O valor da amizade - Revista Novolhar, Ano 14, Número 61, Janeiro a Março, 2016

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Venha passar dias agradáveis em nossas dependências num clima acolhedor e hospitaleiro

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O Valor da Amizade

8 a 20

AMIZADE NA BÍBLIA AMIGO E AMIGA AMIGOS VIRTUAIS CARTAS DE AMIZADE MELHOR AMIGO DO SER HUMANO

ÍNDICE

Ano 14 –> Número 61 –> JANEIRO A MARÇO DE 2016

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Ganância, destruição e sofrimento

Brasil vai a encontro mundial do Galo Verde

A lição de vida do pastor Martin Niemöller

TRAGÉDIA DE MARIANA

AMBIENTE

PERSONALIDADE

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DIACONIA

FLD participa de seminário da Infraero

SEÇÕES

PATERNIDADE

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Educar para a felicidade

Pela graça de Deus livres para cuidar

FREI BETTO

TEMA DO ANO

PALAVRAS CRUZADAS > 6 MOSAICO BÍBLICO > 6 NOTAS ECUMÊNICAS > 7 CONSULTÓRIO DA FÉ > 35 REFORMA 500 ANOS > 36 DE OLHO NA CIDADANIA > 37 REFLEXÃO > 38 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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AO LEITOR Revista trimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052

Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Denise Pinto, Eloy Teckemeier, Jaime Jung, João Artur Müller da Silva, Marli Lutz, Robson Luis Neu e Werner Kiefer. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Cristiano Zambiasi Jr. Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Bruna Girardi Dalmas, Carlos A. Dreher, Carlos Alberto Libânio Christo, Cibele Kuss, Claudete Beise Ulrich, Emilio Voigt, Flávio Weiss, Franciele Huwe Wergutz, Geraldo Graf, Irineu Valmor Wolf, Jaime Jung, Leonardo Ramlow, Luciana Reichert, Luciano Ribeiro Camuzi, Nilton Herbes, Ricardo Gondim, Romi Bencke, Susanne Buchweitz e Viegas Fernandes da Costa.

Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 36,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS

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Amizade

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amizade é uma experiência que nos acompanha por toda a vida, desde a infância até o final dos nossos dias. Algumas são para sempre. Outras se perdem nas idas e vindas e nos descaminhos da vida. Também podemos nos reencontrar depois de muitos anos, numa calçada de uma cidade qualquer ou nas redes sociais. Os amigos e as amigas nos acompanham nos tempos de estudante, no trabalho, no lazer e até na igreja. Somos cercados o tempo inteiro por amizades, e pouquíssimas pessoas podem afirmar com empáfia que nunca precisaram de alguém para se relacionar. Afinal, somos seres sociais, e vida social tem dependência crônica da amizade. Na visão do médico cardiologista Fernando Lucchese, a amizade é um componente indispensável para a saúde das pessoas, ajudando inclusive a garantir vida mais feliz e mais longa. Essa é a temática desta edição da Novolhar. As matérias passeiam pela Bíblia e pela pergunta da possiblidade de existir amizade entre homens e mulheres. Fazem uma avaliação cuidadosa das amizades virtuais, tão em evidência nestes tempos de redes sociais, e também não esquecem das muitas amizades que se mantêm por correspondência, mesmo que a distância. Um último artigo, do psicólogo Vilnei Varzim, lança um olhar sobre a amizade entre pessoas e animais. Aliás, foi Varzim quem nos conduziu na reflexão e no aprofundamento do tema em nossa reunião de pauta com a sua vasta experiência no acompanhamento de pessoas em seu consultório de psicólogo e como palestrante. Somos gratos pelas saborosas horas que passamos juntos enquanto ele ordenava nossos pensamentos e atiçava a nossa criatividade. Diversos outros temas estão nestas páginas. Ressaltamos um artigo sobre a tragédia ambiental que atingiu o vale do rio Doce, a partir da visão dos dois pastores da cidade de Colatina no Espírito Santo. Eles nos contam como a região vai recompondo o seu enlameado dia a dia. Dois novos colunistas nos acompanham a partir de agora: a Dra. Claudete Beise Ulrich nos trará relatos sobre as mulheres da Reforma, e a pastora Cibele Kuss nos falará sobre os desafrios da cidadania no De Olho na Cidadania. Esta é a primeira edição de 2016. Junto com ela vai o nosso abraço a você que nos lê, com votos de um abençoado Ano Novo e que nossas esperanças sejam renovadas. Equipe da Novolhar

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NOTAS

CONIC em defesa da democracia brasileira O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), no contexto das tensões e incertezas que pairam sobre o mandato da presidente Dilma Rousseff, une-se às demais organizações da sociedade civil e reafirma o compromisso e o engajamento em favor do respeito às regras da democracia. “Vemos com muita preocupação que o presidente da Câmara tenha acolhido um pedido de impeachment com argumentos frágeis, ambíguos e sem a devida sustentação fática para a acusação de crime de responsabilidade contra a presidente da República”, afirma a nota publicada em dezembro pelo CONIC.

Campanha capixaba é encerrada com êxito Em nome do povo mineiro e capixaba, agradecemos as doa­ ções feitas em todo o país para a campanha por compra de água potável. Neste momento, comunicamos a interrupção da campanha, uma vez que a Defesa Civil de Colatina não está recebendo mais doações por falta de espaço físico para armazenagem. Isso mostra, mais uma vez, a solidariedade do povo brasileiro. Além disso, o abastecimento pelas torneiras já está voltando ao normal. Foi arrecadado até 28 de novembro o valor de R$ 41.801,15. Desse total foram investidos R$ 19.600,00 em compra de água e gastos com logística. Não conseguimos investir mais por falta de vasilhames no mercado. A diferença do valor arrecadado e o valor gasto ficará à disposição da IECLB para uso em outros casos de emergência. O próximo desafio é participar de ações de revitalização e recuperação do rio Doce para devolver a vida que lhe foi tirada, o que vai demorar muitas décadas, com certeza. Que Deus abençoe a todos os que participaram dessa campanha. JOANINHO BORCHARDT, pastor sinodal do Sínodo Espírito Santo a Belém-SESB JOÃO PAULO AULER, pastor e presidente do SESB

Visite nosso site Os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar. com.br

Tema da próxima edição A edição no 62, de abril a junho de 2016, terá como tema de capa MIGRAÇÃO. O maior número de refugiados da história estará em evidência nas reportagens.

Preço e valor por Johannes Gerlach A diva Pop Jennifer Lopez (46 anos) está segurada em 6,3 bilhões de reais (só o rosto vale 2 bilhões, as pernas 1,7 bilhão e os peitos 880 milhões). A Ilha Geraldo de 1.099 hectares no Pará custa R$ 1.794.837. E em Florianópolis vi uma placa oferecendo orações pela salvação apenas por 20 reais. Os subtemas do novo tema do ano dizem: “Salvação não está à venda”; “Seres humanos não estão à venda”; e “Criação não está à venda”. O que é certo ou errado? Vivemos num mundo de consumismo com preço para qualquer “coisa”, inclusive preço do trabalho, preço de um corpo, de um animal, da água potável ou um preço mais elevado para produtos orgânicos. Não seria normal que todos os alimentos fossem livres de agrotóxicos ou transgênicos? Mas o preço perde o sentido com uma amizade que vai mostrar o mesmo valor numa situação difícil ou num desastre ambiental como no rio Doce. Pense bem, algo que você comprou pode trocar por qualquer outra coisa. Não tem mais valor, tem somente um preço! Segurar uma pessoa vê somente o corpo e as suas funções (a sua voz, por exemplo), mas não percebe a pessoa como um ser humano em seu todo, como criatura de Deus! Nunca ouvi dizer que você poderia colocar a sua felicidade no seguro. A mesma coisa vale em relação à natureza. Você pode, sim, comprar um terreno, uma floresta ou uma ilha; mas nunca poderá comprar o ar e o mar sem poluição ou um país sem enchentes ou secas. E, é claro, num mundo onde TUDO tem um preço, não há sentido em agradecer por qualquer coisa, nem a Deus! Seria um mundo gelado, onde eu não gostaria de viver! Qual seria o preço da amizade de Jennifer? Qual seria o preço da água limpa em frente daquela ilha? O que Deus pensaria sobre o “meu preço” de R$ 20 para me salvar? Já descobriu o seu próprio valor?

JOHANNES GERLACH é físico aposentado e militante ambiental em Paulo Lopes (SC) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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PALAVRAS CRUZADAS

MOSAICO BÍBLICO

Amizade

Amizade na Bíblia Os amigos de Jó, numa gravura de Rembrandt.

por Emilio Voigt

ESTAS PALAVRAS CRUZADAS FORAM ELABORADAS COM VERBETES USADOS NA CANÇÃO DE MILTON NASCIMENTO SOBRE A AMIZADE. 6

Elaborado pelo pastor Irineu Valmor Wolf, que reside em Indaial (SC).

A amizade é um tema recorrente na Bíblia. As referências não apresentam definições teóricas, mas retratam o valor e a importância de ter pessoas amigas. Amizade é o amparo em situações de necessidade e sofrimento: “O amigo ama sempre e na desgraça ele se torna um irmão” (Provérbios 17.17). “Jó tinha três amigos (…). Eles ficaram sabendo das desgraças que haviam acontecido a Jó e combinaram fazer-lhe uma visita para falar de como estavam tristes pelo que lhe havia acontecido e para consolá-lo. Quando chegaram, os amigos de Jó sentaram-se no chão ao lado dele e ficaram ali sete dias e sete noites; e não disseram nada” (Jó 2.11,13). O amigo e a amiga nem sempre precisam falar alguma coisa. A presença solidária pode dizer mais do que muitas palavras. Amizade é a comemoração na alegria. O pastor que encontrou a ovelha desgarrada e a mulher que achou a moeda perdida chamaram seus amigos e suas amigas, dizendo: “Alegrem-se comigo porque achei a minha ovelha perdida” (Lucas 15.6). Abraão foi denominado “amigo de Deus” (Tiago 2.23), e Deus conversava com Moisés face a face, “como alguém que conversa com um amigo” (Êxodo 33.11). Jesus chamou de pessoas amigas aquelas que o seguiam (João 15.15). E ele foi identificado como amigo de cobradores de impostos e de outras pessoas de má fama (Mateus 11.19). Nós costumamos escolher as amizades. Por isso evitamos ou nos afastamos de certas pessoas. Deus não faz escolhas. Ao oferecer sua amizade a todas as pessoas sem distinção, Deus oferta perdão e a possibilidade de viver de acordo com os princípios de seu reino: N amor, justiça e paz. EMÍLIO VOIGT é teólogo, doutor em Teologia e assessor de Formação do Sínodo Vale do Itajaí da IECLB em Blumenau (SC)

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O CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS esteve em Paris, no início de dezembro, durante a Conferência da ONU sobre mudanças climáticas COP 21. O brasileiro Marcelo Schneider atuou como correspondente durante o encontro.

Notas ecumênicas

Carta ao Islã

FREI ÉDERSON QUEIROZ é presidente da Conferência da Família Franciscana no Brasil, em carta à comunidade islâmica brasileira

“SABEMOS QUE O FUNDAMENTALISMO ISLÂMICO NÃO REPRESENTA O VERDADEIRO ISLÃ. ACREDITAMOS QUE A RELIGIÃO, SEJA ELA QUAL FOR, NÃO PODE SERVIR PARA CRIAR BARREIRAS, AUMENTAR DISTÂNCIAS E MUITO MENOS FOMENTAR A VIOLÊNCIA E O ÓDIO. QUE NESTE MOMENTO DE INSEGURANÇA E DOR POSSAMOS ENVIDAR TODOS OS ESFORÇOS PARA A CONSTRUÇÃO DA PAZ NUM CAMINHO DE FRATERNIDADE, RESPEITO, TOLERÂNCIA E MISERICÓRDIA.”

Reforma & Educação

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m novembro passado, aconteceu a consulta internacional Reforma – Educação – Transformação na Faculdades EST em São Leopoldo (RS). Especialistas representantes de igrejas, de organizações da sociedade civil, teólogas e teólogos, pastoras e pastores e ativistas sociais da América Latina, África, Ásia, América do Norte e Europa participaram do evento. Além dessa consulta, acontecerá uma segunda, de 18 a 23 de maio de 2016, na Alemanha, com o mesmo objetivo. A saber: refletir sobre como a Reforma Luterana contribuiu, via educação, para a transformação da sociedade.

Intolerância religiosa

Igrejas & Migração

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA manifesta-se no “desrespeito à liberdade de expressão, proibições de uso de vestimentas rituais em público, agressões físicas a pessoas e a monumentos religiosos, além do uso indevido de símbolos de outra religião com o fim de desmerecer, condenar ou mesmo demonizar a mesma”.

