CPAD
Ao leitor
Mobilidade ameaçada Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Walter Altmann Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Olga Farina, Ricardo Fiegenbaum, Vera Regina Waskow e Walter Altmann. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Cristiano Zambiasi Junior Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Antonio Carlos Ribeiro, Augusto Monterroso, Áurea Cavalcanti Santana, Carine Fernandes, Cézar Zillig, Chico Araújo, Cristiano Zambiasi Junior, Edelberto Behs, Ema Marta Dunck Cintra, Jari Rocha, Jéssica Fontoura, Lizely Roberta Borges, Martin Norberto Dreher, Micael Vier Behs, Nélio Schneider, Osmar Lessing, Paula Oliveira, Ricardo Siegle, Romeu Ruben Martini, Rui Bender, Sandro Della Mea Lima, Simone Mundstock Jahnke e Valdemar Gaede. Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 27,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
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ALAR SOBRE MOBILIDADE URBANA É LEVANTAR
um tema complexo e polêmico. Apenas arranhamos esse debate com as matérias desta edição. Ficar no exemplo de Curitiba para debater o transporte público nas grandes cidades brasileiras já é um lugar-comum. Entretanto, nem ali há unanimidade em torno do tema, uma vez que há muita gente que não se conforma em pagar mais por esse serviço do que pelo transporte privado, de carro ou de moto. Segundo um estudo da Associação Nacional de Transportes Públicos, o usuário de ônibus em Curitiba gasta até três vezes mais do que os que utilizam carro ou moto. Há muitas cidades brasileiras em que isso se repete, embora na média nas 27 capitais brasileiras e nas 16 cidades com população acima de 500 mil habitantes o ônibus tenha custo mais baixo do que o carro e, ainda assim, mais caro do que a moto. Mas, segundo Nélio Schneider, essa conta não fecha de jeito nenhum quando se considera o investimento absurdo na compra do carro e em sua manutenção. Como diz o gaúcho, “o facão cai da mão” de vez quando se olha para o custo ambiental do transporte individualizado. No outro lado da ponta está o amor quase romântico que o brasileiro tem pelo carro. Essa paixão, que foi até tema de propaganda, chega a fazer o brasileiro privar a família do básico para ter um carango na garagem. Com redução de IPI e outras facilidades, é muito fácil comprar um carro no Brasil, um símbolo de empoderamento incontestável. O difícil é achar um lugar para ele no crescente caos urbano, dominado pelas carruagens de lata. O megaengarrafamento de São Paulo no dia 10 de junho (293 km) dá a dimensão do futuro iminente. Segundo os especialistas, a cidade deve travar em quatro anos e o colapso total virá em nove. Enquanto formos empurrando o problema com a barriga, a crise se agrava e o direito de ir e vir transforma-se num suplício. Ao mesmo tempo, os mais lúcidos apontam para soluções bem longe das ruas, como, por exemplo, a ideia de que mobilidade urbana se resolve com aluguel barato, que nos faça morar tão perto do trabalho que possamos ir a pé ou de bicicleta. De qualquer forma, ainda há muito a ser feito. Equipe da Novolhar
ANO 7 - NÚMERO 28 - JULHO/AGOSTO DE 2009
CAPA 12 O NÓ DA MOBILIDADE Uma contribuição para a reflexão sobre mobilidade urbana 16 A quem pertence a rua? Todos têm direitos e deveres no convívio em via pública
18 Carro, liberdade e poder Poder é a liberdade de estabelecer transformações
20 Táxi - Transporte coletivo ou individual? A escolha pelo transporte coletivo pode fazer enorme diferença
O pinião do leitor Conteúdo relevante Obrigado ao eminente teólogo Leonardo Boff pelo excelente artigo “Origens terrenais do ser humano” (Novolhar nº 27). É impressionante a forma como o autor nos leva a refletir sobre a grandeza da terra e nos informa sobre a importância que “os povos originários” davam a ela, a ponto de reconhecê-la corretamente como mãe, aquela que gera vida continuamente. Parabéns aos editores da Novolhar por publicar conteúdo relevante para os dias atuais. David Rubens de Souza – por e-mail Pindamonhangaba (SP)
Observação crítica Parabéns à equipe redatora da revista Novolhar. São interessantes os assuntos, que ademais são apresenta-
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22 Várias mãos sobre o volante de um ônibus Curitiba é referência no planejamento urbano para o transporte coletivo
24 Aeromóvel - Uma revolução Engenheiro propõe alternativa para mobilidade urbana
Tema da próxima edição A edição nº 29, de setembro/outubro 2009, terá como tema de capa o CLIMA. Bruscas transformações climáticas colocam a humanidade diante de muitas questões que requerem mudança de paradigmas.
dos de forma altamente cativante. Uma revista assim faltava na IECLB. É instrutiva, entre outras, a apresentação das religiões em nosso planeta. Importa conhecer os outros para valorizar o próprio credo. Nesse sentido, permito-me uma observação crítica com relação ao artigo sobre o hinduísmo na edição nº 27, p. 34/35. O artigo caracteriza o hinduísmo como “filosofia em busca da paz”. Isso me parece ser apenas um lado dessa religião. Por que cristãos são perseguidos por hindus na Índia, tendo suas igrejas incendiadas e muitos de seus fiéis assassinados? Por que a miséria dos dalits (dos intocáveis) chegou até mesmo a ocupar a agenda da ONU? O “ahimsa”, ou seja, a não-violência, era bandeira de Mahatma Gandhi. Mas ele acabou assassinado por um brâmane em protesto a essa posição. O hinduísmo privilegia a paz interior, mas na defesa de seus interesses pode mostrar-se extremamente militante. Aliás, Gandhi aprendeu o “ahimsa” essencialmente no “sermão da monNOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
OUTROS ASSUNTOS 6
32 Religiões
Espelhos Mulheres cristãs que fazem parte da “nuvem de testemunhas”
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Reflexão Dirigido por mim, guiado por Deus
10 Novolhar sobre 10 11 26 28
Vacina contra a gripe
Última hora Notas ecumênicas História Fritz Müller em defesa de Darwin em Santa Catarina Testemunho Fugiu do nazismo para o coração da selva
29 Justiça
Negar cidadania é marca histórica das elites
30 Identidade étnica
Povo Chiquitano – exemplo de perseverança
tanha”, que é da autoria de Jesus. A busca da paz é imperativo para todas as religiões. Gottfried Brakemeier – por e-mail Nova Petrópolis (RS)
Ricos ensinamentos Sou assinante da revista Novolhar desde o primeiro exemplar e tenho sido ricamente abençoado com os edificantes artigos nela publicados. É interessante salientar que sou obreiro assembleiano, assino uma gama de publicações evangélicas e, dentre elas, a minha vida espiritual tem sido vivificada de forma tremenda e gloriosa pelos ricos ensinamentos encontrados nas páginas desse imorredouro periódico bimestral. É meu anelo veemente que todos os que fazem essa revista continuem sendo instrumentalizados para a sedimentação dos propósitos divinos em muitas vidas. Almir da Silva Lima – por e-mail Porto Calvo (AL)
WWW.NOVOLHAR.COM.BR
Islamismo é uma religião pacífica
34 História A lição do primeiro ser humano a pisar na Lua
36 Conto
O macaco que quis ser escritor satírico
37 Comportamento
Twitter – nova ferramenta da internet
38 Iniciativas de paz Palestinos e judeus compartilham sofrimento
40 Espiritualidade O rosto maternal e paternal de Deus
42 Penúltima palavra Questão ambiental exige metas claras
Revistas distribuem prêmios As revistas da IECLB Novolhar e O Amigo das Crianças, editadas e distribuídas pela Editora Sinodal, efetuaram no dia 15/06/2009 o sorteio de dois aparelhos de DVD para os participantes da Campanha de Captação Novos Assinantes. O sorteio foi realizado nas dependências da Livraria da Editora Sinodal pela assinante da revista Novolhar Elinora Ladehoff Milbratz e sua neta Jenifer Milbratz, de Timbó/SC. Os participantes contemplados na Campanha de Captação Novos Assinantes foram: Paróquia Candelária Sínodo Centro Campanha Sul - Cupom 037 e Comunidade Braço do Trombudo - Sínodo Centro Sul Catarinense - Cupom 043.
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Nossos ossos velhos Conheci as filhas de Wilhelmine; a mais nova delas foi minha avó e recebeu o nome da mãe: Guilhermina.
Walter Carlos Dreher
Espelhos
Entre ossos velhos encontro mulheres cristãs que fazem parte da “nuvem de testemunhas” que nos cercam.
Martin Norberto Dreher
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UITOS QUEREM SER ORIGINAIS . Ilusão. Somos aquilo que outros escreveram em nós. Somos o museu de nossos antepassados. Quando cavo em mim buscando preciosidades, não encontro ouro; encontro ossos velhos. Cavando neles, encontro muito mais do que ouro. Descubro que minha espiritualidade não é minha, mas que ela é algo que me foi legado por pessoas que viveram antes de mim e que me legaram uma tradição que vem desde o tempo dos apóstolos. Entre esses ossos velhos encontro toda uma série de mulheres cristãs, antepassadas minhas. Hoje fazem parte da “nuvem de testemunhas” que nos cercam. Nenhuma delas teve uma biografia escrita, nem é nome de rua ou de praça. Antes delas, outras mulheres viveram fé, mas seus nomes perderam-se no tempo. Maria Margareta morreu de inanição na viagem do Rio de Janeiro a Porto Alegre em 1825. Foi lançada ao mar com uma de suas filhas. Maria Elisabeth foi a nora que
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ela não conheceu e mãe de 13 crianças. Maria Louise tinha um hinário, bastante usado e que já havia sido de sua mãe, e bordou um quadro para a sala da família, no qual se encontram as palavras: Die mit Thränen säen werden mit Freuden ernten (Os que com lágrimas semeiam com júbilo ceifarão). A escolha dessas palavras está ligada à história da família de Maria Louise, cuja mãe era irmã de outra Maria Elisabeth, que, por sua vez, tinha uma filha de nome Jakobine. Maria Louise e Jakobine eram primas. Ambas vinham de tradição pietista. Eram pessoas piedosas. Jakobine foi morta em 1874, difamada, e não pôde passar sua piedade para os filhos. Maria Louise marcou no hinário da mãe o hino preferido de Jakobine: Es glänzet der Christen inwendiges Leben, obwohl sie von aussen die Sonne verbrannt... A vida interior dos cristãos resplandece,/ embora haja sol a por fora os crestar./ O que lá do céu o seu Rei oferece,/ ninguém senão eles o podem captar./ O que ninguém sente,/ nem mesmo percebe,/ ornou suas mentes/ por ele alumiadas/ e são à nobreza divina exaltadas.
Na casa de Maria Louise foi celebrado o primeiro culto luterano em Montenegro (RS). Sua filha Wilhelmine Josefine herdou o hinário, ganhou da esposa do pastor o Livro de Orações de Stark e do esposo uma Bíblia por ele censurada. Com navalha separou do livro de Gênesis os capítulos 19-20, pois os versículos 30-38, do capítulo 19, não lhe pareceram apropriados para a leitura das filhas. A Bíblia, com certeza, era lida. Conheci as filhas de Wilhelmine; a mais nova delas foi minha avó e recebeu o nome da mãe: Guilhermina. Nunca a vi falar de sua fé em público. Depois entendi que as dores da família devem ter estado por demais presentes. Não era fácil ser parente de Mucker. Num domingo pela manhã, quando não havia culto em nosso templo, encontrei-a no quarto, lendo o livro de orações da mãe, tendo a Bíblia e o hinário que foram da bisavó. Leu e cantou, no teu quarto, como dissera Jesus. Essa piedade entrou em minha vida, pois marcara a casa de meus pais. Marcado fui também por três irmãs costureiras que habitavam uma casa situada no terreno dos fundos de nossa casa: as irmãs Werner. Elas eram católico-romanas. Sempre houve uma coisa que me impressionava nas irmãs Werner e em muitos de nossos vizinhos: também eles eram piedosos. Nenhum pão era cortado sem que antes fosse abençoado. As crianças recebiam o sinal da cruz na testa antes de ir para a escola. As flores, os animais e o vinho eram abençoados. Para todos os aspectos da vida havia um dito, uma vela, um santo e, principalmente, havia o rosário, aquela oração monótona e ao mesmo tempo comovedora, o murmúrio dos que não têm voz. A religião fazia parte do cotidiano e não pertencia apenas ao domingo ou ao feriado. Ao cair do dia, as irmãs reuniam-se em seu oratório. Aos domingos, bem cedo, iam à missa comungar, em jejum. Em casa, às refeições, orávamos: Ó vem, Senhor Jesus... Ao deitar, dizia: Sou ainda pequenino... ou: Vou cansado repousar... Ossos velhos... O autor é teólogo e professor de História na Unisinos em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
Olhar com humor
E stá na agenda Promotoras Legais Populares O CECA (Centro Ecumênico de Capacitação e Assessoria) realiza em São Leopoldo (RS), no dia 1º de julho, o 7º Curso de Promotoras Legais Populares, com o objetivo de capacitar mulheres em legislação e direitos humanos, com ênfase nos direitos das mulheres, tornando-as multiplicadoras de informações nas comunidades. As Promotoras Legais Populares desenvolvem ações de prevenção à violência através de escuta, denúncia, apoio, encaminhamento e acompanhamento a mulheres em situação de violência. Para participar desse curso, devem ser preenchidos os seguintes requisitos: indicação através de uma entidade; engajamento em sua comunidade; maior de 18 anos. Maiores informações: www.ceca-rs.org
Acampamento da Família O Sínodo da Amazônia da IECLB promove o 4º Acampamento Sinodal da Família nos dias 17 a 19 de julho no CTG Tio Marquinhos em Ariquemes (RO). O objetivo é a comunhão de paróquias, comunidades e famílias, pois, como é grande a área de atuação do Sínodo, as pessoas nessa diáspora encontram-se poucas vezes. “Celebrando nossos jeitos” é o tema, que tem a coordenação do professor e músico Ernâni Luís. Atividades para idosos (dança sênior), crianças (histórias bíblicas, danças, cantos), jovens (esporte) e adultos (espaço para aconselhamento, jogos de dama, paciência) fazem parte da programação, além de amplo espaço para banho, lazer, esporte e descanso. Simultaneamente acontece o 1º Festival de Música Sacra. As 12 melhores canções serão gravadas num CD. Mais de 500 pessoas estão inscritas nesse evento, além de uma caravana com 40 pessoas do Sínodo Vale do Taquari (RS), parceiro da missão na Amazônia. Informações: sinamazon@brturbo.com.br
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Reflexão
Osmar Lessing e Valdemar Gaede
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SSA É UMA DAS FRASES QUE ENXERGA-
mos com muita frequência em parachoques de veículos nas rodovias de nosso país. É importante observar que, às vezes, não é o Deus Pai quem guia. Costuma-se dar essa atribuição também ao Filho de Deus, Jesus: “Dirigido por mim, guiado por Jesus”. Um bom observador de adesivos ou dizeres em parachoques de caminhões ainda vai se dar conta de que o guia dos caminhões e das carretas geralmente é Deus. Já os pequenos veículos, na maioria dos casos, são guiados por Jesus. Curioso é que nunca vi a Santíssima Trindade na condição de guia. O Espírito Santo fica de fora. Acreditamos que, numa visão luterana, faria bem se nos deixássemos guiar pela Trindade ao tomar sobre nós a responsabilidade de dirigir um veículo no meio do perigoso trânsito em nossas rodovias. Do
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nosso ponto de vista, uma pessoa cristã também faria uma inversão das duas partes da frase. Ficaria assim: “Guiado pela Santíssima Trindade, dirigido por mim”. Pois, na versão original, a frase tem a tendência de isentar o motorista de qualquer responsabilidade e de colocar Deus como eventual causador de acidentes (“Deus quis assim”): Eu dirijo do meu jeito, e Deus, de forma mágica, vai cuidar para que nada de mal aconteça. E se acontecer, é porque Deus o permitiu. A responsabilidade fica para Deus. Já vi destroços de vários veículos, resultado de graves acidentes, com os dizeres “Guiado por Deus” ainda bem visíveis. Foi Deus quem não guiou direito? Ou foi o motorista que não se deixou guiar por Deus? Na concepção luterana, quando se trata de “acidentes” (que poderiam ser evitados, humanamente falando), a ideia de
que “Deus quis que assim fosse” é inconcebível. Não colocamos Deus na condição de condutor de veículos, mas colocamos o ser humano como responsável, diante de Deus, na condução de seus veículos. Cremos na Santíssima Trindade. Nossa vida ganha um bom rumo quando permitimos que o Triúno Deus nos guie e nos oriente em meio às nossas atitudes e ações. Também um bom motorista tem mais chances de chegar ao destino são e salvo quando permite ser guiado pela Santíssima Trindade. Não de uma forma mágica, mas sim porque quem aceita o Triúno Deus como guia vai dirigir com responsabilidade. Por isso a inversão da frase. Primeiro vêm Deus, seu Filho Jesus e seu Santo Espírito. Primeiro vem a orientação de cima, do alto, de fora de nós. Então dá para falar em motoristas conscientes e responsáveis. NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
D ica cultural
Divulgação/Novolhar
Dá para falar em ética, em paz e em atitudes responsáveis no trânsito. Do contrário, o trânsito estará entregue ao deus-dará. Vale aqui uma palavra de Lutero: “Ajudate que Deus te ajudará: ore como se só Deus resolvesse tudo e age como se tudo dependesse só de ti”. Na visão luterana, o motorista cristão crê na Santíssima Trindade. Não abrimos mão do Credo Apostólico. Pois nele encontramos um resumo da palavra de Deus e da doutrina cristã: Professamos Deus Pai como guia. Ele deu a vida a nós, condutores de veículos, e a todas as pessoas que estão dentro do nosso veículo, dentro dos outros veículos ou que transitam a pé, de moto, de bicicleta ou a cavalo pelas ruas das cidades, pelas estradas do interior ou pelas rodovias, tanto estaduais como federais – quase sempre em WWW.NOVOLHAR.COM.BR
Osmar é teólogo e pastor sinodal do Sínodo Espírito Santo a Belém, em Vitória (ES). Valdemar é teólogo e pastor da IECLB em Santa Maria de Jetibá (ES)
O escafandro e a borboleta
Divulgação/Novolhar
Nossa vida ganha um bom rumo quando permitimos que o Triúno Deus nos guie e nos oriente em meio às nossas atitudes e ações.
