Ao leitor
Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Walter Altmann Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Leslie Dietrich, Marcelo Schneider, Marguit Goldmeyer, Ricardo Fiegenbaum e Walter Altmann. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Roberto Soares, sobre foto 651105| DC| © Índex Stock Imagery LatinStock Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Camila Lucchesi, Carlos H. M. Gothchalk, Claudete B. Ulrich, Donário Bencke, Edelberto Behs, Eliana C. Xavier, Eliane Z. Souza, Ema M. D. Cintra, Ezequiel de Souza, Glaucia Fontoura, Ingelore S. Koch, José M. Gonçalves Filho, Juliana Leite, Lúcia R. B. Pereira, Luciana Reichert, Paula Oliveira, Rui Bender, Silvana I. Francisco e Silvio Meincke.
Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 25,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
Sociedade mais justa
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H ISTÓRIA DAS ESCOLAS FUNdamentais do Brasil, públicas ou particulares, o tema da escravidão é tratado de modo resumido e asséptico. Não há contato com a injustiça, a exclusão e a real situação dos afro-descendentes no Brasil. Poucos sabem quem foi Zumbi. A maioria considera a princesa Isabel uma heroína. Que sua caneta apenas selou o que era incontornável e que seu pomposo gesto caiu no vazio diante de uma maioria de escravos já livres pela alforria ou abrigados em quilombos não está nos livros nem na memória histórica dos brasileiros. A luta do senador Paulo Paim demonstra bem o outro lado dessa moeda: ele lançou no Congresso o Projeto de Lei 225/07, que institui o ano de 2008 como “Ano Nacional dos 120 anos de abolição não-conclusa”. Os movimentos negros já caminharam muito, lutaram até a exaustão e continuam em busca de cidadania, igualdade racial, espaço equilibrado para essa população que ajudou a construir o Brasil de forma decisiva, mas ainda não levou a sua parte. As reportagens de capa desta edição dão a palavra à importante parcela afro-descendente de nosso país. NOVOLHAR junta-se a ela na dura conquista de uma sociedade mais justa e igualitária. Em 2008, também são lembrados os 60 anos da criação do Conselho Mundial de Igrejas, os 50 anos da instituição das entidades Pão para o Mundo e Misereor, bem como o centenário da imigração japonesa no Brasil, o país que abriga a maior colônia nipônica do mundo (que inclusive tem duas comunidades luteranas em São Paulo). Junte-se às comemorações também o centenário da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos e temos muitos motivos para enriquecer nossa visão de solidariedade e engajamento. Boa leitura. AS AULAS DE
Equipe da Novolhar
ANO 6 - NÚMERO 21 - MAIO/JUNHO DE 2008
CAPA 14 IDENTIDADE EM CONSTRUÇÃO Os 120 anos de abolição e a realidade dos herdeiros de Zumbi 16 Algumas estratégias de luta Houve um longo processo de construção de estratégias através de diferentes organizações negras no Brasil
19 Discriminação racial Mito da democracia racial fechou os olhos ao problema
21 Racismo disfarçado de negligência A população negra tem pouco acesso à saúde pública
O pinião do leitor DINHEIRO Li o número de março/abril 2008 com o tema principal do dinheiro. Tudo muito bem elaborado. No entanto, quero sugerir uma continuação ou complementação. A revista poderia ter estendido melhor alguns assuntos. Como fica o dinheiro na Bíblia? Como é a contribuição não apenas na IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil), mas também em outras igrejas, com dízimo, imposto eclesial etc? Como deve ser considerado o membro contribuinte: o chefe de família ou a pessoa individualmente (ver Código Civil Brasileiro)? Como ficam as diversas instâncias administrativas que não podem exercer suas atividades sem ter meios financeiros? O Caminho publicou que a EST (Escola Superior de Teologia) está em grandes dificuldades e comunidades, paróquias,
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22 Ponha-se no seu lugar! Uma frase a serviço da discriminação que ensina a subserviência
24 Em busca da igualdade A luta do senador Paim pela igualdade racial no Brasil
26 Escravidão é culpa de todos Pastor luterano de Angola fala da cicatriz da era escravista
28 Ação afirmativa ou discriminação? Assunto polêmico, as cotas dividem opiniões
30 Aprendendo com a diferença Respeito às diferentes crenças com base na igualdade
sínodos e a direção geral da IECLB certamente devem ser bem elásticos e bem responsáveis no trato com suas finanças. Agradeço, na minha qualidade de ex-tesoureiro e auditor aposentado (86 anos). Georg Karl Albert Fuchs – por e-mail Belo Horizonte (MG) Fiquei muito feliz com o último número da Novolhar. Há dois anos venho me debatendo com essa questão do dinheiro. Sinto necessidade de ajudar principalmente as novas famílias, fornecendo uma orientação quanto à gestão do dinheiro. Agora vai sair do papel o sonho de proporcionar um encontro com os casais que casaram nos últimos anos, que batizaram e que estão envolvidos no ensino confirmatório. Estou compartilhando isso com vocês, pois até agora não sabia onde encontrar parceiros para esse trabalho. Vi uma luz através desse exemplar: na Luterprev, na revista Novolhar e nos autores dessas reportagens. Pos-
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OUTROS ASSUNTOS
PRÓXIMA EDIÇÃO
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FAMÍLIA E PATERNIDADE
Espelhos Aleijadinho, pregação em pedra Reflexão Uma conversa com Deus Notas ecumênicas Os 60 anos do CMI Imigração japonesa Um século no Brasil Saúde O cigarro e o aquecimento bucal Desenvolvimento Pão para o Mundo e Misereor: 50 anos Comportamento Desligar para relaxar e dormir bem Atitude A importância da auto-estima para a psicologia Inclusão social O turismo e os portadores de deficiências Conto Carlos Drummond de Andrade presenteia sua mãe Espiritualidade Um século de orações pela unidade Penúltima palavra As línguas e a identidade de um povo
so contar com vocês nessa caminhada? De uma ou de outra maneira, vocês podem continuar nos ajudando, pois já ajudaram. João Bartsch – por e-mail Braço do Trombudo (SC) PESSANKAS UCRANIANAS Gostei do artigo sobre ovos de Páscoa dos ucranianos. Nasci em 1923 na Ucrânia, como descendente de imigrantes alemães que durante 200 anos preservaram suas tradições, línguas (estou incluindo o dialeto que se parece com o pomerano) e religião. Vim com pais e irmãos ao Brasil em 1930. Vivemos primeiramente no império da Rússia e depois na URSS comunista, quando mudou tudo lá completamente. Entre outras coisas, foi proibido aos ucranianos pintarem ovos, pois era coisa da religião. Anteriormente, a família se reunia, os velhos contavam histórias e os jovens pintavam os ovos. Esses eram depois levados à igreja na festa da Páscoa e abençoados pelo
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O sentido da família na sociedade. Os desafios de ser pai na atualidade.
Participe da enquete! A NOVOLHAR quer saber sua opinião. Visite o site www.novolhar.com.br e ajude-nos a melhorar a revista. Participe. Cartas para: novolhar@editorasinodal.com.br Todos os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar.com.br
padre ortodoxo. Depois eram dados de presente; isso significava amor e carinho e anunciava que Jesus ressuscitou. E todo o mundo, na Ucrânia e em toda a Rússia, dizia então: “Jesus ressuscitou” e a resposta era: “Ele de fato ressuscitou!” Com a proibição da pintura de ovos, o clima ficou frio, quer dizer, o convívio familiar. Com o colapso do comunismo depois de 80 anos, os ucranianos de lá lembraram-se de que seus parentes no Brasil ainda sabiam pintar os ovos de Páscoa de forma tão artística, o que eles mesmos não tinham conseguido preservar. Foi restabelecido o contato verbal e pessoal, e assim foi reintroduzida a arte de pintar ovos na própria Ucrânia. E o calor humano voltou a reinar naquele país, onde a arte dos ovos voltou a ser espalhada. Durante nossa permanência no estado do Paraná, sabíamos e visitávamos a exposição desses ovos na biblioteca pública de Curitiba. Lidia Fuchs – por e-mail Belo Horizonte (MG)
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Espelhos
Pregação em pedra e madeira
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IAJANDO POR MINAS GERAIS, SOMOS
confrontados com sermões feitos em pedra e madeira. O pregador que se aproxima de nós não foi ordenado. Seu nome é Antônio Francisco Lisboa. Nasceu bastardo e escravo, filho do português Manoel Francisco Lisboa. Sua mãe era Isabel, escrava do pai, angolana, da etnia banto. O local de seu nascimento é Vila Rica. Ao ser batizado, em 29 de agosto de 1730, Antônio foi alforriado pelo pai e viveu na casa dele por oito anos. Quando seu pai casou, teve que deixar seu convívio, mas continuou com ele e um tio o aprendizado de arquitetura, cantaria e talha. Aprendiz, depois mestre, adquiriu conhecimentos em leitura, escrita, matemática, arquitetura, cantaria, carpintaria e escultura. Era muito para o Brasil da época. Já adulto, Antônio participou de uma irmandade dos homens pardos pobres, carpinteiros. Aos 47 anos, começou a sofrer de uma doença até hoje não completamente esclarecida. Não era lepra, como foi afirmado muitas vezes. Lepra teria significado seu afastamento do convívio humano – o que não aconteceu. Antes da doença, sua produção já era preciosa, mas enquanto essa progredia, ela se tornou impressionante. Antônio teve uma espécie de reumatismo deformante, o que fez com que tivesse o corpo progressivamente encurvado, paralisia das extremidades e endurecimento das articulações. Mãos e dedos endurecidos dificultavam o trabalho com o cinzel. Por isso ele mandava atar o cinzel e o martelo aos punhos. As dores eram tão terríveis que, conta-se, preferiu amputar os dedos. Encurvado, impossi-
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Esculpidos entre 1800 e 1805, cada um dos profetas segura em suas mãos uma cartela com uma frase latina, que num crescendo cai sobre nós com frases violentas
Clésio da Gama
Martin Norberto Dreher
bilitado de ficar em pé, mandou colocar couro e madeira nos joelhos para suavizar o contato com o solo. No fim de sua vida, Antônio sofreu um derrame, teve inflamação nos olhos e também perdeu os dentes. Por isso um de seus últimos trabalhos chora aquela situação. Num alto-relevo na igreja de Nossa Senhora do Carmo, ele entalhou as seguintes palavras: “Satanás, pois, tendo saído da presença do Senhor, feriu Jó com uma chaga horrível, desde a planta do pé até o alto da cabeça” (Jó 2.7). Aleijadinho, alcunha de Antônio, conhecia a Bíblia muito bem. Seu corpo repousa ao pé do altar de Nossa Senhora da Boa Morte, na igreja matriz de Antônio Dias, em Ouro Preto (MG). Em sua obra, Aleijadinho acentua a efemeridade da vida e a necessidade do desapego aos valores terrenos. A região em que nasceu, produziu e morreu sofreu muita opressão. É a terra da Inconfidência Mineira. Quatro anos antes de Aleijadinho esculpir seus profetas e a via-sacra de Congonhas do Campo, Tiradentes fora executado e seus companheiros exilados. Entre 1796 e 1799, Aleijadinho narra a história da Paixão no conjunto dos Passos, representando a Ceia, a Agonia no Horto, a Prisão de Cristo, a Flagelação e a Coroação de Espinhos, a Subida ao Calvário e a
Crucificação de Cristo. Quando esperamos ver a cruz erguida com o Cristo crucificado na marcha ascendente, pois subimos até o alto da colina, olhando os Passos, doze profetas esculpidos em pedra-sabão interrompem nossa caminhada. Esculpidos entre 1800 e 1805, cada um dos profetas segura em suas mãos uma cartela com uma frase latina, que num crescendo cai sobre nós com frases violentas. Cada um deles sofreu o martírio, foi acusado de sedição, expulso do país, oprimido por potências: Assíria, Babilônia, Caldéia e Edom oprimiram o povo de Deus. Os profetas devem, por outro lado, consolar os desterrados: “Consolai, consolai o meu povo...”. Após passar pelos profetas, ouvi-los, denunciando e consolando, vemos no portal da igreja a coroa de espinhos. No lugar da cruz, que deveria ter feito parte dos Passos, Aleijadinho colocou profetas. Da cena do crucificado ficou a coroa. Doze profetas inconfidentes denunciam toda a maldade humana, também denunciada pela cruz. Só depois de passar pela cruz e pela denúncia pode-se entrar no templo e contemplar. O autor é teólogo e professor de História na Unisinos em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
Olhar com humor
D ica cultural E stá na agenda Boff e LuteroT, de São Leopoldo (RS), promove de
A Faculdades ES Boff e a Teoinário sobre Leonardo 12 a 16 de maio um sem o Leopoldo Sã em te a estada de Boff logia Protestante. Duran io Sinodal, lég Co do o óri maio, no audit acontece, no dia 14 de O cosmos e a público sobre o tema: uma palestra aberta ao no mesmo -se te, 15 de maio, realiza teologia. No dia seguin de Doutor lo títu do ga imônia de outor auditório, às 20h, a cer la Faculdades f. Dr. Leonardo Boff pe Honoris Causa ao Pro es: www.est.com.br EST. Maiores informaçõ
nodal Congresso da Redeal Si m de Educação participa
Sinod Educadores da Rede no Colégio , de 22 a 24 de julho, de Re da so res , a escola do 27º Cong de ida Bom (RS). Na oportun profesTiradentes em Campo za bili mo so res 0 anos. O cong ere anfitriã comemora 18 s e faz s na a: Saberes: entre dizere sores em torno do tem hamentos, ofivê palestras, compartil escola. O programa pre muitas emoo, ud ret educadores e, sob de os ntr nco ree , as cin para e sobre a olhares serão lançados ções e reflexões. Novos inf orm aç õe s: rsp ec tiv as . Ma ior es ed uc aç ão e su as pe s.com.br nte de br - www.sinodaltira www.redesinodal.com.
