CPAD
10 a 23 capa
Família
A reinvenção da família. Aceitação e relacionamento. Educar em casa ou na escola? Pornografia. Abrigos. Radicalidade do amor.
ÍNDICE
Ano 8 –> Número 35 –> Setembro/Outubro de 2010
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Luteranos completam 50 anos de missão indígena
Rubem Alves Aprendiz de Feiticeiro
Dando ouvidos à experiência dos atingidos
Um jardim pelos 500 anos da Reforma
MISSÃO
biografia
clima
LUTERO
SEÇÕES
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SAÚDE
Arteterapia Expressão do Inconsciente
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palavra do reformador Você encontra Cristo diante da sua porta e em cada beco
ÚLTIMA HORA > 6 NOvolhar sobre > 6 notas ecumênicas > 8 REflexão > 26 REtratos > 28 conto > 23 ecumenismo > 38 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2010
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AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Walter Altmann Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Olga Farina, Vera Regina Waskow e Walter Altmann. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Roberto Soares Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Aikau, Bianca Pyl, Brunilde Arendt Tornquist, Carlos E. M. Bock, Delci Knebelkamp Arnold, Edeltraud Fleischmann Nehring, Hans Alfred Trein, Heitor J. Meurer, Iuri Andréas Reblin, João Soares, Louraini Christmann, Nelson Kilpp, Orlando Eller, Roberto E. Zwetsch, Roseli Kühnrich de Oliveira, Solange Magali Schwambach, Sonja Hendrich-Jauregui, Valdir Weber, Vera Liane Petry Schoenardie e Vera Nunes.
Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 27,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
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Reforçando o ancoradouro
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psiquiatra Contardo Calligaris escreveu no seu Twitter pessoal, em agosto: “A taxa de suicídio é menor nas cidades grandes. Talvez amores, amigos e conhecidos deprimam menos do que famílias”. A sua pérola no site de postagens limitadas a 140 caracteres é um resumo perfeito da crise enfrentada pela mais tradicional instituição humana, no passado definida como “célula mater da sociedade”, sem falso romantismo. A ousadia da frase de Calligaris aponta para a crise instalada. Hoje, prefere-se sair de casa para não ter que conviver com os conflitos. Antes constituída de pai, mãe e (muitos) filhos – e não raramente cercada por um amplo círculo de parentes –, a família está perdendo rapidamente a sua principal característica. Uma crescente legião de filhos únicos ou de produções independentes é somente um dos sintomas mais evidentes. Os outros sintomas já denotam os problemas causados pela desconstrução da família. Na escola, os alunos-problema quase sempre são o espelho da crise vivida em casa. É justamente no ambiente escolar que acontece o maior empurra-empurra para definir responsabilidades sobre a tarefa de educar o filho-aluno, para muitas famílias um real obstáculo nos planos de ascensão social. Uma recente pesquisa entre jovens delinquentes também comprovou que a maioria deles cresceu sob o estigma do pai ausente. Poderíamos incluir muitos outros nesta extensa lista da crise. O resumo da ópera revela que é a criança que mais sofre com isso. Assim, escolhemos uma mão infante para compor a capa desta edição. Ela tenta reconstruir a sua família, que mais lembra um quebra-cabeça desmontado. Além de constatar, entretanto, não é do nosso perfil entregar os pontos. Há saídas. A Novolhar número 35 quer ajudar no mutirão de reconstrução. A família é o porto seguro em que podemos ancorar para recobrar forças para os enfrentamentos da vida diária. Por isso mesmo, ela precisa ter seus ancoradouros reforçados, tarefa que nos propomos ao abordar o tema. Equipe da Novolhar
opinião
LIVROS DA SINODAL
Eleições 2010 Estamos mais uma vez diante de eleições majoritárias em nosso país. Em breve iremos às urnas para ajudar a escolher presidente/a, governadores/as, senadores/as, deputados/as estaduais e federais. Trata-se de um exercício de cidadania dos mais importantes. No entanto, a oferta de partidos, propostas e candidatos é grande. Como escolher? Em que proposta votar? Como cristãos podemos ajudar nesse processo? O voto é um dos elementos centrais da democracia. Cada pessoa com idade preestabelecida na lei tem direito a um voto. Ninguém tem mais, ninguém tem menos. Maravilha, não é? Mas nem sempre foi assim. Houve tempo, nem tão distante em nosso país, em que algumas pessoas decidiam pelo povo. Já pensaram se ainda vivêssemos sem poder votar? Felizmente, esses tempos são idos. Mas não está tudo resolvido. O processo eleitoral ainda tem seus problemas. A falta de interesse, a indiferença e o desânimo de boa parte dos eleitores ainda são desafios a serem superados. Como também o é a ganância pelo poder de pessoas que colocam em primeiro lugar seus interesses pessoais ou corporativos. Não se pode subestimar a diferença que um simples voto pode fazer. Quem vota se torna corresponsável pela proposta que apoiou. Se votou em quem não tem proposta, terá que conviver com isso pelo tempo do mandato da pessoa eleita. Ou, pior ainda, se votou em quem já demonstrou desonestidade, será em parte responsável por mais desonestidade. O voto pode ser comparado a um cheque assinado em branco. Precisamos saber muito bem a quem estamos confiando esse cheque. Uma das definições mais simples e profundas diz que política é a arte de fazer o bem comum. Se todas as pessoas que ocupam cargos públicos eletivos seguissem essa máxima, com certeza não haveria políticos escondendo maços de dinheiro em meias, bolsas ou peças íntimas. O simples fato de tais denúncias serem levadas ao público revela em si um avanço que, se ainda pequeno, tende a crescer a partir da indignação popular e da busca por justiça. Toda igreja que confessa Jesus Cristo como Senhor e Salvador possui grande responsabilidade pública. Isso porque a atuação do próprio Jesus teve reflexos importantes para dentro da sociedade em que se encontrava. Pregava a con-
versão espiritual, de cunho pessoal, mas também propunha mudanças radicais na maneira como nos relacionamos com nosso próximo e como nos organizamos em comunidade. Estruturas materiais de poder lesivas ao interesse comum foram radicalmente criticadas. A atuação de Jesus e a proclamação acerca de Jesus como Senhor tiveram claros reflexos para dentro da sociedade e da política. Como membros da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), representando aproximadamente 90% dos luteranos no país, não queremos nem podemos fugir da importante tarefa de votar. Somos igreja de Jesus Cristo no Brasil e, portanto, corresponsáveis por aquilo que aqui acontece. Cremos que nossa fé atua no amor, e que esse se traduz em ações em favor de tudo o que é preciso para uma vida digna. Muito daquilo que faz parte dessa vida digna depende de decisões políticas. Assim, fé e ação política não se excluem. A ação política dos cristãos é decorrente de sua fé. E o exercício do voto é de extraordinária importância na ação política. Quem acha que não faz política já está fazendo através de sua omissão, que sempre favorece quem ocupa o poder, muito possivelmente não em favor das necessidades do povo. Segundo Lutero, um “bom governo” faz parte do “pão nosso”, pelo que Jesus nos ensinou a interceder. Com nosso voto podemos ajudar a constituir um bom governo. Uma igreja não tem nem pode ter partido político; no entanto, ela não é apolítica. Todo o seu trabalho e sua atuação têm implicações políticas. Um dos papéis da igreja é justamente trabalhar para que toda a sociedade, incluindo os partidos políticos, se empenhe para que a vontade de Deus em favor das pessoas seja feita também na esfera social e política. Como cidadãos luteranos, integrantes de um país, somos pessoas politizadas. Podemos e devemos ser sal e luz no mundo (Mateus 5.13 e 14) e, diga-se de passagem, “mundo” é ali onde vivemos, em casa, na escola, no nosso trabalho, no bairro, na cidade etc. Portanto, antes de votar, ouça, pesquise, indague, questione, proponha, selecione. Escolha quem você realmente crê que irá desenvolver um bom mandato, em favor de uma vida digna para todas as pessoas, em favor de uma sociedade solidária e justa. Walter Altmann, Pastor Presidente da IECLB Egon Kopereck, Pastor Presidente da IELB
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Tema da próxima edição
A edição nº 36, de Novembro/Dezembro de 2010, terá como tema de capa FÉ E CIÊNCIA. A ciência desconstrói a fé na Criação ou ajuda a decifrar seus mistérios? Qual a contribuição da fé para a ética nas pesquisas?
por Vera Regina Waskow Quem nunca desejou saber o que há por atrás da imagem refletida no espelho? Desde pequena, ao ver minha imagem no espelho, desejava saber como havia entrado lá. Atrás da imagem do espelho tem gente, com uma história bonita a ser contada, com uma vida a ser compartilhada. O livro Espelhos é um exemplo disso, com histórias de vida e fé refletidas em nossa própria vida, exemplos para a caminhada. Exemplos e reflexos esses que são descobertos quando ousamos olhar além da imagem, quando olhamos “através do espelho”. Muito mais do que dados biográficos, o pastor Martin Norberto Dreher relata, com maestria, que atrás do espelho há muito mais do que a imagem ali refletida. Assim, personalidades muitas vezes ofuscadas ao longo da história ganham cores e refletem a sua vida para dentro da nossa. E saiba que, ao olhar através do espelho, além da imagem, você nunca mais será a mesma pessoa. Esse novo olhar lhe proporcionará descobertas valiosas e instigantes. Convido você a também olhar através do espelho e descobrir as lindas histórias de vida ali contidas, que, querendo ou não, virão sempre refletir e iluminar sua caminhada. VERA REGINA WASKOW é teóloga e obreira da IECLB em Estância Velha (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2010
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última hora
Pastora na secretariageral da WACC
Luteranismo avança no Terceiro Mundo
A rev. Karin Achtelstetter (foto) é a nova secretária-geral da Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC, a sigla em inglês). Ao anunciar a escolha, o presidente da organização, Dennis Smith, disse que Karin tem capacidade de gestão, experiência de liderança e conhecimento profissional. Ela assumirá em novembro. Achtelstetter é conhecida nos círculos da comunicação global. Ela é a diretora e editorachefe do serviço de informação da Federação Luterana Mundial e ex-coordenadora da Equipe de Informação e Relações com a Mídia do Conselho Mundial de Iglesias, ambos com sede em Genebra, Suíça. Alemã de nascimento, Karin Achtelstetter fala os quatro idiomas oficiais da WACC – inglês, francês, alemão e espanhol – e tem mestrado em Teologia pela Universidade Friedrich-Alexander, de Erlangen, Alemanha, e master em Estudos da Mulher, pela Universidade de Kent, Canterbury, Inglaterra. A WACC tem sede em Toronto, no Canadá, e Karin se unirá a seus colegas de trabalho em outubro e assumirá o cargo em novembro, substituindo o reverendo Randy Naylor.
Interessado em pesquisar a expressão do luteranismo num contexto global, o teólogo Vítor Westhelle acredita que nos próximos dez anos a maioria dos luteranos esteja vivendo ao sul do Equador, região que concentra 60% de todos os cristãos do mundo. “Essa situação impõe novos desafios para a Teologia na medida em que os cristãos estão disputando espaço com outras religiões”, pontuou Vítor. Na continente asiático, os cristãos correspondem a 3% da população de maioria budista e hindu, realidade essa que confronta a sociedade ocidental norte-atlântica com questões com as quais não se preocupava até o início do século passado. Em entrevista ao site da Faculdades EST, ele avaliou o atual momento ecumênico e definiu-o como marcado pela tensão entre o respeito às peculiaridades religiosas e a tentativa de uniformização de todas as expressões. “Essa busca por uniformização é o que também provoca cismas dentro do cristianismo e fragmentação nas bordas daquilo que é unificado”, asseverou. Na avaliação do teólogo luterano, a expansão do pentecostalismo representa, antes de tudo, um sinal de vitalidade do cristianismo, obrigando as igrejas históricas a lidar com novos desafios dentro de seus próprios parâmetros e dentro de sua própria teologia.
novolhar sobre
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Shariah – o direito islâmico
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A shariah está sendo muito citada atualmente em conexão com a polêmica condenação à morte por apedrejamento da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani, acusada de adultério, à qual o governo brasileiro ofereceu asilo, negado pelo governo iraniano. A lei islâmica chama-se Shariah (ou Charia). No mundo ocidental, costuma causar polêmica, por causa de algumas medidas punitivas que ela prescreve. Trata-se de um sistema jurídico abrangente que dá uma resposta prática à seguinte pergunta: como se pode viver de modo agradável a Deus? São as orientações dadas aos fiéis por intermédio do Alcorão e do registro dos hábitos e da prática religiosa do profeta Maomé (Suna), para que possam cumprir a vontade divina e se resguardar de erros. Ele se alimenta de diversas fontes, com graus de importância distintos. Em primeiro lugar, estão o Alcorão e a Suna, mas nem tudo que um islamita deve fazer e deixar de fazer está explicitado nesses. Então os juristas recorrem a outras fontes: a dedução por analogia, o recurso ao direito consuetudinário (fundado nos costumes, na prática, e não nas leis escritas) e a formação de uma opinião individual. A dedução por analogia possibilita, por exemplo, derivar da proibição do vinho regras para o consumo de outras substâncias que provocam embriaguez. Nos casos em que um erudito não encontra um ponto de apoio concreto para definir o procedimento a tomar, ele deve formar uma opinião própria. Mas ele não pode fazer isso como bem entender, e sim permanecer dentro do que é compatível com os valores fundamentais do Islã. Brunilde Arendt Tornquist, Baseado no livro O que é o Islã? - Perguntas e respostas, Melanie Miehl, Editora Sinodal
está na agenda
27° Concílio da IECLB Realiza-se em Foz do Iguaçu (PR), nos dias 20 a 24 de outubro de 2010, o 27° Concílio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Aproximadamente 100 pessoas delegadas dos dezoito sínodos da Igreja estarão reunidas para decidir sobre os assuntos importantes que passam pela vida da IECLB. Além dessas pessoas, também participam integrantes da direção da Igreja, representantes de diversos setores e instituições e, ainda, visitantes e hóspedes ecumênicos. “Paz na Criação de Deus – Esperança e Compromisso” será o tema deste concílio, que também será um concílio eletivo, elegendo pastor/pastora presidente e vices, presidente do concílio e vices, e outros cargos na IECLB.