péssimas condições. Na direção de um veículo, somos responsáveis, diante de Deus, por essas vidas todas. O “não matarás” do Deus Criador tem tudo a ver com o trânsito dos dias de hoje. Cremos em Jesus Cristo, Filho de Deus, nosso Salvador. Ele veio para que todos tenham vida e a tenham em abundância (João 10.10). O motorista cristão é responsável, diante de Jesus, para promover vida em abundância também no trânsito. Num trânsito marcado pela violência, aceitamos como lema as bem-aventuranças do Filho de Deus: “Bem-aventurados os humildes de espírito ... os mansos ... os que têm fome e sede de justiça ... os misericordiosos ... os limpos de coração ... os pacificadores ...” (Mateus 5). As bem-aventuranças de Jesus são “guia” para quem dirige com responsabilidade. Cremos no Espírito Santo. De acordo com Gálatas 5, o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio. E, de acordo com 1 Coríntios 13, quem ama é paciente e benigno; não se ufana e não se ensoberbece; não se conduz inconvenientemente. É o que falta na vida dos condutores de veículos, que, ao usarem um adesivo “Dirigido por mim, guiado por Jesus”, isentam-se da responsabilidade e colocam Jesus na condição de um mero “guia de veículo”, que, em certos momentos, pode até permitir que as tragédias aconteçam. Um condutor de veículos guiado pela Santíssima Trindade sente-se responsável pelo que acontece no trânsito e dá o melhor de si para que nada de mal aconteça a quem quer que seja. Também tem a coragem de denunciar aquele que faz de seu veículo uma arma e que tem o dever de cuidar da trafegabilidade de nossas ruas e rodovias.
Um filme baseado em fatos reais, que conta a difícil, mas superadora história de Jean-Dominique Bauby. Jean tem 43 anos, é editor da revista Elle e um apaixonado pela vida. Mas, subitamente, tem um derrame cerebral. Vinte dias depois, ele acorda. Ainda está lúcido, mas sofre de uma rara paralisia: o único movimento que lhe resta no corpo é o do olho esquerdo. A intenção do filme é colocar o espectador na posição do protagonista, que é Jean-Dominique Bauby, interpretado por Mathieu Amalric. O diretor explora bem esse momento, pois durante um bom tempo o foco que temos como espectadores é o do olho esquerdo de Bauby. Após dar-se conta de sua situação, ele se recusa a aceitar seu destino. Mas resolve parar de ter pena de si mesmo. E então a “borboleta sai de seu casulo”, e ele aprende a se comunicar piscando letras do alfabeto e assim forma palavras, frases e até parágrafos. Cria um mundo próprio, contando com aquilo que não paralisou: sua imaginação e sua memória. O escafandro era a roupa usada antigamente por mergulhadores, que vinha acompanhada de um capacete. Essa sensação de estar dentro de um escafandro, sentindo-se sufocado, perpassa o filme, mas em meio à sua situação o protagonista consegue voar como a borboleta. Um filme emocionante, impactante, mas altamente revelador. Dirigido por Julian Schnabel (Antes do Anoitecer), tem Max von Sydow no elenco. Recebeu quatro indicações para o Oscar, prêmio maior da indústria cinematográfica norteamericana.
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N ovolhar sobre
Última hora
Vacina contra a gripe
Áreas verdes retiram 4 milhões de toneladas de gás carbônico do ar
A gripe é uma doença infecciosa, transmissível por gotículas (expelidas na tosse), causada pelo vírus influenza. Ela causa sintomas como febre, coriza, tosse seca, dor de garganta, dor de cabeça e dor no corpo. Pessoas idosas e portadoras de doença crônica têm maior risco de complicações potencialmente graves, como pneumonia. A vacinação contra a gripe reduz o risco de infecção pelo vírus influenza e, portanto, suas complicações. A vacina é produzida com várias cepas de vírus influenza inativados, renovada a cada ano, visando atualizar as mutações que o vírus realiza para tentar sobreviver. A vacina pode ser útil para qualquer pessoa, mas o maior potencial de benefício ocorre nos grupos de pessoas que apresentam maior risco de complicações. A duração da proteção é de um ano. Mesmo quem foi vacinado pode desenvolver gripe, mas, nesses casos, costuma ser de menor gravidade. Muitos empresários oferecem a vacina contra a gripe a todos os seus funcionários, pois está provado que isso diminui o absenteísmo. Existem mitos de que a vacina pode gerar graves efeitos colaterais ou mesmo causar gripe. Na realidade, existem reações adversas, que ocorrem em menos de 1% dos casos e são geralmente desprovidas de gravidade. As mais comuns são dor, vermelhidão e induração no local de aplicação. Quem possui alergia a componentes da vacina, como proteína do ovo, não deve ser vacinado. Não é necessário fazer dieta ou suspender medicações para quem faz uso da vacina contra a gripe. O autor é infectologista em São Leopoldo (RS)
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Divulgação Novolhar
Ricardo Siegle
O Parque Tingui é um dos 30 parques da cidade de Curitiba
Se somadas as florestas públicas e particulares de Curitiba, as áreas verdes da cidade têm 1,16 bilhão de toneladas de carbono estocado em seus galhos, troncos, folhas e raízes, o que representa 4,25 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO²) a menos no ar. O dióxido de carbono é um dos principais gases responsáveis pelo aquecimento global e é retirado do ar pelas plantas, principalmente pelas árvores. Os dados foram divulgados na segunda-feira,
8 de junho, pela prefeitura de Curitiba. O estudo, feito por amostragem em 15 parques naturais da cidade, foi realizado pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente e pela Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem. Segundo a prefeitura, a quantidade de dióxido de carbono que é retirada do ar de Curitiba pelas áreas verdes equivale à quantidade liberada por cerca de 1 milhão de veículos circulando durante um ano e meio nas ruas da cidade.
Curso para gestão de comunidades cristãs A Faculdades EST estará acolhendo, a partir de agosto, secretários, administradores de paróquias e presbíteros em iniciativa voltada à qualificação de profissionais de gestão administrativa das paróquias do Sínodo Rio dos Sinos da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Patrocinado pela Luterprev, o Curso para Gestão de Comunidades Cristãs pretende promover a interface da gestão administrativa com a missão, visão e valores da IECLB,
além de refletir sobre o contexto social e as práticas das comunidades. Com duração de quatro meses, o curso será gratuito, com encontros quinzenais, compreendendo disciplinas tanto do campo da Teologia como da Gestão, com enfoque no Terceiro Setor. Com aula magna agendada para o dia 10 de agosto, o Curso para Gestão de Comunidades Cristãs oferece 40 vagas. Interessados podem realizar inscrição online através do site www.est.edu/procas. NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
Notas ecumênicas
Recado à sociedade
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OM UMA PARADA NO CEMITÉRIO DO
Maruípe, de Vitória (ES), onde estão enterrados os pobres e as vítimas da violência, a Caminhada pela Paz deu um recado à sociedade: subsistem situações de discriminação social e racial no Brasil, de exclusão e de uso dos bens sociais. A Caminhada pela Paz, realizada no domingo de Pentecostes, 31 de maio, integrou a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos e reuniu cerca de 500 manifestantes das igrejas Católica, Presbiteriana e Evangélica Luterana. Organizada pela
Ação Diaconal Ecumênica, de Vitória, a Caminhada deixou claro à população que só haverá paz onde houver justiça. “Rompe-se a ideia de que o povo cristão não pode modificar um mundo dividido entre privilegiados e os que têm de sustentar a minoria, elites de bem-postos, de políticos corrompidos, de governos que, ao invés de buscarem a paz social, alimentam a violência da miséria em causa própria”, declarou o reverendo Derval Dasilio, da Igreja Presbiteriana Unida de Vitória.
Movimento indígena ganha força O movimento indígena, do México à Patagônia, está propondo “um desafio em termos de civilização”, que, devido à crise mundial, aparece hoje na ordem do dia, afirmou o economista colombiano Hector-Léon Moncayo. Entre todos os movimentos sociais do continente, o mais importante dos últimos tempos é o indígena, assinalou Moncayo. Indígenas postulam uma relação diferente com a natureza e entre os seres huma-
nos, “substituindo o ânimo do lucro e da competição pela harmonia e a solidariedade”, disse. O economista colombiano admitiu, em entrevista ao Instituto Humanitas, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), que o avanço do movimento indígena é desigual. Indígenas estão presentes no governo boliviano, são atores principais nas transformações do Equador e ganham peso no Peru e na Colômbia.
Crescem conflitos agrários no Rio Grande Na contramão da tendência nacional verificada em 2008, enquanto os números de conflitos agrários e de famílias despejadas ou expulsas, pessoas presas e agredidas diminuíram no Brasil, no Rio Grande do Sul esses índices aumentaram. É um reflexo no estado de medidas do governo de Yeda Crusius, do Partido da Social Democracia, que tem reprimido e oprimido de forma violenta trabalhadores rurais sem terra e militantes sociais em suas ações e manifestações, acusa a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Comparado ao ano anterior, em 2008, o número de conflitos agrários no Rio Grande do Sul passou de 32 para 33; o número de famílias envolvidas WWW.NOVOLHAR.COM.BR
nesses conflitos cresceu de 3,8 mil para 4,9 mil; o de famílias despejadas saltou de 940 para 1,9 mil; o número de pessoas agredidas pulou de 54 para 328, o mesmo que se verifica no caso de famílias expulsas, de zero a 60, de pessoas presas, de 15 para 19, e de pessoas assassinadas, de zero para duas. O Pará é, contudo, o estado da federação que apresentou, em 2008, o maior número de conflitos no campo (245), com 46% dos casos, o maior número de assassinatos (de cinco, em 2007, pularam para 13 no ano passado), de ameaças de morte e de famílias expulsas (740) e despejadas (2.051). Os dados constam no relatório do conflito agrário de 2008, elaborado anualmente pela CPT.
Mais ações nos temas ambientais A Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC, a sigla em inglês) emitiu apelo no Dia Mundial do Meio Ambiente para a ação, mais do que palavras, com o propósito de resolver ou prevenir os problemas ambientais. “É tempo de avançar para uma visão compartilhada de um futuro sustentável. Tempo de fortalecer a capacidade de construir” dentro dos limites do mundo finito, destacou a WACC. Apesar de todas as manifestações em defesa do meio ambiente, a mudança climática causada pelas atividades humanas continua ameaçando a vida e a sustentação de bilhões de pessoas e a existência de milhões de espécies, lembrou a organização mundial no manifesto emitido no dia 5 de junho. Movimentos sociais exigem ações radicais e maior responsabilidade pelo quadro do mundo cabe aos ricos. Que deixem os combustíveis fósseis no solo e adotem soluções justas e efetivas de igual acesso aos recursos, pediu a WACC.
