Igreja do futuro - Revista Novolhar, Ano 13, Número 57, Janeiro a Março, 2015

Page 1



Igreja do Futuro

8 a 19

Como será a igreja do futuro? Em busca da diversidade reconciliada Ferramenta na missão urbana Jovens por uma igreja mais coerente

ÍNDICE

28

ação humanitária Dedicação sem fronteiras

Ano 13 –> Número 57 –> JANEIRO A MARÇO DE 2015

20

22

O outro lado da Barragem Norte

Gestão baseada no cuidado

INDÍGENAS

24

enTREVISTA

depoimento Novolhar: Experiências de vida e fé

SEÇÕES palavras cruzadas > 6 MOSAICO BÍBLICO > 6 NOTAS ECUMÊNICAS > 7

26

BÍBLIA

Caminhando no memso passo

26

pais e filhos Desacelerando a rotina

consultório da fé > 25 O REFORMADOR > 34 REFLEXÃO > 38 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

3


AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052

Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, Ingelore Starke Koch, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina e Vera Regina Waskow. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Cristiano Zambiasi Jr. Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Alexander Busch, Carine Fernandes, Emilio Voigt, Irineu Valmor Wolf, Jasom de Oliveira, Joice Aline Klein, Jorge Batista D. de Oliveira, Leandro Hofstaetter, Luciana Thomé, Marli Brun, Marta Regina Maas, Martin N. Dreher, Odair Pedroso Mateus, Osvino Toillier, Patrícia Bauer, Paula Oliveira, Paulo E. Siebra Andrade, Ricardo Gondim, Rodolfo Gaede Neto, Rui J. Bender e Ruth L. W. Musskopf.

Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 30,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS

4

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

A igreja tem futuro?

D

esde quando igreja tem que preocupar-se com o futuro? Como obra do Espírito Santo, ela tem a promessa de permanecer inabalável através dos séculos, até a parusia. Os especialistas, entretanto, detectaram diversos vazamentos no barco chamado igreja. E faz tempo, isso. A grande irmã católica vem sofrendo sérias avarias desde o século passado, por conta dos escândalos de pedofilia que envolvem parte do clero, por exemplo. Também há, desde muito, graves suspeitas sobre os negócios do banco do estado do Vaticano, um dos menores e mais ricos países do mundo. Assim, a instituição perdeu não apenas em credibilidade, mas em número de fieis. Agora, com a vinda do papa argentino Francisco, bons ventos renovam os ares dos mofados aposentos dos palácios episcopais romanos. Roma não é uma exceção. Com o crescimento das igrejas “de ocasião” no Brasil, defensoras da teologia da prosperidade, os evangélicos aumentaram em detrimento dos católicos. Mas ambos perdem de goleada para um grupo que cresce a olhos vistos: o dos “sem igreja”. Eles não abrem mão da fé, mas não querem vivê-la sob a rigidez de uma instituição eclesiástica, não importa se é conservadora ou explora a fé de ingênuos. São alguns exemplos a mostrar que a igreja, mesmo que continue com seu futuro garantido pelo sopro do vento do Espírito Santo, corre riscos significativos ao não priorizar alguns debates. O que fazer com os fieis de mente aberta? Como lidar com as avarias no casco eclesial? Qual acento deve alavancar a missão das igrejas que pretendem chegar bem no próximo porto? Nesta edição da Novolhar, você encontra um panorama das possibilidades que se desenham no horizonte dessa navegação em mares agitados. Tempo de férias é também um período para praticar o slow parentig. Pais e filhos devem priorizar mais tempo em conjunto, enquanto avaliam reduzir a agenda dos pequenos para evitar que virem executivos antes do tempo. Outros assuntos convidam você a uma parada para reflexão. Por exemplo, você pode dar uma olhada para o outro lado da Barragem Norte. Também pode conhecer o respeitado trabalho de “Médicos sem Fronteiras”. Há ainda uma entrevista com o pastor presidente Nestor Paulo Friedrich. Enquanto você lê, desejamos um abençoado ano novo a você e sua família. Equipe da Novolhar


NOTAS

Programas de rádio A comunicação pelas ondas de rádio tem uma longa tradição nas comunidades vinculadas à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Apresentamos uma relação de programas que são irradiados nas mais diversas localidades neste vasto país. Agora você pode ver programas de rádio por Sínodo, por Estado, por Dia e Horário e por Horário e Dia. Pode ouvir programas gravados que estão acessíveis em Midiatecas de organizações ou então ouvir os programas ao vivo nas próprias rádios. Para tanto basta clicar nos links que estão marcados nas tabelas. Trata-se de uma lista que requer complementações e correções. Por isso encaminhem informações sobre alterações sobre programas ou mesmo inclusão de programas não mencionados para portal@ luteranos.com.br.

Pastor Frank Graf homenageado A Universidade Regional de Blumenau (Furb) promoveu, no sábado 6 de dezembro, diversas atividades alusivas aos 50 anos de fundação da instituição. A programação homenageou diversas personalidades importantes para o desenvolvimento da região. Um dos principais homenageados do dia foi o pastor o maestro Frank Graf, criador da Orquestra da Furb. A orquestra fundada por Graf apresentou-se durante a programação das homenagens, nos 50 anos da instituição universitária. O maestro e pastor Frank Graf estudou música na Alemanha, foi pastor de paróquia em Trombudo Central, foi coordenador do extinto Departamento de Música da IECLB nos anos 70 e 80 e um dos mais importantes agitadores musicais da IECLB. Autor de diversas melodias para os poemas cristãos do Dr. Lindolfo Weingärtner e de outros autores, Graf foi um dos responsáveis pela elaboração do Hinos do Povo de Deus 1, um dos atuais hinários da IECLB. Graf também foi pastor em tempo parcial na paróquia Fidélis. Sempre envolvido com a música e a cultura, o pastor também foi secretário da cultura da prefeitura de Blumenau, período em que foi responsável pelos grandes eventos municipais, inclusive a Oktoberfest. Aposentado, Graf vive hoje no litoral do Paraná. O evento da Furb também homenageou Fritz Müller, representado pelo seu trineto Horst Kalvelage. As homenagens fazem parte do ano em que se comemora o cinquentenário da instituição, que será lembrado até o dia 2 de maio de 2015. Até lá, ainda estão previstos o lançamento de um livro, a realização de um encontro inter-religioso e a gravação de um CD do coro da Furb.

Deus sabe se comunicar As livrarias e as bancas de jornais, para sobreviver, converteram-se em pontos de venda de cigarros, bebidas e guloseimas. Cada vez menos gente tem prazer em pegar um bom livro, sentar num canto silencioso, para deixar-se levar pelo texto de algum autor. Não se quer mais ter o trabalho de imaginar o rosto do personagem, a distribuição dos móveis na casa, a paisagem do lugar da história. Tristemente, o problema não é só dos jovens, que estão na idade natural de ter preguiça de ler. A grande maioria dos adultos não consegue tirar de um texto escrito mais do que um bom sonífero. E na maioria das vezes não compreendem o que leram. Tem gente que prega que para o cristão o único livro que é preciso ler é a Bíblia. No entanto, o evangelho não liberta em vôo rasante. Ele precisa pousar. Precisa tocar o chão que pisamos, tornando-se carne. Para isso, a gente precisa se informar sobre a realidade, exercitar a mente com outras leituras. Quem lê, deixa de ser fechado e passa a ser comunicativo. Não se feche, como um caracol ou uma tartaruga, dentro do seu espaço individual, vedando o acesso dos outros. Para fazer parte de uma turma, não espere ser convidado. Vá chegando e dizendo o que você pensa, quem é e o que quer da vida. Diz a experiência, que é preciso dar para receber. Você quer um abraço, um carinho, uma palavra amiga? Então dê um abraço, faça um carinho, pronuncie uma palavra amiga. Você quer uma companhia? Então seja uma companhia para alguém. Você quer que os outros ouçam o que tem a dizer? Então, não atropele a boca dos outros. Ouça! Deixe os outros falarem. Você quer que os outros notem você? Então, note os outros. Toda a política da boa comunicação exige somente uma coisa: quem quer comunicar-se, deve tomar a iniciativa. Deus toma a iniciativa com a gente. Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho Unigênito para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha ávida eterna (João 3.16). Que essa mensagem salvífica de Deus em relação a sua criação, seja também modelo e inspiração para a nossa comunicação na IECLB. Uma comunicação encarnada, que fale da vida, que venha e que vá ao encontro das necessidades da vida. NILTON GIESE é teólogo e ministro da IECLB em Belo Horizonte (MG) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

5


olhar com humor

mosaico bíblico

Igreja do Futuro

Igreja online? As primeiras comunidades e os apóstolos (Paulo, na imagem) souberam aproveitar a tecnologia de comunicação do seu tempo: a correspondência. Que uso fazemos das tecnologias hoje?

por Emílio Voigt Dizem que, quando acessamos a internet, entramos em um mundo virtual. No sentido estrito da palavra, “virtual” não é uma realidade concreta. Mas o que acontece na internet é real. Conversamos com pessoas, enviamos e recebemos documentos, fazemos compras e transações bancárias – tudo isso é realidade. O mundo virtual é bem mais real do que imaginamos. Pode acontecer igreja em um mundo virtual? De acordo com Atos 2.42-47, a primeira comunidade cristã era caracterizada pela ajuda mútua, comunhão, partir do pão, oração, louvor. É possível experimentar esses elementos numa comunidade “virtual”? Talvez devêssemos perguntar também: como vivenciamos esses elementos numa comunidade “real”? O perigo de comunidades virtuais descomprometidas não surgiu com as novas tecnologias. O apóstolo Tiago já mostrava preocupação com uma fé virtual, desprovida de ação e de consideração com a situação da outra pessoa (Tiago 2.14-26). Da mesma forma, o autor da primeira carta de João alerta para que o amor não permaneça no âmbito das palavras, mas se concretize em ações (1 João 3.18).

Resposta do Palavras Cruzadas da edição anterior.

6

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

As primeiras comunidades cristãs aproveitaram bem a tecnologia de comunicação mais avançada da época: a correspondência. Que uso fazemos das tecnologias hoje? As interações online não são necessariamente melhores ou piores do que as interações face a face. Elas também são possibilidades para a atuação da igreja. Mas é claro que não podemos descuidar dos encontros comunitários, da participação nos sacramentos, da partilha, da vivência do evangelho no dia a dia. Igreja está sempre online, na N vida “real” e no mundo “virtual”.

EMILIO VOIGT é teólogo e assessor de formação do Sínodo Vale do Itajaí da IECLB em Blumenau (SC)


Notas ecumênicas Sem desculpas! Para dizer não a todos os tipos de desculpas que justifiquem a violência contra mulheres e meninas, o Conselho Mundial de Igrejas, em parceria com a Associação Mundial de Jovens Cristãs e a Federação Luterana Mundial, convidou suas igrejasmembro e parceiros a aderir à campanha: “NoXcuses – Não Há Desculpas para a Violência contra as Mulheres”. Em novembro passado, durante os 16 dias de demonstrações de ativismo contra a violência de gênero, o CMI e seus parceiros publicaram diariamente vídeos com mensagens e testemunhos feitos por líderes que, a partir de sua experiência pessoal e de sua convicção cristã, dizem: Não pode haver desculpas para a violência de gênero!

A Bíblia tem uma importância enorme para a sociedade. Nem sempre isso é reconhecido. Alguns pensam que ela é apenas um livro de fé dos cristãos. Ela, de fato, é isso, mas é muito mais. Da Bíblia foram extraídos os pilares que erigiram a civilização.

Quilombolas

ERNÍ SEIBERT é secretário de comunicação e ação social da Sociedade Bíblica do Brasil

A IECLB sob nova direção

PRESIDÊNCIA: A pastora Silvia Beatrice Genz (1a vice-presidente), o pastor Dr. Nestor Paulo Friedrich (pastor presidente) e o pastor sinodal Inácio Lemke (2o vice-presidente), durante o ato de investidura.

