Ao leitor
Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Walter Altmann Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Leslie Dietrich, Marcelo Schneider, Marguit Goldmeyer, Ricardo Fiegenbaum, Vera Regina Waskow e Walter Altmann. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Roberto Soares Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Astomiro Romais, Brunilde Arendt Tornquist, Carine Fernandes, Erhard Gerstenberger, Ingelore Starke Koch, Jéssica Fontoura, Julio Walz, Luciana Garbelini, Maria Alice Rodrigues, Maria Salette Kreutz, Martin Norberto Dreher, Mauri Magedanz, Paulo Sérgio Rosa Guedes, Rui Bender, Valburga Schmiedt Streck, Vera Beatris Walber, Wilfrid Buchweitz, Wilhelm Wachholz e Willy Töpfer. Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 25,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
Meu pai incrível
“N
ÃO SEI MUITO BEM DESCREVER O MEU PAI.
Somente após a separação dele de minha mãe passei a entendê-lo melhor. A partir daquele momento nos tornamos, além de pai e filho, grandes amigos.” O depoimento é de Tiago (20 anos) e mostra bem o quanto o modelo tradicional de família modificou-se nas últimas décadas, assumindo contornos e características totalmente novos. “Para falar bem a verdade, eu nem sei onde ele está. A última vez em que tive notícias dele, estava em São Paulo, aparentemente bem”, continua Tiago, para arrematar que, “apesar de tudo isso, considero meu pai incrível, uma das pessoas mais importantes de minha vida”. Para Vera (33 anos), a relação com o progenitor sempre foi motivo de angústia e orações. “Fui criada assim. A gente não se abraçava, nem falava muito sobre o que sentia. Pai a gente respeita”, relembra ela. “Foi por respeito demais e por falta de demonstrar meu amor que eu não disse algumas coisas a ele que quero dizer agora: Pai! Todos nós te amamos muito, mas te amaríamos ainda mais se compreendesses quanto mal estás fazendo a ti mesmo e a nós quando bebes e fumas”. “Bom seria que pudéssemos, os pais mais novos, ouvir a ti e a outros que, ao saberem encarar a vida de frente, chegam à forma mais nobre de conhecer, que é a sabedoria”, reconhece o também pai Danilo (60 anos) em relação a seu próprio pai, de 90 anos. “A palavra que melhor resume a tua paternidade é o amor, a presença com os filhos, o direcionamento da vida a partir de princípios e de valores cultivados na família e na comunidade, o respeito aos filhos no sentido de vê-los como pessoas que, como imagem de Deus, não têm uma medida única nem um limite para aquilo que um dia podem ser”, registra Danilo. São depoimentos que resumem a intenção desta edição de Novolhar: uma reflexão sobre a paternidade e a afetividade. Trata-se de uma homenagem justa, mas também de um espaço de reflexão sobre uma das relações mais significativas na vida de todo ser humano. Equipe da Novolhar
ANO 6 - NÚMERO 22 - JULHO/AGOSTO DE 2008
CAPA 14 TEM PAI DE TODO JEITO Os modelos familiares e a importância da paternidade na educação dos filhos 17 Paternidade socioafetiva Novos arranjos familiares não se esgotam nos modelos previstos na Constituição brasileira
18 Ser como Deus Pai A imagem humana de Deus Pai reflete o amor e a orientação divinas
20 Martim Lutero, o pai Ser pai era um exercício diário para o reformador
O pinião do leitor ERRAMOS Na revista NOVOLHAR nº 20 – março/abril de 2008 – foi divulgado um link errado na matéria “De olho no dinheiro público”, p. 19. Foi publicado: http://www.senado .gov.br/portal/page/portal/orcamento_senado O correto é: http://www9.senado.gov.br/portal/page/portal/orcamento_senado Na revista NOVOLHAR nº 21 – maio/junho de 2008 – foi divulgada uma data errada na matéria “Identidade em construção”, p. 15. Foi publicado: A princesa Isabel, no dia 13 de abril de 1888, (...). O correto é: A princesa Isabel, no dia 13 de maio de 1888, (...).
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22 Função paterna Projeto busca reforçar a permanência de crianças de rua em seu espaço familiar e comunitário
23 Paternidade responsável: uma questão social Pai tem a função de socializar a criança
24 Características de um bom pai A figura masculina é básica para a estabilidade dos filhos
26 Uma sociedade sem pais? Pai deve assumir responsabilidade junto com a mãe
27 Entre a tradição e a autonomia A realidade dos casamentos contratados na Índia SERIEDADE Sou negra, historiadora e faço parte da equipe que trabalha com as comunidades quilombolas no CAPA SUL em Pelotas (RS). Acabei de ler todas as matérias da revista NOVOLHAR número 21, ano 6, e fiquei feliz ao me encontrar, ou melhor, encontrar minha história presente nessas páginas. Gostaria de parabenizá-los pelo trabalho e pela seriedade com que estão tratando essa questão tão séria e muitas vezes esquecida nas relações que estabelecemos com os outros. Já estou recomendando a leitura a meus colegas de trabalho. Ledeci Lessa Coutinho – por e-mail Pelotas (RS) Bom trabalho na Novolhar. A revista está sendo reconhecida por outros setores da sociedade. Pastor Carlos E. M. Bock - por e-mail Novo Hamburgo (RS) NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
OUTROS ASSUNTOS 6
Espelhos Bertholdo Weber foi um inconformado e lutador
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Reflexão A amizade é um motivo de louvor a Deus
10 Notas ecumênicas Leonardo Boff: Falta compaixão no mundo
30 Profissões O último fotógrafo lambe-lambe de Porto Alegre
31 Entrevista Leonardo Boff: Igrejas devem recriar novas linguagens
34 Igreja Verde Sociedade Bíblica do Brasil lança primeira EcoBíblia do mundo
36 Visão cristã As superstições que cercam o mês de agosto, também um presente de Deus
37 Comportamento O sentimento de culpa
PRÓXIMA EDIÇÃO 200 ANOS DE IMPRENSA Com a chegada da família imperial portuguesa, surgiu também a Imprensa Régia no Brasil, dando início às publicações no país.
38 Inclusão social É preciso praticar a inclusão social sem preconceitos
40 Conto O vendedor de palavras, em texto de Fábio Reynol
41 Espiritualidade Ação de graças no dia-a-dia
42 Penúltima palavra O desafio de reeditar novos afetos e construir a felicidade
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Espelhos
Bertholdo, o inconformado Por causa da cruz e da ressurreição de Jesus Cristo, Bertholdo Weber era um inconformado com a destruição da vida e a divisão no corpo de Cristo.
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INHAS LEMBRANÇAS EM RELAÇÃO
a Bertholdo Weber remontam a 1953. Naquele ano, ele passou a ser pastor de minha comunidade luterana em Montenegro (RS). Bertholdo era gaúcho de Linha Marcondes, Gramado (RS), nascido em 22 de julho de 1929. Os pais foram agricultores. Da mãe recebeu forte influência do pietismo. Jovem, foi a São Leopoldo para estudar no Instituto PréTeológico. Como o Sínodo Riograndense não possuía, ainda, uma escola de Teologia, seguiu para a Alemanha. Estudou em Göttingen, Leipzig e Tübingen (19391941). Em 1º de setembro de 1939, estava em solo europeu quando tropas alemãs invadiram a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. Na época, participava de um grupo de estudantes que se opunha às ingerências do Estado nazista na vida da igreja. Concluídos os estudos em meados de 1941, Bertholdo foi convidado para ser assistente de um de seus professores. Não pôde fazê-lo. Uma carta chamava-o de volta ao Brasil. Aqui quase todos os pastores alemães haviam sido retirados da zona de fronteira por ordem do governo brasileiro e encarcerados como inimigos do país. No Natal de 1941, Bertholdo chegou a Gramado para visitar os pais e foi preso, acusado de ser espião nazista. Libertado por não haver provas contra ele, seguiu para Três de Maio (RS), sua primeira paróquia. Em agosto de 1942, foi convocado
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Divulgação Novolhar
Martin Norberto Dreher
para integrar a Força Expedicionária Brasileira (FEB). No final dos treinamentos, era sargento; no fim da guerra, tenente. Weber seguiu com o primeiro contingente de seis mil soldados para a Itália em setembro de 1944. Foi tradutor e intérprete do marechal Mascarenhas de Moraes, comandante da FEB. Na Itália, Bertholdo encontrou ex-colegas de estudo, agora prisioneiros do exército brasileiro. Os horrores da guerra o marcaram. “A guerra não está nos planos de Deus”, dizia. Tornou-se pacifista. De volta ao Brasil, atuou no Instituto PréTeológico e na Escola de Teologia. A Escola de Teologia, hoje Faculdades EST, não tinha na época um corpo docente permanente. Os professores eram pastores de comunidade. Por isso conhecia Bertholdo desde 1953, em Montenegro, onde era meu pastor. De nossa comunidade ele ia, com o jipe, para São Leopoldo lecionar Novo Testamento. Bertholdo sabia contar histórias bíblicas como poucos. O culto infantil e o ensino confirmatório faziam gosto. Falava com tanto entusiasmo a respeito de Albert Schweitzer, que meu irmão quis ser missionário na África. Sabia entusiasmar-nos em relação a Gustavo Adolfo: tornamo-nos campeões da coleta infantil da Obra Gustavo Adolfo. Seus sermões eram trilíngües: português, alemão e hunsrückisch. Com ele aprendi a conhecer Lutero. Assim, Bertholdo
foi se tornando parte de minha biografia. Em 1958, ele partiu com sua família para a Alemanha para novos estudos. De lá retornou ao Morro do Espelho, em São Leopoldo, onde atuaria e residiria até sua morte em 20 de fevereiro de 2002. Em São Leopoldo, foi novamente meu professor na Faculdade de Teologia e depois colega na mesma instituição. Por causa da cruz e da ressurreição de Jesus era um inconformado com a destruição da vida. Por causa de cruz e da ressurreição era entusiasta das crianças abandonadas e dos portadores de deficiência. Mas era também um inconformado com a divisão no corpo de Cristo. Desde 1949, ele participava do diálogo católico-luterano a nível nacional e internacional; foi um entusiasta da criação do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil (CONIC). Batizado por pastor da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, Bertholdo lamentou até o fim não poder comungar com todos os cristãos na Ceia do Senhor. Pediu-me que o sepultasse usando palavras do apóstolo Paulo em 1 Coríntios 1.1825. Foi o que fiz em 21 de fevereiro de 2002, mirando-me em sua fé. O autor é teólogo e professor de História na Unisinos em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
Olhar com humor
D ica cultural E stá na agenda
a Mídia, religião e culturrealiza a 6ª Conferên-
de São Paulo A Universidade Metodista apoio da 11 a 14 de agosto, com de ltura América cia Mídia, Religião e Cu – stã Cri o ra a Comunicaçã O obje). Associação Mundial pa (SP o mp Ca do São Bernardo gião e reli Latina (WACC-AL), em da as a interface com os tem cientís tivo é a formação para õe uiç trib s à mídia, trazendo con de ção da cultura relacionado era sup a e nto ra o enfrentame tes an ud ficas e profissionais pa est e isadores, profissionais questões globais. Pesqu unicação, religião com da as áre s na a vão se ocupar com o tem ev/conferencia. es: www.metodista.br/ e humanas. Informaçõ
de mulheres Encontro sinodal IEC SinoLB realiza o Encontro
da O Sínodo da Amazônia r criados à tema: “Homem e mulhe o re sob res lhe Mu ce de 1º dal de nte aco tro con de Deus”. O en ça an elh sem e m ge ima mulheres de l (RO). Participam 180 a 3 de agosto em Cacoa azonas e Am re, Grosso, Rondônia, Ac à imacinco estados (Mato da cria ser ca sobre o que signifi r leti ref ra pa a), raim Ro ert@bol.com.br Deus. Informações: seb gem e semelhança de Ebert. 1882 – com a Pª Sonia ou pelo fone (69) 3321
Ben X, o Filme Em maio passado, a Igreja Evangélica da Alemanha (EKD) elegeu “Ben X” como filme do mês. Este filme belga, de 2007, conta a história de Ben, um adolescente autista que é alvo freqüente de brincadeiras e gozações de seus colegas na escola. Relata o sofrimento de um jovem que não consegue corresponder às normas e imposições da sociedade. Ele só consegue viver plenamente como “diferente”, de forma segura e protegida, no mundo virtual de um jogo de representação de papéis (RPG), chamado ArchLord. Numa colagem inusitada de filme real e virtual, com seqüências de jogos on-line, o filme mostra o mundo interior de Ben. Entre seu sofrimento real e sua coragem lúdica virtual ficam evidentes a ansiedade e a fragilidade que ameaçam destruí-lo. A fascinação do mundo cibernético e a ficção cinematográfica fundemse e possibilitam percepções incomuns. Isolamento e estranhamento entre jovens também são tema do filme, assim como o bullying e a violência na escola. A mensagem é positiva: há um caminho de volta do jogo para a vida real.
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Reflexão
Amizade: motivo de louvor A amizade é recíproca. Por isso Jesus vê nos discípulos um grupo de pessoas em que pode confiar, abrindo a eles sua vida. A amizade não acaba. Transcende todas as barreiras e vê no outro a imagem de Deus.