Um marco no ecumenismo A próxima reunião da Comissão Plenária de Fé e Constituição do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) deverá ser um marco na história do diálogo ecumênico, afirmou seu diretor, John Gibaut. Os 120 teólogos e teólogas de quase todas as tradições cristãs, integrantes da Comissão, vão examinar, na reunião de 7 a 14 de outubro, em Kolympari, Grécia, qual é a missão das igrejas no mundo e como elas adotam decisões sobre temas teológicos, ecumênicos ou morais. Fé e Constituição é o ramo histórico do CMI, encarregado dos aspectos teológicos da busca da unidade visível das igrejas. A comissão conta entre seus membros com igrejas que não fazem parte do organismo ecumênico internacional, como é o caso da Igreja Católica Romana e de igrejas evangélicas livres e pentecostais. Matérias compiladas pelo jornalista Edelberto Behs a partir de reportagens publicadas pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC). Site: www.alcnoticias.org
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Nayeli Martínez
Capa
PELO RALO: O custo do congestionamento do trânsito foi estimado em R$ 474,1 milhões em dez cidades pesquisadas pelo IPEA
O nó da mobilidade Do meio ambiente aos pontos sociais, diversas análises e providências devem ser consideradas para uma melhoria no fluxo de pessoas e automóveis nas ruas de nossas cidades. Nas páginas seguintes, uma contribuição para a reflexão sobre mobilidade urbana, a era do transporte individual e o direito de ir e vir. 12
Jéssica Fontoura
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IVEMOS UM TEMPO DE RECORDES NA
indústria automotiva. Desde 2002, mês a mês, com poucas exceções, são registrados números de superação em vendas e produção de veículos novos, de acordo com dados da Federação Nacional de Distribuição de Veículos Automotores. Só em 2008, mais de 4,85 milhões de novas unidades foram vendidas – dessas, mais da metade (2,67 milhões) refere-se a veículos leves, ou seja, carros e motos para duas, talvez até uma pessoa. NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
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jamento e Coordenação da prefeitura de São Leopoldo. Diversos projetos foram implantados na cidade para melhorar o trânsito e a vida de quem depende dele para o trabalho e outras atividades. Da frota de 142 ônibus de São Leopoldo, 28 deles são novíssimos, sendo 10 adaptados para cadeirantes. Eles são fruto do programa municipal de qualificação do transporte coletivo, que tratou de proporcionar aos usuários mais conforto e segurança, para que utilizem com mais frequência esse meio de transporte. As unidades novas têm ar-condicionado, biocombustível, motor eletrônico, piso interno antiderrapante e cano de escapamento elevado.
“Andamos de carro porque parece mais rápido, seguro e eficaz. Então o transporte coletivo, para constituir uma alternativa real, precisa ter essa característica inicial de rapidez, segurança, eficácia e deve agregar outros elementos, como barateamento do custo, praticidade e oferta de horários e itinerários, além da capacidade de alcançar qualquer ponto da cidade e região de forma rápida. Dessa forma, o automóvel e as motos deixam de ser o transporte principal e prioritário e passam a ser o alternativo”, afirma Sandro. Outras ações em São Leopoldo melhoraram o transporte urbano, como a bilhetagem eletrônica (com desconto de até 50% na segunda viagem), a integração
SANDRO: “Busca-se um conjunto de políticas de transporte e circulação para garantir acesso amplo e democrático ao espaço urbano, com prioridade aos modos de transporte coletivo e nãomotorizados de forma socialmente inclusiva e ecologicamente sustentável. Portanto o transporte coletivo, em nosso caso ônibus e trem, assume papel fundamental em nossa ação” Jéssica Fontoura
Nesse ritmo, percebe-se a ênfase cada vez mais clara numa cultura de transporte individual em detrimento do transporte coletivo. Os engarrafamentos e as vias congestionadas já não são mais exclusividade de grandes cidades: municípios de médio porte da Grande Porto Alegre já se veem obrigados a tomar providências para estabilizar o trânsito de veículos, de modo que o fluxo não atrapalhe o dia-a-dia da população. É o caso de Novo Hamburgo (RS), que tem uma frota estimada em 70 mil automóveis e 18 mil motocicletas, de acordo com o Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Sul (Detran/RS). A Secretaria Municipal de Segurança e Mobilidade Urbana está elaborando um projeto para a modernização de 32 semáforos na área central da cidade. Os controladores atuais serão substituídos por novos aparelhos, que poderão monitorar o fluxo de veículos na área central, eixo rodoviário da Avenida Nicolau Becker e BR-116. “Esse monitoramento será feito através de painéis eletrônicos na prefeitura e na guarda municipal. Quando identificados pontos de conflito, os técnicos poderão alterar a programação dos semáforos sem precisar ir até o local. Outro projeto que está em fase de licitação é a aquisição de semáforos para pedestres, que piscam mostrando quando irão fechar. A secretaria estuda também a compra de semáforos com sonorizadores para atender os deficientes visuais que necessitam atravessar as vias”, destaca o titular da pasta, Luís Fernando Farias. A mobilidade também está na pauta da prefeitura de São Leopoldo (RS), que trabalha com a mobilidade urbana sustentável. “Busca-se um conjunto de políticas de transporte e circulação para garantir acesso amplo e democrático ao espaço urbano, com prioridade aos modos de transporte coletivo e não-motorizados de forma socialmente inclusiva e ecologicamente sustentável. Portanto o transporte coletivo, em nosso caso ônibus e trem, assume papel fundamental em nossa ação”, destaca Sandro Della Mea Lima, diretor de Mobilidade Urbana na Secretaria de Plane-
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física de todas as linhas do município com as estações do Trensurb, o estacionamento rotativo, o programa de ciclovias, a Central de Controle Semafórico Eletrônica, entre outras. Saúde - O congestionamento do trânsito tem um impacto direto na produtividade dos moradores das grandes cidades. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostrou que, quando um trabalhador demora para chegar ao local de trabalho entre 40 e 80 minutos além do tempo normal, sua produtividade cai entre 14% e 20%. O custo do congestionamento do trânsito foi estimado em R$ 474,1 milhões em dez cidades pesquisadas pelo IPEA. O cálculo inclui o excesso de tempo, de consumo de combustível e de poluição resultantes do congestionamento do trânsito,
além dos investimentos adicionais no sistema viário. Nas dez cidades pesquisadas, os motoristas e passageiros de ônibus desperdiçam 500 milhões de horas por ano nos congestionamentos. O consumo de gasolina e diesel aumenta 200 milhões de litros por ano e 4 milhões de litros ao ano, respectivamente. A regularidade das viagens, segundo a pesquisa, somente aconteceria com o aumento da frota de ônibus em circulação. O aumento da frota, no entanto, aumentaria os custos operacionais em cerca de 16%, representando o acréscimo do valor da tarifa. Com a chegada da Copa do Mundo de 2014 ao Brasil, algumas ações estão em andamento para melhorar o transporte coletivo no país. Cidades como Porto Alegre, antes desprovidas de transporte subterrâneo, estudam a implantação desse tipo
de serviço. A Companhia Brasileira de Trens Urbanos – CBTU, empresa do Ministério das Cidades, destaca que seu sistema de trens urbanos em Recife, Belo Horizonte, João Pessoa, Maceió e Natal proporcionou à sociedade, em 2008, um total de R$ 167,4 milhões em benefícios socioeconômicos, alcançados com as economias geradas com a redução do tempo de viagem dos usuários, do consumo de óleo diesel, da poluição do ar e dos acidentes de trânsito. O benefício mais importante, afirma a assessoria de imprensa da CBTU, foi a economia no tempo de viagem dos mais de 100 milhões de usuários anuais da empresa, cujo resultado foi de R$ 104,1 milhões. “Essa economia é resultante da maior velocidade comercial do trem em relação aos ônibus e automóveis”, destaca a nota da companhia.
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COMPLEXO: As questões do trânsito passam por uma infinidade de pontos, que vão desde a sustentabilidade até assuntos de ordem social
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Divulgação Novolhar
DESDE CEDO: Em Caxias do Sul (RS), uma iniciativa muito interessante trata de aproximar crianças e jovens da pauta do trânsito de maneira lúdica e divertida
Lições desde a juventude - Envolver crianças e jovens em um ambiente de consciência em relação ao trânsito e de responsabilidade com todas as questões envolvidas na condução de um veículo automotor está entre as soluções apontadas por especialistas para um trânsito melhor no futuro. Diversas ações no Rio Grande do Sul já dão conta da educação para o trânsito desde a infância como forma de estimular os pequenos a ter uma relação mais saudável com carros, motos, ônibus e outros meios de transporte. Uma dessas iniciativas didáticas partiu do Detran/RS com o projeto Turma do Buzina. Composto por seis personagens (entre eles o cachorro Buzina), o grupo encontra-se na web (www.vivamais.rs.gov. br/turma), onde crianças e jovens podem participar virtualmente de jogos, passatempos e atividades ligadas à educação para o trânsito. Todos os personagens da turma têm idades compatíveis com o público-alvo do projeto e têm aparência e personalidade que fogem dos padrões arquetípicos tradicionais, incluindo no grupo um personagem WWW.NOVOLHAR.COM.BR
portador de necessidades especiais, cujas dificuldades de mobilidade podem ser ainda maiores. Ponto de partida para um trabalho continuado em sala de aula, o site é atualizado com novos jogos e traz subsídios para transversalizar esse tema tão importante, possibilitando assim que todas as disciplinas possam desenvolvê-lo. Em Caxias do Sul (RS), outra iniciativa muito interessante trata de aproximar crianças e jovens da pauta do trânsito de maneira lúdica e divertida. É a Escola Pública de Trânsito, instituída há quatro anos para trabalhar a preservação da vida junto aos pequenos e adultos, também. Mais de 50 projetos são desenvolvidos pela escola, tais como palestras, blitze e patrulhas mirins. Há, inclusive, um minicircuito na sede da escola, no qual as crianças podem aprender como funciona o trânsito guiando carrinhos, motocicletinhas e outros veículos infantis em um espaço que simula as vias públicas reais, com semáforos, faixas de pedestres e outros pontos do dia-a-dia do motorista. “A recepção aos projetos é muito boa, principalmente por parte das crianças. Elas
não têm vergonha de dizer aos adultos o que é correto e acabam propagando muito bem o que aprendem. Procuramos mostrar uma cultura de respeito no trânsito e o valor ao próximo, o quanto nossas atitudes no trânsito têm consequências não só para nós, mas também para outras pessoas e nossa família”, destaca Erico Marciano de Oliveira, coordenador da Escola Pública de Trânsito de Caxias do Sul. As lições desde a juventude são um investimento nos futuros motoristas, mas questões do trânsito passam por uma infinidade de pontos, que vão desde a sustentabilidade até assuntos de ordem social, como os carroceiros, os vendedores em semáforos e até as comunidades que vivem à margem das rodovias. Tratando todos os interessados com o devido respeito e pensando no bem da sociedade, certamente algumas melhoras poderão ser sentidas – não com a agilidade que queremos, mas com o resultado que sonhamos e precisamos para uma qualidade de vida melhor. A autora é jornalista em Novo Hamburgo (RS)
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A quem pertence a rua?
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CRESCIMENTO POPULACIONAL DAS
metrópoles transformou a relação das pessoas com o espaço urbano, ressignificando-o enquanto ambiente de fluxo de mercadorias e circulação de indivíduos no trajeto da casa para o trabalho e do trabalho para casa. Nesse cenário, o convívio entre pedestres e condutores passou a depender de normatizações que procuram estabelecer direitos e deveres para todos aqueles que compartilham o espaço comum da rua. Na tentativa de dominar os inúmeros conflitos que se estabelecem no trânsito, condutores excedem a velocidade, desrespeitam o sinal vermelho e ultrapassam os limites da faixa de segurança. O pedestre, por sua vez, também é responsável pelo cenário de caos e desordem no trânsito. “Na correria do dia-a-dia, pessoas atravessam a rua fora dos limites da
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O convívio entre os diversos usuários da via pública é regulado por normatizações que estabelecem direitos e deveres para todos, mas que nem sempre são respeitados.
