.BR –> Out/Dez 2014
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Reprodução Novolhar
ELEIÇÕES 2014
GRÉCIA: A democracia nasceu no Areópago de Atenas, na Grécia Antiga, lugar em que se desenvolveu a ideia de participação popular na política
O exercício da fé cristã na política por Nestor Paulo Friedrich
O
povo brasileiro experimenta um período democrático duradouro. Ao longo de várias décadas ele vem tendo a oportunidade para se manifestar e expressar a sua opinião por ocasião da eleição de pessoas para
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funções nos níveis municipal, estadual e federal. No mês de outubro deste ano, milhões de brasileiros e de brasileiras irão se dirigir às urnas com o objetivo de eleger representantes para os legislativos e executivos estaduais e federais.
O cenário eleitoral mostra que essa rotina está permeada por sentimentos contraditórios. Observa-se, de um lado, entusiasmo e grande paixão. De outro lado, verifica-se um desânimo em setores significativos da sociedade. Apesar das mudanças e das melhorias acontecidas em diversas áreas, podem ser elencados problemas e dificuldades que perduram. A consolidação de uma rotina eleitoral, sinal de amadurecimento da democracia, por sua vez, também desperta certa frustração com o sistema político brasileiro. O nível de informação sobre a realidade cresce em meio à população e a democracia representativa parece não dar conta das dificuldades que perduram. O descrédito para com a classe política e a fragilidade dos processos decisórios fazem crescer a vontade de uma maior participação cidadã nas decisões que envolvem projetos,
investimentos e gestões públicas. As pessoas querem sair da sua posição de expectadoras e desejam uma intervenção mais decidida na formulação, implementação e fiscalização de políticas públicas. Surge a consciência de que democracia é mais do que o simples exercício do voto a cada dois ou quatro anos. Emerge a perspectiva de que a cidadania diz respeito à participação e ao envolvimento político no cotidiano da vida. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) está envolvida com o processo político brasileiro. Ao longo das três últimas décadas, emitiu cartas pastorais, posicionamentos e declarações sobre temas da realidade brasileira. Com toda clareza a Igreja evita separar a fé e a política, ainda que as distinga. Com muita convicção ela afirma a dignidade da vocação política e a reconhece como um chamado a serviço do povo com vistas à promoção da justiça, da paz e da fraternidade. A partir da teologia luterana, entende-se que Deus tem o Estado como instrumento de ação no mundo. Deus coloca a seu serviço governos e instituições, independente de sua orientação religiosa. Mesmo que ao longo do tempo tenha havido uma mudança nas estruturas políticas e em sua representação, o Estado torna-se insubstituível. A sua superação darse-á somente quando a lei estiver inscrita no coração das pessoas (Ezequiel 36.26s) e quando Deus habitar no meio do seu povo (Apocalipse 21.3s). A IECLB faz parte da tradição protestante que se empenha pela separação de religião e Estado. Preconiza a defesa do Estado laico. A IECLB incentiva sempre a participação em partidos políticos como canais institucionais que expressam valores e ideologias presentes na sociedade brasileira. Condena vícios
nefastos presentes na cultura política brasileira. Dentre eles, destaca-se o clientelismo, o coronelismo e a defesa de interesses meramente corporativos e pessoais. Por isso, para a IECLB, o assédio às pessoas identificadas com a fé evangélica por parte de candidatos/ as e a tentativa de transformá-las em um curral eleitoral representam um grande desserviço à democracia. A IECLB evita a tentação de exercer qualquer tipo de tutela sobre os seus membros. Ela não tem candidatos próprios por uma questão de princípio: ela não é partido político! A partir do Evangelho, as pessoas, ao mesmo tempo cidadãs e membros da Igreja, têm uma profunda liberdade para agir responsavelmente na sociedade e no mundo. Nenhuma pessoa pode ser coagida a agir contra a sua consciência. Nenhuma liderança eclesiástica pode impor qualquer candidatura ou proposta político-partidária. Deve, isso sim, incentivar a reflexão sobre valores e princípios a serem considerados nas escolhas políticas. Com base nessa visão, torna-se condenável o uso e abuso de símbolos religiosos ou mesmo o nome de Deus como forma de sensibilização para ganhar o voto das pessoas. Para a teologia luterana, Deus fica descartado como cabo eleitoral e nenhuma candidatura pode arvorar-se como preferida de Deus. O uso do nome de Deus para mascarar interesses particulares tornase uma ofensa ao seu nome. A defesa de interesses pessoais e corporativos, inclusive de igrejas, representa uma forma de egoísmo grupal. Pisoteia o valor sublime da política que se caracteriza pela dedicação ao bem comum, pela defesa da dignidade humana e pela transformação da sociedade. A partir da liberdade proporcionada por Cristo, as pessoas evangélicoluteranas chamam a si a prerrogativa
da crítica e do questionamento às instituições quando estas não estiverem a serviço da justiça, da paz e da integridade da criação. Pessoas evangélico-luteranas não voltarão as costas para a política quando regimes e governos estiverem prestando um desserviço à sociedade. Contribuirão, isso sim, para a sua reforma, seu redirecionamento, sua transformação ou sua substituição segundo os propósitos de Deus. No ano em que a IECLB celebra seus 190 anos de história e tem como tema ”viDas em comunhão”, o processo eleitoral torna-se uma oportunidade para fortalecer vias que promovam a “paz da cidade”. Em meio à efervescência eleitoral, os membros das comunidades são chamados para o exercício da fé cidadã de forma responsável, evitando (sobretudo nos debates nas redes sociais) linguagens generalizantes de uma crítica fácil e superficial. Igualmente, todas as pessoas são conclamadas para o exame cuidadoso dos históricos de vida das candidaturas, das suas trajetórias políticas, dos seus programas, dos seus compromissos assumidos e a discernir o projeto a ser apoiado à luz dos valores evangélicos. Exercitemos, pois, a cidadania que brota da fé! Participemos da vida política como resposta à vocação de Deus! Oremos a Deus para que a civilidade, a paz, a justiça, a harmonia, a liberdade, a democracia se tornem realidade pelos vínculos baseados no respeito, no diálogo, na gratidão, na partilha e na diaconia! Procurai a paz da cidade para onde vos desterrei e orai por ela ao Senhor, porque na sua paz vós tereis paz (JeN remias 29.7). NESTOR PAULO FRIEDRICH é teólogo, doutor em Teologia e Pastor Presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil em Porto Alegrte (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Out/Dez 2014
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ENCHENTE NO ESPÍRITO SANTO
Um Natal diferente, mas verdadeiro! por Mariane Luzia Folador Dominicini Berger
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ão foi o pior Natal que vivemos... foi o mais significativo, o mais verdadeiro. O sentido do Natal que o capitalismo nos impõe é o materialista, aquele onde a “farra” se faz com bebidas, muita comida e, claro, presentes, que no outro dia, para muitos, são esquecidos... Nós vivemos, em 2013, o Natal de fato, a
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verdadeira celebração do nascimento do menino Jesus, quando as famílias se reuniram de forma diferente: famílias diferentes na mesma casa, comendo a comidinha do dia-a-dia e agradecendo por ela; pessoas de diferentes religiões na mesma casa, orando pelo mesmo fim; igrejas com doutrinas diferentes, celebrando um “ecumenismo” diferente.