“A
MIGO É COISA PRA SE GUARDAR
debaixo de sete chaves, dentro do coração” (Milton Nascimento) – “Se uma boa amizade você tem, louve a Deus, pois a amizade é um bem” (Hinos do Povo de Deus nº 412). A palavra “amigo” é muito usada entre nós. Da mesma forma, a palavra “amizade” é muito corriqueira. Enfim, o que vem a ser amigo? Amizade? Vamos olhar a palavra bíblica que encontramos em Lucas 12.4: “Eu afirmo a vocês, meus amigos: Não tenham medo daqueles que matam o corpo e depois não podem fazer mais nada”. Nesta palavra bíblica, Jesus chama seus discípulos de “meus amigos”. Com isso Jesus quer alertá-los sobre a falsidade dos fariseus. Os fariseus se dizem amigos, mas, na verdade, são verdadeiros “amigos da onça”. Não são sinceros. Para Jesus, a amizade não compactua com a falsidade e a mentira. A verdadeira amizade vai em busca do irmão e da irmã combalidos. Preocupa-se com o bem-estar do irmão e da irmã. Jesus chama seus discípulos de “meus amigos”. Ele dá um novo sentido às palavras “amigo”e “amizade”. Amigo é aquele no qual se pode confiar em todas as si8
tuações. E Jesus sabe que pode confiar em seus discípulos, apesar de suas constantes fraquezas. Mas também sabe que eles não deixarão de levar adiante sua mensagem e proposta de vida digna e justa. Jesus tem motivos para chamar seus discípulos de “meus amigos”: a) Ele dedica a eles o seu amor. Eles carregam em suas vidas o amor de Deus, revelado em Jesus Cristo. E, por estarem contagiados com esse amor, Jesus deposita neles toda a sua confiança. b) Jesus introduz os discípulos em sua mensagem. É a eles que ele revela o que são a misericórdia, o amor, o perdão e o reino de Deus. Além disso, a eles Jesus revela toda a sua paixão. Abre seu coração a eles porque confia neles. c) Jesus conta a eles a verdade. Por mais dolorida que seja, ele conta a verdade. Os discípulos têm o conhecimento a respeito de seu mestre. A eles é dito quem é Jesus. d) Jesus faz dos discípulos continuadores de sua graça. Eles recebem dele a missão de continuar a levar sua palavra da vida adiante. Por intermédio deles a Palavra continuará viva, crescendo e frutificando. e) Jesus questiona os discípulos. Em suas fraquezas, os discípulos dão sinais de recaída. Lembremo-nos de Pedro e Tomé. Jesus questiona suas atitudes, mas não os abandona.
Gözde Otman
Willy Töpfer
MOTIVO DE LOUVOR: A amizade sempre será um bem, pois
Portanto Jesus tem motivos de sobra para chamar seus discípulos de “meus amigos”. Eles também dão motivos para isso. Seguem Jesus incondicionalmente. Deixam tudo para trás para acompanhar alguém que tinha outra mensagem. Eles vêem em Jesus também um amigo. A amizade é recíproca. Por isso Jesus vê nos discípulos um grupo de pessoas em que pode confiar, abrindo a eles sua vida. Eles tornam-se cúmplices de Jesus e de sua missão. Lucas 12.4 também nos mostra as conseqüências de sermos chamados de “meus amigos”: Jesus diz que seus NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
lida com a verdade, o amor, a justiça e a misericórdia e está fundamentada no amor de Deus, que ama primeiro
amigos não precisam ter medo. Quem se sente amigo de Jesus não tem medo, pois se sente amparado. Amparado por palavras que nos consolam, animam e também questionam. Podemos dizer que também a nós Jesus abriu seu coração, confiando-nos todo o seu projeto de vida. Se somos amigos de Jesus, então nos aceitamos como amigos. Somos comissionados a ser amigos uns dos outros. Devemos estar prontos para confiar no outro e abrir nosso coração ao outro na certeza de ser ouvidos e respeitados. Como amigos tornamo-nos cuidadores da vida do outro. Não nos alegramos e WWW.NOVOLHAR.COM.BR
nem festejamos a desgraça do outro, mas sofremos junto. Isso é assim pelo fato da amizade estar fundamentada no amor de Deus, que ama primeiro até as últimas conseqüências. A amizade não acaba. Ela transcende todas as barreiras, pois procura ver no outro a imagem do próprio Deus. Por isso a amizade é e sempre será um bem, porque lida com a verdade, o amor, a justiça e a misericórdia. A amizade é e sempre será motivo de louvor a Deus. O autor é teólogo e obreiro da IECLB em Santa Maria de Jetibá (ES)
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Ricardo de Moraes/Imago Comunicação
Notas ecumênicas
BOFF: O teólogo brasileiro recebeu o “Honoris Causa” da Faculdades EST
Falta compaixão Rui Bender
“A
S IGREJAS AINDA NÃO DESPER-
taram para a ecologia”, lamentou o teólogo católico Leonardo Boff em entrevista à imprensa no dia 15 de maio no auditório da Faculdades EST em São Leopoldo (RS). Isso é lastimável, na sua opinião, porque justamente as religiões deveriam servir como “escolas para a conscientização da humanidade”. As igrejas deveriam “alimentar a generosidade” humana, para que os recursos naturais sejam distribuídos de forma equânime, já que o sistema capitalista só quer explorar esses mesmos recursos. O modelo capitalista vai levar a humanidade a um impasse, garante Boff. O teólogo denuncia que no Brasil grandes empresas estão comprando áreas com nascentes de água. Certamente elas têm conhecimento de que em pouco tempo a água vai ser o bem mais valorizado do planeta, mais ainda do que o petróleo. Boff acredi10
ta que as guerras do século 21 terão como motivação a água. Apenas 3 por cento da água do planeta são potáveis, e 60 por cento desse precioso líquido estão nas mãos de oito países. O Brasil é uma potência da
água, porque 16 por cento da água de todo o mundo estão em nosso território, observa. O que pode ser feito? Boff argumenta que a dessalinização é muito cara. Com a distribuição desigual e sendo o acesso à água um direito de todos os seres humanos, as igrejas precisam intervir. A solução deve ser global. Entretanto, o grande impasse é o tempo. É preciso achar soluções com urgência, pois “estamos caminhando para o coração da crise”, adverte Boff. A Terra não vai agüentar o consumo desenfreado, e os líderes mundiais são inescrupulosos, com algumas raras exceções. “Há falta de compaixão no mundo”, reconhece Boff. Então cabe aos intelectuais provocarem angústia, porque somente assim as pessoas buscarão saídas, entende o teólogo. Citando o filósofo Hegel, o teólogo Boff salienta que o ser humano aprende tudo do sofrimento. Entretanto, as igrejas, que poderiam ser a esperança do povo, vivem um “grande inverno”. Há um vazio profético nas instituições eclesiásticas, na opinião do teólogo. São poucos os profetas que denunciam, lamenta. Boff lembra o reformador Martim Lutero como exemplo de líder que denunciava. Pois Lutero também viveu num mundo conturbado como hoje e foi um grande batalhador. “Havia nele uma alma libertária”, arremata Boff. O autor é jornalista em São Leopoldo (RS)
Homenagem a Leonardo Boff Na noite de 15 de maio, no auditório do Colégio Sinodal, o título de Dr. Honoris Causa foi outorgado pela Faculdades EST a Leonardo Boff. Ele é reconhecido internacionalmente por sua produção intelectual na área da Teologia, tendo suas obras traduzidas para vários idiomas. Seus livros abordam questões da espiritualidade, da ecologia e do entendimento entre os povos. É reconhecido também por sua militância junto a movimentos sociais e a comunidades eclesiais de base. Leonardo Boff agradeceu a honraria, dizendo sentir-se especialmente grato. “Muito aprecio e respeito a Faculdades EST pela qualidade de seus professores, sendo uma honra receber este título de uma instituição luterana que mantém um nível de reflexão teológica à altura dos grandes centros metropolitanos do pensamento”, disse ele sobre a instituição ligada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
Batistas pedem desculpas pela escravatura Um grupo de batistas britânicos visitou a Jamaica, dias 22 a 29 de maio, para oferecer desculpas à União Batista do país pela escravatura imposta aos negros no passado. O Conselho da União Batista da Grã-Bretanha aprovou, em novembro do ano passado, em Swanwick, na Inglaterra, resolução de desculpas “a Deus e aos nossos irmãos e irmãs” pelo “dano que causamos, as divisões que criamos, a renúncia em enfrentar os pecados do passado, a falta de vontade para escutar a dor de nossas irmãs e irmãos negros e o silêncio frente ao racismo e à injustiça de hoje”. Milhões de africanos foram seqüestrados na África e levados para a América, incluindo a Jamaica, para trabalhar nas plantações de propriedade dos colonialistas britânicos. A equipe que viajou à Jamaica para formalizar o pedido de desculpas contou com o secretário-geral da entidade, Jonathan Edwards; o diretor-geral da BMS Missão Mundial, Alistair Brown; o coordenador de justiça racial da BUGB, Wale Hudson Roberts, e o representante da Associação Batista de Londres e do Fórum de Igrejas dos Ministérios de Minorias Negras e Étnicas, Pat White.
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Clonagem é brincar de Deus, dizem bispos metodistas
E
NFATIZANDO QUE A VIDA É DOM DE
Deus, o colégio de bispos da Igreja Metodista declarou, em documento, que a legalização do aborto é uma aberração, uma espécie de infanticídio, e que usar células para reproduzir vida para salvar outra, o que a clonagem possibilita, “é algo que se assemelha a brincar de ser Deus”. O Colégio Episcopal posicionouse contra a pesquisa com células-tronco embrionárias, aprovada no final de maio pelo Supremo Tribunal Federal, por “desconfiar que a ambição humana não tem fim e pode usar tal pesquisa para fins escusos”. Já que a lei está aprovada, os bispos conclamam o governo para que zele pela bioética e seus princípios de autonomia, beneficência e justiça. O documento ressalta que se trata da reflexão dos bispos a respeito dos aspectos profundos da vida e dignidade humana, sobre os quais eles procuraram contribuir para que a sociedade tenha discernimento e clareza diante dos desafios que a ciência impõe. Os bispos entendem que descriminalizar – não considerar crime – o aborto não ataca a origem de muitas situações que
levam a mulher a praticá-lo. “O aborto não pode ser resolução para a mulher que não se vê em condições de ter uma criança e criála. Esta atitude favorece o status quo de sistemas injustos, que não priorizam vida digna às pessoas”, apontam. Em caso de estupro, contudo, o aborto pode ser considerado se a gestante manifestar esse desejo, e em caso de anencefalia, os bispos não consideram que se trate, então, de um aborto, “mas muito mais uma antecipação terapêutica do parto”. A Igreja Metodista entende que os organismos geneticamente modificados, ou transgênicos, trazem benefícios à humanidade, contudo os riscos são maiores. Se os transgênicos beneficiam a agricultura, a médio e curto prazos também trarão malefícios, como o fim das sementes convencionais e o uso cada vez mais agressivo de agrotóxicos, com riscos de contaminação de solo e águas. Matérias compiladas pelo jornalista Edelber to Behs a partir de repor tagens publicadas pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC). Site: www.alcnoticias.org
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Última hora
N ovolhar sobre
Maria Salette Kreutz
O consumo dos alimentos diet e light cresceu nos últimos anos. As opções também, já que as prateleiras dos supermercados estão cada vez mais recheadas com esses produtos. O que é um alimento diet? E light? Que diferenças existem entre eles? Diet – Estão erroneamente associados a baixas calorias. Na realidade, produtos diet são aqueles em que há a eliminação de um ou mais ingredientes da fórmula original ou que foram trocados totalmente por outra substância. Esses produtos foram criados para atender pessoas que tenham restrição a algum tipo de substância, como os diabéticos ou os hipertensos. Portanto, o alimento diet é aquele que não possui açúcares, sódio, gorduras ou algum outro ingrediente. Por isso um alimento diet não significa que tenha menos calorias. Um caso clássico é o de alguns chocolates diet, que, apesar de possuírem nada de açúcar, têm quase a mesma quantidade de calorias do que sua versão normal, uma vez que possuem mais gorduras. Light – Estes devem, obrigatoriamente, ter no mínimo uma redução de 25% em algum de seus componentes. Não é obrigatório que essa redução seja no açúcar. O mais comum é a redução no teor de gordura, tendo como públicoalvo as pessoas com excesso de peso. Os diabéticos devem seguir orientações de um nutricionista ou médico quanto a seu consumo. Para evitar problemas, fique atento aos rótulos dos produtos no ato da compra e consumo, para que eles atendam seus objetivos da melhor forma possível.
A autora é nutricionista em São Leopoldo (RS)
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O cupuaçu é nosso!
A
LEI QUE ESTABELECE O CUPUAÇU
como fruta nacional foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e publicada em 20 de maio no Diário Oficial. O cupuaçu é uma fruta tipicamente nacional. Do mesmo gênero do cacau, é alimento dos povos indígenas da região amazônica. Dele se fazem sucos, cremes, sorvetes, geléias, doces e, mais recentemente, chocolate. O projeto para transformar o cupuaçu em fruta nacional tramitava no Congresso Nacional desde setembro de 2003. Na época, ONGs que atuam na Amazônia compraram uma briga pela paternidade da fruta, mobilizadas pela contestação à concessão dos direitos de comercialização da marca “cupuaçu” à empresa japonesa Asahi Foods. A Asahi criou uma espécie de subsidiária, a Cupuacu International (sem cedi-
Ronaldo Salame
Diet e light
CUPUAÇU: Uma fruta tipicamente nacional, do mesmo gênero do cacau
lha), que pediu também o registro de patente para os métodos de produção industrial do cupulate, o chocolate obtido a partir da semente da fruta. A campanha “O Cupuaçu é Nosso” virou, na época, um símbolo da luta de ONGs contra a biopirataria. Foi comparada ao bordão “O Petróleo é Nosso”, pregação que durou seis anos (entre 1947 e 1953) e resultou na criação da Petrobras. Fonte: www.folha.com.br
Herói latino-americano da segunda guerra El Salvador solicitou a Israel o reconhecimento do coronel José Arturo Castellanos como um dos heróis da Segunda Guerra. O pedido foi anunciado pelo ministro de Relações Exteriores, Francisco Lainez. Na condição de cônsul de El Salvador em Genebra, Suíça, Castellanos participou, junto com George Mandel, um judeu de origem romena, de uma operação de salvamento de mais de 40 mil judeus durante a Guerra. Investigações dão conta de que Castellanos pôs à disposição recursos diplomáticos e estabeleceu o Consulado salvadorenho como centro de operações de uma das maiores intervenções de salvamento de vidas do holocausto. Sua atuação foi realizada de forma encoberta. Também ficou estabelecido nas investigações realizadas pela Chancelaria que o coronel Castellanos não lu-
crou ou tirou proveito do desespero daqueles que apenas procuravam salvar suas vidas. O episódio permaneceu desconhecido durante 60 anos. Mesmo existindo referências e escritos sobre o tema, ainda não havia sido feita uma investigação formal para esclarecer a participação do coronel Castellanos na operação de salvamento. A formação de uma Comissão Investigadora na Chancelaria foi decisiva para desvendar os detalhes da ajuda. Salvos por Castellanos pedem que ele seja reconhecido como “Justo entre as Nações” ante o Instituto Yad Vashem, em Jerusalém. O título corresponde ao maior reconhecimento oferecido pelo Estado de Israel a pessoas que se destacaram na ajuda a judeus perseguidos. O coronel Castellanos faleceu em San Salvador, aos 86 anos de idade, pobre e sem bens, no dia 18 de junho de 1977. NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
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Capa
Tem pai
de todo jeito Rui Bender
A
FAMÍLIA SEMPRE FOI CONSIDERADA UMA DAS MAIS IMPORTANTES INSTITUIÇÕES
da sociedade, porque se entende que dela depende o bem-estar social. Mas as grandes mudanças culturais da atualidade estão provocando transformações nas suas formas de organização. Alguns acreditam que a família vai desaparecer, outros argumentam que ela sempre sofreu transformações ao longo da história. Certo é que nosso modelo normal de família de algumas décadas passadas não pode ser comparado ao que existe hoje.
