Bíblia - Revista Novolhar, Ano 7, Número 30, Novembro e Dezembro, 2009

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CPAD


Ao leitor

Um livro emblemático Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052

Diretor Walter Altmann Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Olga Farina, Vera Regina Waskow e Walter Altmann. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Roberto Soares sobre foto de Amber Wallace Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Antonio Carlos Ribeiro, Edelberto Behs, Haroldo Reimer, Ildo Bohn Gass, Ivoni Richter Reimer, José Adriano Filho, Marcelo Schneider, Márcia Scherer, Márcio Bressani, Marie Ann Wangen Krahn, Martin Norberto Dreher, Matthias Tolsdorf, Micael Vier Behs, Nádia Pontes, René E. Gertz, Rudi Zimmer, Rui Bender, Ruth Musskopf e Verner Hoefelmann.

Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 27,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS

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ERGUNTADO POR UM JORNALISTA SOBRE QUAL

era seu livro favorito na literatura mundial, o escritor, dramaturgo e diretor teatral alemão Bertolt Brecht respondeu: “Você vai dar risada – a Bíblia”. A resposta causa espanto, já que Brecht não era um intelectual com uma queda especial por religião. Seu conhecimento bíblico, entretanto, pode ser verificado em toda a extensão de sua obra. Mesmo porque é praticamente impossível compreender a arte ocidental sem conhecer a Bíblia. O mestre do underground Robert Crumb é outro exemplo. O americano é idolatrado como o cartunista cult e iconoclasta de Mr. Natural e Fritz the Cat. Ex-dependente de LSD e de anfetaminas, ele acaba de lançar uma obra em que detalhou o livro de Gênesis numa versão ilustrada, com surpreendente fidelidade ao texto original, sem o usual sarcasmo ou a obsessão sexual de outras obras suas. Seus fãs, acostumados ao trash e ao escárnio de suas obras anteriores, certamente ficarão decepcionados. “Minha intenção foi iluminar o texto, darlhe outra dimensão, ilustrando tudo o que está nele, cada pequeno detalhe, para que as pessoas realmente saibam o que contém. O mais importante para mim foi ser fiel ao texto. Muitas pessoas ficarão surpresas com as histórias de Gênesis”, justificou Crumb. O “Livro dos Livros” é uma coletânea de muitas obras independentes, textos, contos e cartas, escritos num período superior a mil anos, que jamais foi tratado como intocável, tal qual o Alcorão. Traduzido para mais de dois mil idiomas desde o princípio, jamais houve um idioma “sagrado”, embora os pesquisadores prefiram as línguas originais (hebraico e grego) em que seus textos foram redigidos. Mas é uma questão de fidelidade ao texto e não de caráter sagrado. Nesta edição, essa fantástica escritura é o tema de capa. Este é o último número da NOVOLHAR para o ano de 2009. Para 2010, estamos planejando uma série de novidades. Novas seções e um novo projeto gráfico estão em estudo para tornar nossa revista ainda melhor. Enquanto você aguarda, desejamos-lhe Feliz Natal e abençoado Ano Novo. Equipe da Novolhar


CAPA 20 Abuso da Bíblia 12

BÍBLIA Especialistas debruçam-se sobre os registros da base da fé cristã

16 A formação do texto bíblico Como as experiências e os eventos registrados na Bíblia foram fixados para a posteridade

18 Como ler a Escritura A Bíblia é um livro para leitura individual ou comunitária?

Quando o texto bíblico é usado para fundamentar as própria teorias ou preceitos humanos

22 A aliança de Deus com o povo Um dos mais fascinantes relatos bíblicos conta a relação entre Deus e o povo de Israel

24 A formação do cânone Como foram escolhidos os escritos que compõem os dois Testamentos da Bíblia atual

25 A gráfica da Bíblia A fantástica história da Sociedade Bíblica do Brasil e de seu parque fabril

O pinião do leitor De cabo a rabo Clima Obrigado pelos dois exemplares da Novolhar da edição nº 29, setembro-outubro de 2009, que me enviaram. Chegaram bem, em ótimo estado. Gostei muito da revista em geral, com ótimos artigos, especialmente todos os artigos com aspectos relacionados ao clima, apresentados por diversos autores a partir de diversas perspetivas. Gostei também do layout de meu artigo e da ótima versão em português! Elias Crisostomo Abramides – por e-mail Buenos Aires, Argentina

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Recebi a revista e fui viajar, tendo um propósito para a viagem: ler a Novolhar. Foi um exercício de prazer. Bom conteúdo, reportagens diversas e conectadas com o mundo e o meu trabalho, provocações e reflexões. Encantei-me especialmente com as matérias “A bênção faz a diferença na vida”, “Cristianismo: a força do amor” e “Algodão-doce”, com conteúdos que alcançam as necessidades e compromissos pessoais e inspiram a partilha profissional. Não foi diferente com as matérias sobre o clima, ajudando-nos a refletir sobre nossa postura ético-cristã e atitudes sem o “medo comercial” posto pela mídia. Cláudio Becker – por e-mail São Leopoldo (RS)

NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


OUTROS ASSUNTOS 6

Espelhos Almeida: o tradutor da Bíblia para o português

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Reflexão Advento em flor

10 Novolhar sobre Última hora 11 27 28 30 31 32

Ministério Público

Obras de Luther King reeditadas

Notas ecumênicas História Os 120 anos da República no Brasil Segurança pública Igrejas em busca da paz Profissões Barba, cabelo, bigode e psicologia Religiões As maiores religiões do mundo Turismo A opção barata dos albergues completa 100 anos

34 Igualdade racial Quilombolas: dívida social e reparação 36 Conto Biscoitos... na cozinha com a vovó Iniciativas de paz SERPAZ: Em defesa da cultura de paz 38 Ação de graças Quanto custa agradecer? 40 Espiritualidade Presépios do mundo 42 Penúltima palavra É hora de equilíbrio

Nota importante A Editora Sinodal está planejando, para 2010, a publicação de um livro com os textos escritos pelo Dr. Martin Dreher para a seção Espelhos. Aguarde.

Visite nosso site

Esclarecimento A equipe da Novolhar recebeu um e-mail do pastor Dr. Mauro Batista de Souza, autor do artigo “Seis décadas de IECLB” na edição nº 29, setembro e outubro de 2009, páginas 34-35, informando que houve um equívoco de sua parte ao informar que Santo Amaro (SP) foi sede do Concílio de 1949. Conforme o Dr. Mauro, a informação correta é a seguinte: “A constituição da IECLB foi decidida pelas assembleias dos sínodos que se uniram na Federação Sinodal em 1949. No entanto, o concílio que a promulgou, aconteceu em São Leopoldo (RS) em 1950”. Agradecemos pelo esclarecimento do autor. Equipe da Novolhar

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Todos os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar.com.br

Diga o que pensa Sua opinião é muito importante para nós aqui na redação da Novolhar. Por isso escreva-nos e diga o que pensa sobre nós, sobre os artigos que publicamos e sobre as temáticas abordadas. Mande-nos um e-mail para novolhar@editorasinodal.com.br

Tema da próxima edição A edição nº 31, de janeiro/fevereiro 2010, terá como tema de capa ALIMENTAÇÃO.

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Espelhos

Almeida, o tradutor Martin Norberto Dreher

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MA DAS GRANDES CONTRIBUIÇÕES

da Reforma do século 16 foi o fato de que ela iniciou, em larga escala, a tradução da Bíblia para os idiomas das diferentes nações. Com isso Lutero não ficou restrito ao âmbito da igreja e da teologia, mas teve influência sobre a história das ideias. Uma avalanche de traduções da Bíblia foi produzida em decorrência de sua tradução e influenciou a formação do caráter dos povos através da consolidação de línguas nacionais. É verdade que Luiz Vaz de Camões preparou o português moderno com Os Lusíadas. No entanto, é inegável o impacto causado por outro português com sua tradução da Bíblia: João Ferreira de Almeida. Almeida nasceu em Torre de Tavares, Portugal, em 1628. Após a morte dos pais, foi levado a Lisboa e ali confiado à educação de um tio, que era sacerdote. Quando

tinha 14 anos de idade, migrou para a Holanda. Em 1641, está em Batávia, na época capital da Ilha de Java, que naquele ano passou a fazer parte do império holandês, o qual desalojava os portugueses até então colonizadores daquela ilha. Ali, Almeida teve contato com a missão da Igreja Reformada da Holanda, convertendo-se ao calvinismo (1642). Visitador de enfermos, veio mais tarde (1656) a tornarse pastor em Batávia. Depois foi enviado ao Ceilão e às Ilhas Pescadores como missionário, com o objetivo de atuar entre pessoas que falavam o português. Foi essa comissão que o motivou a traduzir a Bíblia para o português. Do tio sacerdote recebera iniciação nas línguas bíblicas, o que o habilitou para essa tarefa. Poliglota, ele conhecia latim, francês, espanhol, holandês, hebraico, grego e, é claro, sua língua materna: o português.

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Exemplar da Bíblia traduzida por João Ferreira de Almeida, publicado em 1819

Aos 17 anos, Almeida traduziu o Novo Testamento do latim. Mas sua tradução não chegou a ser publicada. Traduziu, depois, a Liturgia da Igreja Reformada e o Catecismo de Heidelberg para o português. Ao traduzir as Fábulas de Esopo, aprimorou seus conhecimentos de grego. Depois, estudou hebraico. Com isso estava preparado para a tradução do texto integral da Bíblia. Em 1670, concluiu a tradução do Novo Testamento, impressa em 1681, em Amsterdam, pela viúva de J. V. Someren com o título O Novo Testamento Isto he o Novo Concerto de Nosso Fiel Senhor e Redemptor Iesu Christo traduzido na Língua Portuguesa. No verso dessa página lê-se: Este SS. Novo Testamento he imprimido por mandado e ordem da illustre Companhia da Índia Oriental das Unidas Províncias, e com o conhecimento da Reverenda Classe da cidade de Amsterdam, Revista pelos Ministros pregadores do Santo Evangelho Bartholomeus Heymen e Joanes de Vaught. Esse primeiro Novo Testamento traduzido para o português surgiu longe de Portugal e do Brasil. Hoje é utilizado por milhões de cristãos em todo o mundo. Existe um exemplar dessa primeira edição no Museu Britânico. A impressão veio cheia de erros e, por isso, João Ferreira de Almeida publicou logo a seguir uma Advertência com uma lista de mais de mil erros. Publicada a edição do Novo Testamento, Almeida dedicou-se à tradução do Antigo Testamento. Fez isso ao lado de outra série de atividades. Em 1691, ano em que faleceu em Java, sua tradução tinha avançado até o livro do profeta Ezequiel. Outros tiveram que concluir sua tradução. A primeira edição completa de sua tradução foi publicada em 1753, 62 anos após sua morte. Ela passaria, ao longo dos anos, por diversas revisões, como aconteceu com outras traduções. Há uma dinâmica própria em todas as línguas. Conceitos perdem seu significado, a construção das frases pode ser alterada. Inegável, contudo, é que devemos a um português marcado pelo evangelho uma importante tradução da Bíblia, feita longe de sua pátria, no atual território da Indonésia. Há caminhos insondáveis. O autor é teólogo e professor de História na Unisinos em São Leopoldo (RS)

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Olhar com humor

E stá na agenda Encontro de ONGs

Natal dos Ventos

Erexim (RS) recebe, de 25 a 26 de novembro, o 2º Encontro Sul-Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais. O evento acontece no Seminário Nossa Senhora de Fátima e reúne representantes de diversas ONGs dos três estados do Sul. O papel das ONGs, a reforma política, o marco legal e o combate às desigualdades são os principais temas. Entre as associadas da Regional Sul encontram-se as seguintes: AMENCAR (Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente); ASPA (Apoio, Solidariedade e Prevenção à Aids); ASSESSOAR (Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural); CDHAVI (Centro de Direitos Humanos do Alto Vale do Itajaí); CEBI (Centro de Estudos Bíblicos); CECA (Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria); GAPA-RS (Grupo de Apoio à Prevenção da Aids do Rio Grande do Sul); PROAME (Programa de Apoio a Meninos e Meninas). Maiores informações: www.abongsul.org.br ou pelo telefone: (51) 3286.1121.

A cidade de Osório, no litoral norte gaúcho, inova este ano sua decoração natalina. Com um novo projeto de decoração e iluminação natalina, a cidade dos ventos traz para o seu Natal muita luz e uma ornamentação que vai do lúdico ao religioso. O Natal deste ano passa a se chamar “Natal dos Ventos”. O projeto foi criado por Mona Oppitz, da Associação de Arte, Artesanato e Cultura da Serra Gaúcha (Raiz Cultural). Mona quer resgatar o lado religioso da cidade, que tem raízes açorianas, através de anjos, presépios e shows que tratam do verdadeiro espírito natalino e do nascimento do menino Jesus, sem representar uma religião, mas todas, em forma de união. Os desfiles durante o evento reúnem um elenco de 140 pessoas, formado por atores profissionais e amadores, selecionados na comunidade de Osório. O Natal dos Ventos ocorre de 21 de novembro de 2009 a 06 de janeiro de 2010. Maiores informações: www.osório.com.br

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Reflexão

Advento em flor É no tempo de Advento que vem a pergunta: E agora? O que faremos? Seremos pintoras de asfalto? Essa pergunta nos remete ao texto de Lucas 3.7-18.