Reconhecemos neste Natal diferente e inesquecível que não importa se somos do sul, do norte, do interior, do litoral, do campo, da cidade, do centro ou da periferia... somos humanos frágeis e muito pequenos. Aprendemos que a natureza tem força e que não podemos competir com ela. Aprendemos que dinheiro não nos faz melhores ou piores e que, mesmo o tendo, você precisa do outro para te dar a mão. Aprendemos a proteger, além dos nossos familiares, nossos vizinhos, amigos, conhecidos e até desconhecidos, lembrando de cada pessoa que poderia estar em área de risco. Descobrimos que na hora do risco, do desespero, não lembramos da melhor roupa, do melhor calçado, da melhor joia. Confirmamos que o dilúvio não foi somente uma lenda como alguns ainda teimam em afirmar. Confirmamos que Deus existe sim, que a sua energia é impulsionadora e renovadora de forças capazes de salvar pessoas, sem
consultório da fé
O correto é usar templo ou igreja?
saber como. Quem moveu as equipes de resgate? Não foi simplesmente sua força física, tão peculiar, foi a força divina que as iluminaram e impulsionaram. Durante quatro dias, não ouvimos o som dos pássaros, nem o cantar dos galos da madrugada, só ouvimos o barulho da correnteza da água, das máquinas trabalhando nos resgates, dos pedidos de socorro. No quinto dia, as pombas voaram, literalmente, os pássaros cantaram e os galos anunciaram na madrugada que podíamos recomeçar... Aprendemos também que o menino Jesus deve renascer todos os dias, em todos os momentos de nossas vidas e não apenas no dia 25 de dezembro. Não há dia marcado para deixar Jesus entrar em nossas vidas e habitar em nossos corações. Obrigado meu Deus, N nosso Deus, nossa Energia!
por Verner Hoefelmann Uma comunidade preparava o aniversário de 50 anos de seu templo quando alguém perguntou: É correto falar em templo ou se deveria dizer igreja? O Novo Testamento grego possui três palavras para falar do assunto. A primeira é hierón, que se traduz por templo. Tratase de um prédio em que se presta culto a uma divindade. No Novo Testamento, o termo refere-se, em geral, ao templo de Jerusalém, onde se cultua o Deus de Israel (Marcos 11.15), mas também pode designar o templo de outra religião. Não se usa o termo para designar um prédio de culto cristão. A segunda palavra, naós, também se traduz às vezes por templo, mas, na verdade, significa santuário, o átrio interno de um templo, ou seja, o seu espaço mais sagrado. No templo de Jerusalém, era um local restrito aos sacerdotes (Lucas 1.8-10). Aplicada à fé cristã, utiliza-se essa palavra apenas em sentido simbólico: Paulo diz que a comunidade é santuário de Deus ou que nosso corpo é santuário do Espírito Santo (1 Coríntios 3.16-17; 6.19). A terceira palavra é ekklesía, que se traduz por igreja. Esse termo significa sempre o conjunto de pessoas que confessam sua fé em Jesus Cristo (1 Coríntios 1.2; Gálatas 1.13), jamais uma construção. Nenhuma das três palavras, portanto, designa no Novo Testamento uma construção cristã. Isso por um motivo muito simples: nos dois primeiros séculos, as comunidades não se reuniam em prédios específicos, e sim em casas (Romanos 16.5; Filemom 2) ou outros lugares comuns (Atos 16.13). O primeiro prédio próprio de culto de que se tem notícia se localiza na cidade de Dura Europos, na Síria, e é de meados do terceiro século. Aparenta ter sido uma casa comum, convertida depois em espaço público para a celebração de cultos. Deu-se depois a tais construções o nome de igreja, talvez para distingui-las dos prédios de outras religiões, como as sinagogas ou mesquitas. Minha conclusão: templo é um termo genérico que pode designar o prédio de culto de qualquer religião, inclusive a cristã. Igreja tornou-se o termo específico para designar o local de culto cristão. N Gabriel Lordello
MARIANE LUZIA FOLADOR DOMINICINI BERGER é membro da IECLB na paróquia de Itaguaçu (ES)
VERNER HOEFELMANN é teólogo e profressor de Teologia na Faculdades EST em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Out/Dez 2014
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JUVENTUDE
Extermínio em nosso quintal por Rui Bender
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á coisas que a gente não quer saber. Faz de conta que não têm nada a ver com a gente. A vida já é complicada. Então por que complicar mais ainda? O que não afeta a mim e minha família não é problema meu. Assim quase todos nós pensamos. Mesmo quando jovens estão morrendo violentamente em nosso quintal.
A morte violenta de adolescentes não é somente uma realidade em grandes cidades, mas está presente em todos os lugares, também em São Leopoldo (RS), lamenta Allan Erwin Krahn, presidente do Conselho Diretor do Programa de Apoio a Meninos e Meninas de Rua (PROAME) – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA) Bertholdo Weber, na
orelha de um livro que denuncia essa realidade de extermínio. Falamos de “Desvelando percepções de uma realidade – O extermínio de adolescentes e jovens”, lançado em agosto durante aula inaugural da Faculdades EST no auditório do Colégio Sinodal em São Leopoldo. A publicação foi coordenada pelo professor André Musskopf e financiada pela Petrobras com o apoio da KinderNotHilfe. O jovem do sexo masculino, negro e morador de periferia é a principal vítima do extermínio, revela o livro. No Brasil, segundo dados do Índice de Homicídios na Adolescência, 33 mil jovens entre 12 e 18 anos foram assassinados entre 2006 e 2012. Isso significa que, todo dia, cerca de 13 adolescentes e jovens são assassinados no país. A maioria das mortes está relacionada ao uso e ao tráfico de drogas
Fotos: Rui Bender
MÃO NA MASSA: Adolescentes e jovens atendidos pelo PROAME durante o lançamento do livro “Desvendando percepções de uma realidade”
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DRAMATIZAÇÃO: Adolescentes da periferia de São Leopoldo numa representação teatral enfocando o tema do extermínio de jovens
e, por fim, à exploração sexual. As meninas são as que mais sofrem com a violência doméstica e a exploração sexual. Normalmente, as vítimas têm entre 15 e 24 anos. Conforme dados da Secretaria de Segurança Pública, o município de São Leopoldo corresponde ao registro de 3,4% dos homicídios em todo o estado do Rio Grande do Sul. Segundo o livro, as mortes violentas ocupam o terceiro lugar, atrás somente das doenças do aparelho circulatório e câncer. A proporção de homicídios de adolescentes e jovens aumentou de 47% para 53% no Rio Grande do Sul. Em São Leopoldo, passou de 55% para 60% do total de mortes. Odete Zanchet, diretora executiva do Proame-Cedeca, observa que parece ser conveniente para a sociedade esse extermínio. Afinal,
esses jovens incomodam e não são produtivos. Dos homicídios registrados em 2013, o perfil das vítimas revela que 93% são do sexo masculino. O mapa dos homicídios em São Leopoldo também mostrou que há maior incidência de casos nos bairros Feitoria, Vicentina, Santos Dumont, Rio do Sinos, Campina e Arroio do Manteiga, ou seja, nas regiões leste, nordeste e oeste do município. 70% das vítimas estavam envolvidas no tráfico de drogas. Por causa dessa situação, o Proame-Cedeca lançou a campanha “Pelo Direito à Vida – contra o Extermínio de Adolescentes e Jovens”, buscando despertar o debate no município. Na oportunidade do lançamento da obra, o sociólogo e pesquisador José Vicente Tavares dos Santos, diretor do Instituto Latino-Americano de Estudos
Avançados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), ressaltou que “a sociedade não quer reconhecer esses jovens como participantes da caminhada”. Ele admitiu que “todos somos responsáveis pela raiva dos jovens”. O livro demonstra uma rea lidade de sofrimento, mas entende a importância de dar visibilidade à realidade de violência a que muitos adolescentes estão expostos. Por isso todos são “responsáveis por transformar a realidade de sofrimento”. Para que não mais se precise ouvir o clamor do jovem Kevin Richard da Silva, integrante do Fórum de Adolescentes e Jovens, no ato do lançamento: “Será que alguém tem o direito de matar outra pessoa?” N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)
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CULTURA DE PAZ
Uma década a serviço da paz
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m 6 de agosto de 2004, um grupo de mais de 30 pessoas reuniu-se na Faculdades EST para fundar a ONG SERPAZ – Serviço de Paz. A motivação principal era oficializar uma entidade para facilitar a promoção das oficinas do Projeto de Alternativas à Violência (PAV) junto a entidades públicas como escolas, prisões e outras.
