CPAD
Ao leitor
A lição do lixo Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Walter Altmann Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Olga Farina, Ricardo Fiegenbaum, Vera Regina Waskow e Walter Altmann. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Roberto Soares Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Ana Cristina Kirchheim, André Luís Callegari, Andréa Fernandes, Asclepíades Pommê, Brunilde Arendt Tornquist, Carine Fernandes, Catia Eveline Friedrich, Cibele Kuss, Cris da Silva, Cynthia von Mühlen, Derti Jost Gomes, Edelberto Behs, Fabiane Michaelsen, Ingo Wulfhorst, Leonardo Boff, Luciana Chinaglia Quintão, Martin Norberto Dreher, Rolf Droste, Rui Bender, Sergio Adeodato, Silvana Isabel Francisco e Vera Nunes.
Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 27,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
OR INCRÍVEL QUE PAREÇA, DEPOIS DE TANTOS AVI-
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sos e informações vindos de todos os lados, ainda não aprendemos a lidar direito com o lixo que produzimos. Somos displicentes e irresponsáveis. Por onde quer que passemos, deixamos o nosso rastro e, mesmo que pareça tudo limpo e bem arrumadinho, basta levantar o tapete para encontrar o que todos queriam deixar oculto: o resultado da nossa atitude consumista. Em qualquer parte do mundo, rico ou pobre, industrializado ou em vias de desenvolvimento, a situação é exatamente a mesma: ao sumir de vista, o lixo deixa de ser preocupação. Há diversas iniciativas sérias de rever esse hábito e reaprender novas posturas. A reciclagem é uma delas. Mas ainda há muito a ser feito para que o planeta não vire a nossa imensa lata de lixo, já que ele é, também, a nossa única morada. Nesta edição da Novolhar, conheça o trabalho de formiga feito pelos catadores e o que pode ser feito com o lixo depois de reciclado. Ao mesmo tempo, entretanto, apesar de ser o campeão mundial de reciclagem, às vezes se tem a nítida impressão de que o Brasil está sufocando debaixo de uma montanha de lixo. Por isso o trabalho dessas formigas é digno de registro. Mas eu e você também precisamos aprender a fazer muito mais do que já fazemos para que o lixo deixe de ser um problema e se torne espaço de criatividade e de vida. Por isso, “Recolha o seu lixo!”. Uma olhada em alguns aspectos importantes da nossa história também faz parte desta edição, como o centenário da nossa respeitada Escola Normal Evangélica de Ivoti, hoje Instituto de Educação Ivoti, que faz formação de nível “A” ao longo de um século, e o centenário de nascimento de Ernesto Theophilo Schlieper, o “escultor” da IECLB moderna. O jornalista Rui Bender faz seu primeiro relato da viagem que fez a Israel. Integrante de um grupo de jornalistas cristãos que visitaram a Terra Santa, Rui revela aos nossos leitores que, em meio àquele conflito interminável, há muitos que sonham, esperam e arregaçam as mangas pela paz. E ela sempre será nosso motivo maior de esperança. Equipe da Novolhar
ANO 7 - NÚMERO 27 - MAIO/JUNHO DE 2009
CAPA 12 A LIÇÃO DO LIXO Conheça algumas tentativas de minimizar o problema que atinge toda a humanidade e ameaça sufocar o planeta 13 A vida que vem do lixo Catadores sobrevivem com a reciclagem de sucata
18 É digno separar o lixo Urge mudança de postura na forma de encarar o lixo
20 Banco de Alimentos 21 O Natal Pet O lixo transforma-se em luxo na decoração de Gramado
22 Problema globalizado A sopa de lixo que denuncia o desvio comportamental
16 Brasília reciclada A capital federal organiza seus catadores em cooperativas e associações
O pinião do leitor Identificação Louvo a escolha do assunto central da revista nº 25: “Adolescência”. A abordagem foi profunda e esclarecedora em muitos pontos. Mas a reportagem sobre a “venda” do senhor Carlos Luiz Wazlawick é a cópia fiel da “venda” que meus pais tiveram em Linha Jacuí, Victor Graeff (RS), no final dos anos 1940 a 1960. Transportei-me para lá e vi “seu” Cardoso e “dona” Erna labutando diariamente. E, junto ao atendimento de vasta freguesia, transmitir a seus filhos conhecimentos e valores, incentivando-nos a encontrar nosso caminho pelo estudo, trabalho e honestidade. Que saudade! Helena Cardoso da Fonseca – por carta Porto Alegre (RS)
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24 Lixo que vira arte A maior obra de arte começa em nossa mente
Da Igreja Evangélica Luterana da Colômbia En nombre de la IELCO y en el mío agradezco el envío de la revista Novolhar y aprovecho la oportunidad para felicitarlos, pues es una revista muy bien editada y con temas actuales muy interesantes. Rev. Sigifredo D. Buitrago P. – por e-mail Obispo Presidente
Parabéns Continuem no capricho, pois esta revista não só é diferente no visual, mas também na seleção do conteúdo. Claudio Herberts – por e-mail Jaraguá do Sul (SC) Gosto muito das duas revistas (Novolhar e O Amigo das Crianças) e é sempre um prazer recebê-las. Possuem assuntos muito interessantes e atuais. Oferecem boa leitura e
NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
OUTROS ASSUNTOS 6
32 Oriente Médio
Espelhos Princesa exilada por causa de sua fé pelo próprio marido
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Reflexão Uma fundamentação bíblica para o ecumenismo
10 Novolhar sobre
Homicídio doloso e culposo
10 Última hora 11 Notas ecumênicas 26 História
Uma escola centenária em Ivoti
28 Natureza
Maple Syrup – O xarope de árvore
29 Memória
Schlieper – Um nome para ser lembrado
Vozes cristãs na Terra Santa
34 Religiões Hinduísmo: Filosofia em busca da paz
36 Turismo No caminho dos seringais
38 Iniciativas de paz Passagem para a vida – Em defesa dos direitos das crianças
40 Espiritualidade Fome de pão e de beijos
30 Profissões
Sapateira por pura teimosia
conhecimento de tudo o que acontece na sociedade. Sempre levo para a escola municipal, onde trabalho como bibliotecária, e passo para as colegas professoras, pois sempre há assuntos que são interessantes para quem trabalha com crianças em sala de aula. Marguit Wojahn – por e-mail – Lajeado(RS) Recebi ontem a revista. Achei muito boa mesmo! As pessoas foram muito bem escolhidas, as matérias são consistentes e a revista é visualmente bonita e agradável. Sissi Castiel – por e-mail – Porto Alegre (RS) Escrevo para parabenizar toda a equipe pela revista. Ficou realmente muito boa; as matérias tem profundidade e tudo está muito bem feito. Foi realmente um prazer ter participado um pouquinho desse mundo aí. Silvana Henzel – por e-mail – São Leopoldo (RS)
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42 Penúltima palavra Nossas duas vidas
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Diga o que pensa Sua opinião é muito importante para nós aqui na redação da Novolhar. Por isso escreva-nos e diga o que pensa sobre nós, sobre os artigos que publicamos e sobre as temáticas abordadas. Mande-nos um e-mail para novolhar@editorasinodal.com.br
Tema da próxima edição A edição nº 28, de julho/agosto 2009, terá como tema de capa o TRANSPORTE. Nossa civilização depende dos meios de transporte cada vez mais velozes. O que isso significa para o planeta e a vida?
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Espelhos
Por causa da fé
Divulgação
Elisabeth de Brandenburgo, a princesa que foi exilada por causa de sua fé protestante pelo próprio marido, o príncipe Joaquim I.
Martin Norberto Dreher
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OS ÚLTIMOS 500 ANOS, MUITA GEN-
te teve que fugir por causa de sua fé, para poder preservá-la. Essas pessoas nos ajudaram a conquistar um direito que se tornou inegociável para a humanidade: o direito de escolha, de opção. Para que isso fosse possível, muitos perderam sua vida e seus bens e romperam laços familiares. Quem tem sobrenomes como Zerbien ou Trebien lembra os evangélicos que tiveram que deixar Salzburgo, na Áustria, por causa de sua fé. Quem assina Ravache, Toillier, Dupont, Devantier, Quinot nos lembra a noite de São Bartolomeu, na qual milhares de cristãos evangélicos franceses foram assassinados por causa de sua fé. Aqueles que sobreviveram tiveram que emigrar. Cristina, a rainha da Suécia, teve que renunciar ao trono e viver na Itália, depois de converter-se da fé evangélica para o catolicismo. Pouco conhecida é a vida de Elisabeth, princesa de Brandenburgo. Elisabeth nasceu na Dinamarca, filha do rei João II e da rainha Cristina. Era sobrinha de Frederico,
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o Sábio, príncipe-eleitor da Saxônia, o grande protetor de Lutero. Aos 17 anos, em 1502, casou-se com Joaquim I, príncipeeleitor de Brandenburgo, e tornou-se mãe de cinco filhos. Seu marido virou um ferrenho adversário da causa evangélica, juntamente com seu irmão, o cardeal Alberto de Mainz. Dificuldades no matrimônio, no qual amor e fidelidade haviam desaparecido, e a busca por consolo fizeram-na aproximar-se do movimento da Reforma que vinha da atividade e da pregação de Lutero em Wittenberg. Mesmo assim, Elisabeth não propalou de imediato as convicções que vinham da boa notícia do evangelho que anuncia que Deus aceita incondicionalmente a pessoa, por graça. Queria evitar o rompimento com o esposo. As perseguições ordenadas por Joaquim I aos adeptos da Reforma causaram-lhe conflitos interiores. Por fim, na ausência do esposo, pediu que o pregador evangélico lhe ministrasse a Santa Ceia, sob ambas as espécies (pão e vinho), alcançando-lhe também o cálice.
Ao saber disso, Joaquim temeu que a Reforma, por causa “do mau exemplo” de sua esposa, viesse a se espalhar pelo território de Brandenburgo. Invadiu os aposentos da esposa, dirigiu-lhe palavras violentas e, por fim, ameaçou lançá-la na prisão e ali algemá-la. Temendo que a ira do rei contra ela pudesse ser transferida para a gente simples que aceitara a fé evangélica e que o rei perseguisse também os pastores, ela resolveu deixar o território em que era rainha. Na noite de 25 para 26 de março de 1528, vestindo roupas de camponesa, acompanhada por uma camareira e por dois ajudantes de ordem, deixou o território num carro de bois. Foi acolhida por João da Saxônia, seu primo. Anos antes, diversas monjas de Cistér haviam fugido de mosteiro, também numa carroça, acondicionadas em barricas de transportar peixes. Entre elas estava Catarina von Bora, esposa de Lutero desde 1525. Elisabeth permaneceu nesse exílio, por vezes enfrentando necessidades, até a morte de seu esposo em 1535. Imediatamente, seus filhos a trouxeram de volta ao território de Brandenburgo. Quatro anos mais tarde, seu filho Joaquim II, acompanhado de toda a corte e junto com a mãe, receberia em Spandau, hoje um subúrbio de Berlim, a Santa Ceia sob ambas as espécies das mãos do bispo de Brandenburgo, Mathias von Jagow. Com esse ato, a Reforma estava introduzida no território de Brandenburgo. No dia seguinte, agora na catedral de Berlim, a Santa Ceia era celebrada também segundo o rito evangélico. Elisabeth viveu em Spandau até o fim da sua vida em 9 de junho de 1555. Em sua residência celebravam-se diariamente cultos evangélicos, nos quais ela mesma lia o evangelho muitas vezes ou fazia o sermão do Livro de Pregações elaborado por Lutero, tornando-se uma das primeiras mulheres luteranas a assumir funções pastorais. Seus descendentes governaram a Alemanha até o final da primeira guerra mundial. Lutero chamou-a de “minha querida comadre”, o que indica que ela deve ter sido madrinha de um de seus filhos. O autor é teólogo e professor de História na Unisinos em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
Olhar com humor
D ica cultural Wall-e: andróide catador de lixo E stá na agenda Fórum da Juventude O Sínodo Nordeste Gaúcho (IECLB) promove o Fórum da Juventude 2009 no dia 6 de junho, no Instituto de Educação Ivoti, na cidade gaúcha de Ivoti. O objetivo do fórum é fortalecer a discussão sobre o trabalho com jovens no sínodo, mas está aberto a todos. O encontro inicia com um painel e segue com apresentações e oficinas sobre temas como: no meu tempo era assim; recursos midiáticos; jovem e sexualidade; como ocupo o meu tempo; a igreja quer o jovem? O jovem quer a igreja? A divulgação do evento, além de material promocional, também é feita através do Blog do Fórum da Juventude. Acesse: http://forumdajuventude2009.blogspot.com E-mails: forumdajuventudeng@ gmail.com ou nordestegaucho@luteranos.com.br.
Seis décadas de IECLB A Faculdades EST, de São Leopoldo (RS), acolhe nos dias 2 e 3 de junho o VII Simpósio sobre Identidade Evangélico-Luterana. O evento integra as comemorações dos 60 anos da IECLB e tem como objetivo avaliar a contribuição e os entraves da eclesiologia luterana no contexto religioso brasileiro. O evento também presta homenagem ao pastor Dr. Ernesto Theophilo Schlieper pelo jubileu de seu nascimento e morte (veja matéria nesta edição). A palestra de abertura está a cargo do Prof. Dr. Guillermo Hansen, que dissertará sobre Luteranismo e Ecumenismo. Os pastores Harald Malschitzky e Rolf Droste participam de painel sobre o pensamento eclesiológico de Schlieper. Informações: www.est.edu.br/eventos.