Micael V. Behs
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faixa de segurança ou então em locais em que a sinalização semafórica indica a liberação da passagem de veículos”, aponta o diretor de Mobilidade Urbana da prefeitura de São Leopoldo, Sandro Della Mea Lima. Muitos condutores, argumenta Sandro, assumem o controle do veículo e imaginam deter o poder sobre a via e os inúmeros conflitos que se estabelecem no trânsito. “A partir do momento em que me apodero enquanto condutor, passo a imaginar que preciso andar primeiro, ter preferência, que a via está a meu serviço e que as pessoas precisam parar para que eu passe primeiro”, pondera. A postura adotada por motoristas e pedestres nas ruas e estradas está vinculada a uma série de fatores, dentre os quais prevalecem a falta de educação no trânsito e da existência de uma legislação que prioriza a punição em detrimento da conscientização. Somado a isso, o contrato social que prescreve as leis de trânsito no Brasil não é aceito por todos e a fiscalização dos órgãos competentes é deficitária em relação ao número de infrações registradas diariamente. Como alternativa para frear as irregularidades, Mea Lima sugere o planejamento de ações que ofereçam aos condutores infratores a possibilidade de abater parte das multas por aulas de reciclagem. Dessa
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maneira, ao ato punitivo da multa estaria sendo acrescentada a possibilidade de uma reflexão sobre o que é certo e o que é errado fazer na via pública. “Antes mesmo de conscientizarmos condutores e pedestres, precisaríamos discutir as regras de trânsito como tema transversal no currículo escolar, para que, desde cedo, crianças e adolescentes possam compreender a questão da mobilidade urbana enquanto matéria presente na cotidianidade das pessoas”, propõe Mea Lima. Fazendo eco às declarações do diretor de Mobilidade Urbana, o aposentado Romualdo Schneider (66) acredita que a promoção da paz no trânsito está diretamente associada à qualidade das informações transmitidas às crianças a partir da escola. “Hoje o pedestre não confia no motorista, e o motorista não confia no pedestre”, ressalta Schneider, que, sentado nos bancos do calçadão da pequena cidade interiorana de Estrela (RS), ainda preserva o espaço da rua como local de encontro com os amigos. Lembrando com saudosismo o tempo em que conhecia cada um dos moradores da cidade, Schneider alega que, atualmente, andar pelas ruas tornou-se perigoso. Além do fluxo de veículos ter crescido em descompasso com o desenvolvimento da infraestrutura viária, as calçadas são
irregulares e as ruas mal iluminadas. A displicência das administrações públicas e dos próprios moradores em relação ao território da rua deve-se ao fato de que, na cultura brasileira, ainda vigora a máxima de que aquilo que pertence a todos não pertence a ninguém. “Estamos muito arraigados a bens concretos”, indicou Mea Lima, ao definir a rua como território sobre o qual a municipalidade tem gerência e determina as regras de sua utilização, mas que pertence a todos os cidadãos da cidade. Para resgatar o espaço da rua como ambiente de encontro e acolhida entre moradores que se conhecem e compartilham experiências de vida, seria preciso criar polos de desenvolvimento locais. Desse modo, as comunidades dos bairros estariam munidas dos serviços básicos, o que permitiria que seus moradores migrassem para o centro das cidades apenas em situações ocasionais. A partir do momento em que a rua deixa de representar apenas uma via de circulação de pessoas e de mercadorias, esse espaço público se transforma, favorecendo a mudança de comportamento de motoristas e de pedestres e humanizando a cidade. O autor é jornalista em São Leopoldo (RS)
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Nélio Schneider
Cheguei à conclusão de que é melhor não ter automóvel. É muito mais barato. A lógica é simples: investir em locomoção o valor que se gastaria comprando e mantendo um carro. E qual é a quantia que se deixa de gastar não comprando carro? Num modelo 0 km que custa R$ 30.000,00, é exatamente esse valor que deixamos de gastar no primeiro momento. Agora, quanto deixaremos de gastar por ano, não tendo carro próprio? O custo fixo de um carro por ano, sem tirar da garagem (IPVA, seguro obrigatório, seguro total, garagem), gira em torno de R$ 4.000,00. Aí vem os gastos correntes com combustível, manutenção e consertos, não serão menos do que R$ 7.000,00 por ano (p. ex.: rodando em torno de 30.000 km, média de 10 km por litro de gasolina a um preço médio de R$ 2,50/l, gastamse R$ 7.500,00 só com combustível). Então: depois da descapitalização inicial de R$ 30 mil, gastam-se anualmente com o carro, sendo otimista, em média R$ 11.000,00. Não comprando e não tendo, se deixa de gastar R$ 30.000,00 + 11.000,00 no primeiro ano. Calcule quanto se pode andar de ônibus, táxi, trem, avião e carro alugado com esse valor? Duas passagens de ônibus por dia a R$ 2,30 nos 250 dias úteis do ano = R$ 1.150,00; duas corridas de táxi por dia a R$ 10,00 nos 250 dias úteis do ano = R$ 5.000,00. Nessas duas opções, se considerarmos somente o valor das despesas anuais não gastas, ainda sobram entre seis e nove mil reais para gastar em aluguel de carro em finais de semana (suficientes para 60 a 40 fins de semana com um carro básico), viajar de avião pelo Brasil e pelo mundo e o que der vontade de fazer. O autor é teólogo e tradutor em Porto Alegre (RS)
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Carro, liberdade e poder Jari Rocha
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ESDE A CRIAÇÃO DO MOTORWAGEN,
primeiro automóvel da história – que chegava a 16 km/h –, a indústria automobilística sofreu uma metamorfose espantosa. Começou com a produção em série ainda no século 19 e, duas décadas depois, criava a linha de montagem, conseguindo popularizar o que, até então, era caro demais e difícil de dirigir. No pós-guerra, repensou a produção em massa e introduziu o just in time com a flexibilização da produção. Mais tarde, aliou o liberalismo à economia planejada, cujo resultado foi a melhoria contínua e a socialização da cadeia de trabalho. Por fim, diante da crise iminente, consegue engolirse para continuar sobrevivendo, oferecendo sonhos aos que podem pagar. O automóvel segue atraindo o desejo de milhões de consumidores no mundo inteiro. A competência da propaganda, cuja persuasão ultrapassa os limites da sensualidade e até da decência, está amparada na satisfação do freguês. Pois, além de um meio de transporte, ele adquire respeito, admiração, inveja dos outros e uma referência de quem pode ser. O mercado, tão desprestigiado ultimamente, tem dado sua contribuição para a valoração da autoestima. Com financiamentos intermináveis, podemos ascender de classe social em 60 meses, com entrega imediata. Graças à capacidade de readaptação, essa indústria tem oferecido veículos cada vez mais seguros, mais eco-
Brad Martyna
Por que não comprar um carro?
Reverenciamos pessoas bem-vestidas em belos automóveis,
nômicos, menos poluentes e muito mais bonitos. Por fim, ainda nos dão, além da sensação de vários poderes e das várias sensações de poder, a sensação de liberdade. Não é por menos que o automóvel provoca tanto fascínio e, talvez por essa NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
como uma demonstração de sucesso, mesmo que só aparente
razão, funciona como uma válvula de escape para as insatisfações humanas. A liberdade, em oposição à dependência de um sistema de transporte público deficiente, faz sentirmo-nos empoderados. Protegidos por uma armadura, saímos por aí WWW.NOVOLHAR.COM.BR
como super-homens: fortes, velozes e à prova de balas. Esse grau de inconsciência, porém, só será revelado à nossa consciência por suas sequelas trágicas. Empowerrment significa tudo o que transforma o sujeito em objeto passivo. Isso é alguém ou algo que nos dá poder, como o automóvel, que nos dá algo que supostamente não temos. Embora o termo inglês traia o sentido original da expressão, caracteriza a sensação que o carro nos dá. Ainda que sejamos pedestres por natureza, trocamos de papel e sem constrangimento passamos a exigir pista livre, rápida e sem nenhum obstáculo, mesmo que sejam crianças. É uma liberdade perigosa, principalmente se nos sentirmos amparados pelas regras de trânsito. As relações de poder são estabelecidas em via pública, seja pela potência ou pelo tamanho. Já nos estacionamentos, o volume de nossa música preferida permitenos impor também os gostos musicais. A sociedade aprova e reverencia pessoas bem-vestidas em belos automóveis, como uma demonstração de sucesso, mesmo que seja só aparente. O empoderamento, porém, pode assumir um sentido transformador. Se lembrarmos a definição que Paulo Freire dá à pessoa empoderada, que é aquela que realiza, por si mesma, as mudanças e ações que a levam a evoluir e fortalecer-se, então a expressão liberdade assume outro caráter. Como, nesse caso, não é o carro que nos dá poder, então será usado como meio de locomoção que exige, além de toda a atenção, responsabilidade e respeito à vida. E assim, a ilusão com as sensações prometidas, cujos conceitos implícitos e explícitos nos fazem perder a própria referência, seria substituída por avaliações bem mais racionais. A partir dessa nova lógica, poderíamos reavaliar nossas necessidades. O quanto perdemos se deixamos nosso símbolo de prosperidade na garagem ou se alguém nos ultrapassa. Então perceberemos que as ruas, onde brincávamos quando crianças, são hoje vias rápidas para um trânsito veloz. Se o mundo do automóvel mudou seus valores e conceitos desde o Motorwagen,
Carro pode ser transporte coletivo Sandro Della Mea Lima
Carro é transporte individual, mas ele pode ter um uso coletivo, e aí está a diferença. Todos os dias nas principais rodovias do país, milhares de carros com apenas o condutor ficam presos no trânsito. Uma ação simples para resolver esse tipo de problema é o uso das caronas. Grandes cidades americanas, do Canadá e várias cidades da Europa utilizam faixas exclusivas para veículos com mais de três pessoas (as High Occupancy Vehicle-HOV Lanes) ou faixas em que se paga uma multa se o carro tiver menos do que três pessoas (as High-Occupancy Toll-HOT lanes). Enquanto os carros de um condutor estão presos no engarrafamento, os automóveis “coletivos” têm faixa exclusiva. Há uma diminuição real de 10 a 15% dos veículos na rodovia com uma economia de tempo de até 30 minutos em uma viagem de hora e meia, economia de combustível e menos poluição do ar. Em Los Angeles, há 780 mil quilômetros de faixas exclusivas, iniciadas em 1970. Circulam por dia nessas vias mais de 800 mil pessoas. Imagina se cada uma utilizasse um carro. Por isso a carona se justifica. O autor é diretor de Mobilidade Urbana da prefeitura de São Leopoldo (RS)
por que o cidadão não pode mudar seus hábitos e arriscar-se numa viagem de bicicleta ou a pé e exigir melhor transporte público? Talvez, então, lembraremos que poder é a liberdade de estabelecer transformações a partir de nós mesmos. Será uma viagem sem volta. O autor é diretor do Centro Cultural José Pedro Boéssio em São Leopoldo (RS)
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Temível fiscalização técnica Marcelo Schneider
Ao dirigir numa autoestrada da Alemanha, percebe-se que a paixão dos alemães pela velocidade não se restringe às pistas de corrida. Como no Brasil, é terminantemente proibido ultrapassar pela direita na Autobahn. Veículos lentos têm que usar sempre a pista da direita, e os mais velozes devem ultrapassar pela esquerda. No entanto, há um limite de velocidade “sugerido” de 130 km/h, que é normalmente ignorado pelos condutores de Mercedes e Porsches, que podem aparecer repentinamente piscando seus faróis e pedindo passagem. Nem mesmo o alto preço do combustível parece convencer os motoristas alemães a dirigir mais devagar. É muito raro ver um carro velho soltando fumaça pelo cano de descarga. Isso se deve ao rígido controle de uma instituição temida e respeitada chamada Technische Überwachungsverein. TÜV, como é popularmente conhecida, é a agência que avalia e autoriza se um veículo está ou não apto a circular pelas vias públicas do país. Sem um adeviso da TÜV no parabrisa, um carro não recebe licença e sequer está autorizado a sair da garagem. São célebres os casos de carros que não passaram na inspeção por conta de um pequeno ponto de ferrugem num determinado ponto crítico da lataria ou alguma sinaleira com lâmpada fraca. Um popular adesivo visto nos parachoques de carros velhos na Alemanha diz: “Bis dass der TÜV uns scheide” (até que a TÜV nos separe). O autor é teólogo e assessor do Moderador do Consellho Mundial de Igrejas em Porto Alegre (RS)
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Táxi Transporte coletivo ou individual? Marcelo Schneider
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E ACORDO COM A WIKIPEDIA (UMA
ferramenta da internet), o táxi é um “meio de transporte público individual”. Essa afirmação é o ponto de partida para uma divertida polêmica: seria o táxi transporte coletivo ou individual? Considerado um dos meios de transporte mais ágeis à disposição daqueles que precisam se deslocar em meios urbanos, o táxi marca as paisagens das maiores cidades do mundo. Somente na cidade de São Paulo, já são mais de 33 mil cadastrados e em operação. Com suas cores exóticas, oferecem praticidade e agilidade a preço diferenciado. Em contraste com o ônibus, que tem sua linha definida e intercalada por paradas fixas, é a possibilidade de criar seu próprio trajeto de um ponto a outro de forma direta que atrai os usuários. Muitas pessoas usam o mesmo táxi ao longo do mesmo dia. Logo ele pode ser considerado um meio de transporte coletivo. Mas uma pessoa pode chamar um táxi e pedir que esse a leve diretamente a um determinado destino, sem que tenha que dividir o veículo com mais ninguém.
Por ser público, significa que pode ser utilizado por muitas pessoas. Mas não ao mesmo tempo. A privacidade oferecida pelo táxi serviria de forte argumento para aqueles que defendem a ideia de que esse é um meio de transporte individual, exclusivo e, de certa forma, privado. Além disso, o usuário estaria, através do pagamento da tarifa, “alugando” um carro para seu uso pessoal por um determinado tempo. Portanto, esse veículo seria, em sua essência, de uso individual. Não é o número de passageiros que define a natureza do meio de transporte. Fosse esse o caso, um ônibus com apenas um passageiro deixaria momentaneamente de ser coletivo. Amigos que decidem dividir um táxi na saída de um restaurante
TURISMO: A genialidade presente no modelo de táxi aberto para transportar turistas pelas ruas da capital de Cuba, Havana
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T. Rolf
mudam o status do meio de transporte ao fazer diversas paradas e cotizar os custos da corrida? O passageiro solitário do ônibus não exclui a possibilidade de que outros passageiros utilizem o veículo ao longo daquele trajeto determinado, já o táxi (mesmo que partilhado entre amigos) exclui o uso de outras pessoas e tem um trajeto exclusivo, determinado por uma necessidade específica e circunstancial. Seria, então, a presença de mais de um prestador de serviço no veículo, além do motorista, como um cobrador/trocador ou um fiscal, que o tornaria coletivo? A resposta não parece estar ali também. Além dos aspectos práticos, há também uma interessante dimensão contrastante nessa questão, a saber, os limites do público e do privado a partir da experiência do usuário. Seja por conforto e, em alguns casos, preconceito, algumas pessoas fazem questão do isolamento e da privacidade que o táxi oferece. Ônibus e lotações significariam, nesse caso, a partilha inconveniente do espaço físico, tese reforçada por argumentos que giram em torno de questões ligadas à segurança pública e aos riscos da vida na cidade grande. Em tempos de urgência pelo desenvolvimento de uma consciência ecológica mais funcional, a escolha pelo transporte coletivo é uma atitude que pode fazer enorme diferença se adotada por um número expressivo de pessoas. A definição do táxi como meio de transporte coletivo e a posterior utilização dessa definição como subsídio publicitário seria um desserviço ao esforço em torno da redução de veículos nas ruas. O ramo dos transportes é lucrativo, tanto para empresas de ônibus como para cooperativas de táxi. As pessoas precisam locomover-se e sempre precisarão. Sendo assim, a polêmica acerca da natureza do táxi passa longe dos usuários comuns, que se preocupam mesmo é com o preço da tarifa, esse sim de impacto na esfera privada e considerado alto pela coletividade.
