CPAD
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Fé e ciência
A HISTÓRIA DE UM DEBATE QUE JÁ DURA SÉCULOS. O diálogo COMO CAMINHO. o valor da ética. AS DESCOBERTAS DA CIÊNCIA E A POSTURA DA FÉ.
ÍNDICE
Ano 8 –> Número 36 –> Novembro/Dezembro de 2010
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O texto sagrado na era digital, uma ferramenta indispensável
Pela dignidade do negro brasileiro
“La Dolce Vita” de Fellini completa meio século
O Manifesto de Curitiba faz 40 anos
BÍBLIA GLOW
CIDADANIA
cinema
DITADURA
SEÇÕES
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A busca da família de Rafael
Nestor Friedrich é eleito pastor presidente da IECLB
CONTO DE NATAL
última hora
ÚLTIMA HORA > 6 NOvolhar sobre > 6 notas ecumênicas > 8 REflexão > 24 conto > 26 retratos > 28 ecumenismo > 38 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2010
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aO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Walter Altmann Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Olga Farina, Vera Regina Waskow e Walter Altmann. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte de Roberto Soares sobre fotos da Nebulosa de Hélix, feita pelo telescópio Hubble em 2002, e do Hubble em órbita da Terra (Fotos NASA/ESA). Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Alda Menine, Brunilde Arendt Tornquist, Carlos A. Valle, Euler Renato Westphal, Gottfried Brakemeier, Guilherme Lieven, Louraini Christmann, Luciana Garbelini, Marcelo Schneider, Nelson Kilpp, Rudolf von Sinner, Rui Bender, Selenir C. G. Kronbauer, Suzel Tunes, Valério Schaper, Vera Nunes, Vera Vieira e Walter Altmann.
Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 27,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
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Diálogo sem arrogância
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nebulosa planetária NGC 7293, também conhecida como nebulosa de Hélix, é um dos mais populares objetos celestes já fotografados pelo telescópio Hubble. Localizada na constelação de Aquário, a 700 anos-luz da Terra, é a nebulosa mais próxima de nosso planeta. Descoberta pelo astrônomo Karl Ludwig Harding, provavelmente antes de 1824, ela é o que sobrou de uma estrela que já foi como o nosso Sol e explodiu numa colorida agonia. Mas não é por isso que a nebulosa de Hélix veio parar na capa desta edição da Novolhar com o tema “fé e ciência”. Ela virou capa por uma dessas incríveis coincidências da vida, que começou com uma tempestade de meteoros Leonídeos em novembro de 2002. Para proteger as preciosas e reveladoras lentes do Hubble da tempestade meteórica, os controladores viraram o telescópio por cerca de meio dia na direção oposta, exatamente onde a Hélix se exibia como um pavão. Quando as fotos foram publicadas, Hélix mudou de nome quase instantaneamente. Passou a ser a nebulosa “Olho de Deus”. De fato, na imagem captada pelo Hubble, Hélix parece um desconcertante olho divino que convoca à permanente reflexão. Escolhemos essa imagem como uma perfeita coroa no topo da temática desta edição, que tenta jogar luz sobre o ringue em que acontece uma luta secular entre a ciência e a religião, muitas vezes com fundamentalistas em ambos os lados da contenda. Sobretudo representa um convite para que sejam destacadas as contribuições positivas e enriquecedoras dos dois lados do debate, transformado numa equivocada guerra, mas que poderia perfeitamente ser um diálogo. Menos arrogância e uma bem-vinda postura de humildade nos faria bem e, sobretudo, tiraria a espécie humana de uma enganosa posição de destaque, que nunca teve, nem na criação tampouco no universo, e da qual foi derrubada já no terceiro capítulo do Gênesis pelo próprio Criador, como castigo pela empolada tentativa de autossuficiência e de esconder-se do olho de Deus, que tudo vê. Equipe da Novolhar
LIVROS DA SINODAL
DO LEITOR
Projeto da Legião Sou presidente da Legião LuteranaNúcleo da Paz-Joinville/SC. A Legião Evangélia Luterana tem firmada uma parceria de intercâmbio com o grupo de homens da Igreja Evang. Luterana, na Baviera, intermediada pela Lelut Nacional. Só uma decepção com a revista Novolhar é a completa ausência de informações sobre grupos de homens na IECLB. Diante disso, considerando a ausência da Lelut e pouca leitura pelos membros de forma geral, pretendemos implantar uma equipe de comunicação para circular mensagens de todos os informativos da IECLB que julgamos de relevância. Essencialmente em duas formas: inclusão das mensagem no Joinville Luterano (jornal local) e distribuição durante o culto, idealizado pelo grupo da Lelut; leitura e discussão dos artigos pelos legionários nas reuniões. Sou assinante desde 2009 e gosto muito dos seus artigos. O artigo “Bíblia - A memória de uma história de fé” já foi objeto de palestra de nossa pastora para toda a paróquia em uma promoção do Grupo de Homens. Os artigos das seções Reflexão e Espiritualidade também serão considerados em nossos trabalhos, inclusive como objeto de nosso projeto de leitura “VorleseProjekt”, que pretendemos desenvolver com os idosos do ancionato Bethesda em Pirabeiraba. Heinz Rode Joinville-Pirabeiraba - SC
Animais na capa
Sou assinante da Novolhar e SEMPRE a leio com muito prazer. Como estou envolvida em um trabalho voluntário com animais, especialmente animais em situação de abandono e maustratos, pensei que seria uma boa ideia aproveitar esse meio de comunicação, e especialmente a abordagem cristã e humanitária da revista, para fazer uma edição somente sobre esse assunto. Temas como a importância da Arca de Noé, entrevistas e matérias com vete rinários, o papel das ONG’s, tradições culturais que maltratam animais (farra do boi, touradas), leis de proteção, o animal na constituição e a declaração universal dos direitos dos animais, poderiam ser abordados. Eu teria muitas sugestões e contatos e acho que está mais do que na hora de as pessoas lerem e conversarem sobre esse assunto para mudar velhas crenças e hábitos e compreender que os animais têm sua função e seus direitos dentro da sociedade. Hanna Betina Götz Florianópolis - SC
Fonte para o blog Desejo cumprimentá-los pelas matérias apresentadas e pela qualidade do trabalho. Tenho alimentado meu blog com textos interessantes para nós mulheres. Ieda Radünz por e-mail
Diga o que pensa Sua opinião é muito importante para nós aqui na redação da Novolhar. Por isso escreva-nos e diga o que pensa sobre os artigos e as temáticas abordadas. Mande-nos um e-mail para novolhar@editorasinodal.com.br
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Tema da próxima edição
A edição nº 37, de Janeiro/Fevereiro de 2011, terá como tema de capa LEITURA. A importância do hábito de ler para a formação cultural das pessoas e da sociedade; o mercado livreiro; o fantástico mundo do livro.
por Marcelo Schneider Publicado em 2006 pela Editora Sinodal, “Ciência ou religião: quem vai conduzir a história?” é mais do que um convite ao debate. Ao propor um “contrato real de cooperação” entre as duas áreas, Gottfried Brakemeier oferece melodias mais harmoniosas a uma sinfonia que já ganhava ares cacofônicos neste início de século. O autor oferece uma análise ponderada de cinco eixos analógicos muito pertinentes do debate entre religião e ciência (confronto/diálogo, crer/saber, natureza/criação, ciência/ sabedoria e acaso/providência). O tom conciliador do livro não esconde as feridas causadas mutuamente ao longo da história nos dois lados desse combate. Mas seu recado mais contundente é a urgência de um pacto que dê fim à falta de cooperação mútua que pode acontecer entre religião e ciência. O pacto, para Brakemeier, seria construído a partir do que há de melhor e único em cada uma das esferas metodológicas de leitura e experiência do mundo. Passeando por temas presentes (e urgentes) nas duas áreas, como ecologia, dignidade humana, progresso científico e bioética, Brakemeier oferece ferramentas hermenêuticas palpáveis para a construção de uma mistura mais homogênea entre o que um dia já foi visto como água e óleo. MARCELO SCHNEIDER é assessor do Moderador do Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2010
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Nestor Friedrich na Presidência O novo pastor presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), pastor Nestor Paulo Friedrich (53 anos), foi eleito durante o 27º Concílio da Igreja, que aconteceu em Foz do Iguaçu (PR) de 20 a 24 de outubro. Junto com Friedrich, que ocupa atualmente o cargo de secretário geral da igreja, foi eleito como pastor 1º vice-presidente o pastor Carlos Augusto Möller e como 2ª vice-presidente a pastora Silvia Beatrice Genz – a primeira mulher a ocupar um cargo na Presidência da IECLB.
FRIEDRICH: O pastor presidente eleito é gaúcho de Agudo (RS), doutor em Teologia e é o atual secretário-geral da IECLB.
Friedrich, que defendeu a proposta “Juntos e juntas vamos cuidar bem do bem da IECLB”, foi eleito no sábado 23 e assume o cargo em 2011. A Comissão de Eleição foi coordenada pela pastora Regene Lamb e esteve integrada pelo pastor em. Meinrad Piske, pastor em. Elmo Rasveiler, pastor Hans Alfred Trein, pastor Osnildo Friedemann, diácono Dirceu Vanderlei Scheer Quinot, Ana Maria Brackmann e Ingo Ronald Brust. O concílio é o órgão máximo de decisão da Igreja Luterana. Os conciliares reúnem-se de dois em dois anos e as eleições ocorrem a cada quatro anos. O atual pastor presidente da IECLB, Walter Altmann, encerra em dezembro sua gestão de oito anos. A posse do novo pastor presidente será realizada no dia 19 de dezembro, em Porto Alegre (RS).
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Novas regras sobre adoção Desde 3 de novembro de 2009 vigoram novas regras referentes à adoção e às situações de acolhimento institucional de crianças e adolescentes no país. A Lei 12.010 veio dispor sobre a adoção, modificando a Lei 8.069/90 – o Estatuto da Criança e do Adolescente, a lei que regula a investigação de paternidade, o Código Civil, a CLT e dáoutras providências. Altera enormemente o andamento dos processos de acolhimento institucional ou familiar, com atenção especial para o tempo de permanência de crianças e adolescentes em abrigos ou famílias acolhedoras.
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Estipula que a situação jurídica desse sujeito de direito deve ser avaliada, no máximo, a cada seis meses, devendo a autoridade judiciária decidir, com base na avaliação feita por equipe interprofissional, sobre a possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta, ou seja, adoção, tutela ou guarda. Atenção especial deu-se à situação da criança indígena e daquelas oriundas de comunidades quilombolas, cuja adoção deverá ocorrer dentro de suas próprias comunidades para preservar suas identidades culturais; a colocação familiar deverá, prioritariamente, ser efetivada junto a membros da mesma etnia. A crítica que se faz é que a Lei 12.010, que foi criada com o objetivo de acelerar processos de adoção e impedir que crianças e adolescentes permaneçam mais de dois anos em abrigos, não tratou de questões verificadas com frequência nos tribunais, como os casos de casais em relações homoafetivas que querem adotar. ALDA MENINE é advogada e integra a equipe do Proame em São Leopoldo (RS)
está na agenda
Cultura indígena
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O Conselho de Missão entre Índios (COMIN) e a Faculdades EST, de São Leopoldo (RS), promovem a partir de janeiro de 2011 o curso de Pós-Graduação – Especialização Lato Sensu – sob o tema “Educação, diversidade e cultura indígena”. O objetivo do curso é qualificar professoras e professores, educadoras e educadores, lideranças e profissionais de outras áreas para práticas em educação na diversidade, com ênfase nas culturas indígenas. As inscrições podem ser feitas até o dia 5 de janeiro de 2011 pelo telefone (51) 3590.1440 ou pelo e-mail: cledes@est.edu.br. Maiores informações: www.comin.org.br – www.est.edu.br.
A quarta edição da Jornada Ecumênica acontece de 11 a 15 de novembro na Vila Kostka, Itaici, Indaiatuba (SP). A Jornada, que tem como tema “Ecumenismo, Economia e Vida”, pretende avançar na incidência pública e política (advocacy) para além da família ecumênica congregada na América Latina e Caribe. São esperadas cerca de 300 pessoas, entre “jornadeiros/as” (pessoas que participaram dos encontros anteriores), grupos (leigos e clérigos) que priorizam a luta das mulheres e da juventude, os povos tradicionais e todas as pessoas da sociedade civil que se sintam defensoras de direitos (DHESCA). Essa atividade é uma promoção do Fórum Ecumênico Brasil (FE Brasil) e do Fórum Ecumênico Sul-americano de ACT Aliança (FE-SUL). Maiores informações: (21) 3042 6445 / (21) 3042 6445 ou koinonia@koinonia.org.br
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Jornada ecumênica
olhar com humor
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Mais antiga
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Notas ecumênicas Queimar, jamais!
Herdeiros da paz
“É algo monstruoso. Só os fascistas queimam livros. Jamais se deve queimar um livro, seja qual for. Menos ainda quando se trata de um livro com uma transcendência como a do Alcorão ou a do Antigo e do Novo Testamentos.”
Nossa vocação pela paz baseia-se na fraternidade que deve existir entre todos os seres humanos, porque somos filhas e filhos de um só Deus, assim que é nossa profunda convicção de que a paz mundial é possível.
Bernard-Henri Lévy, filósofo, em entrevista ao jornal ABC, de Segovia, Espanha
10 mil projetos Em 2010, a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) comemora 10 mil projetos apoiados, que possibilitaram melhor qualidade de vida para mais de 8 milhões de pessoas no Brasil. Em 1973, quando a CESE foi criada, muito precisava ser feito para reconquistar a democracia no Brasil, afirmar direitos e promover a justiça social. A CESE construiu ao longo do tempo uma metodologia de apoio eficiente e transparente, fazendo os recursos chegarem com agilidade aos que mais necessitam e ajudando os grupos a qualificar sua ação. Há no Brasil muita gente que vai à luta por direitos.
No domingo, 19 de setembro, pessoas de diversas comunidades de fé ocuparam a orla das praias de Ipanema e Copacabana, no Rio de Janeiro, para pedir o fim da intolerância, do desrespeito ao outro e para afirmar um direito estabelecido na Constituição brasileira: a liberdade de culto. Estavam presentes islâmicos, ciganos, hare krishnas, candomblecistas, católicos, umbandistas, anglicanos, cristãos de alguns seguimentos como a Igreja Contemporânea e um pequeno grupo de evangélicos sem denominação informada. A 3ª Caminhada pela Liberdade Religiosa Eu tenho fé! foi uma caminhada alegre, com a presença de pessoas de diferentes gerações, crianças, jovens, idosos, todos no mesmo intuito de afirmar positivamente sua identidade religiosa.
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Eu tenho fé!
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Monsenhor Fausto Gabriel Trávez Trávez, de 69 anos, é o novo arcebispo metropolitano de Quito. A arquidiocese de Quito (na foto, a catedral) é uma das sedes episcopais mais antigas da América espanhola, criada em 1546. Possui 173 paróquias, 475 sacerdotes, 2.181 religiosos, nove diáconos permanentes e 233 institutos de ensino.
