CPAD
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Morte e ressurreição Relação traumática com a morte. Burocratização da morte. Cremação. Ortotanásia. Morte com crianças. Ressurreição. Pronto para morrer.
ÍNDICE
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fotografia DIFERENTE
A lomografia e os efeitos que se pode obter a partir dela
Ano 9 –> Número 39 –> Maio/Junho 2011
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A nova experiência brasileira da mulher no poder
Uma história de panes em usinas nucleares
SOCIEDADE
ENERGIA
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ÚLTIMA HORA
Convocatória Internacional Ecumênica da Paz
SEÇÕES
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Uma casa de escravos na costa africana
O uso crescente da bicicleta como transporte
HOLOCAUSTO NEGRO
ciclovias
OLHAR COM HUMOR > 6 NOVOLHAR SOBRE > 6 notas ecumênicas > 8 DICA CULTURAL > 9 REflexão > 26 REtratos > 28 nós e aids > 30 fábulas de esopo > 32 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2011
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AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052
Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina e Vera Regina Waskow. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte sobre foto de Shlomit Wolf (Stock SXC): Roberto Soares Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Cesar Zillig, Claudemir Casarin, Cleide Olsson Schneider, Edla Eggert, Fábio Codevilla, Flávio Schmitt, Ingelore Starke Koch, Katiane Silva, Lothar Carlos Hoch, Luciana Reichert, Nelson Kilpp, Neusa Tetzner, Paula Oliveira, Ricardo Siegle, Rosaria Piriz Rodriguez, Rui Bender, Scheila dos Santos Dreher, Suzel Tunes, Valmi Ione Becker e Vera Maria Immich. Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 30,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS
Morte e ressurreição
A
o abordar uma temática como essa, o risco de pisar em terreno estranho e fazer colocações polêmicas é bem elevado. Conscientes disso, deliberadamente não entramos no mérito do combate a conceitos que os cristãos consideram equivocados – como a reencarnação – ou as multiformes maneiras, às vezes pouco usuais, de lidar com a morte. Tampouco quisemos elaborar uma espécie de “glossário cristão” sobre a morte e a ressurreição. Mesmo porque tentar dar razão da esperança que nos move com conceitos teológicos pré-fa bricados não costuma dar muito resultado. Como o ser humano passa a vida construindo relações com quais busca ter onde se espelhar, de modo especial nos olhos de outrem, ele naturalmente teme a morte. Aparentemente, a morte quebra todos os laços que construímos ao longo da vida, deixando imóvel e frio quem outrora era cheio de energia, sonhos, esperanças, crenças e dons, transformando-o num “miserável saco de vermes”, na ácida definição de Martim Lutero. Para fugir da consciência do próprio fim e do confronto inevitável com aquela que mais tememos, até aceitamos transformar a morte em espetáculo. Ela domina os noticiários, os filmes, a arte em geral e até o nosso cotidiano, quando faz engarrafar o trânsito por causa da curiosidade de quem passa pelo local de um acidente. Na verdade, a morte como espetáculo nos dá a garantia de que ainda não foi desta vez e que, por poder assistir à morte de outrem, continuamos “vivinhos da silva”. A ressurreição é a resposta que queremos, a certeza que precisamos, a garantia de que a morte não tem a última palavra. É o nosso mais espetacular refúgio, contra o qual a nossa maior inimiga nada pode. É a fé que resiste contra todas as evidências deste mundo dominado pela morte. A pedra removida do túmulo de Jesus na manhã de Páscoa deixa entrever a luz de uma realidade totalmente alheia à natureza que vive da reciclagem da vida por meio da infinita repetição do ato de morrer. Não será assim eternamente. Há luz no final do túnel, e ela ilumina o acesso à vida definitiva, conquistada por trás daquela pedra removida. Equipe da Novolhar
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opinião DO LEITOR
LIVROS DA SINODAL
Boa e inteligente Um seminário para você CONVITE
Quero parabenizá-los pelo excelente trabalho que estão realizando! Já vinha admirando e gostando muito da revista. Que criatividade e inspiração nos assuntos, principalmente nos de capa. E agora, essa de novembro e dezembro de 2010 achei insuperável: “Fé e ciência - Humildade e diálogo”. Fiquei encantado! Quanta sabedoria, bom senso e equilíbrio nos diversos artigos sobre o tema. Parabéns aos autores e pesquisadores! Fico feliz por termos uma revista tão boa e inteligente em nossa IECLB! Que Deus vos abençoe a todos, e que continuem achando sempre assuntos interessantes para os leitores! Helmut Fertsch Canoas (RS) Somos luteranos e meu marido é assinante recente da revista Novolhar e também presenteamos nossa filha com o Amigo das Crianças. Adorei as matérias. Maira Weirich Passo Fundo (RS)
O Conselho de Missão entre Indígenas da IECLB convida para o seminário “Educação e Diversidade”, promovido com o apoio da Fundação Luterana de Diaconia - FLD, nos dias 16 e 17 de julho de 2011, em São Leopoldo (RS) na Casa Matriz, Morro do Espelho. Trata-se de um tema que vem ganhando cada vez mais espaço à medida que a sociedade brasileira se abre para a reflexão inclusiva sobre suas origens históricas e formação social diversa e assume o direito à diferença como um direito humano. Para promover o debate do tema, participará o professor Dr. José Ribamar Bessa Freire, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Inscrições pelo telefone (51) 3590-1440.
Visite nosso site
Os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar.com.br
Espaço do leitor Sua opinião é muito importante para nós aqui na redação da Novolhar. Por isso escreva-nos e diga o que pensa sobre os artigos e as temáticas abordadas. Mande-nos um e-mail para novolhar@editorasinodal.com.br ou entre em contato através de nossas redes sociais, buscando a Editora Sinodal no
Tema da próxima edição A edição nº 40, de Julho/Agosto de 2011, irá tratar em sua capa o tema SUSTENTABILIDADE. Aspectos ambientais, econômicos, sociais, de produção e consumo estarão na pauta.
por Vera Maria Immich “Eu vi as tuas lágrimas....” Que bela declaração de amor de Deus pela humanidade, especialmente por aqueles que sofrem, que perdem pessoas amadas e que se perdem na dor, no sofrimento, na solidão e no isolamento! Que bom saber que não sofremos sozinhos, mas que ele vê as nossas lágrimas! A autora oferece-nos uma passagem por experiências de superação do sofrimento, não antes de vivê-las intensa e profundamente. Com muita sensibilidade ela consegue trazer ao leitor relatos belos e profundos de dor e tristeza, alicerçados na Rocha de nossa Salvação, que sempre ouve nossas orações e atende nossas súplicas, tão bem testemunhadas pelo profeta Isaías. O livro pede para ser lido sem muitas interrupções pela grande identificação do leitor com os relatos. Afinal, quem nunca sofreu? Quem nunca se sentiu só e desamparado? Experimente encontrar o Deus consolador através da leitura desse livro.
VERA MARIA IMMICH é teóloga da IECLB na Pastoral da Consolação e Psicóloga Clínica em Curitiba (PR) NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2011
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olhar com humor
por Ricardo Siegle
É gripe ou resfriado?
A diferenciação entre gripe e resfriado faz sentido quando novamente nos deparamos com campanhas de vacinação contra a gripe. Existem mitos que fazem com que muitas pessoas deixem de se vacinar e, portanto, de se proteger da gripe, doença séria e com potencial de levar a complicações às vezes graves. Em comparação com a gripe, o resfriado é uma doença mais branda, com coriza, obstrução nasal e irritação na garganta. Às vezes, apresenta febre baixa e tosse irritativa. É causada principalmente por rinovírus, adenovírus, parainfluenza e sincicial. Geralmente não apresenta complicações e tem evolução rápida. Já a gripe é uma doença mais séria, podendo ter sintomas semelhantes ao resfriado, porém comprometendo o organismo com febre alta e de início súbito, dores pelo corpo e intensa sensação de mal-estar, dor de cabeça, cansaço, fraqueza, tosse e calafrios. Pode durar até duas semanas, e raramente se pega gripe mais do que uma vez por ano. É causada pelo vírus influenza e facilmente transmitida entre as pessoas através de gotículas mobilizadas por tosse, espirro ou fala. Por isso evita-se ficar em ambientes sem ventilação na presença de pessoas gripadas. Contra a gripe existem medicamentos antivirais, que, se iniciados até 48h após o início dos sintomas, reduzem sua severidade. A vacina é um meio eficaz de prevenção para 75% dos casos de gripe e deve ser tomada uma vez por ano, pois o vírus sofre mutações de uma temporada para outra. Não há chance de a vacina vir a dar um quadro de gripe. O que provavelmente acontece são resfriados. RICARDO SIEGLE é médico infectologista em Novo Hamburgo (RS)
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Divulgação Novolhar
novolhar sobre
última hora
Do Rio a Kingston “Isso é coisa dos Estados Unidos!”, disse uma pessoa entrevistada poucas horas depois da chacina que ocorreu numa escola do Realengo, Rio de Janeiro, no dia 7 de abril, quando um jovem homem entrou na escola onde estudara e alvejou estudantes (em sua maioria meninas), tirando a vida de 12 crianças e ferindo outras 18. Ouvimos muito falar de casos de assassinatos absurdos como esse acontecendo na América do Norte, mas a verdade é que o número de mortos por arma de fogo no Brasil é mais do que o dobro dos Estados Unidos. Ou seja, em sua forma, a violência de Realengo é inédita no Brasil, mas não em seu resultado. A violência está em toda parte. Em sua 9ª Assembleia, em 2006, em Porto Alegre, o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) decidiu organizar um evento para marcar o final da Década para Superação da Violência (DSV), que esteve, com maior ou menor intensidade, na agenda de suas igrejasmembro entre os anos de 2001 e 2010. Esse evento é a Convocatória Ecumênica Internacional pela Paz (CEIP), que reunirá mais de 1.000 representantes de todo o mundo, em maio, na cidade de Kingston, Jamaica. A 9ª Assembleia ainda conclamou as igrejas a um amplo processo de desenvolvimento de uma declaração ecumênica sobre o tema da “paz justa”. Esse processo consultivo, que leva à CEIP, permitiu ampla participação e apropriação dos temas da paz e justiça por parte das mais de 350 igrejas que compõem o CMI, cobrindo uma vasta gama de abordagens metodológicas.