Honoris Causa A pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e ex-ouvidora do Sistema Estadual de Segurança Pública do Pará, Ms. Rosa Marga Rothe recebe, em 3 de setembro no auditório do Colégio Sinodal em São Leopoldo (RS), a condecoração de Doutora Honoris Causa pela Faculdades EST. Na véspera da outorga do título, no auditório da Faculdades EST, a pastora luterana ministra conferência pública sobre a temática Direitos Humanos e Cidadania – Desafios para a Teologia e a ação pastoral das igrejas. Primeira pastora ordenada a trabalhar junto à Comunidade Evangélica Luterana de Belém do Pará, Marga Rothe é reconhecida nacionalmente por sua militância em prol dos direitos humanos.
olhar com humor
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Show
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Notas ecumênicas
Em sua visita ao Reino Unido, de 16 a 19 de setembro, o papa Bento XVI só poderá ser visto pelos ingleses que pagarem ingressos de 25 Libras para ver um dos dois eventos públicos programados para a visita.
Perdão A 11ª Assembleia da Federação Luterana Mundial (FLM) realizou uma celebração na qual pediu perdão a Deus e aos irmãos menonitas de tradição anabatista pela perseguição de que foram vítimas no século 16. Anabatistas foram executados por seguidores do reformador Martim Lutero.
Dignidade “O pão compartilhado entre cristãos não é só um recurso material, senão também um reconhecimento da dignidade.”
Por quê?
Novo presidente O bispo da Igreja Luterana na Jordânia e Terra Santa, Munib A. Younan, 59 anos, é o novo presidente da Federação Luterana Mundial (FLM). Ele sucederá o bispo Mark Hanson, da Igreja Evangélica Luterana dos Estados Unidos.
“Se católicos e luteranos podem alimentar juntos aqueles que passam fome, por que não podem alimentarse unidos na mesa do Senhor?” Bispo Mark S. Hanson, presidente da Federação Luterana Mundial (FLM)
Tráfico de pessoas
Relato da reverenda Elitha Moy, da Igreja Evangélica do Zimbábue, na Assembleia da Federação Luterana Mundial na Alemanha em julho.
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Na Tanzânia, mães entregam suas filhas a amigos e amigas que prometem educá-las, vesti-las e alimentá-las. Depois, obrigam essas crianças a assistir filmes pornográficos para que se inteirem da indústria do sexo e com eles aprendam a se prostituir. Por fim, são mandadas a outros países.
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Rowan Williams, Arcebispo de Cantuária, ao apresentar o tema principal da 11ª Assembleia da Federação Luterana Mundial, reunida em Stuttgart, Alemanha, em julho.
Roubo santo
Fé e política “Um dos grandes desafios para os países democraticamente modernos consiste em aportar conhecimentos de origem religiosa e impulsos provenientes da fé ao processo de decisão política.”
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A cidade de Povoa, no México, ocupa o primeiro lugar na lista do turismo religioso no país, mas também é a região mais prejudicada pelo saque da arte sacra. Depois do narcotráfico, esse é o segundo item que mais ganhos gera aos infratores. Apenas 10% das peças roubadas ou furtadas são recuperadas pela polícia.
Wolfgang Schäuble, ministro da Economia da República Federal da Alemanha, na abertura da 11ª Assembleia da Federação Luterana Mundial (FLM), reunida em Stuttgart, em julho.
“Muitas mulheres ingressaram nos hospitais com evidência de violência sexual, mas ao falecer aparece no atestado de óbito morte por parada cardioRrespiratória ou outra causa, tornando invisível a violência que gerou o quadro traumático.”
Relatório do primeiro semestre do 2010 do Observatório de Femicídios na Argentina.
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Femicídio
dica cultural
Lesado medular Você sabe o que é um lesado medular? É alguém que sofreu, por exemplo, um acidente de carro ou moto, levou um tiro ou teve uma queda e ficou com uma lesão nas estruturas medulares, interrompendo a passagem de estímulos nervosos através da medula. A lesão pode ser completa ou incompleta. É completa quando há paralisia, perda de todas as modalidades sensitivas abaixo da lesão e alteração do controle urinário e fecal. E incompleta quando há algum movimento voluntário ou sensação abaixo do nível da lesão. A medula também pode ser lesada por causas não-traumáticas, como hemorragias, tumores e infecções por vírus. Estudos epidemiológicos realizados nos Estados Unidos apontam como principal causa de lesões medulares os acidentes automobilísticos, responsáveis por cerca de 44% dos casos, seguidos de agressões (24%), quedas (22%), lesões associadas a atividades esportivas (8%) e outras causas (2%). Existe em Novo Hamburgo (RS) uma associação civil filantrópica que presta assistência a portadores de deficiência medular: a LEME. Foi fundada por um grupo de lesados medulares em novembro de 2002. Conta hoje com mais de 80 associados. Entre seus objetivos está a reabilitação na vida social e no mercado de trabalho, a promoção de atividades culturais, recreativas e educacionais e a criação de um banco de dados dos lesados medulares do Rio Grande do Sul. Conheça mais sobre a LEME visitando o site www.leme.org.br.
Visite o site da LEME e conheça este trabalho
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CAPA
A reinvenção da família
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a família mudou. o ideal romântico do casal apaixonado que casa, tem filhos e vive feliz para sempre é cada vez menos comum. como tudo na vida, os casamentos enfrentam crises, modificam-se, terminam e recomeçam, constituindo novos núcleos familiares. Se, por um lado, esse comportamento pode ter enfraquecido a “instituição” família, por outro, permite relações muito mais afetivas e genuínas. Comparado a um paciente, a família tem algumas doenças graves, mas está sobrevivendo e procurando um jeito de se reinventar.
por Vera Nunes
Joseph Hoban
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ara a psicóloga Silvana Henzel, a família está menos rígida, mais flexível, em busca de mais equilíbrio afetivo, “tentando romper com a cultura instituída de manter um casamento a qualquer preço, mesmo que seja o da infelicidade ou aniquilamento de ideais pessoais”, observa. Para ela, o “paciente” família não está num estado grave. “Ele tem cura, apesar de não estar firme e forte nos moldes idealizados e contados em algumas histórias infantis”, ressalta a também psicanalista pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Silvana acredita, porém, que, diante da possibilidade mais aceita de dissolução do casamento, as pessoas estejam menos tolerantes em relação ao que é real. “O risco é ficar buscando um ideal narcísico inalcançável de felicidade, não conseguindo lidar com maturidade com os problemas inerentes à vida em comum com o outro, que é diferente de si”, alerta.
Essa é também a preocupação da psicanalista Marlene Araújo, da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), que alerta para a banalização do casamento, como de vários outros valores na sociedade atual. “É a banalização de tudo, da família, da individualidade, dos princípios éticos e morais, da sexualidade. Não há limites”, observa. No seu entender, o problema não está na dissolução de um casamento, mas, sim, na forma como os casais lidam com isso. Psiquiatra e psicanalista de adultos, crianças e adolescentes há cerca de 40 anos, Marlene está acostumada a receber em seu consultório, inicialmente, a criança que está apresentando algum problema e depois tratar o casal que não consegue resolver uma situação, e isso acaba refletindo na família. retrato do censo – Diante desse quadro, num olhar mais amplo, percebem-se mudanças significativas na composição familiar. A assistente social, professora e pesquisadora
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vinculada ao Curso de Serviço Social da Unisinos, Rosângela Barbiani, apoia-se em dados censitários para apontar alguns sinalizadores dessas mudanças: a diminuição da fecundidade e mortalidade; o aumento da longevidade dos idosos; a diminuição do número de crianças e adolescentes; as mudanças nos padrões de relacionamento entre os membros da família; o papel da mulher dentro e fora do espaço doméstico e os novos arranjos familiares – famílias monoparentais, por exemplo. Segundo ela, em virtude dessas mudanças, a família nuclear tradicional está cedendo lugar à família ampliada ou extensa, isto é, aquela formada por diferentes tipos de membros e gerações. “Sintetizando, a nova família, que anteriormente era definida pela obrigação, é hoje definida pelo afeto, ou seja, relações de consanguinidade sendo substituídas pelas relações afetivas e amorosas”, analisa. Exemplo de arranjo familiar desse novo perfil social, o administrador Carlos Alexandre Ribeiro, 36 anos, recorre à sua família de origem e à escola para educar e dar suporte – financeiro e afetivo – ao filho Marcelo, de cinco anos. Após a separação da mãe de Marcelo e a obtenção de sua guarda definitiva, Alexandre viu-se como responsável pelo futuro do filho. “Mas isso só foi possível com o apoio das irmãs na escola onde ele estuda e da minha mãe”, adianta, lembrando que o menino hoje tem bolsa integral no colégio e plano de saúde pago pela avó. “Foi um dos primeiros presentes que ele ganhou quando nasceu”, re c o rd a . A irmã de Alexandre tam-
bém passou a apoiar nas tarefas, como buscar Marcelo no colégio, dar banho e comida quando o pai não consegue. “Mas, nos finais de semana e sempre que posso, eu assumo todas as responsabilidades com meu filho. Brigo por ele no colégio, vou a reuniões, levo no parque, faço comida. Agora somos eu e ele. Dependemos um do outro”, sintetiza. modelos sexuais – Os laços afetivos e a presença dos modelos feminino e masculino são fundamentais na construção dos referenciais infantis, adverte a psicanalista Marlene Araújo. Ela ressalta que ainda não há pesquisas – nem no Brasil, tampouco no exterior – para saber qual o dano psicológico na criança que não possui esses modelos. A adoção de crianças por casais homossexuais, em sua opinião, ainda precisa ser melhor estudada. “Politicamente, é correto e resolve a questão do abandono, mas pode criar outros problemas”, acredita, acrescentando que o modelo de casa-lar, com a figura do “pai” e da “mãe”, ainda é a melhor alternativa. A opinião é oposta à da médica psicanalista e doutora em Antropologia Social Elizabeth Zambrano. “Se esses dois pais ou duas mães não disserem à criança que a geraram, não vejo problema nenhum. A criança tem todas as condições de entender. É só não ter mentiras e segredos”, ressalta, acrescentando que a criança deve aprender a respeitar, conviver e aceitar as diferenças desde pequena. Palestrante do II Congresso de Direito de Família do Mercosul, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família/RS, em agosto, Elizabeth debateu o papel do Estado a partir dessas mudanças sociais. Ela diz que o Estado auxilia às vezes e outras vezes atrapalha essa caminhada. “Auxilia quando protege os direitos
de casais homossexuais, como previdência social ou herança, e atrapalha quando não protege os vínculos entre pais sociais e filhos do companhei ro(a) nas famílias recompostas, ou deixa sem proteção as crianças adotadas por apenas um dos parceiros de um casal homossexual. Quando o Estado acompanha as mudanças sociais, mesmo que seja por meio da jurisprudência, aí ele está cumprindo o seu papel de proteção do cidadão conforme prega a Constituição Federal, sem preconceito de qualquer espécie”, afirma. Mas se o Estado vem, muitas vezes, a reboque das mudanças sociais, também a mídia serve para reforçar ou não o status quo. Não é de agora que as novelas ou outros programas abordam questões cotidianas. “A mídia funciona de duas formas: ou evidencia o que já está acontecendo ou facilita, e muitas vezes dificulta, uma discussão mais arejada sobre determinados assuntos, mas ela não inventa a mudança, e sim a repercute”, complementa a antropóloga. Para a professora da Unisinos, Rosângela Barbiani, existe uma crise no mundo e em suas instituições, representantes de autoridade e poder, e por consequência também na família. “As mudanças na sociedade do capital afetam direta e profundamente a fa-
mília contemporânea. Antigamente, a família poderia ser considerada, ela própria, uma ‘unidade de produção’ encarregando-se da produção de seus meios de vida. Atualmente, nossa inscrição de cidadania depende de nossa posição enquanto consumidores, isto é, os indivíduos incluem-se na sociedade à medida que estão inseridos no mercado”, afirma. unidade de consumo – Nesse cenário, diz ela, os valores de referência são “o individualismo; a competição, o ter sobre o ser, ficando a família fragilizada porque acaba também se transformando em ‘unidade de renda e de consumo’”, explica. Conforme Rosângela, “a família passa a ter que prover as demandas de consumo ao invés das necessidades sociais de seus membros. Um exemplo claro dessa inversão de valores é o fato de as crianças e os adolescentes exigirem dos pais cada vez mais a satisfação de seus desejos materiais, como se nessa ação estivessem representados o afeto, o amor, a estima pelos filhos”, afirma, sintetizando: “uma família feliz é uma família que consome e não mais a que partilha”.