Trecho da Declaração do Conselho de Igrejas de Cuba (CIC), aprovada em setembro, que tem por título “Herdeiros da paz de Cristo”
Revista digital Tão fascinante quanto a cobertura de ciência, a área da religião também exige conhecimento multifacetado, pois a religiosidade permeia todas as relações humanas e exerce influência em áreas tão distintas como política, economia, artes, saúde, tecnologia ou esportes. Suzel Tunes, jornalista, mestre em Ciências da Religião e editora da Entheos, revista digital
O islã além do estereótipo ocidental muçulmano com padrões geométricos que reproduzem a Grande Mesquita de Damasco. Há uma grande variedade de obras e peças, como utensílios, mobílias, tapeçaria, vestuário, mosaicos, objetos de vidro, instrumentos científicos e musicais, os mais de 1.300 anos de arte islâmica são ilustrados, além de cerca de 300 obras dos principais museus da Síria e do Irã.
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Uma linha do tempo que vai do nascimento do profeta Maomé até o período pós-Segunda Guerra Mundial guia os visitantes da exposição Arte Islâmica, no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), no Rio de Janeiro, que explora a arte e a civilização do Oriente Médio. A imersão no mundo islâmico começa logo na entrada da exposição, onde os curadores Rodolfo Athayde e Daniel Farah reproduziram um pátio tipicamente
“As religiões mais que falar de natureza deveriam se habituar a falar de criação. Criação remete ao Criador. O ato de criação não ocorreu no passado primordial. Ele está ocorrendo a cada momento. Se Deus não continuar dizendo ‘faça-se a luz’, ‘surjam as águas, os animais e as plantas e fundamentalmente o ser humano’, tudo voltaria ao nada. Assistimos a todo instante ao milagre da criação e à emergência do céu e da Terra”.
Leonardo Boff, teólogo e escritor, no lançamento da Campanha Primavera pela Vida 2010, da CESE, em setembro
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Milagre da criação
dica cultural
Denzel Washington estrela esse filme dirigido pelos irmãos Allen e Albert Hughes. Num mundo pós-apocalíptico, Eli (Denzel) é um homem solitário que precisa proteger um livro sagrado que pode conter a resposta para a salvação da humanidade. No entanto, assim como todo herói tem seu algoz, nessa história não é diferente. Para poder obter o livro, um prefeito tirano (Gary Oldman) de uma pequena cidade fará de tudo, mesmo que para isso tenha de matar Eli. O prefeito da pequena cidade deseja o livro a qualquer custo porque entende que ele é indispensável para poder administrar uma cidade maior. As pessoas somente vão aceitar o que ele deseja se as palavras forem do livro, ou seja, a subordinação do povo a seus interesses passa pelo conteúdo do livro (Bíblia). Quando ele finalmente o consegue, terá uma grande surpresa. O filme é uma ficção, mas certamente permite traçar paralelos com diversos momentos da história. Na Idade Média, Martim Lutero salva o livro (Bíblia) traduzindo-o para a língua do povo. O livro contém a salvação da humanidade, e essa boa notícia é para todas as pessoas.
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O Livro de Eli
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Foto NASA/Hubble Heritage Team (STScI/AURA)
Sob duas lentes
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Fascinante imagem do coração da Galáxia do Redemoinho, tirada pelo telescópio Hubble, um espetáculo que se repete bilhões de vezes no Universo conhecido, que revelou a fantástica e inesgotável beleza da criação de deus.
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Fé e ciência podem juntas aprofundar a compreensão sobre o universo
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“CRIAÇÃO DE ADÃO”: Obra de Michelângelo (1510) no teto da Capela Sistina, no Vaticano em Roma
Como surgiu o universo? Foi criado em seis dias por Deus, ou uma grande explosão deu origem a tudo? a gênese do mundo é um assunto que desperta grande curiosidade nos seres humanos desde os tempos mais remotos e gera polêmica, envolvendo conceitos religiosos, filosóficos e científicos. por Rui Bender
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e acordo com a Bíblia, Deus criou o mundo em seis dias e toda a humanidade a partir de um só homem. Durante mais de trinta séculos, a tese criacionista perdurou como uma verdade absoluta em diversas partes do Ocidente, interpretada literalmente da forma como está escrita em Gênesis, o
primeiro livro da Bíblia. Os criacionis tas acreditam que essa é a verdadeira explicação para a origem de tudo o que vemos ao nosso redor. Atualmente, para muitos cristãos e judeus, os seis dias da criação do mundo, de que fala o livro de Gênesis, não devem ser entendidos literalmente, mas representam uma forma de explicar a criação do universo a partir da fé.
Somente nos dois últimos séculos, uma série de argumentos foi levantada contra esse predomínio eminentemente religioso. Entre a comunidade científica, a explicação mais aceita para a origem do universo baseia-se na teoria da grande explosão, o big bang em inglês. Essa teoria foi anunciada em 1948 pelo cientista russo naturalizado americano George Gamow. Segundo Gamow, o universo teria surgido após uma grande explosão cósmica há pelo menos 14 bilhões de anos. Quando surgiu a teoria do big bang, já estava em vigor há algum tempo a teoria do evolucionismo. Essa teve seu início científico com o naturalista britânico Charles Darwin ao publicar em 1859 a obra “Sobre as origens das espécies”. Segundo Darwin, os seres vivos foram ganhando novas características e herdando outras num processo que já dura bilhões de anos.
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Enfim, evolucionistas e criacionis tas olham o mesmo fenômeno com lentes diferentes. Enquanto o evolu cionismo procura olhar para o passado e para o registro fóssil em busca de evidências que expliquem como ocorreu a evolução, os criacionistas olham para o presente e questionam as evidências da história natural. Mas fé e ciência não são excludentes. Ambas se completam e auxiliam mutuamente. O teólogo luterano Gottfried Brakemeier argumenta, em seu livro “Ciência ou religião: quem vai conduzir a história?” (2006), que “cabe à ciência introduzir racionali dade no mundo da fé para salvaguar dá-la de superstição, obscurantismo, fanatismo”. Ele também acrescenta que “ciência que despreza a fé perde a orientação”. A fé negou por séculos o lugar que cabia à ciência. Essa é a experiência no Ocidente. “O curioso é que a ciência foi amplamente praticada justamente nos meios religiosos, desde as contribuições de Roger Bacon e Guilherme de Occam (filósofos ingleses), ambos do século 13”, observa o teólogo luterano Valério Schaper, professor da Faculdades EST, de São Leopoldo (RS), em entrevista à Novolhar. Ele acrescenta: “Podemos dizer que a ciência, mesmo tendo seu lugar negado, foi capaz de ir conquistando espaços e seduzindo as inteligências religiosas a ponto de já no século 13 ter se tornado um afã teológico encontrar formas de harmonizar fé e ciência”.
FÉ E CIÊNCIA NO TEMPO
“cabe à ciência introduzir ra cionalidade no mundo da fé para salvaguar dá-la de superstição, obscurantismo, fanatismo. ciência que despreza a fé perde a orientação.” Gottfried Brakemeier
RELAÇÃO DIFÍCIL – Sempre houve momentos marcantes na história da relação entre ciência e religião. No século 16, o matemático e astrônomo italiano Galileu Galilei retomou uma longa tradição científica e propôs o sistema heliocêntrico (o sol como centro do universo), lembra Valério. Outro grande momento da ciência se viveu no século 19 com a publicação da teoria da evolução das espécies por Charles Darwin. Atualmente, vivemos o mapeamento dos genomas das espécies e as diversas pesquisas que indicam o que podemos fazer com esse conhecimento. “Em cada um desses momentos estivemos em um grande embate entre ciência e religião”, admite Valério. Ele recorda: “Galileu foi obrigado a retratar-se e se retratou. Darwin
Por volta de 1350 a.C.
Egito Antigo A primeira menção que se tem de crença num único Deus, criador de todas as coisas, está no faraó egípcio Akhenaton, por volta de 1350 a.C., que se autoproclamou emissário de Aten, o “Deus único, que nenhum outro pode igualar”. Também foi com o monoteísmo que iniciou a fé num criador de tudo o que existe.
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Clovis Lindner
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angustiou-se muito com os resultados de sua pesquisa e, finalmente, ao pu blicá-los, enfrentou pesada crítica dos círculos religiosos. Hoje nós estamos em meio a uma grande reflexão sobre o destino das pesquisas genéticas”. O professor luterano reconhece que “a igreja adotou a descrição aris totélica do cosmo por entender que ela harmonizava melhor com a descrição bíblica”. Ela afirmava que o cosmo era finito, fechado e logicamente ordenado em seus movimentos – como um mecanismo. Fundamentalmente defendia que a Terra estava no centro desse mecanismo. “Na verdade, a ideia de que era a Terra que girava ao redor do Sol já havia sido formulada e proposta por Aristarco de Samos (310 a.C.-230 a.C.), mas só foi reconhecida mais de mil anos depois com a teoria do
Por volta de 1450 a.C.
O mundo DO Gênesis Os autores do livro de Gênesis tinham uma visão do universo segundo a qual a Terra é um disco, sobre o qual uma abóbada separa o nosso mundo do celeste. Acima da abóbada celeste estão Deus e os anjos. Na parte interna da abóbada estão afixados o Sol, de dia, e a Lua e as estrelas, de noite. Por baixo do disco terrestre, localizam-se o inferno e seus monstros. Esse mundo foi criado em seis dias, e no sétimo Deus descansou.
“o que Importa é buscar o diálogo, que indica o estado de maturidade e também de capacidade de autorreflexão das duas formas de narrativa do mundo.” Valério Schaper
Rui Bender
cientista polonês Nicolau Copérnico (1473-1543)”, resgata Valério. Galileu retomou essa teoria e acrescentou novas provas científicas através de suas observações por telescópio. O teólogo luterano explica que “a celeuma provocada pelo heliocentris mo de Galileu certamente se deve mais ao fato de que ele empregou uma nova metodologia científica que refutava a metodologia aristotélica, amplamente aceita nos círculos eclesiais”. Aos poucos, o pensamento científico se impôs e rompeu a concepção de um cosmo fechado e finito. Entretanto, “com seu método de investigar continuamente e buscar explicações mais complexas para o mundo, a ciência constatou que há limites em seu próprio método”, percebeu Valério. Mas esses limites foram rompidos no século 20 à medida que se avançava nas pesquisas sobre o macrocosmo (grandes leis que regem o universo e os astros) e o microcosmo (leis que regem o universo subatômico). A ciência caminha para buscar novos métodos e formas de cooperação com outras disciplinas. “Em alguns casos, por exemplo nas experiências em hospitais, médicos aceitam hoje que o acompanhamento pastoral a doentes tem um efeito benéfico sobre os tratamentos, incidindo positivamente na cura”, comemora o teólogo. Valério observa que “os cientistas sociais acreditavam que a religião tendia ao desaparecimento paulatino do mundo à medida que suas formas
de narração e explicação do universo fossem sendo substituídas pelas da ciência”. Mas a intensificação da religião na vida pública contraria boa parte dos cientistas sociais. Por exemplo, o biólogo Richard Dawkins entende que, para pacificar, organizar e garantir a estabilidade da vida social, é preciso eliminar a religião. Em contrapartida, Valério defende que “toda forma de pensamento que trabalha pela eliminação de outra é um pensamento intolerante e viola assim um dos acordos básicos do mundo moderno: a tolerância com a diferença de pensamento, de expressão etc.” LIBERDADE – Uma das maiores conquistas humanas do século 20 é a Declaração dos Direitos Humanos. Ela assegura liberdade de
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ANIMISMO Desde tempos imemoriais, povos antigos ao redor do planeta desenvolveram lendas sobre a Criação, explicando o surgimento do Sol, da Lua e das estrelas em suas culturas. Em 1871, o antropólogo inglês Edward Tylor descreveu essas crenças como “animismo” (anima = alma), uma vez que, segundo tais culturas, todas as coisas existentes têm alma, dos astros aos seres vivos. Todos os elementos do mundo que nos cerca têm sentimentos, emoções, vontades ou desejos e, até mesmo, inteligência. Segundo as culturas animistas, todas as coisas são vivas, são conscientes, possuem “alma” transferível de um elemento para outro.
pensamento e crença. Por isso o pró-ateísmo – movimento liderado por Dawkins, que ganhou força recentemente por causa de conflitos e ataques terroristas – precisa ser combatido. Não por ser ateísmo, mas “por ser uma semente de intolerância tão ou mais ameaçadora do que aquela que lançou aviões contra as torres gêmeas em 11 de setembro de 2001”. Essa semente é “perigosa porque vem com o véu do cientificismo, que é um dogmatismo travestido de verdade incontestável”, observa Valério. O dogmatismo de que se acusa a religião está presente também na ciência. Portanto não é um privilégio da fé. “Toda a recusa em pensar consequen temente é o que leva a fé ou a ciência ao dogmatismo”, acentua.
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Por volta de 600 a.C.
Oriente Médio O monoteísmo (Javé, o único Deus, na fé de Israel) influenciou o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Pelas rotas comerciais, espalhou-se pela costa do Mediterrâneo e in fluenciou os pensadores gregos, dando origem à filosofia ocidental. Tales de Mileto é seu fundador, segundo o qual “tudo é feito de uma única substância”. O pensamento iônico, iniciado por ele, continua determinante no pensamento científico moderno como “encantamento iônico”, levando muitos pesquisadores a crer na possibilidade de uma teoria unificada (que explique todas as coisas).