“COMO COMUNIDADES DE FÉ, PRECISAMOS OFERECER E FORTALECER AS DIMENSÕES DA ACOLHIDA E DE SUPERAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO.”

RAFAEL SOARES DE OLIVEIRA é psicólogo, doutor em Ciências Sociais e pesquisador das populações afro-brasileiras

ROMI MÁRCIA BENCKE é pastora da IECLB e Secretáriageral do CONIC em Brasília (DF) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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O valor da amizade A AMIZADE FAZ PARTE DA VIDA DAS PESSOAS, INDEPENDENTE DO GÊNERO, COMO UM COMPLEMENTO AFETIVO E EFETIVO NO QUAL SÃO REPARTIDAS AS DORES E COMPARTILHADAS AS ALEGRIAS. É UM SENTIMENTO MUITO PRÓXIMO DO AMOR VERDADEIRO DESCRITO PELA BÍBLIA. NAS PRÓXIMAS PÁGINAS, MERGULHAMOS NO MUNDO DA AMIZADE. ENTRE DE CABEÇA CONOSCO NESSE UNIVERSO FASCINANTE. por Luciana Reichert colaboração: Vilnei Varzim

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eja no cinema, na literatura ou na música, há diversos exemplos que ilustram a relação afetiva entre as pessoas. A amizade, esse sentimento de grande afeição, “coisa para se guardar debaixo de sete chaves dentro do coração”, como diz a letra da canção de Milton Nascimento, representou diferentes papéis ao longo da história. Segundo o psicólogo e palestrante Vilnei Varzim, na Grécia clássica, a amizade estava reservada somente para os homens. As mulheres eram desvalorizadas e nem mesmo eram consideradas cidadãs. Na Roma Antiga, havia dois tipos de relações tidas como de amizade: a amizade baseada em trocas compensatórias e a “amizade íntima”, fundamentada no afeto e no compromisso entre os envolvidos. “No entanto, apenas a segunda era considerada de fato a amizade romana, de acordo com estudiosos da amizade no período, como David Konstan e Richard Saller”, frisa Varzim.

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Divulgação Novolhar

Durante a Idade Média, no perío­ do que se estendeu do século XI ao XV, o papel da amizade estava ligado à lealdade, no sentido de lutar pelo amigo e defendê-lo. Já na sociedade alemã da época do regime totalitário nazista e estudada por Hannah Arendt, por exemplo, o papel da amizade era auxiliar a manter o outro vivo. A Primeira Guerra Mundial na Europa trouxe destruição, solidão e sentimento de carência para os muitos órfãos que ela gerou. “Os estudantes sentiam uma grande necessidade de suprir toda a destruição e as perdas resultantes da guerra por meio de afeto, carinho, amor e companheirismo. Com isso, nas relações interpessoais, como as de amizade, desenvolveram-se afetos muito profundos, independentemente do sexo”, destaca o psicólogo.

Varzim informa que, em todos os tempos e épocas, a amizade sempre fez parte da vida como complemento afetivo e efetivo, na qual são repartidas as dores e compartilhadas as alegrias. “Deus foi meticuloso fazendo com que tudo seja uma grande rede em sua criação. Plantas, animais, pessoas vivem de forma coletiva e integrada. Não somos capazes de sobreviver senão em grupo. Aprender a compartilhar é uma necessidade inata do ser humano, a tal ponto que pessoas isoladas podem ir à loucura”, destaca Varzim. CÍRCULOS SOCIAIS – O médico cardiologista e escritor Fernando Lucchese afirma que a amizade só traz benefícios para o desenvolvimento emocional das pessoas. Segundo ele, há uma relação entre círculo de

amigos e longevidade, conforme uma pesquisa internacional do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que é uma medida concebida pela ONU (Organização das Nações Unidas) para avaliar a qualidade de vida e o desenvolvimento econômico de uma população. Lucchese falou que essa pesquisa mostra que o círculo social, o grupo de pessoas com que você se relaciona, nos EUA é de 1,5 pessoas por indivíduo e no Japão é de seis por pessoa. “As áreas com mais amigos também são as que têm maior longevidade, as chamadas zonas azuis, onde está o maior número de pessoas centenárias.” Esses lugares estão localizados na Sardenha, na Itália, na Ilha de Okinawa, no Japão, e na Abecásia, um pequeno país próximo da Rússia. “Loma NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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GLECI MARIA CABEZUDO, 56 anos, auxiliar de serviços gerais

Luciana Reichert

Linda, na Califórnia, é a maior zona azul de todas e possui mais amigos por indivíduo. O círculo de pessoas na igreja adventista de lá é muito forte: 6,7 amigos por indivíduo”, destacou. Lucchese falou de uma pesquisa sobre a felicidade no mundo da Universidade de Edmonton, no Canadá, que destaca a importância da amizade na vida das pessoas. “Eles fazem um controle anual em 40 países e mostram que há três fatores mais importantes para a felicidade. A primeira é a família, em segundo o trabalho e em terceiro o círculo social ou os amigos. Esses três fatores influem diretamente na felicidade. A saúde, que muitos pensam que poderia estar em um dos primeiros itens, aparece em quinto”, afirma o médico. Ele reforçou que essa é uma pesquisa internacional feita com milhares de pessoas e tem uma importância muito grande, pois indivíduos isolados, solitários e pessimistas são os que vivem menos. “São os que vão sofrer mais infartos, cânceres e derrames”, declarou. Assim como existe o quarteto perigoso – solidão, pessimismo, egoísmo e depressão – e prejudicial para a vida, existe o quarteto feliz e do qual a amizade faz parte. “A so-

“É UMA COISA MUITO BOA E TEM QUE SE PRESERVAR. SE NÃO TIVESSE AMIGOS, A VIDA NÃO SERIA TÃO BOA.”

Arquivo Pessoal

CRISTIANE FRANCO, 39 anos, jornalista

“AMIZADE É TER CERTEZA DE QUE, MESMO QUE OS ANOS PASSEM, A GENTE SABE REALMENTE COM QUEM CONTAR.”

Arquivo Pessoal

DONAIDE CARDOSO DIAS, 92 anos, dona de casa

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“AMIZADE É UM RELACIONAMENTO NÃO FORMAL ENTRE PESSOAS, CONSTRUÍDO A PARTIR DE ELEMENTOS COMUNS CARACTERIZADOS POR CONFIANÇA E AJUDA MÚTUA MANTIDAS INDEPENDENTE DE CIRCUNSTÂNCIAS E/OU SITUAÇÕES ADVERSAS.” VILNEI ROBERTO VARZIM, 63 anos, psicólogo e palestrante

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“É O AR QUE EU RESPIRO! UMA COISA IMPORTANTE QUE FIZ EM MINHA VIDA FOI RENOVAR AS MINHAS AMIZADES, POIS MUITOS AMIGOS SE FORAM. HOJE TENHO AMIGOS DE TODAS AS IDADES.”

lidariedade, quando você assume as dores do amigo; o altruísmo, quando eu contribuo contigo; o otimismo, quando eu vejo positivamente a vida; e a espiritualidade, quando eu sou instrumento nas mãos de Deus”, resumiu o cardiologista. Em seu trabalho nos hospitais, o médico disse que a amizade tem papel fundamental para pacientes que estão em risco de vida. “O paciente beneficia-se positivamente de sua espiritualidade e seu suporte social (amigos e família), a ponto de reduzir a mortalidade em caso de câncer e infarto”, frisou. Outro aspecto que o médico cardiologista observa é a relação de amizade que não se restringe somente às pessoas: são as relações com os animais. “Na literatura médica, a visita de cachorros a seus donos na UTI reduz o tempo de internação. O cachorro tem essa solidariedade com o dono. Há uma conexão que não entendemos, uma onda de energia que

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“É UM COMPLEMENTO DA SAÚDE E DA FELICIDADE. NÃO EXISTE FELICIDADE SEM UM CÍRCULO DE AMIGOS. AMIZADE É UMA FORMA DE ALTA AUTOESTIMA E LEVA VOCÊ A UMA VIDA MAIS LONGA.”

FILOSOFIA E AMIZADE – Entre os filósofos que conceituaram a amizade, Varzim destacou que Aristóteles, filósofo grego, ao se referir à amizade, disse que há três tipos. A amizade segundo a utilidade, que é estabele-

MORGANA MACHADO KLEE-MANN, 5 anos, estudante

FERNANDO LUCCHESE, 68 anos, médico cardiologista e escritor

cida pelo bem que uma pessoa pode receber de outra. Pessoas envolvidas nesse tipo de relação não se amam por causa de seu caráter, mas sim devido a uma utilidade recíproca. A amizade por causa do prazer, uma espécie de amizade em que os indivíduos não são por si só bons, mas estão à procura de algo aprazível. É passageira e dura enquanto dura o prazer. Encontrada comumente entre os jovens, amantes. O terceiro tipo de amizade é a questão dos iguais, que é vista como ferramenta de equilíbrio nas relações humanas, em que o ser humano só pode ser amigo do próprio ser humano. “Entendo que a análise de Aristóteles vai ao encontro do que a Bíblia fala sobre amizade. Cito apenas um versículo que reúne a essência da Bíblia nesse tema: ‘O amigo ama em todos os momentos’ (Provérbios 17.17). O versículo frisa a presença do amigo não só na necessidade, nem no prazer, mas em todo o tempo”, conclui Varzim. N LUCIANA REICHERT é jornalista em São Leopoldo (RS)

Arquivo Pessoal

NOVAS TECNOLOGIAS – O psicólogo Varzim afirma que as profundas mudanças nas últimas décadas, entre elas o surgimento da comunicação virtual, modificaram o relacionamento entre as pessoas. “Nas redes sociais, é possível ter milhares de ‘amigos’, sem nenhuma proximidade afetiva, com relações menos densas”, destaca. Para Lucchese, as redes sociais aproximaram as pessoas distantes e afastaram as pessoas próximas. “Você se comunica com pessoas que estão longe, aumenta o círculo de amigos nas redes sociais, mas com as que estão bem próximas de você o contato diminui. São relações superficiais, não se aprofundam, e amizade é revelação. Eu me revelo para o meu amigo, e ele se revela a mim. A intimidade é salutar”, avaliou.

“A AMIZADE É O QUE HÁ DE MAIS VERDADEIRO NUMA PESSOA. OS AMIGOS SÃO A FAMÍLIA QUE NOS PERMITIRAM ESCOLHER.”

“EU FICO FELIZ QUANDO VEJO MEUS AMIGOS. AMIGO É PRA BRINCAR E FAZER COMPANHIA.”

DIANDRA ANDRADE, 26 anos, professora

Arquivo Pessoal

faz com que eles se aproximem pela amizade”, destacou.

Luciana Reichert

Divulgação Novolhar

MARCELO MONFRINI COUTO, 40 anos, advogado e pedagogo

“AMIZADE É O MAIOR PRESENTE QUE A VIDA NOS PODE DAR. É A OPORTUNIDADE DE ESCOLHER COM QUEM VAMOS COMPARTILHAR OS MELHORES MOMENTOS.” NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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Amor, fidelidade e auxílio por Carlos A. Dreher

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ue é amizade? Fui procurar no dicionário, e a primeira definição que encontrei foi a seguinte: “sentimento de grande afeição, simpatia, apreço entre pessoas ou entidades”. Fiquei um tanto confuso. Não seria a mesma coisa do que amor? No mesmo dicionário, procurei a definição de amor, e o que encontrei foi: “forte afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade ou de relações sociais”; “grande afeição”; “forte afeição”... Qual é mesmo a diferença? A partir dessa primeira constatação, não há como deixar de olhar para múltiplos textos na Bíblia. Mas é preciso olhar principalmente para Jesus, que nos chama de amigos em João 15.15. A história da amizade começa em Gênesis 2. Adam, o ser humano, sente-se sozinho. Deus apresenta-lhe todos os animais e pede-lhe que lhes dê nomes. Adam o faz, mas continua triste. Nenhum dos animais, nem mesmo o cão, dito o melhor amigo do homem, resolve o problema. Adam precisa de mais. E Deus o faz dormir. Em meio ao sono, Deus reparte Adam em dois, e... a primeira amizade acontece! Homem e mulher completam-se: “Esta/este, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne”. Sim, a amizade tem a ver com osso e carne, com tornar-se uma só carne.