O site das frutas Abiu, bilimbi, cagaita, guabiroba e mangaba são frutas desconhecidas de muita gente. Essa lista é extensa e surpreende pela quantidade que a natureza oferece como alimento para as pessoas. No site www.todafruta.com.br estão reunidas informações sobre uma enorme lista de frutas. São informações sobre a característica de cada uma, novidades de pesquisa, pragas e doenças, produção e outras informações, algumas curiosas. Além disso, o site informa ainda sobre associações e cooperativas, dicas nutricionais, poder curativo das frutas, receitas e notícias. Há também indicação de livros, como por exemplo o Dicionário das Frutas, que tem informações sobre 750 frutas e 80 famílias de frutíferas. Visite esse site das frutas e descubra a riqueza e a diversidade da natureza. Quem sabe, você acaba se interessando por plantar em seu quintal ou sítio alguma variedade de frutíferas que não conhecia até o momento. O sabor e o valor nutritivo das frutas nem sempre são de nosso conhecimento.
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Reflexão
Uma conversa com Deus “O que vou fazer então? Vou orar com o meu espírito, mas também vou orar com a minha inteligência: vou cantar com o meu espírito, mas também vou cantar com a minha inteligência.” 1 Coríntios 14.15
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ESDE CRIANÇA APRENDI QUE UMA
pessoa cristã ora diariamente a Deus. Porém, nos últimos tempos, várias situações me fizeram refletir. Um confirmando disse: “Eu não me lembro da última vez que agradeci a Deus pelo que tenho. Só me lembro de ter orado antes do almoço promovido pela comunidade no mês passado”. Por telefone, alguém chama o pastor dizendo: “Venha ao hospital orar por meu pai. A sua oração é mais forte”. Aos gritos, um homem segurava a cabeça de uma mulher idosa e dizia frases invocando o Senhor, enquanto outras choravam, clamavam ou assistiam a tudo indiferentes. A oração mudou? Depende da forma, do sujeito? Ou ela nem é mais necessária? Vivemos na era da comunicação instantânea. Jovens e adultos comunicam-se diariamente com amigos, familiares e desconhecidos. Qual o motivo que tem levado as pessoas a se desinteressar pela comunicação pessoal com Deus ou transferi-la a quem “sabe melhor”? Seria a falta de hábito? Não lhes foi ensinado? Oração como meio mágico para resolver emergências? Minha filha está fazendo o estágio do Curso Magistério nas séries iniciais. As crianças não têm mais do que dois anos. A 8
maioria delas apenas balbucia algumas sílabas. Depois de dois meses de convívio, sua maior alegria foi quando uma delas a chamou pelo nome. Era a certeza da resposta do afeto dessa criança. Assim é com a oração a Deus. Para a Bíblia, orar é a primeira atitude da pessoa que se sabe amada, acolhida e dignificada por Deus. É a primeira obra que o Espírito Santo faz em nós: a necessidade de manter comunhão com Deus e, em conseqüência, cuidar de tudo o que é seu, de toda a sua criação. Nossa salvação não depende da maneira como oramos. Deus já fez tudo por nós em Jesus Cristo. Oração é o reconhecimento dessa atitude salvadora e a entrega de corações frágeis, sedentos e temerosos que necessitam e recebem ânimo, amparo, comunhão e coragem para viver essa redenção, agindo neste mundo. Por Deus nos ter tornado seus filhos e filhas, precisamos aprender a viver e a falar como seus filhos e filhas, com todos os nossos dons, habilidades e inteligência. Em muitos templos, hoje em dia, temos visto a oração ser usada, aos gritos coletivos, como um meio de persuadir o Espírito Santo a querer o que as pessoas querem ou para impressionar os presentes. Porém oração é a maneira pela qual Deus nos ensina
Divulgação/Novolhar
Aneliese Lengler Abentroth
A prática da oração é comunhão. Tem a ver com gestos de
a querer o que Ele quer. Deus ouve o nosso clamor, mas não é um deus-supermercado, que tem uma mercadoria conforme o poder de barganha de cada freguês. Ore com toda a sinceridade, com todo o seu espírito, mas também com toda a inteligência, diz o texto bíblico. Temos repetido que a oração que Jesus ensinou a seus discípulos é a oração mais bonita e mais completa. Nela nos tornamos o sujeito que pede, mas não pedimos por nossa causa individual. O pedido é por todos e para todos, bons e maus. Oramos pelas situações bem concretas e presentes: por partilha, por pão em todas as mesas, por trabalho, por vida digna, por perdão (não só moral, como tamNOVOLHAR – Maio/Junho 2008
Claudete Beise Ulrich
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ALLY,
solidariedade
bém de dívidas), pela superação de todo tipo de violência, pela vitória sobre o mal. Pedimos que o reino de Deus venha a nós, pois necessitamos disso. E como ensinou o reformador Martim Lutero no Catecismo Menor: “O reino de Deus vem por si mesmo sem a nossa oração. Mas pedimos que ele venha também a nós”. Nós cremos e esperamos pelo reino de Deus. Deus quer salvar o mundo (João 3.16). Mas isso não é mágica. Portanto a oração nos quer ajudar a fazer aquilo que pedimos a Deus. Ela quer nos apontar os caminhos para as mudanças necessárias, as decisões e ações sábias. É o Espírito Santo que nos leva à oração e à ação em favor do próximo, de um munWWW.NOVOLHAR.COM.BR
do melhor. Creio que a oração tem se tornado desnecessária na vida das pessoas por falta de paixão. Apaixonados querem contato constante, diálogo com interesse, com cumplicidade. Apaixonados alegram-se em fazer aquilo que deixa o outro feliz. A oração necessita desta paixão: do amor de Deus. Responder a esse amor é chamar, dizer o seu nome. Assim como uma criança é capaz de fazer quando percebe que é amada. Nós jovens, adultos, idosos necessitamos reaprender a orar com espírito e com inteligência. A autora é teóloga em Horizontina (RS)
83 ANOS, FICOU MAIS DE três anos acamada, sofrendo da doença de Alzheimer. A família precisou conhecer mais sobre a doença para cuidar melhor de sua enferma. Como comunidade cristã nós a visitamos várias vezes. Tínhamos momentos de oração, de imposição de mãos, de bênção. Orávamos também a oração do Pai-Nosso. Muitas vezes durante a visita, Wally ficava totalmente em silêncio. Na oração do Pai-Nosso, no entanto, a sua memória de fé a fazia orar junto conosco. Depois da oração, sempre vinha um singelo “muito obrigada”. Percebi a importância da memória da fé. A oração do Pai-Nosso repetida tantas vezes durante a vida de Wally estava selada em seu ser. Alfredo, jovem, é aluno do curso de História da Universidade Federal de Santa Catarina. Ele participa da disciplina tópico especial “história, religião, gênero e teologia feminista”, a qual leciono neste primeiro semestre de 2008 como parte do meu projeto de pós-doutorado. Ele relatou, em sala de aula, a importância do abraço da família e da oração do Pai-Nosso em um momento de total desespero. Alfredo reside no Balneário Gaivota (SC), atingido por um furacão em 2003. Alfredo compartilhou: “Foi uma experiência de desespero, que deixou todos com muito medo. Começou a ventar muito forte, também chovia muito. Ficamos apavorados. Minha mãe ficou tomada pelo pânico. Procuramos o lugar mais seguro da casa para nos proteger. O primeiro momento do furacão foi de uma 1h 15min. Houve uma calmaria de uns 20 minutos. Depois começou novamente a ventar com mais força. Mais 1h 45min de ventos muitos fortes e chuva. No total foram três horas. Minha mãe disse em certo momento: Se piorar, cada um terá que procurar um lugar para se proteger sozinho. Foi nesse momento que meu pai nos abraçou. Nós nos abraçamos como família e começamos a orar alto e fortemente a oração do Pai-Nosso. Foi esse momento, o gesto do abraçar e a oração em conjunto do Pai-Nosso, que deu forças para recomeçarmos a nossa vida no dia seguinte”. 9
Notas ecumênicas
Essas duas histórias apontam para o “poder simbólico” (Bourdieu) da prática da oração. O poder da oração mostra-se em nossa fraqueza. Essas vivências de oração são como um espelho, refletindo sobre a nossa prática de oração. É interessante perceber como a oração ensinada por Jesus, em resposta ao pedido dos discípulos: “Ensina-nos a orar...” (Lucas 11.1), perpassa diferentes culturas, situações de existência, gerações e tradições religiosas. É uma oração que faz parte da memória da fé cristã. O cristianismo é uma religião da memória, encarnado no cotidiano histórico da existência. A oração do Pai-Nosso é comunitária, inclusiva e fala de Deus de forma familiar: em grego Abba significa paizinho querido. Ela traz imagens da proximidade de Deus. Deus é também como uma mãe que consola seus filhos e filhas (Isaías 66.13). Lutero afirma no Catecismo Menor que “Deus quer atrair-nos carinhosamente com estas palavras”. Não é possível orar o Pai-Nosso sem se solidarizar com as pessoas empobrecidas. Pedir pelo pão nosso é orar pela vida digna para todas as pessoas. Pedir perdão pelas dívidas é ter presente a situação de empobrecimento das pessoas e dos países do Terceiro Mundo. A prática da oração tem a ver com a vida concreta; com gestos de solidariedade, com a diaconia. É necessário visitar os doentes. A prática da oração é comunhão. É preciso abraçar a família no cotidiano, os amigos para nos momentos difíceis ter forças para recomeçar a jornada. Na oração nos encontramos e reencontramos com o Deus da Vida. Deus nos abraça na oração. Em seus braços nos sentimos fortalecidos, orientados. Diante dos muitos sofrimentos de nosso mundo, de desigualdade extrema entre as pessoas, diante das muitas misérias, o abraço de Deus na oração orienta-nos na missão de colocar sinais de vida no cotidiano. A vivência da oração é ensino: “Jesus ensinou a orar”. Ela aponta para a gratidão pela vida; une-nos na fé e na esperança. A oração pessoal e comunitária liga-nos ao Deus do amor e da justiça, colocando-nos criativamente em ação na busca de um mundo melhor. A autora é teóloga e pósdoutoranda em História na UFSC, em Jaraguá do Sul (SC)
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Compromisso do CMI continua vivo Fundado no ano de 1948 em Amsterdã, o Conselho Mundial de Igrejas foi pioneiro no debate de diversos temas mundiais que hoje são populares, como a questão ambiental e a paz mundial. Sua maior conquista, entretanto, foi dar um rosto comunitário ao dividido mundo das igrejas. Edelberto Behs
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ERGUNTADO EM AULAS NO CURSO DE
Jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, a respeito da minha trajetória na profissão e indagado especificamente qual ou quais foram os momentos ou coberturas que mais me marcaram, não hesito em responder que foi ter ouvido Nelson Mandela, enquanto presidente da África do Sul, agradecer ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI) pelo apoio recebido na luta contra o regime de apartheid. Participava, então, da VIII Assembléia Geral do CMI, reunida em Harare, capital do Zimbábue, em 1998, como jornalista convidado para a cobertura do evento. Mandela fez questão de comparecer ao encontro no vizinho país para falar da ajuda humanitária que a África do Sul recebera do CMI. Foi emocionante vivenciar esse momento com Mandela e representantes de igrejas reunidos no salão nobre da Universidade de Harare. Não saberia dizer quanto tempo ele levou para percorrer o caminho da entrada do salão até o palco, mas arriscaria uns bons 20 minutos. Praticamente todos os que estavam sentados, de forma privilegiada, nas filas que margeavam o corredor de entrada do salão nobre (homens, mulheres, jovens)
queriam cumprimentá-lo, abraçá-lo, trocar algumas palavras com o líder negro que comandara a quebra do apartheid na África do Sul. Mandela, já idoso, movia-se devagar. Depois de seu aguardado discurso, ele subiu ao palco, ajudado por coralistas para que suas pernas pudessem vencer aqueles minguados degraus até o palco, e dançou, sim, dançou ao som de canções africanas. O CMI teve que dar muitas explicações quando emprestou apoio solidário aos negros na luta por igualdade racial. Ele era acusado, pelos que não queriam mudanças na África do Sul, de com sua ajuda humanitária apoiar financeiramente grupos revolucionários armados que lutavam contra o apartheid. Repercutiu também, na imprensa nacional e estrangeira, um documento, apócrifo, que teria sido emitido pelo CMI, no qual defendia a internacionalização da Amazônia porque apoiava o direito à terra e à cultura dos povos indígenas. E quem, nos anos 1970, 1980, detestava ações, testemunhos e celebrações ecumênicas reportava-se ao CMI como uma “superigreja” que queria monopolizar a fé cristã, acabar com as famílias religiosas e ditar a interpretação das Sagradas Escrituras. Muitas inverdades foram desfeNOVOLHAR – Maio/Junho 2008
Peter Williams/CMI
CELEBRAÇÃO DOS 60 ANOS: Durante encontro em Genebra, em fevereiro, representantes das igrejas de todo o mundo celebraram o aniversário do CMI. Na foto, o secretário-geral Dr. Samuel Kobia, Rev. Dra Bernice Powell Jackson e o Patriarca Ecumênico H.A.H. Bartholomeu na celebração com jovens do Programa de Stewards do Conselho
ridas contra o CMI desde a sua fundação em 1948, quando representantes de igrejas protestantes, anglicanas e ortodoxas, reunidos na I Assembléia do organismo ecumênico internacional em Amsterdã, na Holanda, passaram a buscar a unidade de modo formal. O cenário era de pós-Segunda Grande Guerra e uma Europa parcialmente destruída, com pessoas enfrentando frio, fome e privações. Seguramente, esse quadro de desmonte ajudou cristãos a tomar a decisão de encarar em conjunto os desafios ora colocados. Antes do encontro de Amsterdã, contudo, três eventos impulsionaram a criação do CMI: a Conferência Missionária Mundial, reunida em Edimburgo em 1910, a Conferência Cristã Universal de Vida e Ação, de Estocolmo, em 1925, e a I Conferência Mundial de Fé e Ordem, que se encontrou em Lausanne em 1927. Os três eventos precursores alinhavaram o foco dessa “fraternidade de igrejas WWW.NOVOLHAR.COM.BR
que confessam o Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador”, como reza a constituição do organismo ecumênico. O CMI, comprometido ainda hoje ao chamado da unidade visível, volta-se à missão, à vida e ação, à fé e ordem e à educação cristã. Ao lembrar o 60o aniversário do CMI, o seu moderador, pastor Walter Altmann, também presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), afirmou, na reunião do Comitê Central em fevereiro deste ano, em Genebra: “Vivemos num mundo profundamente transformado e com um cenário radicalmente alterado, mas não há qualquer necessidade de mudar esse compromisso básico que reuniu as igrejas em comunhão no CMI através desses 60 anos. Essa tem sido nossa vocação através desses anos e continuará sendo nossa vocação nos anos à frente”. Em Harare, as igrejas, pela palavra de seus representantes ali reunidos, comprometeram-se a “permanecer juntas”, e em