A Comunidade em Picada 48 Baixa, de Lindolfo Collor (RS), foi o local escolhido para a investidura da presidência da IECLB – Gestão 2015-2018, realizada na noite de 21 de novembro de 2014. Em ato solene, o P. Carlos Möller investiu o P. Dr. Nestor Paulo Friedrich no cargo de pastor presidente, a Pa. Silvia Beatrice Genz no cargo de pastora 1ª vice-presidente e o P. Inácio Lemke no cargo de pastor 2º vice-presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Na sequência, entregou a respectiva cruz a cada componente da nova presidência, afirmando que aquela cruz, que distingue o cargo, é sinal de renúncia, serviço e entrega ao nosso Senhor Jesus Cristo. NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

7


CAPA

OS CRISTÃOS SOMAM QUASE NOVENTA POR CENTO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA, MAS CRESCE CADA VEZ MAIS O GRUPO DOS QUE PREFEREM VIVER SUA FÉ FORA DAS IGREJAS. POR SI SÓ, ESsE FENÔMENO PEDE UMA REFLEXÃO: COMO DEVE SER A IGREJA DO FUTURO? A SEGUIR, NOVOLHAR REÚNE DIVERSOS ESPECIALISTAS EM BUSCA DE UMA RESPOSTA. A PRINCIPAL CONCLUSÃO É QUE A IGREJA COM FUTURO É A DA MISERICÓRDIA. OLHAR ALÉM DOS PRÓPRIOS LIMITES, ENTRETANTO, SERÁ INDISPENSÁVEL.

por Rui Bender

8

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR


N

o início deste milênio, o Brasil experimentava um processo crescente de diversificação religiosa, segundo dados do Censo Demográfico de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse censo revelou três dados importantes: a diminuição de católicos, o aumento de evangélicos e o crescimento dos “sem religião”. O aumento dos “sem religião” é expressão de um enfraquecimento das instituições tradicionais e acontece sobretudo nas periferias das regiões metropolitanas. “Nunca foi tão forte entre os jovens como atualmente”, revela o teólogo Faustino Teixeira, da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

Embora não se possa negar a presença no Brasil de uma diversidade religiosa, os dados apontam para uma grande hegemonia do cristianismo. Somando católicos e evangélicos, chega a 89,5% da população atual, menciona aquele censo. No Brasil, “o catolicismo é uma espécie de 'doador universal', perdendo fiéis para os pentecostais e neopentecostais e para outras religiões e igrejas”, comenta Oneide Bobsin, teólogo e professor de Ciências da Religião na Faculdades EST em São Leopoldo (RS). Os dados do censo de 2010, por sua vez, confirmam a tendência de décadas anteriores. Os pentecostais e neopentecostais alcançaram 22% da população brasileira, enquanto os católicos caíram para aproximadamente 64%. “Se um católico torna-se

pentecostal, o número de cristãos continua o mesmo. Se uma pessoa católica adere à IECLB, o número de cristãos continua o mesmo. Há, portanto, um crescimento da diversidade de igrejas e grupos cristãos. Facilmente se confunde pluralidade de igrejas com pluralidade religiosa”, adverte Oneide. Ele acrescenta: “O pluralismo religioso tem muitas linguagens. Penso que as igrejas precisam dessas linguagens para anunciar sua mensagem central”. ENFRAQUECIMENTO – Em nosso país, constata-se uma múltipla participação religiosa. Por exemplo, há pessoas que procedem de berço luterano, frequentam esporadicamente cultos luteranos, mas também buscam santuários católicos e ainda apelam a

>>

Divulgação Novolhar

FENÔMENO: O crescimento do número de igrejas evangélicas é um dos principais fenômenos religiosos do Brasil, segundo o IBGE

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

9


benzedeiras em problemas de saúde. Outros membros de igrejas cristãs procuram centros espíritas em busca de respostas para seus conflitos. “As pessoas do povo sempre procuraram ajuda nos mais diversos lugares e junto a diferentes pessoas que merecem sua confiança”, observa Roberto Zwetsch, teólogo e professor de Missiologia na Faculdades EST em São Leopoldo (RS). “Isso explica por que os limites teoricamente confessionais não são respeitados pelo simples fiel”, acentua. Para Roberto, parece incorreto imaginar que essas pessoas são fracas na fé a ponto de fazer uso de distintos recursos religiosos. “De certa forma, todos somos pessoas em busca de sentido e de uma fé verdadeira. E nisso não diferimos de quem quer que seja”, acrescenta. Isso significa um enfraquecimento das instituições tradicionais? “A meu ver, poderia significar um desafio a mais para as mudanças necessárias, a abertura, um maior enraizamento das igrejas históricas no meio do povo brasileiro, aprendendo

a melhor entendê-lo, a escutá-lo e a caminhar com essas pessoas, sem precondições, mas com inegável senso de responsabilidade, liberdade, amor e justiça”, pondera Roberto. Oneide acredita que as instituições estão em baixa: “Como instituições, sofrem os impactos da mudança dos tempos. Precisam atualizar-se constantemente para cumprir a sua missão”. Ele emenda: “Inverteu-se o passado: agora é a instituição que se ajoelha diante do indivíduo como se estivesse em busca de um cliente”. E continua: “O neoliberalismo na política vendeu a ilusão de que não precisamos do Estado. Também não se precisa de igrejas”, o que a realidade desmente a cada passo. O teólogo acredita que “isso pode ser bom para quem tem boas condições financeiras. Não para os empobrecidos, que precisam de redes de apoio públicas e eclesiais”. MAR ABERTO – A disputa por almas é cada vez mais intensa no campo religioso, imitando em parte a

concorrência do mercado capitalista, observa Oneide. Roberto concorda que existe competição, argumentando que “possivelmente isso tem a ver com interesses corporativos e de poder”. “Não existe mais aquário ou rebanho; o campo religioso é um mar aberto”, observa Oneide. É condenável a situação entre igrejas do mesmo ramo (por exemplo as pentecostais), que se julgam irmãs: não se respeitam as diferenças e há uma desqualificação do outro. Critérios da convivência são a organização e seu líder, não a comunhão. Isso enfraquece a própria espiritualidade, além de ser “uma mundanização da fé”, assegura Oneide. Roberto entende que é “um grande desafio viver livremente a fé num contexto religioso plural, aceitando o outro com sua fé e não apesar de sua fé”. Ele lembra de um filme francês – “Homens e deuses” – que mostra a vivência missionária de monges católicos numa comunidade muçulmana na África. Os monges, únicos cristãos no lugar, desenvolvem um

Divulgação Novolhar

>>

10

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

PRESENÇA: A igreja do futuro é aquela que se importa com o sofrimento das pessoas. Para isso deve caminhar “a segunda milha” com os desqualificados, segundo o ensinamento de Jesus. A igreja só tem futuro quando é capaz de atualizar e tirar as consequências do que Jesus ensina e faz.


COMPAIXÃO: Na visão do professor Roberto Zwetsch, a igreja do futuro é a igreja da misericórdia. Para ele, tal igreja deve ter “a coragem de abrir mão de privilégios, andar com as pessoas onde vivem e com os passos que conseguem dar, acolher quem nada tem a oferecer, ir ao encontro de quem não conhecemos, ter olhos para enxergar além dos seus muros”.

SEGUNDA MILHA – “A pluralidade de igrejas cristãs já é um exercício de respeito à pluralidade de religiões”, salienta Oneide. Se as pessoas cristãs de diferentes igrejas não conseguem dialogar entre si, mais difícil será o diálogo entre religiões distintas. Existem, sim, igrejas e cristãos que conseguem dialogar com muçulmanos, budistas, judeus, adeptos de religiões de matriz africana. Mas há grupos que se odeiam. “É necessário buscar em cada tradição religiosa forças para

conter os fanáticos”, desafia Oneide. “Os saberes de outros povos, como das culturas afro-brasileira e indígena, são fundamentais para a recuperação de nossos valores”, afirma. O teólogo completa: “Estou cada vez mais convencido de que o preconceito é uma desculpa esfarrapada para não amar o diferente”. “Amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei” (João 15.12) é o legado de Cristo para nós. O que significa isso neste mundo de pluralismo religioso? “A vivência do amor é a marca da vida cristã”, responde Roberto. “Nem sempre somos exemplos desse amor”, lamenta. Ele entende que, no mundo competitivo e excludente de hoje, não bastam apenas boa vontade e ajudas esporádicas. A seu ver, “caminhar a segunda milha” (cf. Mateus 5.41) significa “a coragem de abrir mão de privilégios, andar com as pessoas onde vivem e com os passos que conseguem dar, acolher quem nada tem a oferecer, ir ao encontro de quem não conhecemos, ter olhos para enxergar além dos nossos muros confessionais”. Fala-se que a igreja do futuro é a igreja da misericórdia. Jesus teve a coragem de andar com gente desqualificada, pecadora, porque “é com essas pessoas que a luz do evangelho poderá brilhar de forma mais evidente”, sublinha Roberto. Pois é nelas que se manifestam a misericórdia e a graça incondicional de Deus. O teólogo conclui: “Como atualizar e tirar as consequências desse ensinamento e prática de Jesus é a questão para as igrejas cristãs no atual N momento”. Divulgação Novolhar

serviço diaconal exemplar em meio a conflitos políticos de grupos islâmicos rivais. Sua coerência leva vários deles ao martírio, mas seu testemunho cala fundo na comunidade. Como agir num país plural como o Brasil? Diante dos preconceitos sobretudo a grupos religiosos de matriz africana e a pessoas homoafetivas por parte de comunidades cristãs, principalmente evangélicas, “está na hora de reconhecer nossas fraquezas e voltar ao caminho da verdade, da fé, do amor e da justiça”, ensina Roberto. O pluralismo religioso é uma realidade incontestável, assim como o pluralismo de igrejas. A nossa Constituição garante a diversidade religiosa. “Não reconhecer a diversidade pode levar a guerras religiosas. E isso não falta em nosso mundo”, constata Oneide. O teólogo lamenta a existência de “grupos ou organizações religiosas que se sentem donos da verdade e querem impor sua visão aos demais”. Isso se chama fundamentalismo. “Esse não tolera a dúvida, que faz parte da fé. Ele só tem certeza. O outro só pode existir se for igual a mim”, lamenta Oneide. Entretanto, a legislação brasileira assegura o direito à liberdade em vários sentidos, particularmente à liberdade religiosa. “Como vivemos num mundo plural, o direito à pluralidade é uma das características marcantes deste novo momento histórico”, frisa Roberto. Não é fácil, pois conviver com a diferença e entre diferentes exige muito e é complicado. Não é impossível, salienta Roberto. Ele lembra uma frase do poeta Mário Quintana: “A arte de viver é a arte de conviver. Mas como é difícil!”.

RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

11


CAPA

Divulgação Novolhar

A Igreja de Cristo é a igreja da misericórdia e do cuidado. Essa é sua marca desde a sua fundação. Ela está construída sobre o alicerce da misericórdia de Deus. Deus exerceu toda a sua misericórdia em relação à humanidade e ao mundo quando se encarnou numa frágil criança em Belém, que viveu e ensinou a misericórdia e, por causa dela, deu sua vida na cruz

Como será a igreja do futuro? para responder aos grandes desafios do seu tempo, a igreja deve lançar mão da misericórdia e do cuidado de deus e alcançar as pessoas em sua dor e carência. por Rodolfo Gaede Neto

A

Igreja de Cristo caracteriza-se por buscar, em cada novo momento da história e em cada contexto específico, a forma adequada e coerente de presença e atuação para

12

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

fazer frente, a partir do evangelho, aos grandes desafios que a sociedade humana lhe apresenta. Quais serão os cenários que os próximos tempos apresentarão à igreja como desafios? A natureza

continuará gemendo por causa das agressões que sofre? Continuarão subindo aos céus os lamentos das multidões de refugiados em consequência das guerras? A fome das crianças nas regiões empobrecidas do mundo continuará a envergonhar a civilização humana? A violência contra a mulher, o extermínio de jovens negros no Brasil, a corrupção, a morte de tantos jovens no trânsito continuará acontecendo de forma tão absurda? Temo que a igreja do futuro não estará livre desses grandes desafios; e esses lhe exigirão especialmente o exercício de seu ministério profético. Entretanto, a igreja terá também desafios bem específicos, como aqueles produzidos pela pós-modernidade. O maior e mais grave deles é a fragmentação das relações humanas. Os vínculos anteriormente estabelecidos dissolvem-se. Dilui-se o compromisso em relação às outras pessoas. Acontece um processo de individualização. O espírito comu-


nitário perde a sua força. Perde-se o sentimento de pertença. Os grandes valores da vida são relativizados. Todo esse quadro gera uma situação de insegurança, fragilidade, vulnera-

bilidade, ansiedade, estresse e carência emocional. Não é por acaso que a depressão é considerada a doença do século e que o mercado farmacológico cresce continuamente. Os problemas mencionados são geradores de muita dor. Representam as dores do mundo. Por isso a igreja do futuro continuará sendo a igreja do Kyrie eleison, através do qual ela grita comunitariamente a Deus, clamando por sua misericórdia. A Igreja de Cristo é a igreja da misericórdia e do cuidado. Essa é sua marca desde a sua fundação. Ela está construída sobre o alicerce da misericórdia de Deus. Deus exerceu toda a sua misericórdia em relação à humanidade e ao mundo quando se encarnou numa frágil criança em Belém, que viveu e ensinou a misericórdia e, por causa dela, deu sua vida na cruz. Lutero diz: Deus nada retém para si mesmo; tudo o que ele tem dá por misericórdia. Deus é “fonte eterna que transborda de pura bondade e do qual mana tudo o que é e se chama bom”.