Mas, mesmo fragilizada, a família ainda desempenha funções fundamentais. Silvana Henzel busca a definição no dicionário, onde nos sinônimos de família aparece a palavra raiz. “Família é isso: é o que nos dá segurança diante das adversidades da vida, é o que nos nutre primeiro no sentido concreto do autoconservativo orgânico e simultaneamente no sentido emocional. É o esteio onde aprendemos a construir laços de afeto, onde nos constituímos enquanto sujeitos singulares e onde aprendemos a viver em um contexto social”, sintetiza. N VERA NUNES é jornalista em Porto Alegre (RS)
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Em nome da família, amém para um relacionamento bem-sucedido, é preciso que o casal aceite a existência de maus momentos através da aceitação atenta de que a dor é inevitável e faz parte do viver.
S. Bruney
por Roseli Kühnrich de Oliveira
A
s famílias já não são as mesmas. As novas formas de ser família exigem a disposição de olhar não apenas para o passado. Famílias iniciavam com um homem e uma mulher. Hoje, não necessariamente. Em vários países, o casamento entre pessoas do mesmo sexo está sendo legalizado. As dificuldades em família aparecem até mesmo nas culturas mais conservadoras, em que mulheres são condenadas ao apedrejamento por ter adulterado. Gangues de jovens de classe média mostram as limitações do comprometimento familiar. Filhos dão ordens aos pais numa realidade impensável há poucos anos. A “tirania kids” é
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facilmente observada em shopping centers, onde pais confusos e também sem limites não conseguem distinguir o necessário frente ao real desejo de aceitação. É difícil pensar e escrever sobre a família hoje. Novas configurações familiares, competição entre os cônjuges, interferência das famílias de origem, do trabalho, da mídia, crises nos casamentos... Então, de que família estamos falando? Qual a sua definição de família? Podemos comparar famílias nucleares, poligâmicas, recasadas, matriarcais ou extensas? Obviamente, cada uma tem suas características, mas todas apresentam as dificuldades naturais de seres humanos que vivem em comunidade.
Contudo, filmes de histórias de amor atuais criam a ilusão de que é possível viver um “relacionamento perfeito”, o que torna ainda mais difícil lidar com os problemas diários. Aceitar que relacionamentos incluam sofrimento é o segredo, segundo um estudo publicado na Revista de Terapia de Casal e de Família, nos Estados Unidos. Contudo, em geral, o valor que é dado à atitude pró-ativa e ao triunfo sobre a adversidade cria um ambiente em que o sofrimento é visto como um sintoma da derrota pessoal. Assim, perpetua-se o mito de que com esforço e força de vontade tudo se resolve. Segundo os pesquisadores, para alcançar um relacionamento bemsucedido, é preciso que o casal aceite a existência de “maus momentos” através da “aceitação atenta” de que algum tipo de dor é inevitável e faz parte do viver. Em resumo, parar de lutar contra o que não se pode mudar, enfocando o que há de bom, valorizando o que o casal ou família já conseguiu até aquele momento. Relacionamentos não “dão certo” a priori. O casamento e a família vão se adaptando, conforme as pessoas vivem e se modificam. A noção de que somos seres vivos e em movimento existencial e dialético é fundamental para permitir aos casais e famílias os erros que podem conduzir aos acertos e ajustes de convivência, com todos os atritos e alegrias que esse arranjo produz. Em muitas culturas, ainda hoje as pessoas casam e mantêm casamentos arranjados. Em outras, casais que se escolheram se separam, e há pessoas que, mesmo ainda se amando, rompem a relação. Por quê? Pode ser que o afeto de um não chegue ao coração do outro. Existem bloqueios nessa estrada da comunicação dos sentimentos. As circunstâncias externas têm seu
CAPA
ROSELI KÜHNRICH DE OLIVEIRA é psicóloga em Porto Alegre (RS)
A conciliação é a melhor saída Divulgação Novolhar
peso e influência, como também a biografia de cada um, a forma como cada pessoa aprendeu a expressar ou não suas emoções. O amor não é apenas o sentimento. Ama-se alguém ou a si mesmo: existe um destinatário das ações amorosas. Sem dúvida, a atração física e/ou intelectual molda parte do encantamento que aproxima as pessoas. Mas isso não é necessariamente amor. Esse se traduz em atitudes. Afinal, até um bebê demonstra seu amor afagando o rosto materno. Mais do que uma atração ou sentimento, manter o casamento requer uma permanente construção e disposição de viver todos os momentos, bons e maus. É artesanal, não mágico. Um dos maiores desafios dos tempos modernos é ensinar comprometimento a pessoas que lidam com um mundo descartável, onde a evolução das tecnologias torna-as obsoletas e rapidamente substituíveis. Visitei uma exposição fotográfica este ano em Lisboa, projeto da Anistia Internacional (1000familias.com). O fotógrafo Uwe Ommer percorreu, durante quatro anos, cinco continentes retratando famílias, no intuito de compor um grande álbum. Nessa extensa família, somos todos humanos e habitamos o mesmo planeta, diz a apresentação da amostra. Confesso que me emocionei ao ver as fotos. Pessoas que, retratadas, espe lham no olhar o anseio de ser aceitas, amadas. Pessoas que se ligam de uma forma concreta por DNA e/ou por afeição, por laços visíveis ou invisíveis, funcionais ou disfuncionais. Apesar das diferenças de culturas, crenças e hábitos, o conceito de família permanece e há de sobreviver, embora de maneira diferenciada dos modelos que herdamos. N
por Solange Magali Schwambach
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udanças sensíveis ocorreram nos meios familiares e inspiram interpretação dos juí zes sobre as leis, e a própria modificação das leis. Assim, houve evolução legal desde o Código Civil de 1916, primeiro com a Lei do Divórcio nº 6515, de 1977, depois com o advento da Constituição Federal de 1988. Esta passou a reconhecer a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher, igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo a todos os mesmos direitos e deveres. O Novo Código Civil, que já vinha sendo discutido há décadas, pouco trouxe de mudança, adaptou a lei civil à Constituição e passou a valer a partir de janeiro de 2002. Mais recentemente, veio a Lei Maria da Penha, que traz mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar; por derradeiro, a nova Lei do Divórcio, surgiu para facilitar o divórcio consensual. Para atender ao grande número de demandas na área familiar, foram criad as as Varas de Família, para atender demandas dessa matéria e são especializadas em disputas familiares. A especialização possibilita que o Julgador se dedique a essa espécie de processo e estará mais preparado para julgar o caso concreto, no intuito específico de melhor atender a comunidade. Quais são os tipos de casos? Todas as questões familiares que merecem a chancela do Judiciário. Quando inexiste consenso entre as partes, as demandas são encaminhadas às Varas de Família, tais como separações, divórcios, dissolução de uniões estáveis, fixação de alimentos, execuções de alimentos, revisões das verbas alimentares (majoração ou redução),
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BRIGA: Ainda existe uma cultura forte do litígio
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interdições, disputas pela guarda dos filhos, investigações de paternidade, dentre outras controvérsias. A mudança na lei do divórcio veio para agilizar o processo de divórcio consensual, pois, a partir de agora, casais que queiram se divorciar estão liberados do cumprimento prévio da separação judicial por mais de um ano ou de comprovada separação de fato por mais de dois anos, como previa a Constituição. As regras, portanto, só valem para casais que concordarem com o divórcio e que não possuam filhos menores de idade. Na prática, para se divorciar em um cartório judicial, era necessário um primeiro processo para conseguir a separação e um segundo para se divorciar. Agora só será necessária a etapa do divórcio. Além de reduzir a interferência do Estado na vida privada dos cidadãos, a medida acarretará economia de recursos técnicos e financeiros para o Judiciário e para os indivíduos que pretendem se divorciar, uma vez que não serão necessários os dois processos. Mas existe chance de conciliação? Há possibilidade de reconciliação. Para tanto, é importante que o advo-
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CAPA gado tenha o compromisso moral de, antes de encaminhar os processos a litígio, tentar encaminhar as partes para a reconciliação e/ou conciliação, não esquecendo da necessária interdisciplinaridade do direito com a psicologia no encaminhamento dos casais para a terapia familiar, que em muitas situações tem ajudado significativamente os casais a entender o difícil momento da ruptura conjugal. Sabe-se que as congregações religiosas têm prestado apoio às famílias em crise conjugal, trazendo serenidade e alívio àqueles entes familiares que experimentam a angústia e a dor, buscando na palavra de Deus força para ultrapassar as dificuldades e manter o equilíbrio pessoal e familiar. Ainda que o casal não se reconcilie, deve buscar o equilíbrio da relação para juntos amadurecerem para uma separação consensual e não da família, porque mesmo separados continuarão sendo pais dos filhos para sempre, mudando a condição de marido e mulher, e não de pais e filhos, pois não existem ex-pai nem ex-mãe. Infelizmente, ainda existe uma cultura forte do litígio, ou seja, para que o casal se separe, os dois devem “brigar”, quando, na verdade, o casal deveria amadurecer as diferenças em busca de uma separação consensual, cuja solução é mais saudável não somente para o casal, mas para toda a rede familiar. Superada essa fase de tentativa de harmonização das relações, existem situações que pedem o ajuizamento de litígios, especialmente quando adentramos muitas vezes na seara da má-fé e do prejuízo material. Porém, quanto a isso, não há que se perder de vista que o maior prejuízo enfrentado pela família ainda é o incomensurável prejuízo imaterial da ruptura conjugal, que não tem preço. N SOLANGE MAGALI SCHWAMBACH é advogada em Novo Hamburgo (RS)
Quem deve educar? família e escola são complementares na formação da criança e do jovem. Ambas têm em comum o objetivo da educação do filhoaluno, mas ao mesmo tempo possuem papéis diferenciados. por Delci Knebelkamp Arnold
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o advento da era moderna, a família e a escola, assim como outras instituições sociais, sofrem mudanças. É preciso entender que família e escola são instituições que surgiram no interior de relações de poder e de saber diante do aceleramento das mudanças econômicas, do crescimento demográfico, do aumento da necessidade de cuidados por parte dos indivíduos e da população. Especificamente, a família se forma a partir da necessidade moderna de tutorar, regrar e educar a criança. Ela reorganiza sua estrutura e, aos poucos, começa a aparecer um certo borramento de
Heriberto Herrera
fronteiras entre o que cabe à família e à escola. Percebe-se que a família já não dá mais conta dos desafios da modernidade e tenta delegar à escola a função de desenvolver o caráter, a disciplina e o conhecimento do sujeito que precisa fazer a “passagem do estado da infância ao do adulto”, conforme afirma Philippe Ariès em “A história social da criança e da família”. As duas instituições, família e escola, aparecem como responsáveis pela formação dessas crianças para que sejam preparados para viver nesta nova sociedade. Para isso, a função da família passa a ser a de amar e zelar pelo bem-estar da criança, enquanto a escola se encarrega de educar, ensinar e formar essa criança. Assim, instala-se a aliança entre elas. As funções estão determinadas para cada instituição, e as tarefas se complementam. Com o transcorrer do tempo e as transformações decorrentes das descobertas científicas e tecnológicas, passa-se, aos poucos, a outro modo de pensar, de viver, de se relacionar, de acreditar, de consumir. E as crises se intensificam. Muitas também acontecem na relação família-escola. Um elemento de crise é a mudança de valores colocados na afetividade e no amor, inicialmente presentes na família nuclear moderna, mas que perderam força nos dias atuais. Família e escola procuram desenvolver, desde o início da modernidade, uma formação capaz de tornar o cidadão cuidado e educado, considerando os ideais da época. No entanto, o modo de vida atual acelerado e instantâneo faz com que o movimento do cuidado se transforme em abandono e solidão e o do educado passe a ser problema para instâncias de controle jurídico. Diante dessa discussão levanta-se a questão da responsabilidade pela formação da criança e do jovem. De forma objetiva, pode-se dizer que é na
COMUM: Família e escola são responsáveis pela formação das crianças para viver em sociedade
relação afetiva e no estabelecimento de vínculos que a criança vai se tornando pessoa. E ela precisa de referenciais adultos, como o pai, a mãe, o professor, a professora, para ser orientada de forma convincente e firme. O professor passa a ser também modelo de autoridade, principalmente se considerarmos que a figura do pai sai de cena, em parte quando a criança entra na escola e pelas diferentes constituições familiares atuais em que a figura masculina não se faz mais tão presente. Podem-se lembrar também aqui as mudanças nos relacionamentos e que exercem grande influência sobre o modo como vivem as famílias. Não há mais um modelo de família. Crianças de várias constelações familiares, nucleares ou não, reúnem-se todos os dias na escola, cada um com seu jeito, sua história. Neste contexto, muitos chegam à escola sem as capacidades interpes soais desenvolvidas, não compreendem os processos de uma solução e o prazer imediato é o que importa, não reconhecem hierarquias e gostam de fazer apenas o que lhes agrada.