Porto Alegre, em 2006, a Assembléia proclamou: “Nossas igrejas peregrinam juntas em conversação e ação comum, confiantes de que o Cristo ressurreto continuará a revelar-se como o fez ao partir o pão em Emaús”. Mesmo admitindo falhas nessa caminhada, pois a meta de “sermos um” ainda está distante, o moderador do CMI reafirmou que o diálogo teológico, a missão e a diaconia (serviço) são parte integrante do ser igreja, o que é reconhecido, hoje, também por vertentes evangelicais, pentecostais e neopentecostais. O que o movimento ecumênico mais precisa, na atualidade, é o dom da perseverança, “da persistência no peregrinar ecumênico”, analisou Altmann, pedindo ao Espírito Santo que conceda esse dom e a disposição de seguir em frente. O autor é jornalista e professor da Unisinos em São Leopoldo (RS)
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O Inmetro A necessidade de medir é muito antiga e remonta à origem da civilização. Por longo tempo, cada país ou região tinha seu próprio sistema de medidas, baseado no corpo humano: palmo, pé, polegada etc. Isso criava muitos problemas para o comércio. Numa tentativa de resolver isso, o governo republicano francês pediu, em 1789, à Academia de Ciências da França para criar um sistema de medidas baseado numa “constante natural”. Foi criado então o Sistema Métrico Decimal. Este adotava três unidades básicas de medida: o metro, o litro e o quilograma. Muitos países adotaram esse sistema, inclusive o Brasil. Em 26 de junho de 1862, o imperador Dom Pedro II promulgava a Lei Imperial nº 1157, oficializando em todo o território nacional o sistema métrico decimal francês. O Brasil foi uma das primeiras nações a adotar o novo sistema. Mas, devido ao crescimento industrial do século 20, era necessário criar instrumentos mais eficientes de controle, que protegessem produtores e consumidores. Em 1961, foi então criado o Instituto Nacional de Pesos e Medidas (INPM). Mas isso não era o bastante. Era necessário acompanhar o mundo na sua corrida tecnológica, no aperfeiçoamento, na exatidão e, principalmente, no atendimento às exigências do consumidor. Nascia em 1973 o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial, nosso conhecido Inmetro. Seu objetivo é fortalecer as empresas nacionais, aumentando sua produtividade por meio da adoção de mecanismos destinados à melhoria da qualidade de produtos e serviços. O autor é jornalista em São Leopoldo (RS)
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Rui Bender
Animais em risco O TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES
constitui o terceiro maior comércio ilícito do mundo, perdendo apenas para o tráfico de narcóticos e armas. Estima-se que o comércio ilegal deve girar em torno de US$ 10 a 20 bilhões/ano e a participação do Brasil seria de aproximadamente 5% a 15% desse total, correspondendo à retirada, por ano, entre 12 a 38 milhões de animais silvestres das matas brasileiras. Os principais locais de captura estão nos estados da Bahia, Pernambuco, Pará, Mato Grosso e Minas Gerais, sendo escoados para as regiões Sul e Sudeste, onde se encontram os principais consumidores. Segundo relatório da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), no tocante ao tráfico internacional, os principais destinos são Europa, Ásia e América do Norte. Estima-se que cerca de 90% dos animais traficados morrem antes de chegar aos destinos. Impossibilitam a eficiência das ações de combate ao tráfico as dificuldades operacionais associadas à vasta extensão territo-
rial, a baixa severidade das penalidades previstas na legislação ambiental e a miséria em que vive grande parte da população. No entanto, é preciso saber que existem leis que protegem toda a biodiversidade brasileira e punem quem as desrespeita. A Lei de Crimes Ambientais (Lei n° 9.605), criada em fevereiro de 1998, considera os animais, seus ninhos, abrigos e criadouros naturais propriedade do Estado. Portanto qualquer negócio envolvendo animais silvestres é crime inafiançável. O ideal é que a sociedade tenha uma mudança de comportamento em relação às aves e a toda a fauna silvestre, preferindo que vivam livres em seus ambientes originais e denunciando a comercialização ilegal. A permanecer esse quadro, em breve somente o registro visual restará para indicar a passagem histórica de uma determinada espécie na natureza. Leonardo Barros Ribeiro e Melissa Gogliath Silva, em www.cienciaecultura.bvs.br NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
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Capa
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Identidade e
DA ÁFRICA PARA A ESCRAVIDÃO Os negros começaram a fazer parte da história do Brasil em 1552 no final do governo de Tomé de Souza. O número de escravos trazidos para cá em três séculos chegou a 4 milhões de pessoas, cerca de 40% do total importado pelas Américas. À esquerda, um esboço dos navios negreiros.
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Os portugueses foram quase os únicos a traficar escravos nos primeiros 150 anos. Até 1600, foram 260 mil africanos. De 1601 a 1640 foram 187 mil. Em meados do séc. 17, há aumento vertiginoso da demanda; de 1776 a 1800 foram 2 milhões de africanos embarcados. O total embarcado foi de 11 milhões e 863 mil negros. NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
m construção Os 120 anos da abolição da escravatura e a situação dos herdeiros de Zumbi no Brasil do século 21
PRINCESA ISABEL, NO DIA 13 DE ABRIL DE 1888, entregou os pontos. Não havia mais saída para uma economia baseada na escravidão. As pressões externas, a fuga em massa de escravos, a revolta do exército em continuar sendo usado como força para recapturá-los, bem como movimentos abolicionistas que começavam a tornar o Império ingovernável, fizeram-na capitular. Sem saída, ela assinou a Lei Áurea, mesmo na ausência do pai, o imperador D. Pedro II, que viajava pela Europa. Seu gesto acabava com a escravidão, iniciada pelos portugueses em 1552 e que havia trazido ao Brasil 4 milhões de africanos em três séculos e meio. Era o fim de um dos maiores dramas da história brasileira e o começo de um outro. A abolição da escravatura lançou metade dos brasileiros no limbo da exclusão social, na vala comum do preconceito e na dura realidade da cidadania de segunda classe. Nas próximas páginas, uma reflexão sobre os 120 anos do fim da escravidão negra no Brasil e a percepção de que não há muito para comemorar.
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Para o Brasil o tráfico forneceu, em números aproximados, 50 mil no séc. 16; 560 mil no séc. 17; 1,4 milhões no séc. 18 e cerca de 2 milhões no séc. 19, isso com o tráfico sendo considerado ilegal em 1830. O Brasil recebeu 4 milhões e 10 mil africanos.
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A faixa etária dos africanos era bem jovem (11 e 12 anos). Em navios de até 600 cativos, o índice de mortalidade era de 20% entre as travessias do interior ao litoral da África, mortes nos entrepostos e feiras africanos e nas viagens que duravam entre 35 e 60 dias pelo oceano.
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Algumas estratégias
de luta Ao recém-liberto ficou a responsabilidade de enfrentar o racismo da sociedade que o impedia de exercer determinadas funções e lhe reservava os postos mais baixos de trabalho. Lúcia Regina Brito Pereira QUILOMBOS: Sua organização social e política era inovadora
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PROCESSO ABOLICIONISTA NO
Brasil foi lento e gradual. Isso tinha um objetivo explícito: evitar que houvesse no país uma ação revolucionária por parte dos escravizados semelhante à que houvera no Haiti. Dessa forma, a via legal era o caminho para manter a ordem social e não desestabilizar a economia. Esse processo iniciou no período imperial com o compromisso firmado entre o Brasil e a Inglaterra de extinção do tráfico em 7 de novembro de 1831, seguido pela Lei Bill Aberdeen em 1845. Toda-
via, como diz o ditado, essa foi uma lei “pra inglês ver”. A situação prolongou-se até a efetiva instituição da Lei Euzébio de Queirós em 1850, que de fato não impediu o tráfico ilegal na totalidade. O longo período de trabalho compulsório não passou sem a reação dos escravizados, primeiramente através do banzo, no qual o cativo era acometido de imensa tristeza, que o levava à morte, do não-trabalho, dos ataques aos escravagistas, das fugas individuais e em grupos, da formação de quilombos em
locais afastados e de difícil acesso. O quilombo com maior representatividade no país foi o de Palmares, localizado na Serra da Barriga, em Alagoas, cujo maior líder foi Zumbi dos Palmares. A organização social e política desse quilombo era inovadora, colidindo com a sociedade escravocrata vigente na época. As pessoas que viviam ali eram livres, produziam para o consumo interno e negociavam com os fazendeiros vizinhos. Sua existência não ficou livre de ataques sucessivos da Coroa, que via nesse tipo de orga-
DO TRABALHO ESCRAVO AO SUBEMPREGO Vê-se a escravidão ligada ao café, às senzalas e à cana-de-açúcar. Mas os escravos faziam toda ordem de trabalho, inclusive especializado, nas cidades, como Salvador e Rio de Janeiro. Cerca de 600 mil escravos haviam entrado só pelo porto carioca no séc. 19. Andando pelas ruas da cidade em 1815, a pessoa imaginava-se transplantada para a África.
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Entre 1870 e 1888 cresce o movimento pelo fim da escravidão no Brasil, que termina com a promulgação da Lei Áurea. A escravidão havia começado a declinar com o fim do tráfico de escravos em 1850 e a chegada dos primeiros imigrantes europeus. Mas é só a partir da Guerra do Paraguai (18651870) que o movimento abolicionista ganha impulso.
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nização uma ameaça ao sistema. As muitas investidas das tropas coloniais confirmam as estratégias bem-sucedidas de guerrilha, utilizadas pelos palmarinos. Após quase cem anos de resistência, o quilombo de Palmares foi atacado pelas tropas do bandeirante Domingos Jorge Velho e o líder Zumbi foi morto. Igualmente, quando possível, a lei era utilizada a favor da emancipação. Nesse caso, temos o brilhante exemplo do advogado Luiz Gama, no Rio de Janeiro, que oferecia seus serviços gratui-
tamente e, utilizando-se do precedente da lei de 1831, viabilizou através da justiça a libertação de mais de 500 pessoas escravizadas ilegalmente. Outra forma de resistência utilizada pela população negra desde os tempos coloniais eram as Irmandades do Rosário, única organização de cunho religioso permitida pela Igreja Católica. Esse tipo de organização possibilitou aos negros realizarem seus cultos e reverenciarem seus orixás. Além do culto, as Irmandades do Rosário tinham como função o auxílio funeral e davam atenção à família. Também havia preocupação com a educação dos adultos e das crianças negras. Outra medida paliativa, instalada pelo Parlamento brasileiro, refere-se à Lei do Ventre Livre, de 1872, que libertava os filhos de mulher escravizada. Entretanto, as discussões em torno dos chamados ingênuos geraram muitos debates sobre a guarda dessas crianças. Segundo a lei, elas deveriam permanecer com os escravizadores de suas mães até oito anos de idade, quando então seriam entregues a instituições criadas para esse fim. Todavia, essa ação foi considerada antieconômica, pois era mais lucrativo para os escravagistas permanecerem com elas. Assim usufruiriam de seus serviços até a idade adulta, e elas teriam que trabalhar por mais um período a título de indenização para o senhor pelos cuidados dispensados. Em síntese, dentro dos preceitos da libertação gradual, o Estado não cumpriu com o encaminhamento das crianças para instituições de ensino, que deveria construir, os escravocratas eximiram-se da responsabilidade de oferecer educação escolarizada e manteve-se a pedagogia do trabalho no ambiente doméstico.
A Lei do Ventre Livre liberta os nascidos, mas os mantém sob tutela até 21 anos. Em 1880, Joaquim Nabuco funda a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão. Em 1885, vem a Lei dos Sexagenários, mas poucos chegam à idade. No mesmo ano, o Exército pede para não mais ser usado contra os escravos fugitivos. A princesa Isabel assina a Lei Áurea em 13 de maio de 1888 (esq.).
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A pressão internacional e de grupos internos que entendiam o sistema escravista como um empecilho à modernidade do país, as revoltas e o abandono em massa de fazendas no centro do país fizeram com que o governo imperial formalizasse a libertação dos trabalhadores escravizados. O texto da Lei Áurea é direto e objetivo. Contém apenas dois artigos: “Extinguese a escravidão; Revogam-se as disposições em contrário”. Essa economia de palavras segue a linha do desinteresse das autoridades pela vida futura dos escravizados e seus descendentes. Ao recém-liberto ficou a responsabilidade de enfrentar o racismo da sociedade que o impedia de exercer determinadas funções e lhe reservava os postos mais baixos de trabalho, além de ter que concorrer com o trabalhador imigrante. Instalada a República, não houve por parte dos legisladores uma preocupação com a condição social e econômica do ex-trabalhador escravizado. As preocupações giravam em torno da modernização econômica e pelas disputas entre os poderes local e federal. Nesse contexto, a população negra continuou buscando estratégias para atender suas necessidades, que não eram supridas pelo poder público. Nesse período, surgem os clubes carnavalescos, as sociedades bailantes, que terão como primeiro objetivo oferecer lazer a essa população. Entretanto, suas ações vão além, como é o caso, em Porto Alegre, da Sociedade Beneficente Floresta Aurora, que surgiu em 1872 com o objetivo humanitário de auxiliar no funeral dos sócios. Além desse auxílio, a sociedade denunciava ao longo de sua existência a omissão dos órgãos governamentais na implementação de políticas dirigidas à
Os fazendeiros revoltados aderem ao movimento republicano. Sem escola e sem profissão, os libertos não têm a condição de subalternos alterada. Sua nova condição jurídica não lhes dá cidadania nem ascensão social.