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Padrões familiares de meio século atrás parecem absurdos nos dias atuais. Esta avaliação é da psicóloga Valburga Schmiedt Streck, professora de Aconselhamento Pastoral na Faculdades EST em São Leopoldo (RS). A historiadora Eni Samara, da Universidade de São Paulo (USP), concorda que hoje temos uma família diferente daquela que tínhamos no passado. Ela pesquisa a família brasileira há mais de 30 anos e revelou sua experiência numa recente edição do programa “Globo Repórter”. A historiadora afirmou que a maior mudança ocorreu na relação entre pais e filhos. As crianças passaram a ter outro comportamento dentro de casa. “Elas ocuparam o sofá da sala, que antes era um espaço só dos adultos”, observa Eni. Outra mudança significativa é o grande número de casamentos desfeitos. Quem de nós não conhece alguém que já enfrentou uma separação? Antes isso exigia um longo processo na Justiça, mas desde o ano passado pode ser resolvido, em alguns casos, no cartório mesmo. Daí que de cada três jovens brasileiros um tem pais separados, constatou o “Globo Repórter”.
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FAMÍLIA-MOSAICO – O grande volume de casamentos desfeitos desemboca no que hoje se chama de “famíliamosaico”. O mosaico é formado por filhos de outros casamentos que passaram a conviver como irmãos. O psicanalista Mário Fleig, professor do curso de Psicologia da Unisinos (São Leopoldo, RS), entende que “as modificações na estrutura familiar clássica não significam o fim da família”. Por sua vez, a psicóloga Lídia Weber, da Universidade Federal do Paraná, considera que “família é onde a gente se sente bem, mesmo não havendo laços de sangue”. Valburga salienta que “a família nuclear burguesa (constituída pelos pais e dois filhos) na realidade nunca existiu como uma regra, mas como um entre vários modelos e arranjos familiares que coexistiram no curso da história”. Na atualidade, vigora “a pluralização dos modelos familiares”, constata. “Os novos arranjos familiares não se esgotam nos modelos de família expressamente previstos no texto consti-
tucional. A interpretação do texto constitucional permite concluir que existem outras entidades familiares, tais como as famílias constituídas por pares homossexuais”, acrescenta Maria Alice Rodrigues, professora de Direito de Família na Unisinos em São Leopoldo (RS). “A mudança em que a família e a sociedade se encontram é um desafio especial para a igreja, porque ela precisa alterar seu conceito de família nuclear patriarcal, dando espaço a pessoas que não cabem nas estruturas idealizadas de família: os divorciados, os solteiros, os homossexuais”, aponta Valburga. No entanto, ela frisa que é importante a figura paterna na educação dos filhos, sob pena de graves conseqüências na sua formação. Durante quase quatro mil anos predominou o sistema patriarcal nas relações familiares. Era incontestável o papel do homem como chefe e provedor da família. Porém hoje o pai não é mais visto como “a figura econômica exclusiva e passa ser reconhecido como instância afetiva e educacional para os filhos”, constata a socióloga Carla Almeida, professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
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PATERNIDADE – Claudir Konrad (49), representante comercial de Estância Velha (RS), perdeu sua esposa há quase dez anos e teve que “aprender a se virar” com dois meninos, que na época tinham menos de dez anos de idade. Ele teve que assumir o papel de pai e mãe simultaneamente, mas admite que teve a valiosa ajuda de familiares. Hoje seus filhos já são adolescentes, mas ainda sentem a falta da mãe, principalmente em datas comemorativas. Claudir lembra que, nesses anos de falta da esposa, ele teve que trabalhar com os filhos sentimentos como luto, raiva e saudade. Foi difícil para ele impor-se como pai em alguns momentos para não machucar os filhos fragilizados pela perda da mãe. Ele entende que os filhos têm que ter “uma âncora”. Na falta da mãe, o pai tem uma responsabilidade muito maior. “O pai tem que ser parceiro e amigo do filho, acompanhar sua formação mais de perto”, julga Claudir. Além disso, na sua opinião, referências importantes na vida de toda criança são a convivência familiar, a vida religiosa e a escola. Idêntica preocupação com os filhos tem Roberto Schneider (nome fictício), profissional liberal de uma cidade do Vale do Sinos (RS). Separado há alguns anos, sua ex-esposa vem dificultando sistematicamente o relacionamento com seus filhos. Os piores momentos são Natal e AnoNovo, quando os filhos estão ausentes,
admite Roberto. Ele relata que a ex-esposa está usando as crianças para castigá-lo e fazê-lo retomar o casamento, que para ele está completamente desgastado. Mesmo assim, ele gostaria de ser amigo da ex. “Eu só quero ter a oportunidade de ser feliz”, pede Roberto. Entretanto, o que mais o preocupa é a educação dos filhos. Eles não estão sendo poupados da crise do casal. E o comportamento negativo da mãe está prejudicando as crianças, que na opinião de Roberto têm medo dela e às vezes evitam ficar com ele. Não obstante, ele tenta se fazer presente, “mostrando ser amigo com criatividade”. Roberto sugere a todos os pais separados honestidade e sinceridade com os filhos, estar presente na medida do possível e muito diálogo. “Paternidade é pensar no bem dos filhos, ensinar o certo e o errado, preparálos para a vida, para o futuro. É ser amigo, acompanhá-los e orientá-los”, frisa Rafael (26), segurança de uma empresa privada em Estância Velha (RS), que é padrasto de quatro e pai natural de um filho. Sua esposa é um pouco mais velha e já tinha quatro filhos quando Rafael a conheceu. O que começou como uma aventura de namorar uma mulher mais velha terminou num caso sério. “Com o passar do tempo, eu me apaixonei. Gostei do seu jeito de ser”, explica Rafael. Então foram morar juntos. Quando isso aconteceu, fizeram muitas
piadas e brincadeiras com ele. Mas nada o abalou: “Não importava o que falassem e sim o que eu queria e sentia”. Rafael admite que tem um bom relacionamento com seus enteados, a quem ele chama de filhos e que o chamam de pai. Ele admite que eles o respeitam muito, mas lamenta que tem pouco tempo para sair com eles por causa de seu trabalho. Mesmo tendo um filho com sua companheira, Rafael diz que não prioriza ninguém. “Procuro dar a todos o mesmo carinho e a mesma atenção”, salienta. GUARDA COMPARTILHADA – Abre-se a partir de agora uma nova era nas relações familiares. O presidente Lula acabou de sancionar a lei da guarda compartilhada dos filhos de pais separados, alterando o Código Civil. A partir de agora, um juiz deve dar preferência à guarda compartilhada quando não houver acordo entre os pais. Acredita-se que isso vai terminar com a disputa pelos filhos. E assim a criança deixará de ser um instrumento de vingança de pais prisioneiros de rancores passados. A nova relação vai exigir um grau de amadurecimento dos pais, alerta Adriano Ryba, presidente da Associação Brasileira dos Advogados de Família (Abrafam). Com a guarda compartilhada, ambos os pais podem contribuir para a educação do filho. Este pode dispor de duas casas, não se sentindo mais visita na residência do pai ou da mãe. Não haverá rigidez quanto ao tempo de permanência na casa de um ou de outro. O compartilhamento sempre objetiva beneficiar as crianças. Com isso vai se criar uma nova mentalidade de pais separados. Sobretudo a afetividade vai ganhar importância. Justamente para assegurar a manutenção dos vínculos afetivos com os pais é que nasceu a proposta da guarda compartilhada, lembra Maria Alice. Ela argumenta que “cada vez mais os tribunais brasileiros consideram como preponderante para definir a paternidade o aspecto socioafetivo da mesma”. O autor é jornalista em São Leopoldo (RS)
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Maria Alice Rodrigues
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FAMÍLIA PASSA POR INÚMERAS
lógica a partir de vínculos afetivos. Nesse contexto, o Direito brasileiro contempla três dimensões da paternidade, ou seja: a paternidade que se estabelece a partir do aspecto legal (o Código Civil prevê que os filhos nascidos na constância de um casamento são filhos do marido da mulher casada); a paternidade biológica e a paternidade socioafetiva, que se constitui a partir dos laços afetivos, da convivência. Ao tratar da paternidade, o novo Código Civil não trouxe muitas inovações. Ao contrário, em alguns aspectos, parece ter dado maior importância à paternidade biológica. No entanto, o artigo 1.593 diz que “a relação de parentesco é natural ou civil, conforme decorra da consangüinidade ou outra origem”. Esse dispositivo tem sido considera-
Paternidade socioafetiva Novos arranjos familiares não se esgotam nos modelos previstos na Constituição.
Joseph Hoban
transformações, e algumas dessas mudanças foram acolhidas pela Constituição de 1988. A Carta Magna provocou uma verdadeira revolução no Direito de Família ao reconhecer que a família é plural e pode ser constituída pelo casamento, pela união estável e ainda pode caracterizar-se como monoparental, ou seja, a partir da convivência de apenas um dos pais com seus filhos. No entanto, os novos arranjos familiares não se esgotam nos modelos de família expressamente previstos no texto constitucional. A interpretação do texto constitucional permite concluir que existem outras entidades familiares, também implicitamente contempladas e protegidas, tais como as famílias constituídas por pares homossexuais, as famílias recompostas (formadas por casais que já possuem filhos de relacionamentos anteriores), entre outros. A Constituição Federal também assegura que todos os filhos são iguais, independentemente da origem da filiação. Essas transformações na família e no Direito de Família, aliadas às inovações científicas no campo da reprodução humana, estão provocando mudanças nos conceitos de paternidade/materni-
dade e filiação. Tradicionalmente, a maternidade se estabelece pela gestação e pelo parto e a paternidade é incerta. Contudo, diante da possibilidade da utilização das técnicas de reprodução assistida, a maternidade pode deixar de se expressar pela gestação e pelo parto (quando ocorre o empréstimo do útero, por exemplo) e a paternidade pode não estar assentada na relação biológica (quando há a doação de esperma). Diante de tais situações, a paternidade/maternidade será determinada pela vontade, ou seja, pai e mãe serão aqueles que desejaram o projeto parental. Por tais motivos, passa a ter relevância para o estabelecimento da paternidade a socioafetividade, ou seja, a paternidade/maternidade que se expressa pela relação socio-
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A autora é professora de Direito de Família na Unisinos em São Leopoldo (RS)
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Brenton Nicholls
do importante para consolidar a perspectiva da paternidade socioafetiva, uma vez que a “outra origem” também pode ser a socioafetiva. É importante destacar que, cada vez com maior freqüência, os tribunais brasileiros consideram o aspecto socioafetivo como preponderante para definir a paternidade. Assim, muitas vezes, diante do conflito entre a dimensão biológica e a socioafetiva, tem prevalecido a paternidade socioafetiva. Portanto há uma aproximação entre os aspectos sociais da paternidade (convivência, relação de afeto) e os aspectos jurídicos. Esse é o motivo pelo qual, diante do rompimento das relações conjugais, há cada vez mais a preocupação com a manutenção dos vínculos parentais estabelecidos, buscando assegurar a convivência com ambos os pais. É para assegurar a manutenção dos vínculos afetivos com ambos os pais que nasce a proposta da guarda compartilhada. Outro aspecto que também merece destaque são as relações que surgem no âmbito das famílias recompostas ou seqüenciais. Os relacionamentos entre padrastos/madrastas (esta nomeação não é a melhor, mas ainda não surgiu outra palavra para classificar o relacionamento) e seus enteados também passam a ter relevância para o Direito, pois a convivência que se estabelece no âmbito desses novos arranjos familiares pode gerar efeitos jurídicos. Por exemplo, uma criança pode ter um pai biológico que também é seu pai afetivo, mas, além dele, pode ter um padrasto com quem mantém uma relação socioafetiva. Num outro contexto, a criança pode ter perdido os vínculos afetivos com o pai biológico e estabelecido vínculos afetivos com o padrasto. Por esse motivo, alguns sustentam que a expressão mais adequada para denominar as relações com os filhos é parentalidade. Esta expressão contempla as mudanças ocorridas tanto na paternidade e na maternidade como também as relações estabelecidas no âmbito das famílias recompostas, ampliando a concepção de paternidade. Pois ela valoriza a efetiva participação dos adultos, seja mãe/pai/ madrasta/padrasto, na criação dos filhos, deixando para um segundo plano os vínculos biológicos.