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Contudo a continuação da história é triste. Não há amizade entre Caim e Abel. Terá havido antes daquela cena terrível? Agricultor e pastor terão sido amigos? Caim mata Abel, seu irmão. A inimizade – a não amizade – entra na história da humanidade. O ódio, certamente causado por interesses econômicos, leva à morte de quem poderia ter sido amigo. Porém a amizade volta. Ela se expressa principalmente na hora da dor, como na história de Noemi e Rute. Em tempos de seca, Elimeleque e Noemi saem de Belém e, com seus dois filhos, vão para Moabe, no outro lado do rio Jordão. Lá, seus filhos casam com duas mulheres moabitas: Rute e Orfa. Morrem os homens, restam as mulheres. Noemi quer voltar a Belém e despede-se das noras. Orfa fica em Moabe. Rute não quer abandonar a sogra e lhe diz: “Aonde quer que tu fores, irei eu, e onde quer que pousares, eu pousarei; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. Onde quer que morras, morrerei eu e ali serei sepultada; faça-me o Senhor o que bem lhe aprouver, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti” (Rute 1.16s). Nessa história, amizade tem a ver com fidelidade e auxílio à pessoa mais velha. A amizade também é tema em 1 Samuel 18-20. Davi e Jônatas, o filho de Saul, tornam-se amigos. Duas passagens acentuam fortemente essa

AMIZADE A TODA PROVA “Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma. Despojou-se Jônatas da capa que vestia e a deu a Davi, como também a armadura, inclusive a espada, o arco e o cinto” (1 Samuel 18.3-4). A obra mostra Jônatas ao lado de Davi com a cabeça de Golias na mão

amizade. A primeira encontra-se em 1 Samuel 18.3-4: “Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma. Despojou-se Jônatas da capa que vestia e a deu a Davi, como também a armadura, inclusive a espada, o arco e o cinto”. A segunda encontra-se em 2 Samuel

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DAVIDE E GIONATA, Obra de Giovanni Battista Cima da Conegliano

1.26. Saul e Jônatas tombaram na batalha contra os filisteus. Davi lamenta sua morte e, ao referir-se a Jônatas, diz: “Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; tu eras amabilíssimo para comigo! Excepcional era o teu amor, ultrapassando o amor de mulheres”.

Há quem veja nessas duas passagens uma referência a uma relação homoafetiva entre Jônatas e Davi. Sem dúvida, a linguagem é marcante. Contudo não há nenhuma afirmação mais conclusiva a respeito. Trata-se, em todo caso, de uma fortíssima amizade entre os dois. Também aqui

fidelidade e proteção mútuas caracterizam a amizade. No Cântico dos Cânticos, é descrito o amor entre uma jovem pastora e um pastor de ovelhas. Em forma de poesia, o livro relata com grande beleza o amor entre os dois. Quase no final do livro, encontramos esta belíssima passagem: “O amor é forte como a morte e duro como a sepultura, o ciúme; as suas brasas são brasas de fogo, são veementes labaredas (do Senhor)”. Essa referência ao Senhor é, muitas vezes, omitida em nossas Bíblias devido a discussões na interpretação. Aqui a amizade torna-se claramente um amor erótico entre mulher e homem. O texto retoma Gênesis 2: mulher e homem tornam-se uma só carne em meio a veementes labaredas do Senhor. Numa surpreendente passagem do Evangelho de João, Jesus fala de amizade: “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos. Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando. Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho vos chamado de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer” (João 15.13-15). E logo em seguida Jesus diz: “Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros” (João 15.17). Isto é amizade: amar um ao outro! Ao tornar-se uma só carne com outra pessoa, ao ser fiel e cuidar da sogra, ao ter uma amizade tão grande quanto a de Davi e Jônatas, mesmo que seja homoafetiva, ao experimentarmos o amor erótico como veementes labaredas do Senhor, é preciso que haja amor recíproco. Quando pessoas amam umas as outras, a amizade é verdadeira. N CARLOS A. DREHER é teólogo, doutor em Antigo Testamento e pastor aposentado em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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Respeito pelo universo do outro SERÁ QUE HOMENS E MULHERES CONSEGUEM SER AMIGOS? A PERGUNTA PODE PARECER UM POUCO SEM SENTIDO, JÁ QUE DIARIAMENTE ENCONTRAMOS HOMENS E MULHERES DIVIDINDO OS MAIS DIFERENTES TIPOS DE ESPAÇO.

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esgatando um pouco os clássicos, Aristóteles argumenta que a amizade é uma virtude; acima disso, é a relação mais necessária da vida. Para esse filósofo grego, existem três tipos de amizade: por interesse ou utilidade, por prazer e por virtude. Essa última é a amizade que podemos chamar de ideal, já que se entende que é construí­da apenas sobre o fato de querer bem. Só podemos tornar-nos genuinamente amigos de alguém se estivermos envolvidos por afeto. A amizade é também uma expressão de amor, formando um laço de intimidade. É como um nó feito por duas pessoas, que aos poucos vai formando um laço recheado de gratidão. A diferença é que a verdadeira amizade não toma o outro para si. Aqui fica o nosso alerta: a amizade entre homens e mulheres pode ser possível, desde que haja afeto desprovido de elementos sexuais e principalmente respeito pelo universo do outro. Se esse amigo passa a ser visto como seu, fica complicado

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dividir a sua atenção com outras pessoas, ou se ele está contando a respeito de seus enamoramentos e você se percebe tomado por ciúmes, converse consigo mesmo, tente analisar primeiro o que está se passando em seu mundo interior. A amizade é o dom da singularidade: alguém acolhe, subtrai o tumulto das outras relações humanas, forma-se um pacto de empatia e gratidão. É um acontecimento não apenas de amor, mas também de liberdade. Afinal, somos seres humanos sujeitos a nos inundar com todos os tipos de sentimentos; o que não deveria acontecer é tentar convencer o outro a gostar de si da mesma forma como gosta do outro. Tarefa complicada essa, já que amigos de sexos opostos podem tornar-se um casal e ainda continuar amigos. Mas também pode provocar o fim de uma amizade, já que o outro pode sentir-se rejeitado; muitas vezes, isso ocorre quando um dos dois é comprometido ou não nutre os mesmos tipos de sentimentos.

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por Bruna Girardi Dalmas

O amor da amizade não contém elementos sexuais. Se for assim, já não é mais amizade. Na amizade constrói-se um espaço mais nítido entre uma pessoa e outra; cada uma tem suas histórias, suas escolhas, sua forma de ser, agir, pensar e assim se complementam. Já nos namoros e nas relações de casal encontramos mais elementos de fusão, paixão e confusão. Isso nos ajuda a diferenciar a amizade do amor.

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o respeito e os gostos em comum. Esses poderão passar uma existência baseada apenas em ser amigos, compartilhando diversos sentimentos que não beiram os carnais. Já para alguns homens e mulheres, a amizade poderá ser o trampolim para que possam viver uma história de amor. Para outros, o amor poderá atrapalhar ou até acabar com uma amizade. Bom seria se todos nós pudéssemos casar com nossos melhores amigos. Afinal, a amizade perdurará ao longo dos anos, será a ferramenta para o sucesso e muitas vezes sustentará todo o resto. Com isso não quero dizer que todas as duplas de homens e mulheres que são amigos se apaixonarão; podem existir alguns que apenas serão amigos, mas muitos, com certeza, vão apaixonar-se N em alguma hora ou outra. BRUNA GIRARDI DALMAS é psicóloga e escritora em Porto Alegre (RS)

Desde os clássicos mostram-nos a importância dos amigos como um complemento das relações com os pais e a família. Afinal, somos seres tecidos de sentimentos, desejos e acabamos muitas vezes sendo pegos de surpresa pelas sensações que o outro desperta em nós. Muitas vezes, nem nos damos conta da influência que temos sobre o outro; acabamos por revelar o nosso lado mais autêntico e espontâneo.

Alguns aspectos importantes são essenciais para que possamos compreender a personalidade, os valores e os princípios. Dessa forma, trago más notícias: não existe receita de bolo. Cada ser humano é um universo; dentro dele habitam os mais inimagináveis tipos de sentimentos, desejos e fantasias. Há homens e mulheres que conseguirão ser amigos por longa data, sem haver nenhum tipo de atração física entre eles; haverá apenas a admiração, NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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Amizade se corresponde QUANDO FOI A ÚLTIMA VEZ QUE VOCÊ RECEBEU CARTA DE UM AMIGO? E QUE ESCREVEU UMA, DE PRÓPRIO PUNHO, ENVIADA NUM ENVELOPE SELADO? O SERVIÇO DOS CORREIOS ESTÁ CADA VEZ MAIS RESERVADO PARA ENCOMENDAS, PROPAGANDAS E CONTAS. PARA CARTAS, DAQUELAS SOBRE A VIDA, ENDEREÇADAS A FAMILIARES E AMIGOS DISTANTES, CADA VEZ MENOS. por Jaime Jung

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ivemos tempos de pressa, de dedos rápidos no teclado do computador ou do telefone, de mensagens objetivas. É uma época de abreviaturas – e abreviadas tornam-se muitas relações interpessoais. A geração jovem, familiarizada com a tecnologia, talvez nem saiba de um tempo anterior ao correio eletrônico e às redes virtuais em que as pessoas se dirigiam à caixa de correio, cheias de expectativas. O carteiro era esperado com ansiedade. Um tempo em que as pessoas se alegravam ao ter em mãos um envelope a ser aberto, uma carta escrita à mão. Amizade precisa de cultivo paciente e de comunicação dedicada, pessoalmente ou por escrito. Ela tem a ver com correspondência – do latim correspondere, que quer dizer “estar em harmonia, em concordância”. Somente no século

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XVII, ela passou a ter o sentido de “comunicar-se por cartas”. Cartas são temas de músicas, filmes, livros. Correspondências de pessoas famosas vão se tornando públicas. O que era íntimo transforma-se em coletâneas, que permitem ao leitor de hoje conhecer as pessoas reais por trás de nomes da literatura, da política, da história. A Bíblia traz “epístolas” (cartas) que o apóstolo Paulo escreveu a comunidades cristãs que havia fundado ou visitado, como a sua Carta aos Romanos. Ou aquelas que ele escreveu para encorajar e instruir um jovem líder, seu amigo e filho na fé Timóteo. Há as correspondências trocadas entre o reformador Martim Lutero e Filipe Melanchthon no século XVI. Percebe-se, pelas cartas, que Lutero respeitava seu amigo, preocupava-se com sua saúde, animava-o e, às vezes,

chamava sua atenção. Isso mostra que amizade não significa concordância irrestrita em todas as circunstâncias, mas que o diálogo promove crescimento. Numa das cartas, Lutero escreve a Filipe: “Eu oro sempre por

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você. Faça o mesmo por mim! Assim nós carregaremos a carga juntos”. Algumas cartas de personalidades brasileiras foram disponibilizadas na internet pelo Instituto Moreira Salles (http://www.correio-

ims.com.br/) e são testemunhos de grandes amizades. Ariano Suassuna, por exemplo, escreveu a Rachel de Queiroz: “Só a você posso falar com essa franqueza e de coração aberto como venho fazendo”.

Uma carta é, no momento da escrita, um monólogo. Também o receptor está sozinho ao lê-la. Lygia Fagundes Telles exemplifica isso quando escreve a Érico Veríssimo: “Estou muito contente por ter conversado consigo; é verdade que falei o tempo todo, mas não me zango, mesmo quando não há resposta”. Veríssimo responde: “Eu lhe escrevo para dizer que ando com saudade dum papo contigo”. Isso mostra que, muito além do papel e da tecnologia, as pessoas têm sede da proximidade física. Uma carta de Tom Jobim a Chico Buarque diz: “Venha urgente. Temos que estar juntos. Preciso de você”. Outras amizades floresceram por escrito – e não passaram disso. É o caso da troca de cartas entre a professora gaúcha Helena Maria Balbinot e o poeta Carlos Drummond de Andrade durante 24 anos. Eles nunca se viram pessoalmente, e essa história se transformou no filme “O Último Poe­ ma”, lançado recentemente. Helena escreveu a Drummond: “O tempo de amizade não depende, felizmente, dos erros que cometemos, das decepções que causamos. Mas perdura pelo bem que realmente queremos”. O escritor Francisco Iglesias escreveu ao amigo Otto Lara Resende: “Amizade é como esmola: pouca ou muita, não se recusa. A amizade, para mim, vale mais do que Veneza”. É isto: na amizade, uma pessoa pode complementar a outra e a correspondência de palavras e de sentimentos é imprescindível. “Uma das alegrias da minha vida é contar com amizades fiéis como a sua, que vencem o tempo e a distância.” A quantas pessoas você pode dirigir essa frase de N Drummond? JAIME JUNG é licenciado em Letras pela Unisinos, mestre em Comunicação e Teologia pela Universidade de Erlangen (Alemanha) e ministro da IECLB em Novo Hamburgo (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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Limites para as amizades virtuais COMO CRIAR PARAMENTOS OU RECONHECER UMA AMIZADE VERDADEIRA EM TEMPOS DE COMUNICAÇÃO VIRTUAL, REDES SOCIAIS E SOLICITAÇÕES E SENTIMENTOS DE GENTE QUE TALVEZ VOCÊ NUNCA TENHA VISTO PESSOALMENTE? por Paulo Siebra Andrade