Divulgação Novolhar
por Marcelo Schneider
A Convocatória reunirá pessoas que partilharão testemunhos acerca de diversos processos de construção de paz nos quais as igrejas estão engajadas (e até promovendo) ao redor do mundo. Os maiores objetivos desse evento são fortalecer a incidência das igrejas sobre o tema e o trabalho pela paz, oferecer oportunidades para a criação e o fortalecimento de redes e aprofundar nosso compromisso com as iniciativas de reconciliação e paz justa. Nos escritos deixados pelo assassino das crianças do Realengo, há muitas referências religiosas, como: “o que importa é ser reconhecido por Deus, porque não será com as pessoas limitadas desse mundo que viverei eternamente e sim com Deus”. Embora Kingston não tenha as respostas sobre os motivos das mortes das crianças de Realengo, tem potencial para servir de contraponto a fundamentalismos religiosos nos quais assassinos se escondem para justificar o injustificável. N MARCELO SCHNEIDER é teólogo e assessor do CMI em Porto Alegre
Notas ecumênicas
Foto: Prensa
Bíblia K’iche
INCENTIVO
Divulgação
É necessário que as igrejas desenvolvam nas comunidades um processo de educação para o diálogo inter-reli gioso, considerando três elementos: conhecimento das tradições religiosas locais, incentivo à prática da convivência efetiva e desenvolvimento de uma espiritualidade de acolhida das diferentes expressões de fé. Elias WOLFF, padre católico, coordenador da Comissão Teológica do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs-CONIC
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ALERTA “Estamos vivendo numa ‘bolha de veneno’, que contamina o ar, o solo, nascentes, lençol freático e alimentos.” Trecho da carta que agricultores do centro-sul do Paraná e Planalto Norte Catarinense remeteram a autoridades estaduais e federais pedindo a intervenção e fiscalização na venda e aplicação de agrotóxicos na lavoura de fumo
Divulgação
Nova diretoria O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) tem novo presidente: o bispo católico da Diocese de Chapecó (SC) Manoel João Francisco, 65 anos. A eleição ocorreu na 14ª assembleia geral do organismo ecumênico nacional em março, para o período 2011 a 2015. O primeiro vice-presidente é o bispo Francisco de Assis da Silva, da Igreja Episcopal; a segunda vice-presidente, a presbítera Elinete Wanderley Paes Miller, da Igreja Presbiteriana Unida; a secretária, Dra. Zulmira Ines Lourena Gomes da Costa, da Igreja Ortodoxa, e o tesoureiro, pastor sinodal Altermir Labes, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. O Conselho Fiscal está constituído pelo pastor luterano Marcos Ebling, pelo monsenhor Hélio Pacheco Filho e pelo anglicano Fabiano Nunes.
O k’iche é o mais falado dos 22 idiomas maias. A tradução levou 23 anos e foi realizada por uma equipe coordenada pelo sacerdote francês Bernardo Guos e pela bacharel Isabel Sucuquí, maia-falante, originária de Chiché. A tradução da Bíblia ao idioma k’iche abre um momento histórico na igreja da Guatemala, que entrega hoje o livro sagrado, em seu idioma, a muitos catequistas que, para salvaguardar suas vidas, tiveram que enterrar suas Bíblias e materiais de formação nos momentos mais cruéis da guerra interna, quando a igreja foi perseguida e soldados do exército buscavam qualquer indício de “rebelião” ao sistema.
Finalmente Foram precisos 500 anos de negação para que finalmente as universidades começassem a pensar nos indígenas enquanto sujeitos. Getúlio Narcísio – Índio kaingang na aula inaugural de curso na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no início do primeiro semestre. Divididos em três turmas, 120 estudantes das nações Guarani, Kaingang e Xokleng iniciaram curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, na UFSC, em Florianópolis
Viver em solidariedade A ideia de justiça social não é moderna. Ela está no coração da narrativa bíblica. Os profetas hebreus demandavam de seus concidadãos que cessassem de fazer o mal, que aprendessem a fazer o bem e a procurar a justiça.
Equívoco nuclear Se há um país no mundo que goza das melhores oportunidades ecológicas e geopolíticas para ajudar a formular um outro mundo necessário para toda a humanidade, esse país é o nosso. Ele é a potência das águas, possui a maior biodiversidade do planeta, as maiores florestas tropicais, a possibilidade de uma matriz energética menos agressiva no meio ambiente à base da água, do vento, do sol, das marés, das ondas do mar e da biomassa.
Trecho do documento da Aliança Batista Mundial (ABM)
Heitor Scalambrini Costa – professor da Universidade Federal de Pernambuco. Ele entende que a retomada do Programa Nuclear Brasileiro com o reinício da construção de Angra 3 é equivocada
dica cultural
A infiel A Somália é um país africano sobre o qual pouco sabemos. Pois nesse país, distante cultural e geograficamente dos brasileiros, nasceu Ayaan Hirsi Ali, que descreve sua vida desde que saiu de Mogadíscio. Certamente pouco ou quase nada ouvimos sobre sua vida e sua trajetória pela Somália, Sudão, Quênia e Holanda. Trata-se de uma autobiografia que revela costumes, tradições e uma biografia marcada por muito sofrimento, perseguição e luta para sobreviver. O relato de Ayaan é impressionante e realista e, em muitos momentos, faz o leitor arrepiar-se e sentir o clima dos acontecimentos narrados por ela. À medida que a leitura evolui, cresce a admiração por essa mulher que venceu barreiras familiares, sociais e religiosas impostas a ela por ser mulher. Sua determinação e coragem elegeram-na deputada na Holanda, comprometida com a defesa de imigrantes que buscavam liberdade, dignidade e respeito em solo holandês. Mas, ameaçada de morte, precisou ser protegida e assim acabou tendo que deixar a Holanda para viver nos Estados Unidos. NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2011
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Fotos: Divulgação Novolhar
CAPA
Morte e ressurreição, certeza cristã 10
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A DIFÍCIL E TRAUMÁTICA RELAÇÃO DAS PESSOAS COM A REALIDADE DA MORTE. A DOR DO LUTO. A BUSCA ANGUSTIADA PELO ADIAMENTO DO INEVITÁVEL FIM . A MORTE COMO PROCESSO NATURAL DA VIDA NO PLANETA. O CERIMONIAL BUROCRATIZADO DA MORTE NA SOCIEDADE MODERNA. A MORTE COMO FATALIDADE E BÊNÇÃO. DIANTE DE TUDO ISSO, A ESPERANÇA DO RETORNO À VIDA NA BASE DA MAIORIA DAS RELIGIÕES DA HUMANIDADE E A RESSURREIÇÃO COMO ESPERANÇA FUNDAMENTAL DO CRISTIANISMO. por Ingelore Starke Koch
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ão há como falar da morte sem falar da vida. Nós vivemos, por isso também morremos. A finitude é a maior certeza da vida. Quem nasce já está morrendo. O fato de não termos escolha se queremos viver ou não mostra claramente que não há vida sem morte; tampouco morte sem vida. A morte pode ser vista numa dimensão física, espiritual e biológica. As considerações são de Flávio Schmitt, professor de Novo Testamento (NT) na Faculdades EST, em São Leopoldo (RS).
Schmitt lembra a concepção de Leonardo Boff sobre a morte: “A vida biológica nasce para se degenerar”. Ao completar 70 anos, o teólogo católico admitiu: “É difícil compreender e aceitar que se morre a cada dia um pouco. Mas quem se dá conta disso é sábio”. Logo no primeiro livro da Bíblia, em Gênesis, é dito: “Porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gênesis 3.19). Para Flávio Schmitt, o grande segredo da visão bíblica é que a morte nem sempre precisa ser compreendida como uma fatalidade, mas também pode ser compreendida como uma bênção. Em vista da finitude, poder
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descansar depois de ter vivido o que um mortal pode viver não deixa de ser bênção. A morte é a melhor invenção da vida. Ela põe fim e permite um recomeço. Nossa igreja cristã é muito feliz ao saber conviver com a ambiguidade da morte. Deus dá a vida e toma-a e oferece-nos o viver eternamente, expõe o teólogo luterano. Para ele, é preciso ter presente que na morte há basicamente duas teses a considerar: por um lado, a afirmação de que a morte é o fim – fim da vida biológica, fim da convivência, fim dos vínculos, fim de tudo; por outro lado, a afirmação de que a morte não é o fim; é um desdobramento, espera um depois; é também um começo. A morte é mistério e motivo de preocupação. O que, por exemplo,
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aguça tanto a curiosidade das pessoas quando ocorrem acidentes de trânsito nas estradas, a ponto de quanto mais graves, tanto maior o engarrafamento no trânsito? Haveria um certo prazer no sofrimento dos outros? Flávio faz uma impactante comparação: “Quando se mata um boi, outros bois vão chegando perto, nem que é só para cheirar o sangue... Em nossas reações diante da morte, nós humanos nos assemelhamos aos animais”. Schmitt aponta para duas situações de morte: uma, em que a pessoa quer morrer; e a outra, em que ela não quer morrer. “A única coisa que a morte não mata é o amor – todos somos suicidas”, salienta. Não há religião que não tenha relação com a morte – boa parte da história da igreja cristã está relacionada com a morte. A começar
Jean Vernee
“Mesmo crentes na ressurreição do corpo, temos grande dificuldade de falar de algo que não conhecemos, que ainda não vivenciamos.” FLÁVIO SCHMITT
pela morte de Cristo, afirma. A medicina tem colocado novos desafios ao conceito biológico da morte. A morte encefálica já é morte? “A Bíblia nos ensina que a morte é rompimento da relação com Deus e com as outras pessoas”, atesta o professor de NT. Diante do fato da Justiça Federal ter autorizado a ortotanásia no Brasil – a interrupção de procedimentos médicos para pacientes terminais que não tenham mais perspectiva de uma vida digna – Flávio é categórico: “Nós, como igreja cristã, estamos num tempo de grande desafio, que é humanizar a morte”. “Mesmo crentes na ressurreição do corpo, temos grande dificuldade de falar de algo que não conhecemos, que ainda não vivenciamos”, prossegue. Durante sua vida terrena, Jesus ressuscitou três pessoas: a filha de Jairo (Lucas 8.54,55), o filho da viúva de Naim (Lucas 7.14,15) e Lázaro (João 11.43,44). Contudo, nenhum dos três falou sobre sua experiência de morte. No entender do professor da EST, são três situações que suscitam a pergunta: “Se ressuscitaram, por que morreram de novo?” No que diz respeito à ressurreição de Jesus, acrescenta Flávio, o Novo Testamento apresenta o túmulo vazio e depois as suas aparições. No vocabulário empregado para falar da ressurreição de Jesus, apenas é dito que Jesus “foi levantado”. Nada é dito sobre como tudo aconteceu. Por via de regra, “o túmulo vazio e as aparições são utilizados para explicar e defender a ressurreição”. No entanto, não eliminam as dúvidas a seu respeito. A ressurreição é uma realidade que diz respeito à fé. Somente a fé pode dar sentido à ressurreição. Nem há como falar de ressurreição sem fé; também não existe mágica para acreditar na ressurreição sem a dimensão da fé, ensina Schmitt. E,
como acrescenta, o apóstolo Paulo não fala da ressurreição da carne, mas sim da ressurreição do corpo transfigurado. Em passagens do Novo Testamento, “há um fio muito tênue entre a compreensão de ressurreição e a ideia de reencarnação dos gregos. Ainda assim, o ser humano não ressuscita para a vida biológica, mas para a vida eterna. Para nós cristãos nada sobra – o corpo é transfigurado”. “Não nos devemos conformar com os avanços da medicina – que pode prorrogar a vida mantendo os doentes terminais nas unidades de tratamento intensivo, onde ficam afastados da família. Não há bênção maior do que poder morrer em família”, testemunha o teólogo. Em sua opinião, as igrejas cristãs estão diante de outro grande desafio, que é desenvolver uma pedagogia da morte, visto que a morte é um processo pelo qual todos têm que passar. Flávio vê uma acolhedora cerimônia de sepultamento como um “filão missionário” para a igreja e o culto em memória como uma oportunidade da comunidade para abraçar os familiares enlutados.