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CASTIGOS: Um grupo de negros sendo levado para açoite
população negra. Há também significativa participação de negros nas associações de socorro mútuo, criadas para a defesa dos assuntos relativos ao trabalho e para a formação de pecúlio. Isso significa que o trabalhador negro se organizava desde longa data em associações na defesa de seus direitos. Outro exemplo significativo de organização negra é a Frente Negra Brasileira, criada no início dos anos 1930 em São Paulo. Seu objetivo era: intervir com ações práticas nas várias dimensões da vida da população negra. Foram criados cursos de alfabetização de adultos, de formação técnica, de teatro, de assistência jurídica. Também mantinha um jornal, que, além de divulgar informações sociais, chamava a atenção para a situação da população negra e denunciava a omissão dos poderes públicos na implementação de políticas que alterassem o quadro desfavorável em que essa se encontrava. A exemplo de São Paulo, vários outros estados criaram organizações com objetivos e ações semelhantes. No Rio Grande do Sul, surgiu em 1943 a União dos Homens de Cor, organização 18
estruturada em vários estados do país, que possuía uma diretoria nacional, diretorias estaduais, diretorias municipais e chefias distritais. Em Porto Alegre, a União mantinha um jornal, e a todos os estados era permitida a edição de jornais e boletins próprios. Seus estatutos registram o amplo projeto dessa associação, que tinha “por fim elevar o nível econômico e intelectual das pessoas de cor em todo o território nacional, para torná-las aptas a ingressar na vida social e administrativa do
país, em todos os setores de suas atividades” (Estatutos, 1943, p. 3). Em 1970, nasce o Movimento Negro Unificado, que vai aglutinar diferentes associações negras de todo o país. Seu objetivo é denunciar a falsidade da democracia racial brasileira. A partir de então, a ação é de intervenção política. Assim, os órgãos oficiais são conclamados a reconhecer a precária situação da população negra brasileira. Exige-se a inclusão do item “cor” em todos os instrumentos de pesquisa, a fim de que os mesmos mostrem os dados da exclusão dos negros, desconsiderados até então pelas instituições públicas. Exige-se igualmente a reforma da educação, porque omite a real história e presença dos negros no país. Também se exige atenção a saúde, habitação e trabalho. Hoje, quando assistimos ao debate sobre a instituição de ações afirmativas para a população negra, é necessário ter presente que esse foi um longo processo de construção de estratégias individuais e coletivas através das diferentes organizações negras na sociedade brasileira. E ainda há muito o que fazer para uniformizar, em todas as dimensões da vida, a situação desprivilegiada a que foi relegada a população que teve e tem um papel fundamental na construção da sociedade brasileira. A autora é doutora em História pela PUCRS, integrante de Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras e coordenadora do GT Negros: História, Cultura e Sociedade (ANPUH/RS) em Porto Alegre (RS)
O exemplo do Haiti Jean-Jacques Dessalines (1758-1806), o imperador negro do Haiti, era um dos maiores temores das autoridades, que temiam um levante semelhante no Brasil. Escravo africano nascido na Guiné, adotou o nome de seu amo francês, Dessalines, chegou a imperador do Haiti e dedicou a vida à construção de um estado negro independente. Ante o intento de Napoleão de restabelecer a escravidão, rebelou-se e, com ajuda inglesa, conseguiu expulsar os franceses da ilha. Como governador-geral, proclamou a independência da ilha (1804) com o nome de Haiti. Para garantir a existência do Estado essencialmente negro na América, desencadeou uma perseguição que exterminou quase completamente a população branca do novo país. NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
LUANA: Diferença de ganhos tende a desaparecer quando os negros forem tão escolarizados quanto os brancos
A discriminação racial no mercado de trabalho não ganhou importância no Brasil por conta do mito da democracia racial. Na educação, os afro-descendentes também estão em desvantagem. Ingelore Starke Koch
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PESAR DE SE SABER EMPIRICAMENTE
que a discriminação racial está presente em muitas partes do planeta, ela não recebe a devida atenção e não inspira muitos economistas a estudar o tema. Somente após o tema ter se tornado politicamente relevante para os Estados Unidos, alguns economistas tentaram oferecer explicações para o fenômeno, afirma Luana Marques Garcia. Luana é mestre em Desenvolvimento Econômico e Análise de Política Econômica pela Universidade de Southampton, Inglaterra. Ela reside na Inglaterra e atua como economista na empresa escocesa AUPEC em projetos de fortalecimento e modernização do ministério das Finanças de Angola, na África. Segundo a abordagem econômica, acrescenta Luana, a discriminação racial no mercado de trabalho pode assumir três formas: a) redução dos salários dos negros com WWW.NOVOLHAR.COM.BR
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Discriminação na educação e economia
a mesma competência e produtividade dos brancos; b) segregação dos negros em empregos de baixos salários; c) taxas mais elevadas de desemprego e subemprego para negros do que para brancos. Na opinião dos economistas, expressa Luana, os agentes econômicos discriminam por “preferência” ou devido aos elevados custos de investigação do passado escolar e de experiência dos candidatos negros, também conhecida como “discriminação estatística”. De acordo com esse pensamento, a “discriminação estatística” é eficiente porque tenta minimizar custos dentro das preferências do empregador sobre os candidatos negros. No entanto, os economistas acreditam que o racismo deve desaparecer do mercado de trabalho competitivo assim que os empregadores obtiverem informações completas sobre a produtividade dos tra-
balhadores. Se a discriminação persistir, ela é irracional, pois a melhor escolha não é privilegiar um grupo de indivíduos, mas contratar os mais produtivos, independentemente de raça ou cor, aponta Luana. Segundo ela, no Brasil, o estudo sobre a discriminação racial no mercado de trabalho não ganhou muita importância, em grande parte por duas razões: a primeira deve-se à falácia de que a sociedade brasileira é racialmente igual, teoria conhecida como mito da democracia racial; e a segunda, por causa da falta e da irregularidade da informação sobre a raça/cor nos dados estatísticos produzidos pelo governo brasileiro a partir de 1976. Conforme a economista, a maior parte dos poucos estudos conclui que o déficit salarial dos negros em relação aos brancos deve-se principalmente ao fato dos negros apresentarem uma defasagem 19
Ingelore S. Koch
SELENIR: Apesar de muitos negros e negras estarem escolarizados, continuam enfrentando os mesmos obstáculos
de capital humano ou educacional herdado dos tempos da escravidão. Por isso, acredita Luana, no momento em que os negros se tornarem tão escolarizados quanto os brancos, a diferença de ganhos tende a desaparecer. Mesmo assim, utilizando técnicas econométricas mais avançadas, Luana Garcia verificou o contrário: o diferencial de ganhos por horas trabalhadas entre negros e brancos com mais de 12 anos de estudo (negros ganhando cerca de 54% menos em 2005) deve-se, em grande parte (80%), a fatores externos ao capital humano negativo dos indivíduos negros, ou seja, à discriminação racial. Para Luana, é surpreendente quão pouco tem sido pesquisado sobre o impacto das relações raciais no mercado de trabalho brasileiro em ciências econômicas. O aparente medo ou fuga do debate é comum tanto no Brasil como internacionalmente. Elucidar o tamanho real e o custo da discriminação racial no mercado de tra20
balho brasileiro é extremamente relevante para que se possa influenciar a tomada de decisão pública e desmascarar aspectos economicamente relevantes sobre o tema, reforça a economista. Exclusão educacional – Atualmente, a situação educacional dos negros no Brasil continua sendo pauta de reuniões, resultando em leis, publicações e “manchetes” na mídia. “No entanto, ainda estamos em situação de desvantagem no que se refere às oportunidades e aos direitos à educação previstos para todos os cidadãos”, declara Selenir Gonçalves Kronbauer, mestre da Faculdades EST em São Leopoldo (RS). Desde o período da escravidão, há grupos organizados de negros em quilombos, clubes, organizações religiosas etc., registra Selenir. Esses grupos eram mais insistentes na continuidade dos estudos, na perspectiva de ascensão social do negro através da educação. No entanto, no que se
refere à questão da educação estimulada pela família, Selenir menciona pesquisa de Regina Pahim Pinto, segundo a qual não se pode falar numa atitude genérica da família negra frente à educação, pois a forma como é vista a educação, na perspectiva familiar, varia de acordo com o tipo de família e o momento histórico de referência. A influência desses grupos e movimentos sociais, cujos objetivos principais caracterizavam-se pela luta em prol da melhoria da qualidade de vida dos negros, foi impulsionadora para uma perspectiva de melhor futuro dos negros através da educação. “O fato é que hoje, apesar de muitos negros e negras estarem escolarizados, continuam enfrentando os mesmos obstáculos, sendo excluídos dos diversos espaços sociais, educacionais e do mercado de trabalho”, denuncia Selenir. Ela volta a mencionar Regina Pinto, referindo-se à análise de Florestan Fernandes, que cita exemplos de negros que não foram aceitos em determinados serviços pelo fato de que os empregadores julgavam que as pessoas teriam dificuldade para manter contato com eles ou aceitá-los em determinados cargos. Entre outras situações, acrescenta Selenir, a forma como o currículo está estruturado poderá vir a dificultar a continuidade dos estudos dos alunos negros na medida em que os conteúdos e as atividades escolares estão distantes de sua realidade. Os currículos impõem e determinam quando “edificam” uma sociedade branca e deixam de incluir conhecimentos da cultura negra e da realidade social em que vive o negro no Brasil. A escola, ao deixar de contemplar a história da África e afro-brasileira no currículo, gera a impossibilidade de reconhecer-se como parte “viva” da história. “Nessa perspectiva, muitas vezes, acontece, como já foi constatado através de pesquisas, que a própria escola dá ao aluno negro três opções: procurar espaço freqüentado por negros, inserir-se na população branca mais pobre ou desistir dos estudos”, arremata Selenir. A autora é jornalista em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
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Racismo disfarçado de negligência
População negra tem pouco acesso à saúde
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2008, O BRASIL COMPLETA 120 anos de abolição da escravatura, mas a comunidade negra continua reivindicando a tão sonhada liberdade. Aproximadamente metade do povo brasileiro descende de africanos, que hoje engrossam as estatísticas de vulnerabilidade. As informações indicam uma população carente, com parcas condições de educação, trabalho, moradia e saúde (Censo, 2000). Para um povo que foi arrancado de sua terra e transportado como animais nos porões de navios e sobreviveu a todo tipo de violência e privação, a população negra ratifica hoje o preconceito e o racismo. Expõe cicatrizes que persistem, mesmo com todas as novas tecnologias. A Constituição de 1988 diz que “a saúde é um dever do Estado e direito de todos”, mas para a população negra não tem sido dessa forma. O próprio Ministério da Saúde admite que a população negra tem pouco acesso aos órgãos de saúde e, mesmo quando consegue, o profissional que o atende nem sempre está capacitado para atendê-lo em suas necessidades. O processo de adoecimento de negras e negros é agravado por alguns fatores sociais, ainda que existam algumas predisposições M
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O Ministério da Saúde admite que a população negra tem pouco acesso aos órgãos de saúde e, mesmo quando consegue, nem sempre é atendido em suas necessidades. Eliana Costa Xavier e Glaucia Fontoura
genéticas (deficiência de glicose, anemia falciforme). Ser afro-descendente pode significar buscar atendimento nas unidades básicas de saúde e não ter seu pleito totalmente atendido. A saúde pública, mesmo com toda a tecnologia (pesquisa, tratamento, medicamentos), tem sido ineficiente no prognóstico de doenças preveníveis, tais como hipertensão e diabetes. O descaso com que a população negra é tratada reflete-se na ausência de dados sobre as reais condições de saúde. Na tentativa de dar visibilidade a essa população, o Movimento Social Negro aponta a necessidade de que, em todos os registros de saúde/doença, conste o grupo étnico do paciente, para que dessa forma se saiba quem realmente acessa os serviços de saúde. O preconceito perpetuado ao longo de 120 anos impede que os afro-descendentes se identifiquem e, com isso, se construa uma identidade positiva negra. Cresceram reprimindo o ser negro, desvalorizando o conhecimento trazido por seus antepassados, negaram a cultura africana e minimizaram a medicina popular de matriz africana, confiada aos anciãos. No que se refere à saúde da mulher negra, há um racismo disfarçado de negli-
gência, sentido no acesso aos serviços de saúde. Há altos índices de mortalidade entre mulheres negras em decorrência de gravidez/parto/puerpério, de moléstias predominantes, não esquecendo de mencionar a violência doméstica. Isso também pode alterar os ciclos da vida de crianças e jovens negros, vencidos pela desnutrição ou ceifados por mortes violentas. A discriminação racial reflete-se de forma mais destrutiva na saúde mental da população negra, seja pela violência social, institucional e doméstica, ou pelas conseqüências de transtornos de humor diversos ou uso abusivo de substâncias psicoativas para sufocar o emaranhado de sentimentos na discriminação. O movimento de mulheres e homens negros continua buscando, ao longo de mais de um século de abolição, uma verdadeira proposta de cidadania, embora já tenha conseguido a criação e a implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra, que busca uma melhoria na qualidade de vida para o povo negro. As autoras são psicólogas de Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras, em Porto Alegre (RS)
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Trata-se de um comando político e humilhante, uma frase a serviço da dominação, que proíbe ação e voz aos dominados. Nos países de passado escravista não é difícil adivinhar quem são os alvos preferidos da frase aviltante.
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Ponha-se no seu lugar!
Gente historicamente rebaixada ouvirá que seu rebaixamento liga-se à raça José Moura Gonçalves Filho
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ONHA-SE NO SEU LUGAR!