A Terra foi abandonada a silêncio, lixo e destruição. Wall-e é um andróide catador de lixo que ficou para trás. Após 700 anos de solidão, as coisas mudam radicalmente. Como amargo aperitivo de nossa própria extinção, o mundo onde Wall-e vive em companhia de uma fiel barata mostra resquícios da civilização e da vida que ali já existiu em abundância. Seu olhar tenro sobre os artefatos daquela civilização perdida é compreensível. Afinal, ele também é um produto da ingenuidade humana. Longe dali, numa nova terra prometida intergaláctica, os humanos estão enfastiados por uma cultura da preguiça, na qual o consumo desenfreado é a regra e os robôs se ocupam de todas as tarefas funcionais. Regularmente, missões de pesquisa são enviadas à Terra em busca de algum sinal de vida. Uma dessas unidades chama-se Eva. O encontro de Eva e Wall-e transforma o destino dos robôs, dos humanos e da Terra. Nos primeiros 40 minutos dessa produção da Pixar, não há diálogo e nenhuma figura humana aparece na tela. O que se vê, no entanto, é uma expressão cinematográfica de forte impacto. A tônica do roteiro, escrito por Andrew Stanton e Jim Reardon, é a mensagem de que a criatividade infinita e a autodestruição são dois lados de uma mesma moeda forjada pelo amor, que transcende até os maiores erros e descasos humanos.
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Reflexão
Diálogo e convívio Uma fundamentação bíblica para a atitude ecumênica, com base na afirmação de Pedro de que “Deus não faz acepção de pessoas”.
“D
IALOGAR COM PESSOAS DE
outra religião não é bíblico. Por isso um cristão não deve perder tempo com o diálogo interreligioso. Além disso, é muito perigoso, pois eu posso perder a minha fé em Jesus Cristo.” Esse é um pensamento que circula em muitos ambientes cristãos. Vamos conferir na Bíblia. No Antigo Testamento, temos o credo básico do povo de Israel: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa de servidão. Não terás outros deuses diante de mim” (Êxodo 20.1-3). A exclusividade de Deus não é motivo para os israelitas não conviverem pacificamente com pessoas de outras religiões. Exemplo para essa convivência é o acordo dialogal pacífico entre Abrão e o rei Melquisedeque em Gênesis 14.18-24. Na história de Israel, marcada por guerras com povos vizinhos, muitas leis exigiam que os israelitas deviam conviver pacificamente com estrangeiros. Exemplos: deviam dar alimento aos estrangeiros (Deuteronômio 14.21; 24.19-21), não aborrecê-los (Deuteronômio 23.9) e não oprimi-los (Êxodo 23.9). Portanto, há o aspecto universal na fé dos israelitas e, ao mesmo tempo, uma compreensão exclusiva de Deus. Essa tensão também existe no Novo Testamento. A exclusividade está
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expressa nas palavras de Jesus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14.6). Então um cristão não deve dialogar com pessoas de outras religiões? Jesus foi educado no judaísmo e sabia que “é proibido a um judeu ajuntar-se ou mesmo aproximar-se de alguém de outra raça” (Atos dos Apóstolos 10.28). Mas uma mulher de outra cultura religiosa aproximou-se dele e implorou: “Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de mim! Minha filha está horrivelmente endemoninhada” (Mateus 15.22). Seus discípulos disseram a ele: “Mande essa mulher embora!”. Ante a insistência dela, Jesus rompeu a barreira cultural religiosa judaica e falou com a mulher. Ele se justificou dizendo que se entendia como enviado exclusivamente para o povo de Israel e por isso não fora enviado para ter compaixão com a mulher desesperada e sua filha doente. Por sua grande confiança em Jesus, a mulher não se deu por vencida e insistiu. “Então lhe disse Jesus: Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres.” E Jesus curou a filha (Mateus 15.21-28). A compreensão exclusivista de sua missão caiu por terra, e ele incluiu pessoas de outra cultura religiosa em sua compaixão. Assim Jesus também curou o filho
Juan Michel/CMI
Ingo Wulfhorst
CELEBRAÇÃO: Ato litúrgico interconfessional para comemorar
de um dos comandantes militares romanos (Mateus 8.5-13) e elogiou a atitude de um samaritano (Lucas 10.29-37). O ápice da compaixão de Jesus por todas as pessoas aconteceu em sua paixão, morte e ressurreição pela humanidade. E quanto aos seguidores de Cristo? O apóstolo Pedro seguia à risca a proibição de não falar com pessoas de outra cultura religiosa. Porém, graças a uma “visão” e a um diálogo com o centurião romano CorNOVOLHAR – Maio/Junho 2009
a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos na sede do Conselho Mundial de Igrejas em Genebra/Suíça
nélio, Pedro mudou radicalmente de opinião: “Deus me demonstrou que eu a nenhum homem considerasse comum ou imundo” (Atos 10.28). Depois dessa “conversão”, Pedro afirmou: “Reconheço, por verdade, que Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e faz o que é justo é aceitável a Deus” (Atos 10. 34s). Os evangélicos de confissão luterana afirmaram em 1530, na Confissão de WWW.NOVOLHAR.COM.BR
Augsburgo, que “o Espírito Santo age onde e quando lhe apraz” (João 3.8). É uma confissão não apenas luterana, mas cristã. Ela considera a ubiquidade e a onipresença de Deus. Deus está presente e agindo através do Espírito Santo no diálogo inter-religioso. Conheci nos últimos anos militantes muçulmanos e cristãos que incitavam seus concidadãos a participar de conflitos armados. Mas, a partir do diálogo e da leitura da Bíblia e do Alcorão, en-
contraram o caminho da reconciliação e hoje promovem a convivência pacífica inter-religiosa. As experiências de Jesus, de Pedro e de tantos outros convidam a conviver e dialogar com pessoas de outras religiões. O autor é teólogo, professor e pastor emérito da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil em São Leopoldo (RS)
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André Luís Callegari
Qual o significado jurídico de um crime noticiado no rádio, televisão ou jornal? Pensamos sobre os motivos que geram os níveis de gravidade de um fato e os tipos de penas aplicáveis. Isso acontece, por exemplo, com o crime de homicídio (matar alguém), que pode ocorrer na forma dolosa ou culposa. No homicídio doloso, houve a intenção de produzir um resultado, isto é, o agente dirigiu sua conduta para produzir a morte de outra pessoa. Por isso a pena (punição) é a reclusão, em face da gravidade do delito. Já o homicídio culposo também pode ter produzido como resultado a morte de alguém. No entanto, nesse caso, não houve a intenção do sujeito, mas o agente não agiu com a cautela devida e, por isso, a pena é a detenção (mais leve) e permite que o sujeito preste serviços à comunidade, sem a necessidade de ser preso. Também pode ocorrer o homicídio com o dolo eventual, quando o agente prevê que o resultado pode ocorrer e não o deseja, mas assume o risco de produzi-lo. Assim, quando o agente prevê o resultado morte de alguém e atua com indiferença, dizendo “eu não quero, mas se ocorrer a morte, tanto faz”, estamos diante do dolo eventual, que se caracteriza justamente pela indiferença do autor em relação ao resultado. Por isso o homicídio culposo decorre de imperícia, imprudência ou negligência, que são as modalidades de culpa comuns nos acidentes de trânsito. A imperícia é a falta de habilidade técnica para o exercício de arte ou profissão (dirigir sem habilitação); a imprudência é uma atividade abrupta, afoita, sem o cuidado necessário (ultrapassagem em local proibido); e a negligência consiste na omissão da devida cautela (dirigir um veículo com pneus gastos). O autor é coordenador executivo do Curso de Direito da Unisinos e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos em São Leopoldo (RS)
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CLAI tem novo secretário-geral O Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) tem novo secretário-geral, eleito pela Junta Diretiva, sob a presidência do bispo anglicano Júlio E. Murray, no dia 20 de março, em Lima, Peru. Entre os três candidatos, foi escolhido o pastor luterano Nilton Giese, 49, brasileiro, que acumulava os cargos de secretário-geral interino e diretor do departamento de comunicações, com mandato até 2013. Em recente reunião do Comitê Editorial da revista Signos de Vida, do CLAI, na cidade do Panamá, o secretário-geral eleito falou para a Novolhar, destacando que vai trabalhar para “possibilitar aos membros do Clai que tenham voz ativa na maneira de como o Clai deve atuar em cada país”. Juventude e cidadania ambiental fazem parte dos 11 programas desenvolvidos pelo CLAI. “Como fazer para que os programas desenvolvam atividades que beneficiem as igrejas” é também desafio para o novo secretário-geral. Além disso, Nilton vai se empenhar para que “o testemunho ecumênico possa ajudar as pessoas a se liberar da pobreza”.
João Artur Müller da Silva
Homicídio doloso ou culposo?
Última hora
O pastor brasileiro Nilton Giese assume até 2013
O CLAI foi criado em 1982, congrega mais de 152 igrejas e organismos cristãos na América Latina e Caribe. A secretaria regional do CLAI no Brasil é presidida pelo Rev. Derli Alves e congrega nove igrejas e dez organismos ecumênicos.
70 anos de diaconia Com o lema “Multiplicando o Cuidado e a Paz”, a Casa Matriz de Diaconisas, em São Leopoldo (RS), comemora 70 anos de existência em grande estilo. Um convite dirigido às comunidades da IECLB reúne amigos e caravanas inteiras no dia 17 de maio para a festa. Os amplos jardins de uma das mais dedicadas instituições da IECLB são o cenário. Recepção com grupo de metais, culto festivo campal, atividades com crianças, oficinas, programas culturais e orquestra de câmara jovem estão no programa. Um museu e exposição de fotos de dezenas de projetos tocados pelas irmãs diaconisas no Brasil e no exterior também marcam a data, além de barracas de lanches e de artesanato. A Irmandade Evangélica Luterana, nome oficial da mantenedora da instituição, convida para a festa. Com décadas de tradição na atividade de irmãs diaconisas vindas da Alemanha, o ano de 1939 foi o da virada. Em
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N ovolhar sobre
1938 foi decidido em concílio fundar uma casa brasileira de diaconisas. No dia 17 de maio de 1939, a primeira moça veio morar na casa, marcando a largada de um dos maiores projetos sociais da história da IECLB. No início, as irmãs usavam hábito, que foi mudando ao longo do tempo e liberado nos anos 1990. Ao longo das sete décadas, as irmãs atuaram em hospitais e ancionatos e atuam em diversos projetos sociais com crianças, idosos e carentes. NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
Notas ecumênicas
O
CONFLITO PRESENTE NO COTIDIAno das pessoas, na sociedade e no espaço público, só se diferencia da guerra em termos de escala, porque os valores que atravessam os três níveis são exatamente os mesmos, disse o editorialista do jornal argentino Página 12, Washington Uranga. Quando se promove a busca da paz, é preciso ter claro que não se trata apenas de cenários de guerra. “Os processos de concentração urbana, o tipo de sociedade que se constrói a partir da lógica absoluta da competição gera altos níveis de violência na vida cotidiana”, explicou Uranga para estudantes de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Quando boa parte da sociedade não tem visibilidade, porque pouco representa na conta do consumo, isso é violência, apontou o jornalista e professor universitário. “A sociedade carece de mecanismos de inclusão”, afirmou, lembrando também o conflito presente no cenário público. Uranga imagina os comunicadores de hoje como facilitadores do diálogo entre os diferentes, entre culturas e espaços diversos. Cabe aos comunicadores de uma comunicação solidária darem visibilidade a todos os atores, o que implica construir o público como cenário que abriga todos e, hoje, esse espaço público é, essencialmente, comunicacional.
Pelos direitos dos quilombolas A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que convoque audiência pública para que possa ouvir representantes das comunidades e especialistas antes de julgar ação de inconstitucionalidade do decreto presidencial que estabelece critérios e procedimentos para a regularização de territórios quilombolas. Os anglicanos destacam que existem no país cerca de 5 mil comunidades quilombolas e, dessas, aproximadamente
1,3 mil estão em processo de regularização fundiária em curso no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). “O Decreto 4887/03 foi uma importante conquista dos remanescentes de quilombos em todo o país e sua revogação traria sérios prejuízos aos direitos quilombolas”, alerta carta dos anglicanos, lembrando que a sociedade brasileira tem uma dívida social “para com aqueles que foram trazidos à força da África para ser escravizados em nosso país”.
Os deserdados da crise Igrejas e organismos de ajuda vão trabalhar duro, através de seus serviços diaconais, para recolher os feridos, maltratados e deserdados dessa crise, vaticinou o professor Valério Schaper, na mesa-redonda de abertura do ano letivo da Faculdades EST em São Leopoldo. Recorrendo à recomendação de Jesus de buscar a ovelha perdida, deixando as outras 99 em segurança, Schaper disse que sair à procura do animal que falta é base para qualquer ministério, sobretudo em situações de WWW.NOVOLHAR.COM.BR
crise. “Comunidades devem ser unidades de trabalho para a recuperação das inúmeras centésimas ovelhas que estão por aí”, defendeu. Para o deputado Raul Pont (PT/RS), outro painelista no evento, a humanidade está diante da possibilidade de reverter a crise em alternativas. “O Brasil e os países com governos populares na América do Sul têm a chance de uma integração imediata, um processo de resolvermos a crise a partir do mercado interno”, afirmou.