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Valério entende que, “uma vez que temos hoje a ciência como se apresenta e a fé como se apresenta, é inevitável que busquem dialogar sobre a vida no mundo”. Pois é possível encontrar convergências em valores que devem orientar nossa vida. E também é provável que sejam concorrentes em explicações e narrativas de determinados aspectos da vida. “Importa buscar o diálogo”, frisa o teólogo. E acrescenta: “Diálogo indica o estado de maturidade e também de capacidade de autorreflexão das duas formas de narrativa do mundo” (fé cristã e ciência). “Nenhum avanço da ciência amea ça ou impossibilita o diálogo”, reconhece Valério. Mas o que nos deve preocupar é o limite ético daquilo que podemos fazer como seres humanos. Nossa questão deve ser a afirmação central de nossa fé na criação: Deus criou, e tudo o que ele criou era bom. “Obviamente, a responsabilidade pela continuidade e qualidade da vida não é atribuição específica dos cristãos e cristãs. A ciência também responde por isso”, entende o teólogo. Já experimentamos muitas melhorias por intermédio das pesquisas científicas, como vacinas, remédios, cirurgias, terapias etc., que não foram alvo de nosso questionamento. “Portanto a nossa preocupação deve ser sempre como fazer para que esse ‘bom’ chegue a todos”, arremata Valério. N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)
Guerra estúpida a fé precisa da ciência para não se tornar tola. a ciência, por sua vez, precisa da fé para não se tornar absurda. pois ela não tem como garantir um sentido para as coisas. por Gottfried Brakemeier
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tephen Hawking, considerado o físico mais brilhante desde Albert Einstein, declarou-se definitivamente ateu. Em publicação recente, o cientista britânico constata ser desnecessária a hipótese da existência de Deus. A tese não é nova. Aos olhos da ciência, um Deus criador está sobrando. Tudo se explica de modo natural, sem necessidade da intervenção de um ser sobrenatural. Hawking está convicto de que a ciência vai ganhar a disputa com a religião, transformando-a em algo supérfluo. A convicção é partilhada por muitos cientistas da atualidade. Religião passa a ser sinônimo de atraso, de ingenuidade, de superstição a ser abolida. Está aí a fonte da qual se alimenta o ateísmo militante, que renasce com força e faz missão no mundo global. Fé em Deus seria não
somente sinal de indesculpável ignorância, como também de lamentável perversão. Enganaria as pessoas e tolheria sua autonomia. Tais teses ofendem os fiéis e mobilizam a contraofensiva. Não raramente, a arma usada é a desmoralização dos “descrentes”. Buscam-se evidências de um desígnio inteligente no universo, que seriam a prova da ação de Deus. A indignação diante das provocações científicas é particularmente grande em grupos fun damentalistas. Esses entendem que a Bíblia deve ser interpretada em sentido literal, oferecendo algo como uma reportagem sobre o processo da criação. Nessas condições, a fé não admite a visão científica. As pessoas deveriam decidir-se entre a verdade da ciência e a da religião. Permanece o confronto. Então vamos situar-nos
570 a.C. - 496 a.C.
Pitágoras Filósofo e matemático, Pitágoras combinou uma forma de misticismo matemático com a noção iônica de Tales, criando uma visão de mundo que viria a influenciar profundamente o pensamento ocidental. Seu legado é a base da ciência, de que o mundo natural pode ser descrito por meio de fórmulas matemáticas, que descrevem de forma racional a perfeição e a simetria da criação. Pitágoras foi intelectualmente um dos homens mais importantes da história. Para ele, sob o aparente caos do mundo existem simetrias matemáticas que revelam o código oculto da Natureza. Na tradição intelectual do Ocidente, o misticismo matemático de Pitágoras transformou-se na ponte entre a razão humana e a inteligência divina, ao criar o Teorema de Pitágoras.
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Ponte para a ciência moderna Ao contrário dos iônicos, os pitagóricos veem a essência da Natureza nos números e em suas relações, e não na unificação da matéria. A física moderna combina as duas noções: a unificação da matéria é descrita por números e por simetrias expressas através de relações matemáticas. Do ponto de vista religioso, a matemática passa a ser a ferramenta que permite desvendar os segredos da obra criadora de Deus. Pitágoras foi o matemático e filósofo-santo que abriu o caminho a todos os que sonham em aproximar-se da mente de Deus. Ele e seus seguidores desejavam construir um vínculo entre a matemática e a experiência mística de Deus.
junto à descrença ou junto à suposta falácia religiosa? O erro está em ambos os lados. É lamentável haver pessoas cristãs que continuam lendo a Bíblia como se fosse um livro de ciência. Desconsideram os propósitos originais dos textos, são incapazes de distinguir entre a letra e o espírito, transformam a fé numa aceitação de fatos. Sob tal ótica, criação passa a ser uma teoria de cosmogênese, provocando o conflito com o que a ciência diz sobre o assunto. Inversamente, porém, se deve lamentar também a desinformação teológica de muitos cientistas. Qual é a razão da fala em criação? Aliás, quem julga poder demonstrar a inexistência de Deus por
meio de argumentos científicos peca por falta de humildade. A ciência está propensa a portarse como todo-poderosa, desrespeitando seus limites. Ela deveria reconhecer haver realidades a que ela não tem acesso. Por mais que a anatomia disseque o corpo humano, ela não vai encontrar vestígios de dignidade no organismo. E por mais que a pesquisa analise a gênese do cosmo, ela não estará em condições de comprovar um sentido em tudo isso. Mesmo assim, dignidade e sentido são ingredientes indispensáveis de uma vida que vale a pena ser vivida. Não podem ser comprovados; devem ser cridos.
Em torno de 360 a.C. até o fim da Idade Média
Aristóteles Aluno de Platão, o filósofo grego Aristóteles escreveu sobre física, metafísica, poesia, teatro, música, lógica, retórica, ética, governo, biologia e zoologia. Um dos principais teóricos da filosofia ocidental, norteou o pensamento científico até o fim da Idade Média, influenciando o pensamento filosófico e teológico. Foi o principal teórico do geocentrismo do Universo, com a Terra no seu centro e todo o resto rodando ao seu redor em órbitas que eram círculos perfeitos.
Também Deus é um fenômeno que escapa da alçada da ciência. Não há provas de sua existência, assim como também não há contraprovas. Deus não é objeto que se possa investigar e verificar. O acesso a ele dá-se pela fé. Essa aplica um “novo olhar” a tudo o que existe. Enxerga não “milagres”, e sim “maravilhas”. Percebe um mistério inerente à vida e ao mundo que exige reverência, gratidão, respeito. A ciência pergunta como funcionam as coisas, dando-se por satisfeita quando julga ter achado uma explicação. A fé pergunta pelo significado das coisas, apontando razões para arriscar
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STEPHEN HAWKING: Para o físico mais brilhante depois de Albert Einstein, a hipótese da existência de Deus é desnecessária. Aos olhos da ciência, um Deus criador está sobrando. Tudo se explica de modo natural, sem a intervenção de um ser sobrenatural.
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A Inquisição condenou Giordano Bruno à fogueira em 1600. No dia da execução, o local em Roma reuniu numeroso clero da igreja para ver o herege arder nas chamas por pregar as ideias de Nicolau Copérnico sobre o heliocentrismo.
Durante a Idade Média
Astronomia islâmica Enquanto a Europa e o pensamento ocidental entravam em forte declínio durante a Idade Média, foram os astrônomos árabes, de religião islâmica, que preservaram os principais ensinamentos filosóficos e astronômicos do pensamento grego. No período foram inclusive erguidos observatórios.
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confiança. A seus olhos, o mundo torna-se transparente para o agir de Deus. É essa a causa do discurso sobre Deus, o criador. Como foi a passagem do não-ser para o ser? Como surgiu novidade nos processos evolutivos? A quem devemos nossa vida? Estaremos rodeados do vazio, rumando sem destino pelo universo, entregues aos caprichos do acaso? A fé descobre vestígios de Deus em meio à realidade, o que muda a “cosmovisão”. Ela transforma o caos em cosmo, ou seja, em ordem e beleza, descobrindo criação na evolução e vice-versa. Em tal perspectiva, fé e ciência deixam de ser inimigas. A fé precisa da ciência para não se tornar tola. Não se lhe permite ignorar evidências científicas e deixar de aproveitar o saber para a construção do mundo. A ciência, por sua vez, precisa da fé para não se tornar absurda. Pois ela não tem como garantir um sentido às coisas. A ciência por si só não produz o ateísmo. Quem mostra isso é John Polkinghorne, também britânico, que se notabilizou tanto na área da física como na da teologia. Outros exemplos de cientistas cristãos poderiam ser mencionados. A parceria entre ciência e fé não só é possível como também condição de uma visão integral do universo, do mundo e do ser humano. N GOTTFRIED BRAKEMEIER é teólogo luterano em Nova Petrópolis (RS)
“Eppur si muove!” O julgamento de Galileu é um episódio emblemático do choque entre religião e ciência, AO SER LEVADO A RENUNCIAR AO HELIOCENTRISMO DIANTE DA INQUISIÇÃO. por Marcelo Schneider
G
alileu Galilei foi um físico, matemático, astrônomo e filósofo que viveu a maior parte de sua vida em Pisa e em Florença, na Itália. Lá, desenvolveu os primeiros estudos sistemáticos do movimento uniformemente acelerado e do movimento do pêndulo. Num tempo de contundente progresso técnico, Galileu teria desfrutado em vida de um status de cientista competente, não tivesse tocado num dos maiores totens ideológicos da igreja de sua época: a centralidade do planeta Terra no universo criado por Deus. Galileu aprimorou equipamentos existentes e com eles descobriu as manchas solares, as montanhas da Lua, as fases de Vênus, quatro satélites de Júpiter, os anéis de Saturno, as estrelas da Via Láctea. Essas e outras
1537
Copérnico (1473-1543) A primeira impressão de sua obra-prima, “Sobre as revoluções das esferas celestes”, Nicolau Copérnico recebeu em mãos somente no fim da vida, já acamado e à beira da morte. Era o resumo de décadas de um trabalho de astronomia revolucionário e transformou-se num pesadelo. Suas pesquisas desmentiam toda a história, dos babilônicos a Aristóteles, de Ptolomeu aos inspirados astrônomos islâmicos. Todos estavam errados sobre os arranjos dos astros nos céus. O cosmo-cebola dos gregos era uma grande distorção. Para Copérnico, a Terra saía da posição de protagonista do Universo e tornava-se apenas mais um astro girando ao redor do Sol como os outros planetas. Por quatro mil anos, o mundo havia vivido uma grande ilusão. Tudo mudou em 1537, após 15 séculos de pregação cristã de que a Terra era o centro de tudo.
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descobertas levaram-no a juntar-se à defesa do heliocentrismo: a teoria de que o Sol é o centro do universo, e não a Terra. Sua simpatia e campanha pelas ideias do astrônomo Nicolau Copérnico acabaram tornando-o uma figura controversa, pois a ampla maioria de filósofos e astrônomos ainda endossava a teoria geocêntrica da organização do universo. A partir de 1610, ele passou a defender publicamente a centralidade do Sol, o que obviamente causou a ira de clérigos, que, finalmente, o denunciaram à Inquisição Romana. Galileu recebeu uma forte orientação de Roma para abandonar a defesa do heliocentris mo. Ele acatou o alerta e prometeu cessar com tais apologias. Mas Galileu, apaixonado pela verdade, tinha indícios fortes demais 1600
Galileu GALILEI (1564-1642) Físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano, Galileu teve um papel preponderante na revolução científica a partir de Copérnico. Desenvolveu a lei da inércia e foi precursor de Isaac Newton. Melhorou o telescópio, foi o primeiro a fazer uso científico dele e descobriu as manchas solares, as montanhas da Lua, os anéis de Saturno e as estrelas da Via Láctea. Defendeu o heliocentrismo do sistema solar, mas sua principal contribuição foi para o método científico, até então baseado na metodologia aristotélica.
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CONDENAÇÃO: A ilustração mostra Galileu diante do Santo Ofício, que o instou a revogar seus estudos. A condenação à doutrina do heliocentris mo somente foi revogada dois séculos depois. Galileu foi absolvido pelo Vaticano somente em 1983.
e resolveu não calar. O papa Urbano VIII, que havia sido testemunha de defesa no processo contra Galileu, recebeu-o no Vaticano em seis audiências, nas quais lhe ofereceu honrarias, apoio financeiro para pesquisa e recomendações. Seu único pedido era que escrevesse um livro em que os dois pontos de vista, o heliocentrismo e o geocentrismo, fossem defendidos em igualdade de condições. Galileu completou sua obra “Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo” em 1630 e publicou-a dois anos depois. A obra ficou distante do que esperava o bispo de Roma. Escrito em forma de diálogo entre
três personagens, comprovou ainda mais claramente a teoria heliocêntrica, o que desapontou até seu mais poderoso simpatizante na igreja. Foi esse livro que agravou ainda mais o processo de Inquisição contra Galileu, que era um cristão convicto, mas de temperamento difícil. Ademais, viveu numa época em que a Igreja Católica acusava os golpes internos que sofria pela Reforma. Galileu foi chamado a Roma para ser julgado, apesar de já estar muito doente. Em 22 de junho de 1633, numa sala do convento dominicano de Santa Maria Sopra Minerva, Galileu foi condenado e
movido a renunciar à sua crença de que a Terra gira em torno do Sol. Ao sair do tribunal, mesmo depois de ter assinado a renúncia às suas próprias ideias, num gesto apaixonado e inquieto, como se prestasse contas a si mesmo, disse: “Eppur si muove!”, ou seja, “Contudo, ela se move”, referindo-se à Terra. O julgamento de Galileu é um episódio emblemático do (in)evitável choque entre religião e ciência. A sabedoria popular ensina que, na luta do rochedo contra o mar, quem mais sofre é o marisco. Galileu capitulou e passou alguns anos em prisão domiciliar. Morreu em 1642. Em 1846, foram removidas todas as obras que apoiavam o sistema copernicano da versão revista da lista de livros proibidos do Vaticano. Três séculos depois da condenação, em 1983, ocorreram a revisão do processo e a absolvição de Galileu. A Terra, girando ao redor do Sol, deve ter cochichado: “Ele estava certo!”. N MARCELO SCHNEIDER é assessor do Moderador do Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre (RS)
1616
A Igreja reage Em 1616, a Inquisição declarou que a afirmação de que o Sol é o centro imóvel do Universo era herética e que a Terra se move estava teologicamente errada. Foi proibido falar do heliocentrismo como realidade física. Galileu (imagem à esquerda) foi convocado a Roma para defender as suas ideias perante o Tribunal do Santo Ofício, que decidiu não haver provas suficientes para concluir que a Terra se movia e admoestou Galileu a abandonar a teoria. Tendo Galileu persistido em ir mais longe nas suas ideias, foi proibido de divulgá-las ou ensiná-las. Embora condenado à prisão apesar de renegar suas ideias, não foi ele, mas Giordano Bruno (imagem à direita), quem foi queimado na fogueira por defender as mesmas ideias. NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2010
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Humildade no diálogo por Suzel Tunes
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stamos no ano de 1858. O naturalista inglês Charles Darwin está profundamente angustiado. Já faz 20 anos que, sigilosamente, desenvolve uma teoria que, a seu ver, irá contrariar tudo o que a igreja vem ensinando a respeito da origem da vida (e o que ele mesmo aprendera, quando estudara Teologia em Cambridge). Mas, agora, a comunidade científica o pressiona para que publique sua teoria. Charles acha que sua decisão afetará a fé de milhões de pessoas. Mas o que mais o preocupa é a reação de Emma, sua devota esposa. Ela teme que o marido perca a fé e a salvação, e ele não quer fazê-la sofrer. Por fim, acaba publicando o denso material de pesquisa sob o título “Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural”. Evitou usar o termo evolu cionismo. Já naquela época, o termo era interpretado como criação sem intervenção divina. Essa é a história de Darwin, contada no filme “Criação”, lançado recen-
Cena do filme “Criação” sobre a vida e obra de Charles Darwin
temente. O que angustiava Darwin em meados do século 19 ainda é motivo de polêmica no século 21: para muitas pessoas, a aceitação da teoria da evolução representa, automaticamente, a negação da fé. Mas não é assim que pensam muitos cientistas cristãos, como o metodista Warwick Kerr, geneticista reconhecido internacionalmente. Em 2006, aos 84 anos de idade e ainda trabalhando na Universidade de Uberlândia (MG), Warwick concedeu uma entrevista ao jornal metodista O Expositor Cristão (edição de julho), na qual afirma sua crença “na existência de um Deus fantasticamente poderoso, Criador do universo todo, que hoje tem 13,7 bilhões de anos e que, pelo menos nesta Terra, tem uma
vida biológica fantasticamente grande e bela”. Ele dizia que o criacionismo, se interpretado ao pé da letra, levaria a uma leitura descontextualizada do livro de Gênesis. “Interpretar Gênesis 1 com 6 dias de 24 horas é desconhecer que, para Deus, não existe tempo”, dizia ele, referindo-se ao Salmo 90.4 e a 2 Pedro 3.8. Para Karl Heinz Kienitz, coordenador do curso de Engenharia Eletrônica do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e membro da Primeira Igreja Batista em São José dos Campos (SP), a suposta incompatibilidade entre fé e ciência nasce de uma incompreensão conceitual. A começar pelo conceito de fé: “Fé não é doutrina, nem tampouco alguma coleção tradicional de explicações (por
1600
Johann Kepler (1571-1630) Embora Galileu tenha sido importante no processo iniciado na ciência durante o Renascimento, o astrônomo alemão Johann Kepler foi o cientista mais solitário e perseguido por defender ideias que transformariam profundamente a ciência. Kepler foi o mais fiel dos pesquisadores pitagóricos de seu tempo e jamais desistiu de buscar o código oculto da Natureza. Sua obra Astronomia Nova redefiniu a astronomia. Com um compasso na mão, decifrou os céus por meio da geometria, elaborando a hipótese copernicana. Ele queria ser pastor luterano, mas por causa de sua mente brilhante e de suas pesquisas foi hostilizado por seus mestres, o que acabou levando-o à astronomia.