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O autor é teólogo e assessor do Moderador do Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre (RS)
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Ao lado de engenheiros, movimentos populares de Curitiba tiveram papel importante na definição do transporte coletivo da capital. Lizely Roberta Borges
A
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DO SIS-
tema Integrado de Transporte Coletivo de Curitiba já foi contada muitas vezes, em várias partes do país e fora dele. A capital paranaense é vista como referência de planejamento urbano para o
transporte coletivo. Aos profissionais do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), como o ex-prefeito Jaime Lerner, é creditada a projeção nacional e internacional da cidade como inovadora e eficiente. Nessa história, um
PISTAS EXCLUSIVAS: Capital paranaense é referência no planejamento urbano do transporte coletivo
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Fotos: Divulgação Novolhar
Várias mãos sobre o volante de um ônibus
capítulo que o curitibano conta sobre o transporte coletivo da cidade inclui mais alguns personagens – pessoas do povo. Nas décadas de 1970 e 1980, anos em que o projeto municipal para o transporte coletivo foi consolidado, novos moradores de Curitiba tomaram a questão do transporte como central na luta popular pela efetivação de direitos humanos e melhores condições de vida. Vindos de várias regiões do país, atraídos pela propaganda de oportunidades e concentrados principalmente na região sul de Curitiba, os moradores passaram a se organizar em associações de bairros. O transporte coletivo já desempenhava um papel importante no planejamento urbano da cidade como elemento indutor de crescimento. Nessas décadas, com o salto populacional de 500 mil a um milhão de habitantes (dados IBGE, 1999), a demanda pelo aumento e ampliação de linhas e terminais era urgente. “Eu era moradora da periferia e, antes de eu entrar no movimento popular, eu já sentia esse proNOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
MOBIL
blema – ônibus muito cheio, muito longe de casa, preço alto da passagem e poucas linhas”, conta a socióloga e fiscal popular Maria Aparecida Bridi. Os instrumentos de mobilização do movimento popular foram muitos: abaixo-assinados, panfletagens em paradas de ônibus, passeatas, idas à prefeitura, paralisação de ônibus. Em 1985, reuniram 15 mil pessoas no Ginásio Tarumã, com a presença do governador Ney Braga e do
prefeito Mauricio Fruet, para pressionar o município a tornar públicas as contas referentes ao transporte. Cursos de qualificação técnica foram feitos por líderes comunitários para entender tecnicamente o cálculo da tarifa. E junto a técnicos e assessores elaboraram uma planilha alternativa do valor da passagem. Resultado: o movimento popular passou a integrar o Conselho Municipal de Transportes e a Comissão de Verificação de
Fiscais populares dentro do ônibus
LIZAÇÃO: Populares em protesto nos anos 1980
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No ano de 1984, as organizações ligadas ao movimento popular, com a autorização da Prefeitura Municipal de Curitiba, selecionaram e contrataram 33 fiscais populares. Eles exerciam o papel de monitorar o número de embarques e desembarques à procura de irregularidades. Cada fiscal trabalhava 40 horas semanais na fiscalização de 33 linhas por semana.
Custos, em que foram analisadas 30 mil notas fiscais e nomeados 33 fiscais populares (veja box). “A experiência das associações de bairro, reunidas em torno do movimento popular, é claramente uma forma de participação direta no controle do sistema de transporte. Isso mostra que a democratização do transporte coletivo de Curitiba foi uma conquista da população – a democratização das informações, do acesso aos custos, do acesso ao Conselho Municipal de Transporte. O movimento popular provou irregularidades como a supervalorização da tarifa”, relata o doutor em planejamento econômico Lafaiete Neves. O Sistema de Transporte Coletivo da capital é feito de números grandes hoje: 2.260 coletivos, 2,3 milhões de passageiros diários e 240 linhas urbanas – 110 metropolitanas integradas e 75 não-integradas. Como afirma o ex-presidente do Ippuc e da Urbs (Urbanização de Curitiba), Carlos Ceneviva, “a ideia na década de 1970 era começar uma solução em pequena escala, verificar e expandir o resultado daquela ação”. O metrô, segundo o diretor de Transportes da Urbs, Fernando Ghignone, é o próximo passo para atender a demanda crescente de expansão e atendimento aos usuários. Os desafios permanecem – preço alto da tarifa, questões ambientais, alternativas para a população de baixa renda, que não suporta o valor da tarifa na renda familiar, participação da população nas instâncias de decisão, como Conselho Municipal de Transporte (as associações de bairro perderam assento no conselho na segunda metade da década de 1980) . “Eu acredito que os planejadores aproveitam o que o povo levanta. Se hoje tem melhoria, porque foi levado pelo movimento”, diz Manuel Proença, aposentado e participante do movimento no início da década de 1980. A história foi contada e é construída a cada instante, por várias mãos, por entenderem que “o ônibus é veículo das pessoas”, como diz a senhora Ana Francisca, de 69 anos, à espera do “ligeirinho” para ir ao médico. A autora é jornalista em Curitiba (PR)
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Rui Bender
Aeromóvel uma revolução OSKAR COESTER: “Um dia a lógica vai vencer”
Rui Bender
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AUMENTO POPULACIONAL NAS ÚLTI-
mas três décadas vem forçando um crescimento desordenado das cidades. Já não é mais possível atender normas rígidas de planejamento que garantam a mínima facilidade de circulação a seus moradores. Paralelamente, a evolução do setor de transportes está ligada a um aumento no volume de emissão de gases de combustão. Isso tem consequências nefastas tanto para o meio ambiente como para a saúde pública. E o pior é que o número de automóveis vai aumentar nas próximas décadas: 40% em vinte anos. Isso impõe que a sociedade encontre soluções alternativas claras para a mobilidade urbana. Existem essas soluções; elas só carecem de incentivo e de oportunidade para provar suas reais vantagens e desvantagens. Sabe-se que toda novidade demora para ser aceita pela opinião pública. Ela tem um longo período de maturação. “Quanto mais radical o conceito, mais demora”, confirma o engenheiro gaúcho Oskar Coester (70), especialista em aerodinâmica. Mas ele está convencido de que “um dia a lógica vai vencer”. Coester é o idealizador do aeromóvel, um trem sem motor, movido pela força de uma corrente de ar, produzida mediante um motor elétrico. Inteiramente nacional, o sistema foi concebido a partir dos conceitos fundamentais da aviação. Aliás, Coester fora funcionário da Varig. O prin-
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cípio do aeromóvel é singelo. É o mesmo do barco a vela, apenas invertido. Um ventilador subterrâneo suga o ar da atmosfera para jogá-lo dentro de um duto oco sob os trilhos. O ar deslocado no túnel empurra uma placa de propulsão, espécie de vela virada de cabeça para baixo, colada ao veículo. Leve e ágil, o aeromóvel tem quatro vezes menos peso morto em relação à carga útil, isso comparado a qualquer veículo que anda sobre trilhos. Sob o ponto de vista do impacto ambiental, o aeromóvel provou ser extremamente silencioso. Além disso, a emissão de gases poluentes é nula. A ideia nasceu na década de 1960, quando Coester morava no Rio de Janeiro. As horas perdidas no trânsito inspiraram o inventor a cogitar um meio de locomoverse com maior rapidez na cidade. O sonho virou obsessão e assim se transformou em realidade. Seu primeiro ensaio aconteceu em 1977. Foi construído para testes o primeiro veículo a fim de avaliar o comportamento e o desempenho energético. Em 1980, virou sensação na Feira Mundial de Tecnologia em Hannover na Alemanha. Finalmente, em 10 de abril de 1983, o veículo fez sua primeira viagem com sucesso numa linha-piloto construída em Porto Alegre. Totalmente automatizado e com duas estações, hoje o aeromóvel faz apenas viagens de teste numa via de aproximadamente 1 km de extensão. É um veículo de 26 metros de comprimento com capacidade para transportar 300 pessoas.
Em 1986, um grupo da Indonésia visitou a linha-piloto em Porto Alegre e mostrou interesse em construir um sistema de aeromóvel em Jacarta. Foi então construído um anel de 3,2 quilômetros, com seis estações e três veículos, no interior de um parque ecológico. Foi inaugurado em 1989. É a única operação comercial do veículo, que já transportou mais de 3 milhões de passageiros. Coester continua tentando viabilizar seu invento, considerado uma das maiores inovações no ramo dos transportes nos últimos tempos, mas até agora sem sucesso. Entretanto, ele não perde a esperança, pois acredita que “toda inovação leva tempo para ser aceita”. De qualquer forma, ele almeja dar sua contribuição para melhorar a qualidade de vida nas grandes cidades. Um pouco desse sonho vai realizar-se com o relançamento do já velho conhecido dos porto-alegrenses, hoje parado próximo ao Gasômetro. Um novo aeromóvel vai ser instalado no campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) até o início de 2010 para o transporte interno de estudantes e professores da universidade. Será um trajeto de 1,5 mil metros para atender até 6 mil passageiros por hora. A ideia é recolocar o veículo no mercado. Uma boa oportunidade para isso é a Copa do Mundo de 2014. O aeromóvel poderia ser proposto como alternativa em mobilidade para diversas capitais brasileiras. O autor é jornalista em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
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História
Para Darwin Fritz Müller escreveu “Para Darwin”, um apaixonado texto em defesa da Teoria da Evolução.
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Imagem de Charles Darwin montada para a Time Magazine
Cézar Zillig
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IA 12 DE FEVEREIRO TRANSCORREU
o 200º aniversário de Charles Robert Darwin. Dia 24 de novembro transcorrerá o150º aniversário do lançamento de seu famoso livro, mundialmente conhecido como “A Origem das Espécies”. Por tudo isto, convencionouse denominar 2009 de “Big Year”, um ano inteiro em que se reverenciará a memória desse grande homem e seu trabalho. Em meio a essa festa, cabe-nos, como brasileiros, ressaltar a importância que o trabalho de Fritz Müller teve para a consolidação das noções propostas por Darwin em seus primeiros dias. Como brasileiros e catarinenses, pois Fritz Müller viveu a maior parte de sua vida nesse canto do mundo, para onde veio por opção pessoal. Nascido na Alemanha, onde estudou filosofia e medicina, migrou para o Brasil em 1852, aos trinta anos de idade. Naqueles dias, o ensino da filosofia compreen-
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dia conhecimentos mais amplos, inclusive história natural. Nem bem completava quatro anos residindo na colônia do Dr. Blumenau, no vale do Itajaí, onde vivia como simples colono, Fritz Müller recebeu um convite do presidente da província para atuar como professor de matemática do liceu local, uma vez que uma epidemia tinha dizimado o quadro de mestres jesuítas. O cargo foi aceito principalmente porque lhe oferecia a possibilidade de se dedicar às pesquisas biológicas da região, de seu mar, nas horas vagas. Em 1861, quando Fritz Müller andava meio aborrecido, saudoso do Vale do Itajaí, chega-lhe às mãos, enviado por um amigo na Alemanha, o livro de Darwin. Então, poucos tinham melhores condições de entender como Fritz Müller o alcance da revolução que a introdução da nova noção provocava. Afinal, a noção de que as espécies animais e vegetais evoluíam espontânea e len-
tamente enquanto a natureza preservava as melhor dotadas – e as menos adaptadas, menos competitivas, iam gradativamente desaparecendo – era de uma genialidade estonteante. Até então, a atividade dos pesquisadores da história natural se limitava a descrever espécimes e a encaixá-los na classificação proposta por Lineu (botânico, zoólogo e médico sueco, criador da nomenclatura binominal e da classificação científica). Uma chatice. Com a nova noção, tudo se modificou. O objetivo dos pesquisadores passou a ser muito emocionante: desvendar o que cada detalhe de um organismo significava da perspectiva evolutiva. A cor, a forma, o canto, os hábitos etc. de um animal têm alguma explicação, uma razão de ser. Desvendar esse pequeno mistério nem sempre é fácil. Animado com a teoria proposta por Darwin, Fritz Müller decidiu testá-la de NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
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alguma maneira. Depois de ponderar diversos fatores, optou por estudar o desenvolvimento larvar da classe dos crustáceos, que compreende os siris, caranguejos, camarões etc., animais abundantes nas proximidades de sua casa na então Praia de Fora de Desterro, hoje baía norte de Florianópolis. Depois de anos de trabalho árduo, Fritz Müller reuniu suas conclusões num livrinho chamado “Für Darwin” (Para Darwin), publicado em 1864 em Leipzig. O modesto livrinho de Fritz Müller acabou por ser o primeiro trabalho publicado na Europa contendo pesquisas de campo, consubstanciando a proposta de Darwin. Não bastasse isso, foi de suas páginas que Ernst Haeckel tirou subsídios para formular o que ele chamou de “Lei fundamental da Biogenética”. Tal “lei” postulava que o desenvolvimento do indivíduo, desde a fase embrionária até a senescência, faria uma “recapitulação” das fases evolutivas que sua própria espécie teria percorrido. Ou seja: “A ontogenia recapitula a filogenia”. Ontogenia é o desenvolvimento do indivíduo, e filogenia o desenvolvimento evolutivo de sua espécie. Darwin ficou encantado com o inesperado apoio vindo de alguém perdido nas selvas do sul do Brasil imperial. Entrou em contato com Fritz Müller, e daí nasceu uma amizade nutrida com troca constante de cartas, que só a morte de Darwin, em 19 de abril de 1882, encerrou.
FÜR DARWIN: O biólogo alemão Fritz Müller foi um colono entre colonos na Colônia do Doutor Blumenau, no Vale do Itajaí. Também na Ilha de Santa Catarina ele juntou evidências para sua pesquisa. Do meio da floresta atlântica retirou provas para defender a Teoria da Evolução de Charles Darwin.