Ricardo Stuckert
A paz é tarefa diária
Protestantes questionam acordo com Igreja Católica
O presidente Lula firmou o acordo com o papa
O Colégio Episcopal da Igreja Metodista apelou ao Senado para que não aprove o acordo entre a Santa Sé e a República, uma vez que ele fere preceitos constitucionais, como a separação entre Estado e Igreja. Os termos do acordo entre o Brasil e a Santa Sé foram firmados no dia 13 de novembro de 2008 pelo ministro do Exterior do Vaticano, dom Dominique Mamberto, e pelo chanceler brasileiro Celso Amorim, durante visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao papa Bento XVI. O acordo versa, entre outros, sobre questões econômicas e administrativas da Igreja Católica no Brasil. Carta pastoral do presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), Walter Altmann, entende legítimos e comuns acordos entre Estados. Mas espera, na medida em que o acordo contenha direitos e prerrogativas para a Igreja Católica, que o governo brasileiro os estenda, com naturalidade, às demais confissões, pois trata-se de preceito constitucional que não pode ser ferido. O documento tem 20 artigos e trata, entre outros, das isenções fiscais para a igreja e instituições eclesiásticas, indica que a atividade dos religiosos não caracteriza vínculo empregatício, confirma a proibição de livre acesso de missionários às áreas indígenas, obriga sacerdotes estrangeiros a solicitar o visto de permanência no país e estabelece que as igrejas históricas e obras de arte nelas embutidas pertencem também ao Estado brasileiro e que ambos têm o compromisso de preservá-las. Matérias compiladas pelo jornalista Edelberto Behs a partir de repor tagens publicadas pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC). Site: www.alcnoticias.org
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Capa
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A Terra já passou por muitas transformações radicais. Muitas delas deixaram marcas rastreáveis. Mas, pela primeira vez na história do planeta, uma espécie é protagonista de uma transformação, cujas consequências mal se consegue definir. A humanidade emporcalha sua única morada com a mesma displicência de quem atira um chicle mascado na calçada de uma cidade qualquer, transformando o mundo em sua lixeira. Alguns resultados são um continente de lixo boiando no Pacífico e o próprio entorno espacial do planeta. Iniciativas como a reciclagem ou a educação ambiental ajudam. Mas será necessário bem mais do que isso para reverter uma catástrofe anunciada. Nessa série de reportagens de capa, conheça o problema e algumas tentativas de minimizá-lo. 12
NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
A vida que vem do lixo Vera Nunes
UMA SOCIEDADE DE CONSUMO, O LIXO É TUDO
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aquilo que é descartável, coisas e objetos sem valor que precisam ser eliminados. “O lixo pode ser uma multiplicidade de coisas, ao mesmo tempo é o excremento da sociedade de consumo, centralidade da produção, do mercado capitalista. É algo do que cada um quer se livrar, tirar de sua casa, não se importando mais o que acontece com ele depois desse ato”, define o filósofo e educador Telmo Adams.
Para Alexandro Cardoso, 29 anos, morador do Loteamento Cavalhada em Porto Alegre (RS), a resposta é curta: “Lixo para mim é tudo. É a minha vida”. O professor, que possui especialização em cooperativismo e doutorado em Educação, concorda. “Para os recicladores e recicladoras, talvez por influência da reflexão ecológica e dos significados de seu aproveitamento para a vida, lixo não é lixo, mas material reciclável, matéria-prima. Talvez um pouco romântico, mas é”, reflete. Filho e neto de catadores, Alexandro – mais conhecido como Alex – nasceu literalmente dentro de uma carroça atulhada de sucata. Cresceu nesse meio e dele fez sua sobrevivência e forma de vida. Hoje integra o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, é coordenador da Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis do Loteamento Cavalhada (Ascat), educador popular, já ministrou aulas até na universidade onde apresentou o funcionamento da microssociedade dos catadores. A sobrevivência de Alex depende de quem produz o lixo, se o deixa separado ou não. “Os dejetos misturados (orgânicos com os demais)
Fundação Luterana de Diaconia
ORGANIZAÇÃO: Para o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, o lixo é fonte de sobrevivência e forma de vida
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Educação para conscientizar – O filósofo e educador Telmo Adams também aposta na educação como forma de conscientização. No trabalho realizado junto à Associação dos Recicladores de Dois Irmãos (RS), ele observou que, em tempos em que o trabalho educativo era intensivo, com a
participação dos próprios recicladores, mas sobretudo dos meios de comunicação – rádio, jornal e trabalho nas escolas –, a avaliação era de que cerca de 70% do lixo vinham separados, em condições de ser aproveitados. “Mas em tempos de diminuição do processo educativo, a separação caía abaixo dos 50%”, quantifica. Acompanhando esse processo em Dois Irmãos, ele conclui: “Lixo, coleta seletiva, reciclagem ou é um projeto integrado ao plano de desenvolvimento local, ou isoladamente é apenas um cumprimento da legislação que exige que se cumpram algumas normas para a municipalidade não ser multada”. A relação desses personagens com um dos maiores problemas que aflige as grandes cidades é diferente, mas todos entendem a necessidade de tratar da questão do lixo. Estima-se que, somente na capital gaúcha, são recolhidas 350 mil toneladas de resíduos por dia. Contabilizando apenas o lixo seco, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) recolhe 60 toneladas por dia e pretende atingir as 100 toneladas quando entrar em funcionamento total a coleta dos 28 caminhões monitorados por GPS, recentemente adquiridos pela prefeitura. Segundo o diretor da Divisão de Projetos Sociais, Reaproveitamento e Reciclagem, Jairo Armando dos Santos, essa nova etapa, na qual toda a cidade será atendida duas vezes durante a semana, acata uma antiga reivindicação da população, que tinha dificuldades para guardar materiais mais volumosos.
Vera Nunes
ALEX - Coordenador da Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis do Loteamento Cavalhada
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Fundação Luterana de Diaconia
são, de fato, lixo. Mas, devidamente separados, são aproveitáveis e por isso deixam de ser lixo”, explica Adams. A separação do lixo ainda não é uma prática completamente assimilada pela população. É bastante comum observar pessoas que não têm consciência da importância desse gesto tão simples. Mas há quem se preocupe em ensinar os pequenos para que isso se torne um hábito arraigado nas gerações futuras. A proprietária da Cinco Estrelinhas Escola de Educação Infantil, de Porto Alegre, Claudia Bartelle, decidiu que, entre suas linhas de trabalho, a ecologia teria papel de destaque e os pequenos seriam conscientizados para ações variadas, entre elas a separação e o tratamento do lixo. “É a única maneira de melhorar o mundo deles e, por que não dizer, o nosso também”, analisa. Decidida a fazer alguma coisa para mudar a situação, Cláudia fez parcerias com o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) para palestras na creche, organizou passeatas pelo bairro e dispôs-se a servir como base para a coleta de materiais que contaminam, como as lâmpadas fluorescentes, que possuem mercúrio em seu interior.
PIONEIROS: Os catadores porto-alegrenses são exemplos para
Em termos de seleção de lixo, os portoalegrenses são exemplos para várias cidades, estados e até países. Conforme Santos, a coleta seletiva na capital gaúcha foi pioneira no Brasil e é um referencial para a América Latina, porque está em funcionamento há quase 19 anos. “As cargas são direcionadas integralmente às 16 Unidades de Triagem, espalhadas pela cidade, que geram renda e inclusão social a cerca de 800 catadores”, calcula. Os ganhos ficam, em média, na faixa de R$ 480,00, mas em galpões mais organizados, como a Ascat, podem chegar a R$ 600,00 por mês. A associação conta com 42 catadores fixos e oito freelances, ou seja, eventuais desempregados que precisam trabalhar temporariamente por um ou dois meses até conseguir outra atividade. A lista de interessados em entrar na associação é submetida à assembléia geral, quando os integrantes aprovam ou não os nomes sugeridos. NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
várias cidades, estados e até países. A coleta seletiva na capital gaúcha foi pioneira no Brasil e é um referencial
Na Ascat, cada um tem seu papel definido. Alex é um dos três coordenadores e responsabiliza-se mais por questões administrativas e gerenciais, enquanto seis coordenadores de grupo organizam o trabalho diário. “Mas todos pegam no pesado. Todo mundo trabalha igual”, esclarece. No final do mês, em uma assembléia com todos os associados, são feitas a comprovação dos gastos e a divisão dos lucros. “Começamos o mês sem dinheiro, zerados, e tudo o que é arrecadado é dividido em partes iguais no final. Somos uma democracia direta, onde todos têm direitos, podem opinar e participar”, define. Mas Alex também é o elo entre a associação e os movimentos populares. Em Brasília, integrando o Movimento Nacional dos Catadores, participou de importantes conquistas, como por exemplo a mudança na lei de licitações e na lei de saneamento ambiental. “Hoje estamos desWWW.NOVOLHAR.COM.BR
locando duas pessoas para organizar o movimento em outros estados”, observa, lembrando que toda essa organização depende da articulação de parcerias com entidades e outras associações. Incentivando o protagonismo – Uma das importantes parcerias do movimento dos catadores foi celebrada com a Fundação Luterana de Diaconia (FLD), entidade criada em 2000 por decisão do Conselho da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (CI/IECLB), com o objetivo de apoiar a execução de projetos que promovam a qualidade de vida, cidadania e justiça social. A partir do apoio da FLD, os catadores desenvolveram, por exemplo, o projeto Cadeia Produtiva de Reciclagem, através do qual a Petrobrás destinará R$ 965.759,92, em dois anos, para a formação de catadores e a organização de 17 entrepostos de comercialização
em todo o estado. “Uma coisa importante é que a Fundação apóia e estimula o protagonismo, ou seja, nós que conhecemos a realidade somos quem desenvolvemos o projeto. Não é nada pronto, vindo de fora e feito por quem não entende do assunto. Assim não funciona”, atesta Alex. Além de auxiliar na organização dos catadores, disponibilizando espaço físico e computadores, a FLD disponibiliza aporte técnico aos projetos, intervindo na negociação com os financiadores. Um dos resultados de todo esse trabalho é a recuperação da autoestima de pessoas que até pouco tempo atrás eram vistas apenas como mendigos. “Quem de nós na infância não ouviu falar do ‘velho do saco’?”, questiona Alex. Segundo ele, esse personagem do imaginário infantil era um catador. Hoje, na sua opinião, essa percepção mudou. “O catador já é visto como alguém que está fazendo sua parte, não está lesando ninguém e contribui para a preservação da natureza”, acredita. “Hoje podemos considerar esses trabalhadores verdadeiros heróis, que tentam minimizar os efeitos do modelo crematístico (depredação sem medir as consequências, como se os recursos da natureza fossem infinitos, ilimitados) de produção e de consumo adotado pelos países na lógica capitalista. Eles têm um potencial profético no sentido de denunciar, sim, os rumos do contradesenvolvimento e a idéia de que nossa saída está no crescimento econômico ilimitado. No entanto, a voz deles ainda não se faz ecoar”, lamenta Adams. Em relação ao meio ambiente, o resultado é mais palpável e pode ser traduzido em números. O diretor da Divisão de Projetos Sociais, Reaproveitamento e Reciclagem do DMLU, Jairo dos Santos, quantifica o trabalho feito assim: “O benefício ambiental com a coleta seletiva reflete-se na reciclagem do vidro, que é 100% reciclável, na substituição do corte de 350 m3 de eucalipto por tonelada de papel reciclado e ainda com economia de 20 mil litros de água e 1.200 litros de óleo combustível”. Em Dois Irmãos, a Associação de Recicladores comemora o feito em dez anos de atuação: “Foram 53.282 árvores poupadas com a reciclagem do papel”. O meio ambiente é quem agradece. A autora é jornalista em Porto Alegre (RS)
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Fotos: Caritas
A união dos catadores em cooperativas permite a aquisição de equipamentos que facilitam a vida e o trabalho de todos
Brasília reciclada Os catadores do Distrito Federal estão organizados em 18 cooperativas e associações, agrupando cerca de 3.500 pessoas, o que, somado aos respectivos núcleos familiares, dá um total de 15 mil que vivem por meio dessas organizações. 16
Silvana Isabel Francisco
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DISTRITO FEDERAL APRESENTA uma peculiaridade em relação aos materiais recicláveis. A importação da maioria dos produtos de outros estados e o maior índice de renda per capita do país acarretam o descarte de grande quantidade de resíduos sólidos em relação ao número de habitantes. Diariamente, são recolhidas 2.457 toneladas de lixo domiciliar, 19 toneladas de lixo hospitalar e 4.770 toneladas de lixo de remoção, segundo Juliane Berber, chefe da Assessoria de Planejamento do Serviço de Limpeza Urbana (SLU). No Distrito Federal, a coleta seletiva é realizada em algumas quadras e regiões administrativas pelos caminhões do SLU. Em certos dias, recolhe-se o lixo seco e, em outros, o lixo orgânico. A instrução é que os moradores separem esses dois tiNOVOLHAR – Maio/Junho 2009
pos de lixo e os depositem em contêineres específicos. O SLU faz o transporte de resíduos para os locais de triagem, de rejeitos para o aterro, e cede instalações e equipamentos próprios para os trabalhos de seleção de materiais recicláveis. “Mesmo que nem todos participem da coleta seletiva, a iniciativa é válida, pois esse exemplo tem que ser repassado às crianças e aos adolescentes para expandir a cultura do não-desperdício, da reutilização e da reciclagem”, analisa Alberto Corre, analista de Atividades de Limpeza Pública do SLU. Ele ainda comenta: “Além disso, os sacos com resíduos recicláveis geralmente são mais leves do que aqueles com orgânicos, e isso acaba facilitando sua distinção pelos catadores”. Os catadores do Distrito Federal estão organizados em 18 cooperativas e associações, agrupando cerca de 3.500 pessoas, o que, somado aos respectivos núcleos familiares, dá um total de 15 mil pessoas que vivem dessas organizações. Existem ainda cerca de 10 mil catadores avulsos, afirma Rute Melo, do Centro de Estudos e Assessoria (CEA). Além da coleta seletiva em alguns lugares e de diversos programas da iniciativa privada, o Fórum Lixo e Cidadania do Distrito Federal e Entorno, formado por grupos, movimentos, universidades e instituições governamentais, apoia o trabalho dos catadores. Esse fórum executou, sob a coor-
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Galpão para reuniões e aulas de alfabetização
denação da Cáritas Brasileira, o projeto “Coleta Seletiva Solidária na Esplanada dos Ministérios”, em convênio com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), de 2005 a 2007. Seu objetivo era capacitar os ministérios para a separação dos materiais recicláveis em seus respectivos blocos e destiná-los às organizações de catadores, cumprindo o Decreto 5.940/06. Os papéis e outros materiais recicláveis na coleta seletiva solidária nos ministérios são recolhidos pelos servidores da limpeza e acondicionados em contêineres nas garagens dos edifícios. As cooperativas, com o apoio da Central de Cooperativas do Distrito Federal (Centcoop), assinaram termos de compromisso com os respectivos órgãos para executar a coleta. Tudo é recolhido por cami-
nhões e levado aos galpões ou à área de triagem para as fases de seleção, prensa, enfardo e comercialização do material. “A participação dos órgãos tem sido crescente, e o impacto dessa coleta tem gerado mudanças econômicas significativas para os catadores”, avalia Francisco Nascimento, da Secretaria Executiva do CIISC, do MDS. “Todo o material gerado a partir do cumprimento do Decreto 5.940/06 vem ajudando muito nossas cooperativas, ainda mais agora que a crise está braba e os preços dos recicláveis baixaram demais”, confirma o catador Alex Pereira, um dos diretores da Centcoop. A autora é jornalista em Brasília (DF)
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É digno separar o lixo
Recordista em reciclagem Ana Cristina Kirchheim
OBrasil é recordista mundial em reciclagem de latas de alumínio (89% em 2003 contra 50% em 1993). A reciclagem de papel subiu de 38,8% em 1993 para 43,9% em 2002. Já o indicador Coleta Seletiva de Lixo mostra números incipientes. Somente 2% do lixo produzido no país é coletado seletivamente. Apenas 6% das residências são atendidas por serviços de coleta seletiva, que existem em apenas 8,2% dos municípios brasileiros. É importante lembrar que o lixo gerado pelas pessoas é apenas uma pequena parte da montanha que surge a cada dia, composta pelos resíduos de outros setores. Os diferentes tipos de lixo classificam-se de acordo com sua origem – dos espaços públicos como
ruas e praças: o chamado “lixo de varrição”, com folhas, terras, entulhos; dos estabelecimentos comerciais: restos de comida, embalagens, vidros, latas, papéis; das casas: papéis, embalagens plásticas, vidros, latas, restos de alimentos, rejeitos; das fábricas: rejeitos sólidos e líquidos, de composição variada; dos hospitais, farmácias e casas de saúde: um tipo especial de lixo, contendo agulhas, seringas, curativos, o chamado “lixo patogênico”, que produz inúmeras doenças.