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ocê abre seu perfil na rede social com 2.500 pessoas de vários lugares, classe social, idades e fotos de perfil diferentes, chamados de “amigos”. Qual deles você poderia chamar verdadeiramente de amigo? Segundo um provérbio português, só se conhece e confia em um amigo verdadeiro quando os dois comem juntos um quilo de sal. Para o jornalista argentino Gabriel Shultz, o amigo de verdade é aquele que conhece e frequenta sua casa. Mas como criar paramentos ou reconhecer uma amizade verdadeira em tempos de comunicação virtual, redes sociais e solicitações e sentimentos de gente que talvez você nunca tenha visto pessoalmente? Caracterizamos como amigo aquele que está unido a nós por um sentimento de amizade, alguém que quer o nosso bem, um companheiro cuja reciprocidade é automática. Como tudo é muito recente e a tecnologia avançou mais do que as formas e relações da sociedade com o chamado mundo virtual, temos dificuldades para caracterizar, impor

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limites e agir diante das centenas e até milhares de amizades chamadas “virtuais”, aquelas pessoas que estão em nosso perfil do Facebook, seguem-nos no Twitter, Instagram ou estão presentes naqueles grupos de WhatsApp a que muitas vezes somos adicionados. Com a cultura da exposição, onde fotos, check-ins, compartilhamentos e curtidas contam as histórias de nossos dias, cria-se uma nova forma de ver a pessoa que consideramos nossa amiga. O tipo de relacionamento que desenvolvemos com essas pessoas é uma afeição diferente que temos com os “amigos reais”. Isso demanda novas formas de ver o outro e como agir diante dele. Nesse novo formato de amizade, podemos conhecer muito sobre essa pessoa, seus gostos, seus posicionamentos políticos, seus dons, talentos, lugares que frequenta, opiniões sobre os mais diversos temas, mas quando esse se propõe a fazer isso. O grande e talvez principal risco do virtual é que se desconhece o limite da realidade do fato exposto, deixando

o sujeito vulnerável diante da informação disponibilizada. Ao mesmo tempo, quando há verdade nos fatos, tanta exposição pode chocar-nos com a realidade, já que seu comportamento nas redes sociais pode entrar diretamente em rota de colisão com nossa forma de pensar, opinião, comportamento, escolhas e modo de viver, gerando conflitos virtuais ou a fácil rotulagem do outro.

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melhor, mas pode ser tratada como um caminho para um relacionamento real, já que por trás de um “avatar” há sempre uma história, alguém com as mesmas necessidades sociais que as nossas. Por isso essa transição deve ser baseada na confiança, na cumplicidade e no afeto mútuo com o outro, principalmente em conhecer e conviver com as diferenças. Temos a tendência de anular o espaço virtual por razões óbvias de maus exemplos que encontramos, mas o desafio está em saber frequentá-lo com sabedoria e prudência. Uma grande tentação que sofremos é colocar uma amizade “real” no virtual e assim nos distanciar das pessoas à nossa volta com o objetivo de simplificar ou facilitar o dia a dia. Um chat não substitui uma boa conversa “ao vivo”, uma mensagem na Linha do Tempo não substitui um abraço no aniversário ou em um momento de luto. Nosso desafio em uma sociedade cheia de relacionamentos superficiais é aprofundar-nos na vida do outro, utilizar sabiamente as ferramentas comunicacionais para aproximar-nos e N aprender com nossas diferenças.

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PAULO SIEBRA ANDRADE é mercadólogo, analista de redes sociais e bacharel em Teologia pela Faculdades EST em São Leopoldo (RS)

Elbert Hubbard, filósofo e escritor norte-americano, disse certa vez: “Amigo é alguém que sabe tudo a nosso respeito e gosta da gente assim mesmo”. Em nenhum momento, Hubbard pensou no tipo de relacionamento virtual que temos hoje, que podemos saber muito das pessoas com alguns cliques, mas pode sim ser aplicado a ele, já que no real dificilmente as pessoas costumam discordar das outras ou expor

suas opiniões com tanta naturalidade. Muitas amizades são desfeitas quando elas são transferidas do real para o virtual. O principal motivo é a dificuldade de conviver com a livre expressão do agora também “amigo virtual” ou do conhecimento de características antes não notadas pessoalmente e que muitas vezes não são bem entendidas. A amizade virtual não substitui a real, e nem é NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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O melhor amigo do ser humano VÁRIAS SÃO AS RAZÕES QUE LEVAM PESSOAS A ADOTAR A COMPANHIA DE ANIMAIS. UMA DELAS É PORQUE CONSIDERAM O ANIMAL ATRAENTE, BONITO, ENGRAÇADO, SEJA ELE QUAL FOR. OS PASSARINHOS QUE ASSOBIAM; OS CÃES E GATOS QUE BRINCAM E POR AÍ ADIANTE. por Vilnei Roberto Varzim

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esde os primórdios, pessoas gostam de manter animais de estimação em seu convívio. Os mais tradicionais sempre foram cachorros e gatos, muito embora encontremos todas as espécies de bichos sendo criadas das mais variadas formas. Segundo estudiosos, no começo dos tempos, essa aproximação do ser humano com animais acontecia por necessidade e não por diversão, como acontece nos tempos atuais. A parceria entre pessoas e animais é indiscutível e intensa por parte de muitas pessoas. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, 44,3% dos lares têm pelo menos um cão e 17,7% têm pelo menos um gato. Portanto temos cerca de 52 milhões de cachorros e 22 milhões de gatos no país. Isso mostra que há mais cachorros de estimação do que crianças.

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Várias são as razões que levam pessoas a adotar a companhia de animais. Uma delas é porque consideram o animal atraente, bonito, engraçado, seja ele qual for. Os passarinhos que assobiam; os cães e gatos que brincam e por aí adiante. Há também aquelas que atribuem ao animal certa imagem social. Quando o animal tem, por exemplo, um aspecto perigoso, o dono espera irradiar a mesma imagem. Os animais de estimação facilitam os contatos sociais. As pessoas começam mais facilmente uma conversa quando têm o álibi de um animal ao qual podem dirigir a atenção; por exemplo, quando a conversa deságua em silêncios penosos. O passatempo também é uma razão importante. Qualquer tipo de animal exige tempo, atenção, cuidados, e para algumas pessoas isso torna o tempo menos tedioso.

Em todas as situações citadas, o companheirismo é significativo para ambos. Tanto um como outro são acrescidos e enriquecidos pelo convívio. Em alguns casos, o vínculo com alguns animais é tão intenso, a ponto de ambos se conhecerem profundamente e perceberem até mesmo estados emocionais um do outro. Por isso, segundo o dito popular, o

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COISA DE BICHO E DE GENTE: pessoas podem adotar e estabelecer vínculos profundos com animais sem substituir a relação de amizade humana em todos os níveis como companheiros, filhos, cônjuges etc. O animal serve, inclusive, de remédio para a necessidade humana de cuidar, de mimar e de evitar o tédio, mas nunca para substituir o amor, que é único entre pessoas.

cachorro ocupa o status de melhor amigo do ser humano. Chegamos então diante de uma pergunta importante: um animal pode ser amigo de uma pessoa? Depende do conceito estabelecido para amizade. Se amizade é companheirismo, troca de atenção, parceria, podemos dizer que sim; então há amizade.

Mas não podemos esquecer que estamos tratando de seres diferentes, de “almas diferentes”. O ser humano, criado à semelhança de Deus, tem inteligência, consciência e capacidade para analisar seus atos, executar suas tarefas, planejar suas atividades e colocá-las em prática, além de uma estrutura emocional única. Através de suas diferenças o

ser humano é um ser surpreendente; sua mudança é constante, tem seus hábitos, costumes, crenças e culturas. Os animais, considerados irracionais, por mais que possamos pensar que são seres livres, realizam seus atos impelidos por suas sensações, por apetites e pelo instinto natural, para um fim que eles mesmos ignoram e cujas consequências não conseguem nunca prever. Os animais também são seres inteligentes, mas sempre se reduzem à sensibilidade. São seres que agem de acordo com seu instinto, porém seus sentimentos são fortes e puros em relação ao ser humano. Os animais não buscam um conhecimento para o futuro, mas vivem a realidade do momento, expressam-se de uma forma natural para a vida. Por isso pessoas podem adotar e estabelecer vínculos profundos com animais sem jamais substituir a relação de amizade humana em todos os níveis como companheiros, filhos, cônjuges etc. O animal serve, inclusive, de remédio para a necessidade humana de cuidar, de mimar e de evitar o tédio, mas nunca para substituir o amor, que é único entre pessoas. N VILNEI ROBERTO VARZIM é psicólogo em Pelotas (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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ENTREVISTA IGREJA E MEIO AMBIENTE

Que é o Galo Verde? por Emilio Voigt

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Galo Verde é um programa ecumênico de implantação, certificação e monitoramento de iniciativas ambientais no espaço das igrejas. Na Alemanha, o programa é chamado de Grüner Hahn ou Grüner Gockel. Igrejas de outros países da Europa contam com programas semelhantes. No Brasil, o Programa Ambiental Galo Verde-PAGV foi criado por um grupo de interessados em outubro de 2012. O PAGV existe como grupo de trabalho no Sínodo Vale do Itajaí da IECLB desde 2013. Outros sínodos também estão refletindo e engajando-se na causa. No mundo inteiro e também no Brasil, o Galo Verde não está ligado a uma igreja específica, primando por uma atuação comum das igrejas num ambiente de ecumenismo. Nos dias 18 e 19 de setembro de 2015, aconteceu o Simpósio Internacional “Igrejas para o Planeta”, realizado em Milão, Itália. Como assessor de formação do Sínodo Vale do Itajaí, representei o Galo Verde brasileiro naquele evento. Segurança alimentar, mudanças climáticas e o compromisso das igrejas com formação e cuidado ambiental foram os temas norteadores do encontro. O grupo, que representou diversas denominações religiosas de dez países, reafirmou o cuidado com a criação

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como compromisso incontestável e inadiável da fé. A seguir, um resumo de minha apresentação no painel sobre mudanças climáticas.

O CLIMA NÃO CONHECE FRONTEIRAS Uma propriedade particular pode ser delimitada e protegida por cercas, muros, portões, portas, paredes. Muitas coisas podem ser protegidas por meio de controle e de fronteiras. Um país pode construir muros e criar procedimentos para impedir a entrada de imigrantes. Há coisas, entretanto, que não podem ser controladas dessa forma. O clima não conhece fronteiras municipais, estaduais ou nacionais. Não podemos construir cúpulas de proteção sobre um território. Vivemos no planeta Terra sob uma mesma cúpula.

Participantes do encontro “Churches for Planet”.

as mesmas consequências sobre todas as pessoas. Também os efeitos das mudanças climáticas não são experimentados da mesma forma. Quem tem boas condições consegue adaptar-se mais facilmente. As regiões e as populações mais pobres sofrem mais. Nós vivemos sob a mesma cúpula, porém os efeitos das mudanças climáticas são experimentados diferentemente.

MUDANÇAS CLIMÁTICAS SÃO EXPERIMENTADAS DE FORMA DIFERENCIADA

PESSOAS NÃO ESTÃO SOZINHAS NA CASA COMUM

Na perspectiva bíblica, Deus faz o sol brilhar sobre pessoas boas e más e, da mesma maneira, dá as chuvas (Mateus 5.45). Mas nós sabemos que sol e chuva não têm

Na encíclica Laudato Si‘, do papa Francisco, a terra é denominada de casa comum. Isso significa que não é propriedade privada. O planeta é o espaço comum e não nos pertence. A

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metáfora da casa é muito apropriada, mas tem um pequeno problema: plantas e animais não estão presentes em todas as casas. Quando falamos de casa comum, temos que cuidar para não cair no antropocentrismo. Nossa casa não é habitada somente por seres humanos. Vivemos todos – seres humanos, plantas e animais – sob a mesma cúpula.

QUEM ASSUME A RESPONSABILIDADE? Países considerados “desenvolvidos” lançaram e continuam lançando o maior volume de emissões responsáveis por mudanças climáticas. Países “em desenvolvimento”, como o Brasil, também têm sua parcela de responsabilidade. As pessoas que

habitam uma casa assumem tarefas variadas. Em uma casa, porém, coexistem pessoas pequenas e grandes, fortes e fracas, doentes e saudáveis. Por isso as tarefas precisam ser repartidas de acordo com as condições e capacidades. O que isso significa em termos de responsabilidade ambiental para municípios, estados, países? É necessário considerar diversas variantes a partir de uma avaliação criteriosa. Entretanto, mesmo que a responsabilidade seja diferenciada, a disposição e o compromisso são invariavelmente iguais.