Trocaram mais de oitenta cartas. (De onde escrevo, não disto mais que duzentos metros de onde repousam os restos de Fritz Müller.) O autor é médico e escritor em Blumenau (SC)
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Testemunho
No coração da selva Chico Araújo
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quer um. Aos 84 anos – completados em novembro de 2008 –, ele mantém o carisma e o costume de distribuir chocolates aos visitantes. Assim é o bispo dom Ludwig Herbst, ou simplesmente dom Luís, como é carinhosamente chamado em Cruzeiro do Sul, no Acre, onde vive há 55 anos. Do porto do Rio de Janeiro, onde desembarcou escondido na terceira classe de um navio, o recémordenado padre Ludwig – que fugia do nazismo de Adolf Hitler – levou vários dias, a bordo de um velho avião da Força Aérea Brasileira, para colocar os pés em Cruzeiro do Sul. Antes de chegar ao vale do Juruá – a região mais ocidental do Brasil – com seus 28 anos de idade, dom Luís fez parte da história de seu país natal: a Alemanha. Nascido em Bardenberg, hoje Aachen, o menino Ludwig sonhava com a vida religiosa desde tenra idade. Aos 12 anos, ingressou no Seminário Menor dos Espiritanos, em Broichweiden, perto de sua casa, e depois passou por Knechtsteden e Donaueschiningen. Mas a vida religiosa dele foi abruptamente interrompida quando chegava aos 19 anos. Era 1943. Seu país estava em plena Segunda Guerra Mundial. É nesse cenário caótico que o jovem Ludwig Herbst, filho de um trabalhador das minas de carvão e de uma costureira, largou o seminário para servir às forças do ditador Adolf Hitler. E, por um milagre, não foi mais uma vítima da própria guerra. Com o fim da guerra, o jovem Ludwig pôde retornar ao seminário. Em setem28
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VOZ MANSA E SERENA SEDUZ QUAL-
bro de 1946, um ano após o fim da batalha e com a Alemanha derrotada, fez sua primeira profissão de fé em Menden, Sauerland. Após cinco anos de estudos, foi ordenado padre na cidade de Knechtsteden. Um ano depois, em 1952, o recémordenado padre Luís deixou a Alemanha, embarcou em um navio e cruzou o Estreito de Gibraltar com destino ao Brasil. Chegando ao Brasil, o padre Luís Herbst foi mandado diretamente para a Amazônia. Seu destino: Cruzeiro do Sul, no Acre, onde passou a atuar ao lado do também padre alemão Henrique Rüth como missionário no vilarejo de Porto Walter, hoje município. Atuou como missionário entre 1953 e 1967, quando se tornou vigário-geral da Prelazia do Alto Juruá. Doze anos mais tarde, foi nomeado bispo coadjutor de Cruzeiro do Sul e, em 1980, com o lema Veritas liberabit vos – A verdade vos libertará (João 8.32) –, padre Luís Herbst foi ordenado bispo da cidade que escolhera para viver e propagar o evangelho. Depois de meio século de trabalho dedicado aos pobres do Juruá, dom Ludwig, ou dom Luís, teve que se aposentar aos atingir 75 anos, idade-limite imposta pelo Vaticano. Mesmo assim, ele não saiu da cidade. Permaneceu em Cruzeiro
do Sul, onde todo domingo celebrava a missa na Catedral Diocesana Nossa Senhora da Glória. Agora, d. Luís Herbst não celebra mais na catedral. A saúde não lhe permite caminhadas longas. Ele tem cinco pontes de safena e problemas cardíacos, sua pressão arterial oscila bastante e ainda sofre de diabetes. Mesmo nessas condições, dom Luís recebe seus visitantes — conhecidos ou desconhecidos — com um sorriso largo no rosto e o bom humor que lhe é peculiar. Conta suas histórias de vida no Juruá e, em determinados momentos, deixa transparecer que se sente muito sozinho. O bispo vive em uma casa caprichosa, construída pelas irmãs franciscanas nos fundos do Seminário Menor Diocesano de Cruzeiro do Sul. Sentado numa cadeira ao lado de uma exuberante samambaia, sempre a sós, o bispo costuma revirar diariamente os jornais da Alemanha — em língua local para, segundo ele, “não perder o vínculo com sua terra”. Dom Luís Herbst, que adotou a Amazônia como sua terra, vive atualmente sob os cuidados especiais de médicos e da irmã franciscana Maria da Paz. Afirma estar “preparado para a morte”. “Deixa ela [morte] vir, não chame ninguém irmã, nem os médicos”, falou Luís para a irmã Maria da Paz. “Dom Luís diz que a morte será seu conforto, já que o céu é um paraíso”, conta a irmã, comentando sobre a solidão dele. Para ele, o Acre é “o melhor lugar do mundo para morar”. Confessa que “não sente falta da confusão que é Rio Branco, o barulho, a agitação incomoda”. Mas tem uma paixão reveladora por Cruzeiro do Sul. “Ele [bispo dom Luís] era um encantador do povo com suas palavras. Com o evangelho ele emocionava a multidão e tinha prazer em evangelizar. Sempre foi sua maior paixão, sua maior alegria. Suas pregações cativam demais, são do coração, com entusiasmo”, conta a irmã Maria da Paz. O autor é jornalista da Agência Amazônia de Notícias – www.agencia amazonia.com.br NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
Justiça
Sem negar cidadania Antonio Carlos Ribeiro
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GORA HÁ APENAS INDÍGENAS VIVEN-
do na área Raposa Serra do Sol em Roraima. Mas, após a demarcação em 2005, começaram os pleitos judiciais, até o Supremo Tribunal Federal manter a demarcação contínua da área. Durante a disputa, arrozeiros e ruralistas demonstraram preconceito e desrespeito pelos indígenas. Esses fazem parte de cinco etnias. Os macuxis vivem nas planícies da região e criam gado em pequenas, médias e grandes extensões. Isolados, os ingaricós ocupam as montanhas na Serra do Sol, região de difícil acesso e sem outras culturas. Além desses, há os uapixanas, taurepangs e patamonas. Para o promotor de Justiça Rinaldo Almeida Segundo, o ato de demarcação baseou-se no artigo 231 da Constituição, que garante a propriedade às comunidades indígenas e o mapeamento feito a partir de estudos antropológicos e históricos da presença indígena. Nisso baseou-se o Supremo Tribunal Federal para decidir pela permanência dos índios e pelo ressarcimento das benfeitorias dos colonizadores. O mais importante é o precedente, já que essa demarcação não é o único caso e ela dá aos índios o direito de procurar a
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justiça, especialmente diante da resistência, má vontade e até preconceito da sociedade em ver os indígenas como pessoas com direitos. Tende a “privilegiar quem produz riqueza, e isso é legítimo. Mas só gerar riqueza não é suficiente. É preciso gerar justiça também. E quando essas estiverem em oposição, devemos ficar com a justiça”, enfatizou o promotor. Os indígenas devem “viver tradicionalmente, com área para morar, plantar, caçar e pescar, e a sociedade deve respeitar isso”. O Estado falha “à medida que ocorre a falsificação de títulos de propriedade e é lento para defender essas populações, permitindo que outros se instalem, vendam propriedades, ocupem a terra por 20 ou 30 anos, tornando difícil aplicar a lei”, e postula que quem “invadiu propriedade indígena, furtou madeira ou bens minerais deve ter reação ágil e efetiva”. José Eduardo Moreira da Costa, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), explicou que a identificação da terra é regulamentada pelo decreto 1775, o artigo 235 da Constituição e a portaria 14 do Ministério da Justiça. Desde o Brasil Colônia, já existia proteção à terra indígena, como na Lei de Terras, de 1850, que assegura que a comunidade indígena não pode ser remo-
vida de seus aldeamentos. “Os pequenos agricultores serão removidos e assentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em regiões próximas”, assegura o indigenista. “A terra tem uma conotação sentimental, uma relação afetiva muito grande”, continua José Eduardo, que explica reações violentas como as dos arrozeiros de destruir benfeitorias, mesmo após a indenização. Se o valor é contestado, há a recorrência à Justiça, que estabelece perícia para confirmar o laudo antropológico e o valor estipulado para ressarcimento. Os índios “sentem-se ameaçados porque há cemitérios, lugares sagrados, gerações de ancestrais nascidas ali”. Por isso “negar esse passado soa à estratégia para não garantir direitos”, enquanto no “cultivo tecnificado, muitas vezes, o proprietário nem mora lá; trata-se de uma empresa estabelecida, que se muda quando não há mais lucro. Nesse caso, há também uma forte relação, mas é com o capital investido”. Fazer valer interesses contra a cidadania é uma marca histórica das elites. Com a escravidão fomos o último país a abandonar essa desumana exploração do trabalho. E nem percebemos que a monarquia, sustentada pelas elites, caiu em 1889, um ano após a abolição da escravatura. O autor é teólogo e jornalista em Cuiabá (MT)
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Identidade étnica
O perseverante povo Chiquitano Áurea Cavalcante Santana e Ema Marta Dunck Cintra
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NTES DE 2002, OS BRASILEIROS NÃO devem ter ouvido falar do povo indígena Chiquitano. Muitos foram os motivos que fizeram com que esse povo ficasse por tanto tempo longe das estatísticas. Entre tantos, podemos citar a ocupação e a usurpação de seu território, a escravidão pelos colonizadores, o massacre cultural e as relações interétnicas, permeadas por conflitos e preconceitos. Hoje os Chiquitano brasileiros fazem parte do grupo de indígenas contemporâneos que lutam por reconhecimento étnico. A história de resistência desse povo é um exemplo de perseverança e fé. O território tradicional dos Chiquitano localizava-se ali onde hoje é a divisa entre o Brasil e a Bolívia. A disputa entre as coroas portuguesa e espanhola provocou a separação do povo. Na Bolívia, aproximadamente 60 mil indígenas Chiquitano ha-
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bitam hoje a região da Gran Chiquitania. No Brasil, sua população aproxima-se de duas mil pessoas, assentadas no extremo sudoeste do estado de Mato Grosso, nas proximidades da fronteira com a Bolívia, nos municípios de Cáceres, Porto Esperidião, Pontes e Lacerda e Vila Bela. Os indígenas Chiquitano ficaram durante décadas afastados das estatísticas brasileiras e “apareceram” recentemente em razão de um estudo de impacto ambiental feito por ocasião da construção do gasoduto Brasil-Bolívia. O grupo de estudo que localizou as primeiras comunidades no Brasil teve muita dificuldade para encontrar algum morador que assumisse sua identidade étnica. Em outubro de 2003, em função de pesquisas para o mestrado em Linguística, iniciamos estudos linguísticos nas comunidades de Acorizal e Fazendinha. No início dos estudos, os dados da pesquisa mostraram que o conflito de identidade linguística e territorial estava muito pre-
sente. O contexto social externo provocara, nesses indígenas, atitudes negativas em relação à língua e à identidade étnica. Eles procuravam esconder aquilo que os diferenciava dos “não-índios” – muitos não se reconheciam como indígenas. Porém a negação da identidade étnica também era uma questão de sobrevivência, pois tiveram de escondê-la para que pudessem ser aceitos pela sociedade envolvente. Nesse período de convivência, a organização e as ações dos membros das comunidades em relação ao processo de reconhecimento étnico assumiram proporções muito interessantes. As mudanças são muitas, considerando o curto período de tempo de reconhecimento pelas instituições públicas. Em 2007, mais uma comunidade Chiquitano, a Vila Nova Barbecho, passou a participar das atividades de estudos e pesquisas linguísticas. Atualmente, os estudos linguísticos continuam e mantêm-se debates com aquelas comunidades sobre as políticas linguísticas, envolvendo a definição de uma ortografia para a língua Chiquitano brasileira e sua inserção nas escolas daquelas comunidades. Hoje já se veem crianças cantando na língua, encenando teatro, elaborando glossários. Os cantos, as histórias contadas pelos mais velhos, a participação daqueles que se lembram da língua nas aulas têm permitido trazer à tona um mundo identitário que não é mais o mesmo de seus antepassados, mas que traz em sua “reformulação” as marcas do povo Chiquitano. Pode-se perceber hoje que, apesar do que queriam os opressores, eles estão se recusando a desaparecer ou a identificar-se com a população regional. É bom saber que os Chiquitano brasileiros conseguiram sobreviver fisicamente ao colonialismo e assumem, neste momento, a responsabilidade de reinventar o passado, reelaborando, culturalmente, muito do que lhes foi infligido, tomando parte nessa comunidade cultural, no seu pertencimento étnico. Áurea é linguista e professora da FUNAI em Cuiabá (MT). Ema é linguista e coordenadora do Ensino Médio no Estado do Mato Grosso NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
Profissões
Multiprofessora Ao longo de 27 anos, a professora Renida Lilge exerceu o magistério numa classe multisseriada. Enquanto uma turma trabalhava, ela explicava o conteúdo à outra. Enquanto eles faziam educação física, ela varria o pátio. Carine Fernandes
de São José do Hortêncio (RS), na Escola Municipal Nossa Senhora do Rosário, ainda é uma realidade. A professora Cláudia Maria Dill, 30 anos, iniciou sua carreira nessa instituição em 2003. Lecionou para um grupo menor de alunos: eram sete de 1ª e 2ª séries. Também foi diretora da escola. Ela define a experiência como diferente e ao mesmo tempo interessante e ensinante. “Você está ali, interagindo com crianças de idades variadas, em séries distintas, conhecendo conteúdos específicos diariamente e ainda trocando informações num ritmo acelerado. São necessários mui-
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RA MARÇO DE 1966. A PROFESSORA
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A autora é jornalista em Porto Alegre (RS)
RENIDA: Tinha que pegar na mão dos menores para ajudar a escrever enquanto os outros aguardavam
Arquivo Pessoal
Renida Lilge preparava-se para seu primeiro dia de aula na Escola General Rondon, localizada na zona rural do 3º Distrito de São Lourenço do Sul (RS). Ao chegar na escola, a surpresa: ela substituiria uma professora em uma turma de 105 alunos de 1ª a 5ª séries. “Não foi nada fácil. Tinha que pegar na mão dos pequenos para ajudar a escrever, enquanto os maiores aguardavam”, recorda Renida, hoje com 60 anos, aposentada desde 1995. Foram 27 anos de magistério em classe multisseriada, ou seja, com alunos de mais de uma turma. As aulas eram regradas e organizadas: enquanto uma turma trabalhava, ela explicava o conteúdo para outra. Além de professora, Renida também era diretora, merendeira e faxineira. “Era só eu e a turma. Enquanto eles faziam aula de educação física, eu varria o pátio”, lembra. Ela recorda com saudades daquele tempo, em especial do respeito e da valorização dos alunos pelo professor. “O silêncio era tanto, que dava para ouvir o canto dos passarinhos dentro da sala de aula. Além disso, os alunos eram educados. Sempre tinham uma palavra bonita para te dizer”, conta. Comparando a aula daquele tempo com os dias de hoje, a professora reconhece que o antigo sistema prejudicou a aprendizagem. “Fico triste ao pensar que, hoje, com todos os recursos existentes e somente uma turma, os alunos são desinteressados e há problemas na aprendizagem”, ressalta. Mas a classe multisseriada não ficou só na história da educação gaúcha. No interior
ta agilidade, rapidez no raciocínio, criatividade e preparo físico para acompanhar essas aulas”, afirma. Cláudia também não teve problemas com disciplina. As crianças eram obedientes e solidárias. Um dos momentos mais marcantes para a professora aconteceu em uma aula em que duas meninas, uma da 1ª e outra da 2ª série, interagiam a respeito das letras e sílabas em um jogo de alfabetização. “Eu observava as duas trocando informações, quando uma tentava ‘ensinar’ a outra e, num determinado instante, a aprendizagem aconteceu: uma mostrou para a outra como se liam as palavras e a colega leu as palavras. Naquele ato solidário, ela se alfabetizou e dali em diante não parou mais”, recorda. Hoje, Cláudia é diretora de uma creche municipal na mesma cidade, mas ela nunca esquecerá a experiência vivida no início de sua carreira. “A vida é cheia de surpresas, desafios e oportunidades, e cabe a cada um de nós saber agarrá-las e aproveitá-las, sem medo do desconhecido. Foi o que fiz em 2003”, conclui.
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Religiões
Islamismo é uma religião pacífica A fé islâmica, ao contrário do que se diz na mídia internacional, incentiva o entendimento e desencoraja o conflito.