O SERPAZ tem em sua origem pessoas que foram integrantes do Movimento de Justiça e Paz, que surgiu no fim dos anos 1960, e depois do Secretariado Justiça e Não Violência durante a ditadura militar. Ambos atuaram como movimentos de resistência, com base na não violência, contra as barbáries causadas pela ditadura em nosso país e na América Latina.
AÇÕES: Campanha em favor do desarmamento em São Leopoldo em 2005
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Fotos: Arquivo SERPAZ
por Marie Ann Wangen Krahn
Suas ações e princípios – especialmente a não violência – continuam sendo as marcas do SERPAZ. O foco principal é a educação pela paz para a construção de uma cultura de paz. Acredita-se que, para ter uma cultura de paz, é necessária a transformação de atitudes e comportamentos, começando por nós mesmos. Precisamos aprender a pensar, falar e agir de maneira não violenta, com atitudes respeitosas, afirmativas e cuidadosas nas relações com outras pessoas. Uma das melhores formas de aprender isso é através de vivências e dinâmicas em grupo, nas quais se formam comunidades de confiança. O PAV trabalha justamente com essa metodologia. O PAV é um movimento criado em 1975 pelos Quakers, uma denominação protestante declaradamente pacifista, e começou em um sistema prisional no estado de Nova Iorque, EUA. Hoje o PAV está sendo difun-
FORMAÇÃO: Dinâmica de grupo com mandala numa oficina de PAV em São Leopoldo. Fundador do Serpaz, Ricardo Wangen, está com camisa amarela Centenas de oficinas foram realizadas em dez anos
dido em mais de 50 países, trabalhando em prisões, escolas e comunidades. Em 2000, esse projeto foi trazido ao Brasil pelo pastor Ricardo Wangen. É um programa de oficinas, com exercícios de afirmação, jogos animados, sociodramas de situações de conflito e a prática de técnicas simples para uma comunicação efetiva e afetiva, não violenta. Tais dinâmicas ajudam a construir comunidade de confiança e verificar as causas da violência, além de buscar ações alternativas, desenvolvendo autoestima, autoconfiança, solidariedade e cooperação. O PAV visa a uma cultura de paz, que valoriza as pessoas pelo que são. Nestes dez anos de vida do SERPAZ, centenas de oficinas do PAV foram realizadas. Para isso foram feitas parcerias com o poder público, com secretarias de educação, de segurança, de saúde e com outras entidades particulares e com igrejas. O SERPAZ tem suas raízes na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e vem atuando em parceria com diversas comunidades e outras insti-
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PASTORAL
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Finados aos olhos da fé
tuições, como a Faculdades EST, da IECLB. Muitos ministros e ministras da IECLB são facilitadores do PAV e/ou membros do SERPAZ. Porém devemos sublinhar que SERPAZ é uma ONG sem filiação religiosa, nem partidária, sendo aberta a todas as pessoas. O SERPAZ também atua na educação em direitos humanos e participa de vários comitês de direitos humanos. Na Campanha pelo Desarmamento, teve uma forte atuação no referendo de 2005 sobre a venda ou não de armas, trabalhando para tirar as armas das ruas e das casas. O SERPAZ, junto com outros, trabalha pela ratificação do Tratado Internacional do Comércio de Armas, que visa regulamentar o comércio internacional de armas convencionais, com o intuito de coibir o tráfico ilegal de armas. Atuamos junto com o Conselho Mundial de Igrejas através da IECLB e em colaboração com Control Arms para que esse tratado fosse aceito pela ONU. O Brasil assinou, porém ainda não ratificou o tratado. Assim, ainda há muito por fazer nesse N campo.
por Vera Maria Immich
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inados é para falar de morte ou de vida? Finados é para lembrar os que já partiram ou preparar-se para a partida? É oportunidade de olhar para aqueles que sofrem a perda de seus amados e de lembrar aqueles que continuam sendo importantes para nós, mesmo após sua partida definitiva desta vida.
FINADOS: A morte é a realidade que mais abala o ser humano
MARIE ANN WANGEN KRAHN é mestre em Teologia, professora de Hebraico na Faculdades EST em São Leopoldo (RS)
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SAIBA MAIS Para mais informação sobre a não violência e a educação para a paz no Brasil cf. Roberto ZWETSCH. Da Não-Violência Ativa ou Firmeza-Permanente à Educação para a Paz. In: Protestantismo em Revista, São Leopoldo, v. 22, p. 2-12 maioago. 2010. Disponível em: http:// www.est.edu.br/periodicos/index. php/nepp. Para mais informações: www.serpaz.org.br.