a morte”, compartilha confortada. Para ela, “um consolo muito grande é a luz do amanhecer e do anoitecer”, que pode ver todos os dias de seu apartamento. limiar da morte – Outubro de 1974. O pastor Nelso Weingärtner estava dando ensino confirmatório na Comunidade Evangélica de Timbó (SC) quando sentiu uma forte dor abdominal. Imediatamente foi até o hospital da cidade. Apendicite aguda, diagnosticou o médico. A cirurgia tinha que ser feita logo. “Assim que o médico colocou soro na minha veia, foi como se uma marreta de cinco quilos esmagasse meu peito. Não sentia mais meu corpo, mas ouvia tudo o que os médicos falavam”, relata Weingärtner. Ainda
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“vi uma luz de todas as cores imagináveis vindo de longe e se aproximando de mim. Pensei: Isto é Cristo, a luz do mundo que vai me levar.” NELSO WEINGÄRTNER
Divulgação Novolhar
Maravilhosa luz – Ingrid Fi scher, residente em São Leopoldo desde 1962, guarda o “diário” das internações hospitalares e do falecimento de seu pai, o pastor Ernst Graustein, de sua mãe, Erika Graustein, e de seu marido, o pastor e professor Joachim Fischer. Ingrid lê emocionada trechos das anotações sobre as últimas palavras de seus entes queridos, que lhe serviram de grande consolo. “Ingrid, Ingrid, luz, luz, maravilhosa luz”, exclamara sua mãe poucos dias antes de falecer. Quando eu perguntei se essa luz estava longe, ela respondeu: “Não, estou no meio dela”, relata a filha. “Essa luz é sinal de que sua mãe está em paz consigo e com Deus e que
vai partir em breve”, ouviu Ingrid do pastor Wilfrid Buchweitz. Algo parecido aconteceu com seu pai, recorda Ingrid. De volta à casa da filha após quase três meses de internação no hospital, Graustein, em sua cadeira de rodas, estendia os braços e repetia: “Que belo, que belo”, referindo-se ao verde das árvores, às flores no jardim. Pouco antes de falecer, deitado em sua cama, de rosto sereno, repetia: “que belo, que belo”, estendendo novamente os braços. Ela entendeu isso como sinal “de entrega e de ir ao encontro de Jesus”. Relembrando o falecimento do marido, Ingrid Fischer recorda que a morte foi um dos assuntos sobre o qual falaram dias depois de um desmaio e antes de ele ter uma isquemia cerebral. “Ele me disse que não temia
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CAPA hoje ecoa para ele o grito do médico: “Matamos o pastor” – arrancando de imediato o soro e chutando-o para longe. Iniciou-se, então, uma ferrenha batalha de reanimação. “Nesses três ou quatro minutos, conscientizei-me de que para mim estava terminando a categoria de espaço e tempo e logo nasceu a pergunta: como vou me apresentar a Deus no Juízo? Não pensei nos meus pecados, mas unicamente em olhar e apontar para Jesus. E aí senti uma grande paz”, testemunha Weingärtn er. Ele continua: “Logo em seguida vieram à tona imagens de meu passado: Beate, minha noiva, 13 anos antes, vinha como que flutuando... com o buquezinho de flores que usou no casamento. Logo em seguida, Ursula, a filha mais velha, também veio flutuando, com meu chapéu cheio de coelhinhos, como ela o fazia quando pequena. Na sequência, vi uma luz, de todas as cores imagináveis, vindo de longe e se aproximando de mim. Pensei: Isto é Cristo, a luz do mundo que vai me levar”. Em meio a isso, ouviu o grito do médico: “Conseguimos”. Havia sido uma reação alérgica ao iodo que estava no soro, combatida com sucesso com outra medicação. Na explicação do médico, a luz que Nelso viu aproximar-se indicava que as últimas “gotas de oxigênio” no cérebro estavam acabando. Mas Nelso é enfático: “Eu não me julgo uma pessoa que esteve ‘do outro lado’... mas alguém que, por questão de segundos, recebeu a graça de ainda continuar a viver aqui, neste maravilhoso mundo, com minha família, minhas comunidades e meus amigos”. N INGELORE STARKE KOCH é jornalista em São Leopoldo (RS)
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A morte sob nova direção um novo jeito de levar a vida também transformou a relação da sociedade com a morte, que foi burocratizada, afastada da experiência individual e familiar e cada vez mais tornada um acontecimento virtual. por Clovis Horst Lindner
A MAIORIA SÓ TEM ACESSO à vivência da MORTE POR meio da EXPERIÊNCIA alheia.
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partir da segunda metade do século 20, surgiu uma nova forma de encarar a vida, caracterizada por individualidade e plura lismo. Segundo o sociólogo Norbert Fischer, da Universidade de Hamburgo (Alemanha), tais mudanças também transformaram a relação da sociedade com a morte. Cemitérios que são extensos gramados e novas formas e lugares de vivenciar a morte – como cruzes à beira da estrada, sites na internet e casas mortuárias – são exemplos disso. Como a expectativa de vida aumentou, a experiência concreta com a morte foi reduzida. Muitas pessoas vivem durante décadas sem mortes na família ou no círculo de amigos. “A maioria só tem acesso à vivência da morte por experiência de terceiros”, vaticina Fischer. Espetáculo – Nas metrópoles, a crescente secularização reduz, substitui ou até suprime as cerimônias religiosas de sepultamento. Os ritos
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de relação comunitária com a morte, cerimônias de sepultamento privadas e ojeriza ao cemitério como lugar tradicional do luto afastaram a morte do convívio diário. A televisão e os filmes passaram a dizer o que é morte e como se deve encará-la. Ela deixou de ser fato palpável, e sua presença na mídia chega a causar náuseas. Ver alguém morrer agora é uma experiência virtual, imaterial e abstrata, que se vê na televisão e na internet com incrível facilidade, como algo normal e aceitável, que emociona agora e se esquece em seguida. A morte virou espetáculo e é fruto de atos de violência, como acidentes, assassinatos, guerras ou catástrofes naturais. A morte natural não é tema da mídia, a não ser que morram pessoas famosas. Na mídia é “sempre a morte do outro que vemos; e nos tranquiliza saber que ela acontece longe de nós e não nos atinge”, diz Fischer.
O contato com os mortos é algo vivenciado quase só por agentes funerários, médicos-legistas, técnicos e burocratas de cemitérios. “Um rito cultural e religioso altamente emotivo e próximo das pessoas enlutadas, pleno de mistério e mitos emblemáticos, transforma-se cada vez mais numa questão prática e de saúde pública, que é delegada a especialistas”, lamenta Fischer. Nos cemitérios modernos, não há mais sepulturas ou lápides, elementos outrora tão significativos como locais de visita e cuidado dos mortos. Há um campo verde, pequenas placas e o mínimo de identificação possível. “A relação cada vez mais reduzida da família com a sepultura do morto transformou o próprio cemitério num anacronismo”, diz Fischer. Comunidades cristãs e famílias do interior ainda hoje continuam a velar seus mortos. De modo geral, entretanto,
esse tipo de experiência se perde cada vez mais na sociedade midiática em que vivemos. Cemitério virtual – Na internet, a morte apresenta-se de novas formas, em alguns casos até de maneira chocante – corpos despedaçados e imagens que antes não tinham lugar. Nesse ambiente virtual, também cresce o número de sites que são como cemitérios virtuais. Alguns são extensos, com fotos, vídeos e longos currículos dos homenageados, onde é possível deixar mensagens eletrônicas e enaltecer o morto. Segundo Fischer, “a diferença é que, enquanto o cemitério real continua permitindo contato concreto com a morte, mesmo que haja somente as cinzas de um cadáver, no cemitério virtual o corpo morto não tem mais nenhum papel ou significado. É um velódromo sem corpo”. Advertências – A nova cultura no trato com a morte e o luto tem cada vez mais lugares públicos para marcar presença, como cruzes à beira de rodovias, por exemplo. Tais cruzes são atos individuais e criativos de trabalhar o luto na sociedade e marcas da morte na paisagem, que lembram as vítimas como mártires modernos do caos no trânsito e são advertências aos vivos. “Todas elas são tentativas de responder ao confronto entre a realidade da transitoriedade da vida e o desejo de deixar alguma marca que permaneça para além dessa transitoriedade”, conclui Fischer. E esse é um anseio que permanece na sociedade moderna. É uma busca criativa que também no futuro deve tornar fascinante a observação de como se darão as respostas em relação ao morrer e à transitoriedade N da vida na sociedade. CLOVIS HORST LINDNER é editor da revista Novolhar em Blumenau (SC)
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CAPA
Cremar é um rito cristão?
por Cleide Olsson Schneider
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m nossa vida pessoal e comunitária, ouvimos diversas vezes a frase: “Nada poderá nos separar do amor de Deus”. Essa frase tem sua origem no texto do apóstolo Paulo aos Romanos e a conhecemos das situações de sofrimento, angústia ou morte. Cremos que o amor de Deus excede qualquer entendimento e qualquer sofrimento. Quando levamos o corpo de uma pessoa querida à sepultura, nosso coração agarra-se à certeza de que nada nos separa do amor de Deus. Quando nos deparamos com uma situação de cremação, nosso coração tem medo, e com o medo vêm as dúvidas. Perguntamos pouco sobre as questões práticas da cremação. Temos, sim, dúvidas de fé. Cremos na ressurreição de Jesus Cristo e na promessa da vida eterna, mas temos dificuldades para entender a cremação e a ressurreição dos mortos (1 Corín-
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Jaime Batista da Silva
A cremação deixa algumas pessoas incertas sobre o cuidado de Deus até o dia da ressurreição.
tios 15). A fé cristã não prescreve uma forma de sepultamento. O próprio relato bíblico aponta para diferentes formas, conforme o costume da época e da cultura. Optar pela cremação deixa algumas pessoas incertas sobre o cuidado de Deus até o dia da ressurreição. O Novo Testamento ajuda-nos a entender que o olhar de Deus a seus filhos e filhas não tem fim, independente da forma de sepultamento que a família escolhe. Deus é Deus de vivos e mortos: “Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor” (Romanos 14.8). É de Deus o poder de criar e recriar a vida (Romanos 4.17), de dar a vida e de tirá-la (Jó 1.21). Hoje podemos optar pela forma de sepultamento. A cremação leva em consideração aspectos econômicos,
higiênicos, de espaço físico ou de distância geográfica, por exemplo. Outrossim, a igreja “recomenda, com insistência, que a urna com as cinzas não seja guardada em casa, mas enterrada em local apropriado, para evitar que surja veneração de mortos/as ou que se criem amarras psicológicas”(Documento: O SEPULTAMENTO eclesiástico: um posicio namento da IECLB referente a enterro e cremação. Boletim Informativo 157, Porto Alegre, 1997). Há locais apropriados nos cemitérios para depositar ou enterrar as urnas com as cinzas, e existe um rito específico para esse momento, chamado de Rito das Cinzas. Nesse rito afirmamos: “Deus criou o ser humano do pó da terra; cremos, pois, que também das cinzas ele fará ressurgir um novo ser humano, mediante a fé na ressurreição de
CAPA
“Deus criou o ser humano do pó da terra; cremos, pois, que também das cinzas ele fará ressurgir um novo ser humano, mediante a fé na ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo.”