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UM DOMINGO NO INÍCIO DA PRI-

mavera de 2009, o “Minhocão” de São Paulo acordou com flores. Algumas pessoas incomodadas com a visão monótona e cinza do longo viaduto resolveram mudar a paisagem, desenhando flores brancas sobre seu asfalto. A polícia foi chamada por moradores e moradoras desavisados que denunciaram o “vandalismo”. Logo que constataram que se tratava de uma manifestação artística, os policiais retiraram-se desejando um bom-dia às pessoas que se empenhavam em transformar a paisagem local. Nos últimos meses, participei de um projeto que também busca transformar a paisagem. Não pintamos o asfalto, mas participamos do cultivo e do desabrochar de algumas flores. Nesse processo, compartilhamos saberes sobre ética, valores, Declaração Universal dos Direitos Humanos, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto da Pessoa Idosa, Lei Maria da Penha e Cultura de Paz. O projeto conta com 300 mulheres de baixa renda, que vivem em bairros com altos índices de violência na periferia de Diadema, na Grande São Paulo. Por um ano, elas se encontrarão para construir novas possibilidades de vida. Trata-se do “Mulheres da Paz”, projeto proposto pelo Ministério da Justiça

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em parceria com municípios. Já no primeiro encontro, essas mulheres reconheceram em si e na realidade de seu bairro muitas barreiras e dificuldades; porém perceberam que, no grupo, encontrariam forças para superá-las. Então fizeram um reconhecimento do espaço geográfico em que vivem e também olharam para dentro de si mesmas. Encontraram lugares-comuns tanto no bairro como em seus corpos. Ao mesmo tempo, descobriram possibilidades e lugares desafiadores num espaço e no outro. Elas tiveram dois meses de convívio, informação, trocas e construção. Passado esse tempo, muitas já fazem uma releitura de si mesmas e de sua realidade. Participar do “Mulheres da Paz” significa ter tempo e oportunidade para mudar conceitos, questionar e/ou reafirmar valores, propor novas formas de vida. Está sendo um tempo de olhar para dentro e ao redor, refletindo sobre atitudes e convicções. Para elas, já é tempo de Advento – tempo de fazer autocrítica, confissão, revisão e mudança. É no tempo de Advento que vem a pergunta: E agora? O que faremos? Seremos pintoras de asfalto? Essa pergunta nos remete ao texto de Lucas 3.7-18, onde João Batista, após pro-

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Ruth L. W. Musskopf

Reconhecer-se como uma flor que está desabrochando já

vocar a autocrítica da multidão com palavras duras (chama a multidão de asfalto: “raça de víboras”), também ouve dela a pergunta: “Que havemos, pois, de fazer?” (v. 10). Para essa multidão, que concorda com o diagnóstico de João, mas quer ir adiante, quer fazer algo, João apresenta uma proposta: vamos dividir os recursos; afinal, todas as pessoas têm direito à vida. A negação desse direito produz violência (v. 11-14). As “Mulheres da Paz” sabem disso. Elas vivem diariamente a violência de uma sociedade desigual, mas querem, assim como a multidão que seguia João, fazer algo para transformá-la. Elas sabem que, apesar de suas NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


D ica cultural

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Papai Noel Uma biografia

mudou muitas vidas

carências e fragilidades, Deus as fez capazes de propor e ensaiar a novidade de vida. Essa convicção é que as impulsiona para uma prática de transformação. Pintar flores no asfalto não mudará suas vidas, mas reconhecerse como uma flor que está desabrochando já mudou a vida de muitas. O Advento das “Mulheres da Paz” não será somente de quatro semanas. Talvez dure um longo tempo, mas todas elas já vislumbram o Natal. A estrebaria suja faz parte de seu lugar-comum, mas agora elas percebem que uma vida diferente pode surgir nesse asfalto. É ali que elas esperam o nascimento daquele que, quando pintou flores no asfalto, transformou-o em WWW.NOVOLHAR.COM.BR

jardim. As “Mulheres da Paz” entendem que, nesse jardim, quem tem duas túnicas reparte com quem não tem e quem tem comida faz o mesmo. Ali, servidores públicos não cobram propina para fazer o que é seu dever e policiais não maltratam nem fazem falsas denúncias e não buscam aumentar seus salários participando do crime organizado (v. 11-14). Num domingo de primavera, o “Minhocão” acordou florido. Num domingo de Advento, as flores acordaram Diadema. A autora é pastora voluntária na Paróquia do ABCD em São Paulo/SP

Papai Noel existe? Você acredita em Papai Noel? Semanas antes do Natal, a figura do Papai Noel aparece nas vitrines, nas propagandas de televisão, nos anúncios de jornais e revistas. Afinal, ele faz parte da tradição natalina. Existem, no entanto, indícios para traçar uma trajetória do homem gorducho de roupa vermelha, barba branca e saco nas costas. Você pode não acreditar, mas ele tem uma biografia. Gerry Bowler, doutor em História, professor na universidade de Manitoba, no Canadá, pesquisou e escreveu um livro sobre a trajetória do Papai Noel desde sua origem em 1700 até sua forma atual, concebida no início do século 19. Não se trata de um livro de ficção, mas de um estudo sobre essa figura mitológica, promotora do bem, mas também usada por capitalistas espertos para aumentar seus lucros na época natalina. Nesse livro de 256 páginas, publicado no Brasil pela Editora Planeta em 2007, o autor examina o lugar do Papai Noel na história, na literatura, na publicidade e na arte. No curriculum vitae do “bom velhinho” encontram-se revelações interessantes: seu emprego como defensor de causas sociais e políticas, soldado na Primeira e Segunda Guerras Mundiais e inspirador de músicas e filmes. O autor encerra seu livro com o capítulo: Papai Noel tem futuro? Na opinião de Gerry Bowler, sim. Ele acredita que os pais de todos os tempos precisam de um mito para estimular e transmitir o amor a seus filhos.

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Ministério Público

Márcio Emílio Lemes Bressani

O Ministério Público é uma instituição permanente com autonomia administrativa e financeira, que não se confunde, assim, com os demais Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Em linhas gerais, a função primordial do Ministério Público, estabelecida pela Constituição Federal, é a defesa da sociedade. Para tanto existem atualmente no Rio Grande do Sul 660 Promotores de Justiça, distribuídos em 165 Comarcas por todo o estado. Além de apurar a responsabilidade criminal daqueles que cometeram delitos, o Ministério Público também atua em favor das crianças e adolescentes, dos idosos, consumidores, deficientes físicos, meio ambiente, patrimônio público, direitos humanos e ordem urbanística, tudo com observância à ordem jurídica, ao regime democrático e aos interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme determina a lei. As Promotorias de Justiça – que são as sedes do Ministério Público nas Comarcas do Estado – estão à disposição, portanto, dos cidadãos que estiverem de alguma forma relacionados com as áreas de atuação dos Promotores de Justiça. Procure o Promotor de Justiça de sua Comarca e auxilie o Ministério Público a defender a sua comunidade! O autor é Promotor de Justiça em Taquara/RS

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Última hora

Obras de Luther King reeditadas Os livros e escritos de Martin Luther King, esgotados há muitos anos, voltarão às prateleiras das livrarias a partir de 2010. A editora norte-americana Beacon Press chegou a um acordo com a família daquele que foi um dos principais líderes afroamericanos dos direitos civis. As novas edições de sua obra, que incluem uma compilação de seus sermões, orações e aulas, com prólogos de intelectuais, farão parte de uma série chamada “The King Legacy” (“O legado de King”). O acordo para voltar a promover toda a literatura que Martin Luther King deixou antes de ser assassinado satisfaz seu filho menor, Dexter Scott King, representante do legado do ganhador do Prêmio Nobel da Paz. Ele considera que a redistribuição da obra de seu pai “ajudará para que seus ensinamentos sobre nãoviolência e dignidade humana e seu sonho de liberdade e igualdade cheguem a um novo público global”.

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N ovolhar sobre

Os primeiros títulos serão lançados no “Dia de Martin Luther King” nos Estados Unidos em janeiro de 2010, quando completaria 80 anos. King foi pioneiro em seus esforços para conseguir igualdade entre etnias através da desobediência civil e outros métodos não-violentos. Foi assassinado em Memphis, Tennessee, em 1968, aos 39 anos. Fonte: Nuevo Siglo – Ano 9 – nº 7 – Julho de 2009 Jornal do CLAI, Quito, Equador

Comunicação eficaz Com o intuito de capacitar líderes comunitários, pastores e obreiros de comunidades eclesiais para uma melhor utilização dos veículos de mídia, a Faculdades EST estará oferecendo, nos meses de maio e junho de 2010, o curso de extensão “Comunicação Eficaz”. O conteúdo do curso apresenta um eixo teórico diretamente associado a questões de ordem prática. Além de contemplar temáticas pertinentes às relações que se estabelecem entre a comunicação e a teologia, o curso prevê a produção de textos para jornal, rádio, tevê e web e o ensino das técnicas de utilização de microfones, câmeras de vídeo e softwares de editoração. O aprendizado dessas habilidades oferecerá aos participantes do curso a possibilidade de produção de boletins

comunitários, revistas, programas de rádio e conteúdos multimídia direcionados à reprodução na web. Totalizando 60 horas, as aulas serão realizadas nas sextas-feiras à tarde e à noite e nos sábados pela manhã e à tarde, sempre em semanas intercaladas, no campus da Faculdades EST em São Leopoldo (RS). Essa distribuição da carga horária visa facilitar a vinda de participantes de cidades distantes, que poderão permanecer hospedados nas próprias dependências da EST. As inscrições poderão ser efetuadas, a partir do próximo dia 10 de dezembro, diretamente na Secretaria Acadêmica da Faculdades EST ou então pelo site www.est.edu.br/comunicacaoeficaz Mais informações podem ser obtidas pelo fone 2111-1486. NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


Notas ecumênicas

sofreu durante o período da ditadura”, declarou o embaixador. Portais referiu-se a entidades estabelecidas pelas igrejas chilenas em função do golpe de Estado de 1973, como o Comitê Pró-Paz e o Vicariato da Solidariedade, que fizeram a defesa jurídica dos perseguidos e constituíram parte fundamental da memória histórica das violações dos direitos humanos na época. O pastor Emilio Castro era o secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que apoiou pessoas e instituições que trabalhavam com os perseguidos. A condecoração é também uma expressão de gratidão às relações humanas antes, durante e depois dos fatos que produziram o exílio de tantos chilenos. Diante da crise provocada pelo golpe de Estado, era natural que muitos cristãos se dirigissem ao CMI, sabendo que sua causa seria atendida inclusive antes de seu apelo, destacou o líder ecumênico.

Homenagem a O pastor emérito metodista uruguaio Emilio Castro foi destacado como um “incansável lutador pela verdade e democracia”, recebendo, no dia 14 de outubro, a ordem Bernardo O’ Higgins das mãos do embaixador chileno Carlos Portais diante de organismos internacionais em Genebra. “Ele levantou a bandeira da oposição às injustiças, e o Chile deseja, através desta condecoração, expressar a dom Emilio Castro que isso está em nossa memória e reconhecer o que fez por tanta gente que

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Emilio Castro

Emilio Castro com a condecoração

Latino-americano dirigirá FLM

Fórum de Teologia com tenda na EST O campus da Faculdades EST abrigará o Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FMTL) de 26 a 28 de janeiro de 2010, que terá por foco “Direito e Justiça”. A iniciativa integra o Fórum Social 10 Anos Grande Porto Alegre. A programação do FMTL 2010 deverá ofertar dois painéis, um sobre Justiça e Profecia e outro sobre Justiça Retributiva, Restaurativa e Transformadora. WWW.NOVOLHAR.COM.BR

Tveit no CMI O holandês Olav Fykse Tveit é o mais jovem teólogo já eleito para a Secretaria Geral do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Genebra. Ele assume o cargo aos 48 anos, e sua eleição foi no dia 27 de agosto. Ele substitui o pastor metodista queniano Samuel Kobia. Tveit foi secretário-geral de Ecumenismo da igreja luterana da Noruega desde 2002.

© Peter Williams/FMI

© H. Putsman Penet/FLM

O pastor luterano chileno Martin Junge foi eleito no dia 26 de outubro como oitavo secretário-geral da Federação Luterana Mundial-FLM. A eleição do primeiro latino-americano para o cargo aconteceu durante o concílio da FLM, de 22 a 27 de outubro, em Chavannes-de-Bogis, próximo a Genebra, Suíça. O Concílio elegeu o teólogo de 48 anos para suceder o Dr. Ishmael Noko em julho de 2010. Desde setembro de 2000, Martin Junge é o secretário para a América Latina e Caribe do departamento de Missão e Desenvolvimento da FLM. Antes desse período, ele era o presidente da Igreja Evangélica Luterana no Chile.

Conic na Segurança Pública O reverendo Luiz Alberto Barbosa, secretário-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), vai representar o organismo ecumênico no Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), atendendo portaria assinada pelo ministro da Justiça, Tarso Genro. O Conic é uma das 45 organizações representadas no Conasp, e seu presidente, pastor luterano Carlos Augusto Möller, será o suplente de Barbosa. A finalidade é formular a Política Nacional de Segurança Pública, desenvolver estudos e ações com vistas a aumentar a eficiência dos serviços policiais, estudar, analisar e sugerir alterações na legislação pertinente.

Matérias compiladas pelo jornalista Edelberto Behs a partir de reportagens publicadas pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC). Site: www.alcnoticias.org

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Capa

Bíblia A memória de uma história de fé Rui Bender

BÍBLIA É O LIVRO QUE ACOMPANHA OS CRISTÃOS desde os primórdios do cristianismo até os dias atuais. Assim como o judaísmo e o islamismo, “também o cristianismo é religião de um livro”, afirma o teólogo Nelson Kilpp, professor da Faculdades EST (São Leopoldo/RS). “Em sua maior parte, a Bíblia teve por base a tradição oral”, lembra o historiador Ricardo Rieth, professor da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA (Canoas/RS).

Reprodução Novolhar

A Um dos vasos de Qumrã

VERSÕES DA BÍBLIA A Bíblia é o livro mais traduzido em toda a história da humanidade. Os atuais livros que compõem a Bíblia surgiram num ambiente e numa língua completamente diferentes das línguas modernas. Os livros do Antigo Testamento, com exceção de Daniel (2.4-7.28) e de Esdras (4.8-6.18, 7.12-26), escritos em aramaico, foram escritos na língua hebraica. Os livros do Novo Testamento, por sua vez, foram escritos em língua grega.