O que expressamos ao colocar flores nos túmulos, embelezando cemitérios silenciosos? O que significa uma sepultura? Como estamos diante da morte? São perguntas que surgem em algum momento da vida. São questionamentos importantes, pois de certa forma dão sentido à vida e a organizam, mesmo que passemos
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uma desestabilização e desorganização afetiva e emocional, bem como familiar e financeira. Há duas formas de entender o que expressamos em Finados. Uma é ver o túmulo com os olhos da razão. E quem vê assim só vê a morte e homenageia o morto. Outra forma de ver a sepultura é ver com os olhos da fé. Quem vê com os olhos da fé consegue enxergar além da sepultura. Consegue ver a vida que venceu a morte e ressurge do túmulo. Visitar cemitérios no Dia de Finados é confrontar-se com a efemeridade da própria existência e lembrar com respeito aqueles que partiram. A morte é o fator que mais abala o ser humano. Ela se põe diante de nós com dúvidas e questionamentos. A perda de uma pessoa estimada é a experiência mais universal e, ao mesmo tempo, mais desorganizadora e assustadora pela qual passa o ser humano. O sentido da vida parece ruir e precisa ser recuperado. As relações com o meio precisam continuar, mas, muitas vezes, em outra perspectiva e configuração. Luto é a dor que sentimos pela perda de pessoa ou objeto pelo qual tínhamos grande apego. Também nos sentimos assim pela perda de uma parte do corpo, como na amputação de um membro. A pessoa ou família enlutada tem necessidade de sentir a presença dos amigos e da comunidade, que serão seu ponto de apoio em meio ao sofrimento. Martim Lutero, reformador da igreja, considerava a consolação de irmãos e irmãs em sofrimento um dos aspectos mais significativos da igreja cristã. Esse apoio de amigos e da comunidade não deve ficar restrito somente ao ato do velório e do sepultamento. Nos dias e meses que se seguem, é necessário fazer-se presente ora através de grupos de apoio a enlutados, ora pela visitação e oração. Também se precisa estar atento aos
PERGUNTAS: O que expressamos ao enfeitar o túmulo? O que significa uma sepultura; a morte?
sinais de dificuldade de aceitação da perda e patologização do luto, ou seja, quando esse precisa de uma ajuda técnica para ser enfrentado e superado. Algumas vezes, é necessário recorrer ao uso de medicamentos, outras vezes de psicoterapia. Na maioria das vezes, a presença e a amizade serão o suporte suficiente para dar conta da perda. O processo de enlutar-se é absolutamente pessoal tanto quanto a durabilidade como a forma, e todos os jeitos são legítimos quando expressam genuinamente os sentimentos dos enlutados. Fatores culturais, de fé e história de vida, bem como rede de amigos e familiares são alguns dos ingredientes que dão a forma pessoal desse processo. Portanto cabe aos familiares e aos amigos compreenderem sem julgar, acompanharem com amor e constância e estarem atentos quando o processo entende-se demasiadamente sem indicativos de aceitação e amenização da dor e do sofrimento. Também se deve estar atento aos processos que incluem fragilização e até destruição das relações e afastamento permanente de grupos e de
atividades que desenvolviam antes da perda. Nesse caso, uma intervenção mais objetiva pode ser necessária. Do contrário, sofrer por ter de deixar ir alguém que amamos é normal. Sentir-se em carne viva de saudade e dor também faz parte do processo de enlutamento e conduz ao desenlu tar-se e reorganizar-se afetivamente e fortalecer-se para a vida. Conviver com as lembranças das coisas boas vividas e também daquelas não alcançadas sem desestabilizar-se, mas com uma saudade suportável e uma dor que precisa ir diminuindo e dando lugar à aceitação e à confiança de que recebemos nossa vida do Senhor e que a Ele ela retornará. Conviver com a saudade machucando o coração e cedendo lugar a uma saudade que preserva na memória os momentos vividos. Lembrar dos mortos certo de que partiram para a eternidade da ausência de dor e trisN teza. Partiram para Deus.
VERA MARIA IMMICH é teóloga e psicóloga pastoral e atua na Comunidade da Consolação em Curitiba (PR) NOVOLHAR.COM.BR –> Out/Dez 2014
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CRISTIANISMO
Megaprojetos da extravagância por Marcelo Schneider
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Recentemente, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) inaugurou um novo santuário, localizado na cidade de São Paulo. Ela o chama de “Templo de Salomão”, em alusão ao templo sagrado construído por aquele rei do Antigo Testamento onde, alegadamente, estava guardada a Arca da Aliança. Com que pedras a IURD construiu seu novo templo? Qual a sobreposição que a igreja de Edir Macedo procura estabelecer? A obra da IURD é suntuosa. Sua inauguração no dia 31 de julho contou com a presença de persona-
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catedral da Cidade do México foi construída com as pedras coletadas na destruição do templo azteca de Tenochtitlán. O bronze que decora as monumentais colunas da Basílica de São Pedro, em Roma, foi tirado do Panteão, um templo dedicado aos deuses romanos e, posteriormente, transformado em igreja cristã. Exemplos como esses, da sobreposição agressiva de uma expressão de fé sobre a outra, são recorrentes na história da humanidade. São expressões de tempos de troca de hegemonias.
lidades militares e políticas, entre elas a presidenta Dilma Rousseff, o vice-presidente Michel Temer, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito da cidade, Fernando Haddad. Capaz de receber 10 mil pessoas (o dobro da lotação da Basílica de Aparecida), sua fachada tem 56 metros de altura (13 metros a mais do que a Basílica de São Pedro em Roma). Todo o piso do templo e o altar são revestidos com pedras trazidas de Israel. O altar traz uma gigantesca representação idealizada da Arca da Aliança. Durante o evento, o mestre de cerimônia usava uma talit com as cores da bandeira de Israel e um quipá. Foram executados os hinos de Israel e do Brasil. Alegando o cumprimento de uma promessa feita para ver o templo pronto, o bispo Macedo ostentava uma longa barba, que remetia à imagem dos rabinos mais experientes. Muito se comentou sobre a suntuo sidade da obra, seu luxo e elementos excêntricos trazidos da Terra Santa, como as centenárias oliveiras que decoram uma parte da área externa. As análises, via de regra, apontam para o esforço da IURD no sentido de mostrar sua força no cenário nacional e, obviamente, angariar mais almas para o fragmentado e dedicado rebanho da igreja. Mas há também o aspecto importante das associações da obra da IURD e de sua teologia com o Antigo Testamento, o judaísmo e o Estado de Israel.
CIDADE DO MÉXICO: A catedral da atual capital do México foi erguida sobre as ruínas do templo azteca de Tenochtitlán
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NOVO TEMPLO DE SALOMÃO: Vista noturna do gigantismo do templo da Universal em São Paulo
Trata-se de um esforço para agregar o elemento da tradição a uma igreja que já conta com carisma e poder de persua são suficientes para arrecadar de seus fiéis volumes expressivos em dízimo. Em outras palavras, em sua pregação e práxis, a IURD quer construir sua igreja sobre as ruínas de um cristianismo alegadamente ultrapassado e infiel, forçando uma troca de hegemonias.