(Funeral Cristão)
nosso Senhor Jesus Cristo” (Funeral Cristão, p. 83). O sepultamento – e com ele também a opção pela cremação – faz parte de um rito importante que ajuda as pessoas a enfrentar a mudança de vida que o falecimento de uma pessoa querida causa. Independente da forma pela qual optamos para o sepultamento, é importante ter claro que a fé cristã nos permite que, também no momento de dor, tenhamos esperança na ressurreição dos mortos pela fé na ressurreição de Jesus Cristo. A história da pessoa falecida vai permanecer sempre nos corações e na lembrança de quem conviveu com ela. Permanecerão a saudade, a fé, a esperança e a certeza de que nada nos pode separar do amor de Deus. N CLEIDE OLSSON SCHNEIDER é teóloga da IECLB em São Leopoldo (RS)
Ortotanásia: a morte bíblica Em dezembro de 2010, a Justiça Federal autorizou a prática da ortotanásia no Brasil. A palavra é de origem grega e significa “morte correta”. por Cezar Zillig
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o momento em que escrevo (abril 2011), um menino de dez anos vive – ou sobrevive – graças a um coração artificial que lhe garante a circulação sanguínea enquanto aguarda por um eventual doador. Seu coraçãozinho enfermo não conseguia mais mantê-lo vivo. É o primeiro caso do gênero no Brasil em que a circulação é mantida por “máquina”, fora de um centro cirúrgico. Assumir a circulação de uma pessoa já é prática corrente desde a década de 1950 em cirurgias cardíacas; agora tais procedimentos estão extravasando para unidades de terapia intensiva, as UTIs, exatamente como ocorreu com outros procedimentos, visando promover a hidratação, a alimentação e a respiração de pacientes incapazes de fazê-los quando entorpecidos ou em franco estado de coma. No decorrer do século 20 se aprimoraram técnicas de hidratação e alimentação via sondas gástricas, permitindo a reposição de líquidos, sais minerais e nutrientes. Simulta-
neamente se desenvolveu o aporte dessas substâncias também por via intravenosa, permitindo ainda a transfusão de sangue perdido em acidentes, cirurgias, enfermidades consumptivas etc. O passo seguinte, mais complexo, foi o controle da respiração através de respiradores mecânicos. O advento das práticas de medicina intensiva a partir da década de 1960 gerou situações até então inusitadas na prática médica e na vivência humana. Casos de “morte cerebral”, por exemplo, decorrem dessas tecno logias. São recursos extraordinários que permitem manter viva uma pessoa além de limites até então intranspo níveis; com isso se ganha tempo para prolongar tratamentos até que os efeitos almejados ocorram e assim recuperar um doente viável, resgatando-o para uma vida com dignidade. No entanto, no afã de não capitular nunca e “salvar” vidas sempre, tais recursos têm sido empregados para prolongar estágios finais de enfermidades incuráveis, muitas
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vezes acompanhadas de dores e desconfortos indescritíveis. Situações em que se empregam recursos médicos para prolongar um estado de agonia irreversível caracterizam o que se denomina de distanásia, a “morte dolorosa”. A distanásia é um “luxo” só possível graças às técnicas médicas acima descritas. A distanásia está no cerne do que no linguajar médico internacional recebe a denominação de medical futility: usar recursos médico-científicos de maneira inconsequente, sem considerar o paciente no seu todo, é de fato mera futilidade. Infelizmente, portadores de enfermidades incuráveis que resistiram a todo tipo de tratamento em fases precoces têm
experimentado uma agonia prolongada, geralmente sofrida, nas UTIs por este mundo afora. O mais intrigante é que até recentemente os códigos de ética médica e a própria legislação vinham obrigando o médico a praticar a distanásia. Deixar de literalmente torturar um agonizante era confundido com omissão de socorro. Que ironia! Felizmente, o Conselho Federal de Medicina, em novembro de 2006, corrigiu essa falha, e o novo Código de Ética Médica brasileiro promulgado em setembro de 2009 prescreve: “Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários
e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”. Em dezembro de 2010, a Justiça Federal autorizou a prática da ortot anásia no Brasil, reparando definitivamente um triste engano. Ortotanásia é palavra de origem grega significando “morte correta”. Finalmente, médicos são liberados de prolongar sofrimentos a pretexto de tratamentos equivocados, e moribundos podem experimentar a “boa morte”, partir em paz como um patriarca bíblico, rodeados dos seus e em seu próprio leito. N Cezar Zillig é médico neurocirurgião e escritor em Blumenau (SC)
Divulgação Novolhar
MEDICAL FUTILITY: A expressão em inglês designa o uso de recursos médicos de maneira inconsequente, sem considerar as chances do paciente
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As crianças e a morte COMO É difícil lidar com a realidade DA MORTE, não é incomum que os adultos tentem poupar as crianças no intuito de protegê-las. por Katiane Silva
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morte é um tema antigo e, mesmo sendo uma realidade incontornável, ainda é um tabu. Sendo assim, falar sobre a morte não é uma tarefa fácil, nem mesmo para adultos. Abordar esse assunto com as crianças torna-se um desafio. Por causa da dificuldade de lidar com a morte, evita-se pensar sobre ela, o que resulta no surgimento de mecanismos defensivos que buscam alívio para a angústia. A negação é o principal deles, e a sociedade não se cansa de oferecer tecnologias que alimentam a fantasia de eternidade. Por outro lado, na experiência com a morte de alguém querido, essas defesas são desconstruídas, entram em cena sentimentos de desamparo e impotência, não restando subterfúgios para encarar a transitoriedade e a finitude. Sendo tão difícil lidar com essa realidade, não é incomum que os adultos tentem poupar as crianças no intuito de protegê-las. Há uma tendência a subestimar a capacidade que elas têm de compreensão do mundo, e parece que é um engano pensar
que uma criança não seja capaz de entender o processo da morte, mesmo dentro do que é possível para cada idade e sobretudo dos recursos psíquicos individuais. Lidar com perdas é uma tarefa que se impõe à criança desde o seu nascimento, a começar pela saída do confortável útero materno, onde todas as necessidades eram automaticamente satisfeitas. Desde muito cedo, a criança tem que se defrontar com a ideia da finitude das coisas: o aleitamento materno que, em algum momento, é interrompido, o bico que tem de ser abandonado, um brinquedo que é estragado, um amigo que troca de escola, um animal de estimação que morre e tantas outras situações em que se enfrentam “pequenas” mortes, que funcionam como um ensaio para as demandas da vida. A morte de alguém querido, e especialmente de um dos pais, é uma das experiências mais impactantes na vida de uma criança. Pesquisas sobre o tema apontam que é sempre melhor falar abertamente sobre a pessoa que morreu, as circunstâncias da morte e a tristeza que isso causa a todos, pois essa atitude favorece a elaboração psíquica da perda. Se a fala é evasiva, abre-se espaço para que fantasias, muitas vezes descabidas, tomem conta da mente da criança. A maneira de abordar o tema deve ser apropriada ao nível de compreensão, mas é imprescindível mencionar a morte. Explicações como “foi descansar”, “fez uma longa viagem” ou “está dormindo” levam a criança ao pensamento enganoso de que a pessoa que morreu poderá voltar, pois ela ainda não entende a linguagem simbólica e possivelmente tomará essas
expressões ao pé da letra. Mostrar a fragilidade humana e a impotência frente à morte para que a criança se identifique ainda é melhor do que explicações de difícil assimilação. É importante que a família abra espaço para que o luto seja vivenciado pela criança, o que inclui expressar os sentimentos a respeito da perda e participar do funeral se assim desejar. Uma forma de ajudar as crianças durante o luto é demonstrar que, assim como ela, a família toda está sofrendo e sentindo saudades. A elaboração da perda pressupõe saber que é aceitável expressar sentimentos, e fazer isso em família diminui o desamparo desse momento. Muitas crianças tendem a sentir-se culpadas pela morte e nutrem a fantasia de que fizeram algo errado, que causou o abandono, o que aumenta o sofrimento. Também podem sentir culpa por ter tido sentimentos hostis para com os pais e que a morte é um castigo. Por isso é necessário falar às crianças que aquilo que aconteceu não tem relação com seus sentimentos e atitudes, diminuindo a culpa e consequentemente favorecendo a elaboração do luto. Por fim, é fundamental lembrar que as crianças capturam o mundo através do olhar dos adultos que as cercam e que, diante da morte, elas reagirão segundo a vivência que os pais e familiares que convivem com elas apresentarem. É função do adulto ensinar a criança a lidar com as perdas e sobretudo a continuar vivendo apesar delas, demonstrando que o contato com a morte pode aumentar a reverência pela vida. N KATIANE SILVA é psicóloga em Porto Alegre (RS)
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CAPA
Para além da Sexta-Feira da Paixão a experiência da ressurreição de cristo une todos os cristãos até os dias de hoje. este não é um ato místico individual, mas carregado de significado comunitário. por Suzel Tunes
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aquela sexta-feira incomum, o céu estava sombrio e ameaçador. Às três horas da tarde, quando Jesus dava seu último suspiro, as trevas já cobriam a terra e também o coração dos filhos de Deus. Com o mestre morreram sonhos e esperanças. A história do cristianismo teria um fim naquela sexta-feira se, dois dias depois, não ocorresse um fato extraordinário: Jesus começou a aparecer para alguns de seus discípulos. “A ressurreição é sinal da teimosia de Deus de não aceitar um mundo que terminasse na Sexta-Feira da Paixão”, diz o teólogo Renatus Porath, pastor na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil em São Paulo e professor na Escola Dominicana de Teologia (EDT). Para ele, não fosse esse novo sinal colocado por Deus, a força de repressão, a cruz, a exclusão, o ódio e a incredulidade teriam ficado com a última palavra. O Deus do reino anunciado por Jesus
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teria sido expulso definitivamente deste mundo. “Nesse sinal, Deus insiste em não abrir mão deste seu mundo, desta sua gente, nem mesmo de seus algozes, que puseram fim a seu empreendimento salvador”, diz o pastor Renatus. As aparições de Jesus pegaram os discípulos de surpresa. De repente, o Jesus que haviam visto morto na cruz apenas dois dias atrás lhes aparecia vivo, falando e até comendo entre eles. Os discípulos perceberam, entretanto, que era uma situação muito diferente daquela que haviam presenciado com Lázaro. Jesus não havia sido revivifi cado para simplesmente viver mais alguns anos sobre a terra e depois morrer. Ele atravessara as barreiras de tempo e espaço, estabelecendo uma nova vida. Jesus vencera a morte. Até os dias de hoje, a ressurreição de Jesus não é um evento que se possa comprovar, justamente porque transcende as dimensões da história e ciência humanas. Pode-se comprovar,
no entanto, o poderoso efeito que a aparição de Jesus causou sobre seus seguidores, dando-lhes a coragem de anunciar o Jesus de Nazaré crucificado como o Senhor. Para o teólogo Carlos Musskopf, pastor na Paróquia do ABCD da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, a experiência que os discípulos tiveram com o Jesus ressurreto jogou luz sobre tudo o que Jesus fez e disse antes. “Por causa da ressurreição de Jesus tudo ganhou novo colorido. A experiência com o Cristo ressurreto não direcionou a fé para algo depois da morte, mas jogou luz sobre o aqui e o agora”, diz ele. Segundo o pastor, a fé no Cristo ressurreto é a memória dessa experiência que “não é de uma pessoa só” e une os cristãos até os dias de hoje.