Pela urgente mudança de postura na forma com que encaramos o lixo e o reciclamos.
A autora é assessora de projetos da Fundação Luterana de Diaconia em Porto Alegre (RS)
Cynthia von Mühlen
Barkeley Robinson
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GRANDE QUANTIDADE DE LIXO PROduzida diariamente no mundo preocupa cada vez mais a sociedade. Os resíduos descartados acumulam-se nos lixões e são um problema difícil de ser resolvido. A responsabilidade é de cada indivíduo, desde aqueles que produzem o lixo até aqueles que estão mais preocupados com a destinação e a reciclagem do material. É urgente uma mudança de postura, a começar pela forma com que vemos o lixo (material reutilizável ou não) e como o encaminhamos para um processo de reciclagem. Também é importante reconhecer os profissionais envolvidos no processo de recolhimento, triagem e reciclagem do lixo. Dois projetos realizados com crianças ocupam-se com essa questão e com a necessidade de conhecer mais a problemática do lixo. Desenvolvem ações que ajudam a resolver esse problema. Ensinam a conviver, respeitar e trabalhar junto com as pessoas envolvidas na produção e no processo de reciclagem. Assim as crianças aprendem a ser pessoas com atitudes mais responsáveis e éticas. NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
Daniele Metz
PRECOCE: Já nos primeiros anos, é necessário aprender a lidar com a questão da destinação correta do lixo e que a separação é fundamental
Um deles acontece na Vila Pontilhão, em Gravataí (RS), através da iniciativa do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Preocupado com a educação dos filhos dos catadores dessa vila, o movimento começou a trabalhar com as crianças a importância da reciclagem tanto para o meio ambiente como para a subsistência de suas famílias. O objetivo, além de proteger as crianças de ambientes hostis tanto na rua como em sua própria comunidade, é ocupá-las com atividades de formação, trabalhando a autoestima e conscientizando-as da importância do trabalho de seus pais. O outro projeto é desenvolvido no Colégio Sinodal, em São Leopoldo (RS), na área da educação infantil. O objetivo não é somente separar e reutilizar o material reciclável ou lixo limpo (sucata) produzido pelas crianças, mas também ressaltar a importância do processo de reciclagem e a consequente diminuição do consumo. WWW.NOVOLHAR.COM.BR
Cada turma, de acordo com suas habilidades, desenvolveu atividades como: confecção de composteira, medição e classificação do lixo produzido durante um determinado tempo, confecção de brinquedos com sucata, atividades de matemática de quantificação, classificação etc. O material produzido foi destinado a um galpão de reciclagem, e as crianças puderam conhecer as pessoas e o processo de separação, triagem e encaminhamento para a reciclagem. Assim passaram a preocuparse com a destinação dos materiais que produziam, não misturando mais lixo seco com lixo molhado. Passaram a demonstrar maior respeito pelos profissionais que trabalham nessa área. As crianças também mostraram maior cuidado com os brinquedos e materiais escolares, diminuindo o consumo e utilizando melhor os materiais. Observamos que o material reciclável pode ser bem utilizado e pode transformar-se numa ótima ferramenta didática.
A mudança de postura somente foi possível a partir do conhecimento e da compreensão de que a produção, reutilização e reciclagem são ações do ser humano. O reconhecimento das pessoas que estão envolvidas nesse processo é o passo inicial para uma mudança de postura. As crianças passaram a separar o material, pois compreenderam que, separando, reutilizando e cuidando das coisas que utilizamos, estamos não só ajudando o meio ambiente, mas também respeitando o outro e cuidando de nós mesmos. Também compreenderam que o trabalho com resíduos é de fundamental importância para a sociedade em que vivemos, e por isso é um trabalho digno. A autora é professora do Colégio Sinodal, das unidades São Leopoldo e Portão, e do projeto social desenvolvido na Vila Pontilhão em Gravataí (RS)
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ONG Banco de Alimentos
FIM DO DESPERDÍCIO: A ONG resgata 44 toneladas de alimentos por mês; comida para 22.900 pessoas
Banco de Alimentos Luciana Chinaglia Quintão
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ETIRAMOS MAIS DA NATUREZA DO QUE
ela consegue repor no mesmo período de tempo. Retiramos dela o que ela não consegue repor em período algum, no caso dos insumos não-renováveis. Desperdiçamos bens tangíveis e intangíveis. Acumulamos lixo tóxico, que vai retroalimentar o desgaste da natureza e minar a saúde dos seres humanos. Com seu lixo o homem conseguiu poluir os mares, a terra, o ar e até a estratosfera. Nosso modelo de produção e consumo não se sustenta. É cruel e equivocado e, a continuar, não nos levará a nenhum outro lugar senão ao fundo do poço. Dentro desse modelo doente está a questão da gestão dos alimentos, que ainda não é tão propagada e entendida quanto deveria. O que está acontecendo com a produção dos alimentos no mundo? Existem alimentos para todos? O que dizer do acesso aos mesmos? Como a produção de alimentos afeta o meio ambiente? Qual o impacto dos alimentos transgênicos e/ou inorgânicos dentro do corpo humano? Há desperdício
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de alimentos? Todas são questões que não querem calar. Hoje, no Brasil, 72 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar, apesar de o país ser o quarto produtor mundial de alimentos e o primeiro exportador. Mesmo com tanta gente com dificuldade de acesso a comida, todos os dias são jogados fora mais de 34 milhões de quilos de alimentos, o que daria para abastecer uma parte significativa dessa população, algo em torno de 19 milhões de pessoas. Dez anos atrás, foi fundada em São Paulo a ONG Banco de Alimentos. Essa organização está interessada em alertar a sociedade sobre seus equívocos, além de ter por objetivo direto minimizar a fome, a subnutrição e a desnutrição através do combate ao desperdício de alimentos e da educação. A ONG trabalha de três formas distintas e interligadas. Na primeira forma, através da colheita urbana arrecada sobras de comercialização, ou seja, aquilo que não foi vendido e, portanto, teria o lixo como destino, encaminha-as para entidades cadastradas, que en-
tão preparam e servem esses alimentos a seus assistidos, seguindo normas eficientes de preparo e consumo. Desnecessário dizer que os alimentos recolhidos são excelentes para a ingestão humana, possuindo toda a sua capacidade nutricional preservada. A ONG resgata 44 toneladas de alimentos por mês, alimentando 22.900 pessoas por dia com três refeições básicas: almoço, café e janta. A segunda forma de trabalho consiste em ações profiláticas, voltadas às comunidades carentes assistidas pelo programa. Através de workshops, palestras, oficinas e técnicas de higiene, manipulação correta dos alimentos, assim como aproveitamento integral dos mesmos, ensina-se o valor nutricional dos alimentos. Promovem-se oficinas lúdicas para que crianças viciadas numa dieta pobre, sem verduras, frutas e legumes, mudem seus hábitos alimentares. Também se ensina às mães a importância do aleitamento materno e do desmame correto. O resultado é uma população atendida muito mais saudável, que passa a usar menos o sistema de saúde pública. A terceira forma de trabalho é a educação em sala de aula, que tem como finalidade um novo olhar sobre o modelo sociopolítico, ambiental e de desenvolvimento adotado, apontando suas deficiências e mostrando as saídas que devem ser assumidas para formar um novo modelo – autossustentado e de respeito humano. A ONG quer ressaltar a responsabilidade de cada um na formação do mundo à nossa volta. Na primeira e segunda formas de trabalho, ameniza-se o problema da fome. Mas se a consciência e a cultura em que vivemos não se modificarem, o problema apenas será amenizado, sem assistir a seu fim. Com a terceira forma, instala-se um círculo virtuoso, já que mais e mais cidadãos estarão contribuindo, através de suas ações participativas e conscientes, não só para atenuar o problema da fome, mas para erradicar suas causas. Das muitas fomes, para ser mais exato. A autora é economista e presidente da ONG Banco de Alimentos NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
Fotos: Cleiton Thiele/GFS
NATAL LUZ: Um dos maiores eventos de decoração natalina do Brasil é feito de garrafas pet recicladas
O Natal Pet Fabiane Michaelsen
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NATAL LUZ DE GRAMADO É UM dos maiores eventos natalinos do sul do país. Há muita luz, decoração e shows. Mas esse evento é mais do que uma atração turística. Ele se transformou em consciência ecológica. No ano de 2002, os organizadores do evento passaram a procurar uma nova decoração, aliada à preservação do meio ambiente. Então a artesã Eloni Maria Scariot Thiele, que sempre esteve envolvida com os eventos da cidade, descobriu que as garrafas pet (garrafas de plástico de refrigerante) poderiam ser uma boa solução. Através de cursos, ela desenvolveu várias técnicas de utilização das garrafas para manufaturar os enfeites natalinos, nascendo uma nova decoração para o Natal Luz de Gramado. Já no ano seguinte, em 2003, foi criado um ateliê, coordenado por Eloni, no qual as garrafas se transformariam em decoração. As primeiras peças produzidas eram pinguins e bolas de Natal gigantes, que decoravam as árvores na Praça Major Nicoletti e na Praça das Comunicações. WWW.NOVOLHAR.COM.BR
Todo esse processo tem o envolvimento da comunidade. Durante todo o ano, as escolas recolhem as garrafas que serão utilizadas no Natal. Para incentivar ainda mais o recolhimento, as escolas participam da campanha ganhando prêmios, como bicicletas ou computadores. Os moradores também entram nessa campanha através da conscientização. Em vez de jogar as garrafas no lixo, guardam-nas e repassam todas à Comissão do Natal Luz. Segundo Eloni, desde 2003 já devem ter sido utili-
zadas mais de um milhão de garrafas pet na decoração. Somente no ano de 2008 foram recolhidas mais de 100 mil garrafas pela comunidade. “Essa participação desperta a conscientização das pessoas, e Gramado torna-se cada vez mais preservadora do meio ambiente. Pois o plástico que levaria anos para se desmanchar está sendo reutilizado de uma forma correta e deixando a cidade cada vez mais bonita”, disse Eloni. O ateliê começa a funcionar nos meses de junho e julho, quando Eloni forma uma equipe de cerca de 20 pessoas, às quais passa seu conhecimento e as técnicas de utilização das garrafas pet. Assim inicia a “fábrica mágica”. A artesã lembra que o número de garrafas utilizadas é alto, mas exemplifica dizendo que, para fazer uma flor, são necessárias oito garrafas pet. Todo ano, a comissão organizadora apresenta novas idéias de decoração. O grupo também participa das criações. As peças utilizadas a cada ano são guardadas e reutilizadas no ano seguinte, ganhando novo formato e novas cores. Por isso, em cada edição do Natal Luz é possível conferir novidades nas ruas da cidade, que são feitas pela própria comunidade. Eloni destaca ainda que a utilização das garrafas pet, além de ter um custo baixo de utilização e manutenção, atinge seu principal objetivo, que é reduzir a quantidade de lixo na cidade. “O lixo torna-se um luxo e deixa a cidade linda para o Natal e com a consciência tranquila de que cada um fez sua parte pelo meio ambiente.” A autora é jornalista em Canela (RS)
O processo de produção e Eloni com suas flores
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Problema globalizado Clovis Horst Lindner
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AIS QUE UM SIMPLES PROBLEMA
doméstico ou industrial, o lixo é o maior desvio comportamental da humanidade. A maioria não se preocupa mais com ele assim que o caminhão de coleta desaparece na esquina. Mesmo separado em orgânico, reciclável, descartável e tóxico, o lixo continua sendo um dos mais graves problemas urbanos dos nossos dias e um dos de mais difícil solução. E esse é um drama planetário, embora nos países industrializados aparentemente ele não seja tão visível. Muitas vezes, o
lixo é simplesmente varrido para debaixo do tapete, pela destinação para bem longe da vista, em alguns casos até mesmo para outros países, como, por exemplo, o das montanhas de lixo tecnológico transferidas para a África, com a desculpa de auxiliar no
O que você pode fazer A descoberta da Sopa de Lixo apenas revela o que um dia tinha que acontecer: o lixo que jogamos fora tão displicentemente todos os dias apareceu. Aí está ele, boiando no oceano, como um imenso continente de plástico. Enquanto procurarmos os culpados nos outros, nada vai mudar. Dentro do tema da IECLB, a reconciliação também tem a ver com nossa mudança de atitude em relação à natureza, a criação divina. Para mudar sua Há um continente de lixo atitude: boiando no Oceano Pacífico, quase do tamanho1. Separe o lixo dentro de sua casa. Não jogue tudo do Brasil. no mesmo saco, que vai para o mesmo aterro sanitário.