ORAÇÃO DO CUIDADO Deus do amor, dá-me a tua mão. Conduze a minha vida e guia os meus passos para que eu caminhe seguro. Sob as asas da tua providência, sinto-me prestigiado. E no colo da tua bondade encontro descanso verdadeiro. Em dias de medo e de angústia, abriga-me em teu poder. Em momentos de ansiedade, faze pousar sobre mim a tua paz. Ao sentir-me fragilizado, ajuda-me a ter esperança. Cuida de mim e dos meus amados. Cuida do meu destino. Quando a culpa me acusar, acolhe-me em tua graça. Absolve-me do pecado e faze-me renascer do teu perdão. Se eu cair, permite que eu caia em tuas mãos providentes e, se eu permanecer caído, dá-me a tua companhia. Seja como for, cobre-me com o manto do teu amor. Graças pelo teu cuidado, graças pela salvação. Agora, dá-me a bênção que tanto anseio. Amém! Rodolfo Gaede Neto

Quem segue o Deus da misericórdia vive da sua misericórdia. Essa, porém, quando preenche o ser humano, transborda. A misericórdia de Deus não cabe em nós, não se esgota em nós; quer ir além de nós, quer ser testemunhada e praticada. Tornamo-nos canais através dos quais a misericórdia de Deus flui em direção às pessoas que dela necessitam. “As criaturas são a mão, o canal e o meio através de que Deus tudo concede” (Lutero). A igreja do futuro, para responder aos grandes desafios de seu tempo, deverá lançar mão de recursos que sempre já fizeram parte de seu tesouro teológico, mas que agora poderão ser instrumentos muito especiais para que a misericórdia e o cuidado de Deus alcancem as pessoas no seu estado de dor e carência. Sejam lembrados brevemente os seguintes: a) o acolhimento fraternal e sororal em ambientes saudáveis e seguros; b) a oração com seu potencial terapêutico; c) a bênção como forma de empoderamento; d) a ceia da comunhão como forma de edificação do espírito de corpo comunitário e de pertença; e) a diaconia como forma de solidariedade concreta; f) a visitação como forma solidária de presença da igreja ao lado de quem sofre; g) o exercício do ministério do ouvir. A igreja do futuro caracterizar-se-á por sua sensibilidade em relação às dores das pessoas, por sua solicitude de estar significativamente presente na vida delas e por seu serviço de orar com elas, ouvi-las e abençoá-las em nome de Deus. N

RODOLFO GAEDE NETO é teólogo e professor de Teologia na Faculdades EST em São Leopoldo (RS).

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

13


CAPA

Em busca da diversidade reconciliada por Odair Pedroso Mateus

M

uita gente que já saiu da universidade ainda não havia nascido quando a Comissão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas começou a projetar um texto em que teólogos representando várias igrejas separadas umas das outras tentariam responder juntos, de preferência a uma só voz, à pergunta: “O que é a igreja?”. O texto só foi aprovado pelos teólogos das igrejas separadas em 2012 e foi publicado em 2013. Traduzi o texto para o português em junho passado na esperança de que ele sairia em breve no Brasil. Mas por que passar tanto tempo tentando responder a uma pergunta que há mais de 40 anos teólogos latino-americanos como José Míguez Bonino classificavam como equivocada? A resposta impõe um desvio pelos meandros históricos e teológicos do cristianismo. O cristianismo é uma religião contraditória. Por um lado, sente-se enviado a pregar ao mundo uma mensagem de amor, isto é, que o Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo vive em amor e por amor cria o mundo e salva-o de seu pecado para que Criador e criação vivam em plena comunhão. Por outro lado, apresenta-se ao mundo como

14

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

uma religião cheia de divisões, que com frequência levaram e levam ao ódio e à violência. A pergunta “como superar essas divisões para que a mensagem seja mais visível e o mensageiro mais parecido com a mensagem?” teve e continua tendo várias respostas. Uma delas consiste em dizer que a questão não é tanto a divisão cristã em si, mas por que dividir e em nome de quem dividir, quando isso é necessário num mundo estruturalmente dividido onde ficar em cima do muro é fazer o jogo de quem domina e lucra com isso. Essa resposta, marcada pelas teologias críticas, associa a superação das divisões eclesiais à superação das divisões societárias e ecológicas. Essa e outras respostas concretas a essa pergunta constituem o que chamamos de “movimento ecumênico”, no singular por comodidade ou convicção teológica. A resposta na qual trabalho atual­ mente, que não exclui a resposta acima, consiste em dizer que a superação das divisões exige também que as igrejas separadas cheguem a um consenso teológico sobre o que é a igreja e como o poder é exercido na igreja, porque isso fez parte de divisões passadas que continuam a existir.

Seguem dois exemplos clássicos: O cristianismo antigo de cultura grega e o cristianismo antigo de cultura latina separaram-se gradativamente ao longo do primeiro milênio por razões políticas, econômicas, culturais e teológicas. Um dos fatores da divisão ocorrida quase mil anos atrás foi a autoridade da e na igreja. Os gregos diziam que a igreja não tem poder para mudar um credo universal recebido pelas igrejas locais no século 4, enquanto os latinos diziam que a igreja tem não apenas o poder, mas o dever de tornar explícitas doutrinas que estavam implícitas na tradição, como a questão clássica da procedência do Espírito Santo na Trindade em si imanente. SUPERAÇÃO: O Centro Ecumênico do Conselho Mundial


Outro exemplo: Quase quinhentos anos atrás, os protestantes tentaram reformar a Igreja de Roma porque estavam convencidos de que o exercício da autoridade eclesial na Idade Média havia levado a liderança da igreja romana a viver e a ensinar como a falsa igreja e, por isso mesmo, a ofuscar a luz do evangelho de salvação pela graça por meio da fé. A tarefa de uma eclesiologia ecumênica hoje – responder à pergunta “O que é a igreja?” – fica um pouco mais complicada quando nos damos conta de que só depois das grandes divisões do passado é que as diferentes “facções” cristãs começaram a perguntar e a responder sistematica-

mente a esta mesma questão: “o que é a igreja?”. Com isso as diferentes respostas que surgiram nos últimos séculos são, em grande medida, respostas polêmicas, formuladas em linguagem defensiva ou apologética: minha igreja diz que a igreja é isso (e logo não aquilo que outras dizem que ela é) pelas seguintes razões (que invalidam, em grande medida, as razões de outras igrejas para falar da igreja como falam). Além do mais, essas respostas divergentes e mesmo contraditórias levam a diferentes visões da unidade cristã, o que torna ainda mais complexa a busca ecumênica. Nessa área eclesiológica, o trabalho ecumênico consiste em reunir na mes-

Arquivo Conselho Mundial de Igrejas

de Igrejas-CMI em Genebra-Suíça busca a superação das diferenças entre as igrejas

ma mesa essas diferentes linguagens mais ou menos polêmicas e apologéticas sobre a igreja, para que elas encontrem no subsolo ou no inconsciente de si mesmas as homologias que poderiam tornar mais complementares essas “eclesiologias” que parecem conflitantes há séculos, se não mutuamente excludentes. Trata-se idealmente de desenterrar um dicionário esquecido que manifesta, como num palimpsesto, as equivalências fundamentais entre essas diferenças, o que o ecumenista Nicolau de Cusa chamou no século 15 de coincidência dos opostos. Então, o fato de o texto sobre a igreja publicado em 2013 pelo CMI ter sido um trabalho não apenas difícil, exigindo muita paciência, mas também lento, a ponto de ter começado quando os que já saíram da universidade ainda nem tinham nascido. Lançado em 1989 e implementado depois de 1993, o projeto de um texto conjunto sobre a igreja bateu cabeça durante quatro anos e só deu um primeiro resultado em 1998, quando foi publicado com o título The Nature and Purpose of the Church. Com base nas reações oficiais das diferentes igrejas participantes (ortodoxas, católica, protestantes), chegou-se a uma nova versão publicada em 2005: The Nature and Mission of the Church, publicada em português. Uma vez mais, as igrejas envolvidas nesse esforço foram solicitadas a comentar o texto em relação ao significado dele para a superação das divisões entre elas. Isso levou à terceira versão The Church: Towards a Common Vision, que sugere uma certa “convergência” eclesiológica entre elas e que deve ser publicada no Brasil como A Igreja: Uma Visão N Ecumênica. ODAIR PEDROSO MATEUS é professor de teologia ecumênica do Instituto Ecumênico do CMI e membro do secretariado da Comissão de Fé e Ordem do CMI em Genebra, Suíça NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

15


CAPA

Ferramenta na missão urbana por Jorge Batista Dietrich de Oliveira

U

ma lembrança de minha infância que guardo com carinho é a imagem de um velho armazém onde minha família fazia compras. Compravam-se desde alimentos até roupas, ferramentas e querosene para os lampiões. Tínhamos uma relação de amizade com o dono e sempre comprávamos ali, pois era próximo de nossa casa. À medida que fui crescendo, surgiram o supermercado, o hipermercado e, por fim, o shopping

center, que se tornou o símbolo que melhor representa a cidade. Hoje faço minhas compras no shopping, pois lá encontro tudo o que preciso e ainda conto com estacionamento, segurança, ambiente climatizado, melhores lojas e serviços, praça de alimentação e entretenimento. E com isso, cada vez mais, o armazém torna-se uma doce lembrança do passado. A igreja também passou por grandes transformações, e o modelo de igreja rural já não corresponde às ne-

REFRLEXÃO: Um dos grupos de estudo bíblico em casas de famílias em Canoas (RS)

16

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

cessidades urbanas, pois os habitantes da cidade criam novos horizontes de pensar e agir. Além disso, o modelo familiar conhecido na realidade rural sofre muitas transformações na cidade, e os membros de confissão luterana estão cada vez mais espalhados pelas periferias e no entorno das grandes cidades. A igreja urbana tem outro rosto, pois cresceu e assimilou a lógica da cidade. Muitas se parecem com um shopping center da fé, pois as pessoas concentraram a atenção no “aqui e agora”. A religião tornou-se uma atividade de lazer. O que vale são o prazer e a liberdade. A discordância desse modelo e a saudade do velho armazém levaram-me a pensar numa proposta de igreja onde a vida e a fé das pessoas possam encontrar seu lugar e ser partilhadas. O resultado de minha busca foram os pequenos grupos caseiros de estudo bíblico. Percebi a possibilidade de criar redes de articulação, entrosamento e


Divulgação Novolhar

ARMAZÉM: Uma doce lembrança do passado, o velho armazém não atende mais; assim como ele, a igreja precisa modernizar-se

comunicação através da participação das pessoas nos grupos domésticos espalhados pelos bairros e periferia da cidade. Surgiu então um modelo de igreja urbana que valoriza a casa onde as pessoas podem encontrar-se e viver em família. Como pastor, tenho experimentado a casa das pessoas como um lugar de expressão do reino de Deus. Lugar de comunhão e convívio, que traz resultados para o ser igreja na cidade. Os pequenos grupos nos lares oportunizam a seus participantes: relacionamentos, espaço para diálogo, trocas de experiências e fortalecimento na fé. A proposta de igreja doméstica é bíblica, foi utilizada desde o início da igreja cristã e tem sobrevivido ao longo dos séculos como um modelo que

funciona. Além disso, cria ambiente apropriado para o desenvolvimento espiritual, pois proporciona a oração intercessora, facilita o estudo participativo da Bíblia e transforma espectadores em participantes ativos. Além disso, a vivência da fé cristã em pequenos grupos familiares pode representar um “remédio” contra o individualismo e a solidão, marcas tão presentes em nossa realidade urbana. Nessa proposta de igreja, a ordem de Cristo do “IDE” é praticada de tal forma que a igreja vai até as pessoas, e muitos novos membros são alcançados por meio de amigos, parentes e vizinhos. O trabalho com pequenos grupos é flexível, tem mobilidade, é inclusivo, é pessoal e cria relacionamentos. Traz crescimento, é adaptável à igreja institucional e é de pequeno

custo operacional. Por tudo isso se pode tornar uma ferramenta muito importante na missão urbana. Crendo que toda a vivência da comunidade emana do culto e nele desemboca, buscamos um modelo em que todos os grupos caseiros convergem na comunidade reunida em culto. No culto, a comunidade deixa-se servir por Deus, sendo fortificada para prestar culto a Deus com seu testemunho e serviço no mundo em que vive. O culto, que começa no templo, espalha-se pelos bairros da cidade, nos encontros semanais nas casas, e volta novamente para o templo, perfazendo uma unidade entre celebração e vida. N JORGE BATISTA DIETRICH DE OLIVEIRA é teólogo e ministro da IECLB em Canoas (RS)

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

17


CAPA

Jovens por uma igreja mais coerente por Martha Regina Maas

T

od@s já ouviram alguma vez a frase: “Ninguém é uma ilha”. Ela pode parecer clichê, mas os pensamentos que me levaram a escrever este texto são um exemplo disso, que eu também quero trazer para refletir sobre a igreja no futuro: nada nem ninguém se constrói sozinh@, de maneira totalmente isolada. A igreja também é assim: ela não está em um espaço ou mundo paralelo... Ela está situada em uma sociedade repleta de pessoas e de natureza, com seus defeitos, qualidades e diferentes momentos. E é nessa sociedade que ela deve existir e atuar. O tema da IECLB de 2014 retratou bem isso: somos igreja em lugares reais, com problemas, desafios e oportunidades reais. Essas mesmas realidades eu quero levar em conta ao tentar pensar sobre a igreja no futuro: vivemos em tempos voláteis. As relações consigo mesmo e entre pessoas não são mais as mesmas da geração de nossos pais e das anteriores. A estabilidade, as certezas, a verdade não são mais concebidas de maneira simples e unilateral. Há sempre um outro ponto de vista, uma outra maneira de olhar, de pensar, de tentar compreender...