CAPA O pastor metodista Helmut Renders, professor na Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo, também ressalta o aspecto comunitário da experiência do Cristo ressurreto, demonstrado no relato da aparição de Jesus aos discípulos no caminho de Emaús. “Em Emaús, temos a experiência da Ceia, lugar da presença de Cristo. Lucas está relacionando a percepção do Cristo com os meios da graça, iniciativa divina no meio de seu povo. Não é, portanto, uma experiência mística individual, mas a experiência da presença de Deus, que reconcilia e estabelece comunhão”, diz ele. Ao ressuscitar Jesus, Deus confirma seu ministério em favor da justiça, da solidariedade e do amor incondicional, ao qual a crucificação quis dar um fim. “No crucificado e ressurreto, um novo tempo de convivência entre Deus e seu mundo tornou-se pos sível”, diz o pastor Renatus. Assim, a redenção estende-se a tudo o que existe na criação. “A partir da ressurreição, a relação do ser humano com outros irmãos e a natureza ganha novo sentido”, destaca o pastor Carlos Musskopf. Redimidos, os filhos de Deus vivem agora os sinais da ressurreição, que devem ser expressos numa relação amorosa com todo o mundo criado por Deus. “A esperança na redenção do mundo dá-nos forças e energia para lutar contra os sinais da morte e confere à vida justiça, paz e alegria para o momento presente. Somos chamados a viver os sinais do novo céu e da nova terra”, ressalta o pastor Carlos. Mesmo que seja numa sexta-feira de dor. Na esperança da ressurreição, o povo de Deus espera sempre por um novo dia. N SUZEL TUNES é jornalista em São Paulo (SP)
É preciso saber morrer por Lothar Carlos Hoch
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morte foi privatizada, dobrando-se às leis da economia de mercado; não é mais questão da família, mas de uma indústria que se encarrega dela. Essa afirmação do teólogo lute rano Martin N. Dreher, em entrevista ao Instituto Humanitas da Unisinos, dá o que pensar. Ela aponta para o fato de que, nos dias atuais, nós nos envolvemos cada vez menos com o acompanhamento de familiares e amigos na fase terminal de suas vidas. Isso acaba nos empobrecendo, pois deixamos de aprender a lidar com nossa finitude e, assim, perdendo a oportunidade de nos preparar melhor para nossa própria morte. Efetivamente, vivemos um processo de “exorcização” da morte do nosso cotidiano. O tratamento médico retira os nossos familiares e amigos de nosso convívio. O hospital ocupa-se da pessoa enquanto doente, e a funerária encarrega-se dela depois de falecida. Nós estamos nos acostumando a “terceirizar” o cuidado e o acompanhamento de nossos entes queridos nos momentos cruciais de suas vidas e pagando para que outros assumam uma responsabilidade que, desde os tempos mais remotos, era um direito e dever sagrado nosso. Desse modo cresce o número de pessoas que jamais viu alguém morrer. Enquanto isso, o comércio com a mor-
te prospera. Talvez não estejamos nos dando conta de que o comércio com a morte se alimenta de nosso medo de lidar com ela. No século 16, o reformador Martim Lutero escreveu um texto sobre a “arte de morrer”. A seguir, destaco os pensamentos centrais dessa obra que, mesmo utilizando uma linguagem do final da Idade Média, tem algo de importante a transmitir a nós em pleno século 21. Em primeiro lugar, Lutero apresenta uma sequência de “provações”, que podem preceder ou acompanhar o momento em que nos damos conta de que a morte se aproxima. Ele discorre sobre a dúvida e o desespero que podem nos assaltar na hora derradeira, gerando incerteza a respeito do sentido da vida e da própria existência de Deus. Nesse caso, Lutero recomenda invocar o anjo da fé, que pode nos trazer ou devolver a confiança no amor de Deus e em seu cuidado paternal. A seguir, faz referência à avareza, que consiste no ato de nos agarrarmos e aferrarmos às riquezas e às obras que realizamos ao longo de nossa vida. Aqui, o anjo da generosidade pode vir em nosso socorro e ajudar-nos a des enrijecer as garras do apego ao material e a soltar as coisas e as pessoas que nos prendem. Segue-se a impaciência frente ao sofrimento e à provação que essas
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representam, inclusive a tentação de interferirmos em nossa própria vida, visando abreviá-la. Lutero recomenda que invoquemos o anjo da paciência para que nos fortaleça para sorver o cálice amargo do sofrimento até a última gota, consolando-nos na certeza de que, no tempo certo, virá o alívio pelo qual tanto ansiamos. Finalmente, Lutero fala da vaidade que acompanha todas as conquistas que imaginamos ter alcançado ao longo desta vida, tanto as materiais como as honrarias, os títulos e as homenagens que nos foram prestadas. Em vista disso, cabe invocar o anjo da humildade, que pode nos ajudar a entender que tudo é passageiro.
Por fim, Lutero apresenta alguns passos ou formas importantes de nos prepararmos para a morte: 1. Despedida – Despedir-se adequadamente é aprender a soltar aquilo que nos “prende”: abandonar a preocupação com os bens (isso pode ser feito antecipando questões que envolvem o patrimônio, herança etc.). É igualmente importante despedir-se dos entes queridos, o que inclui o ato de perdoar e pedir perdão por faltas cometidas. 2. Buscar a face de Deus – É importante intensificar e aprofundar a relação com Deus, que no vigor de nossos anos tende a ser negligenciada. Isso pode contribuir para
amenizar o nosso medo da morte e fortalecer nossa fé. 3. Confiar incondicionalmente em Deus como o único Senhor da Vida. Dele viemos e para ele retorna remos e podemos confiar em sua graça e em seu perdão. 4. Sentir-se envolto numa comunidade de fé, que está ao nosso lado com seu cuidado em meio a minha dor e fraqueza e que partilha da minha esperança de que podemos nos confiar integralmente nas mãos de Deus e que nele estamos bem guardados para todo o sempre. N LOTHAR CARLOS HOCH é teólogo e professor de Teologia Pastoral na Faculdades EST em São Leopoldo (RS)
Visitação: preparo e planejamento tas e leem textos inadequados para a hora são exemplos. O ato de visitar é um ato de solidariedade, de amor. Ao visitar alguém, se está diante de pessoas frágeis, sensíveis, carentes e, ao mesmo tempo, ao lado de familiares temerosos e angustiados. Os temas trabalhados no curso “Vida no Limiar da Morte” ajudam na visitação. Os conteúdos repartidos pelas assessorias ensinam a ouvir, questionar e refletir. Tal exercício ajuda a desmistificar algumas temáticas complexas e difíceis do dia a dia e motivam os participantes a exercer o “ministério da visitação” em suas comunidades.
por Valmi Ione Becker
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Uma visita bem feita precisa de treinamento
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O ministério de acompanhamento a doentes terminais e seus familiares requer um bom preparo. Não se pode sair por aí visitando pessoas fragilizadas e acamadas sem nenhuma capacitação. Por isso se decidiu investir, no Sínodo Norte Catarinense, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em cursos de “Vida no Limiar da Morte”. Foi uma resposta ao clamor das lideranças comunitárias: Precisamos nos equipar para o desafio de acompanhar pessoas no leito de morte. Fazer visitas a doentes terminais ou doentes em geral requer sensibilidade, conhecimento, discrição, espiritualidade e equilíbrio. Sempre se ouve que é bom receber “boas visitas” quando se está doente. Quem visita nunca quer fazer uma visita ruim, mas existem visitas malfeitas. Uma visita é ruim quando não há preparo e planejamento. Vi sitadores que permanecem tempo demais no quarto, que falam alto demais, fazem perguntas indiscre-
Acompanhar alguém na trajetória final da vida é, sem dúvida, uma missão diaconal solidária. É gratificante ouvir alguns testemunhos dos participantes no final dos cursos: “Ampliei os meus horizontes em relação à vida e à minha própria morte”; “Aprendi a valorizar mais a vida e a olhar com sobriedade para a minha própria fin it ud e. Quero continuar me informando sobre esse assunto que mexeu tanto comigo”; “Quero servir ao próximo com amor e responsabilidade, segundo a ordem de Jesus”. Cabe à igreja ser solidária, ir ao encontro da necessidade dos seus. A proposta brotou da cabeça da médica inglesa Cicely Saunders. “Tu és importante, porque tu és tu. Tu és importante até o último momento de tua vida, e nós faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para que tu não apenas morras em paz, mas que tu possas viver bem até o fim”, definiu ela. N VALMI IONE BECKER é diácona da IECLB e assessora do Departamento Sinodal de Diaconia (Sínodo Norte Catarinense) em Joinville (SC)
CAPA
A sociedade banaliza a vida por Paula Oliveira
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esde a época da escravidão, inicialmente com os índios e depois com a mão de obra africana, a colonização mercantilista, o coronelismo, atravessando a história do Brasil até os dias atuais, a violência está presente. É uma triste realidade, que causa medo, indignação e influencia a rotina de todos, sem exceção. Quem ainda não sofreu com a violência ou não conhece alguém que sofreu algum tipo de violência? “Ela” tornou-se comum na vida das pessoas em suas diversas configurações. Violência contra a mulher, a criança, o idoso, violência sexual, política, psicológica, física, verbal, violência contra a vida. E as pessoas se perguntam: “Mas por que vivemos numa sociedade tão opressora, tirana e agressiva?”. A resposta pode ser exatamente esta: vivemos numa sociedade opressora e consumista, que promove a morte. Promove a violência e o consumismo pelos comerciais e programas de televisão, filmes e jogos de computador, em que matar as pessoas parece ser a coisa mais normal do mundo. Promove a desigualdade, a impunidade e a banalização da vida. Podemos fazer algo para mudar isso? O tema da violência é muito amplo. As causas são associadas, em parte, a problemas sociais, como
miséria, fome, desemprego. Mas nem todos os tipos de criminalidade derivam das condições econômicas, afirma o brasiliense Flaubert Mesquita, 30 anos, sociólogo da Defensoria Pública da União. Segundo ele, pensar que redistribuir renda significa reduzir a criminalidade é um engano. “Estudos mostram que, apesar dos ganhos aquisitivos dos últimos anos, a violência tem crescido, e não diminuído. Então, a causa não pode ser a pobreza por si só.” Vários fatores colaboram para o aumento da violência. A urbanização acelerada, por exemplo, traz um grande fluxo de pessoas para as áreas urbanas e contribui para um crescimento desordenado e desorganizado das cidades. Também as fortes aspirações de consumo, em parte frustradas pelas dificuldades de inserção no mercado de trabalho. Por vezes, a violência é estimulada no seio familiar, por exemplo mães que fazem vista grossa ou recusamse a acreditar que seus filhos são marginais. “Muitos pais subestimam o potencial violento de um filho sob o efeito de drogas. Passam a mão na cabeça. Há elementos culturais importantes que fazem com que a violência brasileira tenha tal forma”, reflete o sociólogo. Outro depoimento que confirma a importância dos valores vividos
no âmbito familiar é o do policial bras il iens e Luís Ferreira (apenas um pseudônimo para preservar a identidade). Ele afirma que a margi nal id ad e está condicionada à perda de valores sociais importantes. “É de suma importância a participação da família na formação do indivíduo para prevenir comportamentos violentos e que tenham caráter antissocial.” Se, de um lado, as perdas de valores sociais importantes são causa, do outro, o incentivo e a facilidade ao acesso de bebidas e drogas, aliados à sensação de impunidade diante de leis frouxas e à omissão do Estado em suas obrigações básicas, são fatores preponderantes para fomentar a violência. No Brasil, a polícia serve para defender a elite. “O dinheiro dá acesso a grandes advogados que encontram ‘brechas’ legais e ‘firulas jurídicas’. A lei só em tese é para todos. Essa pretensa igualdade promove mais desigualdade”, afirma o policial. Para o sociólogo Flaubert Mesquita, o Estado brasileiro concede liberdade aos homicidas como se esses tivessem cometido algo mínimo. “Uma das constatações mais duras sobre a violência nacional é que a vida no Brasil vale pouco. E uma forma de ver isso é através da punição dispensada aos homicidas.” A solução para a questão envolve diversos setores da sociedade, não apenas a segurança pública e um judiciário eficiente, mas a melhoria do sistema educacional, habitacional, oportunidades de emprego, dentre outros fatores. Requer também uma participação maior da sociedade nas discussões e soluções N desse problema. PAULA OLIVEIRA é jornalista em São Paulo (SP) NOVOLHAR.COM.BR –> Mai/Jun 2011
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Ciclovias
Cidade sobre duas rodas
Grande parte do trajeto até o trabalho Danilo faz pelas ciclovias do município. Segundo o secretário de Segurança Pública e Mobilidade Urbana de Sapiranga, Volnei Pastorio Pereira, o município conta com as ciclovias das avenidas 20 de Setembro e Mauá e da RS-239, que totalizam sete quilômetros. “Temos previsão de aumento de ciclovias/ciclofaixas, projetadas em mais de 30 quilômetros, que ligarão todos os bairros ao centro”, afirma. A cidade de 75 mil habitantes é considerada a “cidade das bicicletas”. Conforme Pereira, em 2003 foi feito um estudo que constatou que havia uma bicicleta para cada habitante. “O que também não era exato, já que esse é um veículo do qual não se tem registro nos órgãos de trânsito. Hoje estimamos 40 mil, pois cresceram o poder aquisitivo e as facilidades para a compra de veículos motorizados, carros e motos. Temos ainda um aumento bastante expressivo de bicicletas elétricas, que é outro tema de discussão da secretaria, e também o uso mais frequente do transporte coletivo”, comenta.