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Na sua origem, os acontecimentos narrados na Bíblia foram vividos e transmitidos oralmente de geração a geração. A memória das principais experiências de fé e vida também era celebrada e ritualizada na liturgia. Somente com o passar do tempo é que surgiram a necessidade e a oportunidade de registrar essas memórias por escrito. NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


Para ambos os teólogos, esse livro sagrado concentra “os testemunhos de fé e as verdades essenciais” que dão identidade ao cristianismo. “A Bíblia contém a revelação de Deus na história do povo de Israel e os testemunhos das primeiras comunidades cristãs”, explica Kilpp. Ele acrescenta: “Esses testemunhos inspiram a nossa própria fé e esperança e são critério para a nossa vida”. A palavra “Bíblia” tem origem grega e significa, em tradução literal, “livros”. Trata-se, na verdade, de uma verdadeira biblioteca: reúne numa única obra 39 livros na primeira parte, chamada de Antigo Testamento, e 27 na segunda, denominada de Novo Testamento. O Antigo Testamento da Bíblia protestante (cânone breve: 39) contém alguns livros a menos do que a Bíblia católica (cânone longo: 46). “Isso tem a ver com as duas tradições judaicas – a hebraica e a grega –, que tinham critérios diferentes para aceitar um livro como ‘sagrado’ ou não”, explica Kilpp. Ele lembra que “as primeiras comunidades cristãs liam geralmente os textos do cânone grego (longo), de modo que também foram incluídos na Vulgata, que é a versão declarada canônica pela Igreja Católica Apostólica Romana”. Cânone – Segundo o teólogo aposentado Gottfried Brakemeier em seu livro “A autoridade da Bíblia”, os livros que formam a Bíblia agrupam-se em blocos. No Antigo Testamento, há os livros “históricos”, os “didáticos” e os “proféticos”. No Novo Testamento, há uma estrutura semelhante: começa com os quatro evangelhos, seguidos pelo livro de Atos dos

Depois do exílio, mais intensamente com o avanço e a expansão da língua e cultura gregas, surgem vários livros em língua grega (Sabedoria, Eclesiástico, 1 e 2 Macabeus). A comunidade judaica de Alexandria traduziu os livros da língua hebraica para a língua grega. Nesse tempo, inclusive, já existiam traduções gregas do Pentateuco. Essa tradução dos livros bíblicos pelos setenta (LXX) ficou conhecida como Septuaginta. WWW.NOVOLHAR.COM.BR

Apóstolos, depois vem o bloco das cartas e fecha com o Apocalipse de João (um livro que se diz profético). Tanto o Antigo como o Novo Testamentos foram compostos para ser um “cânone”. “Cânone” é uma palavra hebraica que significa medida, norma. É isso que a Bíblia pretende ser: “Palavra normativa em assuntos de fé e conduta”, define Brakemeier. O Antigo e o Novo Testamentos passaram por um processo mais ou menos longo de canonização, ou seja, as comunidades gradativamente foram considerando alguns livros sagrados e outros não. “Alguns tiveram maior ou menor dificuldade de ser aceitos entre os livros sagrados”, revela Kilpp Em termos gerais, católicos e protestantes possuem a mesma Bíblia, observa Rieth. Mas alguns livros surgidos na época intermediária entre a formação do Antigo e do Novo Testamentos, chamados de deuterocanônicos pelos católicos e de apócrifos pelos protestantes, estão incluídos no texto adotado pela Igreja Católica. O conteúdo desses livros ajuda no estudo do período intertestamentário. O reformador Martim Lutero fez questão de incluílos na Bíblia alemã, mesmo com a ressalva de que não eram equivalentes do ponto de vista canônico aos outros livros. O historiador Rieth comenta que católicos e protestantes “afeitos à polêmica gostam de colocar em descrédito a Bíblia uns dos outros em razão da inclusão ou exclusão dos livros deuterocanônicos ou apócrifos. No geral, contudo, sua Bíblia é a mesma”. “Durante os primeiros cem anos de vida da comunidade cristã, sua Bíblia foi o

Muito antes de fazer parte do cânone do Antigo Testamento, concluído por volta do final do século 2 d.C., vários livros foram traduzidos separadamente para as mais diversas línguas faladas nos lugares onde os judeus viviam. Assim surgiram versões de vários livros em copta (Egito), siríaco (Síria) e etíope (África).

Antigo Testamento”, afirma o historiador Martin Dreher, professor da Unisinos (São Leopoldo/RS), em sua obra “Bíblia: Suas leituras e interpretações na história do cristianismo”. Naquele tempo, já existiam as cartas paulinas e outros escritos, que mais tarde passaram a formar o Novo Testamento, mas alguma coisa ainda estava por ser escrita. Apenas “por volta do ano 150 é que vai ser formado aquilo que nós conhecemos hoje por Novo Testamento”, lembra o historiador. “Na passagem do século 2 ao 3, um conjunto parecido ao Novo Testamento de hoje já estava estabelecido. Na forma atual, aparece pela primeira vez em uma carta de Atanásio, bispo de Alexandria, escrita em 367”, recorda Rieth. Dreher relata que, na forma como os primeiros cristãos liam sua Bíblia, o Antigo Testamento, “também fizeram uma confissão bem clara: o Antigo Testamento era fundamental para eles”. “Isso não significa que o Antigo Testamento não tenha sua própria mensagem, que complementa a mensagem do Novo Testamento”, assegura Kilpp. “O Deus do Antigo Testamento e o do Novo Testamento são o mesmo Deus, que é tanto justo quanto misericordioso. Há lei e evangelho em ambas as partes do cânone cristão”, completa o teólogo. Dreher entende que “sempre que deixamos de ler o Antigo Testamento, estamos deixando de ler a Bíblia dos primeiros cristãos e estamos deixando de entender o que eles entendiam”. Reforma – A Bíblia provém de outras culturas do passado, “exigindo a tradução para quem busca o acesso a

Os livros do Novo Testamento também foram traduzidos para as mais diferentes línguas faladas no primeiro século da era cristã. Com a expansão da dominação romana, surgiram várias traduções isoladas de livros da Bíblia em latim, conhecida como vetus latina, no norte da África, Gália e Itália. Coube ao papa Dâmaso solicitar a Jerônimo uma tradução em latim da Bíblia. Essa tradução (405 d.C) é a Vulgata. Jerônimo passou vinte anos na Palestina e traduziu os livros das línguas grega e hebraica.

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Lutero e muitos outros que se identificaram com a pregação da Reforma descobriram a Escritura como uma base de conhecimento libertadora para a teologia e a igreja. Desde cedo, ela passou a valer como único princípio da autoridade. Lutero sustentou que apenas os livros bíblicos tinham autoridade.

ses, incertezas, indefinições. Kilpp acentua que “falamos de ‘palavra de Deus’, pois cremos que as pessoas que escreveram ou que estão por trás dos textos e conteúdos bíblicos eram pessoas inspiradas por Deus. Mas falamos também de ‘palavras humanas’, porque essas pessoas não deixaram de ser humanas, ou seja, eram influenciadas pelo contexto cultural em que viviam”. Memória – Cada geração terá que buscar, a partir de seu contexto, respos-

Óleo sobre tela de Eugene Siberdt (1898) - Coleção particular

ela”, comenta o teólogo Brakemeier. Antes da reforma do século 16, foram poucas as tentativas de traduzir a Bíblia. Prevalecia o latim como língua oficial e sagrada. Somente a invenção da imprensa no século 15 oportunizou sua “popularização”. A tradução da Bíblia por Martim Lutero significou um passo em direção à educação popular. O reformador dedicouse intensivamente à interpretação da Bíblia, recorda Rieth, “movido especialmente por uma profunda crise de fé”. O exemplo de Lutero inspirou imitadores em todo o mundo, acrescenta Brakemeier. Rieth assegura que Lutero e muitos outros que se identificaram com a pregação da Reforma descobriram a Escritura como “uma base de conhecimento libertadora para a teologia e a igreja”. “Desde cedo, ela passou a valer como único princípio da autoridade”, afirma o historiador. Lutero sustentou que apenas os livros bíblicos tinham autoridade. A Reforma garantia que “a Escritura é autoridade não somente do ponto de vista formal, mas também hermenêutico-teológico”, continua Rieth. “Ela deve ser compreendida como princípio de sua própria interpretação. Deve ser interpretada segundo seu próprio espírito”, enfatiza o historiador. Em relação a ela vale, como escreveu Lutero, “que ela própria é por si mesma certíssima, facílima, abertíssima, intérprete de si própria, que examina, julga e ilumina todas as coisas”. Quando se lê a Bíblia, é importante saber que a leitura está carregada de nossas histórias, experiências, contextos, observa Dreher. Em cada época há angústias, cri-

VERSÕES DA BÍBLIA Até o Concílio IV de Latrão (1215), a Bíblia era lida em língua latina. O concílio autorizou a tradução para idiomas próprios de cada região. Assim, já no século 13, surgiu a primeira tradução em espanhol. Contudo, até a Idade Média, as diferentes versões da vetus latina eram as mais difundidas pela Europa. Com a Reforma, a Igreja Católica adotou, a partir do Concílio de Trento (1546), a Vulgata como tradução oficial e autêntica. A Vulgata vigorou como texto oficial até o Concílio Vaticano II, razão pela qual foi usada como texto-base para várias versões nas línguas modernas.

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Em 1509, Cassiodoro Reyna publicou, em Basileia (Suíça), uma tradução de toda a Bíblia em espanhol. A primeira edição completa da tradução de João Ferreira de Almeida para o português foi publicada em 1753, 62 anos após sua morte. A primeira versão católica em língua portuguesa foi feita pelo padre Antônio Pereira de Figueiredo em 1790. NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


tas atuais. Terá que descobrir sinais do reino de Deus. “Nesse esforço de leitura da Bíblia, as comunidades cristãs fizeram experiências dolorosas”, constata Kilpp. Dessas experiências brota sabedoria. “Aprendemos que, depois de nós, virão outros leitores da Bíblia, que nela descobrirão aspectos e auxílios que nós não fomos capazes de descobrir”, comenta Dreher. “A Bíblia é seguramente um dos livros, senão o livro de maior efeito histórico em todos os tempos”, garante Brakemeier. Pois ela “moldou culturas e determinou o espírito de povos e gerações”. Traduzida para quase todas as línguas faladas no planeta, a Bíblia influenciou também a filosofia, a política, a arte e outros setores da atividade humana. Seu conteúdo não se resume a doutrina, nem somente a história. “Documenta, isto sim, a experiência de um povo com Deus”, frisa Brakemeier. Portanto é a “memória de uma história de fé”. Na Bíblia, temos o depoimento de gente que viu, ouviu ou percebeu Deus em sua vida. Mas ela não é apenas testemunho. “Também é proclamação”, acentua Brakemeier. Kilpp conclui que, se nós quisermos que o texto bíblico nos diga qual é sua mensagem para os dias atuais, temos que deixá-lo falar. Ele arremata: “Este é o serviço que a exegese deve prestar à comunidade: auscultar o texto antigo para poder ouvir a relevância de sua mensagem para a atualidade”. O autor é jornalista em São Leopoldo (RS)

A Reforma e o surgimento das línguas modernas trouxeram a necessidade de novas traduções para outras línguas. O latim, por ser a matriz comum da grande maioria dessas línguas, e a Vulgata, como texto oficial, serviram de base para essas traduções. A ênfase dada pelos reformadores aos textos em sua língua de origem, hebraico para o Antigo Testamento e grego para o Novo Testamento, está na base das diferenças entre versões protestantes e católicas. Enquanto as versões católicas mais antigas têm por base a Vulgata, as versões protestantes partem do texto hebraico e grego, como a Lutherbibel. WWW.NOVOLHAR.COM.BR

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A formação do texto bíblico Verner Hoefelmann

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OMO SURGIRAM OS TEXTOS E LIVROS

da Bíblia? Não existe uma única resposta para essa pergunta. Cada um deles possui uma história específica, e nem sempre é possível reconstruí-la com o mesmo grau de certeza. Mas, em geral, se podem distinguir três etapas em seu processo de formação. Na origem dos textos está uma experiência de fé de um povo ou grupo de pessoas com Deus. Um exemplo para esclarecer isso: alguns hebreus viviam durante muitos anos como escravos no Egito. Em meio a seu sofrimento, eles clamaram a Deus. E, de forma surpreendente, conseguiram libertar-se da escravidão. Após andar vários anos pelo deserto, estabeleceram-se numa terra boa, que mana leite e mel. Como foi possível isso? Aqueles hebreus atribuíram sua libertação não a si

mesmos, mas a Deus. Foi com base nessa experiência singular que nasceram os primeiros cinco livros da Bíblia (o Pentateuco), que giram basicamente em torno desse episódio. Outro exemplo: um grupo de pessoas aceitou o convite para seguir um homem chamado Jesus de Nazaré. Ouviu sua pregação sobre um novo tempo, em que Deus iria reinar sobre os seres humanos. Mais do que isso, viu sinais concretos de como seria esse tempo: pessoas eram acolhidas sem preconceitos, recebiam o perdão dos pecados, eram libertadas de seus males, eram chamadas a formar uma grande família e a praticar a solidariedade. Mas a mensagem desse homem também encontrou resistência. E ele morreu crucificado em Jerusalém, às vésperas da festa da Páscoa. Quando tudo parecia ter-

Divulgação Novolhar

A resposta a essa questão não é única, mas, na maioria dos livros bíblicos, uma experiência de fé recebeu importância na tradição oral e fixou-se por escrito algum tempo depois.

minado, o grupo sentiu-se reanimado por uma experiência inédita: Jesus não ficara preso à morte, mas fora ressuscitado pelo poder de Deus. E o grupo foi incumbido de propagar sua mensagem aos quatro ventos, com a assistência do Espírito Santo. Sem essa experiência singular, não teriam nascido os quatro evangelhos, que retratam basicamente esses acontecimentos. Na origem dos textos estão, portanto, experiências de fé de pessoas com Deus. Algumas pessoas começaram, em seguida, a formular essas experiências para continuar animando a própria trajetória e orientar outras gerações ou grupos. No entanto, diferentemente do que se poderia pensar, essas experiências geralmente não foram logo formuladas por escrito, mas

VERSÕES DA BÍBLIA Hoje temos uma grande variedade de oferta de Bíblias na versão em língua portuguesa. As editoras católicas colocam à disposição a Bíblia de Jerusalém, Bíblia do Peregrino, Bíblia Sagrada – Edição Pastoral – Paulus Editora; Bíblia Mensagem de Deus e TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia pela Edições Loyola; Bíblia Sagrada – Ave-Maria – Editora Ave-Maria; Bíblia Sagrada de Aparecida – Editora Santuário; Bíblia Sagrada – Tradução da CNBB – CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e a Bíblia Sagrada – Vozes – Editora Vozes. Todas essas versões levam em conta o texto da Vulgata, mesmo recorrendo aos originais gregos e hebraicos.