18

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

A tecnologia, as formas rápidas de comunicação e as redes sociais estão aí para mostrar o quão rápidas e instantâneas são nossas atitudes e relações. Em meio a essa correria, nessa busca por mais tempo e dinheiro e à competitividade do mercado, vejo a igreja e suas celebrações como local e oportunidade de paz. Acredito que, quanto mais a cobrança do mundo em relação à pressa aumenta, mais a igreja se torna um lugar especial. Em nossos templos e em nossas relações comunitárias, podemos encontrar paz, aconchego, alegria e também o silêncio do qual nosso mundo tanto carece. A convivência com o “diferente” também não é algo raro em nossa sociedade. Basta prestar atenção. Porém essa convivência nem sempre acontece de maneira simples e pacífica. Acredito que a igreja deva buscar sempre ser mais inclusiva a partir de uma visão de compreensão, de olhar a diversidade do mundo como positiva, como parte da belíssima criação de Deus. Dessa maneira, tornamo-nos mais próxim@s das pessoas, pois a igreja se torna lugar de partilha e libertação, no qual cada um e cada uma é bem-vindo e bem-vinda para servir com seus diferentes dons. Nós só temos a ganhar com as diferentes pers-

ENVOLVIMENTO: Nada nem ninguém está sozinh@. E a igreja também é assim: não podemos separá-la da sociedade, das pessoas e da realidade. As mudanças que queremos na igreja podem também ser as mudanças que desejamos para a sociedade: dignidade, amor, respeito... A pessoa que eu sou dentro da minha comunidade não é diferente daquela que sou em meu trabalho ou em meio a meus afazeres diários.


Divulgação Novolhar

DOENÇAS RARAS

pectivas, pontos de vista e maneiras de agir das mais diferentes pessoas. Ao mesmo tempo em que os diferentes pontos de vista são bemvindos e incentivados, igreja também é instituição que anuncia, fala e se posiciona... Como nosso tema de 2015 diz: Somos igreja da Palavra, ou seja, somos igreja que tem algo a dizer em nossa sociedade. O lema do ano é uma pergunta do Mestre para a sua igreja: “o que vocês estão conversando pelo caminho?”. Ao mesmo tempo, pode ser uma pergunta da igreja para o mundo e a sociedade que a cerca: “quais são os

assuntos das conversas de vocês?”. Nesse sentido, vejo que o futuro da igreja é também se posicionar em relação aos diversos temas presentes em nosso mundo. Com a rapidez das informações temos acesso a diferentes opiniões, e a igreja pode e deve aproveitar esses espaços para mostrar sua face e identidade em meio a tantas diferentes formas de pensar. Como disse no começo deste texto: nada nem ninguém está sozinh@. E a igreja também é assim: não podemos separá-la da sociedade, das pessoas e da realidade. As mudanças que queremos na igreja podem também ser as mudan-

ças que desejamos para a sociedade: dignidade, amor, respeito... A pessoa que eu sou dentro da minha comunidade não é diferente daquela que sou em meu trabalho ou em meio a meus afazeres diários. Somos igreja presente em todos os lugares. Cidadania e espiritualidade não andam de maneira separada... Que sejamos membros e igreja sempre mais coerentes. Com linguagem e prática andando em conjunto, sempre em busca de um mundo N mais justo. MARTHA REGINA MAAS é mestranda em Educação na FURB e liderança jovem no Sínodo Vale do Itajaí da IECLB em Blumenau (SC)

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

19


POVOS INDÍGENAS

O outro lado da Barragem Norte por Jasom de Oliveira

U

m dos mais graves problemas do Vale do Itajaí desde os tempos da chegada dos primeiros imigrantes germânicos em 1850 sempre foi o das cheias periódicas. O próprio colonizador, Dr. Hermann Blumenau, sofreu com as enchentes, que invadiram sua residência diversas vezes e até causaram a perda de documentos importantes da colônia. Nos anos 1970, foram iniciados os projetos de uma solução estrutural que era anunciada como solução definitiva para o problema: um complexo de barragens nos três maiores afluentes que formavam a bacia do rio Itajaí-Açu. Quando havia excesso de chuvas nas cabeceiras desses rios, a água ficaria retida nessas barragens e a população abaixo delas estaria protegida. As barragens foram erguidas e, com elas, surgiram novos e graves problemas. Um deles é de caráter humanitário. A Barragem Norte, localizada no município de José Boiteux (SC), é uma das três barragens que controlam o forte fluxo de água que entra no rio Itajaí-Açu. A Barragem Norte foi finalizada em 1992 e é capaz de represar 355 milhões de metros cúbicos de água, que alagam uma área de aproximadamente 870 hectares. Grande parte dessa área de alagamento se concentra na Terra Indígena Laklãnõ-

20

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

Xokleng, situada nos municípios de José Boiteux, Doutor Pedrinho, Vitor Meireles e Itaiópolis (SC). Desde o início da construção em 1972, os impactos causados pela barragem às famílias indígenas que ali vivem são imensuráveis e se repetem: interferência negativa nas tradições culturais, pois a comunidade que vivia unida em torno do rio Hercílio necessitou se separar em diferentes aldeias para fugir das inundações; famílias desabrigadas; casas inundadas e condenadas; falta de água potável e alimentos; estradas interditadas; aldeias isoladas; cancelamento das aulas nas escolas; profissionais da saúde sem fazer o atendimento nas aldeias; riscos de deslizamentos; insegurança e angústia pela próxima inundação. A partir desse contexto, o Conselho de Missão entre Povos Indígenas-COMIN, a Fundação Luterana de Diaconia-FLD e o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade de Blumenau-FURB realizaram, no dia 25 de novembro, o seminário “O Outro Lado da Barragem Norte: impactos e desafios na Terra Indígena LaklãnõXokleng”. Com sua participação no seminário, a IECLB, através do Sínodo Vale do Itajaí, COMIN e FLD, demonstrou o seu papel de denúncia e anúncio por um mundo mais justo e solidário.

DANÇA: O povo Laklãnõ-Xokleng apresentou-se na FURB

Pelo COMIN participaram a diácona Valmi Ione Becker, além de Jasom de Oliveira e Janaína Hübner, que atuam na missão em Santa Catarina. Pela FLD participou a pastora Cibele Kuss. Pelo Sínodo Vale do Itajaí esteve Roberto Boebel e pelo Grupo de Apoio o coordenador, pastor Clovis Horst Lindner. O objetivo do encontro foi dar visibilidade ao processo e impactos gerados com a construção da Barragem Norte na Terra Indígena Laklãnõ-Xokleng, buscando construir estratégias de defesa dos direitos da população indígena e integração de suas demandas na gestão de risco de desastres no Vale do Itajaí. O cacique presidente Setembrino Camlem, que preside o conselho dos caciques das oito aldeias, levou os problemas da barragem aos participantes do encontro. Além de um grupo de lideranças indígenas, caciques, homens, mulheres e crianças Xokleng participaram com suas


Divulgação Novolhar

barragens e histórias repetidas por Clovis Horst Lindner

Divulgação Novolhar

“Por que só fazem barragem onde tem indígena?”, pergunta o velho cacique no seminário da FURB “O Outro Lado da Barragem Norte” no dia 25 de novembro. A sua lista de histórias iguais às de José Boiteux/Ibirama estende-se Brasil afora. Uma das três barragens do complexo erguido nos anos 1980 para resolver o problema das enchentes no Vale do Itajaí, a Barragem Norte só trouxe problemas para a terra Laklãnõ-Xokleng.

durante a abertura do seminário

reivindicações e tradições do encontro, que foi aberto com uma apresentação cultural. Também autoridades federais e estaduais estiveram no encontro, entre elas, Rodrigo Moratelli, secretário de Defesa Civil de Santa Catarina. Também a procuradora da República em Santa Catarina, Analucia Hartmann, esteve no seminário, denunciando a falta de agilidade dos responsáveis, como a FUNAI, o governo federal e o governo de Santa Catarina. A decisão do governo federal de passar a responsabilidade sobre a Barragem Norte ao governo catarinense não agrada a comunidade indígena. O dia de trabalho na FURB levou à definição de dois pontos importantes que pretendem viabilizar estratégias de defesa dos direitos da população LaklãnõXokleng. Segundo a secretária executiva da FLD, pastora Cibele Kuss, o primeiro ponto é uma carta em caráter emergencial a ser enviada à Procuradoria Geral da República, solicitando a designação de um procurador para tratar das reivindicações do povo Laklãnõ-Xokleng. O segundo ponto prevê a criação de um grupo de trabalho para acompanhar os impactos causados pela barragem. N JASOM DE OLIVEIRA atua pelo COMIN da IECLB junto aos povos indígenas em Santa Catarina e reside em Blumenau (SC)

Além dos muitos problemas, essa barragem é um crime. “Poderia ser qualificada como genocídio pelas leis da Corte Internacional de Justiça”, disse um professor da UFSC. “Deviam derrubar a barragem”, ele provoca. Minimizando, o velho cacique contemporiza: “Não somos contra a barragem! Queremos só o nosso direito!”. Mas eu sou contra a barragem! Ela custou uma fortuna, faz 30 anos que só traz problemas, é fonte de uma guerra entre brancos e indígenas e não resolveu o principal problema do Vale do Itajaí, que é a questão das cheias. Faz 30 anos que as três barragens estão em operação, e as catástrofes movidas a chuva só fizeram aumentar no nosso querido Vale do Itajaí. Essa barragem é uma pedra de tropeço, nada mais! Ainda assim, tem gente defendendo mais obras para que, finalmente, nos livremos das enchentes e dos deslizamentos. “Uma grande bobagem”, protestam os ambientalistas. “Obras estruturais não vão resolver os problemas das cheias no Vale”, insiste há anos o ambientalista Lauro Bacca, de Blumenau. Para ele, não adianta erguer barragens se não cuidarmos das florestas. Sabe-se que o volume de chuvas aqui no Vale é regido pelo gigantesco rio aéreo sobre as nossas cabeças, que os meteorologistas denominam de Zona de Convergência do Atlântico Sul. É o rio Amazonas aéreo, que tem mais água do que aquele que corre na Amazônia. E esse rio, senhores “especialistas” e construtores de barragens, está bem revolto e confuso. Sabem por quê? Porque ninguém bota um freio no desmatamento do nosso maior patrimônio ambiental: a Floresta Amazônica. Remova-se a floresta na Amazônia e vamos ter um caos climático aqui no sul do Brasil. E não haverá barragem capaz de conter as muitas e muitas enchentes que virão. Assim, aos muitos problemas da Barragem Norte junta-se mais um: ela é um crime ambiental gravíssimo! Se todo o dinheiro que ela custou tivesse sido investido em preservação ambiental, teríamos menos catástrofes naturais. Mas como ninguém acredita nisso e obras N estruturais rendem votos e propinas, nada vai mudar. CLOVIS HORST LINDNER é editor da Novolhar e coordenador do Grupo de Apoio à Missão Indígena em Santa Catarina em Blumenau (SC) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

21


Entrevista

D

Carine Fernandes

e acordo com o art. 73, do Capítulo III, do Regimento Interno da IECLB, o pastor presidente pode ser reeleito apenas uma vez. Na recente história da IECLB, os pastores presidentes foram reeleitos. Qual é o significado dessa reeleição? Nestor Friedrich – É uma avaliação positiva dos três programas que colocamos em foco: o acompanhamento aos estudantes de Teologia; o acompanhamento a ministros e ministras, com a construção de uma política de seguridade ministerial, e a qualificação das lideranças. Esses três programas foram construídos em conjunto com os 18 pastores sinodais. Todos abraçaram a causa, e é um grande ganho para a igreja.

Gestão baseada no cuidado por Carine Fernandes O pastor Dr. Nestor Paulo Friedrich, 57 anos, foi reeleito à presidência da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em outubro, no Concílio Geral em Rio Claro (SP). Ele comandará a igreja ao lado da primeira vice-presidente, Silvia B. Genz, pastora na Comunidade Evangélica de Picada 48 (RS), e do segundo vice-presidente, Inácio Lemke, pastor sinodal do Sínodo Norte Catarinense. Friedrich é natural de Agudo, doutor em Teologia e conta 31 anos de ministério. Para ele, a reeleição é “gratificante, mas assustadora pelo apoio significativo das comunidades”. Nesta entrevista concedida à Novolhar, o presidente fala sobre os desafios para os próximos anos, a importância do trabalho em equipe e reforça que a base de sua gestão será o cuidado.