por Luciana Reichert
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em Sapiranga (RS). “A bicicleta faz parte de minha vida. Além de me exercitar, não preciso ficar esperando ônibus, não tem blitz nem congestionamento para enfrentar. Pego a minha bicicletinha e vou embora”, comenta o prevenido auxiliar, que sempre carrega uma capa de chuva em sua bicicleta.
Fotos: Luciana Reichert
e segunda a sexta-feira, o auxiliar de serviços gerais Danilo Emmel, 47 anos, faz o mesmo percurso para ir ao trabalho – e sempre de bicicleta. Faça sol ou chuva, é com esse meio de transporte que ele percorre diariamente os quatro quilômetros de sua casa até a fábrica em que trabalha
Mais do que lazer – A emprega doméstica Simone Cristina dos Santos, 38 anos, utiliza a bicicleta para todas as suas atividades diárias. “Vou com ela ao trabalho, levo meu filho à creche, vou ao mercado, saio para pagar contas, para tudo”, comenta. O benefício para a saúde também é destacado por ela; ela diz que desde a infância usa a “magrela”. “Mal aprendi a andar, já fui para a bicicleta”, brinca.
PEDALANDO: Grande parte do trajeto até o trabalho Danilo faz pelas ciclovias do município de Sapiranga, considerada a cidade das bicicletas
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Em todo canto da cidade, há muitos bicicletários, quase sempre abarrotados. No início da manhã e no final de tarde, o vaivém das bicicletas é intenso. A diarista Adelaide Maria Waphier, 47 anos, comenta que, nos locais sem ciclovia, é difícil andar com tranquilidade: “É um perigo, porque há muitos motoristas que não nos respeitam; por isso deveria haver mais ciclofaixas”. Para a diarista, o “transporte mais barato” leva-a para trabalhar. “Se fosse pagar passagem todos os dias, ficaria pesado”, argumenta. Segundo uma pesquisa da Companhia do Metrô de São Paulo, mais de 70% das viagens feitas diariamente de bicicleta na capital são para trabalhar. Levando em conta outras atividades do dia a dia, como fazer compras ou ir para a escola, o índice sobe para 96%. Primeira da América Latina – Campo Bom, a cidade vizinha de Sapiranga, é pioneira em ciclovia. O secretário de Obras e Trânsito de Campo Bom, Nírio Breunig, diz que a cidade se tornou a primeira da Améri-
ca Latina a ter um local específico para os ciclistas já em 1977: “Temos uma ciclovia única, que percorre praticamente toda a cidade, pois ela tem 18 quilômetros de extensão, sendo seis desses num anel central”. Conforme Breunig, há previsão de aumentar a ciclovia em cerca de três quilômetros até o próximo ano. Os ciclistas de São Leopoldo contam com as ciclovias da avenida Imperatriz, com 3,2 quilômetros, e da avenida Mauá, de um quilômetro. Conforme o assessor de Mobilidade Urbana do Município, Jiovane Veiga Pinto, há previsão de construção de 3,2 quilômetros de ciclovia junto à revitalização do arroio Kruse. Para o assessor, o uso da bicicleta traz benefícios também para o meio ambiente. “É um veículo limpo e ecologicamente correto. Queremos ampliar cada vez mais o número de ciclovias para que as pessoas utilizem menos os carros, aliviando as malhas viárias e reduzinN do os gases poluentes”, frisa. LUCIANA REICHERT é jornalista em São Leopoldo (RS)
CICLOVIA: Avenida Mauá, em Sapiranga, com ciclovia separada da rua por um canteiro de grama
Adelaide: Nos locais sem ciclovia, é difícil andar com tranquilidade. “É um perigo, porque há muitos motoristas que não nos respeitam; por isso deveria haver mais ciclofaixas”
Bike com segurança Obedeça a todas as leis de trânsito. Conduza a bicicleta como você dirige o carro. Use sinalização refletiva, espelho e campainha. Dê preferência a roupas claras e use capacete. A cabeça representa 90% das fatalidades em mortes. Prefira as ciclofaixas e ciclovias. Se não for possível, pedale sempre à direita. Siga o fluxo do trânsito, jamais na contramão. Ande em linha reta. Sinalize com gestos suas intenções de manobra. Faça-se bem visível. Respeite o pedestre. É proibido por lei andar nas calçadas. Pare antes da faixa se houver pedestre atravessando. Verifique pneus e freios antes de sair. Faça manutenção periódica e leve ferramentas básicas. Pedale defensivamente. Perceba as intenções do motorista. Fique atento aos veículos que podem surgir de repente de uma rua ou entrar cortando a sua frente. Não pedale colado atrás dos veículos. Esteja sempre pronto para frear e cuidado com o chão liso. Você faz parte do trânsito e tem direitos: não deixe que os carros o forcem para o lado. Eles devem por lei manter uma distância de 1,5 metro no mínimo. Você tem direito à faixa. Mesmo assim, evite ruas movimentadas e a “disputa” com os carros.