CELEBRAR E LOUVAR Na Bíblia, a criação pertence ao âmbito do louvor a Deus. Quem

louva o Criador reconhece fazer parte de sua criação e assume a responsabilidade de cuidar e preservar. Quem louva o Criador compreende que faz parte do mundo, mas o mundo não lhe pertence. Quem louva o Criador percebe que apenas peregrina por esta terra. Já houve quem o antecedesse e haverá quem sobrevirá. Quem louva o Criador não pensa apenas em garantir sua jornada. Os recursos disponíveis precisam ser partilhados com cada caminhante. Quem louva o Criador compromete-se em garantir as condições para que peregrinas e peregrinos do presente e do futuro possam desfrutar da hospitalidade e N dos frutos da terra. EMÍLIO VOIGT é teólogo, doutor em Teologia e assessor de Formação do Sínodo Vale do Itajaí da IECLB em Blumenau (SC) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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PERSONALIDADE LUTERANA

A lição de vida de Martin Niemöller “QUANDO OS NAZISTAS BUSCARAM OS COMUNISTAS, EU SILENCIEI; AFINAL, EU NÃO ERA UM COMUNISTA. QUANDO ELES TRANCAFIARAM OS SOCIAL-DEMOCRATAS, EU ME CALEI; JÁ QUE EU NÃO ERA SOCIAL-DEMOCRATA. QUANDO VIERAM ATRÁS DOS SINDICALISTAS, EU NÃO PROTESTEI; POIS NÃO ERA UM SINDICALISTA. QUANDO ELES VIERAM RECOLHER OS JUDEUS, TAMBÉM NÃO PROTESTEI; VISTO QUE TAMBÉM NÃO ERA JUDEU. QUANDO VIERAM ME BUSCAR, NÃO HAVIA MAIS NINGUÉM PARA PROTESTAR.” por Clovis Horst Lindner

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sta frase é mundialmente conhecida e muitas vezes citada. Ele é de Martin Niemöller (1892-1984), um pastor luterano alemão que esteve preso no campo de concentração de 1937 a 1941. Menos conhecido é o contexto em que ele fez essa declaração e o que aconteceu com ele antes de fazer tal confissão. A fascinante história de Martin Niemöller lança uma luz provocadora sobre os nossos dias. O pastor Niemöller tornou-se conhecido do público alemão em 1933 com o livro “Do Submarino ao Púlpito”. Na obra, Niemöller conta como

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ele, um capitão de submarino durante a Primeira Guerra Mundial, se havia tornado pastor luterano. Não é o relato de um ex-guerreiro que vira pacifista, mas de um homem orgulhoso de sua carreira militar. O livro vira best-seller e é elogiado pela imprensa favorável ao nazismo em ascensão, que Niemöller e a maioria de seus colegas pastores saudavam como um “renascimento” da nação alemã. Essa história muda de rumo em 1934, quando Hitler tenta forçar as igrejas protestantes a se unir numa Reichskirche com ideologia acoplada ao nazismo. Ele se opõe a Hitler,

que diz que a igreja não tem que se imiscuir em “assuntos terrenos” do povo alemão. Como consequência imediata, ele é proibido de subir ao púlpito para pregar. Mesmo assim, ele continua nutrindo simpatia pelo regime e se mantém dentro de limites, opondo-se a reações radicais, como a de Bonhoeffer, que queria a igreja protestando contra a perseguição aos judeus. “Devemos nos preocupar antes com a segurança da própria igreja”, defendia. Em 1936, centenas de pastores foram presos e, em meados de 1937, também Niemöller foi preso por alta traição. Como “prisioneiro pessoal” de Hitler, ele passa os oito anos seguintes nos campos de Sachsenhausen e Dachau, sendo libertado somente em 1945 com a chegada das tropas americanas. Depois da guerra, sua pregação muda de tom, e ele expõe dolorosamente a lentidão de muitos e a sua própria em resistir. Os anos no isolamento encheram sua cabeça de perguntas sobre as prováveis razões para o silêncio de muitos homens e mulheres de fé. Hitler atacou os comunistas, mas eles não eram ateus e descrentes? Ele perseguiu deficientes e doentes, mas eles não eram uma carga? Ele de fato atacou os judeus, o que por certo era lamentável, mas eles por acaso eram cristãos? Devíamos ter resistido, mas nós preferimos nos calar para nos proteger. Portanto todos somos culpados por tudo o que aconteceu. Não podemos nos eximir, nem mesmo com a desculpa de que poderia custar nossas cabeças se falássemos. “Nós priorizamos silenciar. Por isso somos culpados, e eu me pergunto sempre de novo o que teria acontecido se em 1933 e 1934 quatorze mil pastores protestantes e todas as comunidades protestantes da Alemanha tivessem defendido a verdade com as

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MARTIN NIEMÖLLER: Justamente nos dias de hoje, precisamos novamente de pessoas como ele

suas vidas. Se tivéssemos dito: ‘É injusto que Hermann Göring trancafiou 100 mil comunistas em campos de concentração para deixá-los morrer’. Talvez teriam sido mortos 30 ou 40 mil, mas nós teríamos salvo 30 ou 40 milhões de vidas”. O pastor Martin nunca deixou a sua frase registrada por escrito, mas ele a citou incontáveis vezes em suas pregações e discursos. Por conta dis-

so, ela tem dezenas de versões, nem sempre formuladas com isenção. No museu americano do holocausto, por exemplo, a citação aos comunistas foi simplesmente eliminada. Tal exclusão, motivada pela posterior guerra fria contra a União Soviética, ignora solenemente a principal oposição ao regime nazista na época, empreendida justamente pelos comunistas alemães e não pelos cristãos.

Depois da guerra, o pastor Niemöller tornou-se uma das principais lideranças da igreja protestante alemã, empenhado em recuperar o prestígio que essa havia perdido. Em seus pronunciamentos e ações, ele nunca mais parou de criticar a injustiça e a opressão. Tornou-se um apaixonado opositor da guerra imperialista e da corrida armamentista nuclear. Sua trajetória de pacifista levou-o à presidência do Conselho Mundial de Igrejas. Ao completar 90 anos, ele falou de sua transformação de reacionário em revolucionário e acrescentou: “Se eu chegar aos 100 anos, talvez ainda me torne um anarquista”. A história do pastor Martin Niemöller não é a história de um herói, mas de alguém que, por causa de suas experiências, aprendeu que não conseguimos nos salvar por meio do medo e da submissão. Ele entra para a história como alguém capaz de reconhecer os seus erros e de mudar radicalmente o seu pensamento. Justamente nos dias de hoje, precisamos novamente de pessoas como o pastor N Martin Niemöller. CLOVIS HORST LINDNER é teólogo e editor da revista Novolhar em Blumenau (SC)

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NOSSO TEMPO

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“QUANDO ESTÁ ESCURO O SUFICIENTE, VOCÊ PODE VER AS ESTRELAS.”

Espero que passe logo por Ricardo Gondim

Espero que passe logo esse tempo nervoso, ruidoso, pesaroso. Espero que passe logo esse tempo, e vamos parar de falar em traição, vileza, covardia. Espero que passe logo esse tempo de luto. Espero que passe logo esse tempo, e ganharemos novo ânimo de recitar nossa poesia, nosso lamento, nossa comédia. Espero que passe logo esse tempo de jejum, e voltemos a sonhar na sintonia dos sonhadores, que imaginam um mundo sem trincheira, sem o deus fabricante de fantoches e sem o torpor que dá lucro. Espero que passe logo esse tempo para nossos irmãos cantarem forró, bossa nova, chorinho. Aliás, depois desse tempo vão nascer muitos outros Luiz Gonzaga, Pixinguinha. Voltarão as festinhas em pé de serra, na sala de casa. E a Asa Branca trará alegria para nosso sertão sofredor, de mulher bonita e homem trabalhador. Espero que passe logo esse tempo, e a gente cesse de escutar sobre rapazes negros chacinados, sobre meninas estupradas e sobre mais uma bala perdida que deixou mais um paraplégico.

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Espero que passe logo esse tempo para as churrascarias se encherem em tardes de sábado. Espero que passe logo esse tempo, e, sem demora, a gente possa ter quermesse nos povoados do Ceará. Espero que passe logo esse tempo, e os ônibus, bem ocupados, levem e tragam abraços há muito adiados. Espero que passe logo esse tempo para que amigos deixem as intolerâncias, esqueçam as desavenças para brincar e zombar sobre o time de futebol que perdeu. Espero que passe logo esse tempo para não precisarmos fazer rifa para comprar remédio para a vizinha que sofre de câncer; e que os tribunais também fiquem vazios de denúncias contra o descaso dos convênios médicos. Espero que passe logo esse tempo para sermos ricos, com mais bibliotecas e mais títulos de mais autores nacionais. Espero que passe logo esse tempo para que ressuscite ingenuidade em nossa lembrança – essas tolices que só os poetas curtem. Só então voltaremos a ter esperança. Soli Deo Gloria

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AÇÃO DIACONAL

FLD participa de seminário da Infraero por Susanne Buchweitz

A fundação Luterana de Diaconia (FLD) participou, por meio do projeto Catadoras e Catadores em Rede, do II Seminário sobre Gestão dos Resíduos Sólidos, realizado pela Infraero no dia 17 de novembro, em Porto Alegre/ RS. O tema abordado pela FLD foi a gestão do processo de implantação da unidade de beneficiamento de plástico, com inclusão de catadoras e catadores, prevista no projeto. A unidade está localizada em Gravataí/RS, junto à Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis da Santa Tecla (Cootracar), vinculada

à Rede Coleta Seletiva Solidária. Os plásticos são a matéria prima para a confecção de brinquedos, copos plásticos, seringas, cabos de ferramentas, e o polietileno é usado na produção de frascos de detergentes, de xampus, potes de sorvete, de azeite, entre outros. Também participaram do seminário a coordenadora de Meio Ambiente da Infraero, Ana Paula Fagundes, o professor da UFRGS, Darci Barneci Campani, o articulador do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), Alex Cardoso, e

David­son Augusto Hirt, da empresa Natusomos. O seminário teve ainda vídeos, debates e exposições, com mostra fotográfica Catadoras e Catadores em Rede - Fortalecendo a Reciclagem Popular, da FLD, que mostra o dia-a-dia do trabalho de catação. A mostra tem como objetivo promover a visibilidade da Coleta Seletiva Solidária, além de sensibilizar a população para a importância da separação de materiais. N SUSANNE BUCHWEITZ é jornalista e assessora de comunicação da Fundação Luterana de Diaconia em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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TEMA DE 2016

Pela Graça de Deus, livres para cuidar

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o Texto Base sobre o novo tema do ano da IECLB, a Presidência deu a conhecer suas principais motivações. Rumo aos 500 anos da Reforma, as Igrejas Luteranas congregadas na Federação Luterana Mundial-FLM foram convidadas a refletir no triênio 2015-2017 o tema “Livres pela graça de Deus”, em três subtemas: Salvação não está à venda; Seres humanos não estão à venda; Criação não está à venda. Ao escolher como Lema bíblico o texto de Amós 5.14a, “Buscai o bem e não o mal”, quer estimular uma reflexão sobre ética. A ÉTICA E A VIDA – Por que o tema da ética é tão pertinente em nosso dia a dia? A ética é como o pão de cada dia. Ética “tem a ver com o discernimento do mal e do bem, do correto e do incorreto, do que é responsável e apropriado para o comportamento humano em suas relações sociais e pessoais”, segundo Roy H. May. A preocupação com a ética não é preocupação unicamente com aquilo que é bom para mim, mas com o que é bom para o convívio entre todas as pessoas. O lema de 2016 quer nos provocar e desafiar a organizar a vida toda pela ética, segundo o preceito: “Buscai o bem e não o mal” (Am 5.14a). Amós argumenta que a prática do mal não só remete ao juízo divino, mas também leva à ruína individual e da comunidade toda. Se as pessoas não atuarem em favor do bem de toda a comunidade – buscai o bem –, mais

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cedo ou mais tarde a sociedade estará fadada à ruína. E a ruína afetará todas as pessoas que compõem essa sociedade. Deste modo, quem tira proveito das outras pessoas agora, está trabalhando, a médio e longo prazo, contra si mesmo. Para quem esta palavra profética estava dirigida, restava somente uma remota esperança: a radical conversão ética. Deem meia-volta! Busquem o bem e aborreçam o mal! Porque na prática do bem, do que é correto, do

que é bom, do direito que abrange toda a gente, Deus estará disponível com sua bênção. Esta imperativa palavra de Deus, vinda pelo profeta Amós, vale também para os dias de hoje. Ela é atualizada para nós por meio do Lema: Buscai o bem e não o mal. É palavra dirigida principalmente para nós, pessoas e comunidades cristãs que vivem sob os impulsos das demandas éticas do Evangelho.