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A mais recente versão brasileira da Igreja Católica é a Bíblia da CNBB, uma tradução dos originais realizada pela Comissão Bíblico-Catequética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). É a tradução oficial da CNBB. Serve de referência para a Igreja Católica no Brasil.

No mundo protestante, a variedade de versões em português não é menos numerosa. A primeira versão protestante em português foi realizada por João Ferreira de Almeida, completada já em 1753. Hoje a tradução de João Ferreira de Almeida é publicada na forma Almeida Corrigida e Fiel – Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil e Almeida Revista e Atualizada e a Almeida Revista e Corrigida pela SBB – Sociedade Bíblica do Brasil. NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


Os primeiros cinco livros da Torá, o Antigo Testamento, giram em torno da experiência de libertação dos hebreus da escravidão no Egito.

primeiramente de forma oral. Escrever era então um ato complexo, razão pela qual se preferia a oralidade. Surgiam assim as tradições orais, que formam a segunda etapa da formação dos textos. Essas tradições orais nasciam em várias situações da vida comunitária, em primeiro lugar nas celebrações cúlticas e festivas, quando se rememoravam os grandes feitos de Deus em favor de seu povo. Outros exemplos: os textos jurídicos do Pentateuco po-

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dem ter nascido nos portões das cidades, onde os anciãos pronunciavam as sentenças. Vários textos do Novo Testamento podem ter surgido em reuniões de instrução catequética, quando se procurava consolidar a fé dos fiéis. Ali as tradições recebiam um formato padronizado, que facilitava sua memorização e transmissão. Acrescente-se ainda que essas tradições viviam nas comunidades, quer dizer, testemunhavam não apenas o que Deus fizera outrora, mas também o que con-

tinuava fazendo em favor de seu povo. Por isso elas podiam ser atualizadas a partir de novas experiências de fé. Depois de circular muito tempo como tradição oral pelas comunidades, finalmente aquelas experiências de fé encontraram sua forma permanente e tornaram-se tradições escritas. Alguns textos e blocos talvez já estivessem escritos antes da redação final dos livros. Assim a versão final do Pentateuco deve ter sido concluída por volta de 300 a. C. Os evangelhos foram escritos entre 40 e 60 anos após os eventos. Eles nasceram em diferentes regiões do Império Romano, para preservar a memória sobre Jesus e atualizá-la para novas situações. Nem todos os livros surgiram desse modo. As cartas de Paulo, por exemplo, foram escritas desde o início com a intenção de orientar comunidades recém-fundadas. Mas também elas recolhem tradições orais que circulavam pelas comunidades. De qualquer forma, a história das tradições bíblicas é um testemunho vigoroso de que a palavra de Deus, fiel ao espírito que a orienta, precisa sempre de novo encarnar-se na vida das pessoas para tornar-se uma boa-nova. O autor é professor de Novo Testamento na Faculdades EST em São Leopoldo (RS)

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Como ler a Bíblia Ildo Bohn Gass

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LEITURA PESSOAL DA BÍBLIA É MUITO

útil e necessária, pois a Palavra é como uma fonte em que se encontra água viva, pois no Senhor está o manancial da vida (Salmo 36.9). As Escrituras educam as pessoas na justiça de Deus, a fim de que sejam pessoas habilitadas para toda boa obra (2 Timóteo 3.16-17). São como o orvalho, como o chuvisco sobre a relva (Deuteronômio 32.1-2), que alimentam nossa espiritualidade, iluminando nossas decisões e nossas atitudes no cotidiano. Elas são como marcos ao longo de uma estrada (Jeremias 31.21) para guiar-nos com segurança no caminho de Deus em meio a tantos caminhos que o mundo propõe. No entanto, corre-se um risco ao insistir numa leitura apenas pessoal da Bíblia. Cada leitura é feita a partir de um determinado ponto de vista, de um lugar social ou de um projeto de vida, a partir de nossas limitações próprias da condição humana. E, nesse sentido, interpretações pessoais podem estar mais para luz que ofusca os indicadores do caminho ao invés de clareá-los. Por isso, embora indispensável e de grande riqueza, a leitura pessoal da Bíblia permanece ainda incompleta na medida em que há um caminho sobremodo excelente e que nos guia com mais segurança em direção aos valores fundamentais da

vida. Eles dão um sentido mais profundo à nossa existência e ajudam a melhor cuidar de toda a criação. Esse caminho é a reflexão comunitária, dialógica. Ao partilhar as pérolas pessoais que descobrimos nos textos bíblicos, formamos um colar de beleza única. Diferentes perspectivas colocadas em comum, celebradas e aprofundadas, dão maior solidez à nossa experiência com Deus. Uma das relevâncias da leitura e da vivência comunitária das Escrituras está no fato de nosso modelo de sociedade promover, a qualquer custo, violência e individualismo, indiferença e consumismo, acúmulo e competição. Por isso os princípios éticos de amor e de justiça, de vida e de solidariedade, de liberdade e de partilha, essência do Deus Emanuel, presença libertadora no meio de nós, formam o eixo central de toda a Bíblia e ajudam a colocar-nos no mesmo caminho do Deus da vida. Também a Bíblia surgiu de muitas pessoas e comunidades que buscaram ser fiéis a Deus como pessoas, mas especialmente como povo. Ela foi vivida, refletida e redigida em comunidade. Hoje uma interpretação comunitária da Palavra é muito mais rica do que uma leitura pessoal. Essa também é importante. Mas aquela promove experiências mais profundas com Deus nas novas relações que nos levam a estabelecer conosco mesmos, com as demais pessoas e com o restante da criação. Uma leitura comunitária

ajuda a superar a leitura individualista, que, mais do que conectar a Palavra com a cidadania para todas as pessoas, contenta-se muitas vezes em buscar um bem-estar individual que pode não passar de uma massagem em nosso ego. Uma interpretação comunitária também contribui para entrar na Bíblia pela porta da realidade cotidiana com nossas perguntas, angústias e esperanças. Isso nos ajuda a buscar a vida real que está por trás do texto. Então essa mesma Palavra colabora na busca da intimidade com Deus em nossa realidade, em todas as formas de vida que nos revelam a presença do Criador. Não lemos a Bíblia somente por curiosidade intelectual, mas sobretudo para melhor fazer a experiência com Deus hoje. Esse modo de misturar vida e Bíblia evita seguirmos pelo caminho da leitura espiritualista. Uma outra vantagem ao fazer uma leitura comunitária é que enriquecemos uma hermenêutica crítica da Bíblia à luz da contribuição de todas as áreas da ciência. Essa interpretação ajuda-nos a perceber a força do Espírito, que palpita não somente no texto, mas também no contexto para o qual a Bíblia quis e quer ser ainda para nós, como Palavra viva e eficaz, luz no caminho (Hebreus 4.12; Salmo 119.105). Uma interpretação criteriosa ajuda-nos a superar especialmente a leitura literal, que não considera, entre outros elementos, a linguagem e as imagens, a cultura e a época em que o fato foi vivido e o texto foi escrito. O autor atua como secretário do Programa de Formação no Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) em São Leopoldo/RS

VERSÕES DA BÍBLIA Além das versões publicadas pela SBB, há versões protestantes batistas, presbiterianas, metodistas e pentecostais da tradução de João Ferreira de Almeida. Nessas edições são acrescentadas notas, introduções e comentários. No âmbito da IECLB, é recomendada a versão da SBB conhecida como Bíblia na Linguagem de Hoje. Essa versão apresenta o texto bíblico em linguagem simplificada para o leitor moderno.

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A Bíblia de Jerusalém é a Bíblia de estudo, resultado de todo um trabalho exegético e teológico da Escola Bíblica de Jerusalém. A primeira edição brasileira foi publicada em 1981 a partir de uma versão francesa. A revisão francesa de 1998 serve de base para a edição revista e atualizada de 2002, em que colaboram exegetas católicos e protestantes.

Na raiz de todo esse esforço de tradução, verificado ao longo do tempo, está o propósito de disponibilizar um texto da Bíblia mais acessível para os leitores e leitoras da língua brasileira. Há uma tendência cada vez mais acentuada de a tradução da Bíblia ser ecumênica, colocando à disposição dos leitores uma versão mais próxima dos originais e livre de tensões e conflitos confessionais. Para uma leitura mais proveitosa da Bíblia, convém comparar as versões das diferentes editoras e construir uma conclusão própria acerca do texto. (Informações de Flávio Schmitt, Professor da Faculdades EST) NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


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Abuso da Bíblia Quando o texto bíblico é usado para justificar interesses próprios ou ações em nome dele, corre-se o risco de fazer da Bíblia um instrumento de opressão e dor.

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PRENDI COM MARTIM LUTERO QUE

a Bíblia é uma manjedoura na qual está deitado Cristo. Caso não o encontrarmos, só temos palha nela. Há, contudo, pessoas que preferem a palha e utilizam a Bíblia para fundamentar suas próprias convicções, sem perguntar o que Jesus Cristo teria dito a respeito. É o caso, transmitido em anedota, da velhinha que, todas as manhãs, enfiava a tesoura em sua Bíblia para tomar dela o oráculo para o dia. O versículo para o qual apontava a ponta da tesoura era seu norte diário. Ela parou com essa atitude no dia em que a ponta da tesoura apontou para Mateus 27.5: “Então Judas, atirando para o santuário as moedas de prata, retirouse e foi enforcar-se”. Não contente com a indicação para o dia, enfiou a tesoura novamente na Bíblia e deparou-se com Lucas 10.37: “Vai, e procede tu de igual modo”. Daquele dia em diante, a velhinha não se valeu mais da tesoura em sua “leitura” da Bíblia. A Bíblia tem sido usada tanto para fundamentar a supremacia papal, a partir do instante em que o bispo de Roma se tornou um senhor feudal entre outros na Europa medieval (Mateus 16.18), como para fundamentar a autoridade inconteste de ditadores (Romanos 13.1-7), oportunidade em que se deixou de lado Apoca-

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lipse 13, que fala da autoridade que se transforma em “besta”, como para tirar dinheiro de incautos (Malaquias 3.10). Em sua luta contra Roma, Lutero, por seu turno, abusou de Apocalipse 13 para caracterizar o bispo de Roma. Puritanos que sempre tiveram uma postura muito positiva em relação ao dinheiro sempre gostavam de mencionar Gênesis 13.2: “Era Abraão muito rico; possuía gado, prata e ouro” ou Gênesis 39.2: “O Senhor era com José, que veio a ser homem próspero”. Com esses versos fundamentaram as ambições da ascendente classe média inglesa, que, em decorrência da exploração imposta a todos os continentes, acumulou riqueza e ousou considerar-se “o povo eleito”, esquecendo a admoestação dos profetas de que não se devem oprimir a viúva, o órfão e o estrangeiro. Quando os Estados Unidos substituíram a Inglaterra, consideraram-se povo eleito e passaram a agir da mesma forma. Ainda soam em nossos ouvidos as palavras do presidente Bush quando de invasões recentes em países asiáticos. Como é perigosa aí a frase que diz que “Deus é brasileiro...” Nessa sequência, valendo-se da divisão dos povos feita pela Bíblia, um dos pais do pentecostalismo, Charles Fox

Julia Freeman-Woolpert

Martin Norberto Dreher

Há pessoas que utilizam a Bíblia para fundamentar suas

Parham, afirmou que todo poder espiritual neste mundo pertence aos hebreus, aos judeus e aos diversos descendentes das dez tribos (anglo-saxões, alemães, dinamarqueses, suecos, hindus, japoneses e indo-japoneses no Hawai). Os pagãos (franceses, espanhóis, italianos, gregos, turcos e russos) são formalistas, e a maior parte deles continua a ser pagã: negros, malaios, mongóis e indígenas. A hierarquia apresentada por Parham corresponde ao racismo do sul dos Estados Unidos. Muito mais feliz foi outro pai pentecostal, William Joseph Seymour, que viu em Pentecostes a superação de raças e classes. Baseados principalmente no livro dos Provérbios, muitos pregadores adotam um critério pedagógico que denominam NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


de “varologia”: a utilização de castigos físicos violentos em relação à criança (cf. 13.24; 22.15; 23.13 e 14). Amor exigente não é o mesmo que castigo físico. Provérbios, aliás, é também usado e abusado para definir o perfil da mulher ideal (31.10-31) e para colocá-la completamente a serviço do marido e submissa a ele. A partir desse perfil, é feita uma leitura seletiva do feminino, negando-se à mulher a condição de apóstola (Romanos 16.7), de presidente (pastora) da comunidade (Romanos 16.2: os tradutores da passagem substituem o “presidir” por “proteger”), nega-se-lhe o direito de pregar (1 Coríntios 14.34), esquecendo 1 Coríntios 11.5, dando preferência à palavra terrível de que a salvação da mulher está condicionada a dar à luz filhos (1 Timóteo 2.15) e submeter-se ao marido. Quem faz isso jamais pregou sobre Cantares 1.1: “Beija-me com os beijos da tua boca, porque melhor é o teu amor do que o vinho”. Pior do que todos esses abusos é a transformação do nome Jesus em poderosa palavra mágica, semelhante ao “abracadabra”. Quando cruz, ressurreição e seu significado são deixados de lado, não há mais critério para a leitura da Bíblia. O autor é teólogo e professor de História na Unisinos em São Leopoldo (RS) próprias convicções

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A aliança de Deus com o povo P