Esses fatores podem ocasionar a falta de limites, o individualismo e a violência. Existem também os sujeitos que fazem parte da geração da solidão. Um exemplo são aqueles que processam o isolamento através do uso de fones de ouvido. Têm o domínio das tecnolo gias, mas sua aprendizagem, informal e formal, é extremamente superficial. Enfim, esses filhos-alunos se apresentam como sendo muito carentes. Carentes de aprendizagem interpessoal e de conhecimento, necessitando ser acolhidos pela família e pela escola nesses aspectos. Diante desse quadro, cabe dizer que família e escola são complementares na formação da criança e do jovem. Ambas têm em comum o objetivo da educação do filho-aluno, mas ao mesmo tempo possuem papéis diferenciados e distintos. O que precisa ser praticado entre família e escola é uma relação compartilhada. N DELCI KNEBELKAMP ARNOLD é professora no Instituto de Educação Ivoti e no Instituto Superior de Educação Ivoti em Ivoti (RS)
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CAPA
Pornografia e sexualidade
mais dizemos aos homens que é dessa maneira que eles devem tratar as mulheres, que eles devem achar isso excitante. E os garotos vão construir suas identidades sexuais em torno dessas imagens”. Como podemos perceber, ela está preocupada com as relações entre homens e mulheres, que podem vir a ser violentas e agressivas a partir da formação na adolescência. E a sexualidade a ser exercida na vida adulta pode sofrer com a visibilização precoce de filmes pornográficos por qualquer jovem na internet. Perguntada na entrevista no site da revista Época se a pornografia tornou-se
para a socióloga gail dines, os filmes acessados na internet por adolescentes são responsáveis pelo aumento da violência sexual contra mulheres e crianças.
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domínio para pornografia na internet foi aprovado pela junta diretiva da ICANN durante conferência em Bruxelas, na Bélgica, noticiou o site da revista Veja, na seção Vida Digital, em 25 de junho. A ICANN – cuja sigla significa Corp or aç ão da Internet para Atribuição de Nomes e Números – é responsável pela coordenação global do sistema de identificadores exclusivos da internet. Em fins de junho, a socióloga Gail Dines, americana, lançou um livro nos Estados Unidos com uma forte crítica à indústria do entretenimento adulto. Seu livro – Pornland – How porn has hijacked our sexuality (Terra do Pornô – Como a pornografia tem desviado a nossa sexualidade) – apresenta a tese de que os filmes acessados livremente na internet por adolescentes são responsáveis pelo aumento de casos de violência sexual contra mulheres e crianças. Em entrevista publicada no dia 8 de julho no site da revista Época – no Blog Mulher –, a socióloga americana Gail Dines afirma com convicção
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que algumas “pesquisas mostram que entre 40% e 80% dos homens que baixam pornografia infantil da internet acabarão se envolvendo em algum tipo de abuso contra menores. Os estudos definitivamente sugerem que há uma ligação”. Para ela, a indústria do entretenimento adulto vende uma imagem de sexualidade em que a mulher é sempre submissa ao homem e em que o menosprezo pela mulher é evidente e motivador de cenas picantes. “O que significa para um menino que ainda está desenvolvendo sua sexualidade ver esse tipo de pornografia?”, pergunta Dines. Que resposta têm os pais e as mães quando descobrem que seus filhos adolescentes estão visitando sites pornográficos? Que tipo de conversa desenvolvem educadores com seus alunos e alunas quando o tema surge em sala de aula ou em conversas informais? Quantos de nós estão preparados para conversar sobre esse tema tão polêmico, tão difícil, com nossos filhos adolescentes? Para a socióloga Gail Dines, quanto “mais erotizamos essas imagens,
Oliver Gruener
por João Artur Müller da Silva
mais violenta do que era na década de 1970, quando feministas promoveram campanhas para denunciar a imagem de mulher-objeto que esses filmes transmitiam, ela foi bastante clara em sua resposta: “Não há comparação. Antes, o que era considerado um tipo de pornografia muito pesado, que tinha de ser comprado em lugares especiais, hoje é tido como normal. Os adolescentes podem baixar pela internet. Esse aumento da violência aconteceu porque os homens se entediaram com a pornografia disponível. O acesso a esses materiais é tão fácil, que os homens se tornaram insensíveis aos apelos do
pornô. Por causa disso, a pornografia precisa continuar aumentando o nível de humilhação das mulheres para manter o interesse dos homens”. Na entrevista com Dines, também foi perguntado se existe um tipo de pornografia saudável. Sua resposta é merecedora de reflexão. Disse ela: “Se há, eu ainda não vi. Pornografia por definição são imagens baseadas na desigualdade, na humilhação, na desumanização. Eu não consigo aceitar que qualquer imagem desse tipo seja boa para as pessoas”. Essa convicção cristalina e firme está baseada em estudos e pesquisas sobre os efeitos
e as influências que a indústria do entretenimento adulto pode exercer sobre as pessoas. E quando perguntada sobre como controlar esses efeitos negativos da exposição à pornografia, ela mais uma vez manifesta clareza e propõe que “a legislação deveria definir pornografia como uma violação dos direitos civis das mulheres. Assim, elas poderiam processar os autores desses produtos por qualquer tipo de dano físico que elas sofressem. É claro que é difícil provar que esses danos foram estimulados pela pornografia. Mas, muitas vezes, é difícil provar violações de direitos previstos pela lei. Mas isso não os invalida”.
“a legislação deveria definir pornografia como uma violação dos direitos civis das mulheres. Assim, elas poderiam processar os autores desses produtos por qualquer tipo de dano físico que elas sofressem.”
Como vemos, a criação de domínios na internet dedicados à pornografia vai tirar ainda mais o sono de pais, mães e educadores preocupados e comprometidos com a educação de seus filhos e filhas. Será preciso empreender esforços, reflexão, diálogo, estudos e até eng aj am ent o em movimentos de combate à pornografia, pedofilia e tudo o mais que representa abuso e N violência contra as pessoas. JOÃO ARTUR MÜLLER DA SILVA é teólogo e editor da Editora Sinodal em São Leopoldo (RS)
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A certeza da proteção por Carlos E. M. Bock
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Conselho Tutelar foi acionado pelo Disque 100. A denúncia dizia que uma menina de 12 anos estava sofrendo abuso sexual pelo padrasto. O Conselho constata a situação de violência contra a criança e decide pelo abrigamento da menina. Ela entra no carro do Conselho Tutelar. Com os olhos cheios de lágrimas, olha pela janela na esperança de que a mãe possa impedir seu afastamento. Sozinha, acompanha aquela
gente desconhecida. Para trás ficam aqueles a quem ama, seu lar, onde sofreu violência, mas é seu lugar. A conselheira tutelar procura vaga num abrigo, faz a documentação de abrigamento, e a menina é conduzida ao lugar onde viverá pelos próximos meses até que a situação de risco seja neutralizada. A viagem até o abrigo é para ela como uma eternidade. O medo e a angústia diante do desconhecido aceleram seu batimento cardíaco.
ABRIGO: O lar cumpre sua missão de acolher, acalmar, proteger, dar segurança e conforto emocional
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De repente, o conselheiro anuncia que aquele prédio será seu novo lar. A menina aperta contra seu corpo frágil a sacola com seus poucos pertences. Não tem mais nada em que se segurar. O que fazer com uma criança ou adolescente nessa situação de violência? A menina chega ao abrigo da ABEFI (Associação Beneficente Evangélica da Floresta Imperial). A educadora explica a rotina da casa e o contrato de convivência elaborado em parceria com os abrigados. Ela também informa que, no dia seguinte, ela será matriculada na escola do município. O lar começa a cumprir sua missão, que é acolher, acalmar, proteger, dar segurança e conforto emocional. A autoestima e a segurança vão ser reconstruídas, na medida do possível, através de cinco programas: atendimento pedagógico, acompanhamento familiar, acompanhamento psicológico, integração comunitária e formação.
Fotos: Arquivo Lar Padilha
Saiba mais ABEFI – Associação Beneficente Evangélica da Floresta Imperial – é um serviço diaconal da Comunidade Evangélica Floresta Imperial em Novo Hamburgo (RS). O Lar Padilha é uma unidade da ABEFI, localizado em Taquara (RS). Disque 100 – Telefone para denúncia de violência contra crianças e adolescentes. As crianças e os adolescentes só podem ser abrigados por decisão do Conselho Tutelar, Promotoria da Infância e Juventude e Juizado da Infância e Juventude.
EMOÇÃO E CONHECIMENTO: Oficinas possibilitam bem-estar emocional e crescimento cognitivo
Para possibilitar bem-estar emo cional e crescimento cognitivo, são oferecidas oficinas de dança, teatro, música, informática, esportes, ca poeira e artesanato para os adolescentes. Esses participam do Grupo de Protagonismo, em que criam projetos que desenvolvem autonomia e empo deramento através de temáticas eleitas por eles, tais como: sexualidade, es piritualidade, meio ambiente, direitos da infância e afetividade. O desafio desse lar, chamado Lar Padilha, é transmitir à criança e ao adolescente abrigado a certeza de proteção, segurança, cuidado emocional e comunicação com a família. Na primeira semana, os abrigados entram para o programa de retorno à família. O programa permite que eles estejam próximos do anseio maior que toma conta de uma criança ou adolescente abrigado: voltar para a família. Pois, por melhor que seja o abrigo, esse é o maior desejo dos abrigados. A partir da acolhida e integração, as crianças e os adolescentes passam a sentir-se muito bem no dia-a-dia do lar. Logo começam a rir, a participar das atividades com prazer. O lar é aberto. O caminho para a escola é feito livremente. Depois de adaptados e havendo condições, começam a fazer
visitas em casa ou para parentes próximos, com o objetivo de preparar sua volta para o convívio familiar. Quando não há nenhuma possibilidade de retorno à família, os jovens permanecem até os 18 anos. Esses casos têm sido cada vez mais raros. Desde que o programa de retorno à família foi instituído, o desejo das crianças e adolescentes de voltar para casa tem sido bem atendido. A volta ao abrigamento, depois de desligados por ordem judicial e com orientação do lar, tem sido baixa. Em torno de 3% precisam retornar ao abrigo porque as situações de risco se restabeleceram. A violência que retira a criança de seu lugar e a coloca num abrigo é um tipo de violência grave, porque vai modificar para sempre um ser em formação. A lei é falha, pois afasta a vítima e não o agressor. Penso que, como cristãos, devemos aprofundar a reflexão sobre o que lemos em 1 João 3.18: “Meus filhinhos, o nosso amor não deve ser somente de palavras e de conversa. Deve ser um amor verdadeiro, que se mostra por meio de ações”. N CARLOS E. M. BOCK é teólogo e obreiro da IECLB na Comunidade Evangélica Floresta Imperial em Novo Hamburgo (RS)
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CAPA
os pais, a partir de si próprios, podem renovar suas mentes e começar a praticar a radicalidade do amor proposta por Jesus cristo. por Vera Liane Petry Schoenardie
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base sobre a qual se constrói um casamento e uma família não tem futuro se não contiver as mais profundas expressões do amor, quais sejam: o respeito, o desejo do bemestar próprio e do outro, a proteção, o exemplo saudável e a alegria pela presença do outro. De forma distinta de outras reli giões, o cristianismo tem como centro de sua mensagem o amor. O amor de um Deus relacional, que vem ao encontro de sua criação. Jesus, o Deus encarnado, veio para compreender a natureza do humano e propor a reconstrução do divino de nossa essência original. E qual é o cerne do chamado de Jesus? A proposta do exercício de um
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Benjamin Earwicker
Um amor possível RADICAL: A qualidade do amor proposto por Jesus independe de nosso estado emocional
amor radical, que começa na relação com Deus, passa pela própria pessoa e alcança os outros seres com o mesmo comprometimento. A partir de Lucas 6-32, sabemos que Jesus questiona o “mérito” de se amar somente os que nos amam, sugerindo que não há nada de especial nisso. A medida do amor cristão é amar quem nos é “indigesto”, quem nos faz mal. Impossível, dizemos! Amar não é algo que se impõe! Como então Jesus coloca seu grande mandamento como um imperativo? Se pensarmos no amor tãosomente como uma emoção, aquele “calorzinho no peito”, somos levados a concordar que Jesus pede o impossível. Em 1 Coríntios 13.4-7, lemos: “Quem ama é paciente e bondoso. Quem ama não é ciumento, nem orgulhoso, nem vaidoso. Quem ama não é grosseiro nem egoísta; não fica irritado, nem guarda mágoas. Quem ama não fica alegre quando alguém faz uma coisa errada, mas se alegra quan-
do alguém faz o que é certo. Quem ama nunca desiste, porém suporta tudo com fé, esperança e paciência”. Difícil, não? Mas façamos uma inversão nas palavras do texto e teremos algo assim: “Bondade e paciência são formas de amar. Ciúme, orgulho, vaidade não são amor... Egoísmo e grosseria não são amor...” Complete você mesmo a sequência. Paulo não fala de sentimentos. Fala de traços de caráter. Fala de aspectos da personalidade humana. E então temos a chave. A impaciência, por exemplo, é um traço de caráter que eu escolho cultivar ou não. Ou a impaciência me domina (como se eu fosse uma criança, ou seja, um adulto infantil), ou eu a domino. Ser grosseiro, magoar-se por bobagens, jogar na cara do outro seu erro, com prazer arrogante e orgulhoso, são escolhas. A qualidade de amor proposto por Jesus independe de nosso estado emocional, pois ele compreendeu
CONTO
VERA LIANE PETRY SCHOENARDIE é psicóloga e terapeuta familiar e de casais em Sapiranga (RS)
Beleza e feiura
Arte: Douglas Rickard (Reprodução)