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Com certeza ninguém irá colocar objeções às palavras antes anotadas. Concordamos que a ética faz parte do dia a dia, e que ela tem a ver com o exercício do discernimento. Cada dia e toda hora a vida nos desafia a discernir e optar entre o útil e o inútil; o saudável e o doentio; o correto e incorreto. Enfim, entre o bem e o mal. Isso pode parecer algo fácil, mas não é. Quem, no esforço de fazer o bem e evitar o mal, já não teve a experiência relatada pelo apóstolo Paulo? Ele escreve: “Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico” (Rm 7.19). Pois é, como diz o ditado: “falar é fácil, fazer é que é difícil”. Então, onde reside a dificuldade para a prática da ética, para o exercício do bem? Uma dificuldade encontra-se no fato de que o exercício do discernimento e a escolha entre o bem e o mal pressupõem que a pessoa seja livre para realizar suas próprias escolhas. Entretanto, querendo ou não, cada um e cada uma nascem e crescem dentro de uma comunidade que tem a sua história. Por isso, toda pessoa herda algo e contribui com alguma coisa para sua vida e para a vida comunitária. Neste contexto, a maior ilusão é acreditar que a liberdade consiste em ser a própria

pessoa referência para sua existência. Portanto, se a liberdade para discernir e optar pelo que é correto estiver viciada, se faz necessário libertar a liberdade. O TEMA – “Pela graça de Deus, livres para cuidar” fornece-nos elementos-chave. Na condição de pessoas com a liberdade comprometida, o Deus da graça age, vindo até nós em Jesus Cristo. A graça de Deus, recebida pela fé, liberta de um viver como pessoa devedora e conduz sua vontade e motivação para o amor, inspirando-a a viver da gratidão. Desta forma, a pessoa, justa e pecadora, encontra-se livre perante Deus. Em Cristo, a pessoa é livre para ser responsável, para viver eticamente. O Tema deste ano traz consigo três subtemas. A salvação não está à venda. É dádiva de Deus e isto é o núcleo central da doutrina da justificação. Nada nem ninguém pode negociar com Deus o seu amor. A salvação é ameaçada toda vez que a dádiva é tida como fonte de privilégios e isenção de responsabilidades. Ela é colocada a perder em cada intento falido de autojustificação. Que a salvação seja um dom gratuito de Deus é uma contundente crítica diante das concepções que tratam o acesso ao sagrado e seus benefícios

como produtos de negociação, de um mercado religioso. As pessoas não estão à venda. As diversas formas de tráfico de pessoas só vêm aumentando, como trabalho escravo, prostituição e venda de órgãos humanos. O tráfico, que atinge principalmente as mulheres, se alimenta da pobreza, da ausência de perspectivas futuras, das multiformes práticas de discriminação e exclusão. A natureza não está à venda. A natureza precisa ser respeitada em seu todo e protegida como boa criação de Deus. Não pode ser que recursos essenciais, como água, ar, sementes originárias, espécies animais e vegetais diversos, por exemplo, deixem de ser um bem comum, público, para serem exclusivamente fonte de recursos para exploração e lucro privados. Precisa-se discernir o bem do mal nas leis e ações que permitem e possibilitam intervenções predatórias nos recursos naturais. Precisamos e podemos evoluir e desenvolver novos tipos de relacionamento com as outras formas de vida, que incluem respeito, dignidade e utilização N sábia e sustentável de recursos. PRESIDÊNCIA DA IECLB - Resumo do Texto Base para o Tema de 2016.

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TRAGÉDIA DE MARIANA

Ganância, destruição e sofrimento por Leonardo Ramlow e Luciano Ribeiro Camuzi

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A lama tóxica comprometeu o abastecimento de água de mais de meio milhão de pessoas nas cidades de Governador Valadares, Baixo Guandu, Colatina, Linhares e pequenos povoa­ dos adjacentes. A cidade de Colatina (ES), com cerca de 120 mil moradores, depende exclusivamente do rio Doce. A chegada da lama tóxica provocou desespero na população em busca de água potável. Com a captação de água interrompida, alguns estabelecimentos comerciais exploram na venda de água mineral. A presença do exército é necessária para manter a ordem de acesso à água mineral. Carros-pipa, puxando água de lagoas, e caixas d’água foram colocados à disposição no intuito de minimizar o sofrimento. Segundo informações de alguns órgãos ambientais, a recuperação do rio Doce pode estender-se por cem anos. Até o momento, a Samarco não apresentou um plano nitidamente esclarecedor e emergencial a respeito da salvaguarda da vida do rio que tranquilize as populações envolvidas. A degradação do ecossistema vem da insensatez e da sede pelo poder. Na corrida pelo lucro, não há

CENÁRIO DE MORTE: A destruição da vida ao longo do rio Doce é u

Fotos: Divulgação Novolhar

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or causa da seca que assola o Espírito Santo, esse estado enfrenta uma crise hídrica sem precedentes. A agricultura sofre com a falta de água e com queimadas. Rios estão secando, vegetação, animais aquáticos e terrestres estão morrendo. Os pequenos agricultores estão cada vez mais endividados. Devido à maior seca dos últimos 70 anos, o rio Doce chegou a registrar uma lâmina d’água de 10cm de profundidade. Soma-se a essa estiagem o drama que envolve a quinta maior bacia hidrográfica brasileira: o rompimento da barragem de dejetos de minério de Fundão, ocorrida em Mariana (MG), pertencente à mineradora Samarco (empresa da Vale e da anglo-australiana BHP Billiton). Capixabas e mineiros, perplexos, são obrigados a ver dizimado o que restou da biodiversidade castigada. Em torno de 50 mil toneladas de lama com rejeitos de mineração invadiram o rio Doce. Além de retirar do mapa o vilarejo de Bento Rodrigues (MG), ceifando vidas, o lamaçal contaminado desceu por vários municípios de Minas Gerais e Espírito Santo rumo ao Oceano Atlântico. Jan/Mar 2016 –> NOVOLHAR.COM.BR

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go do rio Doce é um cenário constante. Comunidades, cidades inteiras e a vida animal e vegetal sofrem

constrangimento e espaço para consternação diante de um amontoado de lama destruindo casas e vidas. Isso é o que experimentamos da insensibilidade humana, que nunca se cansa de exaurir todos os recursos naturais do planeta, destruindo-o desordenadamente. São escassas as lágrimas num coração corrompido pela ambição, mesmo diante da extinção da flora e da fauna aquática, que tem sido sufocada pela crosta de lama. Para uma multinacional, o que chorar diante de um rio que está morrendo ou diante de peixes e variados animais saindo da água para tentar sobreviver? Por isso urge clamar Kyrie Eleison. Enquanto a tragédia segue, vozes do fanatismo religioso atribuem o acontecido a sinais de punição divina e fim do mundo. São vozes fundamentalistas, distorcidas e apáticas de pessoas que optam pelo conformismo e por omitir-se diante da responsabilidade frente à degradação da natureza. O fanatismo esquece que somos cuidadores da criação. Situações como essa são frutos da ganância e da inconsequência humana. O ser humano é responsável pelo cuidado com a criação divina. Logo, somos culpados diante de Deus quando retiramos dela o direito de vida, pois destruí-la é pecado. N LEONARDO RAMLOW e LUCIANO RIBEIRO CAMUZI são teólogos e ministros da IECLB em Colatina (ES)

SOLIDARIEDADE: Ajuda veio de todo o Brasil e do mundo. Campanha da IECLB para as populações atingidas foi interrompida por conta do bom volume de depósitos. A IECLB, junto com as igrejas locais, lançou manifesto pedindo rigor na apuração das responsabilidades pela tragédia.

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CAMPANHA DA FRATERNIDADE

Casa Comum: nossa responsabilidade EM 2016, O CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS DO BRASIL (CONIC) PROMOVE A IVª CAMPANHA DA FRATERNIDADE ECUMÊNICA. por Romi Márcia Bencke

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uitos perguntam se uma campanha ecumênica ainda faz sentido. Aparentemente, o ambiente religioso brasileiro parece pouco propício para ações ecumênicas. Entretanto a natureza do testemunho ecumênico é colocar-se na contramão de todo tipo de proselitismo e exclusivismo salvacionista. Profeticamente, o testemunho ecumênico afirma que diálogo e testemunho conjunto são possíveis, apesar das adversidades e das vozes contrárias. O centro de toda experiência ecumênica é a fé em Jesus Cristo, que nos impulsiona a atuar em favor da unidade para que “todos sejam um, como Tu, Pai, estás em mim e eu em ti; que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que Tu me enviaste” (João 17.21). A IVª Campanha da Fraternidade Ecumênica tem como tema “Casa Comum, nossa responsabilidade”. O lema bíblico que orienta a campanha é: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” (Amós 5.24). O objetivo geral da IVª Campanha da Fraterni-

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dade Ecumênica é assegurar o direito ao saneamento básico para todas as pessoas e empenhar-nos à luz da fé por políticas públicas e atitudes responsáveis que garantam a integridade e o futuro da Casa Comum. Com isso a IVª Campanha chama a atenção para duas questões importantes. A primeira: o cuidado com a Criação, nossa Casa Comum, o lugar que habitamos. E a segunda: a provocação para refletir como estão estruturadas as nossas cidades, quem realmente tem acesso ao saneamento básico. O Brasil é considerado a oitava economia do mundo. Nosso país tem 20% da água doce do planeta, no entanto ocupa uma das últimas posições em saneamento básico. Aproximadamente 5 milhões de pessoas ainda não têm acesso a banheiro em casa. Apenas metade da população brasileira tem acesso à rede de coleta de esgoto. Diariamente são despejados em rios, lagos e outras áreas 61% de resíduos sem tratamento. Um quinto da população brasileira não recebe água tratada, enquanto 13% das casas dependem de açudes, caminhões-pipa ou mananciais. Os dados provocam

a reflexão sobre o tipo de desenvolvimento que está em curso no país. A IVª Campanha traz outra característica importante. Ela tem uma dimensão internacional. A Misereor, organização católica alemã, é parceira do CONIC nessa Campanha Ecumênica. Na Quaresma de 2016, a Misereor trabalhará junto às comunidades católicas alemãs o tema da IVª Campanha, chamando a atenção para o direito à água potável. Ao unirem-se, CONIC e Misereor chamam a atenção para os grandes desafios, em especial os relacionados aos direitos humanos e à justiça climática, que não podem ser superados e resolvidos por um país sozinho. Essa responsabilidade precisa ser assumida ecumenicamente, indo além das fronteiras geográficas e confessionais. Queremos que a Casa Comum seja usufruída por gerações futuras. Não queremos ser nós a geração responsável por colocar em risco a continuidade da vida no planeta. Portanto junte-se a nós nesta IVª Campanha. Levante o debate sobre os estilos de vida voltados ao consumo e busque informações sobre a política de saneamento básico em seu município. Divulgue que ter acesso ao saneamento básico é um direito humano básico. Queremos que a IVª Campanha seja um espaço ecumênico e seguro para falar sobre planejamento N urbano e rural. ROMI MÁRCIA BENCKE é teóloga e Secretária-Geral do CONIC em Brasília (DF)

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CARTAZ: Anderson Augusto de Souza Pereira é o autor da arte do cartaz da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2016. “Casa Comum, nossa responsabilidade” é o tema. O lema, por sua vez, baseia-se em Amós 5.24, que diz: “Quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca”. Ambos, tema e lema, foram definidos em uma reunião realizada em São Paulo entre os dias 4 e 6 de novembro de 2014, reunindo membros da Comissão da Campanha e representantes da Misereor.