HÁ QUEM acredite não haver problema com imposições assim. Não caberiam contra crianças desrespeitosas ou contra aprendizes presunçosos? Seria exigir que tivessem consideração pelos adultos e pelos mestres. Pais e professores têm um mundo a apresentar, condição de onde vem sua autoridade. Filhos e alunos devem admitir autoridade. Admitir autoridade, entretanto, é coisa bem diferente de admitir humilhação. Adultos e crianças, mestres e aprendizes formam relações de dependência passageira e que preparam a independência, preparam cidadãos. São relações temporárias. E se não são já relações entre cidadãos, tampouco são relações contra a cidadania: não podem admitir violência. Adultos e mestres autoritários impedem o cidadão e concorrem para deixar infantilizados os filhos e incompetentes os aprendizes. Ponha-se no seu lugar! Há quem acredite que a frase cabe em situações de trabalho e seja simples exigência de ordem e
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colaboração. Cada um assuma a sua parte e seu dever na divisão do trabalho! Pedreiros e engenheiros, jardineiros e arquitetos, enfermeiros e médicos, jornaleiros e jornalistas, camareiros e artistas, agricultores e fazendeiros, operários e empresários, bancários e banqueiros. Todas as profissões seriam postos da mesma dignidade, variando apenas a competência de cada profissional. Entretanto, nós subordinamos muita gente, formamos escravos e proletários, a quem impingimos as tarefas muito simples, as tarefas simplificadas (fragmentadas e aceleradas), as tarefas pesadas e as tarefas mortais. Ponha-se no seu lugar! É frase reservada a essa gente, os subordinados. E sai sempre de quem os quer abaixo de nós e a nosso serviço, mal remunerados e obrigados a tarefas que são impedidos de governar. Ponha-se no seu lugar! A frase quer censurar e corrigir. Recrimina alguém por se haver arvorado um lugar impróprio. E obriga a voltar ao devido lugar. O lugar, aqui, não é mera posição no espaço, mas
um lugar social, um lugar no trabalho ou na cidade. Um lugar forçado, em conflito com o lugar de outros humanos, um lugar discricionário: um lugar abaixo, sob comando, e que posiciona o seu ocupante como alguém inferior. Ponha-se no seu lugar! É sempre frase de um superior dirigida a um subalterno, frase de gente acimada contra gente rebaixada. Ponha-se no seu lugar: mantenha-se obediente e quieto! Trata-se de um comando político e humilhante, uma frase a serviço da dominação: proíbe ação e voz aos dominados. Ensina a subserviência. Quando o comando é ouvido e sofrido sem interpretação, desarma, machuca moralmente: nós, sem interpretar, fingimos tomá-lo como merecida advertência. O comando confunde: finge educar e trazer ordem, mas ofende e traz subordinação. Como toda mensagem ambígua, o comando vai angustiar. Vai alimentar pesadelos e sentimentos mórbidos. Vai distorcer e disfarçar a realidade, vai enganar a NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
memória e o pensamento, vai envenenar a consciência de si como consciência de alguém desprezível. Nos países de passado colonial e escravista, não é difícil adivinhar quem são os alvos preferidos da frase aviltante. A frase é assiduamente disparada contra a voz e a ação do negro: Ponha-se no seu lugar! A posição inferior, embora engenhada e fabricada pela dominação, vai ser atribuída à natureza. Gente historicamente rebaixada ouvirá que seu rebaixamento liga-se à raça e que deverá assumir o lugar serviçal como seu lugar natural.
O autor é conselheiro consultivo do Instituto AMMA Psique e Negritude e professor, pesquisador e psicanalista no Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP) em São Paulo (SP)
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Em busca da
igualdade No que classifica de verdadeira carta de alforria dos negros brasileiros, o senador Paulo Paim luta pela aprovação do Estatuto que promove a igualdade racial no Brasil. O senador espera que o Estatuto seja aprovado até 20 de novembro, dia da consciência negra e que marca a data da morte do líder negro Zumbi dos Palmares.
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DIA 13 DE MAIO DE 2008 MARCA OS
120 anos da Lei Áurea. Naquela data, a princesa Isabel declarou extinta a escravidão no Brasil. Os negros escravos estavam livres, mas sem direitos. Desde o dia 13 de maio de 1888, pouco se fez para promover a igualdade entre brancos e negros. O Estatuto da Igualdade Racial, que promove políticas públicas para o povo negro, de autoria do senador Paulo Paim, é considerada por esse a verdadeira carta de alforria para o negro brasileiro. Entre as propostas do Estatuto, que “combate a discriminação racial e as desigualdades estruturais e de gênero que atingem os afro-brasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas e outras ações desenvolvidas pelo Estado”, estão uma série de ações afirmativas. Direito à profissionalização e ao trabalho para o afro-descendente; sistema de cotas raciais; demarcação de terras quilombolas; inclusão da disciplina História Geral da África e do Negro no Brasil nas
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escolas; participação de artistas afro-descendentes em filmes, programas e peças publicitárias e criação de ouvidorias são algumas dessas medidas. Hoje o Estatuto, já aprovado no Senado, está em tramitação na Câmara dos Deputados. O senador explica que a dificuldade para aprovar o Estatuto da Igualdade Racial é “por nós sermos ainda, infelizmente, um país muito preconceituoso”. Paulo Paim acrescenta ainda o obstáculo na Câmara. “Toda hora eles (os deputados) inventam uma dificuldade. Uma hora são as cotas, outra hora eles dificultam com as terras dos quilombolas, outra hora é o negro na mídia. Cada vez que se resolve uma questão, eles criam um outro problema, porque não querem aprovar o Estatuto, que é um instrumento que congrega o que há de melhor em matéria de legislação no Brasil para as políticas afirmativas, ou seja, para as políticas de inclusão efetivamente da comunidade negra”, esclarece.
Luciana Reichert
Luciana Reichert
SENADOR PAIM: Preconceito no Brasil é contra a cor da pele
Autor também do Projeto de Lei 225/ 07, que institui o ano de 2008 como “Ano Nacional dos 120 anos de abolição nãoconclusa”, o senador espera que o Estatuto seja aprovado neste ano em referência ao dia 20 de novembro, dia da consciência negra e que marca a data da morte do líder negro Zumbi dos Palmares. O senador diz que não existe uma democracia racial no país e que esse é um termo inadequado devido à realidade brasileira. “Até que eu gostaria que isso fosse verdadeiro, mas infelizmente não é. Todos os indicadores no campo social, econômico, político e educacional mostram que o negro está, como chamamos, na base da pirâmide, não se encontra nos chamados postos de primeiro escalão, a não ser em raras exceções”, afirma. “De uma coisa eu tenho certeza: o preconceito aqui no Brasil é contra o povo negro, é contra a cor NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
da pele mesmo. E a única forma de você demonstrar que o país está avançando é dar as mesmas oportunidades para brancos, negros, a todas as etnias, todos os segmentos, todas as procedências, não discriminar ninguém por raça, por gênero, por idade, por classe social”. O senador é simpatizante do discurso de Barack Obama, o primeiro negro a ter chances de chegar à Casa Branca: “Ele tem mostrado um novo momento na luta contra o preconceito e o racismo”. Paim lembra que os Estados Unidos já reconheceram os direitos civis dos negros norte-americanos. “O Brasil está, no mínimo, meio século atrás dos Estados Unidos em matéria de cidadania para o povo negro”, destaca. “É um ciclo que nós temos que atravessar. Esse ciclo os Estados Unidos já passaram. Eles aplicaram, deu certo, tanto que os Estados Unidos têm um Obama hoje. E no Brasil, a gente tem o quê?”. A autora é jornalista em Sapucaia do Sul (RS)
mesmo
Um ministério da igualdade racial O governo federal criou, em 21 de março de 2003, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), com status de ministério. A criação dessa Secretaria é o reconhecimento das lutas históricas do Movimento Negro Brasileiro. A missão da SEPPIR é estabelecer iniciativas contra as desigualdades raciais no país. Seus principais objetivos são: promover a igualdade e a proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos afetados pela discriminação e demais formas de intolerância, com ênfase na população negra; acompanhar e coordenar políticas de diferentes ministérios e outros órgãos do governo brasileiro para a promoção da igualdade racial; articular, promover e acompanhar a execução de diversos programas de cooperação com organismos públicos e privados, nacionais e internacionais; promover e acompanhar o cumprimento de acordos e convenções internacionais assinados pelo Brasil, que digam respeito à promoção da igualdade e combate à discriminação racial ou étnica; auxiliar o Ministério das Relações Exteriores nas políticas internacionais, no que se refere à aproximação de nações do continente africano. Fonte: www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/seppir
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A opinião é do presidente da Igreja Evangélica Luterana de Angola, lembrando a cicatriz deixada pela era escravagista em seu país e no continente africano Rui Bender
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BRASIL COLÔNIA E DEPOIS IMPÉrio foi o segundo maior traficante de escravos negros do mundo. Estima-se que somente da região de Angola, na costa ocidental da África, foram trazidos mais de três milhões de pessoas. “Foi o mal maior que aconteceu em nossa sociedade, que deixou uma cicatriz. Essa cicatriz continua a nos lembrar da ferida aberta pela escravidão, para que isso não se repita jamais”, enfatiza Tomás Ndawanapo, atual presidente da Igreja Evangélica Luterana de Angola (IELA) e que no verão deste ano iniciou um curso de Educação Comunitária na Faculdades EST, em São Leopoldo (RS). Tomás não responsabiliza apenas os escravagistas brancos pelo tráfico negreiro, mas também os líderes tribais africanos que vendiam negros capturados em conflitos intertribais. “Todos são culpados”, sintetiza ele. A humanidade não deve repetir isso, frisa. Tomás também não acre-
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Eloy Teckemeier
A escravidão é culpa de todos
TOMÁS: Todos são culpados
dita que isso volte a acontecer, porque “hoje há integração tribal em Angola”. A independência angolana do domínio português, que ocorreu em 1975, favoreceu a integração e eliminou as barreiras tribais. Tomás é da etnia Ambó. Hoje, essa história de horror ficou no passado. Brasil e Angola têm muito em comum no contexto cultural. Especialmente a cultura baiana tem uma forte identificação com a cultura africana. “O passado liga-nos uns aos outros”, entende Tomás. “O Brasil tem uma grande influência na sociedade angolana”, emenda. Há boas relações comerciais, profissionais de diversas áreas atuam em Angola, há intercâmbio na área da educação e “grande parte de nossa literatura evangélica vem do Brasil”, especialmente da Editora Sinodal, menciona o líder luterano. Ele acredita que o Brasil pode cooperar muito mais com Angola, partilhando sua experiência no combate à pobreza. Falar o mesmo idioma é um fator que facilita essa cooperação, acredita o angolano.
Faz cinco anos que Angola saiu de uma sangrenta guerra civil, que durou quase três décadas. O conflito começou após a independência em 1975. Três partidos de Angola disputavam o controle do poder. Não foi possível o diálogo, e então a luta fratricida eclodiu. Apenas em 2002 alcançou-se finalmente a paz. Mas as conseqüências foram desastrosas: cerca de um milhão de vítimas, um país destruído e uma economia atrasada. Tomás não crê que essa luta fratricida se repita, porque “agora há um esforço muito grande para a reconstrução do país e a pacificação dos espíritos”. Os angolanos estão agora com vontade de desenvolver seu país e a liderança política está empenhada em garantir a paz, observa o presidente da IELA. “Os africanos devem conscientizar-se de sua realidade e não se ancorar na responsabilidade dos outros”, ensina Tomás. Não devemos esperar que primeiro os outros se comovam com nossa realidade para obter ajuda, cogita o líder angolano. “Nós devemos pensar em nós e buscar as soluções para nossos problemas. Temos que ir à luta”, provoca Tomás. Assim que se identificaram as soluções para os problemas, então cabe buscar parcerias para sair da situação, sugere. Parcerias é o que está buscando a IELA (29 mil membros) com a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Está em fase de implantação um projeto de parceria na área da educação cristã. Esse prevê o envio de uma educadora brasileira para Angola com financiamento da Sociedade Missionária Finlandesa. Cabe a IELA organizar os grupos-alvo. Tomás, que cursou Teologia na Faculdades EST, confirma que não vê dificuldades em relacionar-se com uma igreja predominantemente branca. “A cor não é problema”, minimiza. Ele explica que os africanos tratam qualquer luterano, independente de raça e cor, como irmão. É muito forte seu sentimento de fraternidade. “Todos somos irmãos e importantes para Deus”, argumenta. O autor é jornalista em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
Dr. Eloy, um
batalhador
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DIAS DOS ANGELOS É JORNAlista, nascido em 1930 em Porto Alegre. É um homem sério, que valoriza a família mais do que tudo. É uma pessoa muito sensível, que adora poesia, sendo Cruz e Souza um de seus poetas preferidos. Toda a sua vida sempre foi baseada na honestidade e na responsabilidade. Nunca se omitiu de seu trabalho de cidadão em busca de uma sociedade mais justa. Como ele mesmo disse: “Desde menino, tive muita consciência da condição de ser negro sem me embaraçar com a própria cor”. Lutou muito, pois como negro precisava demonstrar duas vezes mais esforço do que um branco; por isso sempre esteve entre os três melhores alunos no colégio Dom João Becker, do Pão dos Pobres, na Cidade Baixa. Seguiu sua vida aceitando desafios. Como homem teve sempre presente a autenticidade, o ser e não o parecer, a verdade, o trabalho persistente, acreditando nas LOY
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Personalidades ligadas ao Movimento Negro do Rio Grande do Sul foram premiadas pela Organização de Mulheres Negras “Maria Mulher”
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Personalidades do cotidiano
pessoas e na luta por uma boa causa. Em sua vida profissional esteve em várias áreas, como nas artes gráficas, e foi linotipista do Correio do Povo. Em 1959, começou a trabalhar como jornalista no jornal O Dia. Já há vários anos é advogado e não foi fácil concluir o curso superior, pois como marido e pai acumulava deveres e compromissos econômicos. Durante sua vida de homem trabalhador, muitas vezes amargou incompreensões, custando-lhe até mesmo o emprego, pois diversas vezes liderou reivindicações por melhores condições de trabalho e salários mais justos. Todavia nunca deixou de acreditar em si próprio, estudando e valorizando a educação; estes são princípios importantes desse homem, entre tantos bons valores que ele destaca e pratica.
Sua militância é muito rica. Na Associação Satélite Prontidão, atuou em diversos departamentos; hoje faz parte do Conselho Deliberativo, tendo sido, por dois anos, presidente dessa entidade. Nesse período, batalhou pelo curso pré-vestibular “Zumbi dos Palmares”, que já nos deu muitos frutos. Por ocasião da primeira “Festa das Nações” de Porto Alegre, em 1984, foi o coordenador geral da CEAFRO - Comissão Executiva Afro-Brasileira, que proporcionou uma exposição de livros envolvendo a temática negra. Sua vida é infinita de realizações. Fonte: Concurso Personalidades Negras/RS – 2006 Editado por Maria Mulher/ Organização de Mulheres Negras, Porto Alegre (RS)
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Ação afirmativa ou discriminação? Um dos assuntos mais polêmicos do debate atual sobre inclusão e direitos, a questão das cotas raciais divide opiniões. Para os defensores, a proposta cria políticas específicas em nome da igualdade. Na visão dos opositores, é preconceituosa e inconstitucional.