que nossas emoções são enganosas e podem estar a serviço do que há de mais sutilmente perverso na natureza humana. A reprimenda irada, de cara feia, feita ao filho, talvez muito pouco tenha a ver com o fato que a gerou. Quem sabe uns 80% da “descarga” tenham outro endereço original: meu chefe, meu colega, o guarda que me multou... Mas eu descarrego em quem é mais fraco. E ainda dou uma bela explicação para meu ato. Que covardia! Ao compreendermos que amar é uma qualidade de pensar e de agir, os sentimentos podem ser realinhados de forma diferente também. O apóstolo Paulo convoca a fazermos metánoia, ou seja: renovar as nossas mentes. Para os judeus, a mente inclui não só o intelecto, mas também as emoções e as atitudes. Renovai: mais um imperativo! Os imperativos de Jesus e de Paulo não são um convite ao legalismo, ao fingimento, mas uma afirmação de possibilidade. Muitas leituras sobre métodos de educação de filhos, intermináveis sessões de terapia de casal ou de família de pouco servirão se as pessoas envolvidas não se dispuserem a “renovar suas mentes”. Que os pais, a partir de si próprios, comecem a praticar a radicalidade do amor como proposto por Jesus. Não é comportamentalis mo. É mudança interior profunda. É anseio por amor, anseio por harmonia, anseio por bem-estar próprio e de outrem. É iluminar o que está oculto em nós. É separar o joio do trigo, a começar por nós e avançando nos relacionamentos. É buscar o perdão, sempre que preciso. Porém, mais do que isso, é dedicar-se de tal forma que ele não seja necessário. N
por Brunilde Arendt Tornquist
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ocê acredita que o coração tem razões que a própria razão desconhece? E com certeza você já escutou o ditado: Quem ama o feio, bonito lhe parece. Pois ele me fez lembrar uma história muito instrutiva. Pedro era comerciante, desses que viaja durante dias, levando seus produtos para vender em lugares distantes. Ele tinha três filhas. A mais jovem era a mais linda e carinhosa; por isso era chamada de “Bela”. Numa de suas viagens, além de vender muito pouco, foi assaltado e ficou sem as mercadorias. Como tragédia pouca é bobagem, as mercadorias roubadas não tinham sido pagas ainda. Sem economias, sem mercadorias para vender e devendo uma pequena fortuna ao fornecedor,
o que fazer? “Quem sabe o fornecedor faz um acordo comigo. Ele pode me dar mais mercadorias para vender, e eu vou pagando aos poucos o que devo”, pensou esperançoso o pai preo cupado com o futuro. Não foi isso o que aconteceu. O fornecedor não aceitou essa proposta, mas teve uma ideia para ajudar o comerciante. Como ele sabia das três filhas, ele fez outra proposta. O verdadeiro dono do negócio, que nunca aparecia, precisava de alguém para ajudar na casa, e uma das filhas poderia trabalhar para ele e ressarcir o prejuízo das mercadorias roubadas. Depois de quitada a dívida, o comerciante receberia novos produtos para vender. Era uma proposta justa, mas o pai estava preocupado com as filhas. Qual delas iria fazer tal sacrifício? Era
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biografia
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muito dinheiro... Seriam vários meses trabalhando para uma pessoa que ninguém sabia como era. Em casa, o pai chamou as filhas para uma conversa. Ele explicou a situação. Depois, um silêncio pesado. Quebrado pela voz decidida de Bela: “Eu vou”. E foi. No endereço que lhe deram, Bela vislumbrou uma casa magnífica, cercada de um belo jardim. Tocou a campainha. No interfone, uma voz agradável perguntou: – Quem é? – Sou a Bela, a nova empregada. – Pode entrar. A porta da casa estava entreaberta, como que convidando para entrar. E ela entrou. Por dentro, a casa era tão linda quanto o jardim. Chamou, mas ninguém respondeu. Decidiu, então, conhecer a casa. Qual não foi sua surpresa quando viu uma porta dupla com a inscrição em caracteres dourados: “Apartamento da Bela”. Entrou. Era um quarto grande, bem iluminado, com móveis claros e tapetes coloridos. Das janelas tinha uma encantadora vista para o jardim. Arrumou suas coisas e ficou esperando. Na hora do almoço, alguém bateu à porta. Abriu-a com cautela e viu-se diante daquele homem. A expressão do rosto de Bela a denunciou. Ele falou com voz gentil: – Sei que tenho um aspecto horrível e me desculpo, mas não sou mau e espero que você se acostume com a minha aparência. Não costumo aparecer para ninguém e precisei tomar coragem para vir encontrá-la. Agora queria convidála para almoçar comigo e falar sobre seus afazeres. Ainda um pouco temerosa, Bela aceitou o convite. No início, foi muito difícil para Bela acostumar-se com a aparência do homem, que ela internamente
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chamava de “Fera”. Mas, ao contrário do que temia, ela não só se acostumou com ele como aprendeu a apreciar sua companhia. Com a “Fera”, ela aprendeu muitas coisas, pois ele era incrivelmente culto. Gostavam de trabalhar juntos no jardim e compartilhavam o amor por roseiras. Dias, semanas, meses se passaram, e ela estava cada vez mais adaptada à rotina da casa e afeiçoada àquele estranho ser, que se revelava uma pessoa bondosa, bem humorada, embora tímida e ressabiada. Às vezes, ela pensava: “Será que ele nasceu assim ou foi um acidente?” Mas nunca se falou nesse assunto. Uma tarde, durante um passeio pelo jardim, a “Fera” disse à Bela: – A dívida de seu pai está paga. Mas eu queria lhe dizer uma coisa: desde que você chegou aqui, a minha vida mudou. Bela, quer casar comigo? Foi uma grande surpresa. E Bela aproveitou a situação: – Antes de responder, preciso falar com meu pai. O pai e as irmãs ficaram muito felizes com a volta da Bela. Ela lhes contou tudo o que ocorrera, inclusive lhes confessou que não tinha planos de voltar. À medida que os dias passavam, porém, ela sentia cada vez mais saudades da “Fera”. Uma noite, passado muito tempo, sonhou que ele estava deitado, morto, junto às roseiras. Assim que amanheceu, Bela partiu. Ao chegar à casa da “Fera”, encontrou-o de fato no roseiral, visivelmente abatido e triste: – Perdão, pensei em não retornar. Não podia admitir amar alguém como você. Ainda quer casar comigo? Pois eu quero. N BRUNILDE ARENDT TORNQUIST é teóloga e assistente editorial em São Leopoldo (RS)
Rubem Alves: aprendiz de feiticeiro teólogo e pensador mineiro, as suas histórias e obras contribuíram para humanizar a vida e a pedagogia. por Iuri Andréas Reblin
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ocê conhece Rubem Alves? Já leu algo que ele escreveu? Pode ser que você o conheça das crônicas que ele escreve, das estórias infantis, dos livros sobre educação ou sobre religião – ou pode ser também que você não o conheça. Em qualquer caso, o Rubem sempre acaba surpreendendo. E isso porque ele é um feiticeiro que sabe usar as palavras que conhece. Desde pequeno, Rubem Alves alimentava o sonho de ser pianista, mas acabou se tornando pastor protestante e, mais tarde, professor de universidade e contador de estórias. Chegou a pregar a palavra de Deus em praça pública, teve que fugir da ditadura e aprender a viver em terra estrangeira, porque foi denunciado pela própria igreja que amava. Essa estava possuída por um fundamentalismo que se agarrava à Bíblia e que
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RUBEM ALVES: Teólogo e pastor de palavras e esperanças
havia se esquecido das necessidades concretas das pessoas naquela época de grandes transformações sociais nas décadas de 1950 e 1960. Richard Shaull, seu professor no seminário de teologia, havia lhe ensinado justamente isto: Deus não mora nos jardins protegidos da instituição religiosa, mas no mundo, lá onde a vida está acontecendo. Enquanto tentava juntar os cacos de sua vida, provocados pela solidão e pelo abandono no exílio nos Estados Unidos, acabou despertando o poeta, o guerreiro e o profeta que habitavam dentro dele. Ao retornar ao Brasil na década de 1970, Rubem Alves já era um crítico da instituição religiosa. “Por trás de todo discurso sobre Deus há um sujeito que se esconde”, disse ele. Isso se evidencia principalmente quando
há uma disputa sobre as diversas interpretações que se faz sobre um texto sagrado. Rubem Alves também questionou a teologia que tenta descrever Deus e que dá sustentação à defesa de uma interpretação única, exclusiva e infalível de sua Palavra. Ele afirma que não é possível defender uma determinada interpretação como sendo palavra legítima de Deus em detrimento de outras interpretações. Rubem Alves pensava uma reforma da instituição religiosa e achava também que os teólogos da libertação estavam seguindo ideais marxistas que destoavam daqueles propostos pelo próprio Marx. Utilizando-se da ironia, tal como o teólogo dinamarquês Søren Kierkegaard, Rubem Alves anunciou sua demissão daquele tipo de teologia.
O fato é que Rubem Alves continuou fazendo teologia fora dos muros da igreja, na vida cotidiana, assim como seu professor lhe ensinara. O que Rubem Alves pensou acerca da teologia, ele traduziu na educação e, mais tarde, em suas crônicas e estórias infantis. Para ele, o teólogo é um contador de estórias, capaz de exorcizar a realidade de sofrimento e fornecer aperitivos do reino de Deus. O teólogo é um pastor de palavras e de esperanças, e a teologia é a fala que acontece na espera pela redenção do corpo, isto é, do ser humano como ser integral. Para Rubem, a teologia e a educação devem visar a criação de mundos em que uma nova organização valora tiva da realidade é formada por meio da imaginação. Essa nova ordem ainda utópica é condensada em estórias que expressam símbolos de beleza. É isto que Rubem Alves sempre fez e continua fazendo até hoje: ele conta estórias, pois é a exemplo do profeta Ezequiel (Ez 37.1-14) que ele teceu sua visão da teologia: “Gostaria que a teologia fosse isto: as palavras que tornam visíveis os sonhos e que, quando ditas, transformem o vale de ossos secos numa multidão de crianças”. Rubem Alves é um grande teólogo mineiro e pensador brasileiro. Quem ainda não o conhece deveria fazê-lo. E então se descobrirá de volta ao mundo mágico das estórias infantis, das histórias bíblicas e, quem sabe, movido por elas, chegue a um novo mundo sem guerra, sem sofrimento, sem ódio. Afinal, como ele mesmo afirmou, “o que a gente deseja não é viver apenas na nostalgia e na beleza do símbolo, mas a gente quer que esses símbolos de beleza se transformem numa realidade para o mundo em que vivemos”. N IURI ANDRÉAS REBLIN é teólogo, mestre e doutorando em Teologia pela Faculdades EST em São Leopoldo (RS)
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olhar com poesia
Pátria mal amada Brasil? por Lola (Louraini Christmann) Como é? Nada temos? Nada podemos? Nada somos? Se somos “pátria amada! Idolatrada! Brasil” Não somos nada? Ó, Pátria amada Tão mal falada Tão mal amada Por nós, teus filhos e filhas! Ó, Pátria amada Tão mal cuidada Por quem te vive Por quem te mora Por quem te explora... Ó, Pátria amada Tão mal amada! Pátria amada, Brasil! Não hasteamos tua bandeira Preferimos a bandeira De quem te submete Não cantamos teu hino Preferimos o hino De quem te trai Não contamos tua história Preferimos a história De quem te maldiz E sem história contada Sem memória cultivada Nada passamos Para a história que deixamos Que vivemos... Vivemos muito, sim Temos muito, sim Podemos muito, sim Somos muito, sim Como pátria amada Idolatrada Brasil
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reflexão
Sentadas aos pés de Jesus A presença das crianças lembra a vida que nasce a cada dia, mas também alimenta a nossa esperança por um mundo melhor e nos responsabiliza com o futuro da humanidade. por Sonja Hendrich-Jauregui
T
rouxeram-lhe, então, algumas crianças, para que lhes impusesse as mãos e orasse; mas os discípulos os repreendiam. Jesus, porém, disse: Deixai os pequeninos, não os embaraceis de vir a mim, porque dos tais é o reino dos céus. E, tendo-lhes imposto as mãos, retirou-se dali. (Mateus 19.13-15) Falar de criança sempre é gratificante. É tema que contagia e emociona. Olhar para uma criança desperta sentimentos profundos de alegria, amor, compaixão e esperança. Em qualquer situação, seja de celebração ou tragédia, a criança quando vira notícia toca fundo e mexe com os sentimentos que moram em nosso coração. A presença da criança lembra a vida que nasce a cada dia, mas também alimenta a nossa esperança por um mundo melhor e nos responsabiliza com o futuro da humanidade. Jesus é mestre e ensina muitas coisas. Fala a respeito do reino de Deus. Tem um jeito especial de falar,
que contagia muitas pessoas, inclusive crianças. Toda a família, homens, mulheres, jovens e crianças querem ouvir falar do reino de Deus e querem receber a bênção de Jesus, que ensina como um rabi, como um mestre das Escrituras. Jesus fala sobre as “coisas” de Deus. Muitas pessoas estão ouvindo com atenção, inclusive alguns fa ris eus. São assuntos importantes. Não pode haver interrupção. Não é conversa para criança ouvir. Que absurdo, pensavam os discípulos, quando foram interrompidos por algumas pessoas e suas crianças. Esse grupo de pessoas surge exatamente no momento em que Jesus terminava de falar a respeito da pergunta dos fariseus sobre divórcio. Quanta diferença! Enquanto religiosos queriam discutir a lei, o povo queria receber a bênção de Jesus e queria que suas crianças também fossem abençoadas. Enquanto alguns “entendidos” da lei e
Divulgação Sunflower Children
COMPROMISSO: Acolher as crianças como são e não querer moldá-las conforme a nossa vontade
das Escrituras queriam saber como desfazer um casamento, outros demonstravam seu carinho e seu cuidado para com a família. Jesus fica indignado com o comportamento dos discípulos. Para ele, era inadmissível que qualquer pessoa fosse afastada de sua presença, ainda mais as crianças. Sempre ficamos surpresos com a reação dos discípulos. Não conseguimos entender como pessoas que seguem Jesus e ouvem seus ensinamentos podem ter uma reação como essa. Na época de Jesus, crianças e mulheres não tinham qualquer valor. Não significavam nada e por isso não precisavam receber a bênção de Jesus. Mas, para Jesus, todas as pessoas são importantes e especiais. Afastar qualquer pessoa de sua presença é não entender o
que, de fato, nos leva a participar do reino de Deus. É não entender que somos totalmente dependentes de Deus, como uma criança é dependente de um adulto para sobreviver. Afinal de contas, a criança não é de complicar a vida, pois tem o coração puro, é espontânea e está aberta a aprender. Aceita que lhe mostrem o caminho e reconhece a importância de um mestre para guiá-la. Aceita e necessita dos cuidados e do amor de seu pai e de sua mãe. Cada vez que trazia um ensina mento, Jesus procurava mostrar que o valor daquilo que aprendemos está na prática e não apenas no ouvir. Ele também ensinava que não somente suas palavras eram ensinamentos, mas também e, sobretudo, seus gestos, sua maneira de ser e estar com as pessoas.