Separe os recicláveis e encaminhe-os corretamente para aproveitamento. Separe o material orgânico para a horta ou o jardim. Cuidado especial com baterias, óleos, tintas e outros produtos químicos. 2. Não atire lixo pela janela. Tenha um saquinho de lixo no seu carro. Coloque tudo lá dentro. Você nem imagina o que acontece com uma garrafinha de água mine-
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desenvolvimento do terceiro mundo com transferência de tecnologia. Com relação ao destino final do lixo, a maioria comporta-se como se sua atitude pessoal nada pudesse mudar. Segundo uma pesquisa feita em São Paulo há alguns anos, somente uma em cada sete pessoas está convencida de que sua atitude pessoal no trato do lixo pode mudar a realidade da cidade, por exemplo a questão das cheias causadas por entupimento dos esgotos. Os outros seis preocupam-se com o destino do lixo, mas não acham que sua postura pessoal possa mudar algo, e são displicentes na hora de colocar o lixo no lixo, o que tem consequências graves e planetárias, como se constatou em 2008. O oceanógrafo americano Charles Moore descobriu, por acaso, durante uma competição de barcos, um gigantesco depósito de lixo em pleno mar. O depósito está a cerca de 900 quilômetros da costa da Califórnia, no Oceano Pacífico. Segundo ele, a mancha estende-se do Havaí ao Japão, com mais de 100 milhões de toneladas de detritos, e foi apelidada de “sopa plástica” pelos especialistas. Esse mar de entulhos, dividido em duas Infográfico da revista ISTOÉ
ral atirada pela janela do carro: ela é levada pela água da chuva para dentro do bueiro, de lá para o rio e do rio para o mar... Quem sabe, você também já contribuiu para aumentar a sopa de lixo no Pacífico (ou talvez logo vão achar uma ilha semelhante boiando no lado sul do planeta...). 3. Cuide das pequenas coisas do dia-a-dia. Não desperdice água. Não deixe o carro desregulado ou sem revisão. Use mais a bicicleta ou ande de coletivo. Não abuse dos produtos de limpeza. Use uma sacola de pano para suas compras e deixe as de plástico no supermercado. Não deixe a sujeira para os outros limparem. 4. Não seja um alienado. Informe-se sobre o que fazer, como comportar-se de forma sustentável e responsável diante da criação. Faça disso um testemunho de fé, um modo de vida. A cada atitude sua, pense na natureza e no futuro do planeta.
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monstruosas manchas de lixo, tem duas vezes o tamanho do território do Brasil e chega a ter mais de 10 metros de profundidade. Cerca de um quinto foi jogado de navios ou plataformas marítimas de petróleo e o restante veio de terra firme, sendo composto de garrafas pet, bolas, caiaques, sacolas de plástico e restos de naufrágios. No mar, esse lixo flutuante acabou agrupado pela força das correntes marítimas numa área conhecida como “giro pacífico norte”, um local onde o oceano é calmo devido aos poucos ventos e ao sistema da pressão extremamente alto, segurando a sujeira. Todo esse lixo demora cerca de 300 anos para se Montanha de lixo decompor. Esses boiando na orla do detritos foram se rio Guaíba, em acumulando porque Porto Alegre, depois a fiscalização e a aplide um dia de chuva. Mais material para a cação de multas é tesopa de lixo... órica e extremamente ineficaz. Para muito além do controle de todo esse descaso com a aplicação de multas, o que precisa mudar urgentemente é a consciência de todos. No box da página ao lado, algumas dicas para minimizar o impacto causado pelo lixo no ambiente. Divulgação
O autor é teólogo e editor da Novolhar em Blumenau (SC)
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Lixo que vira arte A maior obra de arte começa em nossa mente, não nos conformando com este século consumista e preconceituoso. Olhemos com outros olhos – os olhos de um coração sensibilizado. Catia Eveline Friedrich
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ARTE DE TRANSFORMAR LIXO COME-
çou com uma brincadeira com os filhos. Continuei brincando e, levada pela intuição, idéias fluíam a cada novo desafio. Porém sempre existiu o velho preconceito de achar que era uma fase, uma moda ou um hobby que não vingaria. Quando falamos em preconceito, lembramos de raça, religião, classe social. Mas diariamente praticamos uma sutil diferenciação e nela não vemos mal algum. Porém, quando ouvimos falar
que certa pessoa se destacou ou irá dedicar-se a determinada atividade, logo exclamamos: “Jamais imaginei fulano nesse ramo” ou “Nunca pensei que ele chegaria tão longe”. Duvidar da capacidade de superação de uma pessoa ou da habilidade de um professor em conseguir tirar o melhor de alguém dito incapaz é pura discriminação. Julgar pelas aparências e tirar conclusões precipitadas é comum. Fazemos isso também em relação a nós mesmos. Quando
temos um sonho ou um chamado de Deus, duvidamos estar aptos e nos autodiscriminamos, sem ponderar possibilidades. Então dizemos: “Eu não consigo” ou “Nada a ver comigo”. Esquecemos que, para o Criador – o grande autor da vida, mestre na arte de transformar o velho em novo, o barro em vaso, lapidar pedras brutas e transformá-las em pedras preciosas – nada é impossível. No auge de campanhas ecológicas, o descaso para com o destino de nosso lixo ainda é grande. Somente separá-lo e encaminhá-lo ao destino certo também é pouco. É preciso mais. Paralelamente a isso, o ser humano acumula um lixo particular, aquele que resulta de suas batalhas pessoais. Após um tempo de lutas, no qual ele se sente usado, esvaziado, amassado e quebrado, tudo vira entulho a seus próprios olhos e aos do mundo. Ele está convencido de que não serve para mais nada. Então ele questiona: “O que de útil e belo poderá sair desse bagaço de vida?”. A maior obra de arte começa em nossa mente, não nos conformando com este século consumista e preconceituoso. Olhemos com outros olhos – os olhos de um coração sensibilizado. Essa renovação da mente e de atitude deve começar em nosso lar, na seleção dos resíduos, apoiando projetos, sendo um multiplicador, isto é, passando adiante o que sabemos a respeito do assunto e dando preferência aos produtos reciclados. O que para muitos são apenas três garrafas pet, para o artista são
ARTE: Alguns exemplos do que é possível fazer com determinação e criatividade a partir de lixo reciclável, que para o artista se transforma em inspiração
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A autora é artista plástica autodidata em Canoas (RS)
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flores, estrelas e corações. Para quem vive disso, é o pão de cada dia. Para a terra, é menos agressão. Tudo isso ainda é pouco, mas fará uma boa diferença, marcando o começo de uma mudança. Quanto à arte em si, seja moderna, contemporânea ou outra, usar resíduos recicláveis para dar ênfase ecológica a uma obra é válido, obrigatório, moda. Muitos aproveitam esse momento em que as preocupações com o meio ambiente estão em alta e usam-na para especulação. Devemos agir de maneira coerente, buscando o interesse socioambiental; assim todos sairão no lucro. Que Deus nos capacite e inspire a tomar iniciativas em prol desta terra que, mesmo não sendo nossa casa permanente, foi-nos confiada para dela tirar nosso sustento e ter abrigo. Vivamos em paz com nossa consciência e em harmonia com essa criação!
AUTORA: Quanto à arte em si, usar resíduos recicláveis para dar ênfase ecológica a uma obra é válido
UNISINOS (FAVOR CONFERIR MEDIDAS ANTES DA IMPRESSÃO!)
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Divulgação
História
PARTICIPAÇÃO HISTÓRICA: O Instituto de Educação Ivoti foi escola normal, seminário de obreiros catequistas e forma professores de ensino médio e superior
Uma escola centenária Derti Jost Gomes
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Á 100 ANOS, NASCIA O SEMINÁRIO
Evangélico Alemão de Formação de Professores da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Sua origem marca a inconformidade com a precária realidade educacional no país e a responsabilidade de oferecer uma educação de qualidade. O Seminário teve seu início em Taquari (RS) em 1909. O objetivo era dar formação docente aos órfãos ali abrigados e a jovens enviados pelas comunidades. Em 1910, o curso foi transferido para a Escola Sinodal de Santa Cruz (RS), emancipando-se da mesma a partir de 1913, quando passou a apresentar um significativo avanço pedagógico. Em 1926, o Seminário foi transferido para São Leopoldo (RS), interrompendo as atividades de formação de professores em 1939 em função da “Política de Nacionalização” promovida pelo Estado Novo. O Seminário retomou a formação de professores na década de 1950. Em 1954, o curso foi reconhecido pela Secretaria de Educação e Cultura do RS com o nome de
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Escola Normal Evangélica. A transferência para Ivoti aconteceu em 1966, onde iniciou gradativamente a implantação e a oferta de outros cursos além da formação de professores. Em 1977, passou a denominar-se Escola Evangélica Ivoti e, a partir do ano 2000, Instituto de Educação Ivoti. Em sua trajetória histórica, a instituição participou de forma ativa da formação de centenas de jovens, que contribuíram de forma significativa para a construção dos caminhos trilhados pelas comunidades teutobrasileiras. É possível afirmar, dessa forma, que essa escola teve um papel decisivo na construção e na permanente transformação da cultura alemã no sul do Brasil. O objetivo do Seminário sempre foi claro: proporcionar aos jovens uma formação na área da educação para assumir posições de liderança quando retornassem para suas comunidades de origem ou funções de liderança frente a novos desafios e, dessa forma, contribuir para alavancar o desenvolvimento cultural, social e político nessas cidades e regiões. Embalada na esteira da transformação que ajudou a desenvolver, a própria insti-
tuição precisou constantemente de autoavaliações e reavaliações e necessitou adaptar-se a novas realidades e desafios. Hoje, o Instituto de Educação Ivoti continua formando professores em nível de ensino médio e, desde 2002, assim como já havia acontecido em 1977 com a fundação e o início de atividades do Instituto de Formação de Professores de Língua Alemã (IFPLA), a proposta de formação de professores ampliou-se para o nível superior, acontecendo a criação do Instituto Superior de Educação Ivoti (ISEI), que oferece cursos de graduação, pós-graduação (especialização) e extensão na área da formação de professores. Além disso, para crescer e manter sua influência na formação de lideranças, a instituição tem buscado constantemente novos caminhos e objetivos, seja abrindo novos cursos ou adaptando seus princípios centenários aos desafios dos novos tempos, que, na atualidade, encontram-se em constante transformação. A autora é professora do Instituto de Educação Ivoti em Ivoti (RS NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
Órgão de tubos é restaurado Em silêncio durante 15 anos, o instrumento foi recuperado e reinaugurado em Blumenau.
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LUMENAU VOLTOU A OUVIR O SOM
majestoso do órgão de tubos da Igreja Luterana do Espírito Santo. O instrumento, silenciado em 1994, levou um ano e meio para ser restaurado. A inauguração do restauro do órgão foi no dia 5 de abril com um culto. O organista austríaco Josef Hofer fez um concerto inaugural. O órgão de tubos voltou a ser ouvido graças ao trabalho incansável do alemão Georg Jann, mestre organeiro que veio usufruir da aposentadoria em
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Blumenau. Jann ofereceu-se para restaurar o órgão sem cobrar nada pelo trabalho; ele trabalhou cerca de 3.200 horas, sem contar o tempo em busca do material necessário, em parte trazido da Alemanha. A obra teve o auxílio do Funcultural, Fundo de Apoio à Cultura do Governo do Estado de Santa Catarina, e da comunidade luterana, que ajudou por meio de doações numa campanha para a arrecadação de fundos. Desde os tempos mais remotos, a música é usada como louvor. E um dos instrumentos mais importantes para a igreja cristã é o órgão, considerado por Mozart como o “rei dos instrumentos”. A Igreja Luterana é conhecida mundialmente como “A igreja da música”, pois os maiores compositores nasceram na Alemanha entre os séculos 17 e 19, a maioria luteranos, e compuseram hinos para a igreja à qual pertenciam. Também foi nessa época que a música sacra luterana começou a se espalhar pelo mundo e chegou até as Américas. O órgão de tubos da comunidade de Blumenau-Centro foi o primeiro construído no Brasil pela firma Guilherme Berner, do Rio de Janeiro. O instrumento foi adquirido pela comunidade em 1930 e a inauguração ocorreu em 1933. Assessoria de comunicação da Paróquia Evangélica Luterana de BlumenauCentro
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Natureza
público. Essas cabanas oferecem produtos e refeições a base de maple a turistas.
Maple Syrup, o xarope de árvore
Coleta tradicional do xarope de bordo
Brunilde Arendt Tornquist
EPARE A FOLHA NA BANDEIRA DO CA-
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nadá. Essa folha é da árvore maple, bordo para nós. Devido à predominância dos bordos no sudeste do Canadá (onde começou a colonização pelos europeus), sua folha tornou-se símbolo do país. Nos Estados Unidos, o bordo também é usado como símbolo pelos estados de New York e Vermont. O maple syrup é o xarope extraído da seiva dessa árvore.