Em tempo: o Novo Santuário Mãe de Deus, templo idealizado pelo padre católico Marcelo Rossi, já está com 60% das obras concluídas na Zona Sul de São Paulo. Quando pronto, terá 30.000 m² de área construída e capacidade N para receber 35 mil pessoas. MARCELO SCHNEIDER é teólogo e trabalha para o Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre (RS)
SANTUÁRIO CARISMÁTICO: O mesmo gigantismo está no espaço do padre Marcelo Rossi
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Com o Templo de Salomão, a IURD constrói uma ponte que faz com que sua teologia e eclesiologia atravessem o rio caudaloso da história da igreja cristã e busquem conforto e proteção na morada do povo eleito do Antigo Testamento. Nessa busca pelas raízes mais primitivas da fé cristã, Macedo procura passar a mensagem de que os 2.000 anos de caminhada da igreja cristã mais desvirtuaram o evangelho do que o honraram. O alvo é claro: a Igreja Católica Romana. No cenário global cristão, a IURD, por maior que seja em termos de número de membros e alcance, ainda é uma igreja nova. Fundada em 1977, ela ainda está no processo de construção e solidificação de seus ritos, simbologia e eclesiologia. Nesse movimento, Macedo, sabendo que sua igreja atua no país com o maior número de católicos do mundo, procura afastar-se de todo e qualquer elemento que leve à ligação com os sucessores de Pedro e reinventa a simbologia judaica num contexto onde ela é pouco conhecida.
NOVOLHAR.COM.BR–> –>Out/Dez Jul/Ago 2014 2013 NOVOLHAR.COM.BR
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o reformador
Pecca fortiter e as Escrituras por Leandro Hofstaetter
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Jó e seus Amigos - Rembrandt
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omo necessitamos hoje de uma teologia que “chegue ao cerne da noz, ao centro do grão de trigo, ao tutano do osso”, aquela que Lutero já ansiava quando era professor de Filosofia em Wittenberg e falava de Aristóteles. Como precisamos de uma teologia que não seja feita “a facão”, de qualquer jeito, nas coxas! Quando leio algumas críticas ao reformador, mais me impressiona o estado lastimável de nossa educação/escolarização e dos textos que pululam na internet. Vejam bem, de forma alguma penso ser a internet algo apenas negativo. É uma baita ferramenta. Mas ainda é necessário que a “pecinha” na frente do monitor tenha algum tipo de “senso”, senão o crítico, pelo menos o bom senso de não acreditar em tudo o que se fala ou se escreve, e portanto se faça uma ampla pesquisa antes de emitir juízo. Um dos mal-entendidos em relação à teologia do reformador é a frase, tomada fora do todo de seu pensamento, sobre o “pecar fortemente”. Para ir direto ao assunto, já que não temos como desenvolver o tema de modo prolixo, partirei para um exemplo. Quando analisamos a teologia de Lutero e a boa tradição luterana que o seguiu, percebemos, sem qualquer dificuldade, que na interpretação das Escrituras nem o reformador tampouco nossa tradição permaneceram com um método literal de acesso à Bíblia. E isso pela própria dificuldade que
Interpretar como Jó e não como seus amigos
os textos sagrados nos apresentam. A literalidade não consegue dar conta dos problemas de interpretação que surgiram no próprio momento em que os textos foram falados ou transcritos. Não nos iludamos. Os conflitos já estão entre o próprio Jesus e os discípulos, que muitas vezes não compreendem o que o Filho de Deus quer. A interpretação da Bíblia precisa ter uma chave hermenêutica, a qual, no caso de Lutero, é o próprio Cristo. “A Bíblia é uma manjedoura. Se tu achares Cristo nela, tens tudo. Se não o achares, permanecerás apenas com a palha.” A teologia que penetra o “tutano do osso”, a que não é “feita a facão”, é aquela que, na interpretação das Escrituras, não joga Cristo fora e, portanto, fica apenas com a palha. Mas o Cristo da manjedoura é o Cristo da cruz, e a gente apenas volta à manjedoura depois da Páscoa. Somen-
te depois da crucificação é que vamos compreender aquilo que aconteceu no Natal, pois nós somos como os discípulos cujos olhos olharam e não viram. Apenas depois da cruz nossos olhos são abertos e o evento de Deus nos é revelado! O Deus que desce no Natal é aquele que se entrega pelos sofrimentos dos seres humanos de forma integral, total, a ponto de morrer pelos seus. Os eventos que seguem na comunidade cristã não podem mais tangenciar o acontecimento da cruz. As mensagens cristãs não podem mais interpretar as Escrituras encobrindo as consequências que a cruz nos impõe, ou seja: qualquer sofrimento humano deve ser notado, percebido, tomado por verdadeiro, compreendido como contrário à vontade de Deus, que se encarnou no Cristo crucificado. Na interpretação, nós ficamos ao lado de Jó, sete dias e sete noites, e não dos amigos dele que vêm com a fala – teologia – da glória, da justificação de Deus, sem levar em consideração o sofrimento humano. É dizer, na busca pela interpretação verdadeira da Escritura, na busca pelo sentido da fé cristã, nós não podemos mais permanecer apenas com o texto quando esse não leva em consideração o sofrimento humano, quando, muitas vezes, amplia o sofrimento por interpretações preconceituosas e demasiado humanas. Não. Na interpretação da Bíblia, a nossa chave hermenêutica é o Cristo da cruz e da manjedoura. Se a Bíblia falar, como os amigos de Jó, para que neguemos o sofrimento pelo qual nosso irmão está passando para justificar um deus distante, ficaremos ao lado de Jó e contra esse deus, pois o nosso Deus é o Pai de Jesus Cristo, o qual desceu e padeceu justamente para que as cruzes do ser humano possam ser combatidas e extirpadas. Se isso for pecado, então pecaremos fortemente, com consciência de que, se esse for o
DE OLHO NA EDUCAÇÃO sentido estabelecido, nós deixaremos o sentido de lado e ficaremos ao lado de Jó. Se a Bíblia disser não às mulheres em tantos textos que evocam um preconceito milenar às nossas companheiras, pequemos fortemente ao deixar esse sentido de lado e nos colocar justamente ao lado delas que ainda sofrem tanta violência. Se algum texto da Bíblia evocar qualquer defesa da violência como método de educação ou como tradição moral, pequemos fortemente nos colocando sempre ao lado da paz, da diaconia e da comunhão. Se Paulo nos atinge com um texto que julga certas minorias, fazendo acepção de pessoas e, muitas vezes, sendo interpretado como fundamento de exclusões e atitudes violentas, usemos Paulo contra Paulo e Cristo contra Paulo, pequemos fortemente, cuidando para não jogar Cristo fora e permanecer apenas com a palha. Como vemos, o pecca fortiter de Lutero não tem nada de ingênuo e/ou irreflexivo, fundamenta-se na teologia da cruz e acontece na luta de Jesus Cristo, o crucificado, contra as ações demoníacas que ainda tentam erigir cruzes para maltratar o ser humano, inclusive dentro das próprias hostes cristãs. E, o que é pior, utilizando a Bíblia para justificar atitudes e pensamentos totalmente preconceituosos e violentos, é dizer, não cristãos. Ainda vemos como em espelho, turvamente, por isso não compreendemos muitas coisas de Deus. Mesmo assim, a nossa espera/ativa por compreensão levará em consideração os que estão à beira do caminho. Depois da ressurreição, nossas atitudes terão como parâmetro o Deus crucificado. Se elas forem consideradas pecado por alguma interpretação, seremos, sim, julgados por estar aos pés da cruz. Pecaremos fortemente por N amar mais e julgar menos! LEANDRO HOFSTAETTER é teólogo e doutor em Filosofia em Joinville (SC)