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A criação simétrica de Kepler Seu trabalho levou ao Mysterium Cosmographicum (esquema na página ao lado), para ele o mapa da Criação ou a expressão geométrica da mente de Deus. Estava convencido de que o cosmo heliocêntrico era obra de Deus e deveria refletir a perfeição divina com uma beleza sobre-humana. Chegou a relacionar o cosmo com a Santíssima Trindade. Kepler sugeriu, intuitivamente, que o Sol tinha o poder de mover os planetas à sua volta (anima motrix). Pela primeira vez, alguém definia que são forças que mantêm o cosmo coeso. Uma sequência perfeita de esferas, cubos e
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Arquivo Pessoal
exemplo, sobre a origem da vida). Fé encontra-se explicitamente definida na Bíblia em Hebreus 11 e, no contexto do cristianismo, é a confiança que possibilita um relacionamento do ser humano com Deus”, escreve o professor Kienitz em um blog que ele criou especialmente para discutir “fé e ciência”. No blog (www. freewebs.com/kienitz), Kienitz reúne diversos artigos sobre o tema e faz questão de relacionar “grandes cientistas com fé no Deus da Bíblia”, como Kepler, Boyle, Ampère, Pascal, Newton e Pasteur. O professor Kienitz explicou, em entrevista à Novolhar, que genericamente a teoria da evolução não se contrapõe à crença de que o mundo foi criado por Deus. “No entanto, há cientistas que, de antemão, se comprometem com uma visão materialista do mundo. Em muitos casos, esse compromisso assume formas radicais e fundamentalistas”, afirma Kienitz. Segundo ele, como qualquer teoria, “a teoria da evolução está sujeita a críticas, reformulações ou mesmo refutação à luz de novas descobertas e evidências”. Se o fundamentalismo religioso, ao cristalizar um ponto de vista, dificulta o diálogo, não menos prejudicial é o “fundamentalismo científico”.
PROF. KIENITZ: Tanto o fundamentalismo religioso como o científico dificultam o diálogo. Geneticamente, a teoria da evolução não se contrapõe à crença de que o mundo foi criado por Deus.
É o que pensa também o teólogo e filósofo Rui de Souza Josgrilberg, diretor da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista. Para ele, alguns cientistas evolucionistas incorrem no mesmo erro dos criacionistas: elevar suas teorias a um status de dogma. Pessoalmente, Josgrilberg aceita a teo ria da evolução como uma descrição da ciência para os processos naturais que originaram a vida na Terra e não vê nenhum conflito entre a explicação científica da vida e a teologia que lhe confere sentido. “A vida tem uma complexidade e inclui várias perspectivas. A explicação científica é válida, mas não exclui perguntas sobre o mistério. É um erro pensar que a ciência abarca todo o co-
pirâmides triangulares encaixava os astros na simetria perfeita que definia a estrutura cósmica da criação. Era a sua forma de louvar a Deus pela Criação perfeita, em que a geometria determinava a estrutura do cosmo.
nhecimento. Ou que o big bang explica tudo. O big bang levanta mil outras perguntas”, afirma Josgrilberg. Cientista e teólogo concordam que muitas dessas perguntas ficarão sem resposta. Segundo o professor Kienitz, é “falaciosa” a pressuposição de que podemos ou poderemos entender e explicar nossa origem. “Certamente podemos experimentar, observar e deduzir muitas coisas importantes sobre nosso mundo, sobre nós mesmos e também nossas origens, mas a pretensão da ciência não é explicar o universo, mas desenvolver modelos que permitam descrever a realidade”, afirma Kienitz. Citando o cientista John Polking horne (físico inglês e ministro anglicano, autor de vários livros sobre a relação entre ciência e religião), Kienitz destaca que “os cientistas são fabricantes de mapas do mundo físico. Nenhum mapa nos diz tudo o que poderia ser dito sobre um terreno particular, mas em uma determinada escala pode fielmente representar a estrutura existente”. Para Josgrilberg, “a ciência precisa cultivar o senso do mistério, e a teologia necessita saber o que ocorre na ciência, para que uma cooperação mútua possa ocorrer”. A humildade diante da grandeza da vida é o primeiro passo para o diálogo. N SUZEL TUNES é jornalista em São Paulo (SP)
ponte para a ciência moderna O Mysterium de Kepler era a primeira versão concreta da Teoria Final, a suposta solução a priori da estrutura do universo. Mas era um cosmo criado pela mente humana. Mais do que uma teoria, era uma fé para seu idealizador. Mesmo após ter revolucionado a astronomia, provando que as órbitas dos astros eram elípticas e não circulares (como no Mysterium), ele continuou acreditando em seu modelo. O maior erro de Kepler foi ter acreditado que é possível construir uma Teoria Final. Acreditar que a ciência, num determinado momento, terá todas as respostas é dotá-la de um poder que não tem. Mas, como em Kepler, muitas descobertas importantes da ciência ocorreram durante a busca por objetivos que jamais foram alcançados.
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O valor da ética por Euler Renato Westphal
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ciência e a ética precisam andar juntas. Caso contrário, a ciência se transformará em ameaça à vida. Ao longo da história moderna, a ciência e a economia excluíram a ética porque poderia atrapalhar o desenvolvimento científico e econômico. Ambos não seriam regidos pela ética, mas pelas leis que o próprio mercado impõe: a oferta e a procura. Isso está sendo revisto, pois, para muitos cientistas, a sobrevivência do planeta depende do resgate da ética. Além disso, a ética precisa estar presente no dia a dia de cada pessoa, nas coisas mais simples, como: respeito, honestidade, consideração pelo espaço do outro. Assim como a vida dentro de nossas casas somente pode ser possível se existir respeito, o mesmo aplica-se a nossos relacionamentos em nossas casas maiores, que são o local de trabalho, a rua, o bairro, o município e o país. Caso contrário, a sociedade será autofágica e entrará num processo de autodestruição. No âmbito da política, nossos governantes refletem nossa ética, pois escolhemos cidadãos que são iguais
a nós. Por outro lado, é ético que o governante não se deixe corromper pelos desvarios do poder, pois assim ele está destruindo a sua “casa”. Em vez da casa se transformar em lar, ela passa a ser uma rede de intrigas e até de violência. A ética não é forjada por leis e ameaças, mas é expressão daquilo que alimentamos em nossos pensamentos e sentimentos. Assim, a pessoa respeita as leis de trânsito porque ela não pode agir diferente e não porque existe uma lei que a castiga. Esse é o indivíduo ético. Pois, se ele não for ético, quando não houver a ameaça, ele vai dirigir embriagado. O mesmo aplica-se ao dinheiro confiado às pessoas, quer no âmbito público ou privado. O agir ético nasce da convicção da consciência. Essa é a fonte para a ética. Do mesmo modo, a ciência precisa alimentar-se de convicções que garantam a vida. Na maioria das vezes, a ciência está determinada por interesses econômicos e não para ajudar a vida humana. Plantas e animais originários do Brasil foram patenteados, como o curare, a andiroba, a quebra-pedra, a jararaca, sapos e muitos outros ani-
mais e plantas. O cupuaçu, conhecida fruta da Amazônia, foi patenteado por uma empresa japonesa. O Brasil recorreu à Organização Mundial do Comércio e recuperou o direito de usar o cupuaçu. Esses seres vivos são patenteados como se fossem objetos inventados. Em 1993, uma organização nãogovernamental descobriu que os Estados Unidos estavam pedindo o patenteamento para um vírus – importante na produção de anticorpos que são úteis para as pesquisas da AIDS e da leucemia – que tinha sido descoberto a partir do código genético de uma índia Guaymi, 26 anos, do Panamá. Isso se fazia sem o conhecimento desse povo. No site do UOL, em 20 de março de 2005, Chico Araújo publicou um artigo em que dizia: “Quadrilhas internacionais de biopiratas (traficantes de recursos genéticos) vêm usando a internet para vender na Europa e nos Estados Unidos produtos retirados ilegalmente da Amazônia. Entre os itens comercializados estão essências de plantas medicinais, animais, insetos e até amostras de sangue”. As amostras de DNA de sangue são de indígenas das tribos Karitiana e Suruí de Rondônia. O caso está sendo investigado pela CPI da Bio pirataria, criada em 2009 na Câmara dos Deputados para investigar o contrabando de animais, o roubo de madeira e de recursos genéticos da
1920
Edwin POWELL Hubble (1889-1953) Até o ano de 1924, imaginava-se que a Via Láctea, a nossa galáxia, era todo o Universo existente. O astrônomo Edwin Powell Hubble mudou isso, ao protagonizar algumas das mais importantes descobertas da astronomia moderna. Em 1920, ele descobriu que nuvens luminosas distantes eram galáxias inteiras, semelhantes à Via Láctea. Em um ano de pesquisas, expandiu o Universo conhecido para bilhões de galáxias. Sua maior descoberta, em 1929, foi perceber que as galáxias se movem, concluindo que o universo não só tem outras galáxias como está em constante expansão, colocando a base da teoria do big bang.
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ponte para a ciência moderna Projetado e construído nos anos 1970 e 1980 e em funcionamento desde 1990, o Telescópio Espacial Hubble foi batizado em homenagem a Edwin Hubble. É o mais potente instrumento já apontado pela ciência na direção das estrelas, que deu uma nova visão do universo e um salto equivalente ao dado pela luneta de Galileu Galilei no século 17. O telescópio tornou-se uma ferramenta vital para a astronomia e enviou milhões de fotos à Terra em 20 anos no espaço. Vale a pena visitar seu arquivos, em http://hubblesite.org/.
CAPA Amazônia. A comissão apura também se há casos de venda de sangue de índios de outros estados da região, entre os quais o Acre. A empresa Myriad Genetics patenteou um tipo de gene causador de câncer de mama, que dizia que o gene seria invenção humana. Defendemos uma ética que assuma a responsabilidade pelas gerações no presente e no futuro. As abordagens sobre ética são favoráveis ao desenvolvimento tecnológico à medida que esse é acrescentado à experiência estrutural acumulada pela humanidade. A questão fundamental é ver a responsabilidade da geração presente sobre as gerações futuras. Responsabilidade significa solidariedade com as próximas gerações, ao considerar o impacto que as atividades científicas do presente têm sobre as gerações futuras. A dignidade da criação e do ser humano é vista sob a perspectiva da criação de Deus A dignidade do ser humano como imagem de Deus é uma confissão de fé que nos chama à responsabilidade como administradores dos bens da criação que nos são confiados. A partir da confissão de que Deus amou o universo na totalidade é que entendemos a obra de Jesus Cristo, que veio para resgatar a criação, incluindo os seres humanos (João 3.16; Romanos 8). N EULER RENATO WESTPHAL é teólogo; professor de Bioética da Medicina na Universidade da Região de Joinville (Univille), e de Sistemática na Faculdade Luterana de Teologia em São Bento do Sul (SC)
O que é mesmo real? por Valério G. Schaper
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sta é uma pergunta importante, mas rara. Em geral, confiamos que sabemos o que é real e que vivemos num mundo real. Na maioria das vezes, a pergunta surge apenas quando tal confiança básica é abalada por qualquer razão. Então a pergunta explode: Mas, então, o que é mesmo real? Em nossa sociedade, temos gente que se especializou em nos dizer o que é real. São os cientistas com suas ciências. Deram e têm dado uma importante contribuição. Devemos muito à ciência. Na verdade, devemos tanto que passamos a não questionar mais as explicações sobre o real que eles nos dão. Quem conta a história da ciência e do científico é o pensador e educador brasileiro Rubem Alves. Ele escreveu uma história – e também um livro – sobre a ciência. A seguir, apresento uma versão adaptada por mim dessa história de Rubem Alves:
1905
ALBERT EINSTEIN (1879-1955) O mais notável físico de todos os tempos iniciou suas pesquisas sobre as propriedades da luz aos 26 anos (1905), construindo a teoria da relatividade em quatro artigos, o último deles com a famosa fórmula E = mc2, com a relação entre massa e energia. A equação esteve na base de construção de bombas nucleares e serviu mais tarde para explicar como é que o big bang, uma explosão de energia, podia ter dado origem à matéria.
Uma pequena aldeia vivia às margens de um rio, cuja margem oposta não se enxergava. O rio era lindo e assustador. Os aldeões faziam canções e poemas e viviam espreitando o rio. Viam seres saltando e rapidamente sumindo nas águas. Viam o dorso de alguns seres e, de outros, somente as sombras. Muitos imaginavam que o rio era moradia de deuses. Por muitas gerações, tudo o que tinham eram suposições. Nunca haviam capturado nenhuma criatura das águas. Certo dia, um dos aldeões pensou algo ainda não pensado. Era um objeto para pegar os seres do rio. Tratava-se de um monte de buracos amarrados por barbantes: os buracos deixariam passar a água, e os barbantes pegariam os seres do rio. Ele chamou seu invento de “rede” e propôs que os seres capturados fossem chamados de “peixes”. Entre risos e curiosidade, o homem atravessou a aldeia rumo ao rio, armou a “rede” e foi dormir. No dia seguinte, para espanto da aldeia, ele puxou a “rede” e lá estava um grande “peixe” de cor prateada, enroscado nos barbantes. A maioria gostou da ideia, pois logo percebeu que o rio era povoado por seres que tinham muitas utilidades. A arte de fazer rede difundiu-se, e multiplicaram-se os tipos de redes. Assim, cada rede apanhava um tipo de peixe. E os peixes tinham vários usos: matavam a fome, curavam doenças, aplacavam a dor, fertilizavam os campos e serviam até para matar.