Fonte: Associação Blumenauense Pró-Ciclovias
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reflexão
Uma pedra no caminho por Neusa Tetzner
No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
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Carlos Drummond de Andrade
Piotr Menducki
embrei-me desse poema de Drummond ao pensar no significado da Ascensão de Cristo na vida litúrgica da igreja. Celebramos a festa da ressurreição, promessa de esperança da vida que
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não termina – eterna –, com os olhos postos em Pentecostes – a vinda do Espírito Santo, que marca o surgimen to da igreja. O que move a vida da igreja de um modo geral são as festas. Se olharmos para nosso calendário litúrgico, os grandes momentos são festivos. Acrescentemos ainda os eventos festivos de cada comunidade. A Ascensão está no “meio do caminho” entre duas grandes festas e passa “meio que despercebida”,
pois sempre acontece no “meio da semana”. Também os evangelhos descrevem esse evento “meio que resumido”. Neste ano, a Ascensão do Senhor é comemorada na quinta-feira dia 2 de junho. É importante lembrar que festas são momentos em que recordamos os grandes feitos de Deus na vida do povo e da igreja. Momentos decisivos que impulsionaram a caminhada do povo. Festa é lugar de fazer memória antes de celebrar, assim como na Santa Ceia, em nosso aniversário ou no final de cada ano. Relembrar é preciso! Por isso vale lembrar que o relato da Ascensão em Lucas 24.50 a 53 está inserido no “meio de uma crise” da comunidade. Depois da ressurreição, os discípulos e discípulas seguiram colocando em prática os ensinamen tos de Jesus, mas, com o passar do tempo, as lideranças se foram, as dificuldades aumentaram por causa
da perseguição e morte daqueles que eram do Caminho (Atos 9.2). E os cristãos e cristãs daquela época perguntavam: Para onde ir? Como seguir? Como encontrar o rumo da caminhada? Como levar adiante o compromisso assumido de divulgar o evangelho até os confins da terra? Também em nossas comunidades, passadas as festas, entramos num período de letargia. O povo desaparece, e ficam apenas aquelas pessoas que perseveram no trabalho rotineiro. E as perguntas sempre estão presentes. Como motivar as pessoas a permanecer vinculadas ao cotidiano da vida da igreja? Como fazer missão? Muitas vezes, para manter a “au diência e o público animado”, continuamos realizando atividades extras para animar e reunir o povo. A Ascensão de Jesus lembra que o lugar de testemunhar é aqui na terra, no lugar onde se vive, no meio do povo, com todas as suas dificuldades e pedras no caminho. Não adianta reclamar nem olhar para o céu esperando algo acontecer. Missão se faz com os olhos fitos na realidade. O evangelista Lucas descreve que, antes de Jesus se retirar para os céus, ele abençoou os discípulos. Também nós somos abençoados em nossas
A Ascensão de Jesus lembra que o lugar de testemunhar é aqui na terra, no lugar onde se vive, no meio do povo, com todas as suas dificuldades e pedras no caminho. vidas e atividades que realizamos em nossa Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Compartilho uma bonita experiência que estamos vivenciando na Comunidade Evangélica Luterana Missionária do Vale do Atibaia (CELVA). Há cerca de três anos, iniciamos a construção de nossa igreja. Somos uma pequena comunidade, área de missão na União Paroquial Luterana Região de Campinas (UPLRC), e para muitos a obra parecia algo impossível de ser realizado. Alguns olhavam desconfiados, críticos, mas muitos ousaram crer e trabalhar para que o projeto se concre-
tizasse. Ao invés de olhar para o céu, colocaram as mãos e os pés a serviço. Estamos prestes a inaugurar com a certeza de que Deus nos tem abençoa do cada dia, não só pela construção, mas porque muitas pessoas se doaram e passaram a crer e trabalhar dando um testemunho de fé e ação. A Ascensão de Jesus desafia-nos a buscar um novo olhar. Muitas são as oportunidades para seguir testemunhando até que ele venha. Enquanto aguardamos, mesmo que no “meio do caminho haja pedras”, não nos esqueçamos dos acontecimentos “daquele tempo” e da promessa que ele fez, que continua valendo para nós ainda hoje. E, retomando o poeta, digamos: “Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho” Mas ela foi retirada! Não está mais ali! Podemos seguir com fé! N NEUSA TETZNER é teóloga da IECLB, coordena os Cursos de Gênero e ONLINE na CESEP em Campinas (SP)
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RETRATOS
Mulheres desobedientes
Ilustração: João Soares
por Nelson Kilpp
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á momentos em que é preciso contrariar ordens superiores ou normas vigentes, especialmente sob regimes autoritários e em contextos de repressão. A história bíblica mais conhecida de desobediência de mulheres encontramos em Êxodo 1.15-21. No antigo Egito viviam e trabalhavam as parteiras Sifrá (“beleza“) e Puá (“moça“), que no parto assistiam tanto mulheres egípcias como hebreias. As duas parteiras não tiveram a chance de constituir uma família própria. Por isso as pessoas chegavam até a desprezá-las, achando que Deus lhes
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havia negado sua bênção. Mas isso não as desanimava nem abalava sua fé. Mesmo não tendo filhos próprios, ajudavam outras mulheres a ter os seus. O texto bíblico narra que o faraó tentou cooptar Sifrá e Puá para seu plano de extermínio das etnias estrangeiras no Egito, ordenando-lhes matar todas as crianças hebreias do sexo masculino por ocasião do parto. Como a parteira era pessoa de confiança e como geralmente não havia testemunhas no momento do parto, isso não seria tarefa difícil para Sifrá e Puá. O texto bíblico diz no entanto: “As parteiras, porém, temeram a
Deus e não fizeram como lhes ordenara o rei do Egito; antes deixaram viver os meninos”. O compromisso das parteiras com a vida foi mais forte do que a política da autoridade constituída. O texto chama isso de “temor de Deus”, ou seja, uma postura ética baseada na fé e na convicção de que atentar contra a vida de pessoas frágeis e indefesas é um atentado contra o próprio Deus. Somente um ato de desobediência civil pode vir ao encontro do plano de Deus: preservar a vida do povo. Por isso Sifrá e Puá são levadas a julgamento. A pergunta do faraó
– “Por que fizestes isso e deixastes viver os meninos?” – é uma acusação. Como as duas parteiras não buscam o martírio, já que delas depende a vida de outras crianças, elas ocultam a verdade: “As mulheres hebreias não são como as egípcias; são vigorosas e, antes que lhes chegue a parteira, já deram à luz os seus filhos” (v. 19). O argumento apresentado pelas parteiras aparentemente convenceu o faraó, talvez por ter, pelo menos em parte, correspondido à verdade. Foi uma meia-verdade. Mas a história não está interessada na impressão do rei do Egito; ela se
concentra nas mulheres. Nota-se que a meia-verdade (ou meia-mentira) não é criticada pelo autor da narrativa. É que não se espera das parteiras um ato heroico. Deus quer mantê-las vivas para, através delas, continuar preservando vidas. Além disso, o relato bíblico parece querer comprovar o princípio de Provérbios 19.27: “O temor do Senhor conduz à vida” – sim, à vida plena. Por isso a história das duas mulheres desobedientes termina assim: “E, porque as parteiras temeram a Deus, ele lhes constituiu família” (Êxodo 1.21). Na época, isso era considerado vida plena e realizada.
Sifrá e Puá dão-nos uma bela lição de cidadania e coragem. Mesmo não sendo mães, elas arriscam sua vida pelos filhos de outras mulheres. Não se submetem cegamente ao poder. Mostram que a fé pode requerer um ato de desobediência civil. Elas também nos ensinam que fé e ética não podem ser separadas e que há momentos na vida em que precisamos optar entre com pactuar com regimes que promovem a morte ou defender a vida das pessoas frágeis e indefesas. N NELSON KILPP é teólogo da IECLB e especialista em Antigo Testamento, residindo em Kassel, na Alemanha
olhar com arte
Êxodo
www.fscholles.com.br
Reprodução Novolhar
Flávio Scholles, 2005 100 x 150 cm
O êxodo não é somente o fim da fase artesanal e o começo da fase industrial na região do vale do Sinos, mas é um tempo que impulsiona as pessoas para a transformação interior frente à globalização.
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NÓS E AIDS
“O mais difícil foi eu me aceitar”
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á faz 12 anos que passei a ser mais uma nas estatísticas relacionadas a HIV/AIDS do Ministério da Saúde por ter contraído o vírus. Quando soube que estava infectada, o maior problema foi aceitar para mim mesmo e depois contar à minha família, uma vez que, por uma questão familiar, tive que amamentar minhas netas. Então veio o medo de ter infectado algumas delas. Procurei ajuda psicológica, fiz novos exames, contei à minha família que tinha AIDS e comecei a levar materiais informativos para casa. Quando minha família leu que por meio do leite materno se transmite o HIV, vivenciei a exclusão: passei a viver num quarto separado, tiraram meus netos de meu quarto e levaram meus filhos menores para a casa de outros filhos. Eles não sabiam como viver com alguém com AIDS. Estou na Rede de Comunidades Saudáveis de Salvador (RCSS) desde seu começo em 2007, quando o Centro de Promoção da Saúde do Rio de Janeiro (CEDAPS) – que tem uma iniciativa semelhante – convidou a mim e outras mulheres para participar. No trabalho em comunidade, percebo que o preconceito, a discriminação e a exclusão ainda são resultados da falta de informação, em especial junto às mulheres. A desigualdade de gênero torna as mulheres mais vulneráveis.
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Elas são acusadas de ser responsáveis pela AIDS, mesmo que tenham sido infectadas por seus parceiros. Existem muitas mulheres que não sabem negociar o uso do preservativo e terminam infectan do-se por conta desse amor, como se o amor pudesse protegê-las do risco da infecção. Foi na RCSS que aprendi a me fortalecer e fazer com que minha família se interessasse de novo por mim e por outras pessoas que estão ao nosso redor. Não encontrei apenas amigas e amigos na rede, mas também pude perceber que, assim como eu, outras pessoas têm o mesmo objetivo: multiplicar informações e evitar que novas pessoas se infectem com o HIV. Fazendo parte da RCSS, consegui perceber que minha família nada sabia sobre HIV/AIDS nem sobre se xualidade. Eu também nunca toquei no tema sobre sexualidade e sexo com meus familiares, pois não tinha conhecimento e tampouco recebi de minha mãe essas orientações. Ainda percebi nos grupos sociais, que são poucos ou mesmo nenhum, os conhecimentos e que na igreja o tema de sexualidade é de certo modo proibido, quase um pecado. Existe muita dificuldade para falar sobre esses temas na religião. As igrejas têm pouco conhecimento sobre o tema HIV/AIDS.
Arquivo RCSS
por Rosaria Piriz Rodriguez
“No trabalho em comunida-de, vejo que o preconceito e a exclusão vêm da falta de informação, em especial junto às mulheres. A desigualdade de gênero torna as mulheres mais vulneráveis.” Rosaria Rodriguez
Na época em que a AIDS foi descoberta, existiam mitos de que só se infectavam as pessoas homossexuais, usuários de drogas e profissionais do sexo. Esse mito resultou em que mulheres com parceiros fixos se sentissem imunes à epidemia, aumentando as estatísticas nessa população. Por isso também a epidemia continua aumentando entre meninas e jovens de 13 a 19 anos. Acredito em Deus e confio no trabalho da RCSS. Já temos sonhos que se tornaram realidade e colocaremos todas as forças para que tudo aconteça. Através do apoio do GAPA (Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS), da Fundação Luterana de Diaconia e de outros parceiros, a RCSS continua sonhando e construindo o futuro de muitas pessoas que estão em uma situação de desespero e insegurança. Eu lembro aqui das palavras de Mateus 16.25: “Quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por minha causa N achá-la-á”.
ROSARIA PIRIZ RODRIGUEZ é membro da Rede de Comunidades Saudáveis de Salvador (BA)
O que é a RCSS A Rede de Comunidades Saudáveis (RCSS) é um movimento social composto por associações, grupos comunitários, ONG’s e os poderes públicos municipal e estadual, que contribuem na articulação, organização e autonomia das comunidades periféricas de Salvador (BA), com enfoque nos temas da saúde e da solidariedade. Criada em 2007, a RCSS tem o objetivo de promover a saúde de forma equitativa para todos através do fortalecimento das instituições que a integram e promovem a saúde, entendida como “completo bem-estar físico, mental e social”, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS). Compreende “que tal promoção não é responsabilidade exclusiva do setor da saúde, mas é responsabilidade de todos, em direção ao bemestar global”, confome afirma a Carta de Ottawa, divulgada durante a Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada no Canadá em 1986.
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fábulas de esopo
Os viajantes e o urso Um dia, dois viajantes deram de cara com um urso. O primeiro salvou-se escalando uma árvore, mas o outro, sabendo que não conseguiria vencer sozinho o urso, jogouse ao chão e fingiu-se de morto. O urso aproximou-se dele e começou a cheirar sua orelha, mas, convencido de que estava morto, foi embora. O amigo desceu da árvore e perguntou: – O que o urso estava cochichando em seu ouvido?
Moral: A desgraça põe à prova a sinceridade e a amizade. ESOPO foi um fabulista grego do século 6 a.C., famoso por suas pequenas histórias de animais com um sentido e um ensinamento.