A ideologização na escola? por Osvino Toillier A instituição educacional sempre foi visada pelo poder e é colocada sob controle por regimes autoritários com o objetivo de se apossar da consciência de crianças e jovens. No regime democrático, os mecanismos que regem o sistema educacional obedecem a um ordenamento jurídico que tem na ponta a Constituição Federal e, a partir daí, toda a legislação pertinente, visando à preservação da liberdade que cada escola tem de formular seu projeto pedagógico e definir o conteúdo que deve ser desenvolvido ao longo do curso e em todas as séries. O que ninguém controla é a natureza das ideias e concepções ideológicas na sala de aula, onde todas as vertentes devem ser contempladas, desde que não sejam transformadas em posição doutrinária do professor. Admitamos que o limite é delicado, mas não assiste à escola e ao professor o direito da conversão ideológica. Isso seria inadmissível, porque estamos diante de criaturas indefesas, vulneráveis e que não podem ser transformadas em massa de manobra. Escola é espaço de liberdade, e o Estado não pode incorrer em proselitismo ideológico. O aluno não pode ser doutrinado por seu professor. E ele precisa saber disso. O aparelhamento ideológico do Estado afronta a democracia. Por isso a instituição educacional, de qualquer nível, é responsável pelo que está ocorrendo na sala de aula. A Constituição Federal fala em direito de aprender, e o pluralismo de ideias tem status constitucional. A doutrinação na educação ofende a neutralidade político-ideo lógica do Estado e desrespeita a liberdade de consciência, um dos princípios do regime democrático. Atropelar isso é intolerável e precisa ser denunciado para que crianças e jovens não se tornem vítimas de profissionais infiltrados no corpo docente universitário, que forma os professores para atuar na educação básica. Se já é grave a doutrinação em nível universitário, onde o aluno tem maturidade para não se tornar refém da ideologia com que não concorda, na educação básica não é assim, porquanto se trata de crianças e jovens, totalmente desprotegidos e vulneráveis à ação da doutrinação ideológica. Em muitos locais, essa realidade é tão grave, que gerou um movimento contra a doutrinação ideológica, cujo site é: www.escolasempartido.org, que alerta a sociedade sobre os perigos que rondam crianças e jovens, vítimas inocentes nas mãos de inescrupulosos N que se escondem sob o manto da liberdade de cátedra. OSVINO TOILLIER é professor, escritor e mestrando em Educação em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Out/Dez 2014
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NATAL
O verdadeiro espírito natalino em pleno século 21, a figura do Papai Noel rivaliza com o menino Jesus, centro e razão principal do Natal celebrado pela igreja em todos os países. Quando se quer falar da origem do Papai Noel, fala-se em lenda. por João Artur Müller da Silva
O
costume de presentear no Natal tem suas raízes no gesto dos reis do Oriente Gaspar, Melquior e Baltazar. Na visita ao menino Jesus na estrebaria em Belém, abriram suas mochilas e deram à criança recém-nascida presentes de ouro, incenso e mirra. E nas primeiras comunidades cristãs consolidou-se o pensamento de que esses foram os primeiros presentes de Natal. Foram necessários muitos séculos para disseminar pelo mundo a relação entre o Natal de Jesus Cristo e os presentes. Com o advento do capitalismo, o Natal foi considerado uma boa oportunidade para incentivar o hábito de presentear na sociedade, mesmo que muitas pessoas não curtissem o Natal e nem se importassem com o nascimento do Salvador. Mas o Natal acabou como festa popular em todos os países, mesmo naqueles em que os cristãos são minoria. Críticas ao ato de presentear também estão no começo do cristianismo. Em janeiro do ano de 400, o bispo
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Astério de Amaseia fez um sermão criticando esse costume de presentear no Natal. Dessa sua prédica compartilho alguns trechos: “Mas que coisa mais absurda! As pessoas vêm chegando boquiabertas, esperando receber alguma coisa umas das outras. Os que deram estão abatidos; os que receberam um presente não o conservam consigo, pois passam-no adiante para outros, e aquele que recebeu de um inferior o dá para um superior. (...) A festa ensina até mesmo crianças bem pequenas, ingênuas e simples a ser gananciosas e acostuma-as a ir de casa em casa e a oferecer novos presentes, frutas com coberturas prateadas em troca dos quais elas recebem o dobro do valor, e assim começa a se imprimir na mente tenra dos jovens o que é comercial e sórdido” (Astério de Amaseia, Homilia IV). Conforme Gerry Bowler, autor do livro Papai Noel – Uma biografia, “o surgimento anual de um presenteador mágico, que gostava particularmente das crianças, levou mais de mil anos para acontecer. Essa figura apareceria
SÃO NICOLAU: O surgimento anual de um presenteador mágico, que gostava particularmente das crianças, levou mais de mil anos para acontecer. Essa figura apareceria no século XII na forma de são Nicolau
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no século XII na forma de são Nicolau”. E a partir de um estudo feito por Bowler e já amplamente difundido na igreja, a figura do Papai Noel, como hoje a conhecemos, tem seu vínculo com um santo da Igreja Católica: são Nicolau. Hoje, em pleno século XXI, a figura do Papai Noel rivaliza com o menino Jesus, centro e razão principal do Natal celebrado pela igreja em todos os países. Quando se quer falar da origem do Papai Noel, fala-se em lenda. Porque as informações disponíveis sobre são Nicolau são incertas e desencontradas. Então precisamos lidar com a categoria de lenda para compreender as muitas facetas desse homem vestido de vermelho, com botas pretas, barrigão, gorro vermelho, barba branca, sorriso afável e com seu inseparável trenó puxado por renas. A vida de são Nicolau, conforme dados disponíveis, era conhecida como a de um milagreiro, que com seus gestos ajudava marinheiros, soldados, oficiais, crianças e gente que morria de fome nas cidades. No entanto, conta a lenda que ele intercalava momentos em que era bondoso, acolhedor e carinhoso com momentos em que usava seu chicote ou sua vara para castigar as pessoas. Ele também tinha o atributo de voar e valia-se de um transporte milagroso. Essas associações foram posteriormente transferidas para a figura do Papai Noel. Compartilho uma história que fala da origem do Papel Noel. “Numa de suas lendas mais antigas, o jovem são Nicolau fica sabendo da existência de um pai que, julgando-se incapaz de prover o dote de suas três filhas, decide relutantemente entregá-las à escravidão e à prostituição. Com suprema habilidade, são Nicolau consegue, em três noites, atirar sacos de ouro pela janela do pai, salvando