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1927
TEORIA DO BIG BANG Em 1927, o padre e cosmólogo belga Georges Lemaître (1894-1966) derivou independentemente as equações de Friedmann a partir das equações de campo de Einstein e propôs que os desvios espectrais observados em nebulosas se deviam à expansão do universo, que, por sua vez, seria o resultado da “explosão” de um “átomo primordial”. O big bang, ou grande explosão, também conhecido como modelo da grande explosão térmica, parte do princípio de Friedmann, em que, enquanto o Universo se expande, a radiação contida e a matéria esfriam. NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2010
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CAPA
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A arte de tecer redes e fazer novos inventos, como os anzóis (pescar um peixe de cada vez era bem mais específico), tornou esses inventores muito prestigiados e respeitados. Eles organizaram-se numa confraria. Para entrar nela, era preciso saber tecer redes ou fazer anzóis e apresentar um “peixe” pescado com eles. De tanto falar entre si e somente sobre redes, anzóis e peixes, foram criando uma linguagem própria e esquecendo a fala das pessoas da aldeia. Só eles se entendiam e começaram a pensar que apenas o que era apanhado em suas redes e anzóis e dito em sua linguagem era real. Mulheres, crianças, sonhadores, poetas, homens simples passaram a trazer coisas da floresta, como insetos, flores, frutos, pássaros para mostrar aos respeitados artesãos. Esses analisavam e perguntavam: Com que rede haviam apanhado aquilo? Eles eram taxativos: Se não foi apanhado no rio e com uma das técnicas de fazer rede ou anzol, não é real! Esses achados iam sendo desacreditados. Não é que as redes e anzóis dos artesãos não fossem bons. Eram excelentes! Apanhavam muita coisa. Entretanto, não apanhavam tudo. Além do rio, havia a floresta, o céu, os desertos, as montanhas; um mundo muito maior do que as redes e os anzóis podiam capturar. E o que fazer com o restante? O que fazer com os seres encantados que habitam as florestas, os céus e as montanhas? O que fazer com as emoções, os sentimentos que ocupam nossas cabeças? O que fazer com a força que nos move em direção ao bem e ao mal? É provável que o real seja muito complexo e, em grande medida, inexplicável em sua totalidade. Nem por isso deveria deixar de merecer nossa atenção, nosso respeito e, por que não, nossa reverência. N VALÉRIO G. SCHAPER é teólogo e professor de Teologia na Faculdades EST em São Leopoldo (RS)
Depende dos óculos por Vera Nunes
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á quem diga que ciência e religião jamais se entenderão, e existem aqueles que buscam conciliar a ideia de Deus com a teoria da evolução. A discussão vem de longe, as opiniões são divididas e até hoje não há vencedores ou vencidos nessa discussão. “Estamos conseguindo conviver”, acredita Attico Chassot, professor do Centro Universitário Metodista IPA em Porto Alegre (RS). Para ele, tudo depende dos “óculos” que se usam para enxergar o mundo. “Se a pessoa escolhe os ‘óculos’ da ciência, ela vê a mesma coisa de uma forma diversa daquela que escolheu os ‘óculos’ da religião. Se um souber respeitar o outro, acabou a discussão”, observa Chassot. Na sua avaliação, a conciliação, especialmente no mundo ocidental, é utópica. Mestre e doutor em Educação e pós-doutor em Ciências Humanas pela Universidade Complutense de Madrid, Chassot entende que ciência e religião têm diferenças históricas, que nunca serão mudadas. O grande rompimento entre ciência e religião, explica, aconteceu em 1543, quando Nicolau Copérnico propôs um novo modelo para o sistema solar, que contraria o modelo bíblico. Apesar de, aparentemente, essas revelações terem gerado a cisão entre os dois pontos de vista, a questão central de toda a discussão, na sua avaliação, quando o astrônomo Galileu Galilei foi julgado aparentemente por sua ratificação do heliocentrismo, está no fato de que Galileu ensinava, mais de um século antes do químico Antoine Lavoisier, “que uma substância só se transforma em outra substância se houver alteração de sua natureza”.
Décadas de 1960 e 1970
O UNIVERSO TEM HISTÓRIA Os cientistas descobriram que o Universo, tal como nós, também tem uma história de cerca de 14 bilhões de anos: “nasceu” e vem crescendo desde então, evoluindo de sua infância quente e densa até o que é hoje, uma vastidão vazia pontuada por bilhões de galáxias. Nessa história, a matéria ficou cada vez mais complexa. Tudo iniciou na “sopa” dos elementos básicos da matéria, que se combinaram e formaram estruturas cada vez mais organizadas: núcleos atômicos, átomos, moléculas, galáxias, estrelas, planetas, plantas, animais e pessoas. Para a cosmologia, o espaço não é rígido, mas elástico, capaz de esticar e encolher como se fosse um balão de borracha.
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1965
RADIAÇÃO CÓSMICA Quando Arno Penzias e Robert Wilson detectaram a radiação cósmica de fundo em 1965, a teoria do big bang obteve o suporte observacional de que precisava, passando a ser mais do que uma mera especulação de um físico teórico e de seus colaboradores Ralph Alpher e Robert Hermann.
Vera Nunes
ATTICO CHASSOT: Quem escolhe os óculos da ciência vê a mesma coisa de uma forma diversa daquele que escolheu os óculos da religião
“Isso fere frontalmente o dogma da transubstanciação, ou seja, quando o pão e o vinho se transformam em corpo e sangue de Cristo. Essa ‘leitura’ católica da Última Ceia é diferente – leia-se, mais fácil – no lut er an ismo, para o qual o pão e o vinho representam o corpo e o sangue de Cristo”, observa Chassot. Enquanto na religião se trata quase de um simulacro, na ciência simplesmente não existe a possibilidade de uma substância converter-se em outra, lembra ele. “Ou seja, esse é o ponto em que nunca vai haver um consenso, e é uma divergência muito séria e profunda”, adverte. 2010
CIÊNCIA E TEORIAS O físico Leonard Susskind revelou recentemente a ansiedade de muitos cientistas: “Nossas teorias cósmicas poderão estar erradas por milhares de anos. Profundamente erradas”. A verdade é que não existe uma resposta final “certa”, um fim do túnel. Há apenas uma sequência de descrições cada vez mais precisas do Universo. Cada geração descreverá o cosmo a seu modo, baseada no que pode medir e teorizar, muitas vezes contrariando radicalmente a visão de seus antecessores.
Para o professor da PUCRS Ro berto Pich, doutor em Filosofia pela Rheinische Friedrich Wilhelms Uni versität Bonn e pós-doutor pelo Alber tus-Magnus-Institut, também em Bonn, Alemanha, os confrontos entre ciência e teologia, quando existentes em âmbitos acadêmicos ou formadores de opinião, têm de pressupor que a comparação entre as ciências naturais e a teologia traz consigo a seguinte distinção: o procedimento científico de obtenção de verdades e a construção de teorias têm, na base, respaldo empírico e indutivo. Pich acredita num possível entendimento entre ambas. De fato, é
preciso hoje reconhecer uma tensão erguida por alguns teóricos da ciência entre um entendimento do naturalismo como visão de mundo e a visão de mundo “religiosa” (só indiretamente “teológica”). “Sob a motivação do sucesso explicativo das ciências da natureza, por exemplo, da biologia evolucionária, defende-se que só o que é ‘natural’ ou experienciável – eventualmente, o mundo material – é o que existe e é o domínio no qual, sobretudo através da ciência, crenças com justificação racional são geradas. Como resultado, sugere-se que, como um dever racional, o supranaturalis mo precisa ser abandonado”, afirma. Em sua opinião, a recíproca de mútua exclusão não é, contudo, verdadeira. “A teologia cristã não propõe uma visão de mundo fideísta e sem esclarecimento, mas se constrói sobre a convicção de que o sentido último da realidade só pode ser conhecido através da revelação de Deus. Independentemente disso, é improvável que se possa adotar, de maneira cogente, um naturalismo excludente. A ciência não responde por fatos últimos sobre as leis mais gerais do universo; pode apenas constatar essas leis. Para muitos teístas, racionalmente a explicação das leis mais básicas do universo e de sua ‘sintonia fina’ tem de se dar na forma de uma explicação pessoal a partir de uma causa intencional e infinita”, conclui Pich. N VERA NUNES é jornalista em Porto Alegre (RS)
Cosmologia no futuro
MARCELO GLEISER “Sem dúvida, cosmólogos do futuro verão nossas teorias atuais com o mesmo senso de curiosidade histórica com que vemos o cosmo geocêntrico da época de Cabral. Espero que não se achem muito superiores a nós, apenas mais bem equipados com instrumentos e teorias. Se forem sábios, serão gratos pelos nossos esforços, mesmo que os julguem ingênuos e limitados. A esta altura, deveríamos já ter aprendido que é inútil nos prendermos à nossa descrição atual do Universo. Não há dúvida de que ela irá mudar. O estudo da física fundamental continuará a ser altamente instigante sem que exista um Graal.” (Rodapés: Informações do livro “Criação Imperfeita”, do brasileiro Marcelo Gleiser, professor de Filosofia Natural, Física e Astronomia da Universidade de Dartmouth-EUA. Pesquisa: Clovis Horst Lindner.)
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REFLEXÃO
O milagre do arrependimento “Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.”
Mateus 3.2
por Guilherme Lieven
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Martin Boulanger
sta palavra bíblica vem do discurso de João Batista, que anuncia a chegada de um novo tempo, do reino dos céus, da presença de Deus no mundo. Pelo ritual do arrependimento propõe a preparação para viver essa novidade,
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um recomeço de vida em comunhão com Deus. Os relatos bíblicos indicam que a chegada da nova aliança de Deus ao mundo, realizada em Jesus Cristo, gerou as primeiras comunidades cristãs, que, com o tempo, agregaram à sua vivência de fé rituais de recomeço. Exemplos disso são o Batismo, a confissão de pecados acompanhada do anúncio da graça, a imposição de mãos e outros elementos mais tarde incorporados ao calendário das igrejas cristãs. A proposta bíblica de arrependimento e recomeço é como um milagre. Afinal, escapa ao controle da razão e remete a uma ação de fé, que se concretiza na realidade existencial da pessoa humana. Tem a força de um
processo que leva ao rompimento e consequente adoção de uma novidade, novidade de vida. O recomeço proposto por João Batista não é um truque ou um rit ual sem sentido. Não tem semelhança com a repetição da segundafeira, do dia 1º do mês ou de cada novo ano, criando a impressão de que a vida é cíclica, que recomeça sem a opção e o envolvimento da pessoa humana. O arrependimento conjugado com o recomeço acontece quando a pessoa humana interage com Deus pela fé e busca, ou aceita, a novidade de vida, o nascer de novo, dádivas do reino dos céus, da ação salvífica de Jesus. Não podemos confundir o recomeço antecipado pelo arrependimento com uma visão cíclica dos fatos e dos tempos, equiparada a uma retomada do passado ou a um retorno. A igreja e suas comunidades propõem, através de seu calendário eclesiástico, envolver cada pessoa no movimento de arrependimento e recomeço. Oferece celebrações e rituais que acompanham um processo coti-
diano de renascimento, o encerramento de uma etapa e o reinício de outra. No mês de novembro, por exemplo, confronta as pessoas com a escatologia, com o final dessa história e com a esperança na plenitude do reino que nasceu no mundo em Jesus Cristo. Em dezembro, apresenta a proposta de preparação para o novo, qual seja, festejar a chegada de Deus ao mundo no Natal. Para tanto, designa os quatro domingos antes do Natal, denominados de Advento, como tempo de preparação, também de arrependimento, para viver um novo recomeço com o Deus que nasceu no mundo. No Natal, as pessoas são confrontadas e agraciadas com uma grande mudança, a fantástica revelação de Deus. E elas podem, pela fé, interagir com ela. Deus descobre o jeito definitivo e universal de tocar o mundo e as pessoas através de um menino
humilde e da mensagem do amor incondicional. Deus nasce, e o mundo inteiro começa de novo. Este é o milagre. Perceber a chegada do reino dos céus no mundo e arrepender-se de todos os projetos e ações que matam. Comprometer-se com o Natal da vida, que inclui a renovação, a limpeza, a regeneração – o recomeço. Esse fenômeno, de forma similar, faz parte do dia a dia de milhares de pessoas, que experimentam os pequenos milagres do recomeço: novo emprego, saída do hospital após longos dias de internação, retorno à realidade após a prisão, divórcio, novo endereço, nascimento de uma neta ou neto, perda de um ente querido, rompimentos, retorno das férias e tantos outros. Com essa reflexão dou testemunho da necessidade e da eficácia
do arrependimento que leva ao recomeço. É certo que podemos encontrar nesse processo a superação de conflitos, perdas, dores e sofrimentos, participar da construção de espaços onde habitam a justiça, a paz, o amor, a solidariedade, sinais do reino dos céus que estão presentes. E revelam a comunhão com o Deus da graça, que, invariavelmente, conduz à liberdade e prepara as pessoas para agir com criatividade no movimento sagrado que recria a vida e a paz. O chamado e o anúncio de João são como fontes de água viva, que refrescam, acalmam e animam. Tal como uma cama, depois de um dia e uma noite sem parar. N
GUILHERME LIEVEN é teólogo e pastor sinodal do Sínodo Sudeste da IECLB em São Paulo (SP)
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Celebrar Natal, compromisso com o Reino por Lola (Louraini Christmann)
Quem celebra o Natal Celebra um compromisso com o Reino. Não o compromisso com o seu reino De banquetes e enfeites... É o compromisso com todo pai Que não tem onde buscar Abrigo e segurança Para a sua criança. É o compromisso com toda mãe Que não tem onde repousar Com dignidade Ao dar à luz. É o compromisso com toda criança Que nasce em uma estrebaria (Enfermaria hoje? Barraco?) Sem esperança de vida digna. É o compromisso Com todo um povo Que em Jesus Celebra uma reviravolta: Volta a ser novo O que já era... Volta a ser puro O que já era puro palavreado só Puro alienado festejo só. Quem celebra o Natal Celebra um compromisso Com o Reino de Deus só (E é tanto! E é tudo quanto precisa Este mundo que tanto precisa!)