22

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

Como será a articulação com os dois pastores na vice-presidência e qual é o papel deles na direção da igreja? Nestor Friedrich – A presidência é exercida de forma compartilhada. Eles participam de todo o processo. Além de nossas tarefas em termos de IECLB no Brasil, há também uma agenda para o exterior, em que precisamos nos articular, sentar juntos, para ver o que cada um pode assumir dentro de seus compromissos. Os dois vice-presidentes são da Região Sul. Não surgem lideranças nas outras regiões? Nestor Friedrich – Eu acho que há lideranças, mas é um processo. Só para ter uma ideia, nós tivemos um Conselho da Igreja, não lembro a época, formado só por homens. E eu diria que foi necessário que isso acontecesse para que no próximo houvesse uma representação maior de mulheres. Poderíamos ter lideranças no Norte, mas acho que é uma articulação do próprio conjunto dos 18 sínodos. Precisamos amadurecer mais o processo todo.


A composição da Secretaria-Geral da IECLB terá mudanças na sua segunda gestão? Nestor Friedrich – Ao lado dos três programas que já temos, teremos mais dois, e um deles terá um foco grande na missão. Para a Secretaria de Missão vamos ter o Secretário Adjunto para a Missão Diaconal, que será o ex-pastor sinodal do Sínodo Nordeste Gaúcho, Altemir Labes. Convidamos também Carlos G. Bock, que está na Federação Luterana Mundial, para assumir a assessoria de gestão na Secretaria-Geral. O pastor Marcos Bechert está assumindo a Secretaria de Ministério Ordenado. E o pastor Pedro Puentes vem ajudar na assessoria da área teológica. Isso é o que nós vislumbramos até dezembro, mas até março, na reunião do Conselho da Igreja, podem ocorrer mudanças.

igreja tem e para que conheçam o que existe. Na IECLB, temos muitos sites, jornais sinodais, então temos que pensar como articular esse conjunto todo de uma forma intencional. Até final de 2015, espero que tenhamos um projeto encaminhado. Existe a possibilidade de criar um conselho de comunicação e uma secretaria de comunicação? Já que no passado esses dois órgãos prestaram seus serviços na área da comunicação. Nestor Friedrich – Isso pode ser uma consequência desse processo de reflexão e diagnóstico. Precisamos avaliar a demanda que temos e quais são os recursos. Para um projeto de comunicação desses precisamos ter a parceria dos 18 sínodos. Quais são as carências na área da comunicação na IECLB?

A partir do tema de 2015, quais são seus projetos para a comunicação? Nestor Friedrich – Precisamos conversar. Vamos chamar os profissionais de comunicação que trabalham na área dentro da igreja para saber como lidam com as diferentes ferramentas de comunicação que a

Qual a mensagem que o senhor deixa aos leitores da Novolhar? Nestor Friedrich – Meu lema é “cuidar bem do bem da IECLB”. Então convido todos a caminhar juntos, a ser irmão e irmã de caminhada nesse processo. N CARINE FERNANDES é jornalista em Porto Alegrte (RS)

Carine Fernandes

Quais são os temas que nortearão sua gestão a partir de 2015? Nestor Friedrich – O tema de 2015, “Igreja da Palavra – Chamad@s para comunicar”, tem a ver com comunidade e com a pergunta de Jesus, no texto bíblico, “sobre o que vocês estão conversando pelo caminho?” (Lucas 24.17). Sinaliza também para a comunicação, que é um eixo transversal. Nem pensamos tanto nos meios de comunicação (sem perdê-los de foco), mas sim na interação que precisa acontecer na própria comunidade. Desaprendemos a conversar, não nos comunicamos mais. Já para 2016, vamos trabalhar o tema da ética, os valores da fé luterana para dentro de nossa sociedade.

Nestor Friedrich – Devemos ser mais ousados, mais atrevidos (no bom sentido da palavra). Nós luteranos somos pouco assertivos em termos de afirmações de fé e de convicções. Temos medo de ser parciais nas respostas, buscamos respostas completas e profundas, e muitas vezes na comunicação isso não funciona. Também precisamos ter uma visão do conjunto, do projeto bonito no qual fazemos parte.

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

23


Novolhar: experiências de vida e fé

Divulgação Novolhar

DEPOIMENTO

TAPES: O grupo de mulheres visitantes que foi a Ivoti

por Marli Brun

E

m 2013, quando foi anunciado o encerramento da publicação da revista Novolhar, fiquei imaginando quantas experiências de vida e fé deixariam de ser geradas por isso. Naquele contexto, recebi o contato de uma leitora que dizia: “Li o artigo que saiu em 2012 sobre o trabalho das bordadeiras de Wandschoner (panôs). Mostrei às mulheres do nosso grupo de OASE, e várias ficaram interessadas em ir a Ivoti para conhecer o trabalho e te visitar”. E continuou: “Não sei se você lembra de mim. Quando Guilherme e eu casamos, você falou na pregação sobre o bordado, lembra? Na época, eu já bordava”. Aos poucos, fui lembrando do casal, Débora e Guilherme Schwalm. Na época da bênção matrimonial, Débora tinha

apenas 16 anos e vinha de outra igreja. Para fazer a pregação, inspirei-me na alocução de João G. Biehl (Suplemento 2 “Ofícios” do Proclamar Libertação). Biehl relaciona o texto de 1 Coríntios 13.1-8 com a música de Gilberto Gil, A Linho e Linho: É a sua vida que eu quero bordar na minha, como se eu fosse o pano e você fosse a linha. E a agulha do real nas mãos da fantasia, fosse bordando ponto a ponto nosso dia a dia. Lembro que, quando elaborei a alocução, além de desejar que o casal fosse muito feliz junto, eu tinha um profundo desejo de que Débora se sentisse feliz em fazer parte da IECLB. E, com entusiasmo e fé, fosse desenhando e bordando seu lugar na IECLB, tornando-se uma liderança ativa na comunidade.

Divulgação Novolhar

BORDADOS: Novolhar despertou interesse nos panôs conhecidos como Wandschoner

24

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

Quando recebi a ligação, começamos a planejar a visita a Ivoti, que aconteceu no dia 28 de agosto de 2014. Ao chegar em Ivoti, o grupo foi recepcionado com café e teve a oportunidade de conhecer o trabalho do Departamento de Diaconia, coordenado por Santa Kohl. Em seguida, iniciou-se o passeio pela cidade, ao Memorial da Colônia Japonesa, à Floricultura Sandrinha. Após o almoço, o grupo conheceu a Cooperativa dos Apicultores de Ivoti. O encontro com as bordadeiras da Associação de Bordadeiras Tecendo Memórias de Ivoti ocorreu nas dependências do Instituto de Educação Ivoti. Para Vera Schneider, coordenadora da Associação das Bordadeiras, “é muito bom saber que o nosso trabalho chega nas comunidades por meio da revista Novolhar. Ficamos felizes em receber o grupo e trocar experiências. Isso nos anima na caminhada”. Sobre a visita a Ivoti, a ministra Isolete Follmer escreveu: “A visita foi maravilhosa. É importante essa integração entre comunidades para a troca de experiências. Quando a Débora mostrou a revista, logo houve uma mobilização para que a viagem acontecesse. Fez-se uma caixinha em que mensalmente eram colocados valores para o passeio. Pois a maioria conhecia algumas pessoas que têm em casa esses panôs (Wandschoner). Antigamente, eram o símbolo da moça prendada. Somos gratos pelo lindo dia com que Deus nos presenteou”. Essa visita, impulsionada pela leitura


consultório da fé

A igreja luterana tem santos? por Alexander Busch

da Novolhar, foi muito gratificante para mim como pastora da IECLB e como integrante da equipe do Programa Gênero e Religião da Faculdades EST, espaço em que atuo atualmente. Fico muito feliz que Débora tornou-se uma líder na comunidade. Como dizia Santa Kohl ao apresentar o trabalho do Departamento de Diaconia e coordenadora do núcleo da OASE Estância da Serra: “Antigamente, as mulheres serviam para trabalhar, mas não podiam ocupar cargos de liderança nas comunidades. Hoje, essa história está mudando, e está sendo muito bom para as mulheres e, especialmente, está sendo muito bom para as comunidades”. A edição da Novolhar (março e abril de 2012) em que foi publicado o artigo “Wandschoner – Renda e Terapia” (Rui Bender) deu visibilidade a várias experiências de mulheres e reflexões sobre o seu cotidiano. Compunham o grupo integrantes da OASE e da Comunidade Jesus Salvador, de Tapes (RS), da Comunidade Cristo Rei, de Picada da Cruz, da Comunidade Reconciliação, de Cerro Grande do Sul (RS), e algumas pessoas de igrejas coirmãs. Entre as lideranças, a ministra responsável pelo trabalho na paróquia, Isolete Follmer, a coordenadora paroquial da OASE, Regina Grübel, o presidente da paróquia, Guilherme Schwalm, e a vice-coordenadora paroquial da OASE, Débora Schwalm. N

O contexto cultural-religioso do Brasil é, historicamente, influenciado pela Igreja Católica Romana, onde há estátuas representando pessoas santas. Até mesmo localidades recebem nomes de santos. Eu, por exemplo, nasci na cidade de São Paulo e atualmente resido no estado de Santa Catarina. Dentro dessa realidade surge naturalmente a pergunta: Existem santos na igreja luterana? Para responder a essa questão, o reformador Martim Lutero dá-nos algumas orientações. Lutero cresceu e viveu num tempo e lugar onde o papel dos santos era importante para promover a salvação das pessoas. Na igreja medieval, ensinava-se um padrão duplo de ética ou santidade. Do povo em geral esperava-se a obediência aos Dez Mandamentos. Havia, entretanto, pessoas que se destacavam como mais aptas para cumprir não somente as exigências dos dez, mas também outros mandamentos, especialmente os que se mencionam no sermão do monte (Mateus 5 a 7). Nesse nível de santidade, acumulavam-se méritos diante de Deus mais do que suficientes para garantir a própria salvação. Essas pessoas eram consideradas santas, e incluía personagens do passado como São Pedro ou Santa Ana. O excesso de méritos era distribuído entre as demais pessoas à medida que elas praticassem boas obras, tais como dar esmolas aos pobres ou orar o rosário. Também se podiam comprar cartas de indulgência que garantiam ao comprador os méritos acumulados pelas pessoas santas. Ao publicar as 95 teses, Lutero contestou essa teologia e prática, destacando que “o verdadeiro tesouro da igreja é o evangelho da graça de Deus”. A salvação é obra de Deus e não obra humana. Lutero reinterpretou, à luz do evangelho, o significado de santidade. Cumprir os mandamentos não é mais um caminho para acumular méritos diante de Deus, mas sim uma oportunidade para servir as pessoas. No escrito “Da Vida Matrimonial”, o reformador comparou as orações dos monges ao homem que lava as fraldas sujas de seu bebê, destacando nesse o exemplo de serviço em amor e fé. Também noutros escritos de Lutero percebemos a valorização das atividades do cotidiano como oportunidades de serviço e vivência da santidade. Respondendo à pergunta se na igreja luterana existem santos, a resposta definitivamente é “sim”. As pessoas cristãs são santas, batizadas e acolhidas pela graça de Deus, chamadas a praticar a santidade em sua profissão e trabalho, no relacionamento familiar e comunitário, no exercício da cidadania e no cuidado com o meio ambiente, na promoção da justiça e na construção da paz. Para a época de Lutero, esse novo entender da santidade foi revolucionário. Será que, em nossa época de apatia e comodismo, esses mesmos impulsos podem fazer a diferença, ofertando mais qualidade de vida a nós e ao nosso N mundo? Esperamos e oramos que sim!

MARLI BRUN é teóloga e ministra da IECLB em Ivoti (RS)

ALEXANDER BUSCH é teólogo e ministro da IECLB na Paróquia Badenfurt em Blumenau (SC). NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

25


BÍBLIA

Caminhando no mesmo passo por Ruth L. W. Musskopf

E

ntre 2 e 9 de novembro de 2014, a Igreja Luterana da Suécia promoveu um seminário de leitura popular da Bíblia, que aproximou um pequeno número de teólogas e teólogos luteranos da África do Sul, Etiópia, Tanzânia, Brasil e Suécia. A proximidade permitiu a reflexão sobre a caminhada pessoal de cada um bem como a caminhada de suas igrejas. O texto que serviu de impulso foi Lucas 24.13-34: “A caminho de Emaús”. Embasados nesse caminho, muitos outros “atalhos” abriram-se, e a viagem conjunta foi empolgante. Houve momentos tensos, mas também leves; técnicos, mas também sensíveis.