ARA AS PESSOAS CRISTÃS DE HOJE, A

Bíblia é constituída por uma relação intrínseca entre Antigo e Novo Testamentos. Biblia é um termo de origem grega, que significa “conjunto de livros”. Aplicamos o termo de forma restrita à “nossa” Bíblia, mas se deveria falar também da Bíblia dos judeus (TaNaK – em termos básicos corresponde ao Antigo Testamento) e da Bíblia dos muçulmanos (Alcorão). Na história da formação da Bíblia cristã, a relação entre Antigo e Novo Testamentos nem sempre foi isenta de problemas. Os dois Testamentos que compõem a Bíblia querem ser entendidos como expressão da vontade de Deus para seu povo. A expressão mais concreta disso é a ideia da aliança. O termo hebraico para aliança é berit e significa a celebração de um acordo entre duas vontades. Deus propõe um conjunto de regras para o seu povo, e esse se compromete a colocar as normas em prática (Êxodo 24). Na língua grega do Novo Testamento, essa ideia é expressa pelo termo diathéke, que remete à construção de uma relação de fidelidade e compromisso. Fazer aliança com alguém é entrar numa relação de reciprocidade, na qual promessa e realização interpelam-se mutuamente, mesmo que de maneiras diferenciadas. Assim, a Bíblia é um conjunto de textos nos quais se comunica a vontade de Deus e a comunidade se compromete a colocá-la em prática. 22

Mas haveria diferenças muito grandes na “vontade de Deus” no Antigo e no Novo Testamentos? Cada parte da Bíblia tem suas especificidades, que não se contradizem. No Antigo Testamento, fala-se mais do Deus único, libertador, que deve ser adorado sem recurso a imagens, mas que promete a vinda de um messias redentor; no Novo Testamento, celebra-se esse messias prometido na figura de Jesus de Nazaré. Essas diferenças, que devem ser entendidas de forma complementária, geraram muitos conflitos ao longo dos séculos, que se baseiam em posturas e certezas de suposta superioridade da fé cristã sobre a fé judaica, por um lado, e de sentimentos de primazia na “eleição divina” e de negação da messianidade de Jesus, por outro. Especialmente nos primeiros séculos da história do cristianismo, quando houve um processo de separação e diferenciação em relação ao judaísmo, essas tensões foram mais fortes. Visto, porém, que somos todos – judeus e cristãos – dependentes e descendentes de uma mesma raiz, que nos é comum (Romanos 11.16-24), urge adotar e/ou aprofundar posturas mútuas de humildade, respeito, reconhecimento e acolhida, como já insistia o apóstolo Paulo (Romanos 9-11), pois Deus não rejeita seu povo e quer salvar todas as pessoas: Deus não quer que ninguém se perca! Exatamente isso é o que o apóstolo Pedro

Diovulgação Novolhar

Ivoni Richter Reimer e Haroldo Reimer

reconheceu em sua missão entre outros povos e culturas: Deus não faz acepção de pessoas, mas em todas as nações aceita e se alegra com pessoas que nele creem e praticam a justiça (Atos 10.34-5). Esses aspectos de nossa herança apostólica são vitais para a reflexão acerca da aliança que Deus faz com pessoas e povos e de sua relevância para nós ainda hoje. Deus intervém por causa de situações de opressão e injustiça e chama pessoas para ser sujeitos em processos de libertação e de compromisso com o reino de paz que brota da justiça. Essa intervenção acontece por causa da misericórdia de Deus, que ouve o clamor de quem sofre. A libertação é fruto da graça que compromete com a vida. Por isso um de seus resultados, no processo do êxodo, é firmar aliança: Eu serei o teu Deus, e tu serás o meu povo (Jeremias 31). No centro da aliança estão, portanto, a libertação e o compromisso, e ela existe por NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


Todos os textos do Novo Testamento apontam para a relação promessacumprimento. Cristo não é o fim da Lei, mas a sua plenitude.

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causa e a partir da graça e da misericórdia de Deus, que mantém a sua aliança, que é uma só e que se expressa de formas diversas. O termo hebraico hésed e o termo grego cháris designam características que se inter-relacionam: justiça, fidelidade, misericórdia, bem-estar, alegria, paz... A relação de fé/fidelidade, leis e mandamentos serve para assegurar relações de justiça e de paz que coíbam novas situações de opressão. A aliança entre Deus e pessoas/povos é, assim, uma poderosa forma de validar uma ética comunitária que preserve o que a libertação conquistou: liberdade, terra, paz. Essa aliança misericordiosa de Deus é cumprida de forma crítica, radical e criativa em Jesus de Nazaré. Todos os textos do Novo Testamento apontam para a relação promessa-cumprimento. Nesse sentido, Cristo não é o “fim” da Lei/Torá, mas a sua plenitude (Romanos 10.4). A fé, o amor e o compromisso com o reino de Deus, como resposta à sua ação amorosa, são capazes de realizar toda a Lei, não pela Lei em si, mas pelo amor a Deus e à sua criação, em toda a sua diversi-

dade. Assim, em Cristo se cumprem a Lei e a Promessa; nós, em Cristo, pela fé e com amor, podemos realizar a vontade de Deus e honrar a aliança que se firma de forma nova por meio de Cristo, que, pela fé somente, possibilita a inclusão de pessoas de todas as nações e etnias. Somos povo da nova aliança – o que é isso? Que fomos incluídos no povo de Deus por meio do amor gratuito que ele manifestou em Jesus Cristo. A “nova” aliança firmada no sangue de Jesus (Lucas 22.20) é a realização da profecia de Jeremias 31.31-34, da qual faz parte o perdão dos pecados. Se Jesus foi fiel até a morte na cruz – como resultado de sua fidelidade à aliança de Deus –, nosso seguimento a Jesus pressupõe essa mesma postura, que será permeada pelo amor e pela misericórdia no serviço ao próximo (Romanos 13.8-10). De acordo com o apóstolo Paulo, a “primeira” aliança não será revogada, porque Deus lhe permanece fiel e opera para que todos, por amor, permaneçam unidos à mesma raiz (Romanos 11.23-4). A igreja, no sentido de Romanos 9-11, deve ser profundamente humilde, ecumênica e diaconal, em posturas e atitudes de respeito e valorização das diferenças e na afirmação da dignidade de toda a vida. Os autores são teólogos e atuam como professores universitários em Goiânia/GO

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A formação do cânone José Adriano Filho

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PALAVRA CÂNONE É DE ORIGEM GREGA

e significa “vara de medir”, “regra”. Sua aplicação aos livros bíblicos reconhecidos como inspirados pela igreja cristã ocorreu nos séculos terceiro ou quarto d.C. Inicialmente, a igreja utilizava outras expressões para designar os livros sagrados: “Escritura”, “A Lei”, “A Lei e os Profetas”, “A Antig a Aliança”, “Moisés e os Profetas”, “A Lei de Moisés, os Profetas e os Salmos”. Fórmulas verbais também eram utilizadas: “O Senhor disse”, “A Escritura diz”, “Moisés escreveu”, “Como está escrito”. Essas expressões significam um apelo à autoridade divina e correspondem a designações também utilizadas pela comunidade judaica. A igreja cristã herdou a organização do Antigo Testamento em três partes – a Lei, os Profetas e os Escritos –, que já havia ocorrido no judaísmo. No século 2 a.C., o neto de Jesus ben Sira, que traduziu o livro de seu avô, o Sirácida, do hebraico para o grego, para os judeus do Egito de fala grega, acrescentou um prólogo à tradução, no qual menciona as três partes do cânone: “Muitas coisas importantes nos foram transmitidas pela Lei, os Profetas e os que os seguiram; por causa deles convém exaltar Israel por sua instrução e sua sabedoria”. Parece, então, que havia três grupos de livros, que possuíam autoridade única, com os quais ben Sira estava familiarizado. A tripla divisão do cânone do Antigo Testamento aparece em dois ditos de Jesus. O primeiro dito menciona “o sangue dos justos derramado sobre a terra, 24

desde o sangue de Abel, o justo, até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que vós assassinastes entre o santuário e o altar” (Mateus 23.35). Esse dito indica que, para Jesus e seus ouvintes, o cânone começava com Gênesis e terminava com Crônicas, pois mostra a morte de Abel no começo (Gênesis 4.3-15) e a de Zacarias no último livro (2 Crônicas 24.19-22). O segundo dito, que se encontra no relato de Lucas da ressurreição de Jesus, menciona a “Lei de Moisés, os Profetas e os Salmos” (24.44). “Lei de Moisés”, os “Profetas” e os “Salmos” já eram nomes estabelecidos para as três partes do cânone. “Lei de Moisés” e os “Profetas” já haviam aparecido no Sirácida, mas a menção de “Salmos” é novidade. Na igreja cristã do primeiro século, o termo “Bíblia Cristã” significava somente o Antigo Testamento, que foi tomado da sinagoga e recebeu uma interpretação cristã. A igreja adotou as Escrituras do judaísmo com toda a naturalidade. Além disso, os primeiros escritos cristãos, que em meados do século 2 ganharam o status de um Novo Testamento, exibem evidência tanto de continuidade como de descontinuidade com o Antigo Testamento. Esses escritos indicam que, apesar dos cristãos terem recebido as Escrituras judaicas, eles atribuíram autoridade igual ou até maior às palavras de Jesus do que ao texto do Antigo Testamento. Além do reconhecimento da autoridade das palavras de Jesus, os pré-requisitos básicos para a aceitação dos livros do Novo Testamento foram, primeira-

mente, a “regra de fé”, isto é, a correspondência de um dado livro com a tradição cristã reconhecida como norma pela igreja, e,em segundo lugar, o “cânone ou regra da verdade”, utilizado pelos pais da igreja no sentido de que a própria verdade é o padrão pelo qual ensino e prática devem ser julgados; em terceiro lugar, o uso e a aceitação do livro pela igreja, ou seja, um livro que teve aceitação por muitas igrejas num longo período tinha mais possibilidades de ser reconhecido como canônico do que um livro aceito apenas por algumas igrejas. Na luta contra o gnosticismo do século 2 d.C., porém, a igreja foi forçada a responder em que consistia a Escritura para ela. Seria o Antigo Testamento “cristianizado”? Toda a Escritura judaica deveria ser descartada, como queriam os gnósticos? Seria a união entre o Antigo e o Novo Testamentos? Nessa discussão, que envolvia as relações do cristianismo com a revelação do Antigo Testamento, os cristãos estabeleceram um tipo de interpretação que preserva o sentido literal da Escritura, mas encontra prenúncios e analogias historicamente reais da pessoa de Jesus no Antigo Testamento. Esse modelo de interpretação, que representa uma leitura cristológica do Antigo Testamento, foi também a resposta da igreja cristã às questões levantadas pelos gnósticos. Essa resposta não envolveu a exclusão do Antigo Testamento, como queriam os gnósticos, mas, ao contrário, resultou na união do Antigo com o Novo Testamento. Alguns anos depois, segundo a tradição, João Crisóstomo (349-407 d.C.) utilizou a palavra Bíblia, que significa livros, para designar as Escrituras Sagradas. A partir de então, a palavra Bíblia foi incorporada ao vocabulário cristão, sendo utilizada para designar suas Escrituras Sagradas, compostas pelo Antigo e Novo Testamentos.

O autor é professor de Novo Testamento no Seminário Teológico Rev. Antonio de Godoy Sobrinho, da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, em Londrina/PR NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


A gráfica da Bíblia Rudi Zimmer

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1948, AS IGREJAS CRISTÃS BRASIleiras fundaram a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) com o objetivo de abastecer o país de Bíblias e disseminar sua mensagem entre a população brasileira. A missão da SBB é “a difusão da Bíblia e sua mensagem como instrumento de transformação espiritual, de fortalecimento dos valores éticos e morais e de incentivo ao desenvolvimento humano, nos aspectos espiritual, educacional, cultural e social, em âmbito nacional”. Para cumprila, a Sociedade Bíblica traduz, publica, produz e distribui o texto sagrado em formatos diferenciados e adequados aos mais variados segmentos da população. Lembrando a parábola do semeador (Mateus 13.1-23), a SBB sintetizou sua missão recentemente, em sua 19ª Assembleia Geral, com o seguinte lema: “Semeando a Palavra que transforma vidas”. As quatro palavras-chave do lema resumem o trabalho realizado pela Socieda-

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Divulgação Sociedade Bíblica do Brasil

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A Gráfica da Bíblia, em Barueri (SP), é um divisor de águas na produção de Escrituras

de Bíblica em parceria com as igrejas brasileiras: fazer com que a palavra de Deus seja conhecida, tenha relevância e transforme nossa sociedade.

Para cultivar a palavra de Deus no coração das pessoas, a SBB conta com alguns elementos fundamentais. O primeiro deles é uma equipe interdisciplinar que

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Divulgação Sociedade Bíblica do Brasil

Em uma iniciativa inédita e pioneira no país, a SBB implantou uma gráfica braile especialmente para produzir a Bíblia completa para esse público. Composta por 38 volumes, foi lançada em 2002 e, desde então, tem seus volumes distribuídos gratuitamente a mais de 2.500 pessoas cadastradas no programa.

atua na tradução do texto bíblico e no desenvolvimento de produtos que atendam às necessidades dos mais variados segmentos: jovens, crianças, acadêmicos e pastores, entre outros. O segundo elemento é a Gráfica da Bíblia, divisor de águas na produção de Escrituras no país, que trouxe mais qualidade à edição de Bíblias, além de reduzir seus custos, tornando-as mais acessíveis à população. O terceiro ponto é sua rede de distribuição. Com oito unidades administrativas, localizadas em regiões estratégicas do Brasil, a SBB consegue abastecer com Bíblias os grandes centros urbanos e também as comunidades situadas em regiões remotas e de difícil acesso. Por fim, seu forte trabalho na área social, iniciado em 1962 com a criação do programa Luz na Amazônia. A bordo de um barco-hospital, voluntários prestam atendimento espiritual, médico e social aos ribeirinhos, que vivem em situação de extrema carência. Os impactos positivos gerados por esse programa foram tantos, que sua abrangência foi ampliada por meio da cria26