Da mesma forma como uma criança e seus gestos nos cativam e nos emocionam, precisamos também ser cativados pelos ensinamentos de Jesus, que falam de vida em abundância para todas as pessoas. Somos desafiados, a cada dia e por toda a vida, a abrir caminhos para que crianças, jovens e adultos possam chegar até Jesus. Somos chamados a sentar aos pés de Jesus, não para ouvir falar de como podemos justificar nossos erros e fragilidades, mas para ouvir a palavra que nos convida e desafia a olhar com carinho, zelo, cuidado e responsabilidade para a família de sangue e de fé e assim receber sua bênção. N
SONJA HENDRICH-JAUREGUI é teóloga e atua no pastorado escolar do Colégio Evangélico Augusto Pestana em Ijuí (RS)
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RETRATOS
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Solidariedade de uma viúva por Nelson Kilpp
Arte: João Soares
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la morava em Sarepta, uma importante e rica cidade da Fenícia. Na época, a região de Sarepta estava passando por uma séria crise por causa de uma longa estiagem. Os mais atingidos eram, também naquela época, as pessoas mais pobres. Entre esses pobres estava uma viúva, cujo nome não foi preservado pela tradição. Geralmente, a história é ingrata e não preserva os nomes de pessoas que não são importantes, ainda mais quando se trata de mulheres, especialmente viúvas. O texto bíblico de 1 Reis 17.8-16 somente afirma que essa viúva tinha um filho, certamente ainda dependente da mãe, e que os suprimentos da família estavam no fim. Havia comida apenas para uma última refeição. A própria viúva descreve a situação da seguinte forma: “Há somente um punhado de farinha numa panela e um pouco de azeite numa botija; eis que apanhei, agora, dois cavacos e vou preparar esse resto de comida para mim e meu filho; comê-lo-emos e morreremos” (1 Reis 17.12). Tão simples assim: a mãe está disposta a fazer a última refeição para si e seu filho e, então, esperar a morte chegar. O realismo conformado da viúva chega a assustar. A situação não mais permite esperanças. Mas, apesar da situação desesperadora, essa viúva ainda é capaz de realizar um gesto inesperado. Recém chegara à cidade de Sarepta um profeta do povo de Israel chamado Elias. De acordo com o texto, ele viera à cidade de Sarepta, por ordem de Deus, para encontrarse com a viúva. Nesse encontro, o profeta Elias não foi nada gentil com a viúva estrangeira ao exigir que ela lhe trouxesse uma vasilha de água e um pedaço de pão, mesmo após
O gesto de solidariedade da viúva para com um estrangeiro necessitado corresponde a uma das propostas éticas centrais da Bíblia.
tomar conhecimento da situação desesperadora da viúva. A postura de Elias chega a ser arrogante: “Primeiro faze para mim (do resto de farinha) um bolo pequeno; depois farás algo também para ti e teu filho” (v. 13). A viúva bem poderia ter desconsiderado as palavras petulantes desse estrangeiro impertinente. Mas ela não o fez. Talvez porque tivesse pena de um caminhante forasteiro que, sem dúvida, deveria estar cansado, sedento e faminto de sua jornada. Só quem conhece a necessidade tem condições de ver e compreender com generosidade e tolerância as necessidades de outros. A viúva, além de oferecer água ao profeta – água, afinal, não se pode negar a ninguém –, também permite que o profeta participe de sua “última” refeição. Oferece, portanto, a um estrangeiro desconhecido a hospitalidade de sua casa e compartilha com ele o pouco que lhe resta. Esse gesto da viúva é simbólico. Em primeiro lugar, ela não expulsou o profeta, apesar de ser um estrangeiro e um estranho para ela e apesar de tê-la tratado com
arrogância. Embora se encontrasse em situação precária, ela lhe ofereceu hospitalidade. Com seu gesto a viúv a mostra ao profeta e a todos nós que a partilha solidária é a única maneira de superar as necessidades, ainda que pareçam insuperáveis. Por isso a história termina com a constatação: “Assim comeram ele, ela e a sua família muitos dias; da panela a farinha não se acabou, e da botija o azeite não acabou”. O gesto de solidariedade da viúva para com um estrangeiro necessitado corresponde a uma das propostas éticas centrais da Bíblia. Por esse motivo, a história da viúva sem nome de Sarepta foi preservada pela tradição. Ela antecipa o ensi nam ent o de Jesus aos discípulos ao pedir que eles dividam com o povo faminto seus pães e peixes, ainda que sejam poucos. E onde houver partilha solidária, nunca haverá penúria; ao contrário, sempre haverá fartura. N
NELSON KILPP é especialista em Antigo Testamento, obreiro da IECLB e reside em Kassel, Alemanha
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MISSÃO
uma igreja de imigrantes assentados sobre terras de índios, a partir de 1824, iniciou, há meio século, uma trajetória de solidariedade missionária com os povos indígenas. por Hans Alfred Trein
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S INÍCIOS – Em 2011, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) celebrará 50 anos de missão contínua com povos indígenas no Brasil. Sem deixar de registrar as tentativas pontuais anteriores, é a partir de 1961 que a IECLB encara o desafio de iniciar um trabalho entre os Rikbaktsa no Mato Grosso e entre os Kaingang no Rio Grande do Sul. Trabalhos preparatórios levaram o pastor Friedrich Richter a assumir o trabalho no Mato Grosso e o pastor Norberto Schwantes a se empenhar junto aos Kaingang a partir de seu pastorado em Tenente Portela (RS). Imigrantes alemães luteranos são assentados em terras indígenas em todo o sul do Brasil 1824
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Foram iniciativas tardias para uma igreja surgida da imigração de colonos assentados sobre terras indígenas a partir de 1824. Entretanto, foram iniciativas incomuns para uma pequena igreja que estava se constituindo em todo o território nacional. O trabalho foi realizado com muito empenho e sacrifício pessoal. Na frente missionária, as pessoas encarregadas nem sempre se sentiram suficientemente respaldadas por sua igreja. Além disso, a década de 1970 foi de muita reflexão e revisão dos conceitos de missão evangélica no meio indígena. Um resultado impactante de todo esse processo conduziu, em 1979, o
Inicia-se a missão indígena no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul
1961
Com a unificação dos sínodos, a IECLB torna-se uma igreja nacional
1968
Fotos: Arquivo Histórico e Arquivo do Comin
Compromisso, solidariedade e aprendizado
EM EQUIPE: Os obreiros e as obreiras da IECLB envolvidos
Conselho Diretor da IECLB a eleger a questão indígena como uma de suas prioridades de gestão, ao final da qual foi criado o Conselho de Missão entre Índios (Comin). O Comin foi constituído em 1982, a pedido de missionários da igreja. Com isso, o Conselho Diretor encarregava o Comin de realizar a missão entre indígenas e de assessorá-lo nas questões relativas aos povos indígenas. O Comin foi a formalização eclesiástica do respaldo da IECLB ao trabalho de missão realizado em
A Declaração de Barbados revoluciona o conceito de missão
1971
O Conselho Diretor da IECLB define a questão indígena entre as cinco prioridades 1979
no Comin, durante um encontro com seus familiares
continuado empenho de algumas pessoas especialmente vocacionadas para esse campo. A missão entre indígenas contou com inúmeros voluntários, que dedicaram tempo e compromisso para que a igreja pudesse dar sua contribuição. O Comin constitui-se de sete campos de trabalho entre indígenas no norte e no sul e de um campo de trabalho com não-indígenas em parceria com a Escola Superior de Teologia, de São Leopoldo (RS). O trabalho é coordenado por uma secretaria sedia-
O conselho Diretor da IECLB cria o Comin, Conselho de Missão entre Índios 1982
O Comin implementa a sua Secretaria Executiva
1989
da em São Leopoldo. Juridicamente, o Comin está integrado à Instituição Sinodal de Assistência, Educação e Cultura (ISAEC) através do Departamento de Assuntos Indígenas. A MISSÃO – O Comin atua dialo gicamente em solidariedade e parceria com os povos indígenas, com as comunidades e instâncias da igreja e com outras entidades e parceiros afins, visando promover o direito à diferença entre pessoas e culturas, quando a igualdade as descaracteriza; e o direito Os Campos de Trabalho coordenados pelo Comin aumentaram no Brasil ANOS 1990
à igualdade entre pessoas e culturas, quando a diferença as inferioriza. Os campos de trabalho atuam na perspectiva de que os indígenas são protagonistas do processo e que o poder público deve assumir suas atribuições e responsabilidades. Nesse contexto, o Comin assume o papel de agente solidário, de fomento e cooperação. A promoção da justiça é alvo de suas ações. A busca pelo respeito à diversidade cultural e a vivência intercultural constituem o exercício para uma sociedade plural. A convivência em diversidade cultural e étnica reconciliada é seu horizonte teológico. A IECLB é uma igreja minoritária, empenhando-se através da missão com indígenas por uma minoria ainda mais sofrida e atropelada pela história: os povos indígenas. Empenha-se para que tenham vida em abundância. Levanta a bandeira da reconciliação ali onde as experiências históricas a tornaram quase impossível. Confia na promessa de Cristo, que nos reconciliou com Deus e habilita-nos à reconciliação com aqueles que são totalmente diferentes. Cinquenta anos de caminhada cheia de tensões, de obstáculos internos e externos, mas também de sinais de esperança e de aprendizado merecem ser celebrados. Nosso Deus revelou-se amoroso a toda a sua criação, aos humanos em todas as diferentes culturas à maneira que pudessem receber sua terna dedicação. N HANS ALFRED TREIN é teólogo e coordenador pastoral do Comin em São Leopoldo (RS)
Implantado o Profordi, para diálogo com a sociedade e promoção do respeito às culturas indígenas 2007 NOVOLHAR.COM.BR –> Set/Out 2010
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clima
De ouvido ligado nos atingidos oficina sobre mudanças climáticas vai em busca dos Saberes tradicionais a favor do abrandamento, dando a palavra a indígenas, quilombolas, pescadores e agricultores. por Bianca Pyl
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pesar de serem uma das principais vítimas dos efeitos das mudanças climáticas, os povos indígenas e as comunidades tradicionais são pouco lembrados na hora de debater o tema. Foi justamente pensando nisso que o programa Direito a Terra, Água e Território (DTAT) – constituído pela agência de cooperação holandesa ICCO e um grupo de 14 organiza-
ções no Brasil – realizou a oficina “Mudanças Climáticas e o Direito a Terra, Água e Território”, em São Paulo, entre os dias 7 e 9 de junho. Participaram dos debates cerca de 30 pessoas, entre líderes Guarani, integrantes de comunidades quilombolas, pescadores e pequenos agricultores vindos das regiões Norte, Nordeste, Sul e Sudeste do Brasil. A Política Nacional de Mudanças
Climáticas brasileira não surgiu da demanda dos povos e da sociedade, e sim de uma demanda global, de acordo com Adriana Ramos, coordenadora da Iniciativa Amazônia, do Instituto Socioambiental (ISA), uma das convidadas do painel Políticas Climáticas no Brasil. “A discussão ainda é técnica e limitada ao âmbito acadêmico, precisamos ampliar o debate”, disse. É exatamente esse o principal objetivo do programa DTAT, de acordo com Augusto Marcos Santiago, assessor de projetos da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), uma das entidades que compõem o programa. “A oficina teve como foco o fortalecimento do grupo para que possam influenciar na proposição de políticas públicas relacionadas à garantia do acesso ao território”, disse Augusto. O abrandamento dos efeitos das mudanças está totalmente ligado ao modo de vida tradicional. Gera ativo, enquanto que modelos ditos modernos geram passivos e precisam converter a natureza para conseguir cultivar uma única cultura. Maurício Paixão, do Centro de Cultura Negra
Participaram dos debates cerca de 30 pessoas, entre líderes Guarani, integrantes de comunidades quilombolas, pescadores e pequenos agricultores
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compensações – O foco devem ser as ações de adaptação com base em percepções do cotidiano. “E nisso os maiores especialistas são as comunidades tradicionais, que convivem com a natureza de forma intensa. É urgente a necessidade de trabalhar com adaptação e evitar a tendência
Fotos: Bianca Pyl
do Maranhão, define o tema como novo, contudo as comunidades já agem em favor da preservação há muito tempo. “O nosso trabalho lá no Maranhão para garantir o direito ao território das comunidades de qui lombo é para garantir o equilíbrio do clima, qualidade de vida para o país todo“, concluiu. Os participantes puderam discutir as causas das mudanças climáticas, já que as consequências muitos deles já sentem no cotidiano em suas regiões. José Alberto de Lima Ribeiro, do Movimento Nacional de Pescadores (CE), relatou o fato de que a comunidade onde mora, em Beberibe (CE), perdeu cerca de 20% do território por causa do avanço do mar. “No litoral brasileiro, o avanço do mar é um problema concreto. Nossa área diminuiu 149 hectares em dez anos. O mar avançou”, relatou.