O
ISLAMISMO SURGIU NO ANO DE 622
na Arábia Saudita. Seu fundador foi o profeta Mohammad ou Maomé, que reuniu a base da fé islâmica num conjunto de versos conhecido como Alcorão – escrituras que foram reveladas a ele por Deus por intermédio do anjo Gabriel. A aceitação de um Deus único é idêntica à fé de judeus e cristãos. Deus tem o mesmo nome no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. “Todos nós somos mulçumanos, pois acreditamos no mesmo criador”, afirma o sheikh Armando Hussein Saleh, da Mesquita Brasil, em São Paulo. Em árabe, islã significa “submissão” e refere-se à obrigação do muçulmano de seguir a vontade de Deus. O termo está ligado a outra palavra árabe, salam, que significa paz – o que reforça o caráter pacífico da fé islâmica. Esse termo surgiu por obra do profeta Maomé, que dedicou sua vida à tentativa de promover a paz em sua Arábia natal. Mas se engana quem pensa que todos os muçulmanos são árabes. Essa é uma distorção a respeito do islã. O Oriente Médio reúne somente cerca de 18% da população muçulmana no mundo – sendo que turcos, afegãos e iranianos (persas) não são sequer árabes. Outros 30% de muçulmanos estão no subcontinente indiano, 20% no norte da África, 17% no sudeste da Ásia e 10% na Rússia e na China. Há minorias muçul-
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manas em quase todas as partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos e no Brasil. A maior comunidade islâmica do mundo vive na Indonésia. Os muçulmanos estão divididos entre sunitas e xiitas. Os sunitas formam o tronco principal da religião e reúnem cerca de 90% dos muçulmanos no mundo. Os xiitas surgiram como movimento político de apoio a Ali, primo de Maomé, como herdeiro legítimo do poder no islã após a morte do profeta. Cinco pilares do islamismo formam a estrutura de vida do seguidor, que deve praticar esses princípios básicos. Todo mulçumano deve declarar a fé intitulada chahada, que significa: “Não há outra divindade além de Deus, e Mohammad é seu mensageiro”. Realizar as cinco orações durante cada dia no ritual chamado salat é obrigatório. Como não há autoridades hierárquicas, padres ou pastores, são os sheiks ou membros da comunidade com grande conhecimento do Alcorão que dirigem as orações. Os versos são recitados em árabe, e as súplicas pessoais são feitas no idioma de escolha do muçulmano. As orações são feitas ao amanhecer, ao meio-dia, no meio da tarde, no cair da noite e à noite. O ritual pode ser cumprido em qualquer lugar. A solidariedade é uma obrigação do muçulmano, que deve doar parte de sua riqueza anualmente. “Se todos os mu-
Lilian Bites
Paula Oliveira
RELIGIOSIDADE: Para o sheikh Armando (em entrevista a Paula
çulmanos praticassem o zakat, não haveria fome no mundo”, diz o sheikh. Segundo a legislação islâmica, 2,5% de tudo o que um mulçumano lucrar em um ano é destinado para ajudar o próximo. “É um direito de quem precisa e uma obrigação de quem tem condição financeira”, completa o líder religioso. Jejuar durante o mês sagrado do Ramadã é um dos preceitos do muçulmano, que nesse período deve permanecer em jejum do amanhecer ao anoitecer, abstendo-se inclusive de bebida e sexo. As exceções são pessoas com algum tipo de incapacidade física – elas podem fazer o jejum em outra época do ano ou alimentar uma pessoa necessitada por cada dia que o jejum foi quebrado. Outro compromisso para quem tem saúde e condição financeira é a peregrinação a Meca, o haj, onde nasceu Maomé, criador do islamismo. A participação da mulher mulçumana na sociedade pede uma atitude mais reservada. No entanto, segundo a seguidora Magali Vaz de Lima, as regras não são consideradas opressoras, ao contrário do que muitos supõem. “O islamismo pede que a mulher se cubra, mas essa é uma prática obrigatória na mesquita. NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
Paula Oliveira
Oliveira), todos os palestinos e israelitas têm direito a um Estado
Quanto aos nossos direitos, são iguais aos dos homens. A diferença é que a mulher, mesmo que trabalhe fora, tem sua obrigação de casa para dentro, enquanto o homem é quem cuida do sustento da família.” Outra reflexão que merece destaque aborda a manipulação da mídia nos acontecimentos que envolvem terrorismo. “A
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Interior da mesquita de São Paulo
mídia usa contra nós os homens-bomba, que se fazem de mártires. Esclareço que Deus proíbe o homicídio e o suicídio. O islamismo diz que salvar uma pessoa inocente é como salvar a humanidade. Os terroristas agem contra todas as nossas leis”, afirma Magali Vaz. Já o sheikh Armando, ao opinar so-
bre os conflitos na Faixa de Gaza, afirma que o mundo pertence ao criador e que todos os judeus e palestinos têm direito a um Estado. Os conflitos são questões políticas e econômicas. “Se houvesse fé e religiosidade lá, não haveria guerra”, conclui o sheikh. A autora é jornalista em São Paulo (SP)
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História
A lição de Armstrong Clovis Horst Lindner
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EPOIS DE SENTIR SEU CORPO CO-
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Um feito magnífico. Muitos não acreditaram no que seus olhos viam na TV. Muitos negaram-se a crer no feito ainda muito tempo depois. Até hoje muitos
NOVA CRIATURA: Não temos outros quarenta anos para aprender a lição de Armstrong
Reproduções NASA/Novolhar
lado ao banco da apertada cabine da Apolo 11, alojada na ponta do poderoso foguete Saturno V durante o lançamento no dia 16 de julho de 1969, e após passar quatro dias no espaço, o astronauta americano Neil Armstrong estava ansioso. Junto dele no módulo lunar estava também o astronauta Edwin Aldrin. Na Apolo 11, em órbita da Lua, estava o terceiro membro da equipe: o astronauta Michael Collins. No comando do módulo lunar, Armstrong havia acabado de pousar na Lua no dia terrestre de 20 de julho de 1969. Prestes a abrir a escotilha, ele seria o primeiro ser humano a colocar os pés na fofa superfície do satélite da Terra. No distante planeta azul, visível no horizonte, 1,2 bilhão de terráqueos estavam grudados às telas de suas TVs. Ele sabia bem o inacreditável momento histórico que protagonizava. E também já sabia o que iria dizer tão longe de casa. Quando sua bota de sola canelada tocou o poeirento solo lunar, ele disse: “É um pequeno passo para um homem, mas um gigantesco salto para a humanidade”. Uma frase tão emblemática quanto o “terra à vista” dos portugueses, quando esses avistaram os costados de Porto Seguro. Por cerca de duas horas e meia, Armstrong e Aldrin caminharam, pularam, fotografaram e realizaram diversos experimentos em solo lunar. Eles seriam seguidos por vários outros, mas nenhum deles jamais os superou no status de heróis e de figuras humanas especiais, muito especiais... e únicas.
tentam juntar provas de que aquilo tudo foi uma grandiosa encenação e procuram “evidências” do que classificam como a “maior fraude do século 20”. O fato é que o extraordinário feito de 40 anos atrás levou os Estados Unidos da América a superar seus arquirrivais na mais louca e arriscada corrida da história da humanidade: a corrida espacial. Os soviéticos haviam iniciado com larga vantagem quando colocaram o primeiro homem em órbita da Terra mais de dez anos antes disso. “A Terra é azul”, extasiara-se Gagarin então. A própria NASA admite hoje que – apesar dos muitos momentos de suspense e até de terror, com gastos estratosféricos, alguns desastres, diversas vítimas e muita improvisação – teve muito mais sorte do que juízo. Se aquela disputa insana valeu a
NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
ARMSTRONG: “Um pequeno passo para um homem, mas um passo gigantesco para a humanidade”
pena? Talvez. Além de algumas lições interessantes sobre os astros, hoje russos e americanos deixaram a infantilidade de lado e trabalham em projetos de parceria no espaço. A Lua? Bem, deixou de ser um lugar interessante para ambos. A não ser que,
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algum dia, sirva de “plataforma” para voos mais altos. E hoje, apesar da frase de efeito de Armstrong, a humanidade tem certeza de que ir a Júpiter, a Marte ou a qualquer outro lugar, mesmo que seja muito distante da Terra, na proporção do universo conhecido, será apenas um pequeno
passo para o homem que chegar lá... e para a humanidade também. O passo gigantesco, pelo menos por enquanto, permanecerá refém das obras de ficção científica. Se houve algum passo gigantesco para a humanidade depois das viagens espaciais, então foi a descoberta de que a Terra é o nosso único lar no espaço. Aquela esfera azul flutuando contra o denso fundo negro do universo é nossa casa. Ninguém viu isso de forma mais eficaz do que Armstrong, Aldrin e Collins... e muitos outros. Todos, sem exceção, voltaram maravilhados. Numa ampliação do significado da definição do novo homem descrito na Bíblia, quem teve aquela visão única transformou-se em nova criatura. Passou a perceber, de maneira mágica, que tudo o que temos que fazer é preservar nossa casa. Talvez muitos mais deveriam ver a Terra do espaço, para que a humanidade mude sua relação predatória com o único planeta habitável que conhece e pode alcançar com seus pequenos ou gigantescos passos. Quarenta anos já se passaram desde que a primeira criatura humana experimentou a mais maravilhosa de todas as visões. Não temos outros quarenta anos para aprender a lição de Armstrong. O autor é teólogo e editor da Novolhar em Blumenau (SC)
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Conto
O macaco que quis ser escritor satírico Augusto Monterroso
N
A SELVA VIVIA, UMA VEZ, UM MACA-
os outros animais, era bem recebido em toda parte e aperfeiçoou a arte de ser ainda mais bem recebido. Não havia quem não se encantasse com sua conversa; quando chegava, era recebido com alegria tanto pelas macacas como pelos esposos das macacas e pelos outros habitantes da selva, diante dos quais, por mais contrários que fossem a ele em política internacional, nacional ou municipal, mostrava-se invariavelmente
Oskar Henriksson
co que queria ser escritor satírico. Estudou muito, mas logo se deu conta de que, para ser escritor satírico, lhe faltava conhecer as pessoas e se aplicou em visitar todo mundo e ir a todos os coquetéis e observá-las com o rabo do olho enquanto estavam distraídas com o copo na mão. Como era verdadeiramente muito gracioso e suas piruetas ágeis divertiam
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compreensivo; sempre, claro, com o intuito de investigar a fundo a natureza humana e poder retratá-la em suas sátiras. E assim chegou o momento em que, entre os animais, ele era o mais profundo conhecedor da natureza humana, da qual não lhe escapava nada. Então, um dia, disse: Vou escrever contra os ladrões. E se fixou na gralha; começou a escrever com entusiasmo e gozava e ria e se encarapitava de prazer nas árvores pelas coisas que lhe ocorriam a respeito da gralha; porém, de repente, refletiu que entre os animais de sociedade que o recebiam havia muitas gralhas, e especialmente uma, que iam se ver retratadas na sua sátira, por mais delicada que a escrevesse, e desistiu de fazê-lo. Depois quis escrever sobre os oportunistas e pôs o olho na serpente, a qual, por diferentes meios – auxiliares na verdade de sua arte adulatória –, conseguia sempre conservar, ou substituir por melhores, os cargos que ocupava; mas várias serpentes amigas suas, e especialmente uma, se sentiriam aludidas, e desistiu de fazê-lo. Depois resolveu satirizar os trabalhadores compulsivos e se deteve na abelha, que trabalhava estupidamente sem saber para quê nem para quem; porém, com medo de que suas amigas dessa espécie, e especialmente uma, se ofendessem, terminou comparando-a favoravelmente com a cigarra, que, egoísta, não fazia mais do que cantar bancando a poeta, e desistiu de fazê-lo. Finalmente elaborou uma lista completa das debilidades e dos defeitos humanos e não encontrou contra quem dirigir suas baterias, pois tudo estava nos amigos que sentavam à sua mesa e nele próprio. Nesse momento, renunciou a ser escritor satírico e começou a se inclinar pela mística e pelo amor e coisas assim; porém, a partir daí, e já se sabe como são as pessoas, todos disseram que ele tinha ficado maluco e já não o recebiam tão bem nem com tanto prazer. O autor é escritor, nasceu na Guatemala e atualmente vive no México. Extraído de www.releituras.com NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
Comportamento
Para viabilizar a integração com mensagens de texto através do celular, o texto do twitter é limitado a 140 caracteres. Cristiano Zambiasi Junior
U
M CONVITE INESPERADO PARA ESCRE-
ver sobre o twitter, esse serviço que virou sinônimo de microblog, fez-me concluir rapidamente que é difícil entender para quem está fora e difícil explicar se você já o utiliza. Antes, porém, um pouco de história para entender a revolução que essa ferramenta está causando. Existem prós e contras em toda a rede social, mas vou comentar apenas o lado bom dessa ferramenta de conteúdo, pois assim como ele, também tenho uma limitação de caracteres. Ao fazer o cadastro no twitter, o usuário diz o que está fazendo no momento e entra na rede. Bom, você começa com cautela, passivo e sem opiniões. Mas o inesperado acontece, e sem querer querendo, você vira um paparazzo seguindo seus amigos, celebridades, meios de comunicação, formadores de opinião, empresas e políticos e coleta informações excelentes e até “intimidades” antes inacessíveis. O mais interessante é que suas twittadas são respondidas (ou não) pela própria WWW.NOVOLHAR.COM.BR
pessoa seguida ou rebatidas por outros seguidores. Isso cria uma mistura de big brother com agregador de notícias, canal de críticas e boatos, tribuna de apelo e um oásis de conhecimento e anexos nesse caos que é a internet. A qualidade da informação depende de quem você segue e quem é seu fiel seguidor. É um filtro espetacular em que você está criando experiências individuais, ainda que em caráter coletivo. Surge também uma necessidade incontrolável de twittar sobre tudo e de qualquer lugar. Um texto no twitter é limitado a 140 caracteres, limitação que serve para viabilizar a integração com mensagens de texto via celular (SMS), transformando o twitter numa plataforma acessível a 126 milhões de brasileiros. Essa opinião instantânea pode virar chatice exibicionista (assis-
ta no youtube o vídeo hilariante e cruel intitulado: O “maravilhoso” mundo do twitter) ou ser um feedback poderoso nas mãos da mídia. Um bom exemplo é o que faz o apresentador Marcelo Tas (92.690 seguidores), do programa CQC, utilizando o filtro de conteúdo para saber o que o público está achando do seu programa em tempo real. Enquanto Tas julgava o Miss Brasil 2009, twittava escondido em seu telemóvel. Mas cuidado, não abuse da sorte contando tudo a todos, pois um norte-americano teve sua casa roubada logo depois de postar que estava de férias. Arrisco um palpite aqui ao dizer que o twitter lembra o blog no início: virou moda, mas só sobreviveu quem realmente tem algo a dizer. Então mantenha seus seguidores abastecidos com conteúdo pertinente, dando respaldo ao título de “esse sabe das coisas”, ou melhor ainda, “esse sabe antes das coisas” . É difícil determinar o futuro de algo que está apenas começando. Com a popularidade em alta e o imediatismo da informação, o tal do microblog do passarinho azul parece cair como uma luva em nosso cotidiano, pois estamos acostumados a receber dados simultaneamente de várias fontes e ler frases em milésimos de segundos. Agora preciso dar um tempo e acessar minha página para ver o que estava acontecendo no mundo enquanto escrevia este texto. Abs twitters! O autor é publicitário e diretor de arte em Blumenau (SC)
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Iniciativas de paz
Sofrimento compartido A palestina Aisheh Al-Khateep e o judeu Ben Kfir falam do mesmo sofrimento: a perda de um ente querido. A dor trocada e compartida é o principal motivo de seus encontros na organização que reúne parentes das vítimas do conflito entre judeus e palestinos. Rui Bender
B
EN, O JUDEU, PERDEU UMA FILHA
num ataque suicida de um homembomba árabe. Aisheh, a palestina, perdeu um irmão fuzilado por soldados israelenses. Ambos fazem parte de uma organização não-governamental que promove o diálogo e a reconciliação entre palestinos e judeus que perderam entes queridos no conflito do Oriente Médio. Trata-se do Círculo de Pais – Fórum das Famílias, que desde seu começo em 1995 desempenha um papel importante na busca pela paz na Terra Santa. A organização conta com cerca de 500 participantes, entre eles jovens e adultos que normalmente não teriam a oportunidade de se encontrar e falar sobre seu sofrimento pela perda de um parente. Aisheh Al-Khateep, palestina de Nablus (Cisjordânia), perdeu seu irmão em 1989, morto por soldados israelenses dentro de casa. A perda de seu irmão mudou sua vida, pois ele “era muito importante” para ela. Embora ainda hoje seja difícil de aceitar, admite Aisheh, ela acha que não mataria o soldado que fuzilou seu irmão. Ela acredita na paz. “A pessoa do outro lado é igual a mim”, reconhece. Aisheh recorda que “o profeta Maomé queria boas relações com os vizinhos”.