A Faculdades EST foi convidada a enviar dois participantes. Os indicados foram Marie Krahn, professora, e André Kosloski, estudante. Pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) foram enviadas uma doutoranda em Teologia, Elisa Fenner Schroder, que está fazendo parte de seus estudos na África do Sul, e a pastora Ruth L. W. Musskopf, que exerce seu ministério na Comunidade Martin Luther, de Porto Alegre. Fazer um encontro com pessoas de cinco países tão diferentes, com uma proposta de leitura bíblica que envolve a história de vida de cada um e cada uma, foi desafiador. As diferenças entre nós também se manifestaram na

Divulgação Novolhar

PARTICIPAÇÃO: André Kosloski, Marie Krahn e Ruth Musskopf, com participantes do encontro

26

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

língua. Dos 22 participantes, apenas um tinha a língua inglesa como língua materna. Todos os outros precisaram fazer uso dessa segunda língua para se fazer entender. Estávamos numa terra estranha e usando uma língua também estranha à maioria. Isso nos aproximou, uma vez que a vulnerabilidade demonstrada por um era de todos. Também isso favoreceu a criação de um ambiente de confiança. O grupo que se encontrou no domingo, dia 2, não se conhecia. Iniciamos dizendo nossos nomes e falando de ancestrais importantes. A visão diferente e particular que cada um tem da palavra “ancestral” já nos motivou a estabelecer relações e conexões. Procuramos, logo de início, construir um ambiente de sincronia e segurança para todos nós. Fomos assessorados por duas pessoas do Centro de Estudos Bíblicos, que, com sua simplicidade e engajamento, conseguiram encaminhar os debates sem moldar o caminho. Maria Soave Buscemi, com sua fala mansa e profunda espiritualidade, fez-nos percorrer curiosos caminhos internos. Paulo Ueti, com seu jeito despojado e notável conhecimento, desafiou-nos a caminhar observando a arquitetura e os desvios do caminho. Quando o caminho de Emaús começou a ser percorrido, perguntamo-nos sobre o que nossas igrejas estão conversando pelo caminho. Por coincidência, esse também é o tema da IECLB em 2015. Muitos assuntos surgiram, inclusive a preocupação da Igreja da Suécia com o estremecimento de suas relações com a Igreja da Etiópia. Essa ruptura nas relações entre as duas igrejas está acontecendo devido a um entendimento de vida e de leitura bíblica conflitantes. Conversar sobre esse assunto nos fez atentar para as consequências de certas posturas rígidas, baseadas em


Divulgação Novolhar

supostas verdades absolutas. Até que ponto estamos também determinados por esse pensamento? Podemos nos permitir outras leituras? Essas perguntas permearam nosso estudo, que procurava fazer com que nossas vidas e nossos corpos tocassem o texto bíblico. Tal experiência favoreceu inúmeras interpretações da vida e da Bíblia e, principalmente, permitiu a descoberta de textos vivos. Uma palavra acompanhou-nos durante todo o encontro: KARIBIA, palavra em suaíle, que significa caminhar juntos e juntas no mesmo passo. Iniciamos o encontro com descompassos, mas terminamos no mesmo caminho, olhando para a mesma direção. N Divulgação Novolhar

POPULAR: Acima, um momento criativo de meditação bíblica com a pergunta sobre o que nossas igrejas estão conversando pelo caminho. O grupo buscou, com seu estudo, fazer com que suas vidas e corpos tocassem o texto bíblico. Abaixo, foto de todos os participantes do encontro.

RUTH L. W. MUSSKOPF é teóloga e ministra da IECLB na Comunidade Martin Luther em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

27


ação humanitária

Dedicação sem fronteiras “Médicos Sem Fronteiras” tem o compromisso de denunciar o sofrimento das pessoas e os obstáculos encontrados na oferta de ajuda. em 1999, recebeu o nobel da paz. por Paula Oliveira

A

organização humanitária internacional “Médicos Sem Fronteiras” (MSF) foi criada em 1971 por médicos e jornalistas franceses com a proposta de levar ajuda médica de

emergência a vítimas de conflitos armados, epidemias, desastres naturais e exclusão do acesso à saúde. Segundo Susana de Deus, diretora-geral da organização no Brasil, o grupo atua da seguinte forma: ao

deparar-se com uma situação de crise humanitária, o primeiro passo é enviar uma equipe pequena, em geral de duas ou três pessoas, para fazer um levantamento das condições de saúde da população em questão e da ajuda oferecida por outras instituições, organizações ou governos. “Com base nesses dados, avaliamos se o trabalho é realmente necessário. Em caso positivo, as informações coletadas são utilizadas para traçar um plano de atuação que inclui as atividades que serão realizadas, a equipe, os suprimentos médicos necessários etc.”, afirma Susana. Em situações de conflito armado, as equipes levam assistência médica de forma neutra e imparcial às pessoas mais vulneráveis, independentemente de que lado do embate estejam. Nas emergências causadas por desastres naturais, quando as estruturas de saúde são atingidas ou

Julie Remy / Arquivo MSF

crises nutricionais anuais: Mais de 3% das crianças nigerianas menores de cinco anos apresentam desnutrição aguda grave. Sani Fridoussi, cinco meses, está pronta para ser transferida para a primeira fase do programa de desnutrição após recuperar-se de uma infecção respiratória aguda

28

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR


Yasmin Rabiya / Arquivo MSF

O médico Guillaume Mazambi examina um paciente em uma ala pediátrica improvisada no hospital de Am Timan

ficam sobrecarregadas, profissionais são rapidamente acionados e enviados ao local da catástrofe. MSF também oferece cuidados médicos às pessoas excluídas do acesso à saúde e atua junto a comunidades afetadas por epidemias ou desnutrição. “A decisão sobre onde e como intervir é baseada exclusivamente em uma avaliação das necessidades de saúde de indivíduos ou grupos. Essa decisão não é

influenciada por interesses políticos, econômicos ou religiosos. O grupo vai aonde as necessidades são maiores”, diz a diretora-geral da organização no Brasil. Susana de Deus explica que eles conseguem agir de forma “independente e alertar o público para a negligência e a violência por trás de crises humanitárias”, porque não dependem financeiramente de governos ou ou-

tros poderes políticos. Portanto as doações vindas do público são fundamentais para manter essa independência e permitem que a organização atue com rapidez nas emergências, muitas vezes em países ou regiões que recebem pouca ou nenhuma assistência. “Hoje temos mais de cinco milhões de doadores no mundo e cerca de 200 mil no Brasil. É graças a essas contribuições constantes que podemos nos planejar, agir rapidamente em situações de emergência e tratar pacientes com doenças que exigem cuidados de longo prazo”, afirma a diretora do MSF no Brasil. “Os princípios da independência, neutralidade e imparcialidade são fundamentais para o nosso trabalho. Essa neutralidade é crucial para as nossas equipes conseguirem chegar a qualquer pessoa afetada, não importando de que lado está.” “Médicos Sem Fronteira” tem escritórios em 28 países, inclusive no Brasil, e projetos de ajuda médica em mais de 70 países. Para quem tem interesse em contribuir ou fazer parte da organização, os requisitos básicos para trabalhar em “Médicos Sem Fronteiras” são: formação superior; dois anos de experiência profissional; domínio de um segundo idioma (inglês e/ou francês) e disponibilidade para trabalhar em outros países por longos períodos. “São mais de 34 mil profissionais de todo o mundo. Além dos profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, psicólogos, ginecologistas, farmacêuticos, entre outros –, temos administradores, economistas e logísticos.” Mais informações no site www.msf. org.br N PAULA OLIVEIRA é jornalista em São Paulo (SP)

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

29


PAis e filhos

Desacelerando a rotina O Slow Parenting prega mais tempo livre para brincadeiras, momentos de ócio e liberdade das crianças para escolher suas atividades. por Luciana Thomé

N

um mundo veloz e conectado, as exigências que visam atingir a perfeição também chegaram ao universo infantil. É cada vez mais comum ver famílias com superpais e supermães procurando atividades para o desenvolvimento dos filhos, muitas delas buscando o aperfeiçoamento profissional e o potencial da criança. Parece exagero, mas atualmente muitas crianças lidam com agendas diárias de miniexecutivos, com compromissos que vão desde a escola e passam por natação, judô, dança, estudo de línguas, aulas de pintura, entre muitos outros. É nesse cenário que um movimento bastante difundido nos Estados Unidos e na Europa defende a desaceleração da rotina das crianças e, consequentemente, dos pais. O Slow Parenting, que pode ser traduzido como “pais sem pressa”, é uma linha de educação baseada em sete mandamentos (ver box), que pregam mais tempo livre para brincadeiras, momentos de ócio e liberdade para escolher as atividades de que as crianças gostam.

30

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

O termo foi usado pela primeira vez pelo jornalista e escritor escocês Carl Honoré, autor de “Sob pressão”. A motivação para escrever o livro surgiu de um episódio cotidiano. Depois de ouvir da professora que o filho era um jovem artista talentoso, Honoré passou a procurar cursos de arte para a criança, que na época tinha sete

anos. Até que o menino lhe deu um puxão de orelha: ele não queria um professor ou tutor, só queria continuar desenhando. Para a psicanalista Joyce Gold­ stein, membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, é preciso respeitar o tempo das crianças e deixar que vivam a infância. “As crianças precisam brincar, possuir tempo livre para descobrir e criar experiências, desenvolvendo a imaginação e a criatividade. As crianças com agendas lotadas e estimuladas pelos pais a cumprir muitas tarefas correm o risco de ‘pular etapas’ e passam a viver num mundo cujas regras são feitas para elas: a regra da perfeição”, explica. Joyce acredita que o movimento Slow Parenting pode trazer muitos benefícios para o desenvolvimento psíquico da criança, assim como para os pais. “É dentro dessa perspectiva que se abre a possibilidade de construção de um espaço que favoreça a escuta, a troca, o diálogo e que exista prazer na criação de um tempo para que pais e filhos estejam juntos”, ressalta.

Mandamentos do Slow Parenting 1. Sem agenda: crianças de zero a cinco anos não precisam de atividades estruturadas, pois devem aprender de forma livre. 2. Miniexecutivo: atividades extracurriculares podem ser ótimas quando ajudam a exercitar o corpo e a mente. São ruins quando são exaustivas ou feitas só pensando no currículo profissional da criança. 3. Dê ouvidos: a opinião da criança deve ser considerada na hora de escolher uma atividade. 4. Menos, menos: simplifiquem as agendas de seus filhos, deixando tempo livre para brincar. 5. Tédio faz bem: deixar que as crianças fiquem entediadas é uma forma de fazer com que elas aprendam a ser mais criativas. 6. Ócio familiar: reserve algumas horas da semana para “fazer nada” em família – conversar, jogar, cozinhar, sem nenhuma programação prévia. 7. Novos amigos: no parquinho, resista à tentação de brincar com a criança o tempo todo. Deixe ela brincar com outras pessoas. Fonte: Sob pressão – Criança nenhuma merece superpais, livro de Carl Honoré.


Divulgação Novolhar

A presença e o convívio de pais e filhos também é um dos pontos defendidos pelo escritor, palestrante e especialista em comportamento humano Gabriel Carneiro Costa. Inspirado na própria experiência como pais, ele criou, com a esposa e psicóloga e neuropsicóloga infantil Graziela Freitas, o projeto “Pais sem pressa” (www. paissempressa.com.br). “Nossa proposta é que as pessoas tenham tempo para refletir sobre a questão. Não é um exercício quantitativo, e o movimento “Pais sem pressa” não é só estar com o filho. A presença é um dos pilares, e os outros não têm relação com trabalhar mais ou menos, ganhar mais ou menos dinheiro, mas sim como lidar com as expectativas que os pais têm dos filhos”, comenta Costa.

crianças precisam brincar, ter tempo livre para criar experiências com imaginação e criatividade. crianças com agendas lotadas e estimuladas pelos pais a cumprir muitas tarefas correm o risco de pular etapas e passam a viver num mundo cuja regra é a perfeição. JOYCE GOLDSTEIN, Psicanalista

Para os pais que desejam praticar o Slow Parenting, o escritor indica alguns passos iniciais: comece doando um por cento de seu dia para estar exclusivamente com seu filho; traga perguntas a seu filho para saber como ele se sente e do que gosta; reflita sobre as críticas direcionadas a seu filho e passe a refletir que as expectativas e frustrações dos filhos não são as mesmas dos pais. O Slow Parenting não tem regras preestabelecidas. O objetivo é trazer o real significado da infância de volta e melhorar o relacionamento de pais e filhos. E sempre é o momento de aprimorar a qualidade de vida da família. N LUCIANA THOMÉ é jornalista em Porto Alegre (RS)

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

31


HISTÓRIA

Fanático pela verdade há 600 anos, jan hus foi declarado herege e queimado na fogueira em 6 de julho de 1415. morria ali um dos precursores da reforma. suas cinzas foram lançadas no rio reno. por Martin N. Dreher

M

açãs do rosto salientes em face imberbe caracterizam uma personalidade irredutível; seus olhos escuros profundos dão tonalidade a seu caráter. Ama o xadrez e a música, o que não o impede de ter uma piedade profunda. Empresta dinheiro sem juros; é incorruptível; sua moral é ilibada. Inteligente, Jan Hus logo se torna conhecido como pároco da Igreja de Belém em Praga. Suas pregações estão relacionadas a questões do cotidiano e são recebidas com entusiasmo. Ataca a decadência moral. É moralista, A MORTE de Jan Hus numa representação de 1485 desnudando implacavelmente os vícios e as mentiras. De seu púlpito bêbados amasiados com prostitutas e desce o chicote, que fustiga a imorali- que mal conseguem esperar pelo fim dade de seu século e não poupa nem da missa para ir aos bares, entregar-se mesmo os integrantes de sua corpora- a conversas inconvenientes e a dançar. ção. Coloca na vitrine os pecados dos Na realidade, são inimigos de Cristo. clérigos considerados maus exemplos Estudou as obras do pré-reformapara os leigos: orgulhosos, convenci- dor John Wycliff, assumindo dele as dos, avaros, sanguessugas do povo, críticas à luta pelo poder na igreja. As