Experiências humanas com bons pais são projetadas para o céu
Ser como Deus Pai Erhard S. Gerstenberger
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BÍBLIA NOS COMUNICA MUITOS conceitos de Deus, entre eles o do pai que cuida de seus filhos, às vezes também castigando. Bonito imaginar Deus um pai cuidadoso! “Um pai é compassivo com seus filhos” (Salmo 103.13). Assim também o pai terreno ideal: Davi chora muito por causa da morte de seus filhos (2 Samuel 12.16s e 19.1). Pais bondosos corrigem filhos problemáticos, mas não perdem o controle sobre si mesmos (Provérbios 19.18). No Antigo Testamento, a condução paterna de Deus é visível em muitas passagens que nem usam o vocabulário paternal. As preces de pessoas sofredoras irradiam intimidade, confiança e também ousadia para com o Deus poderoso, que
só pode existir dentro de uma relação bem familial entre suplicante e divindade (cf. Salmo 16; 17; 71; 131). O salmista está certo de que Deus o acompanhava desde a gestação de sua mãe (Salmo 22.10-11). A imagem do bom pastor equivale à do bom pai, no Salmo 23. Fiéis que se sentem filhos podem confessar livremente seus erros frente a Deus (Salmo 38.51), mas também conseguem dialogar e discordar naturalmente de seu Pai divino (cf. Salmo 7, 26; Jó 19; Jeremias 15.10ss). Várias vezes, o Antigo Testamento insinua que Deus atua não apenas como se fosse um pai, mas também em analogia a uma mãe (Isaías 66.13; Oséias 11.1ss). Isto significa: O Deus paterno não é macho, mas ele/ela representa o amor de ambos os pais pelas crianças. Impressionante mesmo se torna a imagem do Deus Pai quando uma comunidade usa o termo. Malaquias 1.6ss contém um argumento sobre a qualidade de animais para o sacrifício. Javé pede uma atitude reverencial dos fiéis: “Um filho honra o pai, e o servo, ao seu senhor. Mas se eu sou pai, onde está a minha honra?” (Malaquias 1.6). Sim, no Oriente Antigo, NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
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Teólogo na Alemanha e autor do livro Teologias no AT, Editora Sinodal
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Pintura: G.A. Spangenberg - 1866
a autoridade dos pais era um valor ético bem alto (cf. Êxodo 20.12; Provérbios 1.8s). Por outro lado, a responsabilidade dos pais para com os filhos valia muito (Isaías 49.15). Nesse contexto da relação recíproca entre Deus e comunidade, a grande liturgia de suplicação desenvolve-se em Isaías 63.7 até 64.11. O povo muito magoado (talvez pelas derrotas sofridas contra os babilônios) levanta queixa diante de Javé, pedindo socorro urgentemente. O argumento principal dessa comunidade de fé é: “Mas tu és nosso Pai, ainda que Abraão não nos conhece, e Israel não nos reconhece; tu, Senhor, és nosso Pai; nosso Redentor é o teu nome desde a Antigüidade” (Isaías 63.16). O mesmo raciocínio fica patente no fim da súplica em Isaías 64.7: “Mas agora, Senhor, tu és o nosso Pai, nós somos o barro, e tu, o nosso oleiro; e todos nós, obra das tuas mãos”. Aqui temos uma das raízes do “Pai nosso” de Jesus (Mateus 6.9ss). Não só individualmente, mas dentro da comunhão geral dos fiéis os crentes se sentem unidos como irmãos e irmãs, pois realmente são filhos de um pai/mãe eterno. “Para rezar o Pai nosso / precisa sentir-se filho / e acreditar nos irmãos ...” (Pedro Casaldáliga). Vemos que Deus se manifesta de maneira bondosa, carinhosa aos seres humanos. Eles, por sua vez, dão nomes à divindade benevolente, entre outros o de “pai”, visando uma relação vivificante com ela. Assim, as experiências humanas com bons pais também são projetadas para o céu. Mas com a imagem humana de Deus Pai descrevemse, na verdade, o amor e a orientação divinas. O conceito paternal terreno significa muito mais do que a experiência familiar pode nos dizer (cf. a parábola de Jesus: O pai e os dois filhos, Lucas 15.11ss). Por isso podemos também falar igualmente em uma forte influência de cima para baixo sobre nossa linguagem: Experiências e conceitos de Deus pesam sobre nossas vidas e pensamentos. Quem não queria aproximar-se o máximo possível do ideal da paternidade e maternidade de Deus? Ser sábio, prudente, misericordioso, paciente e muito mais com seus próprios filhos? Na verdade, há muitos que já tentaram assumir um papel divino na pedagogia humana, alguns com sucesso, outros com resultados desastrosos. O desejo de “ser como Deus” tem seus riscos.
FAMÍLIA: Lutero tocando alaúde com seus filhos sob o olhar de Melanchthon e da esposa Catarina
Martim Lutero,
o pai Wilhelm Wachholz
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L UTERO , TEÓLOGO E reformador da igreja do século 16, tornou-se marido de Catarina von Bora em junho de 1525, aos 42 anos de idade; aos 43, foi pai pela primeira vez. A compreensão de paternidade de Lutero como dádiva e missão tem profunda atualidade. Quando do nascimento de seu primeiro filho, João em homenagem ao avô paterno, orgulhoso e grato, o pai Lutero exclama: “Minha querida esposa deu à luz, com a bênção de Deus, um ARTIM
filhinho chamado Joãozinho Lutero, e pela maravilhosa graça de Deus eu me tornei pai”. Após o nascimento, ocorrido em 7 de junho de 1526, Lutero confessa que João foi um verdadeiro presente de Deus para ele. Presentes de Deus também seriam as filhas e os filhos do casal, que nasceriam nos anos seguintes: Elisabeth (nascida em 10.12.1527), Madalena (4.05.1529), Martin (9.11.1531), Paulo (29.01.1533) e Margarete (17.12.1534). Para Lutero, a paternidade não representava a conquista de um “troféu”. Ser pai era um exercício diário. Lutero, apesar de solicitado como teólogo e reformador, procurava acompanhar o dia-a-dia de seus filhos. Assim podemos encontrar o pai Lutero fazendo uma pausa em suas tarefas para admirar o intenso e sério brincar do filho Martin, de oito anos de idade, com sua boneca e ver nisso um exemplo de verdadeira pureza ou distrair-se em companhia dos filhos, passeando e jogando bola com eles. Num contexto machista, em que atividades cotidianas em torno das crianças eram delegadas à mãe, Lutero evocou a participação do pai como obra que brota da fé em Deus: “Dize-me: Se um homem fosse lavar as fraldas ou realizasse qualquer outro serviNOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
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para que eu chegasse a ser o que sou”. Esse foi um dos grandes motivos que levou Lutero a insistir que pais enviassem seus filhos para a escola e se envolvessem na educação deles. Como pai, chegou a dizer: “Prefiriria ter um filho morto a um filho mal-educado”. Lutero experimentou a morte de duas de suas filhas: Elisabeth, com quase oito meses de idade, e Madalena, com 13 anos de idade, provavelmente de leucemia. Madalena, que ele considerava sua filha predileta, faleceu em seus braços, mexendo profundamente com ele. Ele não reprimia o sofrimento pela morte da filha. Ao contrário, durante os cerca de três anos e meio até sua própria morte em fevereiro de 1546, compartilhou em várias cartas a dor de pai pela morte de Madalena. Seu amor era tamanho pelos filhos e por Catarina, que chegou a dizer certa vez: “Amo a minha Catarina; amo-a mais do que a mim mesmo, seguramente; preferiria morrer a vê-la morrer, ela e os filhos”. Ao observar seus próprios filhos, Lutero
entendia que as pessoas adultas deveriam tornar-se crianças com elas: “Cristo, para atrair pessoas, precisou tornar-se pessoa. Se nós queremos atrair crianças, então também precisamos nos tornar crianças com elas”. De fato, ele se deixava até mesmo ensinar por seus filhos e via que o próprio Deus lhe ensinava por intermédio de seus filhos: “Quando estou no meu gabinete trabalhando, Joãozinho me canta uma canção. Quando faz demasiado ruído, repreendo-o suavemente. Contudo, segue cantando, mas mais docemente, com respeito e temor. Deus quer que sejamos sempre alegres, mas com temor e respeito para com ele”. Observando seus próprios filhos, Lutero percebia que os adultos deveriam crer tão genuinamente como elas. Elas são exemplos verdadeiros de fé, pois “crêem de uma maneira ingênua, sem discutir e sem duvidar, na graça de Deus e na vida eterna.” O autor é teólogo e professor de História Eclesiástica na Faculdades EST em São Leopoldo (RS)
Casa da família Lutero em Mansfeld, para a qual se mudou em 1494
Arquivo Editora Sinodal
ço desprezível na criança e todos zombassem dele, dizendo que é um babaca e afeminado; no entanto, se ele o fizesse no espírito acima descrito e na fé cristã – dizeme agora, quem zomba mais do outro? Deus alegra-se com todos os anjos e criaturas, não porque [o pai] lava as fraldas, mas por fazê-lo na fé. Aqueles zombadores, porém, que enxergarem apenas a obra, mas não a fé, zombam de Deus e de toda a criatura como os maiores tolos na terra, zombam apenas de si mesmos e com sua sabedoria não passam de babacas do diabo”. Através dessas palavras bastante duras Lutero pretende resgatar a dignidade da paternidade, colocando pai e mãe como companheiros na missão junto aos filhos. Lutero considerava Mateus 19.14 uma verdadeira prédica para os pais: “Deixai vir a mim as crianças e não as impeçais, porque a elas pertence o reino dos céus”. Pais têm a tarefa de apontar o caminho de Deus aos filhos. Por isso ele conclamou os pais a enviar seus filhos “a escolas nas quais se educam jovens nas ciências, na disciplina e no verdadeiro culto a Deus, onde aprendem a conhecer a Deus e sua palavra, para depois se tornarem pessoas capazes de governar igrejas, países, pessoas, casas, filhos e criadagem”. A responsabilidade dos pais não pode ficar restrita ao bem-estar material dos filhos. Pais tornam-se irresponsáveis quando substituem o verdadeiro amor, convívio e responsabilidade pela educação com presentes materiais. Por isso o reformador e pai Lutero criticava pais quando esses “se preocupam somente com a beleza estética e aparência exterior de seus filhos diante das outras pessoas ou com riquezas, pendurando-lhes ouro no pescoço, de forma que quase não conseguem mais andar”. O reformador entendia que, através de seus filhos, Deus lhe colocara uma grande missão na vida: ser exemplo para eles. Para isso recordava-se de seu próprio pai. Ele reconhecia que seu pai havia sido rígido demais com ele, a ponto de tornar-se uma pessoa tímida. Ainda assim, recordava-se com carinho do sustento e dos estudos que seu pai lhe proporcionara: “Meu querido pai me sustentou com todo o carinho e fidelidade na universidade de Erfurt, contribuindo com amargo suor e trabalho
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O Projeto Olhos da Rua tem como objetivo reforçar a permanência de crianças e adolescentes em situação de rua em seu espaço familiar e comunitário. Rui Bender
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FIGURA
PATERNA
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inexistente na realidade dos meninos e meninas de rua. No trabalho realizado com crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de São Leopoldo (RS), a orientação seguida no entendimento da dinâmica familiar é perceber o pai como uma função – função paterna. Essa função pode ser exercida por qualquer pessoa do grupo de relações próximas dessa criança, independente do sexo que represente esse papel (uma avó, uma tia, uma irmã etc.). Nas famílias que têm suas crianças trabalhando no espaço da rua, não existe mais a figura do pai provedor, assim como ele O projeto é um dos eixos programáticos do CEDECA
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está presente na família patriarcal. Geralmente, a mãe substitui a figura paterna. Assim ela acumula duas funções: é mãe e pai ao mesmo tempo. Como tal, ela se responsabiliza pela proteção e cuidado de seus filhos. Ela igualmente é responsável por sua educação. E mormente ainda é a mantenedora do grupo familiar. Aliás, nas famílias em situação de rua, a figura masculina representada pelo pai tende a ser mais desorganizadora para os filhos por esse abusar do álcool e ter um comportamento violento para com os integrantes da família. “Através de nossa prática, temos observado que o ambiente familiar tende a ser mais acolhedor sem
Fotos Arquivo Proame
Função paterna
Muitas vezes, a rua é o único espaço onde as crianças brincam
essa figura de conflito, muitas vezes presente no pai biológico”, concordam a psicóloga Loreto Riveros, a assistente social Márcia Martins, a educadora Luciana Dias e a advogada Odete Zanchet, colaboradoras do Projeto Olhos da Rua. Este projeto é um dos eixos programáticos da organização não-governamental Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Bertholdo Weber (CEDECA), de São Leopoldo (RS). Ele tem como objetivo reforçar a permanência de crianças e adolescentes em situação de rua em seu espaço familiar e comunitário. Educadores vão para a rua, observam e se aproximam para conhecer o universo familiar da criança. Por que ela está na rua? Como reverter a situação? No ano de 2007, foram realizadas 1.800 abordagens. Entre 60% e 70% dos abordados eram meninos. O projeto atende 50 famílias por meio de uma equipe de educadores, assistentes sociais e psicólogos. Tudo o que se faz envolve a família, para que ela se sinta integrada. Pesquisa do CEDECA feita em 2004 revela que é grande o número de meninos e meninas que fazem das ruas do centro de São Leopoldo o seu espaço de sobrevivência. Buscam nelas o sustento próprio e de suas famílias, vendendo balas e recolhendo material reciclável. Mas também a rua é, muitas vezes, o único espaço onde essas crianças brinNOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
Paternidade responsável:
uma questão social Jéssica Fontoura
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ADOS DO INSTITUTO BRASILEIRO DE
cam, aprendem e se socializam, principalmente com outras pessoas rejeitadas pela cidadania de consumo. Elas entram em contato cada vez mais cedo com a rua. A pesquisa mostra que 25% foram para a rua entre oito e nove anos e que 37,5% já estão há dois anos no centro da cidade. Porém há aquelas que estão há mais de dez anos em situação de rua (8.5%). A mesma pesquisa aponta que a maioria dos meninos e meninas é de cor branca (49,3%), seguida da cor parda (36,2%) e da cor negra (10,2%). A assistente social Márcia Martins afirma em caderno do CEDECA que “o espaço da rua passa a representar liberdade (da miséria, violência...), ou seja, a fuga da violência doméstica e a busca de alternativa no espaço da rua, e o acesso ilusório aos benefícios da cidade (bens de consumo, lazer...)”. Ela entende que somente se vai conseguir mudar essa realidade “trabalhando com a criança e o adolescente a partir do grupo familiar, independente de sua configuração, através de políticas de atendimento que contemplem todas as necessidades”. Dessa forma, pode-se conquistar avanços para essa população e acreditar que “não haverá uma nova geração de rua, ou seja, os filhos de meninos e meninas repetindo o ciclo de vida dos pais”. O autor é jornalista em São Leopoldo (RS) WWW.NOVOLHAR.COM.BR
Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, em 2006, 11,5% das crianças brasileiras não foram registradas, somando mais de 355 mil nascimentos sem documentação. Esse dado pode gerar inúmeras análises e correntes de discussão sobre os problemas sociais no Brasil, tangendo um ponto muito importante nos debates: a paternidade responsável. Luiz Fernando Oderich, presidente da Organização Não-Governamental (Ong) Brasil Sem Grades, que promove atividades relacionadas à paternidade responsável, destaca que o tema diz respeito à mãe e ao pai, mas há de se dar ênfase especial às funções do homem no contexto paternal. “Por conta dos novos costumes de relacionamento e outros fatores, os pais têm se omitido, mas é preciso ter envolvimento com a criança, ter uma presença freqüente, caso não possa ser diária. Há famílias que acabam transferindo para a escola essa responsabilidade, mas ela deve ser suprida em casa”, destaca ele, que é pai e empresário. Oderich defende que o pai tem a função de socializar a criança, apresentar as dificuldades da vida e assumir um papel que é eminentemente masculino: permitir certas coisas e impor limites. “O pai não tem que ser somente um amigo mais velho; ele deve estar presente e não só suprir o filho materialmente. A bibliografia especializada aponta as relações com drogas e a falta de limite dos jovens, que então não conseguem lidar com as frustrações”, aponta o empresário. Com a experiência de quem já liderou cursos de paternidade responsável, o presidente da Ong destaca que as dificuldades para criar um filho e manter pais na linha correta da educação são verificadas em todos os níveis sociais e não diferem dos problemas que se observavam décadas
atrás. “As dificuldades de hoje são somente diferentes daquelas de antigamente. É preciso dar o bom exemplo aos filhos, para que eles se tornem bons pais no futuro. É necessário agir, não somente falar, transmitindo bons valores e sendo um exemplo para os mais jovens”, ensina. A socióloga Sônia Vasconcellos observa que a pouca idade, além de outros fatores, pode estar relacionada à falta de responsabilidade em relação à paternidade. De acordo com a especialista, o padrão de fecundidade das brasileiras até a década de 1970 era tardio, ou seja, com concentração nos grupos etários de 25 a 29 ou 30 a 34 anos. A partir da década de 1980, Sônia destaca, com base nos dados do IBGE, que as mulheres passaram a ser mães com menos idade, entre 20 e 24 anos. “A redução da fecundidade ocorrida por conta dos métodos anticoncepcionais nas últimas décadas afetou todas as mulheres, com exceção do grupo dos 15 aos 19 anos. Aí verifica-se o crescimento da fecundidade”, esclarece a socióloga. A figura paterna mostra-se realmente importante na sociedade em que vivemos, em nosso dia-a-dia, nas estatísticas dos governos e órgãos privados. Uma pesquisa feita pelo Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sobre as conseqüências sociais da paternidade irresponsável reforçou ainda mais essa opinião. Conforme os dados, 67,8% dos jovens de Porto Alegre que não freqüentam a escola não possuem pai registrado. Além disso, 56,6% dos adolescentes que consomem drogas carecem da presença paterna. A prevenção, a informação, o carinho e a atenção, como sempre, mostram-se importantes para essa questão social. A autora é jornalista em Novo Hamburgo (RS)
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Características de
um bom pai Angela Marulanda
“S
E PUDESSE VOLTAR E RECOMEÇAR
minha vida, passaria mais tempo com meus filhos”, é a resposta da maioria dos moribundos, pais de famílias, quando lhes é perguntado o que gostariam de ter feito diferente em suas vidas. Ninguém lamenta não ter passado mais tempo no escritório ou dedicado mais horas ao trabalho, mas sim não ter aproveitado mais a companhia de seus filhos. Não obstante, as crescentes demandas da vida atual levam os pais a ter cada vez menos tempo para dedicar à família e desfrutar de seus filhos. “Não esperem para jantar, chegarei tarde porque tenho muito trabalho” ou “Não, filho, não posso ir contigo ao jogo porque tenho muito o que fazer” são comentários que se escutam com freqüência, geralmente acompanhados da promessa de que mais adiante vão recuperar o tempo. Mas o tempo não pára. Os filhos não esperam no estágio em que os deixamos enquanto trabalhamos para juntar dinheiro. As crianças só perdem o primeiro dente uma única vez, somente contemplam quatro anos num único dia, são os heróis que ganham o jogo final do ano apenas uma vez, e se não estivermos presentes nessa oportunidade, será impossível estar depois. Presença emocional e física – O papel do pai na formação social e moral dos filhos também é de vital importância. A masculinidade, a virilidade, a lealdade com a companheira e a coragem são virtudes que os meninos não aprendem em livros ou em filmes, mas copiam do que vêem em seu pai. 24
Ao mesmo tempo, as meninas aprendem a relacionar-se com os homens e a entender a forma como os homens reagem diante delas por meio das interações com seu pai. As relações entre o pai e a mãe servem, por sua vez, de modelo das atitudes que as mulheres podem esperar do sexo masculino. Por isso a ausência do pai tem efeitos negativos no desenvolvimento psicossexual das filhas, especialmente quando se separa delas ainda muito pequenas, seja por morte, por abandono ou por simples negligência. As meninas que viveram essa experiência tendem a demonstrar pouca confiança nos homens, a procurar evitálos, a ter dificuldades para estabelecer compromissos afetivos perduráveis com o sexo oposto e geralmente casam muito mais tarde do que aquelas cujo pai participou ativamente de sua vida. A força da figura masculina também é básica para a estabilidade dos filhos. Desde a mais tenra infância, as crianças precisam sentir que têm um pai que pode protegêlas do perigo, orientá-las na incerteza e apoiálas quando se sentem fracas. Se o pai está ativamente envolvido na vida dos filhos, ele poderá perceber melhor suas necessidades e estar disponível como guia carinhoso e protetor amável quando necessitam. A importância do pai na vida dos filhos foi provada em múltiplos estudos. Por exemplo, observa-se que, durante o ensino fundamental, os resultados escolares das crianças cujos pais são caseiros e participam de forma ativa na vida cotidiana de seus filhos são melhores do que os daqueles cujos pais compartilham muito pouco de seu tempo com a família.
Sentir-se amado – A criança interpreta freqüentemente a ausência do pai como uma repulsa ou como uma prova do pouco que ela vale (“Sou tão pouca coisa, que não vale a pena ocupar-se comigo”). Sentir-se rejeitado ou pouco valorizado pelo homem mais importante de sua vida deteriora inevitavelmente a auto-estima dos filhos e costuma levá-los a sentir-se inseguros e angustiados. Todas as crianças precisam sentir-se amadas, valorizadas e aceitas por seu pai e perceber que ele as considera capazes e adequadas para arranjar-se na vida. O pai que passa poucas horas com seus filhos, assim como aquele que mesmo estando em casa não lhes dá atenção, está comunicando-lhes que não são importantes para ele. Isso significa para as crianças que ele não as ama. Observou-se que a ausência paterna pode adubar o terreno para que os menores recorram às drogas, ao álcool, ao vandalismo ou à promiscuidade sexual como meio para acalmar a dor de não se sentir amados, para ganhar a atenção que não recebem do pai ou para distanciarse do que eles interpretam como desamor de parte dele. Desde o momento em que se é pai, a empresa mais importante para o homem é sua família, o cargo mais importante é ser pai e o oficio mais importante é cuidar e gostar dos filhos. Não há uma só empresa que progrida na qual seu proprietário investe muito capital, mas pouco tempo. Para ter êxito, toda empresa exige a dedicação contínua e permanente de seu chefe, e a família não é uma exceção. Os filhos não esperam para crescer até que o pai tenha feito fortuna. O tempo passa muito rápido; o que não se faz pelos filhos no momento certo não pode ser feito mais tarde. É preciso lembrar que o preço que se paga por não dedicar o tempo necessário aos filhos para garantir-lhes o amor que precisam para desenvolver um alto sentido de valor pessoal e um grande respeito e afeto por seus pais é muito alto e não se compara a nenhum sucesso profissional ou econômico. Autora do livro O desafio de crescer com os filhos – Editora Sinodal NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
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Kevin Rohr
O homem precisa assumir sua responsabilidade na criação dos filhos
Uma sociedade
sem pais? Valburga Schmiedt Streck
A
POLÊMICA GERADA PELO LIVRO “A sociedade sem pais”, do autor alemão Matthias Matusek, mostra através de depoimentos que os homens são afastados de seus filhos e, ao mesmo tempo, devem contribuir financeiramente para a sustentação desses. Preocupado com o fato de que os casamentos nos países do Norte não duram mais de cinco anos, ele aponta para uma geração de homens que viveu a grande mudança cultural desencadeada a partir dos anos 1960, está adulta e vive o síndrome de Peter Pan: continuam vivendo uma adolescência na vida adulta, sem assumir compromissos. Cada vez mais, também em nossa sociedade, a figura do pai autoritário desaparece e torna-se irrelevante. Na sociedade patriarcal, lembro em especial a romana, a figura de autoridade do pai dava ao homem o poder de reconhecer o filho: era o homem que levantava o filho em sinal de reconhecimento,
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significando que essa criança seria cuidada e protegida por ele. Na história recente, o papel de pai foi substituído gradativamente pelo professor na educação dos filhos. Nos anos 1960, temos o protesto de jovens alemães que negam a geração de pais porque esses estiveram envolvidos com o regime nazista. Já em 1968, o movimento de libertação das mulheres questiona o papel do homem e com isso também seu papel de pai como autoridade e chefe da família. A entrada das mulheres no mercado de trabalho e a possibilidade de um planejamento da gravidez e da escolha do pai através da fertilização in vitro colocam definitivamente em cheque a figura paterna. Somado a isso, temos ainda a competitividade no mercado de trabalho, que tira do homem o papel de pai provedor. A família reduz-se com isso a uma comunidade solidária sem uma autoridade materna ou paterna.
No Brasil, o aumento de lares chefiados por mulheres tem ocupado pesquisadores das áreas de demografia, antropologia e sociologia em estudos principalmente sobre identidades e questões relativas a gênero. Sabe-se que a monoparentalidade não é um fenômeno novo no contexto brasileiro e sempre coexistiu ao lado de outros arranjos familiares. Também não é novidade que ela é maior entre as famílias negras. Porém o aumento das famílias monoparentais, principalmente chefiadas por mulheres nas últimas décadas, tem sido considerável. Há cidades onde as famílias chefiadas por mulheres chegam a 31,2%, como em Brasília, ou 40,4 %, na grande Belém do Pará. Em comparação, o estado de Santa Catarina tem apenas 18,8% de famílias monoparentais (IBGE, 2000). Se esse dado chama a atenção, deve-se dizer que a questão da monoparentalidade não pode ser mais associada à pobreza, pois atinge também as outras camadas sociais. Conforme dados do IBGE, as famílias monoparentais no Brasil cresceram 26% em 1999. Se olharmos para os dados de 1970, o crescimento foi de 13%. Se a incidência das famílias monoparentais é maior nos centros urbanos do que nas áreas rurais, esse fato deve-se à necessidade da mão-de-obra masculina. Talvez isso explique os dados de Santa Catarina, juntamente com a forte influência das igrejas cristãs naquele estado. A economia neoliberal tende a aumentar a monoparentalidade, e chama atenção que o maior índice de desemprego está na população masculina de 14 a 24 anos. Como a maioria de nossa população masculina nessa idade não possui aptidões para ingressar no mercado de trabalho, grande parte acaba sendo confinada em presídios. Sem dúvida, preocupa a falta de responsabilidade ou disponibilidade do homem em criar os filhos. Mesmo separado da família, o pai deve ser chamado a assumir juntamente com a mãe a responsabilidade por seus filhos. Isso possibilita que a geração mais velha possa transmitir os valores e suas tradições culturais às gerações mais novas em exercício de solidariedade e de comunidade. A autora é professora na Faculdades EST e terapeuta de casais e famílias em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
Entre a tradição e a autonomia Marcelo Schneider
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ÃO HÁ EVENTO MAIS IMPORTANTE
na Índia do que um casamento. É o acontecimento que melhor expressa as complexas relações sociais daquele país marcado por um rico panorama cultural e religioso. O casamento é algo essencial para a caminhada de cada pessoa na Índia. Para a maioria esmagadora das pessoas, o casamento é o grande divisor de águas da vida, representando a transição para a fase adulta. Geralmente, essa transição, assim como tudo na Índia, depende pouco da vontade pessoal, mas ocorre como resultado dos esforços de muitas outras pessoas. Até mesmo ter nascido em certa família pode determinar a indicação de quem será o futuro cônjuge. A organização do casamento é responsabilidade crucial para pais e parentes do casal. Os acordos entre famílias envolvem acertos financeiros, realinhamentos sociais e, é claro, conseqüências para a descendência da família.
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Alguns pais iniciam os acertos assim que a criança nasce, mas a maioria ainda espera alguns anos. No passado, a idade para casar era muito reduzida e, em grupos como os Rajasthan, crianças com menos de cinco anos eram unidas em matrimônio. Nas comunidades rurais, os casamentos de meninas deveriam acontecer antes que elas chegassem à puberdade. Leis que determinam uma idade mínima para o casamento foram homologadas ao longo das últimas décadas, mas essas leis têm pouco efeito nos costumes das famílias. A Índia está dividida em duas regiões no que se refere ao casamento: o norte e o sul. No norte, as famílias procuram casamentos que as liguem com pessoas com as quais ainda não têm consangüinidade. Os acordos são feitos entre famílias geograficamente distantes. No sul, as famílias procuram fortalecer os elos através do casamento, de preferência com parentes de sangue.