as meninas de uma vida vergonhosa. Sua secreta benemerência noturna é detectada pelo pai, que recebeu a caridade, mas são Nicolau lhe implora que não fale a ninguém sobre o que ele fez. Contudo o pai agradecido deve ter espalhado a história, porque são Nicolau tornou-se, com o tempo, protetor das donzelas e dos casamentos prolíficos” (cf. Gerry Bowler). Assim entendemos a transferência da generosidade de são Nicolau para a figura mitológica do Papai Noel. Também conhecido por “bom velhinho”, ele é usado para fazer medo às crianças, principalmente as mais levadas. Muitos pais levam seus filhos pequenos a um encontro com o Papai Noel no shopping nas semanas que antecedem o Natal. Na conversa com o “bom velhinho”, as crianças prometem deixar de chupar bico, não mais fazer xixi na cama, obedecer aos pais. Foi nos Estados Unidos, no início do século XIX, que a figura do Papai Noel assumiu a imagem que hoje conhecemos. Ele também foi e é usado como garoto-propaganda pela Coca-Cola e ainda por outras empresas que descobriram na celebração do Natal uma rica fonte para comercializar seus produtos. É inegável que o “bom velhinho” está colado na tradição natalina. No entanto, o espírito do Natal é bem mais amplo do que o gesto de presentear ou fazer promessas. O verdadeiro espírito natalino é o presente do amor de Deus às pessoas no menino Jesus. Papai Noel até pode promover o bem, mas não destrona o Senhor, nascido em Belém, na Judeia. Esse, sim, oferta o amor, a graça e a salvação que Deus reserva a todas as N pessoas que o temem e amam. JOÃO ARTUR MÜLLER DA SILVA é teólogo e editor da Editora Sinodal em São Leopoldo (RS)
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REFLEXÃO
Contrariando a lógica humana o nascimento de jesus desde o anúncio contraria os costumes e os padrões normais da época. num mundo de homens, deus dirige-se diretamente a maria. por Alfredo Jorge Hagsma
“O
anjo veio e disse: Que a paz esteja com você, Maria! Você é muito abençoada. O Senhor está com você” (Lucas 1.28). “Então o anjo continuou: Não tenha medo, Maria! Deus está contente com você” (Lucas 1.30). E as palavras do anjo não param por aqui... Ele segue anunciando que Maria ficará grávida, seu filho será um grande homem e será chamado de Filho do Deus Altíssimo, será rei como seu antepassado Davi. No entanto, o seu reinado não terá fim! Maria parece não acreditar em tão boa notícia. Isso não pode ser verdade! Como dizem por aí: “Quando a esmola é demais, o santo desconfia”. A notícia era boa demais para ser aceita. No tempo desse anúncio, o controle da religiosidade do povo estava nas mãos de homens, de sacerdotes. Mulheres não tinham o privilégio de ser mediadoras entre Deus e as pessoas. Com o anúncio do nascimento de Jesus, as coisas começam
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a tomar outro rumo. Duas mulheres, Isabel e Maria, são personagens centrais nesse novo jeito de perceber o relacionamento entre Deus e os seres humanos. O nascimento de Jesus desde o anúncio contraria os costumes e os padrões normais da época. Se as pessoas acreditavam que apenas os homens, sacerdotes, poderiam conversar com Deus, o anjo dirige-se diretamente a Maria, fala com ela e a ouve. As pessoas pensavam que ela não estava apta a ter filhos, mas Deus prova o contrário. Certamente o povo também achou um absurdo uma moça jovem não casada dar à luz um filho. E para mostrar a Maria o tamanho da graça e do poder de Deus, o anjo anuncia: “Fique sabendo que a sua parenta Isabel está grávida, mesmo sendo tão idosa. Diziam que ela não podia ter filhos, porém agora está grávida de seis meses, mesmo sendo tão idosa. Porque para Deus nada é impossível” (Lucas 1.36,37). Nosso olhar e agir limitam-se às experiências adquiridas a partir de
nosso contexto. Temos dificuldades de viver, sentir e experimentar os milagres da vida a partir da fé no Deus do impossível. Somos contagiados, contaminados pelas dores, pelos sofrimentos ao nosso redor, assim que nossos olhos se fecham para os milagres que acontecem no meio deles. A mensagem implícita dessa cruel realidade é o medo generalizado. Esse sentimento de descrença, desconfiança e incerteza impregna em nós de tal forma, que deixamos de perceber os sinais de amor e de graça em nosso viver. Facilmente nos encontramos lamentando e sinalizando os rastros da morte em nosso meio e esquecemos de olhar para os sinais de vida. A lógica de Deus é outra. Para Deus, é possível uma nova ordem na qual a esperança vence o medo. Logo celebraremos mais um advento de Cristo. Essa boa notícia
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ANUNCIAÇÃO Este painel é do século 18 e está exposto na sacristia da Catedral Basílica de Salvador, na Bahia. O nome do autor é desconhecido. Perdeu-se na memória
anunciada para Maria será anunciada para todo o povo: “O Senhor está com você. Não tenha medo”. Com a chegada de mais um Advento, novamente vamos ouvir as palavras de paz, jus-
tiça e encorajamento. Mais uma vez, vamos ser lembrados de que há sinais de paz e de graça neste mundo e que Deus jamais abandona seus filhos à própria sorte.
Pode ser que muitos vão ouvir essa boa notícia com certa desconfiança. Aliás, em meio a tantas notícias ruins, pode haver algo novo? Pela lógica humana talvez não, mas Deus continua contrariando a lógica humana, enchendo de esperança todas as pessoas. Mais uma vez, vamos celebrar o Natal de Cristo e, quem sabe, neste ano, a gente não reaja tal qual Maria: “Nós somos servos de Deus; que aconteça conosco o que o Senhor disse”. Que assim seja. N ALFREDO JORGE HAGSMA é teólogo e pastor da IECLB em Curitiba (PR)
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ESPIRITUALIDADE
Natal dos sonhos DO TRONCO DE JESSÉ SAIRÁ UM REBENTO, E DE SUAS RAÍZES, UM RENOVO. REPOUSARÁ SOBRE ELE O ESPÍRITO DO SENHOR, ... DE SABEDORIA E DE ENTENDIMENTO, DE CONSELHO E de FORTALEZA, DE CONHECIMENTO E DE TEMOR DO SENHOR. ISAÍAS 11.1-2
por Inácio Lemke
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om essa mensagem o profeta Isaías anuncia esperança no meio do sofrimento, em meio ao caos. Anuncia esperança onde não havia o que esperar. Resgata a história, fala do tronco, da história de Jessé, o belemita (1 Samuel 16.10), pai de Davi, o moço que apascenta as ovelhas. Essa história vivida pelo profeta Samuel acompanha por muitos séculos o povo de Deus, até chegar ao tempo do profeta Isaías. Durante todo esse tempo, o povo experimentou períodos prósperos, assim como de extrema necessidade. Deus esteve sempre presente na caminhada de seu povo, dando preferência aos pequeninos e humildes. A opção de Deus perpassa os tempos e atinge o ápice no evangelho, no Magnificat de Maria (Lucas 1.46-55). Deus se faz presente, contempla a humildade de sua serva e a engrandece. O canto que anuncia o desejo de Deus fazer-se presente na humildade da pessoa serva. Deus quer ser encontrado na humildade. Ele vem à humanidade e oferece seu amor.