32

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

pregações moralistas e o pensamento do inglês fizeram desse boêmio um ímã que atraía as multidões, que viam no pregador alguém que lhes transmitia a verdade sem bajular seus superiores. Não foi por acaso que o designaram de “quinto evangelista”. Mas as pregações também lhe trouxeram inimigos ferozes. O clero da cidade encaminhou queixa ao arcebispo, afirmando que as pregações de Hus provocavam o desprezo do povo pelo clero. O acirramento cresceu quando houve discussões entre professores tchecos e alemães na universidade, culminando com a emigração dos alemães, que se dirigiram a Leipzig na Saxônia, onde mais tarde Lutero seria acusado de ser hussita. Hus passou a ser visto como patriota tcheco, e os ânimos acirraram-se ainda mais. Por fim, o arcebispo excomungou o pregador corajoso. Ele não se deixou intimidar, continuou a pregar em sua igreja, apesar do interdito, e não teve medo de atacar também o papado. Sequer os governantes foram poupados. Hus punha fogo na tocha da revolta contra igreja e Estado. Em 1412, teve que sair de Praga, e seus ensinamentos se disseminaram. Hus não ficou no debate acadêmico acerca do poder do clero. Em Constança, deu nome aos bois. De um lado, encontrava-se o concílio. Cabia-lhe pôr fim às cisões existentes no seio da igreja do Ocidente e reformá-la. Estava, porém, infectado com o vírus da decadência. Pouco se sentia do sopro do Espírito. Os delegados participavam de torneios, alegravam-se com prostitutas. A desmoralização acabava com as es-


Rui Bender

MONUMENTO erguido a Jan Hus na cidade de Praga na República Tcheca

peranças por reforma. É verdade que havia alguns que desejavam reforma. Eram teólogos brilhantes, mas reformas não se obtêm com discursos. Ficaram entregues a diplomatas e deram em nada. Do outro lado encontrava-se Hus, afirmando que a maioria nem sempre é detentora da verdade. Hus queria a verdade fanaticamente. Não era retórica. Estava disposto a morrer pela verdade. Por isso se indispôs com a igreja e seu poder. O choque tornou-se inevitável. A “hora do mal” ocorreu em um concílio, no qual o Espírito deveria soprar. As forças do mal deixaram o céu escu-

recer, e o poder brutal triunfou sobre a consciência cristã. O “príncipe deste mundo” presidiu o Concílio de Constança. O colégio de cardeais ordenou a prisão de Hus, lançou-o em cela fétida no mosteiro dos dominicanos. Meses mais tarde, levaram-no a outro presídio. Negaram-lhe advogado. Confiou-se ao advogado Jesus, “que em breve vos julgará”. Enquanto falava, os conciliares o vaiavam. Apelou a Cristo e não ao papa. Comparou os conciliares ao sinédrio e a Pilatos. Ordenaram-lhe renunciar a seus ensinamentos. Estava preso à consciência e preferiu ser considerado herege.

Tornou-se mártir e foi inscrito no livro dos hereges, hino de louvor à igreja invisível. Na fogueira, em 6 de julho de 1415, cantou: “Cristo, filho do Deus vivo, tem piedade de nós”. E, ao cantar “que nasceste de Maria virgem”, as chamas bateram em seu rosto, o canto cessou, somente os lábios se moviam. Suas cinzas foram jogadas no rio Reno. Hus é estrela que leva a Belém, canto do galo que desperta e nos leva a confessar o quanto negamos o Senhor, assim como Pedro. N MARTIN N. DREHER é teólogo, historiador, escritor e professor universitário aposentado em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR.COM.BR–> –>Jan/Mar Jul/Ago 2015 2013 NOVOLHAR.COM.BR

33


COMPORTAMENTO

Antes de atirar a primeira pedra se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar a pedra. (JOÃO 8.7) por Ricardo Gondim

34

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

Divulgação Novolhar

P

ara ganhar o direito de apontar o dedo, cabe a cada um o dever de olhar para dentro de si. Para julgar, é preciso ter consciência de que a régua que mede os demais também mede o juiz. Quem deseja manter contabilidade dos erros alheios tem que estar ciente do livro que vem sendo redigido sobre os próprios pecados. Antes de atirar a primeira pedra, convém fazer algumas perguntas: 1 – A injustiça social, tão condenada na tradição profética da Bíblia, me incomoda? Eu a considero pecado? 2 – Consumismo e materialismo me fascinam? Perco a tranquilidade por não alcançar os desejos suscitados pela propaganda? 3 – Amo o resplendor do poder, a pompa da glória e a espetaculosidade que o dinheiro promove? 4 – Minha vida caracteriza-se por frivolidade? Os novos ricos superficiais consideram-me um dos seus? 5 – Gasto quanto tempo de minha vida engajado em procurar o direito do órfão e da viúva – metáforas vivas do pobre?

6 – Sou intolerante e raivoso com os diferentes? Perco a paciência ao perceber outras pessoas com a razão que, outrora, eu entendia estar comigo? 7 – Nutro inveja? Quando noto outras pessoas preferidas acima de mim, fico amuado? Ressinto-me de que exista gente mais inteligente, mais rica, mais bem relacionada e mais saudável do que eu?


DE OLHO NA EDUCAÇÃO 8 – Sinto-me ofendido com facilidade? Quando outros parecem não perceber minha presença ou sem valorizar o tanto que eu acho merecer, fico chateado? 9 – Orgulho insinuou-se em minha alma? Dou excessiva importância a posição, título e reputação? Tenho medo de perder dinheiro, audiência, respeitabilidade e bom trânsito entre meus pares ao expor honestamente minhas convicções? 10 – Meus negócios e minha vida profissional precisam de anonimato? O meu metro tem cem centímetros? O meu quilo tem mil gramas? 11 – Divulgo bisbilhotices? Nutro um prazer mórbido por conversar sobre fracassos alheios? Fantasio histórias inverídicas sobre a vida particular dos outros? 12 – Critico sem amor? Minha fala vem com ranho? 13 – Sou verdadeiro no que falo ou antes exagero, procurando dar uma impressão falsa sobre mim e sobre minhas convicções? 14 – Vivo sem compromisso com o futuro na lógica do “comamos e bebamos porque amanhã morreremos”? 15 – Caminho sob a bandeira da gratidão, constantemente reconhecido pelas inúmeras pessoas que me deram a mão, investiram, perdoaram e cuidaram de mim? E que sem elas eu não seria quem sou hoje? Só depois desse olhar introspectivo, alguém pode se atrever a sentar na cadeira de Moisés, julgar e sentenciar um apedrejamento. Eu não me atrevo. Soli Deo GloN ria. RICARDO GONDIM é teólogo e presidente da Assembleia de Deus Betesda em São Paulo (SP)

Acendendo vaga-lumes por Osvino Toillier Quem teve a privilegiada vivência do interior lembra da época do Natal, quando as noites escuras eram pontilhadas por luzinhas piscantes: acendiam e apagavam. Como crianças, tentávamos pegá-las, mas nunca conseguíamos. O sonho de enfeitar o pinheirinho com as luzes piscantes somente se realizou quando a eletrônica se inspirou nos vaga-lumes. O poeta Manoel de Barros, referindo-se à função dos poetas, escreveu: “Assim, ao poeta faz bem desexplicar. Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes”. Esta época do ano, aparentemente não preenchida com nada, porque dedicada ao recesso escolar e às férias, ao necessário descanso e ao lazer, é um tempo repleto de significados, porque concentra, além do Natal, a virada do ano, a chegada do ano novo. É o tempo que passa, a vida que se renova, e de repente estamos diante de um tempo novo, um número novo, que sorrateiramente se apossou do calendário na calada da noite e, quando amanhece, não há nada mais a fazer senão submeter-se à tirania do tempo. Na célebre reflexão de Santo Agostinho, ele nos alerta: “Os vossos anos não vão nem vêm. Porém os nossos vão e vêm, para que todos venham. Todos os vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os anos que chegaram expulsam os que vão, porque esses não passam. Quanto aos nossos anos, só poderão existir todos quando já todos não existirem”. Um olhar para o tempo expõe-nos diante do inexorável: a passagem implacável do tempo, que vai se alojando na prateleira da eternidade. Mas o que são as dimensões do tempo: presente, passado e futuro? Faulkner diz que “o passado nunca está morto, ele nem mesmo é passado”. Seguindo na trilha do poeta, talvez nos caiba perseguir a tentativa de “desexplicar” a realidade que estamos vivendo e encontrar a origem da parafernália eletrônica nos vaga-lumes que inspiraram nossa infância com magia e fascinação. E por que não sair campo afora com os netos para tentar pegar os vaga-lumes? Mesmo que no tempo de hoje seja difícil ter utopia, faz bem para o espírito mergulhar no mundo imaginário e deliciar-se com a poesia que está em cada coisa, em cada flor que desabrocha, em cada amanhecer ou anoitecer, no sorriso da criança, na vida que vem e se vai, enfim, na doce palavra que brota cheia de ternura e paixão. Por fim, deixar-se encantar com os vaga-lumes, cujo espetáculo encanta as noites de verão e ilumina a escuridão, talvez seja nossa N salvação. OSVINO TOILLIER é professor, escritor e mestrando em Educação em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

35


o reformador

Fraqueza e fortaleza se tu és um cristão... se há fé, cem vezes mais tentação... Martim Lutero

por Leandro Hofstaetter

A

o ler esta frase de Lutero, tomei um choque: ela parece fazer com que a gente não entenda mais nada sobre o reformador, sobre o que ele mesmo falou. Não foi Lutero que disse que a fé traz consigo todas as obras que a lei jamais poderia conceder a um cristão? Não foi ele que insistiu que a fé traz liberdade, paciência, consolo, fortaleza e justificação? Não é assim que pela fé já sentimos o céu em nós, já estamos no paraíso? Então como entendê-lo quando afirma que essa mesma fé nos traz cem vezes mais tentações? A fé não nos dá segurança? Calma. É preciso compreender o reformador no contexto de toda a sua teologia. Quando lidamos com Deus, as coisas não funcionam segundo nossos critérios e elucubrações. Não é a nossa lógica que impera. Não é a nossa vontade que manda. Esta é a grande descoberta de Lutero: quando falamos de salvação, de Deus, do relacionamento entre esse e os seres humanos, temos dificuldades enormes para expressar aquilo que realmente conta. Em razão dessa falha de nossa linguagem de comunicar com segu-

36

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

rança, dentro de nossos padrões, o mistério do que aconteceu em Jesus Cristo, o que aconteceu na Páscoa, temos que modificar o jeito de falar, o jeito de compreender, dando espaço às oposições. Na verdade, segundo Lutero, temos que promover uma inversão. Não é o nosso jeito que conta, mas o jeito de Deus. E é justamente por isso que temos que nos aproximar da Bíblia. Ela é o caminho para Deus. Dentro dela se encontra o tesouro que temos que achar. Ela é também a chave para esse tesouro. E Lutero diz que a chave é a manjedoura. Muito


Por isso Lutero chama nossa atenção: é preferível ao cristão permanecer nas contradições/oposições de Deus do que nas “verdades” dos seres humanos! A própria vida é cheia de contradições, pois o ser humano é repleto delas dentro de si mesmo. Novamente o apóstolo Paulo: “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço”. Para expressar esse ser cheio de imperfeições, necessitamos de outra lógica: a lógica de Cristo. O primeiro passo é o reconhecimento. Não é por acaso que a liturgia luterana dá tanta importância à con-

Divulgação Novolhar

bem, o jeito de Deus falar é diferente. Não se encaixa, muitas vezes, em nossa razão. Por isso a insistência de Lutero quando afirma o nosso erro de nos aproximarmos da Escritura já cheios de razão. Com o copo cheio, qualquer gota fará com que ele derrame. A Bíblia utiliza outro tipo de conhecimento, que nos parece, às vezes, contraditório. Como o exemplo do apóstolo Paulo: “loucura para os outros, para nós que somos salvos, sabedoria...”; e em outra passagem: “força que se revela na fraqueza...”; ou então: “mortos para o pecado, vivemos em Cristo...”.