ção do Luz no Brasil. Esse programa visa promover o desenvolvimento espiritual, a saúde, a educação e a cidadania dos indivíduos. Os números alcançados no ano passado comprovam a relevância dessa iniciativa: em 65 viagens foram realizados perto de 32 mil atendimentos, que beneficiaram cerca de 16 mil pessoas. Parte desse saldo positivo deve-se à decisão de lançar, em 2008, o Luz no Sul, que por meio de um ônibus-ambulatório tem percorrido a região do Vale do Ribeira, uma das áreas mais problemáticas e carentes do Paraná. Em agosto deste ano, foi inaugurado mais um braço do programa, dessa vez para atender a população nordestina. Implantado com recursos provenientes da Sociedade Bíblica da Escócia, o Luz no Nordeste conta com um caminhão-ambulatório equipado com dois consultórios médicos e uma área de exposição batizada de “Mundo da Bíblia”. Outro programa que também merece destaque é o Inclusão do Deficiente Visual. Em funcionamento há mais de 15 anos, tem a finalidade de contribuir para o processo de inclusão, o desenvolvimento cultural e o amparo espiritual das pessoas

com deficiência visual. A iniciativa envolve a produção e a distribuição gratuita de literatura bíblica em áudio e braile. Em uma iniciativa inédita e pioneira no país, a SBB implantou uma gráfica braile especialmente para produzir a Bíblia completa para esse público. Composta por 38 volumes, foi lançada em 2002 e, desde então, tem seus volumes distribuídos gratuitamente a mais de 2.500 pessoas cadastradas no programa. Esse é apenas um pequeno retrato da atuação da SBB na área social. Outros públicos, especialmente pessoas em situação de risco social, são atendidos por outros programas específicos, entre os quais estudantes, enfermos hospitalizados, dependentes químicos e presidiários. Todo esse trabalho de “semear a Palavra que transforma vidas” somente é possível ser realizado graças a uma grande rede solidária, formada pelas igrejas cristãs brasileiras, voluntários e parceiros que acreditam na causa da Bíblia. O autor é diretor executivo da Sociedade Bíblica do Brasil em Barueri (SP) NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


História

Que República é essa? Os republicanos do século 19 preocupavam-se com as proibições vindas do sistema. E isso continua válido, mas muito mais apavorantes são, hoje em dia, as imposições, aquelas coisas que somos obrigados a fazer contra a nossa vontade e sem qualquer sentido. René E. Gertz

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brasileira fará 120 anos. A data costuma ser comemorada sem entusiasmo. É um feriado que se aguarda com algum interesse, pois significa um dia de descanso quase no final do ano. Mas se a gente perguntar como começa o Hino da República, poucos brasileiros saberão responder. Em comparação, a situação deve ser um pouco melhor quando se pergunta pelo Hino da Independência – ao menos alguns vão cantarolar o “Já podeis da Pátria filhos...”. Mas alguém sabe que o Hino da República começa com “Seja um pálio de luz desdobrado, sob a larga amplidão des-

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Reprodução Novolhar

M 15 DE NOVEMBRO, A REPÚBLICA

Mal. Deodoro da Fonseca proclamou a República

tes céus”? Mais conhecido é o estribilho: “Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós”. Quantos, porém, o ligarão ao Hino da República? A situação deriva das condições em que ela foi proclamada. Em 18 de novembro de 1889, o jornalista Aristides Lobo escreveu que “o povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam, sinceramente, estar vendo uma parada”. Nos primeiros 40 anos, a participação eleitoral não aumentou em relação ao tempo da Monarquia, pois não mais de 2% da população votavam. Nas dez eleições presidenciais de 1894 a 1930, em apenas quatro houve dois candidatos; nas outras seis, apenas um. Depois de 1930, com Getúlio Vargas, foram feitas algumas leis sociais, mas houve pouca democracia. Quando ele caiu em 1945, iniciaram-se 20 anos de efervescência política, social e cultural. Apesar de enganos, talvez tenham ocorrido então os mais promissores debates sobre os destinos do país. Em 1964, veio o regime militar, que durou mais 20 anos. Finalmente, desde os anos 1980, estamos na Nova República. Em 1988, Ulisses

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Segurança pública

Guimarães proclamou a “Constituição Cidadã”. Ela, porém, não trouxe melhorias definitivas nas instituições republicanas. As notícias sobre nossos governantes nos diferentes níveis e poderes não mostram uma República que nos orgulhe. Mas a volta a uma Monarquia seria alternativa? Em 1993, realizou-se um plebiscito no qual 42% dos eleitores manifestaram indiferença; apenas 7,5% optaram pela Monarquia, e os restantes foram favoráveis à manutenção da República. Isso significa que metade dos brasileiros não via outra saída e obriga-nos a tentar fazer o melhor com aquilo que temos. Nesse sentido, uma possibilidade consiste em retomar a discussão e a luta por princípios que nortearam os fundadores do Partido Republicano em 1870. Apontamos apenas três desses princípios: Descentralização – Não há dúvida de que o mundo moderno exige ações cada vez mais amplas a partir dos governos federais. Mas não se pode abrir mão da proximidade do cidadão à máquina do Estado. É de vereadores e de prefeitos que o cidadão comum consegue aproximar-se, e por isso o município deve ser fortalecido para atender as necessidades básicas. Limitação do poder – Isso significa muitas coisas, mas nós todos sentimos, no cotidiano, a opressão crescente do “sistema”. Os republicanos do século 19 preocupavam-se, sobretudo, com as proibições vindas do “sistema”. E isso continua válido, mas muito mais apavorantes são, hoje em dia, as imposições, aquelas coisas que somos obrigados a fazer contra a nossa vontade e sem qualquer sentido. Pluralismo – No Império havia uma religião oficial, e os republicanos eram contra. Esse tema se coloca hoje de maneira diferente. O pluralismo religioso está garantido – os riscos talvez sejam diferentes, no sentido de que essa própria garantia possa ser mal utilizada. Mas sobretudo o pluralismo atual deve levar em conta muitas novas frentes além da religiosa: o pluralismo social, cultural, étnico e muitos outros. O autor é professor de História na PUCRS e na UFRGS em Porto Alegre (RS)

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Igrejas em busca da paz Os cristãos de diferentes tradições e confissões são claramente chamados a viver no amor e conviver em paz. Matthias Tolsdorf

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OS MESES DE OUTUBRO E NOVEM-

bro, o Movimento de Fraternidade de Igrejas Cristãs (MOFIC – representação oficial do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no estado de São Paulo) realiza vários eventos que abordam o tema da “Segurança Pública e as Religiões”. Várias igrejas fazem parte desse movimento: Igreja Apostólica Armênia, Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Igreja Ortodoxa Antioquina, Igreja Presbiteriana Unida. Além disso, a campanha sobre Segurança Pública e as Religiões contará também com a participação de representantes do budismo, espiritismo, islamismo, judaísmo e de religiões afro etc. Na noite do dia 26 de novembro, acontecerá um ato inter-religioso no Mosteiro São Bento, no centro da cidade de São Paulo. Nesse ato, representantes de diversas religiões e confissões citarão frases de seus livros sagrados ou dos fundadores de suas religiões que tratam da tolerância, do respeito e da busca pela paz. Esse evento en-

cerrará com a assinatura de um compromisso pela tolerância religiosa em favor da segurança pública. O artigo abaixo visa dar uma contribuição para a campanha “Segurança Pública e as Religiões” a nível nacional e dentro da IECLB, que participa ativamente de vários órgãos ecumênicos nacionais e internacionais e também mantém diálogo com representantes de outras religiões. “Deus é brasileiro” – diz um ditado popular muito conhecido. De fato, o Brasil é um país que conta com uma natureza exuberante, com riquezas abundantes, com praias lindas ao longo dos cerca de 7.000 quilômetros de litoral e com um povo muito alegre e hospitaleiro. Por isso dá para acreditar que Deus, se precisasse escolher um país para morar, pensaria seriamente em se mudar para o Brasil. Outro aspecto que talvez fosse influenciar a decisão de Deus seria a diversidade do povo que habita este país: Ele, Deus, que criou todos os seres humanos (em várias etnias, que têm cores de pele e características diversas e falam idiomas diferentes), certamente se alegraria em conviver com representantes de todos os povos e todas as nações, ou seja, conviver com a plenitude de sua criação. No entanto, a intolerância e o preconceito existentes entre esses povos com certeza assustariam Deus. Imaginem só se entre esses povos que vivem em briga e convivem em preconceito com os outros povos se chama ainda de povo de Deus. Fazer parte do povo e da família de Deus (Efésios 2.19) compromete toda a cristandade com a vontade soberana do Criador. Aproveitando o cenário imaginário e simplório de Deus, que considera se mudar para o Brasil, pode-se perceber que a vontade de Deus não é ver suas criaturas divididas ou em conflito. Existem inúmeras provas bíblicas para a vontade de Deus de promover a vida e semear a paz. Lemos em 1 João 4.21 que o amor a Deus se reflete no amor ao próximo. Que esse amor se estende para além das fronteiras de confissões e religiões, Jesus evidencia quando usa a parábola do bom samaritano (Lucas 10.2537): Nessa parábola, Jesus compara o comportamento de um sacerdote e um levita (ambos faziam parte do povo de Deus e assuNOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


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Tolstorf (ao centro) entre clérigos em oração pela paz, buscando nas diversas religiões a reflexão sobre maneiras de viver o respeito e o amor para com pessoas de outras crenças e o combate da intolerância religiosa e violência.

miam uma função específica na religião judaica) com a ação de um samaritano (que era considerado um inimigo que adorava outro deus) para explicar que esse último agiu conforme a vontade de Deus. Mas a tarefa de amar persiste até nos momentos em que lidamos com alguém que utiliza um raciocínio totalmente diferente do que o nosso, que nega e questiona a nossa fé ou que nos condena e persegue por nossa crença, nossas escolhas, nossa classe social ou nossa

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cor de pele etc. Seguindo a ordem de Jesus, somos chamados a amar (e respeitar) as pessoas até nos momentos em que a discórdia se transforma em inimizade (Mateus 5.43-48). O tema da segurança pública (ou da insegurança, do preconceito e da violência públicos) domina os jornais – praticamente cada dia. Muitas religiões formulam como alvo na vivência de sua crença a busca pela paz. No entanto, diferenças ou con-

flitos de ordem religiosa são, muitas vezes, a razão para hostilidades e intolerância no dia-a-dia ou dão início a brigas e guerras. Por isso é preciso que tanto líderes como membros das diversas religiões reflitam sobre maneiras de viver o respeito e o amor também com as pessoas de outras crenças e de combater intolerância religiosa e violência. Nós como cristãos de diferentes tradições e confissões somos claramente chamados a viver no amor e conviver em paz, pois a vontade de Deus nos chama à missão de testemunhar nosso Deus com atos de amor, respeito e caridade – cativando o acolhendo as pessoas sem julgar sua etnia, aparência, cultura e crença. Assim podemos juntos (como diferentes religiões) e cada um por si (em sua tradição religiosa ou confissão cristã) promover a paz, a vida, a solidariedade e a segurança pública. Quem sabe, conseguimos dessa forma agradar e atrair Deus mais ainda pelo lindo país que ele criou. O autor é teólogo e pastor na Paróquia Vila Campo Grande em Diadema/SP

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Profissões tos diários, Soares revela que, apesar da substituição da navalha pela gilete, o segredo de uma barba bemfeita continua sendo a “mão firme e a lâmina afiada”. “A gilete deve estar nova, e a mão boa para fazer o recorte preciso, conforme o pedido do freguês”, indica. Aos 69 anos, Soares se diz em “fim de carreira”. Atendendo clientes ainda crianças e senhores com quase um século de vida, ele acredita que as barbearias continuarão resistindo à passagem do tempo enquanto conformarem aquele espaço de socialização e bate-papo. “Aqui se fala muito sobre mulher e futebol, embora os assuntos sejam bastante variados”, relata. Sócio de Soares no Salão Ramos em São Leopoldo, Paulo Pereira, 48 anos, afirma que em várias ocasiões o barbeiro assume também o papel de psicólogo. O assunto mais recorrente, comenta, são os problemas envolvendo a relação entre marido e mulher. “Há clientes que contam a vida toda, inclusive que estão se separando, que foram traídos ou então que a vida amorosa não anda bem”, menciona. Em sintonia com o colega de profissão, Mauri concorda que, além de servir como mobiliário para fazer a barba, o cabelo e o bigode, a cadeira do barbeiro é, em muitos casos, confundida com um divã. “Tem cliente que chega, se acomoda e conta os seus problemas com um grau de confiança no barbeiro que chega a dar inveja em muito psicólogo”, comenta. Entre os clientes, elenca Mauri, há o piadista, o tímido, o extrovertido, aquele que faz tudo, mas, na verdade, não faz nada, aquele que tem tudo, mas, na verdade, não tem nada, aquele que viaja muito para o exterior e sempre traz alguma noviMicael Vier Behs

Barba, cabelo, bigode e psicologia

Mauri: a cadeira do barbeiro também é confundida com um divã

Micael Vier Behs

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PESAR DA CONCORRÊNCIA DOS SALÕES

de beleza, a boa e velha barbearia resiste ao tempo através da fórmula: barba, cabelo e bigode. “As pessoas buscam a barbearia pela agilidade. Aqui o cliente corta o cabelo, faz a barba, fala uma bobagem e vai embora”, relata Mauri Rodrigues da Silva, que ao longo de 13 anos de profissão realizou 49.500 atendimentos na pequena e movimentada barbearia São Domingos em São Leopoldo (RS). Mesmo com uma clientela fiel, Mauri considera a barbearia um estabelecimento em extinção. “Com essa his-

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tória de metrossexual, hoje os homens também pintam o cabelo, fazem depilação, limpeza de pele e tiram a cutícula”, aponta o barbeiro, que define seu público como “tradicional e prático”. Profissional há mais 40 anos, Valdomiro Ramos Soares aprendeu as artimanhas do ofício com um colega de profissão numa época em que nem se cogitava a utilização da gilete descartável. Nesse período, o dia de trabalho iniciava com o ritual de afiação da navalha, e o salão de beleza, à época chamado de “instituto”, atendia apenas mulheres. Com uma média de 15 atendimen-

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Religiões dade, o que gosta de falar sobre esporte, carro, moto, mulher, política. Toda essa diversidade de clientes pode ser mais facilmente encontrada na barbearia São Domingos aos sábados, dia em que Mauri chegou a realizar 32 cortes de cabelo e a raspar nove barbas. “Nas sextas e nas segundas-feiras, o movimento também é bom”, arrola o barbeiro. Nos últimos dez anos, ele não passou um só dia da semana sem atender pelo menos um cliente. Talvez o segredo para seguir com o trabalho de barbeiro esteja justamente na simplicidade e no culto à tradição de cortar o cabelo, raspar a barba, aparar o bigode e jogar conversa fora. Fã do Tio Patinhas, Paulo Pereira mostra com orgulho a nota de 50 cruzados emoldurada na parede da velha barbearia, referente ao pagamento do primeiro cabelo que cortou como barbeiro profissional em julho de 1987. No verso da nota, anotada a lápis, a frase “primeiro corte” relembra uma época em que a barbearia tinha muitos clientes dispostos a gastar 50 cruzados para fazer a barba e tempo de sobra para colocar a conversa em dia.