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O xarope de bordo e sua cor característica A folha do bordo está na bandeira do Canadá
Fotos: Divulgação
História – De acordo com a tradição oral nativa americana, o maple syrup já era feito muito antes da chegada dos europeus à América do Norte. Os povos nativos do leste foram os primeiros a descobrir o sinzibuckwud, a palavra algonquina para maple syrup, que significa “extraído da madeira”. O povo indígena Algonquin foi o primeiro a reconhecer a seiva como fonte de energia e nutrição. Eles faziam uma incisão em forma de V no tronco e enxertavam juncos ou pedaços côncavos de cascas de árvores para colher a seiva em baldes feitos de casca de bétulas. A seiva era levemente concentrada colocando pedras quentes dentro do balde ou deixando o balde com a seiva durante a noite em cima do gelo, que se forma com a neve. Eles cozinhavam a seiva de bordo em um caldeirão de barro sobre fogueiras bem simples, protegidos apenas por um telhado feito de ramos de árvores. Essa foi a primeira versão da cabana de açúcar (Cabane à sucre/Sugarhouse). A partir dos anos 1980, as comunidades da província do Quebec começaram a abrir as “Cabane à Sucre” ao
O bordo predomina no sudeste do Canadá
Produção – O xarope de bordo é produzido principalmente no nordeste da América do Norte: em Quebec, no Canadá, e em Vermont, nos Estados Unidos. O Canadá é responsável por mais de 80% da produção do maple syrup, produzindo em torno de 7 milhões de galões por ano. A produção concentra-se em fevereiro, março e abril, dependendo das condições climáticas locais. Noites gélidas e dias mornos são necessários para induzir o fluxo da seiva. Para coletar a seiva, são feitos talhos nos troncos das árvores e enxertados tubos, pelos quais a seiva escorre para dentro de baldes ou recipientes plásticos. Todo ano é preciso fazer um novo buraco. A seiva coletada nos baldes é levada à cabana do açúcar. Se for usado o encanamento plástico, ele é montado de tal forma que a seiva escorra, pela gravidade, diretamente até a cabana. Se isso não é possível, a seiva é coletada em grandes tanques, de onde é bombeada ou levada com caminhões-tanque até a cabana. São necessários aproximadamente 40 litros de seiva para fabricar um litro de xarope. Um bordo adulto produz 40 litros de seiva em 4 a 6 semanas de coleta por estação. Os bordos só são usados para coleta quando tiverem 25cm de diâmetro e no mínimo 40 anos de idade. Se a árvore tiver mais de 45cm de diâmetro, então podem ser feitas duas incisões para coleta, em lados opostos do tronco. No processo de cozimento, a água evapora e o xarope fica cada vez mais denso e doce. Além do xarope, muitas vezes também se produz o açúcar de maple, em blocos prensados, e pirulito de maple. Níveis intermediários de cozimento podem ser usados para obter outros produtos, como creme e manteiga de maple. Uso na culinária – Calculam-se 260 calorias por 100g, é rico em cálcio, ferro, magnésio, potássio e zinco. É a cobertura preferida pelos norte-americanos para panquecas, waffles e torradas. Também é usado em biscoitos, roscas, sorvetes, granolas e para adoçar frutas, principalmente a toranja (grapefruit). A autora é bacharel em Teologia e assistente editorial em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
Memória
lembrado Rolf Droste Á UMA RUA EM PORTO ALEGRE COM o nome de “Pastor Ernesto Schlieper”. Na respectiva lei municipal, de 24.12.1980, consta que se trata de “destacado líder da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB”. O Dr. Schlieper destacou-se como pastor de comunidade e teólogo, mas também por sua bondade e humildade. Foi pastor presidente da IECLB. Ele passava as primeiras horas do dia na sacristia da igreja, lendo, estudando e meditando a palavra de Deus, preparando-se para as tarefas do ministério. Investia tempo nisso. “Estar sozinho com o Deus eterno é a mais fértil solidão”, testemunhou ele certa vez. Não era um homem-show, mas de fundamentos sólidos. Entendia que a palavra de Deus por si só tinha o poder de imbuir corpo e alma e permear o cotidiano da vida. Certa vez, foi convidado a transferir-se para outra comunidade. Respondeu que lá
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Arquivo da EST
Um nome para ser Dr. Ernesto Theophilo Schlieper
não haveria missão diferente a realizar do que naquela em que estava. Entretanto, anos depois revelou sua aguda sensibilidade quando a comunidade do Rio de Janeiro o convidou. O pastor da comunidade e também presidente do Sínodo Evangélico do Brasil Central falecera subitamente. Schlieper retornara do enterro visivelmente comovido com a situação de orfandade da comunidade. Ponderava que sua ida ao Rio poderia fortalecer a unidade entre as comunidades do sul e do Brasil Central. E poderia ser uma contribuição no processo de inserção da comunidade local e da própria IECLB na realidade contextual brasileira. Transferiu-se para o Rio em novembro de 1956. Em 4 de dezembro, falecia o pastor Hermann Dohms, presidente da IECLB e do Sínodo Riograndense, de quem Schlieper era vice-presidente. Desde então, Schlieper exercia no Rio de Janeiro simultaneamente o pastorado e a presidência da IECLB.
No início de 1961, retornou ao sul. Acumulou o cargo de diretor da Escola de Teologia, hoje “Faculdades EST”, que se ressentia da falta de professores e de liderança. Para convencê-lo da seriedade do momento, o demissionário diretor da Escola escreveu-lhe que sua presença na EST seria mais importante do que sua função como presidente da igreja. A partir de então, encontramo-lo em atividade incansável em sala de aula, na reitoria, na mesa diretora da IECLB e em visitações a comunidades. Foi liderança no Brasil e nos organismos ecumênicos mundiais. Somente a partir de 1966 Schlieper pôde dedicar-se em tempo integral à presidência da igreja. Naquele ano, encaminhou a reestruturação da IECLB, efetivada pelo Concílio Extraordinário de São Paulo, em outubro de 1968. Hospitalizado em Porto Alegre, não pôde estar presente. Estava concluído o processo de formação do corpo eclesiástico iniciado na década de 1940. Schlieper faleceu no dia 31 de outubro de 1969. O “servo bom e fiel”, como disse o pastor Karl Gottschald no ato de encomendação, retornava à casa do Pai. Chegara ao fim uma vida muito rica, cheia de doação e bondade. A outorga do título de “Doutor Honoris Causa” pela Universidade de Heidelberg, Alemanha (1955), em nada mudaria sua maneira de ser e de viver. Considerava-se um servo igual aos outros, que fez apenas o que devia fazer (Lucas 17.10). O autor é teólogo, pastor emérito da IECLB em São Leopoldo (RS)
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Rui Bender
Profissões
Sapateira por teimosia Rui Bender
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UMA PROFISSÃO QUE ESTÁ EM
extinção, ela é a única mulher que exerce o ofício de sapateira em sua cidade (São Leopoldo/RS). Rosecler Pacheco, 44, nascida na cidade conhecida como a capital do calçado (Novo Hamburgo), lida com sapatos desde os seus oito anos de idade. Ela iniciou sua profissão no ateliê de sua madrinha. Mais tarde, passou por uma fábrica, da qual foi demitida por liderar uma greve por um salário melhor. A partir daí, “pulou de galho em galho”, trabalhando como caixa de supermercado e até garçonete, terminando, enfim, na sapataria de seu pai. “Aprendi a gostar de ser sapateira por causa do amor a meu pai”, confessa Rosecler. Ele era uma pessoa doente, e ela não quis deixá-lo sozinho em sua sapataria. Havia muito serviço. Então foi trabalhar com ele. Hoje ela trabalha sozinha. Está há 14 anos no mesmo endereço do bairro Fião em São Leopoldo. Mas o tempo trouxe consigo a dificuldade de sobreviver nesse ofício. O pai de Rosecler criou sete filhos
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consertando sapatos. Já ela pensa seriamente em parar. Hoje está difícil viver do conserto de calçados. Rosecler admite que ainda não desistiu “por pura teimosia”, pois já não consegue nem pagar o aluguel da pequena peça que ocupa. Recentemente, ela passou três semanas sem fazer um único conserto. Como não tem outra fonte de renda, resiste de fato por pura obstinação. E também pelo prazer que tem em trabalhar com o calçado e a amizade de seus clientes. Alguns deles já são seus fregueses há duas décadas. E não falta até quem a ajude financeiramente na penúria de serviço e dinheiro. Uma vizinha de frente de sua sapataria até já lhe deu almoço. Mas ela recorda que já houve tempos melhores. Com seu trabalho ela conseguiu formar uma filha no magistério. Hoje, aos 23 anos, a filha é professora do ensino fundamental. Alguns anos atrás, a profissão de sapateiro era muito mais valorizada. Esses profissionais colocavam meias-solas, saltos e faziam pinturas em calçados masculinos e femininos. Essa atividade começou a degringolar quando estouraram as lojinhas de 1,99, lembra Rosecler. Essas oferecem
produtos mais baratos, descartáveis e de baixa qualidade. Quando estragam, não compensa nem consertar. O crediário que as lojas oferecem também facilita para as pessoas comprarem calçados em várias prestações. Hoje, um sapateiro limita-se a colocar um taquinho em algum sapato feminino e costurar bolsas. Colocar um solado é raro. “Só quem tem muito amor por seu calçado manda fazer uma reforma”, observa Rosecler. O custo de um conserto também afugenta a clientela, pois o material ficou caro. Por isso ela acredita que daqui a uns cinco anos a profissão de sapateiro estará realmente extinta. Pensando em seu futuro, Rosecler está investindo agora num curso de informática. Ela lamenta que deixou de ser funcionária pública algum tempo atrás porque não tinha computação. Por isso resolveu brindar a si e sua filha adotiva Ruane, 10, com um curso de informática. “Quero tentar alguma coisa melhor”, confessou. Ela sonha com algum trabalho no qual se possa envolver com gente. O autor é jornalista em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
Teoria de Gaia
Origens terrenais do ser humano Leonardo Boff
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S POVOS ORIGINÁRIOS, COMO OS IN-
dígenas, e mesmo quase todas as culturas mundiais até os últimos quatro a cinco séculos tinham por evidente que a Terra é Mãe e que está gerando vida continuamente. É a Magna Mater dos romanos, a Pacha Mama dos povos andinos e a Nana dos orientais. Essa intuição, nascida da observação e da razão sensível e cordial, foi confirmada cientificamente pela ciência contemporânea. Em primeiro lugar, é o legado que os astronautas nos transmitiram. De suas naves espaciais, muitos testemunharam: não há diferença entre biosfera e Terra, entre Terra e humanidade. Formam uma grande e complexa unidade. Gagarin, o primeiro astronauta, confessou: O universo é muito escuro, mas a Terra é azul e branca e resplandecente. Em segundo lugar, há que valorizar as contribuições de um cientista inglês que trabalha na NASA: James Lovelock. Ele tinha a função de projetar aparelhos que, acoplados às naves espaciais e aos foguetes, pudessem detectar eventuais sinais de
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vida no espaço exterior. Nunca foi detectado nada. Mas quando os aparelhos voltavam-se para a Terra, os ponteiros enlouqueciam de movimentos, pois apontavam que lá na Terra havia vida ou que a própria Terra era impregnada de vida. Esse cientista fez comparações dos elementos existentes nos dois planetas vizinhos, Marte e Vênus, com aqueles presentes na Terra. Ele constatou que na Terra se verificava essa articulação do físico, do químico e do biológico, que permite ao planeta ser benevolente para a vida e que ela própria se comporta como um superorganismo vivo. Assim, por exemplo, James Lovelock verificou que, há milhões de anos, a percentagem de oxigênio necessária para a vida é sempre da ordem de 21%. Se ela descesse a 15%, nós desmaiaríamos; se subisse a 25%, ninguém poderia riscar um fósforo porque o oxigênio incendiaria. O nível de sal do mar, que regula os climas e que permanentemente fornece as condições químicas e ecológicas para a manutenção e reprodução da vida, é de 3,4%. Se ele descesse a 2%, os oceanos seriam como o Mar Morto; não haveria mais vida. Se ele subisse a 6%, transtornaria todos
os climas, impossibilitando as condições de manutenção da vida e de sua diversidade. O nitrogênio, importante para o crescimento de todos os seres vivos, é sempre da ordem de 79%. Se ele subisse a 85%, todos seriam gigantes; se descesse a 65%, todos seriam anões. E assim Lovelock analisou todos os principais elementos físico-químicos necessários à reprodução da vida. Ele concluiu que a própria Terra é viva e os organismos vivos mostram sua vitalidade. Ela produziu os mais diversos seres viventes, e o mais complexo de todos eles é o próprio ser humano. Esse é a própria Terra, que num estágio avançado de sua evolução começou a sentir, a pensar, a amar e a cuidar. O ser humano é, pois, a Terra que sente, que pensa, que ama e que cuida. Por isso homem vem do latim humus, que conservamos também em português (húmus) para designar a terra fértil e boa que utilizamos para revitalizar as plantas. É importante resgatarmos nossas origens terrenais, pois, cuidando de nós mesmos, estamos cuidando da Terra e construindo relações de exploração entre os seres humanos. Estamos devastando também a rede de relações entre todos os seres, sempre ecointerdependentes. Se estamos doentes, é sinal de que a Terra também está doente, e vice-versa. O autor é teólogo, doutor em Teologia e Filosofia, professor e autor de livros em Petrópolis (RJ)
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Oriente Médio
Vozes cristãs na Terra Santa Os cristãos da Terra Santa estão cansados de promessas não-cumpridas e querem paz e justiça para todos no Oriente Médio.
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AZ E JUSTIÇA – ESSAS DUAS PALAVRAS
estão constantemente na boca de líderes de igrejas cristãs do Oriente Médio. O bispo Munib Younan, líder da Igreja Evangélica Luterana na Jordânia e na Terra Santa, acredita que “agora é o momento de implantar justiça”. Assim também pensa o patriarca Fuad Twal, líder do Patriarcado Latino de Jerusalém. “O povo está cansado de promessas sem resultados”, reconhece. “Temos que mudar a realidade – acrescentou. Queremos paz para judeus, muçulmanos e cristãos.”