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CONTO
O diferente – Paiê, lê uma história pra mim? – Claro, filha. Qual história você quer ouvir hoje? – Aquela do patinho. É tão fofo! – Então está bem. Vamos lá. por Brunilde Arendt Tornquist
À
medida que eu lia a história para minha filha, eu me identificava com o personagem principal. A história do Patinho Feio era a minha história. Durante boa parte da minha vida, eu me senti o próprio patinho feio. Se vocês ainda se lembram, o patinho não era feio... apenas destoava do ambiente, porque era um cisne. Eu era bem pequeno ainda quando me dei conta de que eu era diferente. Meu pai, minha mãe e meus irmãos eram todos negros, e eu era branco. Minha pele era clara e meu cabelo, castanho e liso. Eu costumava perguntar à minha mãe: – Por que eu não sou como vocês? – Porque você é como é, ela respondia. E eu insistia: – Por que eu sou branco? Vocês me adotaram? Eu não sou filho de verdade? – Não, você não é adotado. É meu filho, e eu o amo assim como você é. – Meus irmãos dizem que eu nasci de uma galinha branca. – Brincadeira deles. – Mas eu queria ser igual a vocês. Todo mundo fica me olhando, cochichando... – Não se incomode com isso. Você é meu filho, e pronto. Deus fez você assim e mandou para mim. Há coisas nesta vida que não têm explicação. – Mas por que meus irmãos dizem que o pai nos abandonou por minha causa? O que eu fiz para ele? – Você não fez nada. Não dê bola para as bobagens de seus irmãos. – Mãe, a senhora me acha um menino bonito? – Você é lindo, meu filho. Agora vai brincar.
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olhar com poesia
tou também, com lágrimas nos olhos, que havia uma família branca com um menino negro na história. Vocês conhecem a sensação que dá quando a garganta se fecha e dá aquele aperto no peito? Eu pensei: assim como eu, um menino negro também se sentia um patinho feio numa família branca. Na minha formatura, além de meus irmãos negros, compareceram meus irmãos brancos, minha mãe branca e minha mãe negra, meu pai branco e meu pai negro. Não houve devolução dos filhos trocados; não houve separação, mas união. Nós formamos uma só família, unidos pelo vínculo do amor. Patos e cisnes são igualmente belos e vivem muito bem juntos.
Passavam-se alguns dias, e eu perguntava tudo de novo. As respostas eram sempre as mesmas. Até que cansei de perguntar. Mesmo que nenhuma resposta tenha me convencido. Minha mãe era amorosa com todos os filhos e nunca fez diferença entre eles. Mas meus irmãos não perdiam uma oportunidade de me zoar. “Branquelo”, “ET”, “Galego” foram alguns dos apelidos na infância. E havia uma certa rejeição. Também pudera, foi por minha causa que o pai tinha abandonado a família. Descobri mais tarde que ele não suportou a dúvida, que ele achava que minha mãe o havia traído com outro homem. E eu era o suposto fruto dessa traição. Na vila em que morávamos, todos se conheciam. Pelas minhas costas,
as pessoas tentavam adivinhar com quem eu me parecia. Procuravam saber quem era meu pai “branco”. Na escola, eu era motivo de piadas. Assim que pude, consegui uma bolsa de estudos e fui estudar num colégio que também oferecia internato. Ali, eu era simplesmente eu. Criava-se um certo constrangimento só quando minha mãe e meus irmãos me visitavam. Era como se uma grande interrogação pairasse no colégio naquele dia. Mas ficava nisso. Certo dia, minha mãe foi me visitar sozinha. Eu estranhei, e com razão. Ela me contou que houve uma troca de bebês no hospital na época do meu nascimento e que a justiça pediu um teste de DNA de todas as crianças nascidas naquele período e de seus respectivos pais e mães. E con-
– Pai, como é linda essa história do patinho. Lê de novo? – Amanhã, pode ser? – Pode. Eu queria um patinho de estimação. Você compra pra mim? – Vamos conversar sobre isso com a mãe primeiro. Agora é hora de dormir. Deus te abençoe, filha. Durma bem. N BRUNILDE ARENDT TORNQUIST é teóloga e assistente editorial em São Leopoldo (RS)
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Um homem de Deus por Nelson Kilpp
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xiste um profeta no Antigo Testamento que, com frequência, é chamado de “homem de Deus”. Trata-se de Eliseu (“Deus ajuda”). Certamente o povo via em suas ações a manifestação da vontade de Deus. Isso se mostra nos relatos que o povo contava sobre Eliseu (especialmente em 2 Reis 4-8): eles procuram enaltecer sua figura, atribuindo-lhe diversas curas e milagres. Eliseu foi vocacionado enquanto lavrava o campo com uma junta de bois. Antes de seguir seu mestre – Elias –, “tomou a junta de bois e os imolou e, com os aparelhos dos bois, cozeu as carnes e as deu ao povo e comeram” (1 Reis 19.21). Ao matar os bois e queimar a madeira do arado para fazer uma refeição para seus familiares, Eliseu marca o fim de uma vida estável para seguir sua vocação. Como líder espiritual de um grupo de profetas, seus discípulos, restava confiar no auxílio divino. Esse homem de Deus identificavase com o povo simples. As narrativas bíblicas contam como ele se ocupava com as necessidades básicas do povo:
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Ilustração João Soares
RETRATOS
ele torna saudáveis as águas da fonte de Jericó, garantindo as colheitas e a sobrevivência do povo (2 Reis 2.19-22); aumenta o azeite de uma viúva pobre, evitando que seus filhos fossem vendidos como escravos para pagar as dívidas; restitui a vida do único filho de um casal (2 Reis 4); recupera o machado que um discípulo – por ser pobre – havia pedido por empréstimo e que caíra no rio Jordão, garantindo, assim, o seu ganha-pão (2 Reis 6.1-7); ou neutraliza as toxinas que se encontram nas colocíntidas, que, por descuido, vieram parar no sopão comunitário (2 Reis 4.38-41). Eliseu também defende diante do rei a devolução de uma propriedade que esse havia tomado de sua legítima proprietária (2 Reis 8.1-6). Todas essas histórias mostram como Eliseu se engaja pelos direitos elementares do povo: alimentação sadia, água pura, liberdade, possibilidade de trabalho, justiça e vida. Para proporcionar vida a todos, Eliseu sabia que o segredo era partilhar o pouco que se tem. Quando alguém lhe trouxe vinte pães de cevada
e alguns grãos tostados do cereal, ele mandou distribuí-los entre o povo, umas cem pessoas, “porque assim diz o Senhor: Comerão e sobrará” (2 Reis 4.43s). Apesar de ter angariado fama, sempre fora uma pessoa simples e não se deixou levar pela ambição da riqueza. Não aceitou, por exemplo, os ricos presentes de um alto funcionário estrangeiro que havia curado da lepra (2 Reis 5). Esse homem de Deus também propõe uma nova política internacional, como mostra a história de 2 Reis 6.8-23. Numa época de conflitos armados com os vizinhos de Israel, os arameus ou sírios, Eliseu sempre previa onde os sírios estavam emboscados e avisava os israelitas para evitar o confronto. Quando descobriram isso, os sírios tentaram prendê-lo, mas não conseguiram porque, conforme o texto, a tropa que buscava o profeta foi ferida de cegueira (6.18) e levada pelo próprio homem de Deus à capital de Israel. Então seus olhos se abriram e viram que eram prisioneiros do rei inimigo. Esse quer matar os inimigos, mas Eliseu tem outra proposta: “Não os ferirás … Manda colocar diante deles pão e água para que comam e bebam e voltem a seu senhor”. E assim se fez. A história diz que os soldados sírios comeram, beberam e voltaram para casa e conclui assim: “Da parte da Síria não houve mais investidas contra a terra de Israel”. O respeito com os prisioneiros de guerra teve o efeito desejado: voltou a reinar paz entre os povos. A narrativa mostra que quem está profundamente preocupado com as necessidades básicas do povo também pode contribuir para resolver de modo pacífico um conflito internacional. N NELSON KILPP é especialista em Antigo Testamento, obreiro da IECLB residindo em Kassel, na Alemanha
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CONTO NATALINO
Natal dos sonhos por Alda Menine – Tia, e a minha mãe? Essa era a pergunta recorrente que eu mais ouvia sempre que encontrava uma criança ou um adolescente na entidade de acolhimento em Porto Alegre na qual fui diretora. Lá conheci Rafael, um adolescente de catorze anos. Encontrava-se ali desde os quatro aninhos. Segundo informações de sua história de vida, ingressara na entidade por denúncia de abuso sexual pelo padrasto. Vivia com um casal que “pegou” o menino “pra criar”. Havia sido entregue pelo pai, que morava no interior do estado, a essa família, na ocasião com dois anos de idade. Rafael não gostava de festas; em especial detestava o Natal. Sua queixa de que não tinha família
que o visitasse ou com a qual pudesse passar a noite festiva procedia; nessa data, permanecia na entidade, sem visitas ou saídas. Para mim, a busca da família de Rafael constituía uma ação prioritária, porém essa demanda possuía um viés complicador. Os familiares de Rafael residiam no município de Três Passos (RS), distante quase quinhentos quilômetros de Porto Alegre. Os contatos com aquela cidade eram desanimadores. As diligências davam conta do falecimento dos genitores de Rafael. Para nós, restava a pesquisa in loco, em relação à família extensa. Em reunião da equipe técnica, a assistente social e eu priorizamos o caso de Rafael. Tomamos a iniciativa
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de requerer uma verba especial à Secretaria de Estado para ir até aquela cidade buscar notícias da família, levando conosco o próprio interessado. Viajamos juntamente com um “guri” que, por sentir-se protagonista de sua vida e história, mostrava-se muito animado, falando sem parar. No ônibus, o cansaço nos venceu. De tempo em tempo, Rafael tocava em meu ombro, repetindo a pergunta: – Falta muito tempo para chegar? Depois de quase oito horas, chegamos a Três Passos, fronteira com a Argentina. O “guri” não se continha de felicidade, as palavras saíam de sua boca aos borbotões. Tomamos um táxi e fomos levados a um hotel. A pequena cidade mostrou-se acolhedora e simpática. Durante o percurso até o hotel, Rafael e o taxista entabularam uma longa conversa. Rafael contou por que estávamos ali, relatando todos os detalhes conhecidos por ele sobre a família que buscava encontrar. Sensibilizado, o motorista falou: – Vou ajudar a encontrar tua família. No hotel, entramos em contato com o Conselho Tutelar da cidade. No dia seguinte, muito cedo, recebemos uma visita. Era o taxista que trazia informações importantes sobre a família de Rafael. Muito animados, fomos à procura dos endereços garimpados pelo taxista, acompanhados de dois conselheiros. Saindo da cidade, adentramos na zona rural, caracterizada por atividade agrícola minifundiária, com muitas fazendolas ao longo da estrada. Perscrutamos várias residências. Cada uma delas aproximava-nos mais do desfecho. Finalmente, aproximamo-nos de uma casa cujas informações eram coincidentes. A família recebeu-nos bem. Os presentes ouviram a histó-
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ria, narrada com a contribuição do adolescente. Após ouvir-nos, a dona da casa sinalizou que desejava falar reservadamente comigo e a assistente social. No pátio da casa, narrou-nos a versão da história. As duas pessoas que constavam como pais de Rafael eram, na verdade, seus avós. Rafael era filho de sua irmã mais nova. A gravidez da irmã havia ocorrido em decorrência de abuso e por isso foi escondida por seus pais, que, envergonhados, registraram o neto como seu filho. Foram eles que entregaram Rafael ao casal com o qual o menino morava. A mulher ainda informou que sua mãe vivia em Canoas, morando com outra irmã. Rafael era só felicidade. Finalmente deixara de ser aquele sem família, como se sentira até então. – Eu tenho uma família! – repetia a toda hora. No outro dia, voltamos a Porto Alegre, e o mesmo taxista nos levou à rodoviária. De volta, acompanhamos o adolescente na primeira visita a sua mãe, tia e primos. A casa era espaçosa, e a tia apressou-se a destinar um quarto para recebê-lo. Tudo estava dando certo, prenunciando um novo e diferente período na vida do menino. Era início de dezembro, e todos trabalhavam para apressar o desligamento de Rafael da instituição. Aquele Natal foi finalmente festejado como era seu desejo: junto à sua família. Preservou-se o direito – o direito à convivência familiar e comunitária, na perspectiva dos direitos humanos fundamentais. A enorme transformação na vida do adolescente e de sua família faria com que os natais passados sozinho na entidade de acolhimento fossem esquecidos. N ALDA MENINE é advogada e integra a equipe do Proame em São Leopoldo (RS)
Bíblia na era digital Lançamento DA BÍBLIA digital GLOW pela Sociedade Bíblica do Brasil revoluciona pesquisa bíblica e estudo dos textos sagrados. por Luciana Garbelini
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ma plateia atenta e entusiasmada pode conferir em primeira mão a mais nova e promissora evolução das Sagradas Escrituras: a Bíblia Digital Glow. Resultado de uma parceria entre a Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) e a Immersion Digital, o produto foi lançado em setembro último no Hotel Golden Tulip Paulista Plaza, em São Paulo, num concorrido evento que reuniu cerca de 200 pes soas. A principal atração da cerimônia ficou por conta da palestra “A Bíblia na era digital”, proferida por Nelson Saba, idealizador da Glow e diretor executivo da Immersion Digital. Produto inovador e interativo, a Bíblia Digital Glow traz para a tela do computador todo o universo do Livro Sagrado com apenas dois cliques no
e quadros da Bíblia da Família e Dicionário da Bíblia de Almeida”, relatou Paulo Teixeira, secretário de Tradução e Publicações da SBB na introdução. Ao levar a Bíblia para a plataforma digital, a expectativa de seus criadores é alcançar uma geração que não tem mais o papel como mídia predominante. “Para a SBB, a Glow é um projeto motivador, porque vem ao encontro de nossa missão de proporcionar a todas as pessoas o acesso às Sagradas Escrituras”, destacou o diretor executivo da entidade, Rudi Zimmer. Graças à tecnologia de ponta, a Glow possibilita fazer passeios virtuais, como visitar a Jerusalém dos tempos de Cristo e hoje e explorar, por exemplo, a Capela Sistina ou o Tab ern ác ulo. Em uma seção de conteúdo pessoal, é possível personalizar um plano de leitura bíblica,
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mouse. “A Glow oferece a experiência de explorar e aprender de forma única e completa o mundo bíblico, graças a um conteúdo extremamente rico e envolvente”, afirmou Nelson Saba, cuja apresentação suscitou a admiração dos convidados. No total, são 546 passeios virtuais em 360 graus, 2.370 fotos em alta resolução, 711 obras de arte, 3 horas e 30 minutos de vídeo em alta definição e mais de 140 mapas. Além desse material, a obra traz ainda o texto bíblico nas traduções de Almeida Revista e Atualizada (RA), Almeida Revista e Corrigida (RC), Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH) e Tradução Brasileira. “São todas traduções da SBB e as preferidas pelos cristãos brasileiros. Completam o conteúdo notas e introduções aos livros das Bíblias de Estudo Almeida e NTLH, artigos
CRIADOR: Nelson Saba idealizou a plataforma
adicionar notas e marcadores de sua própria autoria. Plataforma multimídia, a Bíblia Digital Glow oferece uma navegação simples e intuitiva. Pelo mouse ou pelo toque – no caso de aparelhos móveis com tela touch screen – é possível percorrer facilmente todo o conteúdo bíblico. Em formato DVD-ROM, re-
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Pela dignidade do negro brasileiro
quer computadores com processador Dual Core, placa de vídeo, 256 MB (ou superior), conexão à internet, memória RAM mínima de 2 GB e espaço livre de 18 GB no disco rígido. Uma versão simplificada também está sendo preparada para aparelhos móveis portáteis, como iPads (computador de mão), e celulares móveis tipo iPhone e Smartphones. Lançada pela Immersion Digital nos Estados Unidos em outubro de 2009, o produto já conquistou, desde então, cerca de 50 mil usuários e o prêmio de Bíblia do Ano do Christian Book Award 2010. Além da edição em português, a Bíblia Glow também será lançada em breve em espanhol, mandarim e coreano. A versão em inglês já alcançou mais de 100 países, entre eles Canadá, Reino Unido, Austrália e África do Sul. N
por Selenir C. G. Kronbauer
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LUCIANA GARBELINI é jornalista e assessora de imprensa da Sociedade Bíblica do Brasil em Barueri (SP)
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PAULO TEIXEIRA: Traduções da SBB, introduções aos livros, artigos e dicionário bíblico
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alar do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, remete-nos a pensar em quilombos, Zumbi dos Palmares, lutas e resistência associada à luta contra a opressão e a libertação dos escravos. Até hoje, há questionamentos se realmente houve libertação dos negros escravos no Brasil ou, como escreveu o sociólogo Florestan Fern and es, se o que houve foi uma condução ao genocídio do negro brasileiro. Para Fernandes, “a abolição, por si mesma, não pôs fim, mas agravou o genocídio”. Rememorar as reflexões de Flo restan Fernandes instiga uma análise histórica da luta do negro brasileiro na busca por sua valorização e dignidade. Para Fernandes, o negro entrou na corrente histórica e interrogava-se por que o imigrante tivera êxito e a massa negra continuava relegada a uma condição inferior e iníqua. O movimento de integração dos negros na sociedade brasileira foi adquirindo cada vez maior importância a partir da década de 1930 com a Frente Negra Brasileira. Havia, naquele momento, uma preocupação com a formação e a educação dos negros num período em que o país passava por mudanças.