A dinâmica das relações familiares a partir da análise das genealogias é a chave para entender o padrão do casamento indiano. No norte, todos os termos lingüísticos ligados às relações familiares indicam se há consangüinidade ou não. Parentes de sangue são proibidos de casar entre si. No sul, não há distinção clara entre família de nascimento e família de casamento e o casamento envolve uma troca freqüente de filhas entre as famílias, pois, para cônjuges, todos os parentes são “de sangue”. Encontrar o par ideal para um filho é uma tarefa complicada. As pessoas lançam mão de suas relações sociais para encontrar potenciais candidatos num determinado nível econômico. Mas há quem prefira anunciar seu interesse nos jornais locais. Nas áreas rurais, acordos entre estranhos são arranjados sem que o casal tenha se encontrado uma única vez. Nas cidades, entre as castas com nível de educação maior, há troca de fotos e o casal pode encontrar-se em circunstâncias controladas e em público. As crianças são criadas com a expectativa de que seus pais irão determinar seus casamentos. Um número considerável de jovens nas universidades está buscando suas próprias esposas. Mas os casamentos por amor são uma opção condenada e escandalosa. Alguns, à procura de um meio-termo, pedem aos pais que “arranjem” o casamento com pessoas por quem se apaixonaram. O autor é teólogo e assessor do Moderador do CMI em Porto Alegre (RS)
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Filhos soltam
o verbo E
LES SÃO VISTOS COMO SÉRIOS, OUTROS
brincalhões; alguns são amigos, outros caretas, protetores, preocupados... A verdade é que pai não é tudo igual, mas há algo que está acima da diversidade que existe na relação entre pais e filhos: o amor. Brigam para o filho estudar, arrumar o quarto, não voltar tarde da festa, usar menos o computador e, mesmo assim, são vistos como heróis. “Meu pai é meu melhor amigo. Agradeço a Deus por ele estar comigo e ajudar sempre que preciso”, destaca João Dacol Soares, oito anos. O convívio entre eles tem muita brincadeira, mas também assuntos sérios. Zitão, como é chamado, diz que o pai conversa bastante sobre a importância da família, do amor e da amizade. O menino confessa que gostaria de ter mais tempo com o pai durante a semana. “Ele trabalha o dia todo. Então só sobram os finais de semana”, lamenta. O mesmo acontece com Gabrielle Pugliessi dos Santos, seis anos. Como o pai trabalha à noite e estuda à tarde, eles
quase não se vêem durante a semana. “Sobra pouco tempo para a gente brincar”, diz a menina. Quando estão juntos, divertem-se com o cachorro, olham filmes, jogam dominó, tomam banho de piscina e passeiam. “Amo muito o meu pai, porque ele me dá atenção, faz brincadeiras e é muito divertido”, afirma. Já Gabriele da Silva Wilhelm, sete anos, destaca que gosta muito do pai porque ele dá mesada toda semana. “Ganho cinco reais aos sábados. Estou guardando na poupança porque quero comprar um celular ou um computador”, conta. Em momentos de diversão, um dos programas favoritos dos dois é ir ao parque. “Também gosto muito de ficar juntinha com ele vendo TV”, acrescenta. Se as horas em que os pais ficam longe de casa já deixam saudades nos pequenos, imagina ficar mais de duas semanas fora do lar. Pela primeira vez, Nicolas Nunes Kunzler, 10 anos, passou por essa experiência quando o pai e a mãe viajaram. “Senti muita falta dele, principalmente de seu
Gabriele: Gosto muito de ficar juntinha com ele vendo TV
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Fotos: Carine Fernandes
Carine Fernandes
cheirinho no quarto”, recorda o garoto. Ele vê no pai um grande companheiro e amigo e afirma que brigas só acontecem quando ele resiste em arrumar o quarto. “Ele é um bom pai. Sempre que estou triste, conversa comigo e tenta me animar”, ressalta. Quando estão juntos, ficam no computador, conversam sobre carros e jogam bola no sítio da família. Laís Dalle Laste Casagrande, 15 anos, acredita que a relação entre
Nicolas: Senti muita falta dele, principalmente de seu cheirinho no quarto NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
Gabrielle: Amo muito o meu pai, porque ele me dá atenção, faz brincadeiras e é muito divertido
pais e filhos fica diferente quando se chega na adolescência. “Quando eu era criança, meu pai era mais próximo. Costumávamos brincar juntos e sair para passear. Agora estamos mais distantes”, observa. A jo-
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João: Meu pai é meu melhor amigo
vem confessa que gostaria de ter o pai mais presente em sua vida. Ela conta que o trabalho afasta-o ainda mais de casa, pois é proprietário de um restaurante. Ele só está em casa à noite e em raros finais de semana. “No pouco tempo em que ficamos juntos, assistimos televisão e conversamos sobre assuntos do dia-a-dia”, conta, lembrando que o computador faz as brigas acontecerem. “Ele não gosta que eu fique muito tempo na internet”, diz. Na opinião da jovem Daniela Campani de Oliveira, também com 15 anos, todos os filhos incomodam seus pais e as queixas deles são todas iguais. “Eles dizem que se preocupam com nosso estudo e as saídas à noite”, justifica. Diferente de Laís, a jovem consegue ver o pai com maior freqüência, porque ele trabalha no mesmo prédio onde moram. “Quando estamos
juntos, gosto de fazer programas, como passear nos finais de semanas, viajar para lugares que não conhecemos, ir à praia”, descreve. Ela o considera um homem trabalhador, tranqüilo e dedicado à família. “Agradeço a Deus por ter um pai como ele e quero que ele sempre esteja presente em minha vida”, afirma a jovem. Quando questionados sobre como será o Dia dos Pais, crianças e adolescentes contam que já estão pensando em comprar um presente especial. Mas para todos eles uma coisa é certa: o que não pode faltar nessa data é ficar a maior parte do tempo ao lado de seus heróis. A autora é jornalista da equipe de Comunicação Integrada do SINEPE/RS (Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino Privado no RS)
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Ingelore S. Koch
Profissões
Ainda há grande procura pelas fotos de Varceli, apesar da modernização
Lambe-lambe, magia
em extinção Ingelore Starke Koch
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UM DOMINGO DO VERANICO DE
maio, “chovia” de gente no Brique da Redenção, tradicional feira livre de Porto Alegre, no Parque Farroupilha. Estima-se que a feira atrai cerca de 50 mil visitantes cada domingo. Oficialmente, são 180 expositores de artesanato, 70 de antigüidades, 40 de artes plásticas e dez de gastronomia. Junto ao espaço das antigüidades está também o último lambe-lambe
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(fotógrafo ambulanete) da capital gaúcha: Varceli Freitas Filho, 54 anos. Ele herdou o ofício de seu pai, a quem passou a ajudar já aos 10 anos de idade. Varceli exerceu a profissão durante 38 anos na Praça XV, no centro de Porto Alegre. Ao contrário dos anos de ouro da fotografia lambe-lambe, as décadas de 1970 e 1980, quando havia 25 lambe-lambes na capital gaúcha, o trabalho na Praça XV já não dá “nem
para o café”. Hoje, Freitas está lá apenas aos sábados, participando também de feiras e exposições em outras cidades. Os lambe-lambes foram cronistas dos espaços públicos nas cidades brasileiras a partir do século 19. Tiveram um importante papel na democratização e popularização do retrato fotográfico da sociedade. Segundo uma das versões, o termo lambe-lambe provém do costume de colocar entre os lábios a chapinha de vidro que continha o formato da fotografia a ser batida. Como “repórter fotográfica” amadora, foi uma experiência ímpar observar esse fotógrafo profissional na relação com o seu público no Brique. Havia algo de mágico no ar, no estúdio ao ar livre, no laboratório fotográfico acoplado à máquina numa caixinha em cima de um tripé. Na contramão da modernidade, que popularizou as máquinas digitais (que Varceli acha “sem graça”), surpreendeu-me a grande procura pelas fotos lambe-lambe tamanho postal, preto & branco, quase que instantâneas. Quinze minutos no máximo para três cópias de cada pose. Atencioso, Varceli concedeu-me entrevista entre uma e outra “clicada” e ao mesmo tempo em que revelava as fotos. Não havia tempo de folga. Casais jovens (quem sabe, no início de namoro?) são os principais “fregueses” de Freitas. Mas também há grupos em família, de pai ou mãe com filhas ou filhos que estudam em Porto Alegre. Entre as histórias que marcaram sua trajetória de vida, Varceli Freitas destaca a homenagem recebida da Universidade de Passo Fundo (UPF) em agosto de 2007. Durante a 12ª Jornada Nacional de Literatura, ele foi agraciado pela UPF com o Troféu Vasco Prado como o último lambe-lambe do Rio Grande do Sul. “Foi o lugar e o momento que mais me emocionaram na minha profissão. Eu chorei! Fui aplaudido, de pé, por mais de 10 mil estudantes”, testemunha. Varceli é casado e tem três filhos. A autora é jornalista em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
Entrevista
C Ricardo de Moraes/Imago Comunicação
ERTAMENTE É O TEÓLOGO BRASILEIRO
LEONARDO BOFF
Igrejas devem recriar
novas linguagens
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mais conhecido e respeitado no mundo hoje por sua vasta produção literária, traduzida para várias línguas. Falamos do Prof. Dr. Leonardo Boff, que no final deste ano completa 70 anos de vida. Ex-frade franciscano, ele se diz “autopromovido para leigo”. Não somente através do discurso, mas por meio de sua militância junto a movimentos sociais e comunidades eclesiais de base ele tem contribuído de forma significativa para o bem-estar do povo brasileiro. Em vários escritos, Boff destaca também a importância de Lutero e da teologia protestante, demonstrando grande abertura para o ecumenismo. Para homenagear a obra e a pessoa desse eminente teólogo, a Faculdades EST (São Leopoldo, RS) outorgou-lhe no dia 15 de maio o título de “doutor honoris causa”. É a primeira universidade brasileira que lhe concede esse título. Quando esteve em São Leopoldo em maio para participar de um seminário sobre seu pensamento teológico, Boff falou para Novolhar.
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Ricardo de Moraes/Imago Comunicação
Novolhar – O Vaticano é resistente missão pastoral. Há excelentes iniciativas, mada depois como papa de que “a Igreja a mudanças. O que resta para as comu- com referência aos direitos humanos, à de Cristo subsiste unicamente na Igreja nidades católicas no Brasil que anseiam questão indígena, às populações afro-des- Católica” e de que as demais igrejas pospor elas? cendentes, aos problemas de terra e à re- suem “apenas elementos eclesiais” transLeonardo Boff – Os fiéis estão as- forma agrária, às crianças e adolescentes, tornou a atmosfera ecumênica. sumindo mais e mais sua maioridade ao cuidado para com os portadores de Além de ofender as demais igrejas, isso cristã. Um dos melhores efeitos das co- HIV. O trabalho que a igreja luterana faz torna praticamente impossível o ecumemunidades eclesiais de base e dos círcu- com os indígenas no Mato Grosso é no- nismo, porque o diálogo fica interrompilos bíblicos é que aprenderam a orien- tável e altamente libertador. Nenhuma do e os laços de respeito, de mútua acolhitar-se pelos evangelhos e pela prática de instância governamental faz um traba- da e de comunhão foram negados. Isso Jesus. Esta é a grande referência. A par- lho melhor do que as igrejas no comba- não tem nada a ver com atitudes evangélitir dessa instância assumem uma atitu- te ao trabalho escravo e na defesa da cau- cas ou inspiradas na prática de Jesus, mas de crítica diante do Vaticano e das auto- sa indígena. Mas a magnitude dos pro- reproduz hábitos de dominação pela douridades eclesiásticas, com profunda sere- blemas é de tal ordem, que tudo o que trina, como nos piores momentos do pasnidade, conscientes de que não estão se fizer ainda é pouco. Isso representa sado imperial da igreja. rompendo a comunhão, mas vivendo a um desafio permanente para a pastoral Eu mesmo fui condenado em 1985 liberdade dos filhos e filhas de Deus. social das igrejas. pela Congregação da Doutrina da Fé, Disso nascerá possivelmente um cristiaentão presidida pelo cardeal Joseph nismo menor em número, mas com uma O movimento ecumênico está pas- Ratzinger, por ter sustentado a tese de que qualidade religiosa melhor e mais autô- sando por uma “era glacial”? o “subsiste” não deve ser tomado no sennoma. Muitos simplesmente argumenBoff – A “era glacial” do ecumenismo tido de substância, mas, segundo os metam: O Vaticano está longe e não tem foi provocada principalmente pela tradi- lhores dicionários latinos e a mente dos condições de ver a verdadeira realidade e, se cional arrogância de setores dirigentes da padres conciliares do Vaticano II, no seno papa conhecesse nossa situação, certamen- Igreja Romana, assentados no Vaticano. tido de “ganha forma concreta” na Igreja te nos apoiaria. Mas ele prefere ficar mais Esses setores até conseguiram fazer (ele- Católica, abrindo espaço para que ganhe perto dos palácios do que da pobre barca ger) o atual papa Bento XVI, que em ter- também outras formas concretas em oude São Pedro. Em razão desse amadureci- mos ecumênicos não é somente conser- tras igrejas. mento, os fiéis assumem uma posição au- vador, mas altamente regressista. Ele inA comunhão entre todas as igrejas tônoma diante de vários preceitos morais validou mais de 50 anos de sério trabalho que se acolhem e se reconhecem mutuapregados pela hierarquia e pelas mais altas ecumênico. Sua afirmação no documento mente forma a Igreja de Cristo e a Igreja autoridades romanas. Em questão de Dominus Jesus ainda como cardeal e reafir- de Deus. Diria que esse ecumenismo moral sexual, esses preceitos pesalvará a Igreja Católica de sua cam pela falta de realismo e de prepotência doutrinária e manbom senso e, sem maiores ceriterá aberto o caminho da unimônias, são postos de lado pela dade no seio do reconhecimen“Com Lutero expulsou-se também a maioria dos fiéis. Eu até diria: to das diferenças, acolhidas profecia do seio da Igreja Católica e pela maioria dos padres e agencomo expressões legítimas da com isso se enfraqueceu o pólo do tes de pastoral, que estão em herança de Jesus e não como contato direto com a vida e a fé sua decadência. carisma e se reforçou de forma do povo. exacerbada o pólo do poder.” Roma locuta, causa finita. AinAlém de denunciar, o que da é assim? mais as igrejas cristãs podem Boff – A expressão represenassumir? ta o autoritarismo no exercício do Boff – A denúncia pertence poder por parte das autoridades à missão profética da igreja, e ela romanas. É um uso do poder que deve cumpri-la com destemor, está longe da forma evangélica mesmo correndo risco de vida, apontada por Jesus, do poder como acontece a tantos pastores como serviço da vida e da justiça. e agentes de pastoral nas frentes Roma julga-se a última instância de grande conflito, por exemplo que se coloca acima de qualquer na parte amazônica do Brasil, esjulgamento e acima mesmo da pecialmente no Pará. Mas as igrecomunidade dos fiéis, que é a real jas também têm cumprido sua portadora da mensagem de Jesus 32
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Ricardo de Moraes/Imago Comunicação
e a que ela deve servir. Só o poder nidade e para o universo inteidivino é última instância, e esse é ro. As igrejas devem recriar noum poder de amor, de miserivas linguagens para que a mencórdia e de afirmação da dignisagem seja contemporânea aos dade do outro. homens e mulheres de hoje e Roma nunca aceita ser quespossa significar uma verdadeitionada e entende todo o exercíra boa-nova. cio da profecia exercida também Isso não se fará pela simdentro da igreja como ofensa e ples repetição de textos bíbliruptura da unidade, por isso cos ou de doutrinas consagramerecedora de punição e interdas. Mas, partindo dessas fondição. Nesse sentido, a expulsão tes, reinventar sentidos novos, de Lutero da comunidade catóque derivam do capital simbólica foi um imenso erro da igreja lico do cristianismo. Esse é uma daquele tempo, pois ela não fonte de águas vivas e não de “As igrejas devem significar soube entender os propósitos águas mortas, e por isso cheio uma coisa boa para a humanidade de reforma na base do evangede virtualidades que devem ser lho e da fé preciosa, proposta conscientizadas e traduzidas em e não um pesadelo, uma fonte por Lutero. Com Lutero expulpráticas, geradoras de esperaninesgotável de esperança e de sou-se também a profecia do ça e de alegria de viver. sentido libertador para todos.” seio da Igreja Católica e com isso Por fim, cabe também às se enfraqueceu o pólo do carisma igrejas, junto com as religiões e e se reforçou de forma exacerbaos caminhos espirituais, a misda o pólo do poder. O ideal é manter uni- netária. Há a unificação da família huma- são de preservar e alimentar a chama sados carisma e poder e entender a relação na, há a urgência de cuidar do planeta, grada que está dentro de cada pessoa. sempre a partir do carisma, pois é este que ameaçado pelo aquecimento global. As Com essa chama espiritual tudo pode limita o poder e o obriga a manter-se limi- igrejas precisam desocidentalizar-se, ganhar sentido, e haverá força suficiente tado e a serviço do carisma. despatriarcalizar-se e desclericalizar-se para, para enfrentar as travessias duras a que mais livres e iluminadas pelo evangelho, está submetida a condição humana rumo Qual é a prioridade missionária para definir seu lugar e sua missão na situação ao reino que ainda vai chegar. As igrejas as igrejas da Reforma no século 21? devem significar uma coisa boa para a mudada da humanidade. Boff – Estimo que todas as igrejas Pertence à missão de todas as igrejas humanidade e não um pesadelo, uma são desafiadas a achar seu lugar dentro da manter viva a memória de Jesus e seu fonte inesgotável de esperança e de sennova fase da humanidade, que é a fase pla- significado salvador para toda a huma- tido libertador para todos.