O autor é jornalista em São Leopoldo/RS

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As maiores do mundo Marcelo Schneider

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EDIÇÃO DE 11 DE OUTUBRO DE 2009

do jornal colombiano El Tiempo traz uma entrevista com o escritor português José Saramago cujo tema principal é sua relação com a religião. A certa altura da conversa, Saramago declara: “É preciso ter um altíssimo grau de religiosidade para ser um ateu como eu. No sentido etimológico, a religião é o que une. Sabemos que estamos ligados ao universo. (...) Presumo estar muito atento ao que acontece ao meu redor. Uma das coisas que está aí fora é a religião”. Saramago reconhece o papel da religião na dinâmica mundial e se confessa atento a ele. Uma análise pertinente da realidade global não pode prescindir de um olhar atento ao cenário religioso. O mundo tem hoje 6,8 bilhões de habitantes. A maioria dessas pessoas acredita ou tem uma relação com o transcenden-

te. A forma como vivem sua espiritualidade em grupos com os quais se identificam torna-os parte de uma religião. O cenário religioso é imensamente diverso nessa ampla gama de ofertas. O cristianismo ainda é a maior religião do mundo com 2,1 bilhões de seguidores, divididos entre católicos, protestantes, ortodoxos, batistas, pentecostais etc. Mas um estudo demográfico conduzido pelo Fórum sobre Religiões e Vida Pública do Centro de Pesquisa Pew, dos Estados Unidos, lançado no último mês de outubro, determinou que os muçulmanos representam hoje quase um quarto da população atual do mundo, com cerca de 2/3 deles vivendo no continente asiático, e que o islã é a segunda maior religião do planeta, ficando atrás apenas do cristianismo. Mais de 60% dos muçulmanos vivem na Ásia, enquanto 20%

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Turismo

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Opção barata Divulgação Novolhar

vivem no Oriente Médio e no Norte da África. Um número substancial de muçulmanos, 1/5 (ou mais de 300 milhões), vive em países onde essa religião não é majoritária, como na Índia. O próximo grupo representativo numericamente nessa escala são os hinduístas, grupo que chega a 900 milhões de pessoas, seguidos dos budistas e dos xintoístas, com 300 milhões de seguidores cada um. Grupos historicamente influentes, como os judeus, e nacionalmente expressivos, como os espíritas, têm números semelhantes (14 milhões). Outro grupo muito expressivo, ainda que nãohomogêneo, são as religiões de matriz indígena (300 milhões). Um número bastante contundente nas estatísticas atuais é de agnósticos e ateus, que contam 1,1 bilhão de pessoas. Encaixam-se aí não somente aqueles que não acreditam ou negam a existência de um ser superior ou divindade, mas também um grupo que tem aumentado neste início de novo milênio, a saber, os que declaram viver uma espiritualidade independente das estruturas, sistemas e instituições estabelecidas. À primeira vista, esse grupo não se encaixa em nenhuma análise de expressões religiosas atuais pelo simples fato de não pertencer ou constituir em si uma religião. Mas não se podem ignorar sinais curiosos nessa dinâmica. Saramago movimenta-se bem nesse ambiente desconhecido. Outra dinâmica digna de nota é a que constatamos entre as religiões estabelecidas. Em blocos ou de forma independente, parecem mover-se em duas correntes bem distintas: a dos fundamentalistas e a dos liberais. A busca por expressões religiosas fundamentalistas no seio de qualquer uma das grandes religiões hegemônicas atualmente é um fenômeno proporcional ao avanço e à velocidade das conquistas da modernidade. A dificuldade de adaptar e desenvolver uma ética capaz de abranger novas realidades faz com que muitos prefiram a busca das raízes, crendo, assim, estar sendo mais fiéis ao chamado que responderam quando aderiram a esse ou àquele grupo. Do outro lado da moeda, o movimento por livres adaptações comportamentais e organizacionais pode levar a um relativismo que acaba roubando a energia

Para o Dr. Shanta Premawardhana, o trabalho das relaçoes entre as diferentes expressões de fé precisa ir além das conversas teológicas, passando para uma diplomacia baseada na fé, na qual os líderes religiosos assumem a condução diplomática, especialmente em conflitos em que as manobras políticas estão falhando.

aglutinadora da religião. Nessa polarização, o diálogo inter-religioso é uma ferramenta de grande utilidade. Mais: o diálogo e a cooperação religiosos são hoje uma das poucas vias através das quais crentes ao redor do mundo podem criar e multiplicar, interna e externamente, a consciência acerca de questões pontuais que tocam todos os seres humanos, como a paz, a ecologia, a justiça e os direitos humanos. Para o Rev. Dr. Shanta Premawardhana, diretor do programa de diálogo e cooperação inter-religiosa do Conselho Mundial de Igrejas, “o trabalho das relações entre diferentes expressões de fé precisa ir além das conversas teológicas, passando a uma ‘diplomacia baseada na fé’, na qual líderes religiosos assumem a condução de iniciativas diplomáticas, especialmente em conflitos com causas religiosas, nos quais as manobras políticas estão falhando”. Parafraseando Saramago, podemos concluir que é preciso ter um altíssimo grau de humanidade para entender o papel das religiões no mundo de hoje. O autor é teólogo e assessor do Moderador do Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre/RS

Quartos limpos, coletivos e por um bom preço: a ideia do hostel nasceu na Alemanha, inspirada por um professor aventureiro que viajava com seus alunos. O conceito espalhou-se e hoje atrai todos os públicos. Nádia Pontes

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Á CEM ANOS, O PROFESSOR ALEMÃO

Richard Schirrmann teve uma ideia que transformou a maneira de viajar dos jovens do mundo todo: o que era aventura escolar transformou-se na maior rede de albergues da atualidade. Passado um século daquela tarde chuvosa que mudou os planos do grupo de estudantes que viajava pelo vale do Bröl, na Alemanha, os albergues da juventude – também chamados de hostels – são agrupados numa federação que reúne mais de 4 mil unidades em cerca de 80 países. Os serviços e os preços oferecidos possibilitam a muitos estudantes aventurarem-se mundo afora sem gastar muito para dormir. Com o passar dos anos, os dormitórios enormes têm ficado cada vez mais raros: nos dias de hoje, é possível reservar quartos duplos e até individuais nos albergues. NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


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Estátua em homenagem a Richard Schirrmann

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Não são mais apenas estudantes que lotam os quartos: os albergues atraem cada vez mais famílias, jovens e aventureiros em geral. Richard Schirrmann costumava levar seus alunos para fazer caminhadas em montanhas, a fim de motivar o aprendizado por meio das experiências. Como os passeios duravam vários dias, a única possibilidade de acomodação para todos os alunos eram as fazendas encontradas durante as excursões. Foi a partir de uma intempérie que surgiu uma grande ideia: em 26 de agosto de 1909, o professor e seu grupo encontraram uma tempestade pelo caminho. O único abrigo possível foi uma escola no vale do Bröl. Todos dormiram nas salas de aula, um fazendeiro local cedeu-lhes leite e a palha que serviu de cama. A ideia seguiu adiante: um ano depois, o professor Schirrmann escreveu um trabalho sobre o tema “albergues para estudantes de escolas públicas” e difundiu o movimento. Em

1912, o primeiro albergue da juventude – Jugendherberge, em alemão – foi inaugurado no antigo castelo de Altena, com dois dormitórios, camas triplas e banheiros. O crescimento foi rápido: em 1913, já havia 83 albergues com mais de 21 mil diárias registradas. Em 1931, a Europa contava com 12 associações num total de 2.600 hostels. Uma conferência internacional que reuniu todas as associações existentes fundou, em 20 de outubro de 1932, a Federação Internacional de Albergues da Juventude ou Hostelling International. Passado um século da criação do conceito de albergue da juventude, os mochileiros da atualidade movimentam 1,4 bilhão de dólares por ano. O dinheiro gerado é reinvestido: os hostels mais lucrativos ajudam a manter os mais afastados em locais remotos. A Hostelling International transformou-se na maior associação do mundo, com mais de 3 milhões de membros. Não é obrigatório ser jovem ou estudante para filiar-se: a carteirinha pode ser feita em qualquer albergue da federação – e quem é membro paga mais barato. A autora é jornalista da Deutsche Welle (www.dw-world.de)

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Igualdade racial

A devolução das áreas dos antigos quilombos, além da reparação, acabaria com intervenções emergenciais, focando as políticas públicas de educação, saúde e transporte. Antonio Carlos Ribeiro

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EU QUILOMBO TÁ LINDO COMO QUÊ!

Essa expressão da carta de bispos, presbíteros e diáconos negros, reunidos na 21ª Assembleia Nacional, em julho, na cidade de Registro (SP), expressa solidariedade com a luta dos quilombolas e lembra a dívida social para com os descendentes da escravidão, a mais cruel forma de exploração do trabalho humano. A crise atingiu a monarquia, que ruiu em 1889. Para entendê-la, voltamos à história política e econômica da colônia e da regência. Pedro Reis, do Conselho Estadual de Políticas de Igualdade Racial (Cepir/MT), mostrou que os primeiros escravos foram trazidos a Mato Grosso entre 1650 e 1700 e levados para Vila Bela da Santíssima Trindade, a região antimural do marco do Tratado de Tordesilhas, assinado entre Portugal e Espanha em 1494. Para estabelecer o novo meridiano, os escravos que formaram os quilombos na

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região foram levados para Livramento, Cáceres, Barra do Bugres, Nobres, Rosário, Vila Real Senhor Bom Jesus do Cuyaba – a atual capital –, Santo Antonio do Leverger e Chapada dos Guimarães, entre outras cidades surgidas nas sesmarias – áreas destinadas ao cultivo pelo rei de Portugal, doadas ou compradas por um dia de trabalho, a cada três, nas quais surgiram os quilombos. Não se preocuparam e nem tinham condições de escriturar, já que ninguém iria tirá-los de lá – imaginavam. Essa história emergiu quando o Cepir, reunindo a Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat), o Instituto Creatio e os movimentos negros, começou a identificar áreas, localizar cemitérios antigos, fazer laudos antropológico e histórico e pedir certificação, gerando a regularização fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Isso não seria necessário, ob-

Antonio Carlos Ribeiro

Quilombolas: dívida social e reparação

O ministro Edson Santos, da Secretaria Especial de Políticas

servou Reis, se as sesmarias fossem reconhecidas. As populações remanescentes – os quilombolas – esperam condições para plantar e produzir enquanto seguem disputas sobre terras que já lhes pertenciam, as invasões e a destruição de roças. A devolução das áreas dos antigos quilombos, além da reparação, acabaria com intervenções emergenciais, focando as políticas públicas de educação, saúde e transporte. “Há crianças que andam 30 quilômetros para chegar à escola”, denuncia. A área Matacavalo, em Livramento, a 42 km de Cuiabá, pertence a seis comunidades quilombolas distintas, que disputam na justiça uma área de 14.700 hectares com 49 propriedades rurais grandes e pequenas. “Com liminares da justiça, os faNOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


zendeiros expulsam os quilombolas. Sem ter para onde ir, vão fazendo barraca de pau a pique, coberta de sapé, na beira da estrada. Quando o fazendeiro não deixa que fiquem ali, vão para a sede da associação, onde 40 famílias aguardam decisão de onze processos para voltar à sua terra. Durante a visita de Edson Santos, Secretário Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir PR), ele afirmou: “É um direito que vocês têm e a gente vai trabalhar junto ao governo do estado para fazer chegar a vocês, e o presidente Lula assinará o decreto de desapropriação das terras até o dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra”. Sobre educação e cultura, Reis enfatizou que essa situação afeta a identidade cultural do grupo, porque não pode cultuar e nem praticar as capoeiras e as danças das mulheres. As cotas tentam equiparar o acesso à formação. “Mesmo que o país ficasse 20 anos sem colocar nenhum não-negro na escola, isso não equipararia essa relação na educação. Temos apenas 2,5% de negros que concluíram faculdade num país em que somos mais de 50% da população.” A formatura da primeira turma de cotistas na Unemat é um ganho real, já que a nota média ficou acima da esperada. de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir-PR), ouve e fala aos quilombolas

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O autor é jornalista em Cuiabá (MT)

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Iniciativas de paz

Conto

Serviço

Biscoitos... na cozinha com a vovó

Marie Ann Wangen Krahn

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QUE É O SERPAZ? É UMA ORGAnização não-governamental sem fins lucrativos, fundada em 6 de agosto de 2004. Ele brotou do movimento SERPAJ – Serviço de Paz e Justiça do Brasil, que começou em 1978. Figuras ilustres contribuíram com suas ideias e ações para a formação desse movimento, tais como Dom Helder Câmara, Jaime Wright, Dom Evaristo Arns, Walter Altmann, Domingos Barbé e Richard Wangen. Lutaram durante a ditadura militar e continuam lutando para o cumprimento dos direitos humanos de forma não-violenta com firmeza permanente. Ainda vivemos numa “sociedade de violência”, em que pessoas se comportam como se a violência fosse algo natural do ser humano. SERPAZ, que tem como um de seus fundadores o pastor Richard Wangen, com