Até a década de 1950, o trabalho e as investidas dos movimentos e associações enfatizavam a educação como objetivo principal, na expectativa de ascensão do cidadão afro-brasileiro e inclusão do mesmo no mercado de trabalho. Apesar desse esforço, ainda hoje vivenciamos a desigualdade de oportunidades mesmo para aqueles afrodescendentes com formação acadêmica. A partir da década de 1980, não apenas o movimento negro, mas outros movimentos sociais começaram a reorganizar o cenário político mundial sobre a questão racial, em especial no Brasil. A década de 1990 foi marcada por um período de reestruturação na educação brasileira com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/96). A virada do século trouxe alguns avanços e novos desafios para a sociedade brasileira. Em 2003, a própria LDB 9394/96 passou a vigorar acrescida dos artigos 26a e 79b depois da aprovação da Lei 10.639/2003, que veio com a finalidade de tornar obrigatória a inclusão dos estudos sobre a História da África, a História e a Cultura Afro-brasileira nas disciplinas do currículo e instituiu o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.
Reprodução Novolhar
20 de novembro tem um significado incomparável para a comunidade negra brasileira, dada a importância da figura de Zumbi, no que se refere ao movimento de luta e resistência contra a opressão. Tendo Zumbi como referência, vários movimentos articularam-se ao longo das últimas décadas com o intuito de valorizar a cultura africana e afro-brasileira, ressignificando, assim, a participação dos africanos e sua influência no desenvolvimento de nosso país. Os desafios continuam para os grupos de movimento em prol da dignidade e dos direitos humanos e para a sociedade. Há necessidade da busca pela verdadeira integração entre esses segmentos, pois não basta que um ou outro grupo se articule em locais específicos, mas se fazem necessárias a articulação entre as entidades e a retomada da unidade em prol dos mesmos objetivos, que são a inclusão e o direito à cidadania. N SELENIR C. G. KRONBAUER é mestre em Teologia, professora e coordenadora do Grupo Identidade da Faculdades EST em São Leopoldo (RS)
“O Mulato”: Obra de Cândido Portinari (1903-1962)
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CINEMA
por Carlos A. Valle
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a Dolce Vita é uma relíquia do passado? Ou é uma imagem de um mundo que persiste ainda hoje? De cara se torna um filme polêmico e controverso, que produz sedução, mas também repúdio. Estreando em 1960, recebe imediatamente a condenação do Vaticano através de uma série de artigos no L’Osservatore Romano. Enquanto isso, naquele mesmo ano, recebe a Palma de Ouro no Festival de Cannes. “La Dolce Vita” pinta uma Roma que, dinamizada pelo forte crescimento econômico, reflete uma sociedade que já não repara mais na miséria e na dor da guerra, mas mostra sinais crescentes de um pós-modernismo no qual voltam a aflorar as velhas e descarnadas divisões sociais. “La Dolce Vita” abre com uma cena chamativa. Estão transportando num helicóptero, para o Vaticano, a imagem de um Cristo de braços abertos; em outro, o jornalista Marcello e um fotógrafo vão registrando o fato. o religioso – O Cristo vai passeando por históricas ruínas romanas, sobrevoa os novos e enormes mono blocos, as crianças brincando nas ruas, e aproxima-se do Vaticano. Esse Cristo que sobrevoa a cidade poderia ser visto como o manto de um cristianismo que envolve e cobre a cidade, mas também como um sinal de um Cristo distante de um mundo no qual não há lugar.
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A presença do religioso se repete. Na cena do falso milagre, da aparição da Virgem, joga-se com a ingênua e, em momentos, brutal reação das pessoas diante do suposto milagre. Mas principalmente o cenário está exacerbado pela presença de um jornalista que não se detém em nada para conseguir a tomada de um milagre inexistente. Sua saciedade para atrair público, e público exaltado, não tem limites. O sacerdote que olha a cena lamenta o acontecido, porque para ele o milagre não pode acontecer na agitação, mas sim na intimidade. O encontro de Marcello com Steiner é o coração do filme. Steiner é um intelectual que vive em seu mundo peculiar, rodeado por outros intelectuais apegados à cultura oriental, transbordando em elogios à liberdade sem compromissos e sem filhos. Marcello visita esse círculo e mostra sua admiração por Steiner, e Steiner estimula-o para que realize seu sonho de ser escritor. o medo do futuro – Steiner parece ter uma família perfeita, mas há algo que o angustia – a vida miserável que a sociedade reclama – e não esconde seu medo do futuro fim do mundo. Assim toma uma decisão drástica: mata seus dois filhos e comete suicídio. Para ele, a paixão pela vida entrou num ca-
Fotos Divulgação Novolhar
Meio século de “La Dolce Vita” minho sem volta. Fellini, diretor de “La Dolce Vita”, está muito distante do que hoje se poderia dizer sobre a precária estabilidade de um mundo nuclearizado e com enormes poderes incontroláveis? A centelha de esperança na vida de Marcello esvai-se com a trágica morte de Steiner, e por isso ele se entrega ao turbilhão do ruído e do nada. Nos últimos instantes do filme, vemo-lo, depois de uma festa agitada, dirigir-se na madrugada, como um folião, em direção à beira-mar. o anjo – De longe alguém procura falar com Marcello. É Paola, a jovem com a qual, por um momento, ele se encontrou num pequeno restaurante da praia. Não é de Roma. Ela vem de um pequeno povoado do qual sente saudade. Marcello diz-lhe com absoluta candura que ela é bela e que se parece com o anjo da igreja de Umbria. Marcello não a esqueceu, mas não consegue escutar sua voz. Faz um gesto de “não estou escutando” e vai embora com seu grupo. A câmara pousa no olhar límpido e sorridente da jovem, que o vê se distanciar, um olhar em busca de calor humano que se volta sobre o espectador.
FICHA: “La Dolce Vita” é um filme franco-italiano de 1960, do gênero drama, dirigido pelo cineasta Federico Fellini. O filme passa-se em Roma e conta a história de Marcello Rubini (Marcello Mastroianni), um jornalista especializado em histórias sensacionalistas. Sylvia Rank (Anita Ekberg) é a atriz de Hollywood com a qual Marcello passeia por Roma, culminando na famosa sequência da Fontana di Trevi (Ao lado, com Sylvia, e abaixo).
É possível fazer uma leitura de todo o filme a partir do tema da falta de comunicação. Das reiteradas barreiras criadas pelas personagens para abrir-se aos demais. Marcello com as mulheres, o encontro ocasional com seu pai, a quem parece quase não conhecer. A busca de máscaras para atuar em cada ocasião e o vazio de não ter podido conhecer a verdade de Steiner e de Steiner compartilhar sua angústia. Esse final de uma tentativa frustrada de não poder aceitar o chamado desse anjo que parecera pref igurar um caminho diferente. Uma nota de ilusão em meio a tanta inquietação social? Passaram-se 50 anos. As técnicas narrativas e os recursos técnicos mudaram, mas não poderíamos deixar de reconhecer que “La Dolce Vita” é uma pintura dolorosa, amarga, mas real de um mundo que cada vez mais tem feito do hedonismo e do sem-sentido da vida um motor para o egoísmo das pessoas e dos povos. O crítico Robert Richardson chamou isso de um “constrangedor sentido de disparidade entre o que a vida tem sido ou deveria ser e o que na realidade é”. N CARLOS A. VALLE foi secretário-geral da Associação Mundial para a Comunicação Cristã, ex-presidente da INTERFILM, organização evangélica de cinema. Atualmente, reside em Buenos Aires, Argentina
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IGREJA E ESTADO
MULTIDÃO em manifestação contra as medidas antidemocráticas da ditadura (1964-1985)
Manifesto de Curitiba: Ousadia luterana no Brasil a mais ousada manifestação da ieclb no período da ditadura, votada em concílio e apresentada em audiência ao presidente garrastazu médici, completa 40 anos. por Clovis Horst Lindner
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apreensão tomou conta dos pastores luteranos Karl Gottschald, Augusto Kunert e Ernesto Schlieper quando a porta da sala da Presidência da República abriu-se para eles na ma-
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nhã do dia 6 de novembro de 1970 em Brasília. O presidente Emílio Garrastazu Médici recebeu cordialmente o pastor Gottschald – então o presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) –, o pastor
Kunert – na época o pastor regional da Região Eclesiástica 4 da IECLB – e o pastor Schlieper, jovem pároco da comunidade luterana de Brasília. Uma missão delicada havia levado os três àquele encontro. Munidos de coragem, que parecia abandoná-los, e de muito amor ao evangelho, foram levados àquela audiência para entregar um texto ao governo brasileiro. O documento agora completa 40 anos e entrou para a história como o “Manifesto de Curitiba”. Aprovado pelos conciliares do VII Concílio Geral da IECLB na plenária do dia 24 de outubro de 1970, em Curitiba (PR), o manifesto alçava a igreja luterana ao seleto grupo das instituições nãoconiventes com a ditadura instalada no Brasil em 1964 e com a tortura e o desprezo aos direitos humanos. Nas entrelinhas, o manifesto também era uma reação tardia à frustração pela qual a IECLB havia passado poucos meses antes naquele mesmo ano. Por causa da situação política no Brasil, a Federação Luterana Mundial (FLM) havia cancelado a realização de sua assembleia mundial em Porto Alegre, marcada para os dias 14 a 24 de julho de 1970. Dois meses antes do grande encontro, apesar de estar tudo pronto, os parceiros luteranos europeus alegaram “falta de segurança” para realizar o evento no Brasil, transferindo-o para Evian, na França. Em meio à indignação com a falta de parceria, uma questão começou a inquietar os luteranos brasileiros: Se isso realmente era assim e atemorizava até os europeus, a IECLB não podia continuar calada diante do que a ditadura fazia no país. Mas não se espere um documento contundente, que vai direto ao ponto. Antes, é um texto bastante cuidadoso, que hoje facilmente seria classificado como morno. “O texto
minadas”. Entusiasmou-se ao ouvir: “A pátria será honrada e amada; seus símbolos serão respeitados e usados com orgulho cívico, no sentido mais legítimo, mas o cristão não poderá falar da pátria em categorias divini zadoras”. Mas o semblante do generalpresidente foi se fechando quando o manifesto passou a discorrer sobre os direitos humanos. O texto fala de “notícias alarmantes sobre práticas desumanas que estariam ocorrendo
Clovis Lindner
era irênico”, defende hoje o Dr. Lindolfo Weingärtner, fazendo uso do termo grego eirene, que significa paz. “Mas não apaziguador, no sentido de condescendente, e sim no jeito que os cristãos têm de falar entre si sobre questões difíceis”, esclarece. Na época, Weingärtner era o reitor da Faculdade de Teologia em São Leopoldo e coordenador da Comissão Teológica da IECLB. “Elaborei um texto-base, que discutimos na comissão e oferecemos à direção da igreja para publicação ou encaminhamento de alguma maneira”, relembra. A direção da IECLB levou o texto ao Concílio, dando início ao processo que terminou no Gabinete da Presidência naquele nervoso dia 6 de novembro. O texto de três páginas datilo grafadas, lido na presença de Médici, estava recheado de argumentos teológicos acerca da relação entre igreja e Estado. Como portadora da mensagem de Deus, a igreja não se pode esquivar de testemunhar sem desobedecer a seu Senhor, defendia o texto. Tal mensagem “terá consequências e implicações em toda a esfera da vivência – inclusive física, cultural, social, econômica e política”. A igreja tem o papel de “consciência da Nação” e deve criticar os rumos do governo na condição “não de fiscal, mas antes de vigia”. Mesmo assim, ela “não procurará contestar o poder do Estado, como se ela fosse um partido político, mas proclamará o poder de Cristo”, sempre procurando agir “sem intuitos demagógicos”. “Médici não ficou muito impressionado com tal argumentação teológica”, diz o pastor Meinrad Piske, que participou da entrevista com Weingärtner. Mas ele anuiu ao ser lido o trecho de que “o culto terá consequências políticas, por despertar responsabilidade política, mas não deverá ser usado como meio para favorecer correntes políticas deter-
“O texto era irênico. Mas não apaziguador, no sentido de condescendente, e sim no jeito que cristãos têm de falar entre si sobre questões difíceis.” Dr. Lindolfo Weingärtner, autor do texto-base que produziu o Manifesto de Curitiba
em nosso país”. Não acusa. Apenas constata que tais notícias corriam por aí. O Manifesto de Curitiba não se intimida ao chegar, finalmente, ao ponto: “Entendemos mesmo, como igreja, que nem situações excepcionais podem justificar práticas que violam os direitos humanos”. E é por essa ousadia profética que o manifesto deve permanecer na história como um dos mais corajosos documentos já publicados pela IECLB. Publicado somente depois das eleições de 15 de novembro, para evitar seu uso para fins eleitoreiros, “as lideranças da igreja ficaram impressionadas ao ler o texto no Estado de São Paulo, que publicou o manifesto na íntegra”, lembra Piske. “Esse jornal vivia cheio de poesias e colunas pretas no lugar dos textos que haviam sido cortados pela censura”, completa. O Manifesto de Curitiba, 40 anos depois dessa ousadia luterana, continua sendo um marco. Num momento de euforia ideológica do Estado, que se agigantava em atitudes e leis antidemocráticas e repressoras, ele propõe reflexão sobre os princípios éticos em jogo e defende os direitos humanos. Ao mesmo tempo, a IECLB oficializa, com o documento, o seu “inteiro apoio a quem se acha seriamente empenhado em coibir abusos cometidos e em oferecer ao mais humilde dos brasileiros – inclusive ao politicamente discordante – a absoluta certeza de que será tratado segundo as normas da mesma lei com a qual possa ter entrado em conflito”. N CLOVIS HORST LINDNER é teólogo e editor da Novolhar em Blumenau (SC)
SERVIÇO: Leia o manifesto na íntegra, digitando “Manifesto de Curitiba” na busca do portal da IECLB: www.luteranos.com.br. NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2010
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ECUMENISMO
Fomentar a confiança competição acirrada e desconfiança são características da atual situação religiosa no brasil, em que é necessário fomentar confiança, o começo imprescindível do ecumenismo. por Rudolf von Sinner
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atual situação religiosa no Brasil não estimula a confiança. Bem ao contrário, incentiva a desconfiança. Na acirrada competição que estamos vivendo, novas igrejas estão sendo criadas, quase que diariamente, com a maior facilidade e sem o menor escrúpulo. O que conta é crescer mais do que os outros. Para isso, muitas
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igrejas pregam, mais ou menos explicitamente, que tão somente nelas se encontram o verdadeiro evangelho, o verdadeiro Deus, o verdadeiro Cristo, o verdadeiro Espírito Santo. Cada uma reivindica exclusividade. Mas o que fazer com o fato de que a igreja vizinha também lê a Bíblia, também invoca o nome do Cristo, também se crê movida pelo Espírito
Santo? Podemos dizer que é simplesmente mentirosa? Em cursos que dou a ministros de várias igrejas sobre ecumenismo, chama minha atenção que, em geral, admitem a possibilidade de certa coo peração ecumênica, mas de jeito nenhum com as “heresias”. Parecem estar claras três coisas: 1) existem hereges e ortodoxos; 2) os hereges são sempre os outros; 3) tal heresia é autoevidente. Basta dizer, por exemplo, que os católicos são “idólatras” para carimbá-los de hereges e descartar qualquer possibilidade de ecumenismo. Mas o que é um “idólatra”? Já perguntaram uma vez a um católico o que ele entende sob santos e suas imagens? Não basta se ater ao que se aprendeu com seu pastor ou professor; venerar santos e imagens é idolatria, e ponto final. Eis o que se entende por verdade. Mas está, de fato, tão claro assim? Não estaríamos caindo no erro, tão claramente apontado por Jesus, de ver o argueiro no olho do irmão, sem reparar a trave no próprio (Mateus 7.3)? Talvez num tempo de muita confusão e pouca certeza, as pessoas sintamse como os discípulos de Jesus no barco que “era varrido pelas ondas” (Mateus 8.24). Procuram certezas. Os discípulos em seu desespero procuraram Jesus para saber. E eis que ele diz: “Por que sois tímidos, homens de pequena fé?” (Mateus 8.26). A desconfiança é sinal de pequena fé. A confiança, pelo contrário, é sinal de grande fé. Pois a própria palavra “fé”, pistis em grego, significa confiança.