Rui Bender
Rui Bender
E ainda frisou: “A questão no Oriente Médio não é quem tem razão, mas como se pode conquistar paz e justiça para todos”. O bispo luterano e o patriarca latino contam com a solidariedade do patriarca Theophilos III, líder da Igreja Ortodoxa Grega de Jerusalém, e do reverendo Ibrahim Nairouz, pastor da Igreja Episcopal de Nablus. Os quatro representantes eclesiásticos falaram a seis jornalistas da mídia cristã (um sul-africano, um norte-americano, um italiano, um brasileiro e duas suíças) convidados pelo Conselho
APARTHEID: Israel está construindo um muro de 725 Km para
Rui Bender
ESPERANÇA: Reverendo Ibrahim, da Igreja Episcopal de Nablus, cercado de crianças palestinas
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Mundial de Igrejas (CMI) para conhecer em meados de março a realidade do Oriente Médio e relatar suas experiências em seus países de origem. O patriarca ortodoxo sugere que é importante “romper a polarização que cresce diariamente”. “Vivemos aqui num sistema de apartheid”, emendou o pastor episcopal. Por isso o patriarca entende que as igrejas têm um papel decisivo nesse conflito entre judeus e palestinos. Mas é necessário percorrer “um longo caminho para construir a paz”, admitiu. “Precisamos descobrir um bom caminho para viver em harmonia”, acrescentou o pastor episcopal. Mas entender que o outro também é um ser humano é um grande problema no Oriente Médio, lastimou, por sua vez, o bispo luterano Munib. O bispo ensina que “o papel das igrejas não é chorar sobre o passado, mas olhar para o futuro”. Elas devem colocar um fim ao extremismo, que acirra cada vez os ânimos entre judeus e palestinos. Munib acredita que “se o Estado judeu fizer justiça aos palestinos, os países islâmicos aceitarão Israel mais facilmente”. Primeiramente, ele defende que a política israelense de assentamentos em território palestino deve acabar. Pois, em sua opinião, “os asNOVOLHAR – Maio/Junho 2009
embretar a Cisjordânia
sentamentos são um obstáculo para a paz”. Além disso, também a construção de um muro de 725 quilômetros, com oito metros de altura, para separar Israel da Cisjordânia é um impedimento para a paz. “Construir muros não é uma boa política de relações; precisamos construir pontes”, manifestou o pastor episcopal Ibrahim. O bispo Munib solidariza-se com o sofrimento dos palestinos dizendo que “o fato de que seu povo não consegue sorrir o ofende”. Ele admitiu que chorou com o povo de Gaza ao ver a devastação naquela região após o recente conflito de dezembro e janeiro. “Houve um ‘tsunami militar’ em Gaza”, descreveu. O pastor episcopal reconhece que a maioria dos problemas dos palestinos se deve à ocupação israelense. “Checkpoints (postos de controle) por todo lado fazem-nos sentir como que isolados numa ilha”, comentou. Em sua opinião, a mensagem da ocupação israelense é clara: Saiam. Ele observou que o sionismo usa textos bíblicos para justificar a ocupação da Palestina. Os assentados argumentam que aquela terra lhes foi destinada por Deus. Assim, “o sionismo, que é um movimento político, usa a religião para seus interesses”, lamentou Ibrahim. WWW.NOVOLHAR.COM.BR
Nessa realidade de conflito, os religiosos concordam numa coisa: é preciso investir em educação – em várias formas e níveis. “Temos que educar os políticos para serem justos”, sugeriu o patriarca Fuad. Por sua vez, o bispo Munib propõe mudar o currículo escolar, introduzindo a tolerância religiosa. Em Jerusalém há uma dezena de líderes religiosos, mas um ignora o outro. “Isso provoca confusão no povo”, lastimou o representante luterano. Por isso urge criar uma estratégia para unir forças. Agora em maio, o papa Bento XVI visita a Terra Santa. Munib espera que o pontífice católico “estimule a união cristã na luta pela liberdade”. É importante ser uma voz profética naquela região de conflito, entende. “Queremos devolver a essa terra a sua santidade”, salientou o patriarca Fuad. O pastor Ibrahim arrematou que a Palestina é “uma terra santa em que se deve estimular o espírito cristão”. O autor é jornalista em São Leopoldo (RS) e participou do programa de visitação a Israel e Palestina promovido pelo Conselho Mundial de Igrejas em março de 2009
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Religiões
Hinduísmo: filosofia em busca da paz O
HINDUÍSMO É A MAIS ANTIGA DAS
religiões. Existe há mais de 10 mil anos. Hoje é a crença predominante na Índia. Mais do que uma religião, caracteriza-se como uma tradição cultural, que engloba um modo de viver, uma ordem social, princípios éticos e filosóficos. Não tem um fundador, mas um agrupamento de muitas religiões, seitas e escolas que possuem idéias em comum, tradições diferentes, mas um único e mesmo Deus. A palavra “hinduísmo” é o nome que os muçulmanos deram a um conjunto de crenças, filosofias e adorações realizadas pelo povo que vivia no continente conhecido como “Bharata” ou indiano, às margens do rio Indu. O hinduísmo é uma das primeiras religiões a ter como fundamento a crença na
reencarnação e no carma, bem como na lei de ação e reação – que milhares de anos depois, no século 19, seria adotada pelo espiritismo. Para os hindus, tudo reencarna. Não somente pessoas, mas também animais. Entre os principais costumes dessa filosofia estão a adoração à Deidade (conjunto de forças que materializam a divindade), o vegetarianismo e a adoção de um tipo de vida desapegada do dinheiro e de bens materiais. A conduta de quem segue o hinduísmo é regida por um conjunto de leis chamadas Sastras. A base dos princípios que norteia os demais é o Ahimsa. Ficou popularmente conhecido como “não-violência”, devido a Mahatma Gandhi. O nome do líder religioso tornou-se sinônimo de firme retidão moral, heróica fidelidade à verdade e
Meditação coletiva acontece anualmente em Rikhia, na Índia
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Fotos: Claudia Ruschel Lima
Carine Fernandes
A meditação é uma prática frequente de quem segue a filosofia
perfeita justiça, tanto para a vida pública como privada. Sua mensagem de paz para o mundo ficou cristalizada na cultura hinduísta através do Ahimsa. Em consequência, a Índia tem hoje um dos menores índices de criminalidade do mundo. O presidente do Instituto Gita Brasil, Swami Krishnapriyananda Saraswati, explica que Ahimsa diz respeito a um comportamento que visa causar o menor sofrimento possível. “No mundo material, estamos sujeitos a três dores ou sofrimentos inevitáveis, ou Dukha-traya, causados por outras criaturas vivas e seres humanos, pela natureza, e o sofrimento causado pelo próprio corpo. Por isso a conduta do Ahimsa é uma forma de não aumentar ainda mais o que já é inevitável”, afirma. Ele destaca ainda que não se pode pensar NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
esse princípio somente em níveis corporais e materiais. É preciso internalizá-lo. “Em qualquer caso, jamais poderemos desenvolver-nos espiritualmente se não tivermos sólidos pensamentos no bem e estivermos sob a influência do reto agir”, acrescenta. O Ahimsa é também o princípio fundamental da ioga, prática milenar surgida na Índia, que influenciou muito a cultura hinduísta, chamada também de ciência da autorrealização. Para o indiano Nihar Sarkar, professor de ioga em Porto Alegre, a ioga propicia a paz interior no praticante, que consequentemente a transporta para todos ao seu redor. “Não podemos pregar a paz para os outros sem sentir a paz dentro de nós”, salienta. Através dessa prática é possível conhecer a si mesmo, por que viemos e para onde vamos, e a partir daí conquistar autorrealização e felicidade. Por ter a característica de filosofia e não apenas religião, o hinduísmo está aberto a praticantes de outras religiões. Defende que haja a troca de ideias entre todos os simpatizantes e adeptos da imensa variedade de credos, cultos, adorações e práticas hinduístas e outras denominações, sem um cunho institucional corporativista, mas em respeito à forma e à livre manifestação religiosa de cada um. A autora é jornalista em Porto Alegre (RS)
hinduísta
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Conto
Hans Kristian Pedersen
Turismo
No cami dos seri Sergio Adeodato
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ASSASSINATO DO SERINGUEIRO
Chocolate quente com laranja... um brinde ao coração Cris da Silva
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S MÃOS, IMÓVEIS SOBRE O TECLA-
do. Os ombros, caídos na inércia, sob o peso das perguntas sem resposta. Os olhos, sem fixar, fixos na tela do computador. A mente, estagnada pela perplexibilidade. O coração, em busca de um atalho. Não vi o tempo passar. Nem sei se ele passou... De corrosiva passara a amável, afável, adorável... E agora ali estava ela, fiel ao adjetivo que a identificara, mais como ironia de uma característica do que alusão a um defeito. Corrosiva na ausência, com uma magnitude que chega a corroer a própria dor, transformá-la em nada, deixando apenas o vazio em seu lugar. Liguei. Não atendeu. Liguei de novo. Alguém atendeu, mas... não estava. Voltei a ligar. Alguém atendeu. Estava, mas... dormindo. Celular? Só dava caixa postal. E-mail? Mandei vários. Sei que os leu, mas só pude ler como resposta alguns sarcásticos pontos de interrogação. Pior do que deparar com duras verdades é a cruel incerteza da própria verdade. Restava-me esperar que o conciliador tempo me trouxesse respostas ou me fizesse esquecer de esperar por elas. Acalmei o coração, na confortante convicção de que aquilo que não pode ser pior só tende a melhorar e devolvi à mente o andamento que traz clareza aos fatos, mesmo que para descobrir o quão obscuros são. Recuperei a mobilidade das 36
mãos, a percepção no olhar e ergui os ombros. Achara o atalho. Dirigi-me à cozinha, enquanto a alma sorria para a vida, de certa forma por ser assim, oscilante entre altos e baixos, nos quais encontramos nosso próprio equilíbrio. Levei ao fogo brando, duas xícaras de leite, ¾ de xícara de chocolate em pó (amargo), uma colher (de café) de canela em pó e a casca de meia laranja (tirada sem ferir a laranja, para que o leite não coalhe). Mexi pacientemente até que engrossasse. Coloquei em uma caneca de porcelana branca, contemplei a névoa de calor que dela emergia e inspirei o aroma que inspira o paladar. Faço dessa bebida um brinde a você, minha amada amiga. Um brinde em que a sombra do desconhecido perdeu seu tom ameaçador e se veste com as cores da experiência, quando aprendemos que a decepção só floresce onde plantamos expectativas. Um brinde ao inabalável direito que te concedo de permanecer aconchegada nesse terno sentimento que me une a você. Um brinde à total ausência de qualquer obrigação de reciprocidade. Um brinde à arte de saber dar sem esperar receber ou de saber receber, mesmo que não se possa dar. Manifeste-se quando souber, quando puder ou quando quiser.Você será sempre bem-vinda! Fonte: www.sensibilidadeesabor.com.br
Chico Mendes em 22 de dezembro de 1988, no Acre, marcou para sempre a história da ocupação da Amazônia. Extrativistas lutavam contra fazendeiros que queriam tomar posse das terras e derrubar a mata para criar gado. E o tiro calibre 12 que calou o líder maior desse movimento, disparado por pistoleiro em tocaia, ecoou pelo mundo. Chamou a atenção para os problemas da floresta e motivou novos modelos de exploração da natureza. Hoje, os seringais acreanos buscam alternativas econômicas e abrem-se ao turismo. Integram novos roteiros com estruturas que aliam aventura e requinte para receber visitantes qualificados, especialmente estrangeiros, interessados não exatamente em ver índios, animais ferozes ou plantas exóticas. Mas para conhecer o legado de Chico Mendes, símbolo mundial da luta pela preservação da Amazônia, e entender de perto como conviver com a floresta amazônica e explorá-la sem causar danos ecológicos. O centro desse cenário é o município de Xapuri, onde morreu o seringueiro. A cidade, berço do movimento ambientalista em defesa da floresta amazônica, localizase a 188 km da capital acreana, Rio Branco. Ao longo do caminho, a bem-conservada BR 317, há surpresas: os misteriosos geoglifos, formas geométricas gigantescas escavadas em baixo-relevo por povos primitivos. Essas estruturas têm entre 50 e 350 metros de diâmetro e são muito antigas: têm entre 800 e 2.500 anos de idade. Ameaçados pelo avanço da cana-deaçúcar, esses monumentos geológicos são NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
Sergio Adeodado/Host
nho ngais
hoje atrações turísticas, parada obrigatória na viagem para Xapuri. Podem também ser avistados em sobrevoos panorâmicos de monomotor, oferecidos por agências da região. Cerca de 50 km adiante na estrada, o portal da cidade indica: “Xapuri, terra de Chico Mendes”. No acesso, observam-se marcos de uma atividade produtiva herdada do antigo movimento dos seringueiros. Entre os exemplos estão uma imponente fábrica de preservativos, que usa o látex extraído da floresta pelos seringuei-
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ros, uma indústria de beneficiamento de castanhas e um pólo que abastece redes de lojas nacionais com móveis e objetos de madeira ecologicamente corretos. No centro da cidade, localiza-se a modesta casa de madeira onde viveu e morreu o seringueiro assassinado. Próximo dali, a Fundação Chico Mendes guarda a memória do seringueiro e de como seus ideais ganharam força e tiveram continuidade após sua morte. Somado a isso, o Museu de Xapuri, instalado num casarão histórico reformado, retrata a história da borracha e seus ciclos de apogeu e decadência desde o final do século 19. Para conhecer essa realidade na prática, uma estrada de terra de 33 km em bom estado de conservação, partindo de Xapuri, leva ao Seringal Cachoeira, sede do Projeto Agroextrativista Chico Mendes. Uma charmosa pousada com chalés acolhe forasteiros que desejam ter uma experiência turística diferente. Nas boas-vindas, são recepcionados por familiares de Chico Mendes, que vivem naquele seringal. No Caminho do Seringueiro, com duração de três horas, o passeio inclui a extração de látex e a degustação de café com tapioca e pão de milho na casa de uma família da comunidade. Outra opção é a Trilha do Centro: durante uma hora de caminhada, o guia mostra como se faz a coleta de castanha no alto das palmeiras e aponta a diversidade de plantas medicinais. A visita ao Seringal Cachoeira é recomendada no período de março a novembro, quando as chuvas amenizam. Nas andanças pela floresta, a ideia do roteiro é vivenciar o dia-a-dia de um típico seringal da primeira metade do século 20, com destaque para a exploração econômica que não agride a natureza. “Os turistas ajudam a divulgar e a valorizar nosso trabalho. A gente fica mais orgulhoso e dono de si”, afirma Sebastião Teixeira Mendes, o Bastião, primo de Chico Mendes. A experiência de lidar com os perigos entre as seringueiras é hoje aplicada na tarefa de guiar os visitantes na mata, tornando realidade o sonho do antigo líder. Fonte: Revista Host – Hospitalidade & Turismo Sustentável - Edição 29 – www.revistahost.com.br
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Fotos: Arquivo/Casa de Passagem
Iniciativas de paz
A Casa de Passagem firma-se como um agente político da sociedade civil na defesa de crianças e adolescentes
Passagem para a vida Protagonismo social e político para a promoção da qualidade de vida de crianças, adolescentes, jovens e famílias em situação de vulnerabilidade social. 38
Andréa Fernandes
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INTE ANOS PASSARAM DESDE QUE A
Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) recebeu um pequeno projeto que tinha como objetivo defender os direitos individuais e sociais das crianças e adolescentes, vítimas de violência ou em situação de risco, numa ação conjunta que envolvesse o público-alvo, sua família e a comunidade e pressionasse o poder público para cumprir seu dever. A proposta de apoio vinha de uma pequena instituição pernambucana que nascera do desejo de atender meninas, adolescentes e suas famílias que viviam nas ruas. NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
Hoje, após duas décadas de trabalho, a Casa de Passagem comemora resultados e firma-se como um agente político da sociedade civil na defesa dos direitos de seu público prioritário: crianças, adolescentes, jovens em situação de vulnerabilidade social. Para isso, a instituição fez articulações políticas com organizações governamentais e não-governamentais e teve um trabalho intenso em rede social contra o trabalho infantil, o tráfico de pessoas, o abuso e a exploração sexual. A entidade realiza um trabalho integral com o indivíduo nas áreas da saúde física e mental, promove ações sociopedagógicas e culturais, dá suporte aos grupos de adolescentes, jovens, famílias e mulheres líderes comunitárias, oferece profissionalização a adolescentes e promove ações de advocacy e lobby (iniciativas que subsidiam com informações e visibilidade e exercem pressão política direta sobre instâncias ou pessoas com poder de decisão). Cada uma dessas linhas de ação atende a especificidade de três programas básicos, que atuam de forma integrada: Passagem para a Vida, Comunidade e Cidadania e Iniciação ao Trabalho. O primeiro programa – Passagem para a Vida – tem como objetivo promover os direitos de cidadania de crianças e adolescentes, buscando como resultado a reestruturação da identidade, a inserção na família, na escola e na comunidade. O pro-
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A Casa de Passagem realiza um trabalho integral com o indivíduo nas áreas da saúde física e mental, promove ações sociopedagógicas e culturais, dá suporte aos grupos de adolescentes, jovens, famílias e mulheres líderes comunitárias, oferece profissionalização a adolescentes e promove ações de advocacy e lobby.