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Igreja Verde
Arquivo Novolhar
Solidariedade
IRENA SENDLER: “Mãe dos meninos do holocausto”
“Podia ter feito mais” Brunilde Arendt Tornquist
“F
UI CRIADA COM A OBRIGAÇÃO
de salvar qualquer pessoa que se machuque, seja qual for sua religião ou nacionalidade”, disse Irena Sendler, “a mãe dos meninos do holocausto”. E ela seguiu à risca o que lhe havia sido ensinado. Arriscando sua própria vida, ela tirou 2.500 crianças judias do gueto de Varsóvia, na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial. Sempre que era perguntada sobre sua obra, respondia: “Poderia ter feito mais. Este lamento me acompanhará até o dia de minha morte”. Isso aconteceu no dia 12 de maio último, aos 98 anos (1910-2008), no quarto de um asilo no centro de Varsóvia, no qual nunca faltaram flores e cartões de agradecimento do mundo inteiro. Irena foi enfermeira e começou a trabalhar no gueto, em 1942, na prevenção e no combate às doenças contagiosas. Mas também contrabandeava alimentos, roupas e remédios aos 500 mil judeus espremidos em 34
4 km². Logo entrou para o movimento de resistência Zegota (Conselho de ajuda aos judeus) e ajudou a retirar clandestinamente crianças do gueto, que eram entregues a famílias católicas ou escondidas em conventos. Primeiramente em ambulâncias, como vítimas de tifo, mas também em cestos de lixo, caixas de ferramentas, carregamentos de mercadorias, sacos de batatas... Conseguia documentos de identidade falsos e criou um arquivo com os nomes das crianças e suas novas identidades. Anotava os dados em pedaços de papel e enterrava-os dentro de potes de conserva sob uma macieira no jardim do vizinho. Guardava, assim, o passado de 2.500 judeus. Em 20 de outubro de 1943, Irena foi presa pela Gestapo (polícia política nazista) e brutalmente torturada. Ela era a única que sabia quais famílias abrigavam os judeus. Ela suportou a tortura. Quebraram seus pés e pernas, mas ninguém extraiu dela informações sobre colaboradores e o paradeiro das crianças. Recebeu a sentença de morte, que não chegou a ser cumprida porque, a caminho do local da execução, o soldado deixoua escapar. Continuou trabalhando com identidade falsa e, no final da guerra, ela própria desenterrou os vidros de conserva e ajudou a localizar as crianças. “Irena Sendler é uma heroína cuja candidatura ao Prêmio Nobel da Paz é totalmente justificada”, disse o presidente polonês Lech Kaczynski por ocasião da cerimônia para comemorar a indicação de Irena ao Prêmio Nobel da Paz em 2007. Ela não compareceu à cerimônia, mas pediu que uma carta fosse lida por uma sobrevivente que fora bebê em 1942: “Peço a todas as pessoas de boa vontade que tenham amor, tolerância e paz, não apenas em tempo de guerra, mas também em tempo de paz”. “Quando caminhava pelas ruas do gueto, Sendler usava uma braçadeira com a Estrela de Davi em solidariedade aos judeus, mas também para não chamar a atenção”, lembrou o memorial israelense do holocausto Yad Vashem em 1965, quando foi concedido a Irena o título “Justo entre as Nações”. Ela figura entre os 6.004 poloneses que até hoje ganharam esse título, de um total de 21.758 pessoas, o qual é concedido a nãojudeus que salvaram judeus. A autora é teóloga e assistente editorial em São Leopoldo/RS
Eco Bíblia é lançada Primeira Bíblia ecológica do mundo destaca os princípios bíblicos para a educação socioambiental das igrejas cristãs, com lançamento prestigiado pela ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Luciana Garbelini
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14 DE ABRIL FOI LANÇADA em Brasília (DF) a primeira EcoBíblia do mundo, numa iniciativa do Instituto Gênesis 1.28, que conta com o apoio da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB). A nova obra servirá de instrumento para a disseminação do programa Igreja Verde, criado pelo instituto com o objetivo de despertar nas igrejas cristãs a importância dos cuidados com o meio ambiente. A cerimônia, realizada na Secretaria Regional da SBB na capital federal, foi prestigiada por cerca de 70 pessoas, entre elas a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. De acordo com Valter Ravara, diretor executivo do Instituto Gênesis, falaO DIA
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Arquivo SBB
PRESTÍGIO: A ex-ministra Marina Silva entre os representantes da SBB e do Instituto Gênesis 1.28
se muito de meio ambiente nos dias de hoje, mas ainda falta uma ação por parte das igrejas. “A presença da ministra no evento evidenciou a importância dessa obra inédita, que tem o propósito de anunciar as Escrituras Sagradas como instrumento de resgate e preservação
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social e ambiental. Os cristãos, entre católicos e evangélicos, formam 97% da população brasileira, ou seja, cerca de 160 milhões de pessoas. Isso só fortalece a nossa tese de que a EcoBíblia pode nos auxiliar nessa empreitada”, destaca. Para o secretário de Comunicação e
Ação Social da SBB, Erni Seibert, a Bíblia Sagrada estimula o ser humano a praticar “a esperança de um futuro melhor na vida que estamos vivendo”. “Ler a Bíblia sob esses olhos é um exercício desafiador que nos desperta para novas práticas, de responsabilidade com o próximo, com o mundo em que vivemos e de paz com Deus”, diz Seibert. A EcoBíblia foi desenvolvida pela SBB dentro do projeto de Bíblias de Afinidade, a partir de uma solicitação do Instituto Gênesis 1.28. A conformidade ambiental da produção é outro diferencial da obra. “Além do miolo ser produzido de forma ambientalmente correta, com papel certificado, a encadernação brochura leva laminação fosca biodegradável e o encarte é impresso em papel reciclado no processo Aquacolor”, destaca o secretário da SBB. Com texto bíblico da Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), a EcoBíblia contém ainda recursos como A Carta da Terra e textos sobre Desenvolvimento Sustentável, Meio Ambiente, Cidadania e Responsabilidade Social, quatro temas que norteiam o programa Igreja Verde. A tiragem inicial é de 3 mil exemplares. A autora é jornalista e assessora de imprensa da Sociedade Bíblica do Brasil em São Paulo (SP)
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Pop Catalin
Visão cristã
Muitos têm medo de casar em agosto
Agosto também é presente divino Wilfrid Buchweitz
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M PESQUISA NO REGISTRO DE CASA-
mentos da Comunidade Evangélica de São Leopoldo (RS), constatei que, de 695 casamentos em 25 anos, apenas 11 foram realizados no mês de agosto. Esse número certamente comporta vários tipos de análise. Apenas quero destacar o argumento ouvido de um considerável número de pessoas: medo de casar em agosto porque “dizem que dá azar”. Pessoas têm medo de que agosto possa ser um mês azarado. A preocupação aumenta quando se trata do dia 13, e torna-se assustador quando essa data coincide com a sexta-feira. A combinação agosto, 13 e sexta-feira faz pessoas mudarem planos de qualquer natureza, não apenas em relação ao casamento. Que a fé cristã pensa sobre isso? Aqui vai uma visão cristã. Há um aspecto que a 36
medicina e a experiência humana constatam na passagem do inverno para a primavera: nessa época do ano, acontecem profundas transformações na natureza. As plantas saem de seu estado hibernal, e a brotação de folhas e flores é sinal de um novo período de crescimento. Pássaros intensificam suas cantorias e constroem ninhos. Pessoas fortalecem seu ânimo e alegria. Mas também acontece um fenômeno contrário. Algumas crises de saúde tornamse mais agudas. Problemas cardíacos e respiratórios podem agravar-se, especialmente em pessoas idosas, e o número de óbitos é maior do que em outras épocas do ano. Será que isso contribui para o medo do agosto? Não seria justo, porque julho e setembro também fazem parte desse período.
Parece-me que o medo do agosto é um medo ruim. Existem dois medos: um bom e outro ruim. O medo bom alerta contra perigos e dificuldades e ajuda as pessoas a se cuidar melhor. As pessoas tornam-se mais atentas e atuantes e se organizam melhor. O medo bom é importante. O medo ruim paralisa as pessoas, domina, vence, e elas não fazem nada. Às vezes, nem sabem do que têm medo. Tenho a impressão de que as pessoas nem sabem por que têm medo do agosto. O medo ruim pode ser muito forte e pode ser muito difícil enfrentá-lo. Como lidar com isso? Parto do princípio cristão. Sou e quero ser pessoa cristã. Estou falando aqui como pessoa cristã. Então minha fé me pergunta: Deus é menos Deus em agosto do que nos outros meses do ano? Deus se afasta em agosto? Deus faz férias em agosto? O amor dele é menor do que nos outros meses? A bênção dele é mais fraca para quem casa em agosto, ou nasce em agosto, ou inicia uma profissão em agosto, do que em outros meses? Esqueci a promessa de Jesus de que ele está comigo e conosco todos os dias (Mateus 28.20), também nos 31 dias de agosto? Grande ajuda e conforto dá-me o apóstolo Paulo quando diz que não podem nos separar do amor de Deus nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem outras autoridades ou poderes celestiais, nem o presente, nem o futuro, nem o mundo lá de cima, nem o mundo lá de baixo. Em todo o universo não há nada que nos possa separar do amor de Deus, que é nosso por meio de Cristo Jesus, nosso Senhor (Romanos 8.38-39), muito menos o pequeno mês de agosto. Se surgirem dificuldades, assim como podem surgir dificuldades em todos os outros 11 meses do ano, Ele estará disposto, e pessoas amigas estarão dispostas, a me amar e ajudar e a caminhar comigo, conosco. Olhando assim, agosto é um tempo que Deus me dá de presente, junto com os outros meses de cada ano. Posso vivê-lo sem medo ruim, talvez até com medo bom, em todo caso com confiança e alegria. O autor é teólogo em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
Comportamento
O sentimento de culpa É preciso um novo olhar sobre o sentimento de culpa. Sem isso, não se pode vislumbrar o estrago em nossa vida. Paulo Sergio Rosa Guedes e Julio Walz
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OMECEMOS COM UMA PERGUNTA:
Sentir culpa é algo bom e proveitoso para a vida? Em uma enquete, provavelmente as respostas teriam este teor: é ruim sentir culpa, muito ruim, mas senti-la é um ato de reconhecimento dos erros que se cometeram e é a única chance que se tem para melhorar e reparar as falhas cometidas. Ou seja, as respostas, pensamos nós, iriam na direção de que sentir culpa é algo essencial para a melhoria da pessoa, apesar de ser muito ruim esse sentimento, mas necessário para perceber a própria responsabilidade. A nosso ver, esse seria o resultado de uma investigação – enquete – que tratasse desse assunto. Dizemos nós: É preciso que se consiga um novo olhar sobre o que se chama
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sentimento de culpa. É preciso e necessário. Sem uma visão nova, clara e definida sobre isso, não se pode vislumbrar o estrago que, inadvertida e aparentemente sem querer, fazemos em nossas vidas. Fica parecendo que sofremos por sentir culpa, temos a impressão de que somos vítimas dela e que nada podemos fazer para nos livrar disso. Não, nosso olhar está mal posicionado. Esse ponto de vista é totalmente ilusório. Mantemos a culpa e sua forte tensão emocional para tentar assim evitar o sofrimento, contornar a sensação de impotência frente à vida, que é absolutamente incontornável. Afirmamos “evitar o sofrimento”. Não temos dúvida de que isso é essencial na manutenção
do sentimento de culpa. Tentaremos explicar melhor. Nosso grande problema é justamente não saber como se criam as coisas, as dificuldades, os prazeres, enfim, de onde vêm as vicissitudes de nossa vida. Mas precisamos saber, claramente, que elas fazem parte de nós, são essenciais em nossa vida. Sem elas nada podemos experimentar, nem de bom nem de ruim. Como é muito difícil aceitar e conviver com esse fato, tentamos substituí-lo por achar causas, culpados, responsáveis etc. Aí o denominado sentimento de culpa, daí a vida sem sentido, daí o sentimento de estar apenas passando o tempo em vez de aproveitá-lo. E o mais grave, mais prejudicial: dizemos a nós mesmos que não desejamos, de modo algum, sentir culpa e não sabemos que estamos, convictamente, mentindo para nós próprios, enganando nossa consciência, tudo isso aparentemente em favor de poder viver melhor. Discutimos com maior amplitude o tema do sentimento de culpa num livro que publicamos há pouco tempo, denominado O Sentimento de Culpa, onde estabelecemos com clareza que ele é, sem dúvida, um sentimento delirante de grandeza. Paulo Sergio é médico psiquiatra e psicanalista e Julio é psicólogo e psicanalista em Porto Alegre (RS)
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Inclusão social
Praticar é preciso Inclusão acontece quando nos abrimos para o diferente, quando nos deixamos desafiar por alguma coisa que não conhecemos, sem preconceitos.