Cris da Silva

A

vidro repleto de pequenos biscoitos açucarados (mais ou menos 50), levei a mão ao rosto para enxugar a lágrima que, inadvertidamente, escorria por ele. Não era lágrima de tristeza, mas de uma serena saudade que a doce lembrança da vovó acalentava em meu peito. As tardes de minha infância haviam sido recheadas de pequenas histórias, que ganhavam vida na voz e interpretação da minha avó, enquanto nos lambuzávamos de farinha na aconchegante cozinha de sua casa. Chovesse ou fizesse sol, aventuradas em uma nova receita ou apenas repetindo uma da minha preferência, o pretexto para essa deliciosa convivência acabava criando raízes em volta do fogão. A grande e familiar bacia azul era colocada em cima da mesa, e eu, orgulhosa da minha função, corria para pegar os ingredientes no armário, à medida que esses eram solicitados. Quatro xícaras de farinha de trigo. (Às vezes, eu assoprava apenas para provocar o sorriso límpido que se desenhava naquele rosto vivido, emoldurado pelos cabelos brancos.) Duas xícaras de açúcar. Uma colher (de sopa) de fermento em pó. Trezentos gramas de margarina com sal. Três colheres (de sopa) de raspa de laranja. (Que a vovó já reservara em um pires.) Uma colher (de sopa) rasa de canela em pó. Três ovos. (Ah, os ovos estavam naquela galinha de arame que, nos primeiros anos da minha infância, despertara-me tanto a curiosidade.) As mãos que manejavam as agulhas com habilidade para confeccionar casaquinhos para os bebês da família, que já haviam me dado banho, que me faziam carinho, agora misturavam e amassavam com firmeza todos os ingredientes até transformá-los numa massa consistente (nem muito mole, nem muito dura, mas consistente o suficiente para que se fizessem bolinhas com ela). Colocavam-se as bolinhas em uma assadeira levemente untada com óleo (as quais, devido à minha colaboração, variavam de tamanho). A assadeira ia para o forno pré-aquecido durante aproximadamente quinze minutos, enquanto nos ocupávamos enchendo outra. Apesar de ter se tornado a receita que mais repetíamos, era sempre com grande ansiedade que eu corria para a porta do forno na expectativa de ver sair dele o resultado da nossa brincadeira. Os biscoitos eram retirados e, ainda quentes, dispostos cuidadosamente numa outra assadeira, cheia de açúcar refinado, e polvilhados com o mesmo. Depois de frios, uns eram colocados em um grande pote de vidro, outros, acompanhados de chá ou chocolate, faziam parte do epílogo dessas tardes maravilhosas ao embalo de histórias que, sem dúvida, ajudaram a construir a minha própria história de vida. Fonte: www.sensibilidadeesabor.com.br

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Jorge Brazil

O CONTEMPLAR O ENORME POTE DE

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de paz o fim da ditadura militar voltou suas energias para a transformação de uma cultura de violência em uma cultura de paz. A organização entende que a violência é aprendida através de nossa cultura e reproduzida nos momentos de conflito. Por isso propõe às pessoas que resolvam conflitos de forma criativa, justa e não-violenta. Assim contribuem para uma cultura de paz. Como a violência é aprendida, também a não-violência pode ser aprendida. O SERPAZ desenvolve programas de educação para a paz em escolas, comunidades, presídios e em grupos e áreas onde existe interesse pelo tema através do Projeto Alternativas à Violência – PAV. A organização também está envolvida no Comitê Regional de Educação em Direitos Humanos – CREDH e é membro da Rede Desarma Brasil. Direitos humanos e desarmamento são dois outros enfoques do SERPAZ.

A organização tem sua sede em São Leopoldo (RS) e atua principalmente nessa cidade e nos municípios circundantes, mas também trabalha no projeto ARTEPAZ, da Escola Estadual Bandeirantes em Guaporé (RS), e tem enviado facilitadores a diferentes cidades do Brasil para ministrar oficinas do PAV. O SERPAZ depende de voluntários para desenvolver suas atividades, tendo como funcionária paga somente a secretária, que é estagiária de tempo parcial. A ONG tem um quadro de membros que provêm de vários setores da sociedade: estudantes, principalmente de teologia, mas de outras áreas também, como professores e professoras, pedagogos, assistentes sociais, sociólogos, advogados, pastores, pastoras, padres e outros. A organização desenvolve suas ações a convite de grupos ou entidades particulares ou através de parcerias com entidades públicas, que facilitam o acesso a escolas públicas ou a outros projetos com grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade. Divulga seu trabalho através das parcerias, por exemplo atualmente com a Secretaria Municipal de Segurança Pública (SEMUSP), de São Leopoldo, e em eventos como seminários e congressos. Seus membros também apresentam seu trabalho ali onde se encontram. O objetivo da organização é “contribuir na construção de uma cultura de paz, através da educação para a paz, promoção da tolerância, diálogo inter-religioso e intercultural, desenvolver a solidariedade como princípio de convivência e defender os direitos humanos”. A autora é coordenadora geral do SERPAZ em São Leopoldo (RS)

O SERPAZ está localizado na Rua 1º de Março, 776 Sala 04, Centro São Leopoldo (RS) CEP 93010-210 Telefones: 51/3566-1694 51/8501-0001, 8501-0002 e 8502-0001 Site: www.serpaz.org.br E-mail: serpaz@serpaz.org.br WWW.NOVOLHAR.COM.BR

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Ação de graças

Então Jesus lhe perguntou: Não eram dez os que foram curados? Onde estão os nove? (Lucas 17.17) Martim Lutero

E

SSE É REALMENTE UM EXEMPLO

chocante. Os dez têm uma fé exemplar e são curados. Todavia, nove tornam a perdê-la e deixam de agradecer ao Senhor o benefício recebido. Esse exemplo nos deve ser útil no sentido de aprendermos a ser gratos, guardando-nos deste detestável vício que é a ingratidão. Pois Deus nosso Senhor deseja – com toda a razão – que lhe demos a honra de agradecer por todos os seus benefícios. Na verdade, deveríamos fazer isso com gosto e boa vontade, pois se trata de algo que não exige muito esforço e trabalho. Pois quanto custa voltar-se a Deus para dizer: “Senhor, tu me deste pés, mãos, olhos, isso e mais aquilo, tudo perfeito; agradeço-te do fundo do coração por tudo isso, pois são dádivas que recebi de ti”. Por outro lado, quanto lhe custa agradecer a seu pai ou sua mãe, a seu esposo ou sua esposa, a seu próximo quando lhe fazem um favor? Não é tão custoso assim e deveria ser feito apenas para que se possa verificar que você se agradou daquilo que lhe fizeram. É o que faz o samaritano em nossa história: volta para junto do Senhor e lhe

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Jesus Cura um Leproso; Echternach - Evangeliar, por volta de 1040. Bruxelas, Bibliotèque Royale

Quanto custa agradecer?

agradece. Isso não lhe custou nada, a não ser algumas poucas palavras. E o Senhor agrada-se tanto assim, que fica até admirado. As pessoas gostam de ouvir uma palavra de agradecimento, e isso lhes faz muito bem. O agradecimento também motiva as pessoas a ajudar mais ainda numa próxima vez. Os gentios diziam que a ingratidão é o pior vício. Logo não havia pior ofensa do que chamar alguém de ingrato. Contudo, notamos que esse vício é bastante comum e que, na maioria dos casos, pouco se agradece àqueles que merecem toda a nossa gratidão. Temos o caso do pai e da mãe que se dedicam a seus filhos com seus corpos, vidas, honra e bens. Mas o que os

filhos lhes dão em troca? Na verdade, um filho agradecido é coisa rara. Isso é obra do demônio. Por isso, se vocês quiserem ser cristãos piedosos, aprendam a ser gratos, primeiramente a Deus, nosso gracioso Pai celeste, que nos dá corpo e vida e os sustenta; além disso, também nos dá tudo o que se relaciona com a vida eterna. Sejam também gratos a seus pais, amigos, vizinhos e todos aqueles que fazem o bem por vocês e retribuam-lhes o bem que fizeram. Assim que, se não for possível retribuir com obras, demonstrem sua alegria e gratidão por meio de palavras. Reformador da igreja (1483-1546) NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


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Espiritualidade

Presépios do mundo N

ATAL É TEMPO DE LEMBRAR O CENÁRIO DA GRUTA DE

Belém, na qual Jesus veio ao mundo em meio à conturbada viagem de seus pais para o recenseamento obrigatório do Império Romano. Hotéis lotados, parto iminente e aspecto humilde levaram o jovem casal àquela hospedagem improvisada entre palhas e animais. Segundo a tradição cristã, esse ambiente não foi somente um acaso, mas uma escolha de Deus como forma de apresentar seu filho ao mundo. O palco incomum do nascimento do Salvador da humanidade não passou despercebido aos olhos da história humana e virou um dos elementos preferidos para lembrar aquela noite fria de dezembro em Belém. É comum atribuir a Francisco de Assis, em 1223, o costume de montar presépios. Contudo, os primeiros presépios surgiram de fato no século 16 na Itália. Ainda hoje, montar presépios, em incontáveis formatos e composições, faz parte da cultura do Natal ao redor no mundo. O gesto simbólico atualiza o nascimento de Jesus e torna plástica a sua importância para a cristandade. Verdadeiras obras de arte estão entre tais representações da gruta da natividade. Sua variedade é alvo de apaixonados colecionadores. A Novolhar encontrou um deles em São Leopoldo (RS) e apresenta fotos de alguns dos presépios étnicos de vários países, que fazem parte da coleção de Werner Ewaldt.

Rússia (madeira), Europa – Presépio na arte das matrioshka, matriochka ou matrioska (em russo MaTpëIIIKa ou MaTpeIIIKa, Matryoshka) ou boneca russa, que é a arte tradicional da Rússia, constituída por uma série de bonecas que são colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior) até a menor (a única que não é oca). A palavra provém do diminutivo do nome próprio Matryona.

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Haiti (argila), Caribe – Peças escuras em formato característico, usando roupas e turbantes coloridos típicos. Presença de mães com crianças visitando a manjedoura.

Brasil (argila)/RS, América do Sul – José segura uma cuia de chimarrão, que oferece ao visitante, o Rei Mago. Veste bota e bombacha, mas não usa espora nem chapéu. Isso porque, pelas regras da etiqueta, esses acessórios não podem ser usados em ambientes internos (a estrebaria, no caso). Em vez de presentear Jesus com ouro, incenso e mirra, os três reis dão a ele brinquedos tradicionais do estado: pião, bilboquê e pandorga.

Indonésia (madeira), Ásia – Figuras feitas em madeira bem leve da Indonésia. Rostos das figuras com os olhos amendoados do povo da Indonésia.

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El Salvador (madeira), América Central – Presépio em forma de tríptico (três partes) ou presépio-armário. O tríptico e as cores fortes são típicos da arte sacra da região.

Taiwan (argila), Ásia – Peças em formato e pintura da arte nativa da região.

República de Gana (madeira), África – Estilo artístico da cultura da tribo Ashanti, onde predomina o matriarcado; por isso o nascido é representado através de uma menina. As cores fortes e traços fortes são típicos do grupo.

Peru (cabaça e biscuit), América do Sul – Presépio montado dentro de uma cabaça entalhada com elementos peruanos. A cena apresenta um colorido vivo e contrastante, característico da arte de algumas regiões da América Latina. Os músicos cantam e tocam seus instrumentos típicos (a harpa peruana, a quena e a zamponha) em homenagem ao recém-nascido. WWW.NOVOLHAR.COM.BR

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Penúltima palavra

É hora de equilíbrio Márcia Scherer

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O ESTUDARMOS A EVOLUÇÃO HIS tórica do pensamento filosófico, o qual orienta, em cada época, o conjunto valorativo que norteia o comportamento humano, descobriremos que a mulher foi sempre uma figura preterida dos círculos sociais e de debate. Rousseau considerava-a incapaz de qualquer raciocínio e atitude, e Platão agradecia aos céus primeiro pelo fato de não ter nascido escravo e segundo por não ter nascido mulher. Também durante os séculos a mulher vem carregando a culpa de Eva pela expulsão do paraíso. O que chamou as mulheres para fora dos lares foi, essencialmente, a necessidade de suprir as vagas abertas nas indús-

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trias pelos homens mortos nas grandes guerras mundiais. A partir daí, nas nações que se estabelecem a partir dos referenciais capitalista, democrático e judaico-cristão, tem-se avançado na conquista dos espaços sociais de inserção feminina. O capitalismo interessou-se em que a mulher trabalhasse, produzindo renda e assim tornando-a capaz de consumir. Porém, de outra sorte, a geração de renda por mãos femininas promoveu maior respeito à mulher no conjunto familiar e social e tornou-a desejosa de educação especializada. Também se deve compreender que, para que os direitos se consolidassem, era necessária a disposição de um espaço público de manifestação, espaço esse que somente é

possível no Estado Social Democrático de Direito. Vêm se promovendo, assim, a inclusão e o reconhecimento femininos nas esferas laborais e de decisão. Os dados que coletamos em nossas Delegacias de Polícia mostram, no entanto, que ainda há uma descomunal desigualdade de acessos e possibilidades entre os gêneros. A permanência velada do flagelo da violência doméstica é sua face mais cruel. De uma maneira geral, em vista da educação patriarcal, mulheres e homens estão confusos diante da mudança e junção de papéis: essa coisa de promover a igualdade entre os gêneros essencialmente diferentes e que historicamente tinham funções tão claramente definidas é extremamente complicada para ser compreendida e implementada, necessitando de muito diálogo e educação para um novo conjunto de valores familiares e sociais. Também é momento de resgatarmos Eva de sua culpa histórica. Interpretando sua conduta no presente, entendemos que ela, na verdade, teve curiosidade e coragem para sair da proteção do paraíso e intervir no mundo como mediadora do crescimento e da maturidade humana. Nesse sentido, a nossa proposta é que, sem mais culpas, se busquem a plenitude e a felicidade tanto para mulheres como para homens. Entendemos como fundamental para que isso ocorra a promoção do equilíbrio entre os gêneros, a fim de que homens e mulheres tenham condições de intervir no mundo com a mesma força, usando para tanto suas características peculiares, conforme a própria evolução humana as desenhou: seja o homem com sua força física e seu raciocínio lógico, seja a mulher com sua resistência e intuição. O alcance do estágio de evolução humana que garantirá o equilíbrio proposto deverá passar pela promoção do mútuo respeito e pelo fomento da igualdade, considerando a diferença. E que elas, com sua perspicácia, venham para somar e incluir e não para dividir e dispersar! A autora é delegada de Polícia, especialista em Violência Doméstica pela USP e mestre em Ambiente e Desenvolvimento pela UNIVATES NOVOLHAR – Novembro/Dezembro 2009


PUERI DOMUS


INSTITUTO DE EDUCAÇÃO IVOTI


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