DENÚNCIA: O impacto será para todos. mas as populações pobres sofrerão mais. de subestimar os problemas atuais e superestimar os problemas futuros”, apontou Glauco Kimura de Freitas, especialista em Recursos Hídricos da organização não-governamental WWF-Brasil, participante do painel “Impactos das mudanças climáticas para as comunidades locais e os desafios de adaptação”. Para Marcelo Calazans, coordenador da FASE (ES), a política de compensações, como a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD), é uma falsa solução para o problema. “Pode encher os
biomas de REDD que não irá solucionar os problemas do clima. Se, por um lado, a empresa banca REDD aqui na Amazônia, por outro, continua a emitir na Europa. Vai se manter o mesmo padrão de consumo e desenvolvimento. As soluções para o clima não podem manter a mesma lógica de consumo. O problema é que o acesso ao debate é muito difícil, as siglas, os contratos são em inglês, o linguajar técnico”. Um dos principais problemas dos mecanismos de compensações, na opinião de Marcelo Calazans, é justamente o fato de que, ao bancar um projeto de REDD, as empresas ganham a permissão para continuar a emitir carbono em seu país. Rubens Gomes, presidente do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), pondera que a questão está posta e que as comunidades precisam se capacitar para participar e influenciar o debate. “Essa pode ser uma oportunidade de garantir territórios, a regularização fundiária, o acesso a assistência técnica e crédito.” O GTA criou o Observatório do REDD para que as comunidades tenham mais controle em relação aos processos. N BIANCA PYL é jornalista em São Paulo (SP)
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saúde
Arteterapia – Expressão do inconsciente
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ão é nova a ideia da arteterapia. O psicanalista Sigmund Freud já a utilizava em seus tratamentos; ele via na arte uma forma de expressão do inconsciente. O psicanalista Carl G. Jung utilizava a arte aplicada à psicopatologia em forma de atividade criativa e integradora e via na arte a expressão da sensibilidade, criativi dade e vida psíquica, manifestação daquilo que estava além do visível. O termo surge por volta de 1945 no livro publicado pelo artista inglês Adrian Hill: Arts vs Illness (Arte versus Doença). Internado num sanatório para tratar sua tuberculose, Hill passou o longo período da evolução e reabilitação de sua doença dedicando-
se à pintura. No Brasil, Nise da Silveira desenvolveu um trabalho inovador, inserindo a arte no tratamento dos pacientes esquizofrênicos, reconhecendo no trabalhar do paciente uma força autocurativa. A arteterapia tem fundamentos na visão artística, médica, psicológica e terapêutica. Pode ser aplicada em diversos casos, seja nas desarmonias, nas doenças, com pacientes em fase terminal, gestantes, nos processos de autoconhecimento e desenvolvimento. O trabalho pode ser feito de forma individual ou em grupos, com crianças, adolescentes, jovens e adultos, idosos, sempre em busca do equilíbrio entre pensamento, sentimento e ação. Tem a finalidade de estimular a produção
TRABALHO INDIVIDUAL: Colagem de máscaras sobre papel A4
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Fotos: Edeltraud Nehring
por Edeltraud Fleischmann Nehring
Retiro: Pintura com giz de cera sobre lixa preta
de imagens, a autonomia criativa sem preocupação estética (bonito ou feio), desenvolvimento da comunicação, valorização da subjetividade e a liberdade de expressão de cada pessoa. Durante o processo, o sujeito narra sua história sob forma de expressão artística, registrando sua história pessoal, repleta de conteúdos simbólicos. Compreender os sinais e símbolos e ir atrás do que não é visível é a função da arte como processo terapêutico criativo. Fazer arte é um exercício que estimula a manutenção e a descoberta do sentido da vida. O que estava cinza torna-se colorido, o que estava apagado ilumina-se. A arteterapia, reconhecendo a importância da arte e dos processos criativos, vem sendo utilizada em várias linhas psicoterapêuticas clínicas, educacionais e institucionais.
Particularmente, tenho trabalhado com a arteterapia em seminários para mulheres da Ordem Auxiliadora das Senhoras Evangélicas (OASE), setor de trabalho da Igreja Evangé-
lica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em retiros para mulheres, seminários para enlutados e com atendimento individual em formato de oficinas, onde são realizados trabalhos
corporais de relaxamento e respiração, produção artística envolvendo as diversas linguagens da arte, seguido da leitura individual do trabalho e fechamento do encontro. Percebe-se que as diversas linguagens artísticas são instrumentos valiosos para o ser humano reorganizar-se internamente, posicionar-se de um novo modo diante da dor e do sofrimento, agindo com equilíbrio e harmonia, resgatando a sua autoestima, como falou uma pessoa durante uma oficina: “Eu odiava pintar, mas, pela liberdade de expressar-me na artete rapia, hoje gosto da pintura, e isso me ajuda a lidar com outras coisas de que não gostava em minha vida”. Visando desenvolver um trabalho de coparticipação no campo da arte terapia ligado ao campo da arte, da educação e da saúde, tendo em vista a promoção do ser humano à saúde, à educação e à cultura, surgiu em 2007 a Associação Catarinense de Artetera pia (ACAT). Para filiar-se, é necessário ser profissional com curso superior completo ou cursando as áreas de ciências humanas, arte ou saúde, ou N especialistas em área afim. EDELTRAUD FLEISCHMANN NEHRING é artista visual, especialista em arteterapia e psicologia pastoral em Rio Negrinho (SC)
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JARDIM DE LUTERO
por Heitor J. Meurer
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cidade alemã de Stuttgart sediou, nos dias 20 a 27 de julho, a 11ª Assembleia da Federação Luterana Mundial (FLM), que reuniu cerca de mil pessoas, sendo 418 delegados com direito a voto. A entidade tem sede em Genebra/Suíça e é composta por 145 igrejas-membro, representando um universo de 80 milhões de luteranos em 79 países. O tema foi “O pão nosso de cada dia nos dá hoje”. Também foi um evento eletivo. Além da eleição do bispo Munib A. Younan, da Igreja Evangélica Luterana da Jordânia e Terra Santa, para a presidência da FLM, foi composto um novo conselho, formado por 48 pessoas. Uma aventura fascinante incluiu visitas a lugares marcantes do movimento da Reforma, como o Lutherhaus
(Casa de Lutero), a Marienkirche (Igreja de Maria, onde Lutero pregava) e a Schlosskirche (Igreja do Castelo, onde ele afixou as 95 teses). O programa ainda incluiu a visitação ao Castelo de Wartburg, onde Lutero se escondeu sob a identidade de Junker Jörg vor Worms e traduziu o Novo Testamento para o alemão. Em Wittenberg, foi celebrado um culto ao ar livre num belo dia de sol e calor, frente à Rosa de Lutero, que marca o Jardim de Lutero. Várias igrejas ali representadas no dia fizeram o plantio simbólico da árvore de sua igreja e país, uma vez que o plantio em si é feito por profissionais, com árvores já em formação e não “mudas”. Em 2017, a visão do jardim será a de um parque que permitirá caminhadas, passeios, lazer, recreação, sob o
Fotos Divulgação Novolhar
Para 2017: Projeto do Jardim de Lutero em Wittenberg para celebrar os 500 anos da Reforma
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Luis Eduardo Ramirez
Testemunho dos luteranos no mundo Plenária da Assembleia: Participantes da Assembleia
descanso da cruz, no centro da Rosa de Lutero e do jardim. Um projeto muito bem planejado em cada detalhe. A simbologia dos números na Bíblia e na história da Reforma também está presente. No centro, a Rosa de Lutero tem 40 metros (número bíblico) de diâmetro. As árvores, provenientes de todos os continentes, assim como as igrejas-membro, formarão um jardim oval, com uma elipse de 70 metros de largura e uma distância de 95 metros (as 95 teses) de seu foco (Veja www. luthergarten.de). Atribui-se a Lutero a frase: “Mesmo que eu soubesse que o mundo terminaria amanhã, ainda assim plantaria minha macieira”. Nesse espírito, a Federação Meurer visita o jardim
da FLM assistem à apresentação da igreja hospedeira, em Stuttgart
Luterana Mundial criou o Jardim de Lutero, desenvolvido pelo arquitetopaisagista Andreas Kipar, de Milão, conhecido internacionalmente. O Jardim de Lutero está sendo construído onde no passado estavam as fortificações da cidade de Wittenberg. Sob o lema “500 anos da Reforma – 500 árvores em Witten berg”, elas serão plantadas no Jardim de Lutero como uma expressão de conexão com o impacto da Reforma através da história. As primeiras 25 árvores foram plantadas no dia 1º de novembro de 2009 por representantes de diferentes igrejas cristãs do mundo e de comunidades da Itália, Romênia e Alemanha. P. Presidente Altmann planta a árvore da IECLB
Localizado em Wittenberg, onde as raízes das 500 árvores irão se firmar, seus galhos estender-seão mundo afora, como aconteceu com os ensinamentos de Lutero. O Jardim de Lutero será uma rede ecumênica e internacional. Igrejas de diversas regiões e confissões irão integrar o projeto através do apadrinhamento de uma dessas árvores. Ao mesmo tempo, essas igrejas também são convidadas a plantar uma árvore em lugar de destaque em seu próprio país como um testemunho de amizade e reconciliação. O custo de apadrinhamento de uma árvore é de 500 euros, aproximadamente R$ 1.200,00. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) já tem sua árvore plantada no Jardim de Lutero e ainda patrocinou uma árvore para a Igreja Luterana de Zâmbia/ África num gesto de fraternidade e apoio às igrejas mais necessitadas, para que não fiquem fora desse marco histórico. N HEITOR J. MEURER é conselheiro da FLM gestões 1998-2003 e 2003-2010 e ministro da IECLB nas comunidades de Lomba Grande e Feitoria (RS)
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ECUMENISMO
Desafio para um testemunho comum por Roberto E. Zwetsch
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onsiderando a caminhada do protestantismo na América Latina desde o século 19, o movimento ecumêni co viveu, com frequência, bons e maus momentos. Se na Europa o marco é a Conferência de Edimburgo em 1910, na América Latina ele começa com o Congresso do Panamá em 1916. Mas chama a atenção que a maioria dos participantes era de missionários norte-americanos. O pastor presbiteriano Erasmo Braga foi o único brasileiro presente e teve participação notável. O teólogo metodista José Miguez Bonino, ao descrever o protestantismo latino-americano, destacou que há pelo menos quatro rostos nesse protestantismo: o rosto missionário (associações missionárias evangélicas), o rosto evangélico (presbiterianos, metodistas, batistas e outros), o rosto étnico (luteranos, anglicanos, alguns batistas) e o rosto pentecostal (igrejas pentecostais a partir da Assembleia de Deus e da Congregação Cristã). Tal protestantismo convive, evidentemente, com a grande Igreja Católica Romana e sua longa tradição de catolicismo popular e institucional. Partindo dessa diversidade religiosa, é importante observar as distintas práticas ecumênicas, que se manifestam em tipos de movimento ecumênico. Um
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deles é o ecumenismo institucional, organizado a partir das igrejas e organismos de serviço, como acontece no CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, no CLAI – Conselho Latino-Americano de Igrejas e no movimento dos CLADEs – Congressos Latino-Americanos de Evangelização. Outro tipo é o ecume nismo de base, que se diferencia do primeiro por privilegiar práticas concretas e não discutir questões doutrinais. As ações ecumênicas concentram-se em serviços de justiça, paz e desenvolvimento social, tendo como fundamento o Evangelho de Cristo. É no contexto do segundo tipo que há décadas se afirmou a opção pelos pobres, como desafio para o testemunho e a ação das comu nidades cristãs. Mas é preciso con sid erar que o ecumenismo de base existe e caminha justamente por sua articulação com as igrejas e movimentos ecumênicos. Ainda encontramos um terceiro tipo de ecumenismo, que alguns têm chamado de ecumenismo integral. Esse é, na verdade, uma tentativa de unir os dois primeiros a partir de uma vivên cia da fé solidária com as pessoas que sofrem e que são desprezadas lá onde elas vivem, trabalham e padecem. O objetivo é superar uma visão funcional do ecumenismo.