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O tempo de Advento é tempo de preparo para o grande dia: Dia de Natal. Os hinos litúrgicos de celebrações de Advento e Natal ajudam a nos preparar para a humildade, para a vigília do sonho e da alegria que nos proporciona o Natal. Os hinos antigos, mas ao mesmo tempo tão atuais, resistem no coração e mente ainda presente em muita gente. Graças às antigas canções de Advento e Natal ainda há sementes de resistência contra o novo que procura engolir o Natal do menino Jesus. O mundo do consumo, principalmente do Ocidente, usa o Natal cada vez mais para fins comerciais. O índice de consumo no país é medido pelas vendas nos tempos natalinos. Caso o consumo de produtos natalinos caia de um ano para o outro, é sinal negativo para a economia do país. A espiritualidade do Natal é medida pelo consumo material. A espiritualidade e solidariedade não são mais o referencial do evento. Confrontados com essa realidade do mundo do consumo, um grupo
ecumênico de religiosos em Joinville iniciou, em 2011, um diálogo crítico referente ao Natal nessa cidade. A cidade das flores, com as ruas e praças enfeitadas com luzes coloridas, renas, gnomos e Papai Noel. Percebemos, contudo, que faltava alguma coisa nesse contexto. E não faltava qualquer coisa, mas faltava o principal, o menino Jesus, o aniversariante do evento e seu presépio. Assim se reuniram na sede sinodal do Sínodo Norte Catarinense representantes das igrejas, Dom Irineu e coordenador de pastoral da ICAR, Colégio Pastoral de Joinville, representante da Câmara dos Vereadores,
DEUS quer ser encontrado na humildade. O Cântico de Maria fala do desejo de Deus fazer-se presente na pessoa que serve.
Roselei Stresser
Secretária de Turismo e Cultura, Prefeito Municipal, representantes da CDL. A coordenação dessa primeira reunião coube a mim como pastor sinodal. Muitas reuniões foram necessárias para dar pequenos passos para recuperar os sinais do verdadeiro Natal. Nós o chamamos de “Natal dos Sonhos”, pois foi o sonho de muita gente, com ideias e jeitos diferentes, que fez e faz a diferença em nossa cidade. Agora, já quatro anos após essa primeira reunião, continuamos na caminhada da solidariedade com o menino que não tinha lugar onde nascer. O bonito disso tudo é que celebramos em comunhão com várias denominações religiosas, respeitando as diferenças, pois o que nos une é o rebento novo, que se fez presente em Belém e se faz presente onde há solidariedade e maN nifestação do amor. INÁCIO LEMKE é teólogo, pastor sinodal do Sínodo Norte Catarinense da IECLB em Joinville (SC)
As salas do Centro de Retiros, junto com a capela da Casa Matriz, oferecem um espaço ideal para retiros, encontros e eventos. As instalações da hospedagem contam com quartos com banheiro, refeitório e local para estacionamento. Em meio a abundante natureza, o ambiente tranquilo e acolhedor favorece a reflexão, a integração e o lazer. Dispomos de serviço de hospedagem, individual ou em grupos, ideal para realização de retiros, eventos ou para aqueles que desejam apenas hospedar-se aqui. Av. Wilhelm Rotermund, 395 - Morro do Espelho - São Leopoldo Fone: (51) 3037-0037 | retiros@diaconisas.com.br | www.diaconisas.com.br NOVOLHAR.COM.BR –> Out/Dez 2014
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penúltima palavra
Que a paz e a justiça se beijem por Magali do Nascimento Cunha
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entre todas as pessoas de boa vontade (Lucas 2). Imagens fantásticas! Mas há outra imagem magnífica nos escritos bíblicos, com um ensino que não podemos desprezar. É uma das sentenças mais belas e vem do Salmo 85: “A justiça e a paz se beijam”. O poeta faz uma afirmação significativa: justiça e paz são unidas por um laço. Só há justiça quando há paz e viceversa. Do contrário, vivem-se uma falsa paz e uma falsa justiça. Reavivando essa afirmação de fé está o trabalho do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), uma das mais significativas expressões do movimento ecumênico mundial em ações concretas nos campos da unidade cristã, da promoção da vida e do diálogo entre
Divulgação Novolhar
az – Palavra que ecoa de falas, textos, poemas, canções... Claro que o clamor por paz não é relacionado apenas às tantas guerras em curso hoje em nosso mundo. Ele está fortemente presente nas “guerras” vividas nas grandes cidades brasileiras. O clamor por paz também está no campo deste grande Brasil. É grande o clamor por paz em terras longínquas e na próxima esquina. A Bíblia está recheada de páginas que ressaltam o apelo por paz. Um dos anúncios da chegada do Messias fala dele como “Príncipe da Paz”, que torna possível que as armas e as “botas sujas de sangue sejam queimadas” (Isaías 9). O nascimento de Jesus de Nazaré é um anúncio de paz na terra
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as religiões. O CMI lidera muitos esforços de paz com justiça, de busca dos direitos humanos e da sustentabilidade da vida. A 10ª Assembleia do CMI (Coreia do Sul, 2013) lançou um convite aos cristãos de todo o mundo: unir-se numa Peregrinação de Justiça e Paz. Ela foi assumida pelo próprio organismo em sua reunião de planejamento de ações para os próximos sete anos, realizada em julho passado. O convite para a Peregrinação de Justiça e Paz tem uma mensagem importante: as igrejas são peregrinas neste mundo, a caminho, como diz a Bíblia, de “um novo céu e uma nova terra” (Apocalipse 21). Vivem e trabalham por essa causa. Por isso deve ser uma peregrinação “de” e não “por” justiça e paz. Não mais uma forma de ativismo cristão, e sim um compromisso com o Deus do “Shalom”. Uma jornada “de” justiça e paz que as igrejas mesmas devem testemunhar dentro delas e entre elas, contagiando o mundo. Isso nos faz enxergar, com perplexidade, a frequência de pregações e canções religiosas que estimulam guerras, discriminações, “batalhas espirituais”, ações violentas contra quem é “dominado por Satanás”. Ao invés de testemunhas da paz, tornam-se juízes promotores de intolerância e agressões verbais e físicas. E quando se fala de paz, enfatiza-se uma paz individual, intimista, meritória. É por isso que neste tempo em que vidas inocentes perecem por conta de políticas injustas, seja em terras longínquas ou na próxima esquina, vale a pena juntar-nos à peregrinação de justiça e paz. Vale a pena que comunidades e líderes religiosos convertam discursos falados e cantados em palavras e ações que tornem possível que a justiça e a paz se beijem. N MAGALI DO NASCIMENTO CUNHA é jornalista e professora da Universidade Metodista de São Paulo em São Bernardo do Campo (SP)