grama atende crianças e adolescentes de 7 a 17 anos, do sexo feminino (como Fabíola, de 10 anos), provenientes da comunidade de Santo Amaro, conhecida como uma das mais violentas do Recife. Fabíola chegou à instituição apresentando agressividade e dificuldade de relacionar-se com as outras crianças. Sua mãe, que era constantemente espancada pelo companheiro, um usuário de drogas, foi atendida em terapia individual e acabou denunciando o companheiro. Desde então, passou a tratar a filha com mais carinho e paciência, o que provocou uma mudança de comportamento em Fabíola, que passou a criar vínculos afetivos com as educadoras e participar das atividades oferecidas no programa.
O segundo programa – Comunidade e Cidadania – tem como público-alvo adolescentes e jovens de 13 a 24 anos, de ambos os sexos. Seu objetivo é promover a ampliação do espaço de participação cidadã de adolescentes, famílias e mulheres líderes comunitárias. Já o programa Iniciação ao Trabalho atende adolescentes e jovens de ambos os sexos, com idade entre 15 e 24 anos, oriundos dos programas: Passagem para a Vida e Comunidade e Cidadania. Em todos os grupos da entidade trabalham-se técnicas terapêuticas, tais como escuta de apoio, atendimento terapêutico individual, grupo operativo, terapia comunitária e terapia familiar sistêmica. “A Casa de Passagem foi muito importante na minha vida, pois conheci a instituição em um período em que estava muito desestimulada com os estudos por conta de problemas familiares. Cheguei a parar de frequentar a escola”, conta Danielle Queiroz, 19 anos, que integrou o programa Comunidade e Cidadania em 2006. Danielle foi inserida no programa Iniciação ao Trabalho e hoje tem segundo grau completo e está fazendo o pré-vestibular. “Fiz uma prova na Faculdade Santa Helena só para avaliar meus conhecimentos. Passei e ainda fiquei entre os 120 primeiros colocados”, finaliza. A autora é jornalista e assessora de comunicação da CESE em Salvador (BA)
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Espiritualidade
Fome de pão e de beijos O que fazer com quem vende beijos-de-moça e seus beijos por um prato de feijão com arroz? Com quem tanto tem e com quem precisa de um tanto do outro? Com quem não sente nada no coração ao jogar comida no lixo?
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AS ESQUINAS DE BELÉM DO PARÁ,
cidade cujo nome significa “casa do pão”, as crianças e adolescentes vendem um biscoitinho chamado “beijo-de-moça”. Ele é feito de água, açúcar e goma de tapioca (polvilho doce), levando uma pitada de sal e assado em fornos de carvão, na maioria feito por mulheres, provavelmente moças já mães. Será que as crianças recebem um beijo antes de sair de casa para fazer a venda, como muitas delas recebem de suas mães e seus pais ao ser deixadas na escola? Certo domingo de abril, no final de um culto em nossa paróquia, três crianças com as mãos cheias de pacotes de beijos-de-moça estavam à porta, observando com curiosidade nossa animação com o canto final e a bênção. Então se aproximaram e ofereceram seus produtos. Ninguém comprou porque não é possível alimentar o trabalho infantil doméstico. Algumas pessoas também 40
não sabiam o que fazer e o que dizer quando as crianças chegaram. Os discursos articulados ficam mudos quando a problemática invade nossa intimidade. Os dois meninos e a menina sentaram conosco, comeram bolo e tomaram suco de cupuaçu, largando seus saquinhos sobre a mesa, brincando um pouco com as crianças. Uma hora apenas de dignidade recuperada, quando sentaram, comeram e brincaram. Segurança alimentar é um grande desafio para as comunidades luteranas da Região Missionária Luterana Nordeste e Belém. Crianças partilham dois peixes e cinco pães, como no relato bíblico de João 6.1-15, um paralelo de Mateus 14.13-21. Em Mateus, o diálogo sobre como alimentar a multidão coloca Jesus e os discípulos numa perspectiva mercadológica, onde tudo tem um valor ausente de sentimentos. Os discípulos não queriam nem o perfume que foi derramado na
Arquivo Novolhar
Cibele Kuss
CONFRONTO: Os discursos articulados ficam mudos quando
cabeça de Jesus, porque vendê-lo era uma forma de desqualificar o gesto da mulher. O perfume não tem sentido porque pode ser vendido e dado aos pobres, e esses podem sair e comprar sua própria comida. Enfim, “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Na luta contra a fome no Brasil, as crianças recolhem a lenha, fazem o carvão, trabalham em olarias, canaviais e também NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
a problemática invade nossa intimidade
vendem os beijos-de-moça. Beijos vendidos, infância perdida. Até quando terão fôlego numa lida assim? Dois peixes e cinco pães é muito pouco para garantir a subsistência e uma alimentação. Jesus faz um grande alerta sobre o pouco que temos e o muito furtado pelo capital. Crianças ribeirinhas comem somente peixe com açaí e vendem seus beijos e seus corpos por poucos reais nas longínquas cidades de Marajó, WWW.NOVOLHAR.COM.BR
arquipélago com o menor índice de desenvolvimento humano no Brasil. Jesus convida-nos a sentar na relva, sobre a terra, e a partilhar com ele uma refeição de pão e peixe, a partilhar a condição humana coletiva de fome, a pensar em alternativas. Sentar no chão e aceitar a oferta da criança faz parte de uma liturgia que ensina a nada desperdiçar, a potencializar as iniciativas de alimento existentes, ou seja, a oferta do pão e do peixe, a buscar soluções práticas e políticas para problemas existenciais e classistas daquela e de nossa sociedade. O que fazer com quem vende beijosde-moça e seus beijos por um prato de feijão com arroz? Com quem tanto tem e com quem precisa de um tanto do outro? Com quem não sente nada no coração ao jogar comida no lixo? O cuidado com a criança faminta e com o alimento a ser repartido e o que sobrou nos cestos revela o compromisso não somente pela justa distribuição, pela prática da partilha. Vai muito além, indicando que a palavra de Deus é vida em toda a criação. Cuidar do resto é proteger a criação do lixo, da contaminação, é garantir sustentabilidade para gerações futuras de todos os seres vivos, é valorizar aquilo que comemos. Jesus convida para sentar com calma, agradecer pelo alimento sagrado e apreciar o gosto, comendo somente o necessário. A liturgia de Jesus – em suas mãos, os peixes e os pães – faz com que sentemos na terra, olhando profundamente para toda a criação, mirando os olhos das crianças, das mulheres, dos homens que fazem dos restos o milagre da vida. Façamos um pacto com Deus e com toda a criação, definindo em comunhão o que podemos produzir, como e quanto vamos produzir para o bemestar de tudo e de todos, da criança que precisa de pão e de carinho, do beijo da mãe e do pai, da terra que nos oferece o trigo e da água que nos oferta o peixe. Assim, moças fazem beijos-de-moça para as crianças comerem no jardim de suas casas, ruas e nossas comunidades, sentadas sobre a relva, com Jesus, que as acolhe e dialoga sobre a vida como um bem sagrado.
ABIEE
A autora é teóloga e obreira pastora da IECLB em Belém (PA)
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Penúltima palavra
Nossas duas vidas Sinto que, para preservar-nos, estamos fazendo do “deixa pra lá” um programa de vida. É mais fácil ignorar.
Pintura de Carlos Ramon
Asclepíades Pommê
S
EGURAMENTE É DIFÍCIL HARMONIZAR
nossa vida, a do dia-a-dia, essa vida qualificada de mundana, com nossa vida de fé. Eu, pelo menos, estou sempre na corda bamba. Na família, nos negócios, nas relações de trabalho, na simples compra de um pãozinho na padaria da esquina e na encrenca ou não com o padeiro pelo pão mal-assado e inflado de bromato, nossa vida sofre ora abalos, ora alegrias. Basta submetê-la a um mínimo critério de ética, e a gente surpreende-se com o que faz e com o que fazem conosco. Vivemos duas vidas numa só. A cada dia que passa, somos mais tentados a viver somente a nossa “vida do mundo”. Queremos resguardar nossas casas e nossos queridos da parte dura da realidade em que vivemos. É compreensível, mas será convenien42
te? Sinto que, para preservar-nos, estamos fazendo do “deixa pra lá” um programa de vida. É mais fácil ignorar. “Não é comigo; por que vou me preocupar?” Pensar e discutir provocam desassossego. Trazem para o foco de luz a outra vida: a da fé. Então elas se fundem, e com uma vida só a gente passa a caminhar, a ouvir, a falar, a sentir de forma diferente. Deixamos de aceitar como inevitáveis e corriqueiras, quando não como vontade de Deus, coisas que nascem e crescem dentro do tecido da sociedade. Um novo olhar desperta da acomodação. A dose diária de desgraças que o noticiário da TV joga em nossas salas deixa de ser um amontoado de notícias. Agora são fatos, falam de coisas que acontecem e que atingem pessoas de carne e osso como nós, que sentem como nós, que riem
e choram. Criaturas do mesmo Deus, que vivem no mesmo mundo que começa ali na porta da minha casa. A acomodação não deu bons resultados. Acomodamo-nos com a violência nos grandes centros – fazer o quê? –, e hoje ela está chegando com uma força inédita nas pequenas cidades. Quando a qualidade do ensino público foi caindo, o que fizemos? Mudamos nossos filhos das escolas públicas e mandamos para os estabelecimentos particulares. O transporte coletivo não era bom, mas tínhamos os nossos carros. Hoje paramos todos no mesmo engarrafamento, submergimos nas mesmas enchentes. A política? Essa se desprendeu de nosso cotidiano. Assim como se vivêssemos num planeta e os políticos em outro. No entanto, não podemos viver sem ela. A população permanece na Terra, à procura do trabalho que garante o pão de cada dia, à espera de assistência médica decente, enfim, de uma vida digna. Infelizmente, e salvo raras exceções, os políticos passam a sensação de que estão em outra órbita. Isso explica, quando não um profundo desencanto, o desinteresse e a apatia da população em relação a eles. Não podemos esquecer, contudo, que foram eleitos e reeleitos por nosso simples ato de digitar um número e depois deixar correr o barco, esperando que “os homens façam alguma coisa pela gente”. Isso pode explicar muito do descaso com que tratam as demandas da sociedade. Sei lá. Acredito que temos que melhorar e harmonizar nossas duas vidas para que seja uma só, mundana e de fé. De olhos abertos, ouvidos atentos, sob o olhar cuidadoso de Deus. Ainda acredito, como Dietrich Bonhoeffer assinalou numa de suas cartas escritas na prisão, que possamos “falar de moderação, autenticidade, confiança, fidelidade, constância, paciência, disciplina, humildade, modéstia, comedimento” e também “participar das tarefas mundanas da vida social humana ... e dizer às pessoas de todas as profissões o que é uma vida com Cristo, o que significa ... existir para os outros”. O autor é jornalista e pequeno empresário na área da comunicação em São Bernardo do Campo (SP) NOVOLHAR – Maio/Junho 2009
EDITORA SINODAL
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO IVOTI