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A palestina de Nablus soube alguns anos atrás que havia uma organização que reúne parentes de vítimas do conflito entre judeus e palestinos. Ela passou a frequentar esse grupo e percebeu que judeus e palestinos compartilham o mesmo sofrimento. Por isso ela consegue entender a dor de Ben Kfir, judeu de Asquelom (Israel), que em 2003 perdeu sua filha, que era militar, num ataque de homem-bomba. Ela acabara de sair de seu quartel e estava numa parada de ônibus quando se aproximou um homem-bomba e mandou tudo a seu redor para os ares. Com ela morreram mais oito soldados israelenses. Ben admite que, assim que soube da notícia, perdeu a vontade de viver. Noites sem dormir deram-lhe a oportunidade de refletir. Concluiu, enfim, que vingança não seria a solução. Mas trazer a paz para perto das pessoas comuns. Naquela mesma época, foi convidado para um encontro do Círculo de Pais. A princípio, ele não sabia se queria ver algum palestino pela frente. Mas acabou indo ao encontro e conheceu palestinos que também haviam perdido parentes. Ben reconhece que o Círculo não é um grupo político. “Somos apenas cidadãos de ambos os lados. Somos dois povos que vivem numa faixa estreita de terra
DIÁLOGO: “O muro não pode prevenir ataques suicidas. Temos
entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo”, descreveu Ben a um grupo de jornalistas cristãos de vários países, que em março visitou, a convite do Conselho Mundial de Igrejas, a Terra Santa. Ben e Aisheh conversaram com esse grupo num hotel em Jerusalém. Ben entende que paz significa reconciliação, algo que acontece entre pessoas normais. “Reconciliação significa que temos que conversar”, definiu. Ele lembra que a organização Círculo de Pais tenta propagar a ideia da reconciliação entre judeus e palestinos. Somente no ano de 2008, aconteceram mais de mil encontros. Foram promovidos centenas de reuniões entre instituições civis e universidades palestinas e também entre mulheres de ambos os laNOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
Rui Bender
dos. Também foram realizados acampamentos e seminários para jovens judeus e palestinos. “Eles apreciam esses encontros e esquecem as diferenças”, testemunha Ben. O cidadão judeu reconhece que “a sociedade palestina é mais fechada para os encontros”. No outro lado, na sociedade israelense, há muitas pessoas que desejam a paz. Mas Ben não é muito otimista quanto à paz. “Algumas coisas ainda têm que acontecer”, segundo ele. Sobretudo são necessários dois líderes fortes para negociar, e os dois lados devem abrir mão de certos interesses, sugere. Um deles é o muro que Israel está construindo ao longo da fronteira com a Cisjordânia. Serão 725 quilômetros de puro concreto, com uma altura de oito metros. 60% da barreira já estão prontos. “O muro não pode prevenir ataques suicidas. Temos que construir pontes”, comenta. E nisso o diálogo tem um papel importante, pois é “a única solução para qualquer conflito”, argumenta Ben. Levará tempo, mas deve haver esperança, entende. Felizmente, a maioria quer a paz para poder viver tranquilamente. E “essa maioria tem que forçar a minoria a implantar a paz”, arrematou. .
que construir pontes”, ensina Ben Kfir enquanto abraça Aisheh Al-Khateep
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O autor é jornalista em São Leopoldo (RS) e participou do programa de visitação a Israel e Palestina promovido pelo Conselho Mundial de Igrejas em março de 2009
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Espiritualidade
O rosto maternal e paternal de Deus Compreender o significado profundo das figuras da mãe e do pai é um meio de decifrar algo mais do mistério Deus, fonte da vida e da força que a preserva. As boas lembranças do pai e da mãe ajudam-nos a sentir quem é e como é Deus. Romeu Ruben Martini
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IANTE DA EXPECTATIVA DE QUE SE
confirme o desejado, é comum a pessoa dizer: Deus é pai! Quando confessam a fé, as comunidades cristãs proclamam: Creio em Deus, Pai. Uma das orações mais conhecidas inicia assim: Pai nosso. Em debates teológicos, é crescente a afirmação de que Deus também é mãe. Por isso há quem insista que se fale de Deus em sentido neutro ou, se for invocado como Pai, que também seja relacionado à figura da mãe. Nesse caso, diríamos: Deus, Pai e Mãe. Este número de Novolhar chega às suas mãos entre maio, mês do Dia das Mães, e agosto, mês do Dia dos Pais. Tentemos compreender Deus e dele nos aproximar um pouco mais a partir do significado que têm para nós as figuras da mãe e do pai. 40
Mãe e pai lembram nossa mãe e nosso pai, minha mãe e meu pai, sua mãe e seu pai. E, nesse ponto, se formos bem sinceros, ao menos para a maioria, mãe e pai reavivam recordações e vivências com um significado profundo. Pensemos, por exemplo, nas palavras colo, instrução, sacrifício, angústia, espera. Lembrar do colo da mãe é como sentir o cheiro de carinho e proteção, talvez por ser o lugar marcado com nossas lágrimas. Instrução remetenos à herança de cantos, orações e lições de vida, legada pela mãe e pelo pai. Sacrifício, angústia e espera reavivam as incontáveis horas que a mãe ficou sem poder dormir por causa da febre da filha, diante da dúvida, e, na adolescência do filho, por causa dos medos que a noite provoca. Mãe, pai – verdadeira mãe e verdadeiro pai –
CUIDADO: Saber que Deus – como mãe e como pai – está
lembram isso e muito mais. Mãe, pai, na verdade, são vidas dedicadas para que outra vida possa existir. Mãe, pai, para a mãe e o pai, significam prazer, alegria, realização. Qual o pai que não sente prazer ao ver seu filho ou sua filha crescer, desenvolver-se, dar o primeiro passo, revelar o primeiro dente, balbuciar a primeira palavra? Qual a mãe que não se sente realizada ao ver o fruto de seu ventre aprender as primeiras letras, juntar as letras numa primeira palavra, formar a frase do primeiro cartãozinho? Mãe e pai ainda nos remetem a dor, tristeza, desespero. Pensemos na dor da mãe e NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009
filhos, assim o Senhor se compadece dos que o temem” (Salmo 103.13). A mãe e o pai de verdade cuidam, protegem, alegram-se, sentem prazer, dor e tristeza, sacrificam-se, sim, chegam ao extremo de dar a vida pelo bem e futuro do fruto de seu amor. Há tantos exemplos de pais que afogaram porque saltaram nas águas turbulentas para salvar o filho. Há tantas mães que morreram porque fizeram de seu corpo um escudo para proteger a filha da ação violenta. Mesmo que uma mãe venha a esquecer-se de ser mãe e olvide o próprio filho, Deus jamais se esquece dos seus. Ainda que um pai chegue ao ponto extremo de expulsar a filha de casa, Deus é compassivo, perdoa, concede nova chance, conduz pela mão para que haja um novo começo. Saber que Deus – como mãe e como pai – está conosco é motivo de alegria, de gratidão, de confiança, de esperança, a cada novo amanhecer. Por isso não esqueçamos nos momentos de alegria e, especialmente, nas situações de dor e tristeza: Deus cuida de nós e protege-nos mais do que a melhor das mães e o melhor dos pais. Ainda que a mãe mais atenta e o pai mais coruja se esqueçam do fruto de sua união, Deus não se esquece de nós jamais.
Vivek Chugh
O autor é teólogo e secretário de Formação da IECLB em Porto Alegre (RS)
conosco é motivo de alegria, de gratidão, de confiança, de esperança, a cada novo amanhecer
do pai que perdem o filho por doença, em acidente. Pensemos na dor e no desespero da mãe e do pai que não dispõem do alimento para saciar a filha que chora por causa da fome. E o número dessas mães e pais, sobretudo mães, ainda é alto, altíssimo. Tentemos imaginar a dor das mães que, desesperadas, quase que arrastando o fruto de seu ventre, correm para fugir da guerra, enquanto os pais são obrigados a empunhar armas. Mãe e pai lembram tudo isso e muito mais. Não por acaso, há um dia dedicado às mães, o Dia das Mães, e há um dia dedicado aos pais, o Dia dos Pais. Compreender o WWW.NOVOLHAR.COM.BR
significado profundo das figuras da mãe e do pai é um meio de decifrar algo mais do mistério Deus, fonte da vida e da força que a preserva. As boas lembranças do pai e da mãe ajudam-nos a sentir quem é e como é Deus, em cujo nome somos batizados, que nos congrega no culto e nos reúne em sua Ceia, em cujo nome sepultamos nossos falecidos. Para o profeta Isaías, “Deus diz: Será que uma mãe pode se esquecer do seu bebê? Será que pode deixar de amar o seu próprio filho? Mesmo que isso acontecesse, eu nunca me esqueceria de vocês” (49.15). Segundo Davi, “como um pai se compadece de seus 41
Divulgação Novolhar
Penúltima palavra
Perceber e agir A questão ambiental exige metas claras e ações bem definidas. Perceber o ambiente é o primeiro passo para uma educação ambiental de resultado. Simone Mundstock Jahnke
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AMINHAR DE OLHOS VENDADOS ,
assim como caminhar no escuro, é uma experiência que estimula outros sentidos muitas vezes esquecidos e que podem mostrar facetas do ambiente que antes não percebíamos. Mas quando falo de preservação ambiental, não posso andar no escuro. É preciso ter metas bem claras e definidas das ações a serem tomadas. Perceber o ambiente é o primeiro passo num trabalho de educação ambiental. E essa é uma ação individual. Ninguém pode sentir por você. Numa segunda etapa, o trabalho deve ser coletivo, no que se refere à organização de ações em conjunto para gerenciar o ambiente. Desde o início deste século, experimentamos problemas sem precedentes decorrentes da explosão demográfica e da má utilização dos recursos naturais. Esses problemas globais têm levado muitas nações aos limites da sobrevivência. Em contrapartida, surge uma nova filosofia, chama-
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da de ecocêntrica, que faz com que o ser humano passe a se preocupar com suas ações, entendendo que ele faz parte da natureza e não está acima dela. Aproveitando essa onda ecocêntrica do final do século 20 e início do século 21, surgem vários “manuais”, “ensinando” mil ações que se pode fazer para salvar o meio ambiente. Não acredito nelas. Ninguém pode salvar nada sozinho. Nós somos seres sociais e não vivemos sozinhos. Precisamos (re)aprender a “funcionar” juntos. Para Fritjof Capra (1998), desenvolver uma “consciência ecológica” é reconhecer a interdependência fundamental de todos os fenômenos e o perfeito entrosamento dos indivíduos e das sociedades nos processos cíclicos da natureza. Por outro lado, não acredito que haja uma solução global para a crise ambiental que nos cerca, embora ela seja global. Ninguém vai baixar um decreto que irá salvar o mundo, embora já tenha havido algumas tentativas, como o Protocolo de
Kyoto (1997), que estabeleceu prazos para a diminuição de gases do efeito estufa até o ano 2012. Ainda tenho dúvidas de que isso seja realmente efetivado. Por isso mesmo, a solução, a meu ver, é local. São pequenas comunidades, escolas, congregações que poderão pensar em soluções locais, adaptadas a seus problemas e viáveis para suas condições. Essas ações locais, entretanto, não têm geração espontânea. Elas precisam de um idealizador, uma liderança capaz de estimular e incentivar ações positivas. É aí que entra o trabalho daquelas pessoas que atuam na educação ambiental. Um exemplo aconteceu no vale do Rishi, no sul da Índia. Uma escola, fundada em 1930 pelo filósofo Krishnamurti, tratou de tomar o desenvolvimento das vilas vizinhas como sua função principal. Para isso, começou com o fator básico para o crescimento de qualquer cidadão ou comunidade: a educação, associada à preservação ambiental. Ações para a conservação do solo e da água, do repovoamento vegetal e uso racional de energia colocam o vale do Rishi em evidência num ambiente que inicialmente era árido e improdutivo e agora tem destaque na agricultura familiar e sustentável. Mesmo em escala regional ou local, entretanto, não há respostas prontas e verdades absolutas. Todos os agentes envolvidos na preservação ambiental estão cercados de dúvidas. Questionar, integrando e interagindo, faz parte do papel dos educadores. Além disso, tentar fazer perceber que sozinhos não somos quase nada. Se nos juntarmos aos outros, no entanto, faremos alguma diferença. Trabalhar com educação ambiental, entretanto, não é tarefa fácil. Ouvi numa conferência uma frase que, colocada no contexto da educação ambiental, reflete muito bem o papel de quem luta pela preservação de nosso ambiente: “Influenciar pessoas é um ato de persistência, inteligência e fé”. O nosso pequeno planeta depende desse tipo de pessoa – capaz de influenciar os outros – para sobreviver. A autora é professora do Departamento de Fitossanidade da Faculdade de Agronomia da UFRGS em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR – Julho/Agosto 2009