Tal ecumenismo só sobrevive a partir de sinais proféticos, que supõem uma convivência baseada na confiança mútua e no diálogo. Ele supera barreiras de classe, sexo, religião, etnia ou qualquer outra. O que fortalece essas iniciativas é a prática de uma espiritualidade ecumênica baseada na oração, no estudo da Bíblia, na ação conjunta e na perseverança que se alimenta das promessas de Deus. Esse tipo de ecumenismo vai constituindo um caminho novo em meio aos velhos esquemas e às disputas de igrejas e teologias. Sua identidade são a compaixão e a solidariedade com as pessoas que clamam e questionam nossas divisões e confessionalidades estreitas. O quadro religioso no Brasil e na América Latina é muito complexo. Há propostas para todos os gostos e expectativas. Em meio a tal pluralidade, as igrejas e comunidades cristãs precisam redefinir sua identidade na caminhada, olhando para o autor e consumador da fé, Jesus, e ao mesmo tempo para o rosto das pessoas que buscam apoio, orientação e acompanhamento. De outro lado, temos de aprender a escutar os críticos da religião, pois essas pessoas enxergam, muitas vezes, as falhas que nós mesmos não estamos dispostos a admitir. Isso significa que o ecumenismo do testemunho comum necessariamente terá de ser crítico, autocrítico e carregado de esperança. Assim, novas possibilidades se abrem para o anúncio do evangelho. Não como forma de demonstrar a superioridade da fé evangélica, mas como resgate do serviço de amor, da diaconia que transforma, une e liberta. Olhando com uma lente de aumento, quem sabe no futuro poderemos testemunhar um ecumenismo integral ou compassivo, que aponte para um novo amanhecer para todas as pessoas, ou seja, a ecumene humana. N ROBERTO E. ZWETSCH é teólogo, professor de Teologia Prática e Missiologia da Faculdades EST em São Leopoldo (RS)
PALAVRA DO REFORMADOR
Deus nos encontra no próximo por Martim Lutero
Sempre que o fizestes a um desses meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.
eu Deus, como podemos ser tão cegos a ponto de não levar a sério um tal amor! Quem poderia ter imaginado que o próprio Deus se rebaixa tanto assim e aceita aquilo que fazemos aos pobres como se fosse para ele?! Assim, o mundo está cheio, cheio de Deus. Em cada beco, diante de sua porta, você encontra Cristo. Não levante os olhos para o céu, dizendo: “Se eu pudesse enxergar o Senhor nosso Deus ao menos uma vez, faria tudo para servir-lhe de todas as formas possíveis!”. Você é mentiroso, declara São João.
Reprodução Novolhar
M
Mateus 25.40
Obra do pintor equatoriano Oswaldo Guayasamín, representando o sofrimento dos excluídos. Segundo Martim Lutero, o mundo está cheio de Deus refletido nos rostos das pessoas que sofrem: “Em cada beco, diante da sua porta, você encontra Cristo”.
Escute aqui, criatura miserável, você quer mesmo servir a Deus? Ele está em sua casa, na pessoa de seus empregados e filhos; ensine-lhes a temer e a amar a Deus e a confiar somente nele. Console o próximo aflito e doente, ajudando-o com seus bens, conhecimentos e trabalho. Eduque seus filhos para que me conheçam; arrume para eles um professor bom e piedoso; não poupe dinheiro com eles. Tudo isso, diz Deus, é feito para mim, e quero dar-lhe grande recompensa. Cuidado, pois, para não se desencontrar comigo. Quero estar bem perto de você em toda e qualquer pessoa miserável que precisa de sua ajuda e orientação; é exatamente ali que me encontro. O pouco ou o muito que você faz a seu próximo, na verdade, você o está fazendo a mim. Nem mesmo o copo de água será dado em vão. Você colherá o fruto mil vezes, não por causa de sua obra, mas por causa de minha promessa. N MARTIM LUTERO é o reformador da Igreja (1483-1546)
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ESPIRITUALIDADE
Divulgação Novolhar
Com a ação do poder de Jesus em nossas vidas, somos capazes de ultrapassar esse estágio individualista e desenvolver relações sustentáveis.
Reinventar o humano Deus, o teu Verbo guarda a nós, combate o inimigo atroz que a Jesus Cristo, o Filho teu, quer derrubar do trono seu. Jesus, demonstra o teu poder! Ó Rei dos reis, vem proteger o povo teu – que possa amar e eternamente te louvar! Espírito Consolador, dá-nos união, fraterno amor! Na angústia vem nos amparar, da morte à vida nos guiar! Martim Lutero, Hinos do Povo de Deus, v. 1, Hino nº 90
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por Valdir Weber
N
a lida do dia-a-dia, somos confrontados com conflitos e adversidades nas diferentes áreas: na profis sional, por vezes vivemos na linha limítrofe do estresse; na área pessoal, diante de um mundo cada vez mais inseguro e sem perspectiva de vida que forneça esperança, aparecem resignação e depressão; em nível mundial, ronda a crise de uma cultura econômica e tecnológica insustentável, indiferente ao impacto que causa ao meio ambiente, levando ao aquecimento global, que ameaça a humanidade e a Mãe Terra; e não por último, a crise de identidade de sermos, como seres humanos, filhos e filhas de Deus, irmãos e irmãs, numa grande família, na qual vivemos a dimensão da espiritualidade.
Nas diversas dimensões dessa crise cresce uma ideologia do mundo que está em conflito com o Evangelho de Jesus Cristo. É uma ideologia que defende um poder político absolutizado, centrado em grandes potências, com um verdadeiro culto à morte e à destruição. Essa mensagem é difundida como sendo a verdade nas mais diferentes formas, presente em muitos filmes e de igual forma marcando os noticiários a que assistimos todos os dias sem mesmo nos arrepiar. Dessa forma vem se gravando na consciência humana a cultura da morte e da violência. Esse conteúdo acaba seduzindo as pessoas e criando uma imagem de que isso é o correto. Boa parcela da população acaba concordando e compactuando com esse jeito de vida que, na verdade, a leva à destruição. No centro de tudo isso, vemos pessoas hipnotizadas e alienadas, vivendo como se tivessem perdido a consciência. Essa crise global tem suas raízes numa crise de consciência. Diante dessa realidade, convido a olhar para o hino de Martim Lutero: “Deus, o teu Verbo guarda a nós...”. Em muitos cultos, esse hino é cantado antes da prédica e é um pedido a Deus de manter-nos junto à sua palavra e conduzir os inimigos de Jesus Cristo à morte, que querem derrubá-lo do seu trono.
O texto do hino pressupõe a luta de dois poderes: o poder temporal e o poder eterno. Ressalta, no entanto, em suas preces, a confiança no Rei dos reis, que há de proteger e no final guiar-nos da morte para a vida. No calendário litúrgico luterano, vemos essa ênfase da seguinte forma: o dia de Finados não tem relevância. Os olhos são direcionados para o Domingo da Eternidade (Domingo Cristo Rei), pois é na eternidade que temos o nosso alvo. O que impressiona contraditoriamente neste mundo, por vezes tão secularizado, é a grande busca por espiritualidade e a sede do meu interior por algo mais. Diante disso, o grande desafio do século 21 é vencer essa hipnose coletiva e, como igrejas, explorar nosso espaço da espiritualidade, promovendo uma guinada na mentalidade corrente e na grande influência distorcida da comunicação de massa. A missão histórica que temos como seguidores de Jesus Cristo em nossa época é “reinventar o humano” na dimensão do Cristo que se fez pessoa humana, tornando-o um novo ser humano. Para tanto, somos chamados a rebuscar a perspectiva da espiritualida
de, deixando que essa dimensão brote no âmago do ser humano, perpassando todo o seu viver e qualificando as relações com os semelhantes, como também com toda a criação de Deus. Assim irrompe uma nova consciência humana, tocada pelo Senhor dos senhores, que relativiza os poderes do mundo e que tem aptidão para amar e louvar o seu criador, que ordenou o caos por sua palavra. Com a ação do poder de Jesus em nossas vidas, somos capazes de ultrapassar esse estágio individualista e desenvolver relações sustentáveis. Isso nos levará a pequenas mudanças individuais por meio de nossas ações conscientes, como, por exemplo: vencer o egocentrismo, a passividade, a indiferença; engajar-nos em prol da participação comunitária, ou nos problemas sociais, posicionarnos corajosamente contra a política da corrupção, na crítica aos meios de comunicação que exploram o sensacionalismo, deixando de lado notícias educativas e culturais; adotar estilos de vida mais simples, sem o consumismo que nos escraviza. Isso não significa privar-se das coisas necessárias, mas simplificar conscientemente nossas necessidades. N VALDIR WEBER é teólogo e obreiro da IECLB em Santa Maria de Jetibá (ES)
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penúltima palavra
Se nesta eleição você trocar o voto, dignidade que é sua, por bugiganga, saiba que será ato pernicioso, patologia política que fere a cidadania.
Ilustração: Aikau
Cidade desurbana por Orlando Eller
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á parou para ver e sentir a cidade em que você vive, se urbana e civilizada, se recebe, abraça e afaga sua gente até enfeitar os ânimos de alegria? Ou se, desurbana, passa arredia e dura, todo dia, aos solavancos, como traiçoeira esfinge que não se deixará interpretar? Sabe-me dizer se a cidade é sua por livre escolha ou, como se fez imperiosamente com toda essa sofrida multidão, você também é posse absoluta dela e, desse modo, vítima de talvez evitável predestinação compulsória de viver a angústia em grande solidão comunitária? Sua cidade tem aparência? Tem formosura? Como raras que há, tem cor? Azul, verde, amarelo, como na terra do sonho intenso? E sabor tem? Tem aroma que lembre em terna saudade um feliz tempo perdido? Ela é seu aprisco, seu ninho seguro sem medo, sua calçada de caminhar sem tropeço, sua rua de ir e vir, assim, sem agonia nem dor? Como é sua cidade? Um masto donte sem rosto nem alma? Chão de aratacas e contrastes doídos, urbe espontânea imposta aos que sobrevivem
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dependurados no morro ou atoladas no brejo? A quem interessa isso de ser e não ser, de ter e não ter, de viver e não viver, que se cultivam nela tão intensamente sem reflexão? Moro em sua cidade. Mas não sei se sou dela ou se ela é minha. De qualquer modo, ela tem palácio e poder; gente que vai e que vem, que vive, que morre, que sofre, que ama, que mata e maltrata; tem muita gente, cada vez mais gente que vai se acumulando, sem valores, como cupins que o tamanduá há de comer? Você não pensa nisso? Basta-lhe a dura lida de pouca esperança e dolorida angústia que nasce toda manhã e morre noite adentro todos os dias? Não lhe está por sonho intenso converter grades em liberdade, muros em jardim, calçadas em passeio, postes em árvore, praias em paraíso e céu em transparente abóbada azul, para nele soltar, além de pipas, imaginação própria capaz de inverter dias de desventura e noites de incerteza? Você faz a cidade em que vive. Porque, por pequeno que seja, você é fatia do poder que pode se esparramar como gota de óleo na bacia de água.
Então, contamine às avessas sempre que puder, de preferência nas eleições. Imagine-se, ilimitadamente, imolando um político corrupto; imagine-se dependurando-o com prazer na forca que há na urna silenciosa, para que morra em inominável solidão, para beneplácito da cidade e dos urbanos que a edificam e a mantém, para que seja, enquanto existir, um lugar digno, bom de se viver. Você tem seu IDH, medida da alfabetização, da educação, do poder aquisitivo e da esperança de vida que há na cidade em que habita. Agite-o qual bandeira na procissão eleitoral para que seja fuzil, espada ou tacape, vetores da morte a ser desferida contra a politicalha de carreira, nefasta e maléfica, que, de novo, bota a cara na rua para se dizer insubstituível guardiã do interesse público. Se nesta eleição você trocar o voto, dignidade que é sua, por bugiganga, saiba que será ato pernicioso, patologia política que fere a cidadania. Seu veneno há de machucar ainda mais a cidade já desurbana. N ORLANDO ELLER é jornalista em Vila Velha (ES)
AMIGO DAS CRIANÇAS - EDITORA SINODAL
EDITORA SINODAL