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PROJETO DO ESTATUTO DA IGUAL-
dade Racial tramita no Congresso e reúne um conjunto de ações e medidas que, adotadas pelo governo federal, pretendem garantir alguns direitos à população afro-brasileira, entre eles o sistema de cotas raciais. Há aqueles que as defendem no Brasil como resgate de uma dívida histórica da sociedade em relação aos negros e também há os que acham essa medida discriminatória. Várias universidades já se adiantaram ao Estatuto, colocando em pauta duas questões: como identificar quem é negro no Brasil e como realmente ajudar aqueles que teriam menos chance de conseguir uma vaga no vestibular. “Enquanto não houver igualdade de oportunidades, precisaremos de políticas específicas”, afirma Glória Moura, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), primeira universidade federal a abrir espaço para as cotas em 2004. Glória defende a adoção de ações afirmativas, mas acredita que 28
essa é apenas uma solução temporária, que deverá durar enquanto houver desigualdade: “É muito mais fácil sancionar uma lei do que mudar uma mentalidade, e o Brasil precisa mudar sua mentalidade sobre o negro”, afirma, referindo-se à desvalorização da história afro-brasileira e à desqualificação do negro. Frei David Santos, de São Paulo, importante liderança do Movimento Negro e fundador da ONG Educafro, acredita que uma maior presença do negro nas universidades vai provocar mais diversidade em todos os setores da vida nacional: “Essa estratégia será um dia vista pela nação como o início da grande virada de mesa. A pressão pela diversidade no mercado de trabalho vai aumentar. Todos ganharemos com isso: negros, brancos, descendentes de índios e dos orientais etc”. Mas para muitos as cotas raciais são inconstitucionais e discriminatórias. José Roberto Pinto de Góes, historiador e professor da Universidade Estadual do Rio de
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Silvana Isabel Francisco
NÓ NA CABEÇA: Enquanto a camiseta afirma que “desigualda
Janeiro (UERJ), afirma: “A Constituição de 1988, como as anteriores, não reconhece a idéia de raça como um critério real de distinção entre os indivíduos e a ela só se refere para dizer que é crime discriminar as pessoas por critérios raciais. As cotas, por sua vez, são raciais, isto é, conferem legitimidade à idéia de raça”. O jornalista Lourenço Mika, de Curitiba (PR), concorda: “Penso que reservar cotas raciais nas universidades já é um sinal de preconceito. Sou de origem polaca, então também quero a minha cota. Por que então não seriam justificáveis as cotas para eslavos, orientais, índios, latino-americanos e também para os deficientes visuais, auditivos, físicos em geral?”. Dione Moura, relatora do Plano de Metas, Integração Social, Étnica e Racial da UnB, discorda: “EsNOVOLHAR – Maio/Junho 2008
sas minorias foram escolhidas porque sempre, entre todas as outras, foram as que mais enfrentaram barreiras econômicas e sociais”. Outra crítica freqüente à política de cotas é a dificuldade de estabelecer parâmetros para decidir quem pode participar delas. Um dos critérios mais polêmicos era o uso de fotografias na seleção dos candidatos às cotas. “A avaliação era feita pelo fenótipo, cor da pele e características gerais da raça negra, porque esses são os fatores que levam ao preconceito”, explica Dione Moura. A estudante Juliana Cristina, de Brasília, questiona: “Como saber quem é negro e quem é branco em um país formado pela mistura de diversas raças?”. Ela conta que conhece pessoas que passaram no vestibular pelas cotas, por conta de sua aparência, mas não são afrodescendentes de fato. E conhece descendentes de negros que não passaram pelo crivo fotográfico. A partir deste ano, a UnB adotou a entrevista pessoal com o candidato às cotas em lugar das fotos, e aqueles que optarem disputar vaga por esse sistema e forem selecionados para isso não as disputarão mais ao mesmo tempo pelo sistema universal, como acontecia anteriormente.
de se combate com direitos”, a faixa avisa que a motivação das cotas é o preconceito racial da população negra...
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A autora é jornalista em Brasília (DF)
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UMBANDA: O pai Jair de Ogum (D) realiza o sepultamento do babalorixá Valdomiro Baiano no Rio
Aprendendo com a diferença Ezequiel de Souza
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21, ALGUMAS pessoas persistem em manter atitudes de preconceito em relação às religiões de matriz africana, acusando-as de ser bruxaria e de expressar relação com espíritos maléficos. Diante dessa realidade, dezenas de babalorixás e ialorixás do estado do Rio Grande do Sul reuniram-se com o ministro Edson Santos, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), no dia 31 de março de 2008. Foram apresentadas três demandas principais: a luta pela tolerância M PLENO SÉCULO
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religiosa, a inclusão da teologia negra na formação do clero cristão e o reconhecimento da presença da mulher negra. Durante a escravidão, a religião afro foi uma importante fonte de resistência frente às tentativas de redução do povo negro à condição de “peça” do sistema colonial. Através do sincretismo, os orixás eram venerados sob as figuras dos santos católicos. A unidade do povo negro não se dava apenas pela etnia, mas muito mais pela religiosidade comum. Dentre toda a diversidade étnica dos escravizados dois
grupos se destacaram: os bantu e os iorubá. Os bantu possuíam uma idéia de Deus como distante e escondido, um princípio de vida chamado Olorum. O culto não é feito a Olorum, mas aos ancestrais. Os iorubá, por sua vez, crêem que Olorum envia o axé, o princípio de vida, ao mundo. Para os iorubá, alguns ancestrais possuem a capacidade de intervir em favor de seus descendentes. Num país com a proporção de afrodescendentes como o Brasil, é importante ter essa distinção em mente, pois a forma de trabalhar com um grupo ou outro deve ser diferenciada a partir de sua cosmovisão. Um desafio para a teologia negra é a realidade da dupla pertença. O povo negro consegue participar do culto cristão e do terreiro de batuque sem contradição. A teologia negra precisa ser capaz de identificar elementos de convergência entre as tradições negra e cristã. Atualmente, alguns setores do cristianismo defendem a incompatibilidade entre a cultura negra e a fé cristã. De modo semelhante, alguns setores das religiões de matriz africana defendem que, para ser negro, é preciso abandonar a fé cristã, acusando-a de ser uma imposição histórica. Além de elementos litúrgicos que poderiam tornar o culto cristão mais dinâmico, alegre e festivo, a tradição de matriz africana está apta a contribuir para a espiritualidade cristã com a valorização da comunidade e o apoio mútuo presentes nos terreiros. O terreiro é entendido como uma casa na qual o pai-de-santo e a mãe-desanto compartilham com seus filhos e filhas o axé de Olorum. A teologia negra entende-se como intérprete dessas duas tradições, aprendendo de ambas aquilo que de melhor elas têm a ensinar. A tolerância religiosa não é uma questão apenas das religiões de matriz africana. Ela diz respeito a toda a sociedade, pois o respeito ao diferente encontra-se na base de qualquer igualdade. Nós cristãos precisamos lembrar que também fomos perseguidos e, por esse motivo, lutar contra qualquer forma de perseguição, seja ela étnica ou religiosa. O autor é mestrando em Teologia na Faculdades EST em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
Personalidades do cotidiano
negra
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NEVES TEIXEIRA , professora negra, foi convidada a ser vice-diretora devido a seu grande trabalho como educadora. Ela sempre gostou de seu trabalho, mas do que ela mais gostava era ter o prazer de ajudar as professoras na formação de um caráter exemplar para viver em sociedade. Para chegar à sua formação, passou por várias etapas, umas fáceis, outras não tão fáceis, porque existem pessoas que não respeitam regras fundamentais para a vida do ser humano e acabam criando obstáculos aos outros por puro preconceito. Sua vida não era muito diferente de agora. Sempre foi muito comprometida com seu trabalho, procurando realizar todas as suas atividades com dedicação. Rosângela sempre foi muito comprometida com seus alunos, pois considera a educação muito importante na vida de todos, porque completa o desenvolvimento dos seres humanos. OSÂNGELA DAS
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Personalidades ligadas ao Movimento Negro do Rio Grande do Sul foram premiadas pela Organização de Mulheres Negras “Maria Mulher”
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Guerreira
Ela sonhou mais alto, mas se sente realizada com o que já fez, pois sempre pôde auxiliar muitas pessoas através de seu trabalho e de suas atividades. Esteve sempre muito ligada e inserida na comunidade da vila da escola em que trabalha, podendo atender muitos pedidos das pessoas, ajudando-as em seus problemas e dificuldades, organizando campanhas para auxiliar os mais necessitados, indo além de seu trabalho como educadora. Realizando ações diretas, mostrando que todos podemos vencer, há mais de 15 anos Rosângela vem trabalhando junto à comunidade escolar da Vila Anair em Cachoeirinha, lutando e incentivando todos a buscar um futuro melhor para seus filhos.
Por tudo o que é, ela se orgulha muito de sua cor, porque pertence a uma raça que ajudou na construção deste país, apesar do preconceito e da discriminação. Considera as pessoas da raça negra lutadoras e capazes de vencer qualquer profissão e contribuir para o desenvolvimento do país. Ela valoriza a negritude e acha que isso deveria ser mais trabalhado, para que alguns alunos negros não sintam vergonha de sua raça. Rosângela considera-se uma negra bonita e feliz por poder doar um pouco de si para ajudar os outros. Fonte: Concurso Personalidades Negras/RS – 2006 Editado por Maria Mulher/ Organização de Mulheres Negras, Porto Alegre (RS)
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Japoneses
Cem anos de
imigração A chegada de 165 famílias japonesas ao Brasil em 1908 marca o início do que é hoje a maior colônia japonesa fora do Japão. Entre eles, um grupo de luteranos mantém duas comunidades. Paula Oliveira e Juliana Leite
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APÃO, 1895. CRISE ECONÔMICA. O CREScimento populacional ultrapassa a demanda de empregos no país. Surge uma esperança chamada Tratado da Amizade, um acordo migratório que estimula a aproximação entre o Japão e o Brasil. Brasil, início do século 20. Fazendas e lavouras de café necessitam de mão-deobra estrangeira. Em 18 de junho de 1908, começa o processo de imigração. Chega ao Porto de Santos o Kasato Maru, primeiro navio com 165 famílias japonesas. Nesse cenário, inicia-se uma história que influencia a vida, os costumes e o cotidiano de várias gerações. Há cem anos, dois países teoricamente antagônicos em filosofia, geografia, história e cultura unem-se
e se reúnem num bairro chamado Liberdade. Essa liberdade, maior do que o próprio bairro, totalmente caracterizada com o suzuranto (luminárias), Toori (portal), jardins e vários outros marcos arquitetônicos orientais, representa a realidade concreta da unificação através das atividades desenvolvidas e vivenciadas pelos personagens que transitam por ela. Histórias belíssimas de luta e conquista, como no caso do artesão Kyioshi Suzuki, 87 anos, que veio de barco para o Brasil, com os pais, aos 14 anos. Desembarcou no Porto de Santos e de lá foi para uma fazenda no interior de São Paulo, chamada Fazenda Aparecida. Passou um ano trabalhando descalço, porque não tinha dinheiro para com-
Lucy Sayuri Ito e Sunao Sato – Sociedade Brasileira de Pesquisadores Nikkeis
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prar sapatos. Acabou desenvolvendo calos nos pés e carrapichos. Tentou tirá-los com remédio, foi ao médico e nada resolvia. Então desenvolveu sozinho uma lixa para raspar os calos e carrapichos. “Produzi cerca de 2.000 lixas enquanto trabalhava na fazenda, pensando que um dia poderia vender. E realmente, mais tarde, andando de ônibus na cidade, como eu não tinha dinheiro para pagar passagem, comecei a oferecer lixas para o cobrador e o motorista. A novidade espalhou-se rapidamente, e desde então eu crio, fabrico e vendo esses artigos”, conta Kyioshi. O artesão trabalha na Feira da Liberdade há nove anos, produzindo e vendendo peças que vão desde lixas, cotonetes japoneses feitos de madeira, palhetas para violão, limpadores de língua em bambu e brinquedos lúdicos. Ele tornou-se uma verdadeira celebridade no local. Tirou fotos com Fernanda Lima e Gal Costa, foi entrevistado pelo jornalista Chico Pinheiro da Globo. Mesmo falando mal o português, atrai muitos visitantes com seu jeito simples, expansivo, carismático. Segundo ele, a perseverança e o trabalho são a chave do sucesso. Outra história peculiar iniciada no bairro da Liberdade, local para onde os japoneses trouxeram a vontade de trabalhar, sua arte, costumes, língua, crenças e conhecimentos, é a do pastor Takeshi Ouno, da Paróquia Evangélica Luterana Japonesa do Brasil. Ele conta que o primeiro pastor, Tomoiti Aoki, veio ao Brasil em 1932 com uma missão de cunho assistencial e religioso, buscando amparar os luteranos japoneses que já estavam no Brasil. Aoki fundou a Igreja na rua Galvão Bueno, 4, na Liberdade em São Paulo, porém faleceu após cinco anos de atividade pastoral em 8 de dezembro de 1935. “Apesar de pouco tempo de serviço pastoral, ficaram marcados muito em nossos corações sua honestidade e dedicação ao ensinamento de Cristo. Até hoje é realizado culto em sua memória no túmulo no Cemitério do Redentor no começo de dezembro de cada ano”, lembra Takeshi. A igreja passou por um período extremamente difícil na SegunImigrantes da Guerra Mundial e foi fejaponeses chada em fevereiro de 1942. numa fazenda Porém sete anos depois no interior de São Paulo renasceu na rua Bela Flor, NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
Grandexandi
TOORI: Portal de acesso às ruas do bairro Liberdade, em São Paulo, maior colônia japonesa fora do Japão
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110, Vila Mariana, e desde então os trabalhos não cessaram mais. Atualmente o pastor Takeshi Ouno é o responsável pela paróquia, na qual ele celebra todos os domingos cultos em japonês e em português. “Na paróquia existem 90 membros – a comunidade luterana japonesa é pequena, já que a religião não é dominante entre os nipônicos. Na igreja situada na Ana Rosa, por exemplo, os japoneses não falam português e inclusive os cultos são ministrados somente em japonês”, afirma o pastor. Já na divisão da igreja que engloba a antiga igreja sul-americana, há muitos brasileiros, inclusive brasileiros sem descendência japonesa, que se interessam pela cultura oriental e querem aprender a língua japonesa. Ali há um bom intercâmbio cultural. “Hoje existe interesse da parte dos brasileiros pela cultura japonesa. Isso se nota na quantidade de produtos e tipos de artes que chegam até nós com freqüência cada vez maior”, afirma Kiroshi Fuji. São muitas as histórias ao longo desses cem anos. O fato é que os nipônicos contribuíram e contribuem muito para o país. Juntamente com índios, africanos, italianos, alemães, espanhóis, árabes, chineses e muitos outros povos, os japoneses formam este lindo painel multicultural chamado Brasil. As autoras são jornalistas em São Paulo (SP)
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Saúde
Boca quente
Arquivo/Novolhar
Um horror para os dentes
Pesquisas revelam variação de temperatura bastante significativa da boca e da garganta dos fumantes. As temperaturas corporais chegam a ter 3 ou 4 graus de diferença, acelerando processos de aquecimento bucal tremendamente nocivos à saúde. Carlos Humberto Mendes Gothchalk
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HÁBITO DE FUMAR E A CONSEQÜEN-
te dependência da nicotina têm se tornado agora, mais do que em outros tempos, motivo de preocupação para todos os profissionais ligados à saúde bucal de forma especial e para todos os outros profissionais e pessoas que buscam saúde integral e melhor qualidade de vida. Estudiosos de vários países estão realizando incansáveis pesquisas laboratoriais, biológicas (genéticas e orgânicas), interpessoais, psicológicas, sociais, culturais e mesmo religiosas e espirituais com o objetivo
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de promover estratégias que colaborem para a cessação do uso do tabaco e de seus vários derivados. Entre essas pesquisas há algumas bem interessantes e curiosas. Em alguns sofisticados laboratórios europeus, por exemplo, há linhas de pesquisa envolvendo a influência da temperatura do corpo humano para a manutenção de uma boa saúde. Os meios empregados para a medição das temperaturas corporais são interessantes porque chegam à verificação da temperatura de cada parte do corpo. Esse método aponta para questões que envolvem, entre outras ciências, a física quântica.