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S SERES VIVOS, ENTRE ELES OS SERES
humanos, aprendem através de situações que causam desassossego e provocam inquietação. Se tudo vai “bem” e não nos sentimos chamados a sair do lugar cômodo em que vivemos, dificilmente estaremos abertos a novas aprendizagens. Isso vale tanto para aprender um novo idioma, um novo ofício, ler e escrever como fazer algum trabalho manual que nunca havíamos feito até então. Aprender significa conviver com aquilo que é novo ou mesmo estranho a nós. Aprender coisas novas significa olhar para nossas limitações e superá-las. A aprendizagem requer convivência e exercício. Podemos aprender toda a teoria sobre como pilotar aviões. Mas se não tomarmos aulas práticas e exercitarmos horas a fio, será que estaremos aptos a pilotar um avião? Você viajaria tranqüilo com alguém que aprendeu a pilotar aviões apenas pelos livros? Também podemos entender tudo sobre os diferentes tipos de deficiências, suas causas, conseqüências, formas de prevenção e tipos de tratamento. Mas se não convivermos com pessoas com deficiência, jamais entenderemos a pessoa que possui uma deficiência. O ser humano vai além da deficiência que ele possui. Ele é, por natureza, diverso. Não há uma pessoa igual à outra. Também as pessoas com deficiência são diferentes entre si. Para que as conheçamos, a convivência é fundamental. Vivemos em uma sociedade pensada para os “iguais” e para aqueles que cabem
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dentro de um modelo de normalidade instituído socialmente. No entanto, é cada vez maior o número de pessoas que não se sentem incluídas nesse modelo e exigem mudanças sociais. Nunca se falou tanto em inclusão como nos dias de hoje. A inclusão acontece em diferentes espaços sociais: na família, no bairro e na cidade onde cada pessoa mora, na escola, no trabalho, no lazer, nos espaços públicos e na política. A inclusão acontece quando nos abrimos para o diferente, quando nos deixamos desafiar por alguma coisa que não conhecemos, sem preconceitos. É um processo em permanente mudança, com avanços e retrocessos. É um processo de mão dupla, em que as pessoas com deficiência precisam buscar e ocupar seu espaço, assim como a sociedade, de uma forma geral, precisa fazer a sua parte. Para que a inclusão aconteça, são necessárias condições de igualdade de acesso para todas as pessoas. Isso significa educação de qualidade, igualdade de condições para buscar uma qualificação e inserção no mercado de trabalho, acessibilidade com remoção de barreiras arquitetônicas e de comunicação, que irão facilitar o acesso de pessoas com diferentes deficiências. O desafio para que a inclusão aconteça vai desde pequenas mudanças em nossa vida diária, como, por exemplo, respeitar as faixas de segurança para pedestres ou vagas de estacionamento para pessoas com deficiência física, idosos e gestantes, até manter a calçada de nossas casas ou prédios sem obstáculos. Mas a inclusão também passa
Divulgação Novolhar
Vera Beatris Walber
Inclusão também acontece quando respeitamos vagas de esta
pelo cumprimento da legislação. O Brasil tem uma das melhores legislações na área da inclusão de pessoas com deficiência do mundo. O que não nos falta são leis, mas políticas públicas que coloquem em prática as leis aprovadas e cidadãos conscientes de seus direitos e deveres que exijam o cumprimento dessas leis. A aprendizagem através da convivência requer de nós disponibilidade e envolvimento. A inclusão requer a aceitação do que é diferente sem preconceitos ou avaliações antecipadas. A inclusão oferece a cada um de nós possibilidades infinitas de grandes aprendizagens. A autora é psicóloga e mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
Novolhar é sua revista Leia, assine, divulgue cionamento para pessoas com deficiência
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Conto Arte: Roberto Soares
Vendedor de palavras
Fábio Reynol
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UVIU DIZER QUE O BRASIL SOFRIA
de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que não se liam livros nesta terra. Por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande: “indigência lexical”. Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma idéia fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar espaço entre os camelôs. Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: uma mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia “Histriônico – apenas R$ 0,50!”. Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinqüenta curiosos parasse e perguntasse. – O que o senhor está vendendo? – Palavras, meu senhor. A promoção do dia é histriônico: a cinqüenta centavos, como diz a placa. – O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos. – O senhor sabe o significado de histriônico? – Não. – Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisam. – Mas eu posso pegar esta palavra de graça no dicionário. – O senhor tem dicionário em casa? – Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um. – O senhor estava indo à biblioteca? – Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado. – Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface. Pode muito bem levar para casa uma palavra por 40
apenas cinqüenta centavos de real. – Eu não vou usar esta palavra. Vou pagar para depois esquecê-la? – Se o senhor não comer a alface, ela acaba apodrecendo na geladeira, e terá de jogá-la fora. E o feijão caruncha. – O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras? – O senhor conhece Nélida Piñon? – Não. – É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o país sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos por aqui. – E por que o senhor não vende livros? – Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado. Portanto eu as vendo no varejo. – E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga. – A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os relógios de meu colega aqui do lado. Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela carinha de dona de casa, ela nunca me enganou. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto, mordendo-se de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. Suponho que, para cada pessoa que se dispõe a com-
prar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho. – O senhor não acha muita pretensão? Pegar um... – Jactância. – Pegar um livro velho... – Alfarrábio. – O senhor me interrompe. – Profaço. – Está me enrolando, não é? – Tergiversando. – Quanta lenga-lenga... – Ambages. – Ambages? – Também pode ser evasivas. – Eu sou mesmo um banana para dar trela a gente como você! – Pusilânime. – O senhor é engraçadinho, não? – Finalmente chegamos: histriônico! – Adeus. – Ei! Vai embora sem pagar? – Tome seus cinqüenta centavos. – São três reais e cinqüenta. – Como é? – Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só histriônico estava na promoção. Mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço. – Mas oito palavras seriam quatro reais, certo? – É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende? – Tem troco para cinco? Fábio Reynol (1973), paulista de Campinas, jornalista e escritor. Este conto foi transcrito de http:// www.releituras.com/ ne_freynol_vendedor.asp NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008
Espiritualidade
Ação de graças no dia-a-dia Não podemos deixar de reconhecer ação de graças como exortação diante da sociedade e da religião contemporânea, pautada pelo resultado e pela solução de problemas pontuais. Mauri Magedanz
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sol e não foram remuneradas? O que dizer das pessoas que, dominicalmente, estão no culto, na comunidade, dão o dízimo, são fiéis a Deus e não receberam a cura e continuam na penúria? Essas estão à margem do zelo de Deus? O ser humano trabalha cada vez mais com os benefícios da mecanização, da tecnologia e da informática. Porém não tem
ÇÃO DE GRAÇAS É UMA RESPOSTA
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O autor é teólogo e pastor sinodal da IECLB em JiParaná (RO)
OLHAR EM VOLTA: Deus faz diariamente grande coisas por todos nós
Barun Patro
de fé e gratidão da cristandade. Tudo o que somos e temos vem do Senhor (Salmo 24.1). Nós recebemos de Deus vida, forças, saúde, bons tempos, enfim, tudo o que é necessário para a vida corporal e espiritual plena. O término do primeiro semestre de cada ano coincide com a época das celebrações de ação de graças pela colheita em muitas comunidades cristãs. É tempo de reconhecer a generosidade e a bondade de Deus para conosco e sua criação. E somos convidados a apresentar a Deus o nosso reconhecimento de dependência, pois vivemos devido à ilimitada graça de Deus. Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer a ação de graças como exortação diante da sociedade e da religião contemporânea, pautada pelo resultado e pela solução de problemas pontuais, onde é apregoado que tudo depende do próprio esforço, no qual o ser humano vale pelo que produz e não pelo que é. Vivemos o tempo do fazer. A vida de muitos neste século 21 resume-se nessa palavra. Chega a ser doentio. A rotina do corre-corre e do ativismo é uma exigência da sociedade. Em determinados momentos, parece ser a única forma que o ser humano tem para ser visto e lembrado. Se é assim, como ficam as pessoas que igualmente foram íntegras, labutaram de sol a
o domínio absoluto sobre a criação. Hoje, por exemplo, já se sabe se amanhã vai chover ou não; porém ninguém ainda conseguiu mudar a chuva para depois de amanhã. Viver diariamente uma vida de ação de graças é saber que a última decisão sobre o sucesso ou o fracasso não está em nossas mãos, mas nas mãos do criador e preservador da vida. Se continuarmos celebrando a ação de graças, é graças à misericórdia e ao amor de Deus. É necessário perceber o milagre de Deus a cada novo amanhecer e anoitecer, no sol, na lua, nas estrelas do firmamento, na água, no ar, em cada semente plantada, em cada grão colhido, em cada abraço recebido e dado... Enfim, olhemos ao nosso redor. Deus faz diariamente grandes coisas por nós, vivemos devido à ilimitada graça de Deus. A ação de graças e a festa da colheita não só ajudam o povo de Deus que está necessitado, mas também faz com que mais pessoas venham a crer e agradecer muito a Deus (2 Coríntios 12-15). Isso é celebrar ação de graças no dia-a-dia.
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Zoran Ozetsky
Penúltima palavra
Hoje há pouco espaço para o sentimento
Reencantar a vida Astomiro Romais
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A TRAMA COTIDIANA DA VIDA, CADA
um de nós percorre um caminho que contém, antes que um ponto de chegada, um percurso. Nesse caminhar se entrecruzam momentos diversos: de dor, de extrema alegria, de silêncios e de perplexidades. Hoje experimentei um momento de perplexidade: o noticiário dava conta de um senhor atropelado por um motorista apressado – o que, digamos, não se constitui novidade alguma. Talvez a novidade estivesse no fato de que o criminoso prosseguiu em alta velocidade sem prestar socorro. E pior – daí a perplexidade multiplicada –, porque a vítima continuou por longo tempo estirada e sangrando no meio da rua sob o olhar indiferente de todos os transeuntes. Juntava-se, assim, à queda o coice, que bateu forte no meu peito. E perguntei: estaria essa sociedade das muitas
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descobertas científicas, de tantos avanços tecnológicos e de conhecimento florescente doente ou engendrando monstros? Remoendo essas questões, lembrei-me de uma fala do sociólogo Hélio Jaguaribe no Fórum Barcelona 2004, em que dizia que jamais o homem teve à sua disposição meios tão eficientes para tudo o que se refere ao mundo físico e, por outro, jamais esse homem se viu tão privado de valores que conferem sentido à vida. Indiferença, egoísmo, apatia. Temos visto alguns indícios preocupantes: pessoas enfartando, sem tempo para a família; jovens se aniquilando com o pé no acelerador ou com o nariz nas drogas, sem tempo para a vida; pessoas em profundo sofrimento depressivo, experimentando o drama da insuficiência; gente jogando crianças pela janela. Tenho me perguntado se não estamos fracassando em emparelhar razão e emo-
ção. Parece que estamos vivendo um excesso de racionalidade, com poucos espaços para o sentimento e a humanização. Experimentamos, na pós-modernidade, um torpor emotivo. É a teoria da autopoiese, que concebe os seres humanos como máquinas em contínua produção de si mesmos. A propósito, os blogs e sites de relacionamento não são os novos espelhos de Narciso? A família transformou-se num balcão de comidas rápidas, em que os laços de afetividade se esvaem e procuram ser reatados pelo consumo: quem não tem tempo para compartilhar, nem afeto, substitui-os por presentes materiais, por produtos. Na escola e na atividade profissional, há uma domesticação de corpos e espíritos num processo de trabalho fragmentado e cada vez mais desprovido de sentido. Seres-máquinas. Será que a escola não está em falta nessa equação ao ensinar muitas fórmulas químicas, matemáticas, habilidades lingüísticas e pouca ou nenhuma lição para a solidariedade, a doação, a partilha do amor, de gestos concretos de humanidade? O cognitivo não pode anular o afetivo. Se o fizermos, incorreremos no erro de que já nos alertava Otávio Paz: damos-lhes mais coisas, mas não mais ser! Certamente uma das mais belas definições de humano provém da cultura asteca. “Humano”, na sua definição, é alguém que é dono de um rosto e de um coração. O filósofo francês Blaise Pascal também enfatizava lógica semelhante ao dizer que “conhecemos a verdade não apenas pela razão, mas também pelo coração”. O coração precisa voltar à cena se não quisermos mergulhar na barbárie, fazer caminho rastejando. Precisamos resgatar urgentemente um pensamento central de Madre Teresa de Calcutá e adotá-lo como filosofia de vida: “Você não tem o direito de sair da presença de uma pessoa sem deixá-la melhor e mais feliz”. O mundo está precisando de colo. Reaprender a olhar o mundo, construir felicidade, entronar o coração e reeditar os nossos afetos: estes são os desafios. O autor é jornalista, mestre em Comunicação e Informação (UFRGS) e professor do curso de Comunicação Social da Ulbra em Canoas (RS). NOVOLHAR – Julho/Agosto 2008