SEM RUMO: Em tempo de muita confusão e pouca certeza, as pessoas sentemse como os discípulos de Jesus no barco que “era varrido pelas ondas”
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Em seu Catecismo Maior, Lutero diz ao explicar o primeiro mandamento: “Aquilo, pois, a que prendes teu coração e te confias, isso, digo, é propriamente o teu Deus”. Aqui entra a questão da idolatria. Idolatria é confiar em outros deuses – por exemplo em “dinheiro e bens”, como diz Lutero. Esse “é o ídolo mais comum na Terra”. Mas aquele que afirma crer em Deus, a quem Jesus, o Cristo, chamou de Pai, não pode ser simplesmente tachado de idólatra. Confiar em Deus significa confiar no poder dele de conceder fé às pessoas. E quem somos nós para dizer a quem ele deveria ou não dar a fé? Essa decisão não cabe a nós. Confiar em Deus possibilita abrir-se para a relação com o outro que confessa crer no mesmo Deus. Isso não significa que devemos aceitar um “vale-tudo”. A verdade do evangelho deve estar sempre no centro de nossa atenção. Mas precisa ser buscada com amor, conforme o exemplo de Jesus e o destaque dado por Paulo ao amor em relação à fé e à esperança (1 Coríntios 13.13). Verdade sem amor torna-se violenta. Amor sem verdade é vazio. Fomentar a confiança de que Deus pode atuar no meu irmão de outra igre-
O MAIOR TEMPLO: A prefeitura de São Paulo concedeu alvará para a construção de uma réplica do Templo de Salomão pela Igreja Universal do Reino de Deus. O projeto de R$ 200 milhões terá 12 andares e 70 mil m² de área construída, ocupando um quarteirão inteiro. A altura de 55 m equivale a um prédio de 18 andares. O templo poderá abrigar 10 mil fiéis e terá estacionamento para mil carros. Segundo o site da IURD, ele fica pronto em quatro anos.
ja (ou de outro movimento dentro da mesma igreja) é o começo e a condição imprescindível de qualquer ecumenis mo. Na base dessa confiança também é possível e necessário questionar o outro sobre a verdade – mas também se deixar ser questionado. E deixar-se surpreender pelo fato de que Jesus
pode dizer a uma pessoa estrangeira, supostamente incrédula: “Grande é a tua fé!” (Mateus 15.28). N
RUDOLF VON SINNER é teólogo, obreiro da IECLB e professor de Teologia Sistemática, Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso na Faculdades EST em São Leopoldo (RS)
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ESPIRITUALIDADE
Um clima no ar Jesus é o maior exemplo de quem soube viver espiritualidade de forma plena. ele era aquilo que pregava e Agia segundo o que acreditava. por isso o natal é tão importante. por Walter Altmann
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á se pode sentir no ar. Já se pode ver e ouvir por todo lado. Não dá mais para esconder: lojas, casas, ruas, bairros, cidades inteiras denunciam a época que se aproxima. Vem chegando o Natal! Temos a impressão de que a nossa vida gira em torno das grandes festas, que o setor econômico sabe
Presépio do Museu de Belém, em Trebechovice, na Polônia. Esculpida no século 19 por Josef Probošt e Josef Kapucián, a obra é composta por mais de 2.000 figuras, que se movimentam por um mecanismo único, desenvolvido por Josef Friml. Todo o presépio tem 7 metros de comprimento, 3 metros de largura e 2 metros de altura. Detalhe da cena da manjedoura e dos pastores encurvados sobre ela.
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aproveitar muito bem: Natal – carnaval – Páscoa – Dia das Mães – Dia dos Namorados – Dia dos Pais – Dia das Crianças – Natal de novo... e assim gira a roda das festas. Nem bem saímos de uma, e a próxima já está toda preparada. Precisamos de festas, mas a vida não se pode resumir a comemorações.
Por isso façamos aquelas perguntas que mais importam: Qual é, verdadeiramente, o significado do Natal? Tem a ver com compras, presentes, correrias, banquetes? Ou tem a ver com amor, compaixão, solidariedade? Que diferença um menino nascido pobre em uma estrebaria dois milênios atrás pode fazer no mundo de hoje? Ela deu à luz o seu filho primogênito (Lucas 2.7a) Deus comunica-se com a humanidade de muitas formas: através de pessoas que o testemunham, através da criação que manifesta sua glória, de maneira especial através de seu filho. Em Jesus Cristo, Deus não só fala, mas também age dentro da história. Natal nada mais é do que a celebração do nascimento de Jesus (Deus salva), o filho de Maria, o Emanuel (Deus conosco), que mais tarde seria
chamado de Cristo (Messias, Enviado). É a celebração da encarnação do próprio Deus. Fez-se gente para morar e viver em nosso meio, bebendo da água que nós bebemos, comendo os alimentos que nós comemos, andando pelos caminhos que nós trilhamos, sentindo as dificuldades que nós sentimos. Em Jesus, Deus aproxima-se da humanidade de forma definitiva. Em Jesus Cristo, a salvação toca a história humana. Os relatos bíblicos mostram dificuldades enfrentadas desde cedo. O menino foi dado à luz em um abrigo de animais, sob condições precárias, afastado de recursos médicos. Nasceu peregrino, caminhante. Aqueceu-se com faixas e trapos, pois não tinha roupas. Ao optar por vir ao mundo dessa forma, Deus mostra definitivamente quem é. É um Deus que escolhe tornar-se ser humano, um de nós. Assim nos mostra que é este mundo o lugar que temos para viver e amar. Se temos a perspectiva de salvação eterna – e as pessoas cristãs a têm pela fé –, ainda assim temos a nossa vida para ser vivida aqui neste mundo da melhor, mais justa e mais fraterna maneira possível. A salvação, em fé e
ação, começa aqui e agora, em nossa vida terrena. Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre as pessoas a quem ele quer bem (Lucas 2.14) A multidão de anjos que apareceu aos pastores cantava glórias a Deus. “Glória a Deus e paz na terra” é o lema bíblico escolhido para acompanhar o tema do ano da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) em 2011. Também é o tema da convocatória ecumênica internacional para a paz, organizada pelo Conselho Mundial de Igrejas, que será realizada em maio em Kingston, Jamaica. O que isso tem a ver com Natal? Tudo. A profecia de Isaías fala do nascimento de um menino que seria reconhecido como Príncipe da Paz (Isaías 9.6). Jesus nasce em uma sociedade carente de paz, onde havia opressão, abandono, discriminação, violência. Toda a sua atuação podia ser resumida à busca pela paz. Mas paz precisa ser entendida de forma ampla. É sinônimo de harmonia, em que grupos, sociedades, a humanidade inteira, vivem sob preceitos de justiça, respeito, solidariedade, sustentabilidade.
No Natal, muitas pessoas sentem sua espiritualidade de forma mais intensa. Entendem que se trata de um momento em que Deus se torna muito próximo de nós. Mas é preciso afirmar que, isolada do mundo, a espiritualidade faz pouca diferença. É necessário que espiritualidade e ética andem juntas. Espiritualidade é nossa relação com Deus. Ética é a forma concreta que essa relação toma dentro do mundo. Ou seja, fé e ação precisam sempre estar ligadas uma à outra. Espiritualidade sem ética é vazia. Ética sem espiritualidade não tem raiz e, portanto, é cambaleante. Jesus é o maior exemplo de alguém que soube viver sua espiritualidade de forma plena. Jesus era aquilo que pregava. Agia de acordo com o que acreditava. É por isso que a celebração do nascimento de Jesus é tão importante. Que possamos celebrar o nascimento de Jesus Cristo com louvor, gratidão, carinho, mas também na certeza de que essa criança nos motiva a agir para colocar sinais concretos do reino de Deus onde quer que andemos. N WALTER ALTMANN é pastor presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil em Porto Alegre (RS)
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penúltima palavra
A busca da igualdade e equidade entre mulheres e homens nada mais é do que a busca da paz para a humanidade. por Vera Vieira
O
conceito ampliado de paz pressupõe a segurança humana e a justiça, incluindo, portanto, as ações pelo fim das discriminações sociais. Não se pode falar em paz onde não há respeito às diferenças, isto é, à equidade das pessoas – igualdade, respeitando as diferenças –, considerando gênero, raça, etnia, orientação sexual, geração, localização geográfica. Falar de paz, então, pressupõe o acesso ao poder e às oportunidades pelas pessoas. É no dia a dia que as mulheres tentam construir um mundo pacífico por meio de ações voltadas para a cidadania transformadora, isto é, tornando-se seres que se modificam para melhorar o contexto em que vivem. Ao cuidar das pessoas que as cercam na casa, no trabalho, na comunidade, elas exercem a paz cotidiana. Outros exemplos de construção da paz estão na promoção de uma educação sem violência e sem sexismo, na busca de relações de poder mais horizontais, na intervenção comunitária para a implantação de creche, escola, hospital, área de lazer. Isso
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Ilustração Aikau
Paz entre os sexos
não significa que as mulheres queiram paz somente para elas. A busca pela paz, na qual as mulheres estão empenhadas, visa favorecer ambos os sexos. Relações mais harmoniosas entre a mulher e o homem irão concretizar uma sociedade fortemente democrática, em que todas e todos sairão ganhando. No Brasil, os índices de desigualdade e injustiça social são elevadíssi mos. Quem está na base da pirâmide social é a mulher, majoritariamente a mulher negra. Em termos de violência doméstica, a cada 15 segundos uma mulher é espancada. Quanto às diferenças salariais, a mulher recebe quase 40% menos do que o homem, mesmo quando sua escolaridade é maior do que a do colega. Se for negra, recebe menos ainda. Outra estatística preocupante diz respeito ao número de mulheres chefes de família: 30%. Por isso a importância de se trabalhar com foco na educação para a paz, baseada na cidadania das mulheres. A guerra não ocorre somente em conflitos armados. Sofrimento e morte também estão presentes no dia a dia: quando não há creches e
escolas suficientes; quando hospitais estão superlotados; quando faltam luz, água, saneamento básico; quando há violência física, emocional ou psicológica nas famílias; quando as mulheres não ascendem ao poder etc. Assim sendo, faz todo o sentido que existam movimentos pacifistas. O esforço pela paz está intimamente conectado à luta pela igualdade de gênero. A “guerra entre os sexos” clama por paz há milênios. Ela tem a ver com o sistema que coloca a mulher em posição de subordinação ao homem, provocando tristes conse quências para a sociedade. Mulheres foram degoladas, sutiãs foram queimados em praça pública para que o tema das relações sociais de gênero ganhasse importância e fosse pautado no mundo. A busca da igualdade e equidade entre mulheres e homens nada mais é do que a busca da paz para a humanidade. Que avancemos no exercício de praticar a paz no cotidiano, começando bem pertinho de nós! N VERA VIEIRA é diretora executiva da Associação Mulheres pela Paz e coordenadora executiva da Rede Mulher de Educação em São Paulo (SP)
AMIGO DAS CRIANÇAS - EDITORA SINODAL
EDITORA SINODAL