No caso do uso constante de cigarros, as pesquisas revelam uma variação de temperatura bastante significativa da boca e da garganta dos fumantes. Em alguns casos, as temperaturas corporais chegam a ter 3 ou 4 graus de diferença. Isso significa, por exemplo, que, enquanto o “dedão do pé” de um fumante oscila entre 32 e 35 graus, sua boca ao mesmo tempo oscila entre 38 e 43 graus. É como se a região bucal estivesse com febre no momento em que a pessoa está fumando. E, o pior de tudo, é que um fumante que consome de 20 a 35 cigarros por dia mantém sua “boca quente: um horror para os dentes” continuamente, acelerando assim processos de aquecimento bucal tremendamente nocivos à saúde do fumante. Não só para a saúde dele, mas também para todas as bocas que ele ou ela beijarem. Beijo de língua, então, nem se fala! Bem, deixando de lado as brincadeiras, o alerta é sério nesses tempos em que todas as “tribos mundiais” estão preocupadas com a questão do “aquecimento global”. Respeitando as devidas proporções, é sabido que 40 cigarros fumados ao longo de 24 horas correspondem – lembrem-se: falamos em proporções – a 30 litros de combustível que um carro consome durante um período. Assim como o carro transforma o combustível em gases tóxicos e poluentes, os fumantes fazem o mesmo. Desnecessário dizer como sofrem os dentes dos fumantes. Com temperaturas bucais sempre com “febre”, os dentes deterioram, amolecem, facilitam cáries, ficam manchados, esteticamente feios, um verdadeiro cenário de horror, para não dizer, uma boca de estilo “caverna do dragão”. Como você pode ver, há muito o que fazer para motivar seus amigos e amigas fumantes, ou talvez você mesmo, a conquistar uma boca livre dos efeitos do cigarro. Meu convite é que você possa assumir essa causa pelo bem do mundo inteiro, a começar por seus mais próximos, pois até o prazer está em alerta para obter uma boca livre do cigarro. O autor é teólogo, personal counselling e gestor público na área de RH e na Coordenação de Programas de Prevenção e Controle do Tabagismo em São Paulo (SP) NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
Desenvolvimento
Meio século de
solidariedade Fundadas em 1958, a católica Misereor e a protestante Pão para o Mundo são entidades que promovem o desenvolvimento e minimizam a fome e a miséria dos mais pobres.
as pessoas tenham vida digna e pão, no sentido amplo como Martim Lutero definiu: “Tudo o que é necessário para o bemestar do corpo e da alma”. Baseia sua atuação na ética cristã resumida em Mateus 25.40: “O que fizestes a um desses meus pequeninos irmãos a mim o fizestes”. Entre os cristãos alemães católicos também há motivo para festejar Bodas de Ouro. Há cinqüenta anos, a instituição Misereor recebeu da Igreja Católica Alemã a incumbência de combater a pobreza das vítimas de sociedades socialmente injustas. Desde 1958, organizou e apoiou mais de 90 mil projetos em todo o mundo, muitos deles no Brasil. Promove o desenFotos: Divulgação/Pão Para o Mundo e Misereor
NO BRASIL: Pão para o Mundo financiou 1 milhão de cisternas no Nordeste e apóia o trabalho com índios, enquanto Misereor organiza 90 mil projetos no mundo.
Silvio Meincke
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ONA ROSA MORA EM UMA MODES-
ta casa com seu marido e nove filhos em Zacapa, na Guatemala. O fazendeiro da localidade faz pressão para que o casal lhe venda seus poucos hectares, pois gostaria de anexá-los às suas pastagens. A família está com esperança de que não precisará vender sua roça, porque não se sente mais sozinha. Faz dois anos que participa do projeto da Igreja Evangélica da Guatemala chamado “Agricultores apóiam agricultores”. Desde então, a mesa da família de dona Rosa e de seus vizinhos está mais farta. Aprenderam que em seus roçados, além de mandioca e feijão, podem plantar árvores frutíferas e fazer hortas para colher melões, verduras e temperos. Enquanto dona Rosa e sua família trabalham com novo ânimo, muitas pessoas WWW.NOVOLHAR.COM.BR
ligadas às comunidades evangélicas da Alemanha enriquecem suas vidas com a experiência da solidariedade. Fazem coletas, promovem bazares ou vendem cafés e cucas depois dos cultos. O dinheiro para o projeto da Guatemala vem da instituição Pão para o Mundo, uma organização da Igreja Evangélica da Alemanha que está presente em mais de mil projetos ao redor do mundo. A entidade prepara-se para festejar seu Jubileu de Ouro em 2008. No Brasil, colabora com o Governo Federal na construção de 1 milhão de cisternas no Nordeste brasileiro, financia o trabalho de um casal de alemães – ele pastor e ela médica – entre os índios Kulina, apóia a construção de escolas na periferia de Vitória, na Bahia e nos assentamentos do Movimento dos Sem-Terra (MST). Com seu trabalho de solidariedade oferece ajuda para a auto-ajuda, assim que
volvimento sem diferença de nacionalidade, confissão religiosa ou cultura. Misereor pretende que sejam beneficiadas não somente as pessoas que recebem ajuda, mas também aquelas que fazem doações e arrecadam fundos, pois entende que elas experimentarão renovação, no sentido de crescer e enriquecer na alegria da solidariedade e da comunhão. Celebra seu Jubileu de Ouro sob o lema “Com raiva e ternura ao lado dos pobres”. Pão para o Mundo e Misereor promovem há cinqüenta anos o desenvolvimento por convicção de fé entre os mais pobres. Assim como dona Rosa, de um lado, e as mulheres alemãs que organizam bazares, de outro, milhares de pessoas festejam essa solidariedade cinqüentenária. O autor é teólogo e reside em Schwäbisch Hall, na Alemanha
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Comportamento
Acalanto para dormir
Eliane Zarth Souza
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EFLETIR SOBRE O SONO NOS TEMPOS
atuais parece-nos de grande importância, pois temos dedicado pouco tempo a ele. Constantemente estamos recebendo uma imensa quantidade de informações. Parece que precisamos estar ligados para não perder nada ou para não ficar desatualizados. Como então “perder tempo” com o sono, dormindo? As pessoas ficam pouco tempo consigo mesmas. É preciso aprender a desligar. Precisamos desligar-nos dos estímulos externos, mas também dos estímulos internos, ou seja, de nossos pensamentos, nossas angústias, nossos medos. Somente então é possível relaxar e dormir. Durante o tempo em que estamos acordados, acumulamos uma tensão que precisa ser descarregada. Temos que pensar em aliviar essa tensão para poder relaxar e recuperar as forças. O retorno à calma é primordial para o restabelecimento da capacidade produtiva. O sono é o relaxamento de que o corpo e a mente necessitam. As crianças são as que mais nos preocupam quando pensamos na importância do sono, porque elas precisam dormir bem. Há uma tendência em pensar que o sono está relacionado ao estabelecimento
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Marinka van Holten
É preciso aprender a desligar dos estímulos internos e externos para poder relaxar e dormir tranqüilo.
PRESENÇA: A hora de dormir é um belo momento se a criança puder contar com a presença dos pais
de um limite de horário. Mas não podemos simplificar a questão do sono ao horário em que as crianças devem deitar, ou seja, acreditar que definir o horário é o suficiente para adormecer. Estabelecer o limite de horário é importante, mas limites são mais do que isso. Limites são o resultado de uma relação de muito afeto e compreensão. Por falar em relação, é preciso entender que uma relação se constrói. Um belo momento, entre tantos, para as crianças é a hora de deitar, de dormir. Principalmente se puder contar com pais cuidadosos e, por que não dizer, amorosos. É a hora de contar uma história, de fazer uma oração, um carinho, conversar sobre o dia que passou, sobre o que é esperado para o dia seguinte. Ou seja, é o momento de fazer um elo com o filho ou a filha. A hora de dormir é tempo para promover acalanto, aconchego e carinho para as crianças. É um momento de ajudar o filho ou a filha a aprender a pensar, a relaxar e adormecer, sentindo-se protegido. Esse ensinamento será levado para
a vida toda. Sabemos que nem sempre é assim. Algumas crianças, quando muito agitadas, têm também um sono agitado, demonstrado nos pesadelos. Os pais precisam desenvolver uma sintonia com o filho para descobrir a origem da agitação e tranqüilizá-lo. Desde pequenos, aprendemos a lidar com os limites impostos para viver em sociedade. Esses limites são transmitidos em todos os ambientes em que nos encontramos. Portanto limites precisam ser compreendidos e não apenas aceitos. Para alguns pais, é complicado lidar com esse assunto. Ou ficam constrangidos pela insistência dos filhos e desistem, ou impõem-se de maneira autoritária. É preciso entender que estabelecer limites é cuidar e proteger. Tanto crianças como adolescentes e adultos necessitam de relaxamento para continuar saudáveis. Para todos essa condição começa no berço. A autora é psicóloga clínica e atua no Colégio Sinodal em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
Atitude
Eu me amo! Donário Bencke
E
– QUEM VEM PRI meiro? Quem se considera um bom cristão logo dirá: o outro. A prioridade é o outro. É o princípio do amor ao próximo do grande mandamento de Jesus: amar a Deus e amar ao próximo (Mateus 22.34-35). E há pessoas que praticam o amor ao próximo até as últimas conseqüências. Praticam a caridade até com renúncias, fazendo sacrifícios. Penso nas irmãs de caridade: renunciam à vida conjugal e familiar em benefício de doentes, idosos, menores abandonados, excluídos. Como uma vela que irradia luz para outros enquanto está se consumindo a si própria. A pergunta é: como alguém consegue dar de si, cuidar de outros sem se consumir pelo estresse e cansaço? Parece que nosso Senhor não quer que alguém faça de sua vida um sacrifício. Fazendo a releitura do princípio do amor ao próximo, percebemos que o próprio Senhor quer nos ajudar a nos dedicar a outros sem nos esquecer de nós mesmos. Em outras palavras, o Senhor também quer que cuidemos de nós. Fui convidado certa vez a falar para profissionais na área da assistência a idosos. O tema era o cuidado com os cuidadores. Parti da palavra de Jesus: “amar o próximo como a si mesmo”. Pode parecer que amar a si mesmo é egoísmo. Mas o sentido é este: se você não ama a si mesmo, como vai amar o outro? Hoje a psicologia destaca a importância da auto-estima. Quem não tem auto-estima não tem de onde tirar o amor ao outro. É como uma folha seca, um reservatório vazio, um meio sem oxigênio. E vem o esgotamento. Auto-estima é diferente de egoísmo. Egoísmo é querer tudo para si, esperar recompensa, dar para receber. Auto-estima é WWW.NOVOLHAR.COM.BR
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U OU O OUTRO
AUTO-ESTIMA: Quem não gosta de si mesmo não tem de onde tirar amor para dar aos outros
abastecer-se primeiro para dar de si. Autoestima é a fonte da qual se tira energia para passar a outro. O amor de Deus é a maior fonte de auto-estima. “Nós amamos porque Deus nos amou primeiro” (1 João 4.19). A pergunta se eu ou o outro vem primeiro está errada. Não é eu – ou. Como se um excluísse o outro. Não é eu ou o outro. É eu e o outro. Os dois se completam. O eu e o outro se completam na relação conjugal, na família, entre colegas e amigos. Eu me sinto amado e por isso também tenho capacidade de amar. Que Deus nos fortaleça em nossa auto-estima! Que possamos amar os outros assim como somos amados primeiro! O autor é teólogo e psicólogo em Ivoti (RS)
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Inclusão social
Um Brasil acessível? As pessoas portadoras de necessidades especiais somam quase 25 milhões no Brasil, um potencial mercado para a indústria do turismo, que começa a acordar para a necessidade de adaptar-se. A Associação Brasileira da Indústria de Hotéis colocou o tema como uma bandeira para os próximos anos.