Mais informações sobre a Vª Campanha da Fraternidade Ecumênica: www.conic.org.br Subsídios à disposição: Texto-base, CD, DVD, círculos bíblicos, rodas de conversa para juventudes, cartaz, caderno de celebrações ecumênicas. Os materiais podem ser adquiridos com desconto no site: www.edicoescnbb.com. br/cfe2016 Subsídios para crianças estão disponíveis em www.conic. org.br

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COMPORTAMENTO

Educar para a felicidade O QUE AS PESSOAS MAIS BUSCAM NA VIDA? O VELHO ARISTÓTELES FOI O PRIMEIRO A DAR A RESPOSTA: A FELICIDADE, MESMO AO PRATICAR O MAL. por Frei Betto

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busca da felicidade nasce do desejo, e o desejo deveria estar canalizado para o Absoluto. Mas a cultura consumista que respiramos induz-nos a canalizá-lo para o absurdo, e não para o Absoluto. Impinge-nos a falsa ideia de que a felicidade resulta da soma de prazeres – se tomar essa bebida, vestir essa roupa, usar esse perfume, possuir esse carro, fizer essa viagem, seremos felizes como atores e atrizes da peça publicitária, que exalam exuberante felicidade... Graças a Deus, o mercado não consegue oferecer um produto chamado felicidade. E é impossível saciar o desejo estimulado pela publicidade, e mesmo que pudéssemos comprar todas aquelas ofertas, não seríamos necessariamente felizes. Isso gera um enorme buraco no coração. E com o que parcela da juventude tenta preencher esse buraco? Com a droga. A droga é a consequência óbvia de uma sociedade que mercantilizou a felicidade e incute nas pessoas a falsa ideia de que ela reside na posse de bens materiais e em situações que exaltam a individualidade, como

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fama, beleza, poder e riqueza. Quem não alcançar tais ícones será o mais infeliz ou desgraçado dos mortais. A felicidade é um estado de espírito. Não costumamos ser educados para alcançar esse estado de espírito, e sim para ser consumistas. São dois seres antagônicos, conflitantes. Onde, então, encontrar a felicidade? Nos aditivos químicos? Dão momentaneamente bem-estar de consciência. Embora não seja durável, é melhor do que se deparar no espelho com esse ser execrável, incapaz de ser feliz, de estabelecer relações com pessoas, natureza, Deus e consigo mesmo. Ora, a escola tem que colocar, como finalidade, formar pessoas felizes, e não mão de obra qualificada para o mercado de trabalho. Cabe à escola interagir com o contexto em que vivemos. Uma grande empresa multinacional de auditoria financeira abriu em São Paulo 20 vagas para economistas com menos de 35 anos de idade. Apareceram 200 candidatos. Houve uma primeira seleção; sobraram 100. Ao entrar na sala, às 8h da manhã, o

A felicidade é um estado de espírito

instrutor disse: “Bem-vindos vocês que passaram na primeira seleção. Vamos agora à segunda. Antes de iniciar os testes, por favor, fiquem em pé todos aqueles que, hoje de manhã, não viram, ouviram ou leram noticiá­ rio no rádio, na TV, nos jornais ou na internet”. Mais da metade ficou em pé. "Muito obrigado! Os senhores e as senhoras podem ir embora”, disse o instrutor. “Mas por quê?”, reagiram alguns. “Não interessam à nossa

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CONSULTÓRIO DA FÉ

Por que Deus permite as tragédias?

Divulgação Novolhar

por Nilton Herbes

empresa profissionais indiferentes ao que ocorre no Brasil e no mundo, desconectados da realidade”. O papel da educação é conectar educandos e educadores com a rea­ lidade e imprimir às suas vidas o sentido de transformá-las para criar as bases da civilização do amor e da N justiça.

FREI BETTO é escritor e assessor de movimentos sociais. Extraído de www.adital.com.br

Quantas vezes ouvimos essa pergunta em meio às tragédias de nosso tempo? É geralmente a primeira reação, o primeiro impulso que temos na procura por um culpado. Ou seja: perguntar por que Deus permite que aconteçam tragédias que ceifam muitas vidas. Sentado num consultório médico, esperando minha vez para a consulta, estavam também duas mulheres, uma senhora idosa e sua filha. Na TV passava o programa “Mais você”. O tema era o temido mosquito Aedes aegypti e seu alastramento pelo país e suas consequências. Repentinamente, a mãe olha para a filha e pergunta: “O que Deus vai mandar mais ainda tudo?”. Ao que a filha calmamente responde: “Isso não é culpa de Deus, mas dos homens, mãe”. Sempre tive uma certa inquietação em empurrar para os outros a minha responsabilidade, o meu dever, os meus problemas... Será mesmo que Deus permite as tragédias? Ou há algo que não está sob a jurisdição de Deus? Através do livre-arbítrio nós, seres humanos, podemos fazer as escolhas que quisermos e, muitas vezes, fazemos as escolhas erradas ou não fazemos a nossa parte para evitar que ocorram tragédias. Não é só nas pequenas coisas que temos o poder de escolha e atitudes. Muitas ações erradas podem causar grandes transtornos. Não falemos só de Mariana ou de Paris; pensemos nas tragédias do nosso dia a dia em nossas cidades ou até em nossos lares. Antes de passar a bola da vez para Deus, gosto da ideia de assumirmos nós mesmos a nossa parcela de responsabilidade pelo que acontece no mundo. Quando somos irresponsáveis com a natureza, tendo a impressão de que tudo nos pertence e que podemos fazer o que queremos com a criação, e a destruímos, isso tem consequências, que podem causar tragédias. Quando não protestamos contra coisas erradas, as decisões dos poderosos podem causar tragédias. Quando praticamos a intolerância religiosa, isso provoca ódio na outra parte. Antes de questionar Deus por tudo, vamos perguntar: Por que permito que as tragédias ocorram? Qual a minha parcela de responsabilidade nisso tudo? N NILTON HERBES é teólogo, doutor em Tanatologia e professor da Faculdades EST em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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REFORMA 500 ANOS

Argula von Grumbach: teóloga e escritora por Claudete Beise Ulrich

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Em 1522, foi proibido na Baviera ler ou mesmo discutir qualquer texto ou ensinamento de Martim Lutero. Na Universidade de Ingolstadt, o jovem mestre Arsacius Seehofer, ex-aluno de Filipe Melanchthon, foi forçado a retratar-se publicamente por causa de suas ideias reformatórias. O mesmo foi banido para o monastério mais próximo. Em 7 de setembro de 1523, Argula escreveu uma carta à direção e aos professores da Universidade de Ingolstadt e outra ao regente Guilherme da Baviera, solicitando explicações

quanto ao afastamento do Prof. Seehofer. Argula sabia ler, escrever e tinha conhecimentos bíblicos. Argula afirmou: “E mesmo se viesse a acontecer que Lutero negasse tudo o que disse – que Deus não o permita –, isso não mudaria em nada a minha opinião. Eu não construo a minha opinião sobre a opinião de Lutero ou de qualquer outra pessoa, mas sobre a verdadeira rocha: Jesus Cristo”. Pessoalmente, ela não recebeu nenhuma resposta em relação à sua carta. Mas o poder político reagiu, e a

DEBATES: Argula escreveu cartas e teve conversas pessoais com os reformadores

Folha de Rosto do folheto com a carta de Argula à Universidade de Ingolstadt/Wikimedia Commons

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ontar histórias é sair do silêncio. É buscar entender a vida e a história através de outros olhares e perspectivas. A experiência das mulheres reformadoras foi silenciada e invisibilizada. Fazemos nossas as palavras do historiador Martin H. Jung: a Reforma não teria acontecido sem as mulheres. O nosso objetivo, nesta coluna, é visibilizar e tirar do silêncio histórias de mulheres reformadoras. Importante lembrar que as mulheres sempre estiveram envolvidas em movimentos de justiça e igualdade desde o movimento de Jesus. Argula nasceu como filha da família von Stauff. Ela nasceu em 1492 em Beratzhausen (Baviera) como filha de Bernhardin von Stauff e Katharina Thering, pertencentes a famílias nobres empobrecidas. Ainda menina, segundo o costume da época, foi enviada à casa de Alberto IV, regente da Baviera, para receber formação nobre junto com as três filhas do regente. O caminho para as meninas receberem educação era o convento ou serem acolhidas por algum parente nobre que oferecesse educação em sua casa para as suas filhas. Aos dez anos, ela recebeu do pai um presente raro e caro para a época: uma Bíblia. Seus pais faleceram em 1509 vítimas da peste. Em 1515, ela casou com Friedrich von Grumbach, de família nobre da região da Francônia. Ela foi mãe de uma filha e dois filhos. Jan/Mar 2016 –> NOVOLHAR.COM.BR

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DE OLHO NA CIDADANIA consequência foi que seu marido, que era católico, perdeu o emprego. Ele era uma espécie de governador de Dietfurt, uma região da Baviera. Os argumentos para que o marido de Argula perdesse o trabalho foram: “Ele não foi capaz de impedir que sua esposa escrevesse, enviasse e publicasse cartas defendendo ideias reformatórias”. Ela é reconhecida, a partir de pesquisas históricas, como uma das primeiras escritoras e teólogas protestantes. Ela escreveu cartas que foram publicadas, tipo panfletos, defendendo o ideal da Reforma Protestante com conhecimento teológico e citações bíblicas que apontam para a igualdade, por exemplo: Joel 2.27-28, Gálatas 3.27-28. E, dessa forma, também entrou em conflito com os poderes de sua época. Foram publicadas oito cartas de sua autoria, escritas provavelmente entre setembro de 1523 e outono de 1524. Ela também manteve correspondência e conversas pessoais com os reformadores. Martim Lutero reconheceu-a como “um instrumento especial de Cristo”. A Igreja Territorial da Baviera criou, há pouco tempo, uma fundação com o nome de Argula von Grum­ bach, com o objetivo de promover direitos iguais para mulheres e homens, bem como auxiliar nas discussões sobre as questões de igualdade e justiça de gênero no contexto da igreja e da sociedade. É realmente incompreensível que ela tenha ficado à margem da história, silenciada e invisibilizada, quando se estudam a sua história e suas cartas, que demonstram uma clara contribuição ao movimento da Reforma protestante. Ela foi uma verdadeira teóloga protestante, argumentou bíblica e corajosamente por mudanças na sociedade e na igreja N de seu tempo. CLAUDETE BEISE ULRICH é teóloga, doutora em Teologia e professora na Faculdade Unida em Vitória (ES)

Repúdio à violência contra as mulheres por Cibele Kuss Para Paulo Freire, educador brasileiro, cidadania é ter consciência crítica sobre a realidade. A cidadania forma-se nas relações sociais. São as pessoas, somos nós, é a nossa consciência que nos faz cidadãs e cidadãos ou objetos de manipulação e opressão. Na percepção de Freire, as pessoas podem ser sujeitos ou objetos no contexto em que estão inseridas. Somos sujeitos quando estamos em integração com a realidade social e buscamos participar de forma ativa e crítica. Pessoas na condição de objetos assistem ao que acontece, alheios e alheias à realidade histórica. Em todos os momentos em que participamos dos processos históricos somos sujeitos e estamos construindo cidadania. No dia 8 de abril de 2015, em Venâncio Aires (RS), mulheres da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (OASE) do Sínodo Centro-Campanha Sul promoveram uma caminhada em protesto à violência contra as mulheres, mobilizadas pelos crescentes casos de feminicídio, a exemplo do assassinato de Miriam Rosilene Gabe, morta a tiros pelo ex-marido no dia 22 de março de 2015 em frente à entrada do Hospital São Sebastião Mártir, quando pretendia realizar um exame de corpo de delito para comprovar a violência doméstica sofrida. As mulheres da OASE manifestaram profunda consciência crítica frente ao avanço da violência contra as mulheres. Araci Gerlach, presidente da OASE de Venâncio Aires, afirmou: “Não podemos calar quando a vida é pisada, maltratada, violentada. Deus quer que todos os seus filhos e filhas vivam uma vida abençoada” (Fonte: Folha do Mate). O Mapa do Feminicídio no Brasil, lançado no segundo semestre de 2015, revelou que 13 mulheres são assassinadas diariamente por maridos, namorados e ex-companheiros. A iniciativa da OASE de Venâncio Aires foi um manifesto público de cidadania que se constrói nas relações sociais, em que dor e solidariedade se materializam em consciência crítica que reivindica respeito e proteção às mulheres, que denuncia a existência de uma sociedade misógina, que com ódio mata mulheres todos os dias. A OASE testemunhou para a sociedade civil organizada e para as comunidades da IECLB sua firme posição de repúdio a todas as formas de violência contra as mulheres. Gestos de cidadania, a exemplo da caminhada, são possíveis e necessários. São ações concretas de consciência crítica que não nos deixam calar diante dos contextos de desigualdade e também colaboram para que pessoas possam sair da condição de objeto e manipulação ao dar-se conta de que o discurso que culpabiliza as pessoas afetadas e naturaliza a violência serve somente para manter as práticas machistas de controle e violência. Gratidão às mulheres da OASE de Venâncio Aires pela voz pública e profética! N CIBELE KUSS é teóloga e secretária executiva da Fundação Luterana de Diaconia em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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REFLEXÃO