fissão de pecados. Depois de ouvir a Lei, ou seja, depois de ouvir que “não compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro e sim o que detesto”, pois cometo pecado, vem a descoberta da graça. O evangelho será a Palavra de consolo para esse ensimesmamento, esse estar repleto de si mesmo, de soberba, de orgulho, pois a Palavra de Cristo nos tira da prisão interna e nos arremessa, de joelhos, aos pés da cruz. E é aqui que a fraqueza é força, que a ignorância se torna sabedoria, que o erro vira o acerto, que o mal se transforma em bem e que o ser humano, preso, atado, fica livre para a aventura do amor que provém de Deus. Através do evangelho se sabe amado não por ser belo, mas justamente é belo por ser amado. Isso, porém, não o priva das tentações. A vida continua cheia de contradições e sofrimentos. É a sua postura, entretanto, diante desses males que é totalmente diferente. Sabe-se amado mesmo quando há ódio, salvo mesmo quando há desespero, forte mesmo na fraqueza, unido a tantos outros mesmo quando sozinho, não derrotado mesmo em meio à tragédia, triste diante da tristeza por solidariedade, mas crente na alegria que emana do futuro, vivo mesmo diante da morte e pronto a testemunhar, mesmo gemendo, em dores de parto, a esperança contra toda desesperança. Isso até pode ser contradição. Mas nós chamamos de fé. Que venham, pois, as tentações, pois não é possível viver sem elas. Entretanto, sempre confessaremos como o centurião: “Tenho fé. Ajudame, Cristo, na minha falta de fé”: fraqueza e fortaleza, simultaneamente. N LEANDRO HOFSTAETTER é teólogo e doutor em Filosofia em Joinville (SC)

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

37


REFLEXÃO

Este ano vai ser diferente enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite. GÊNESIS 8.22 (Lema do mês de janeiro)

por Joice Aline Klein

R

ecebemos como graça para o mês de janeiro o lema de Gênesis 8.22. São palavras de esperança e ânimo: “Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite”. Essas palavras nos trazem a perspectiva de que teremos tempo e oportunidades para o nosso dia a dia. O relato nos diz que o versículo é a reflexão do próprio Deus. Após os dias do grande dilúvio, Deus aspira o suave cheiro do holocausto sobre o altar, oferecido por Noé e sua família. É o odor pacífico depois de dias tempestuosos e apreensivos. E então Deus disse consigo: “Eu nunca mais amaldiçoarei a terra por causa do ser humano”. Como Deus amoroso e misericordioso que é, ele conhece seus filhos e filhas e sabe da natureza de nossos corações. Ao ver sua criação, ocupando novamente toda a terra, Deus deixa-nos com esta afirmação: “Enquanto durar a terra, não deixará de haver...”. Haverá novos dias. As estações se manterão. As sementes para as plan-

38

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

tações existirão, e assim colheremos os frutos da terra. Deus restabelece as leis naturais e salva sua criação, dando garantias de estações, alimentos e dias sobre a terra para as muitas gerações. Curioso é lermos esse versículo como lema do primeiro mês do ano. Normalmente, nos primeiros meses do ano, é que nos propomos uma série de mudanças. Mudanças de perspectivas e atitudes em relação ao trabalho, estudo, família, bem-estar, igreja. É a máxima: Este ano vai ser diferente! Mas costuma ser diferente? Ou repetimos os mesmos enganos e tropeços? Por vezes, agimos como se não houvesse o amanhã, e às vezes vivemos com a certeza de que nunca nos faltarão os dias. Qual é o melhor caminho? A Noé e sua família foi oferecida uma nova oportunidade. Com eles a reafirmação do compromisso de Deus com toda a sua criação. Após o dilúvio, os ritmos do universo são restabelecidos e nos é dada nova

oportunidade. Assim, novos dias e anos nos são oferecidos para usar nossos dons e vocações. De Deus recebemos a certeza de que não seremos abandonados ou esquecidos. Permaneceremos sob o seu cuidado atento. Em sua avaliação após ver as águas retornando a seu leito, Deus deixa a todos a esperança da continuidade. Da garantia do novo dia. Para nós ficam o convite e um compromisso de que, orientados pela palavra de Deus, podemos seguir os muitos caminhos, assim como fizeram Noé e sua família. Tarefa árdua e delicada para nossos tempos, que exige um


Divulgação Novolhar

Normalmente, nos primeiros meses do ano, é que nos propomos uma série de mudanças. Mudanças de perspectivas e atitudes em relação ao trabalho, estudo, família, bem-estar, igreja. É a máxima: Este ano vai ser diferente! Mas costuma ser diferente? Ou repetimos os mesmos enganos e tropeços?

olhar atento e constante, pois nos encontramos entre muitas ofertas, que nos podem afastar da criação e assim do próprio Deus. Esse versículo deixa-nos assim com palavras de esperança e com um desafio para que este ano nos chegue sob o aprendizado e o fortalecimento da fé. Para viver já os sinais do novo céu e da nova terra, pois ainda temos a terra, com a sementeira e a ceifa, com o frio e o calor, com o verão e o inverno, o dia e a noite. Ainda nos é oferecido o tempo de transformação. N JOICE ALINE KLEIN é teóloga e ministra da IECLB em Ribeirão Preto, paróquia de Limeira (SP)

As salas do Centro de Retiros, junto com a capela da Casa Matriz, oferecem um espaço ideal para retiros, encontros e eventos. As instalações da hospedagem contam com quartos com banheiro, refeitório e local para estacionamento. Em meio a abundante natureza, o ambiente tranquilo e acolhedor favorece a reflexão, a integração e o lazer. Dispomos de serviço de hospedagem, individual ou em grupos, ideal para realização de retiros, eventos ou para aqueles que desejam apenas hospedar-se aqui. Av. Wilhelm Rotermund, 395 - Morro do Espelho - São Leopoldo Fone: (51) 3037-0037 | retiros@diaconisas.com.br | www.diaconisas.com.br NOVOLHAR.COM.BR –> Out/Dez 2014

39


ESPIRITUALIDADE

Em tempo de férias Estejam sempre alegres, orem sempre e sejam agradecidos a Deus em todas as ocasiões. Isso é o que Deus quer de vocês, por estarem unidos com Cristo Jesus. 1 tessalonicenses 5.16

por Patrícia Bauer

A

o escrever este texto, ainda em dezembro, sinto nas pessoas um cansaço generalizado. A maioria delas denuncia esgotamento físico e mental e a ansiedade pelas férias. Final de ano também é tempo de viver a alegria de Natal. É tempo de expectativas em relação ao ano novo, quando Deus nos presenteia com 365 dias. Em 2015, teremos 8.760 horas. É muito tempo! Como alegar falta dele? Ocorre que nos julgamos cada vez mais donos e donas do tempo. Temos dificuldade de aceitar as limitações, de definir as prioridades para viver bem. Já em janeiro, no Brasil, grande parte dos setores está de férias. É um período de praias lotadas, de estabelecimentos bastante frequentados, de viagens, de encontros e de retornos... Como é importante que o nosso corpo tenha um período para descansar e ser renovado. É também importante lembrar que férias não são tempo de se afastar de Deus. A certeza da constante presença e cuidado de

40

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

Deus nos oferece segurança; por isso cabe-nos reservar o espaço que é de Deus. A teologia luterana ensina que o simples fazer nada não significa viver o terceiro mandamento, que consiste em “santificar o dia de descanso”. Afinal, disso qualquer pessoa é capaz. Então, como e por que santificar o descanso prolongado? A primeira menção ao dia do descanso consta em Gênesis 2.1-2, quando, no final da criação, Deus, ao ver que tudo o que havia criado era bom, no sétimo dia descansou. No Antigo Testamento, não apenas as pessoas descansavam; também os animais, para retomar as forças, preservar o corpo e não se debilitar. O mesmo valia para a terra, que em anos sabáticos (sete em sete anos) não era cultivada, pessoas escravizadas eram libertas e as dívidas perdoadas. Para Lutero, no Catecismo Maior, “a palavra de Deus, porém, é o tesouro que a tudo santifica”. Assim, o dia de descanso deverá nos aproximar da palavra de Deus para que, ao ser vivida, testemunhe nossa fé. Lutero não entendia o descanso preso a um dia

específico. Atualmente, dias alternados são cada vez mais comuns em escalas de trabalho, sem com isso excluir as pessoas de santificar um dia da semana. Portanto a confessionalidade luterana ensina que somos tornados santos e capazes de agir com santidade porque a palavra de Deus age em nós e através de nós. O Espírito Santo concede dons e nos conserva na fé. Por meio de Jesus Cristo somos perdoados e, na relação com ele, perdoamos. Minha sugestão que nestas férias você priorize o desacelerar para sentir tranquilidade, que leve à gratidão pela vida, pelas realizações e esperanças que falharam, segundo a recomendação: “Estejam sempre alegres, orem sempre e sejam agradecidos a Deus em todas as ocasiões. Isso é o que Deus quer de vocês, por estarem unidos com Cristo Jesus” (1Tessalonicenses 5.16). Que você


Divulgação Novolhar

intensifique o convívio com as pessoas. Ofereça a elas e a si mesmo o privilégio de ter tempo. Valorize quem faz parte da sua vida, pois somos capazes de amar porque Deus nos amou primeiro.

Desafio, em tempos cibernéticos, a desconectar-se não apenas das preocupações, mas também de Wi-fi ou dados móveis; a experimentar, quando nem se consegue imaginar

o mundo sem smartphones, a inteligência de viver intensamente as relações. Que seja observado que não é preciso viajar para isso. Pelos mais diferentes motivos, muitas pessoas não terão possibilidade de sair e nem por isso estarão impedidas de usufruir desse período, naturalmente menos acelerado, para experimentar a santificação do descanso que se deve estender para além de janeiro. É cada vez mais urgente descobrirmos o ponto de equilíbrio entre fé, trabalho e vida. Pois, embora sejam interligados, precisamos discernir a fim de que nossa fé não seja o trabalho que resuma a nossa vida. O discernimento dessas sutilezas nos permitirá viver com maior leveza. Para concluir, utilizo as palavras de Hebreus: “Que o Deus de paz lhes dê tudo de bom que vocês precisam para fazer a sua vontade. E que ele, por meio de Jesus Cristo, faça em nós tudo o que lhe agrada. E a Cristo seja dada a glória para todo o sempre. Amém!” (Hebreus N 13.21). PATRÍCIA BAUER é teóloga e ministra da IECLB em Goiânia (GO)

NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2015

41


penúltima palavra

por Paulo Eduardo Siebra Andrade

O

s relatos de Lucas sobre as viagens missionárias de Paulo contidas no livro de Atos relatam a versatilidade do apóstolo dos gentios em sua atuação ministerial e o quão contextualizado ele foi em sua atividade, buscando formas para a comunicação da mensagem do evangelho em seu tempo. Sua chegada e atividade em Atenas, descritas em Atos 17.16-33, expressam o fervor missionário de Paulo e sua preocupação em preencher o espaço comum das ideias e do pensamento naquela época. O areópago era um local de extrema importância para a cidade de Atenas; era uma espécie de praça pública, uma tribuna para o diálogo e o debate. Ali se reuniam todas as crenças, ideias, opiniões e filosofias em busca de aceitação e legitimidade. A simples presença de Paulo no areópago já comunicara que ele teria algo a dizer, e isso criou certa expectativa dos que ali estavam em saber “qual novo ensinamento ele estava trazendo”. Por mais que divergissem em suas ideias, todos os debatedores convergiam no método de comunicar sua mensagem aos presentes. Atual­mente, podemos identificar locais democráticos para a expressão e a captação de ideias, como por exemplo a internet, que foi repensada de seu projeto inicial a partir

42

Jan/Mar 2015 –> NOVOLHAR.COM.BR

da necessidade do ser humano de comunicar-se com os outros por meio de uma rede integrada de amplo alcance. O fenômeno comunicacional da internet hoje, dadas as devidas proporções, pode ser comparado ao que ocorria naquela praça pública de Atenas nos tempos de Paulo. A evolução dos meios de comunicação permitiu a criação de outros “areópagos”, onde a sociedade cria e compartilha informação. Nesses espaços, todos os envolvidos agem na condição de receptores e emissores de uma certa mensagem a ser proclamada. Assim como Paulo, a igreja deve apresentar-se nesses “areópagos”,

PAULO EDUARDO SIEBRA ANDRADE é mercadólogo, analista de redes sociais e bacharel em Teologia pela Faculdades EST, São Leopoldo (RS)

Divulgação Novolhar

Os areópagos da atualidade

fazer-se presente onde questões são expostas, debatidas e apresentadas. Isso é necessário para a compreensão de nosso tempo e para absorver as novas culturas em seu criadouro, além de planejar novas estratégias missionárias para comunicar a boa nova de forma mais clara, objetiva e eficiente. Paulo estava presente em um local que as pessoas utilizavam para contar e ouvir as últimas novidades (Atos 17.21). Seria como dizer que os atenienses ali “postavam, curtiam e compartilhavam” aquilo que viviam, viam e ouviam. A oportunidade de Paulo falar do “Deus desconhecido” estava na condição criada naquele espaço diante das estátuas de outros deuses e seus mensageiros. Não é uma questão de escolher ou achar uma forma melhor do que a outra, mas precisamos marcar presença nos areópagos de nossos dias. O testemunho missionário de Paulo em Atenas aponta-nos e nos alerta da necessidade de comunicar a mensagem do evangelho e também ouvir o que a sociedade tem a nos dizer em seus espaços democráticos, sem cair na tentação da instrumentalização engessada de métodos e modelos de comunicação. É necessário que as comunidades estejam prontas para apresentar o Deus Desconhecido, mas também para ouvir o que se fala no N “areópago”.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.