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OM AÇÕES ISOLADAS, O SETOR TURÍStico começou a acordar para uma parcela significativa da população, os deficientes físicos, que são quase 25 milhões de pessoas, segundo o censo do IBGE de 2000. O número é ainda maior se somarmos as pessoas com mobilidade reduzida, como idosos, gestantes e mães com carrinhos de bebê. O primeiro grande passo foi dado pela Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH) ao colocar o tema como a grande bandeira da entidade para os próximos anos. Na abertura do último Congresso Nacional de Hotéis, a ABIH defendeu o respeito às diferenças e a necessidade de inclusão social de uma forma simples: divulgou as iniciativas que vêm sendo desenvolvidas pelo país e colocou os próprios deficientes na linha de frente do cerimonial. A ABIH está em negociação com o Ministério do Turismo para a implantação de um plano que ajude o pequeno empreendedor a adaptar seu hotel sem ter gastos excessivos ou dores de cabeça. Por exemplo, substituindo a barra de inox por
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uma de madeira ou o apoio de pé de metal por um banco de plástico – obviamente levando em consideração o objetivo do equipamento e tendo certeza de seu pleno funcionamento. O problema é que executar todas as mudanças necessárias torna-se um trabalho hercúleo quando pensamos nas dimensões continentais do país. “Mas ganhamos terreno com a conscientização gradual da importância dessas ações”, define Eraldo Alves da Cruz, presidente da ABIH. Quando questionados sobre o assunto, praticamente todos os hotéis informam que dispõem de apartamentos e áreas sociais adaptadas, mas muitos não vão além do básico. Outros, porém, trabalham a raiz do problema. As operadoras também buscam incluir os deficientes em seus pacotes, na medida do possível. Denise Santiago, diretora da Cia. Nacional de Ecoturismo, acredita que a procura ainda é pequena por dois fatores: desconhecimento e falta de investimento e prioridade por parte dos meios de hospedagem. “Esse fato deve mudar nos próximos anos, já
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Camila Lucchesi
RADICAL: A cadeira de rodas não impede Alex de participar do
que o governo tem insistido nessa preocupação. Seria muito importante facilitar as linhas de crédito, principalmente no que diz respeito à infra-estrutura. Dessa forma, as mudanças e adaptações poderiam ser feitas rapidamente”, sugere. Iniciativas isoladas podem ser vistas por todo o Brasil. A cidade de São Paulo também vem se adequando, sendo que o passo mais importante foi a aplicação do Decreto 45.904/05, que regulamenta o passeio público. A quebradeira nas calçadas, que parecia tortura para muitos paulistanos, foi o início de um grande projeto encabeçado pela Secretaria Especial da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (Seped). Segundo o secretário da Seped, Renato Corrêa Baena, a cidade foi mapeada e os pontos com maior fluxo foram prioNOVOLHAR – Maio/Junho 2008
rizados para a criação do que ele chama de “ilhas de acessibilidade”. As obras, aliadas à ampliação do atendimento no transporte público, permitem que o morador ou turista trafegue por toda a cidade sem problemas. “Gosto muito de esportes radicais, mas me deu um frio na barriga antes de chegar ao rio”, conta o paratleta André Cruz. Amputado do pé direito, ele praticou rafting e canyoning pela primeira vez com a equipe da EcoAção em Brotas (SP) e hoje recomenda a experiência a outros deficientes. A empresa nasceu adaptada aos deficientes porque, segundo a diretora de comunicação Giovana Guedes, acredita nesse mercado. O segmento de aventura parece ser o mais adaptado no Brasil. Prova disso foi a aposta do Ministério do Turismo no projeto Aventureiros Especiais, dirigido pela ONG Aventura Especial, em implantação na cidade de Socorro (SP). Foram investidos R$ 418 mil no projeto que visa transformar a cidade no primeiro destino totalmente adaptado do país, com a adesão dos meios de hospedagem e demais equipamentos turísticos. A experiência de Socorro será multiplicada por todo o Brasil.
rafting junto com a equipe. O segmento de aventura é um dos mais adaptados no Brasil para acompanhá-lo
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Fonte: Revista Host – Hospitalidade & Turismo Sustentável n° 23 www.revistahost.com.br
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Conto
Presente para a senhora Um bem-humorado conto do mestre escritor e poeta sobre presentear a mãe.
Carlos Drummond de Andrade
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possíveis para o Dia das Mães e sinto a dificuldade do problema. Tanta coisa! Até parece que a mamãe, coitada, não tem objeto algum em casa, desprovida de geladeira, armários, lenços, liquidificador, porta-notas, tigelas de cerâmica, fogão, secador de cabelo, batas... Não, mamãe tem geladeira sim, claro que tem. Não é desse eletrodoméstico fundamental que saem os refrigerantes, os cremes, as coisas gostosas que ela reservou para o paladar do filhinho? O filhinho hoje é executivo, mas sempre que vai visitar mamãe sabe que ela guardou para ele um sorvete especial na caverna do congelador. É, mas a geladeira deve ter envelhecido mais depressa que mamãe. Não tem esses babados modelo 75, sugeridos para presentes a mães classe A. – Filhinho, que exagero! – Que nada, mãe, a senhora merece muito mais. – Você devia ter deixado seu pai fazer essa despesa. – Papai lhe deu um carro novo, não deu? Vi na calçada. – Não. O carro eu ganhei do seu irmão Tavinho, que esteve aqui agora mesmo para me entregar as chaves. – E papai, nada? 40
João Soares
ERCORRO AS LISTAS DE PRESENTES
– Bom, seu pai me deu... O que foi mesmo que seu pai me deu? Ando com a cabeça tão distraída. Ah, sim, uma lancha de passeio. – Se ele deu a lancha, não ia dar a geladeira. – Ora, você sabe que seu pai vai casar com aquela loura de São Paulo e tem procurado ser gentil comigo de todas as maneiras enquanto não chega o divórcio. O filhinho sai de queixo triste. Dera o presente mais insignificante. Ano que vem terá mais cuidado, consultará mais atentamente o rol de regalos. Dia das Mães provoca frustrações assim.
Se pensam que nas classes B e C a coisa é fácil, enganam-se. Pior. Mamãe ganhou tantos pares de meia que dava para abrir uma casa-olga. Precisava ter recebido um ou dois pares de sapatos para usar aquele monte de meias, mas filho não sabe nunca o número do pé de mamãe. A nora, chamada a opinar, vai dizendo de cabeça leve: 40. Ou 35. A mãe calça 37. Vai trocar na loja, a loja tem 37 daquele modelo? Pois sim. O excesso converte-se em carência. Poucas mães conseguem receber dos filhos o presente exato. A coleção de talcos que mamãe guardou no armário do banheiro, no armário do quarto e na mala, para dar de presente às amigas que fazem anos, tem origem no segundo domingo de maio. Mas o talco de sua predileção, este ela tem de comprar na drogaria distante. – Posso escolher meu presente do Dia das Mães, meu fofinho? – Não, mãe. Perde a graça. Este ano a senhora vai ver. Compro um barato. – Barato? Admito que você compre uma lembrancinha barata, mas não diga isso a sua mãe. É fazer pouco de mim. – Ih, mãe, a senhora está por fora mil anos. Não sabe que barato é o melhor que tem, é um barato! – Deixe eu escolher, deixe... – Mãe é ruim de escolha. Olha aquele blazer furado que a senhora me deu no Natal! – Seu porcaria, tem coragem de dizer que sua mãe lhe deu um blazer furado? – Viu? Não sabe nem o que é furado. Aquela cor já era, mãe, já era! Pelo visto, todos damos presentes errados: os filhos às mães, as mães aos filhos. Maridos, namorados, idem. Sábia foi Dona Lucrécia que chamou os cinco filhos e comunicou-lhes: – Não precisam tomar trabalho comigo. Nem fazer despesa. Fico muito grata a vocês pela intenção. Basta cada um me trazer um pacotinho de paz, ouviram? – Onde a gente arranja isso, mãe? – Sei lá. O melhor é não procurar muito. Tragam pacotinhos vazios. A paz deve estar lá dentro.
O autor (1902-1987) é poeta e contista NOVOLHAR – Maio/Junho 2008
Espiritualidade
Cristãos oram pela unidade No ano do centenário da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, o mundo inteiro celebra a oração pela diversidade reconciliada entre cristãos.
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NIMAR, ESTIMULAR, ENCO-
rajar, persuadir, advertir – estes termos são sinônimos do verbo exortar. A exortação “Orai sem cessar” é o tema da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos de 2008, que acontece de 4 a 11 de maio. Mesmo que milhares de cristãos ao redor do mundo orem pela unidade já há um século, a proposta quer significar um renovado encorajamento à oração. Quer advertir para que a oração perpasse toda a nossa vida cotidiana. Estimular para a troca harmoniosa dos dons entre irmãos e irmãs de várias denominações cristãs. E também quer nossa participação na missão ecumênica que sonha com a diversidade reconciliada. A idéia de orar anualmente pela unidade dos cristãos foi semeada e colocada em prática nos Estados Unidos em 1908 e aperfeiçoada nas décadas seguintes também na Europa. Desde 1966, a cada ano, um textobase é preparado por uma equipe ecumênica de um país diferente, de todos os continentes, a convite do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos da Igreja Católica Romana. Este ano, o texto veio dos Estados Unidos, país de oriWWW.NOVOLHAR.COM.BR
gem do reverendo anglicano James Wattson, que publicamente pela primeira vez promoveu a celebração desse evento de 18 a 25 de janeiro de 1908 na cidade de Graymoor, Nova Iorque. No hemisfério Norte, a Semana de Oração é celebrada todo ano no mês de janeiro. Já no hemisfério Sul, ela é celebrada antes de Pentecostes, portanto normalmente no mês de maio. “Durante esse
período trocam-se os púlpitos e se organizam ofícios inter-religiosos e interdenominacionais de caráter especial”, destaca o CMI. Este organismo ecumênico acrescenta que “pelo menos uma vez ao ano muitos cristãos tomam consciência da grande diversidade de formas de adorar a Deus, comovem-se e se dão conta de que a maneira como o próximo rende culto a Deus não é tão estranha”. O tema da Semana de Oração deste ano inspira-se no texto bíblico de 1 Tessalonicenses 5.12 e 13, que pede aos cristãos para fazer o bem uns aos outros. O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) adaptou mais uma vez o material ao contexto brasileiro. Editou um livreto com orientações e roteiros para celebrações e grupos de estudo. Na primeira parte do livreto, resgata-se a memória do centenário da Semana de Oração, animado com a perspectiva de outro centenário em 2010, igualmente fundamental para a história do ecumenismo: a Conferência Missionária de Edimburgo, realizada na Escócia em 1910. O CONIC também assumiu a coordenação nacional das atividades através de suas igrejasmembro e de 18 representações regionais e locais, bem como através de denominações religiosas e organismos ecumênicos dispostos a trabalhar pela unidade no território brasileiro. A Semana de Oração é o principal evento do CONIC desde a sua fundação há 25 anos. Fazer acontecer a Semana não significa apenas promover uma ou mais celebrações ecumênicas. Muitos núcleos ecumênicos locais têm promovido caminhadas pela paz, vigílias, recitais, seminários e cirandas pelo Brasil afora. Canções compostas especialmente para esse evento já integram hinários de diferentes igrejas e são muito conhecidas.O CONIC planeja envolver milhares de participantes este ano. A celebração oficial nacional está marcada para o dia 7 de maio na Catedral de Brasília. Fonte: Conic e ALC
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Penúltima palavra
Língua uma visão
Culturas e línguas continuam desaparecendo pelos mesmos motivos quando do período de colonização do Brasil. Ema Marta Dunck Cintra
Walter Sass
de mundo Os indígenas não passam mais suas línguas para as próximas gerações
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UANDO SE PERGUNTA QUANTAS LÍN-
guas são faladas no Brasil, as respostas costumam ser de imediato: “Apenas uma língua: a portuguesa”. Às vezes, são citadas as línguas estrangeiras. Mas é preciso lembrar que vivemos num país multilíngüe e pluricultural. Atualmente são faladas cerca de 200 línguas, sendo 20 estrangeiras e 180 indígenas. Ainda assim, segundo o lingüista Aryon Rodrigues, possuímos apenas 15% das mais de 1.175 línguas que se calcula terem existido aqui em 1500, faladas por mais de seis milhões de indígenas de várias etnias. No decorrer da história brasileira, o encontro dos não-índios com os indígenas foi desumano e exterminador. A ocupação e a usurpação dos espaços de sobrevivência desses, a negação de suas línguas e o massacre cultural permanecem até hoje na forma de opressão, desprestígio e preconceito. Considerados por muitos como meros animais, seres preguiçosos e selvagens, os indígenas estão deixando seus hábitos culturais e, conseqüentemente, não passam suas línguas para as próximas gerações. Trata-se de um fenômeno que preocupa, pois a língua é muito mais do que um instrumento de comunicação. Ela é uma visão de mundo, um comportamento social e está ligada intimamente à vida, à cul-
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tura, à identidade e à história de um povo. Portanto a morte de qualquer língua significa a perda de uma cultura inteira. Continuamos negando a existência de povos, culturas e línguas, o que concorre para seu exílio em sua própria pátria. E nós não somos capazes de repensar o nosso discurso e a nossa prática, pois culturas e línguas continuam desaparecendo pelos mesmos motivos quando do período de colonização do país. Diante da forma como a sociedade se apresenta, resposta como a citada no início deste texto pode ser considerada até normal. Mas se trata de mais uma injustiça social entre tantas no que diz respeito aos povos indígenas, cometidas por uma grande maioria de não-índios. Mostra o descaso e o menosprezo pela língua falada por eles, o que os leva a permanecer como personagens diferenciadas e/ou distantes no espaço diante do mito de um país monolíngüe. Toda língua é adequada ao povo que a utiliza; é um sistema completo que permite a uma comunidade exprimir o mundo físico e simbólico em que vive. Não existem sistemas gramaticais imperfeitos. Seria um contra-senso imaginar seres humanos com uma “meia-língua”. Não existem línguas superiores e línguas inferiores. O que há é o
desconhecimento do que seja uma língua. Na realidade, o que a sociedade faz é relacionar o valor de uma língua com o poder e a autoridade que o povo que a fala tem nas relações econômicas e sociais. Precisamos rever, portanto, como se dá a nossa interação com os povos indígenas, pois esse contato é um fator relevante na constituição e sobrevivência física, lingüística e cultural dessa gente, que deveria ser vista com mais atenção e respeito. Uma sociedade que se diz democrática teria de ver com os mesmos olhos todos os filhos seus. Quando compreendermos que todo ser humano tem direito à vida digna com a garantia de seus direitos, conseguiremos rever as negações e apagamentos da diversidade cultural e lingüística do Brasil. Qual é o nosso posicionamento diante disso? Continuaremos negando povos e línguas? As línguas indígenas estão sendo apagadas, e com elas leituras de mundo e culturas vão se esvaindo. Isso é terrivelmente doloroso, porque o mundo vai ficando menos colorido, menos diversificado, mais triste e homogêneo. A autora é mestre em Lingüística e coordenadora do Ensino Médio em Cuiabá (MT) NOVOLHAR – Maio/Junho 2008