O povo da cruz CERTAMENTE A PALAVRA DA CRUZ É LOUCURA PARA OS QUE SE PERDEM, MAS PARA NÓS, QUE SOMOS SALVOS, PODER DE DEUS. 1 CORÍNTIOS 1.18

por Flávio Weiss e Franciele Huwe Wergutz Weiss

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m nossos dias, a cruz tornou-se um objeto comum. Ela está em todas as partes. Tornou-se um objeto de decoração em muitas casas, no comércio e em repartições públicas. Ela se tornou um objeto banal, que passa despercebido em muitos lugares. Vemos tantas cruzes por aí, que nem mais nos damos conta do que ela representa. A Sexta-feira Santa lembra a cruz. A morte na cruz era o pior dos castigos que alguém podia receber. Ela era cruel, torturante e vergonhosa. Os romanos condenavam à cruz os traidores que se revoltavam contra o império e também os assassinos. A cruz era para os piores dos piores. Os judeus consideravam a morte na cruz uma maldição... E foi essa morte que Jesus, o Cristo, sofreu. Afinal, o que levou Jesus a ser condenado à crucificação? Os evangelhos dedicam um trecho especial para os últimos dias de Jesus, que Ele passou em Jerusalém. O evangelista João traz, a partir do capítulo 12, detalhes daquela última semana que inicia com a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém sob aclamação e termina na cruz. Os judeus esperavam que Ele fosse aquele que iniciaria uma revolta contra os romanos e os venceria com o poder

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da espada e, assim, restabeleceria o reino glorioso de Israel. Naquela semana, Jesus esteve rodeado por pessoas que queriam ouvi-lo e aprender com suas palavras. Pessoas que ouviram sobre amar os outros como a si mesmas; pessoas que aprenderam a estranha lógica em que o maior entre todos é aquele que se cinge com a toalha e lava os pés dos outros; pessoas que viram nele o amor incondicional, altruísta, que é capaz de ir às últimas consequências sem levar nada em troca. Ao mesmo tempo, também o rodearam pessoas que buscavam encontrar motivos para condená-lo. Jesus era considerado uma ameaça para os sacerdotes, pois questionava o sistema religioso; para os políticos, porque falava de um mundo de paz e igualdade; para os poderosos e religiosos, porque se sentiam ameaçados por suas palavras. A pior morte foi destinada àquele no qual não fora encontrado mal algum. Mas Cristo sabia que a cruz era a vontade de seu Pai. A cruz era seu objetivo desde o início. Assim, ele é conduzido sem questionar ou reclamar para o evento que transformaria a história do mundo. Lá no monte chamado Calvário, entre dois

criminosos, ouvindo xingamentos, traído, abandonado, torturado, ali está o Filho Unigênito de Deus, aquele que fora enviado para mostrar ao mundo o que é o amor. Na cruz, o Filho de Deus torna-se maldito por nós. O justo é feito maldito para que os malditos pudessem viver. Na cruz, Deus realiza uma maravilhosa troca; aquele que era sem pecado toma sobre si os pecados da humanidade para que nós tenhamos o perdão. Nós também estávamos condenados, presos em nossos delitos e pecados, separados de Deus. No entanto, o cas-

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DEPOSIÇÃO DA CRUZ: Obra do pintor gótico flamengo Rogier van der Weyden (1400-1474). O extremo sofrimento das pessoas próximas a Jesus e a própria dor do crucificado tornam-se objeto de decoração em catedrais, igrejas, palácios e casas simples. É a loucura da dor que se torna salvação.

tigo que nos trouxe a paz estava sobre Ele; por suas feridas nós fomos sarados. Para aqueles que não creem é loucura, mas para aqueles que foram chamados essa mensagem da cruz é salvação. Vivemos em uma época em que a cruz se tornou objeto de decoração muito mais do que lembrança de salvação. Isso porque temos tirado da memória o que ela significa. No entanto, ainda há aqueles que ousam ser conhecidos como o “povo da cruz”. No Oriente, temos acompanhado a maneira cruel como cristãos vêm sendo assassinados. Mesmo assim, eles não abandonam sua fé porque creem sem hesitar nesse Deus que demonstrou amor tão loucamente a ponto de que a cruz fosse o ápice dessa demonstração, creem no Deus que não hesitou em fazer o impossível para que pudéssemos ter o perdão e a salvação. A perseguição dos extremistas é declarada a esse “povo da cruz”; mesmo assim, eles não abrem mão de carregar esse nome e viver essa fé. Para a maior parte do mundo, é loucura, mas para aqueles que creem, é poder N de Deus. FLÁVIO WEISS e FRANCIELE HUWE WERGUTZ WEISS são teólogos e ministros da IECLB em Cacoal (RO)

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ESPIRITUALIDADE

Rir ainda é o melhor remédio QUANDO FOI QUE VOCÊ CONSEGUIU DAR UMA BOA GARGALHADA? AS PESSOAS COM QUEM VOCÊ CONVIVE DESCREVEM VOCÊ COMO UMA PESSOA ALEGRE? por Geraldo Graf

C

erta vez, presenciei um fato inusitado: durante o velório de uma pessoa, um neto assobiava ruidosamente sem parar e criticava as pessoas que choravam: “Vocês não têm fé! Quem já é salvo não precisa mais chorar”. Aquele jovem segurou o choro e escondeu o sentimento porque achava que um cristão deveria sorrir sempre, pois lera em Filipenses 4.4: “Alegrai-vos sempre no Senhor!”. O choro seria falta de esperança pela vinda do Senhor Jesus. Como cristãos, podemos externar sentimentos de tristeza e dor? Afinal, não é fácil segurar aquilo que nos angustia. Em Romanos 12.15, o apóstolo Paulo recomenda a solidariedade com as pessoas: “Alegrem-se com os que se alegram e chorem com os que choram”. Um sentimento não se finge. Paulo fala de uma alegria interior. Ele incentiva os cristãos a expressar sua fé e sua esperança através da alegria. Ele não impede que se chore quando há tristeza nem sugere uma alegria hipócrita no meio da dor.

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Trata-se de uma alegria que nos deixa soçobrar em meio às dificuldades e aos sofrimentos. O apóstolo aponta para a alegria do testemunho e da prática da vida cristã, tal qual fizeram os primeiros cristãos quando foram jogados aos leões nos circos romanos do primeiro século. Em contrapartida, quando o povo de Jerusalém foi deportado para a Babilônia (586 a.C.), ele perdeu uma grande oportunidade de dar testemunho de sua fé ao negar o cântico de alegria (Salmo 137.1-4). MAIS DO QUE EMOÇÃO – A alegria é uma felicidade do coração. Alegria é mais do que uma emoção; é, antes de tudo, um estado de espírito. Qualquer pessoa pode alegrar-se quando as circunstâncias são favoráveis, mas a alegria, que é fruto do Espírito (Gálatas 5.22), não é resultado de circunstâncias terrenas. Ela brota de nosso relacionamento com o Senhor e as preciosas promessas que Ele nos deu através de Jesus Cristo. No mundo existem muitas alegrias. Porém são passageiras, porque dependem das

circunstâncias. A alegria do ter (posses), do parecer (status) e do prazer (divertimento) não é duradoura. Ela cessa quando faltam essas cousas. Geralmente as pessoas estão acostumadas com uma alegria palpável, que tem uma razão de ser objetiva. Já a alegria interior, a alegria no Senhor, é perene. Nada e ninguém podem tirá-la de nós. Podemos expressá-la, mesmo sob lágrimas e dor. A alegria cristã pode coexistir com o sofrimento. A alegria cristã pode coexistir com a tristeza. O cristão sabe que é amado por Deus. Sua vida está sob esse amor. Por isso ele é uma pessoa

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alegre. Com essa alegria podemos verdadeiramente consolar uns aos outros. Só assim seremos autênticos naquilo que falamos e expressamos. Voltando à pergunta inicial, faz bem poder dar boas gargalhadas, sobretudo poder rir de si mesmo. Este também é um aspecto da alegria cristã: alegrar-se no Senhor e poder alegrar as pessoas. RIR DE SI MESMO – Nesse sentido, compartilho outra situação inusitada que me faz dar gargalhadas até hoje: Dona Genoveva (nome fictício) fraturou o fêmur. Fratura exposta, hospital e cirurgia. Ela

era membro de uma comunidade no interior do município. Como eu celebraria culto em sua comunidade, passei antes no hospital para ver como ela estava e, assim, levar as últimas novidades para a comunidade. Encontrei dona Genoveva sentada na cama, vestida para voltar para casa. “Pastor, eu recebi alta. Estou aguardando meu esposo me buscar. Dê meu abraço à comunidade”. Com essa boa notícia parti para a comunidade. Chegando lá, peguei um “rabo de conversa”. Disse a primeira pessoa: “A fratura foi terrível”. Perguntou a segunda: “Será que sobrevi-

ve?”. Replicou a primeira: “Acho que não passa de hoje...”. Imediatamente interrompi o diá­ logo e comuniquei: “Eu estou chegando do hospital. Ela já foi operada e passa bem. Já recebeu alta e manda um grande abraço para todos vocês”. Espantadas, as pessoas perguntaram: “Pastor, você está falando de quem?”. Respondi: “Eu estou falando da dona Genoveva. E vocês?”. “Nós estamos falando de uma vaca que caiu da pedra”, responderam. N

GERALDO GRAF é teólogo e pastor sinodal do Sínodo Sudeste da IECLB em São Paulo (SP) NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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PENÚLTIMA PALAVRA

Programas como o “Teleton” exibem à exaustão exemplos de pessoas que, apesar das suas dificuldades físicas, são capazes de realizar feitos extraordinários.

A perversidade da superação por Viegas Fernandes da Costa

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m 2001, Frei Betto publicou no Correio da Cidadania um artigo no qual propôs que as pessoas com deficiência fossem chamadas de “Portadoras de Direitos Especiais” (PODE). A intenção da proposta de Frei Betto era dar visibilidade às capacidades das pessoas com deficiência e não defini-las por aquilo que eventualmente lhes faltasse. Ainda que bem-intencionada, a proposta foi rechaçada pelas entidades que discutem os direitos e a inserção da pessoa com deficiência, justamente porque incorria no erro de mascarar a realidade e construir aquilo que Romeu Kazumi Sassaki, em artigo publicado em 2010 na Revista Nacional de Reabilitação, chamou de “nomenclatura eufemística”. Eufemismo é uma figura de linguagem que procura amenizar o peso

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negativo de uma palavra. Quando digo que alguém “partiu” ao invés de “morreu”, lanço mão de um eufemismo que, de qualquer modo, não devolverá a vida ao morto. O mesmo serve para a pessoa com deficiência. Negar sua realidade não servirá para promover sua inclusão social. Essa somente será efetiva a partir do momento em que a sociedade perceber que pessoas com deficiência existem e que não são mera exceção, que reconhecê-las é principalmente construir as condições para sua autonomia. Afinal, a pessoa com deficiência não quer ser empurrada, mas estar em plenas condições de seguir livremente seu caminho. Para além da nomenclatura eufemística, há ainda outro discurso sobre a pessoa com deficiência que pode, muitas vezes, soar perverso: o

discurso da superação. Não raramente, vemos na televisão exemplos de superação. Pessoas que, a despeito das suas dificuldades físicas, são capazes de produzir feitos extraordinários. Programas como o “Teleton” exibem à exaustão esses exemplos. O telespectador é levado à emoção conhecendo histórias de pintores que não possuem os braços, de atletas cadeirantes, do paraplégico que ousou saltar de paraquedas. Ainda que contagiantes, a exaustiva repetição dessas histórias de vida cria a perversidade do estereó­ tipo. A exceção é transformada em regra e o exemplo algo a ser imitado. Entretanto não se pode exigir da pessoa com deficiência que se supere, senão que viva sua vida como uma pessoa comum, do mesmo modo que não esperamos que qualquer pessoa que possua duas pernas saudáveis seja capaz de correr uma maratona. Não é porque existe um Stephen Hawking que se pode esperar que todo sujeito com esclerose lateral amiotrófica seja um exímio físico teórico. O discurso da superação transfere para a pessoa com deficiência a obrigação de ser notável. De ser especial não por sua condição humana, mas porque superou seus limites a despeito da dor e da sociedade. Transforma-a em uma espécie de herói, quando, na realidade, essa deveria ser respeitada por sua humanidade, garantindo-lhe os direitos e a acessibilidade que lhe permitam seguir na vida como qualquer cidadão. Tal qual o eufemismo de um “Pode”, o culto à superação não promove inclusão. Muito pelo contrário. Nem todos podem, tampouco todos querem. E a sociedade precisa comN preender isso. VIEGAS FERNANDES DA COSTA é historiador, escritor e professor do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) em Imbituba (SC).

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Quando nos fizerem perguntas como estas, devemos responder com seriedade e conhecimento sobre cada assunto. Está obra escrita pelos especialistas em apologética Norman L. Geisler e Ronald M. Brooks é uma excelente ferramenta para os que buscam argumentar sobre questões intelectuais reais, referente a fé cristã. Os leitores descobrirão respostas para acusações clássicas ao cristianismo e aprenderão a identificar e responder ao mau uso da Escritura pelos não-crentes.

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