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Ilustração: Roberto Soares
– Ora, ele só me disse para pensar duas vezes antes de sair por aí viajando com gente que abandona os amigos na hora do perigo. N
Um jeito diferente de fotografar
Fotos Fábio Codevilla
fotografia
POENTE: Registro feito na autêntica LC-A, Lomo Compact Automat. As cores ficaram alteradas devido ao filme utilizado e ao processo químico utilizado na revelação. Esse efeito é chamado de processo cruzado (xpro).
por Fábio Codevilla
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ão recordo quando ouvi pela primeira vez a palavra lomografia. Recordo sim, num misto de curiosidade e alegria, alguém dizer que era uma técnica usada por espiões russos. De fato, havia alguma coerência. Até hoje tentamos descobrir se lomografia é uma técnica, um movimento estético, uma ferramenta de espionagem ou uma proposta mercadológica. Românticos contam que tudo nasceu nos anos 1990, quando alguns estudantes austríacos tiveram contato com uma câmera russa chamada Lomo Kompakt Automat, abreviada desde então como LC-A, ou simplesmente Lomo. A câmera nasceu nos anos 1980 como resposta de um fabricante de
equipamentos óticos na capital russa – Leningradskoye Optiko Mechaniche sckoye Obyedinenie – às compactas fabricadas no Japão. Havia a boa vontade de oferecer aos camaradas uma câmera barata, mesmo sem prover de tecnologia como a dos vizinhos de continente. Essa deficiência foi deter minante para o curso dessa história. O encontro entre os vienenses e a LC-A ocorreu durante uma viagem de férias num antiquário em Praga, capital da República Tcheca. Eles precisavam de uma câmera barata para registrar sua viagem, e a química aconteceu. Ao retornarem para casa, o resultado era muito mais que um extrato de realidade. Imagens com forte saturação, um pouco de distorção, com enquadramentos e
perspectivas inusitadas criavam uma atmosfera quase surreal. Tudo muito contagiante, tanto que, pouco tempo depois, a câmera virava objeto de culto e desejo. Ao mesmo tempo em que tudo parecia muito libertário, os mesmos caras decidiram criar um manifesto, que resultou na criação de uma embaixada lomográfica em Viena e a instituição das famosas dez regras de ouro da lomografia. De uma maneira ou outra, havia sentido em algumas proposições estabe lecidas nessa infame lista. As primeiras câmeras digitais começavam a surgir e o processo fotográfico mudaria, como bem sabemos. Entre as tais leis da lomografia, princípios que subvertiam paradigmas fotográficos corroboravam
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laçador: imagem captada através de câmera lomográfica supersampler modificada. A câmera é multilentes, vem com divisórias originalmente. Sem manipulação digital. menino: Foto registrada em uma câmera lomográfica holga. O formato é original, utilizando filme 120.
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alguns resultados geniais e outros um tanto duvidosos. Nos anos 1990, a LSI (Sociedade Lomográfica Internacional) caía na rede e a informação foi disseminada com naturalidade e agilidade. Câmeras eram comercializadas em embaixadas, que nasciam em todos os cantos do mundo, não só as notáveis russas, mas outras eram agregadas e criadas sob o guarda-chuva lomográfico. Muitas com o corpo e lente de plástico, e com diferentes propostas. Algumas multilentes; outras com grandes distorções de imagem; algumas com possibilidades de múltiplas exposições sem fazer muito esforço. No Brasil, a novidade ainda é recente, visto que há apenas dois anos foi aberta uma dessas lojas no Rio de Janeiro. Até então, ou você comprava pela internet, ou tinha a sorte de cruzar por alguma das diversas embaixa-
das espalhadas atualmente em mais de trinta países. Os preços nem sempre são atraentes para a experiência, que depende ainda da compra de filmes e de um laboratório para revelação dos mesmos. A combinação desses três fatores é determinante para resultados, digamos, mais alternativos. A lomografia pode proporcionar uma nova experiência imagética, mas você perceberá, cedo ou tarde, que, independente do valor, da escolha da câmera e do uso que você dará a mesma, o mais importante é o senso de liberdade e preservação de suas memórias. Fotografe! Ouse! Experimente! Crie! Essas são minhas regrinhas de ouro. N FÁBIO CODEVILLA é fotógrafo em Porto Alegre (RS)
HOLOCAUSTO NEGRO
Dívida da sociedade e da igreja por Rui Bender
Selenir E. Kronbauer
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o Brasil, a população negra é predominante: 51 por cento dos brasileiros admitem ser “pretos” ou “pardos”. Essa importante parcela da população brasileira sofre com constantes desigualdades sociais. E este ano de 2011 é mais uma oportunidade para chamar a atenção sobre essas disparidades. Afinal, estamos no Ano Internacional do Afrodescendente. A homenagem aos povos de origem africana é uma iniciativa da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em resposta à necessidade de combater o racismo e as desigualdades sociais e econômicas no mundo. Por isso o Ano Internacional do Afrodescendente tentará fortalecer o compromisso político de erradicar a discriminação a descendentes de africanos, explica o secretário-geral da ONU, Ban Kimoon. Os afrodescendentes estão entre as comunidades mais afetadas pelo racismo e enfrentam uma restrição exagerada no acesso à saúde e à educação de qualidade no Brasil. O Fórum Mundial Teologia e Libertação, realizado no início do ano em Dacar, no Senegal, lembrou o holocausto negro. Durante o evento, participantes tiveram a oportunidade de visitar uma das centenas de casas de escravos na costa africana. Foi na ilha de Gorée. Para Selenir Gonçalves Kronbauer e Roberto Zwetsch, professores da Faculdades EST, foi uma experiência impactante conhecer uma casa de escravos, na qual se confinavam seres humanos à espera de navios negreiros.
CASA DE ESCRAVOS: Abrigava escravos à espera dos navios com destino a América e Caribe
Os escravos eram usados como mão de obra nas plantações de açúcar e tabaco na América e no Caribe. O tráfico negreiro durou mais de 300 anos, com a complacência de todas as igrejas cristãs, lamenta Roberto. Estima-se que foram traficados mais de 10 milhões de africanos. Perto de 40 por cento tiveram o destino do Brasil. O apogeu do tráfico ocorreu entre 1750 e 1820, quando os traficantes transportaram em média 60 mil escravos por ano pelas rotas transatlânticas. Entretanto, o tráfico de escravos contou com a colaboração dos pró-
prios africanos. Guerras tribais geralmente resultavam em capturados, que podiam ser vendidos como escravos. Mas é preciso entender que tanto a escravidão como o comércio de escravos antecederam a chegada dos europeus e a abertura do comércio negreiro. Enfim, o tráfico de escravos foi uma atividade na qual os africanos estavam envolvidos tanto como vítimas quanto como agentes. Mas, no tráfico negreiro para o Novo Mundo, as pessoas eram tratadas apenas como mercadorias e jamais como seres humanos com dignidade e direitos. Roberto admite que é difícil
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imaginar como alguém conseguia sobreviver aos porões das casas de escravos e à longa travessia do Atlântico. 40 por cento das pessoas morriam na travessia e eram simplesmente jogadas ao mar. Essa dívida ainda pesará por muitos anos sobre a sociedade ocidental e, principalmente, sobre as igrejas cristãs, acentua Roberto. Pedidos oficiais de perdão, embora louváveis, não reduzirão a necessidade de novas relações de justiça, direito e cidadania para o povo negro em todos os lugares para onde ele foi levado, entende o teólogo. Apesar de ainda haver muito preconceito e discriminação no Brasil, houve investimentos na educação dos
Fotos: Selenir Kronbauer e Divulgação
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Para roberto zwetsch e Selenir Gonçalves Kronbauer, professores da Faculdades EST, foi uma experiência impactante conhecer uma casa de escravos, na qual se confinavam seres humanos à espera de navios negreiros
negros nos últimos anos. Cabe aqui lembrar a lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileiras no ensino fundamental e médio nas redes pública e privada. Nesse sentido, a experiência da Faculdades EST em São Leopoldo é inédita: em 2005 foi implantado em todos os cursos o ensino da história e da cultura afrobrasileira. Inicialmente era optativo, mas em 2008 passou a ser obrigatório. A Faculdades EST desenvolve há vários anos um trabalho junto aos estudantes afrodescendentes através do grupo de pesquisa Identidade. Selenir orgulha-se agora com a inauguração do Espaço Diversidade na MONUMENTO Faculdades EST, EM DACAR: que fomentará a Simboliza reflexão teológica o sonho de reencontrar a partir de difeos escravos rentes linguagens levados da e perspectivas. N África RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)
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sociedade
PRESIDENTA: A forma de tratamento criou polêmica no início do mandato de Dilma
Feminização do poder por Edla Eggert
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o Brasil, temos convivido desde o início do ano com uma nova experiência de poder. E uma palavra que, para a maior parte dos jornalistas, tem incomodado: presidenta! Eles insistem em chamar a presidenta de presidente. Presidenta é o feminino de presidente. Simples como comer pão com manteiga e tomar café com leite. Por que será que a sociedade
em geral tem insistido com a palavra presidente? Tenho uma suspeita: é porque estamos inseridas numa lógica androcêntrica, ou seja, vivemos a vida onde o poder é dos homens. E qualquer mulher que ocupar esse lugar pode até ficar nele, mas não o representa. O que está no conjunto dessa constatação? No meu entender, é a compreensão de que o feminino não
é a referência. O feminino representa a fragilidade, a doçura, a doação, mas também o pecado, a luxúria, a confusão e a tentação. Essa compreensão vem de longe, e a religião é uma das instâncias responsáveis pela permanência dessa inculcação. Por isso não basta sair de casa para trabalhar e ganhar o “seu” dinheiro, não basta ser eleita prefeita, governadora ou mesmo presidenta. Não basta estudar. É necessária muita atenção ao que estudamos, perguntar pelo porquê das coisas serem como são. Por que ainda morrem tantas mulheres em assassinatos perpetrados pelos namorados, maridos, amantes? Por que apanham e acham que merecem ter apanhado? Por que recebem 20% menos nos salários ainda hoje? Por que o direito de ir e vir é sempre mais restrito às mulheres do que aos homens?
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energia nuclear As mulheres, mas não todas as mulheres, e uma boa parte dos homens têm buscado conscientemente fazer um movimento de mudança. A consciência de que fomos ensinadas para ser submissas é necessária para que possamos mudar essa realidade. Ivone Gebara, nossa teóloga atenta às questões do feminino, ensina que o feminino, em grande medida, ainda é visto como mal – e não somente pelo poder masculino, mas pelas próprias mulheres. Por isso Margarete Rago afirma que “feminizar é preciso”. Ou seja: chamar de presidenta é feminizar o poder. É tornar mais viável a ideia de que as meninas podem sim pensar em ser presidentas, cientistas. E que os meninos podem sim ser homens que mostram suas fragilidades, que aprendem a ser cuidadores e que são pais amorosos e firmes no propósito de ser parceiros conscientes da desigualdade entre meninas e meninos. Mulheres e homens devem estar atentos à forma como os homens são construídos para a luta, a competição e a morte e como as meninas são produzidas para a frivolidade do enfeite do corpo, do príncipe encantado como salvador de seus sonhos e da sedução como a grande arma de poder em detrimento da inteligência e da autonomia de pensamento. O poder é bom, mas deve ser exercitado de formas cada vez mais coletivas e compartilhadas; e não há receitas, há caminhos a serem trilhados. Creio que a sociedade vem se preparando mais para assumir as mudanças na busca por mais dignidade humana. Mesmo que, no meio disso, ainda ocorram grandes resistências e muito sofrimento. Mas ninguém disse que seria um jardim de rosas… N EDLA EGGERT é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos em São Leopoldo (RS)
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História marcada por panes fatais
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Julho de 2006 – Um dos três reatores da central nuclear sueca Forsmark é desligado automaticamente da rede em decorrência de um curto-circuito. Em seguida, é desativado. Dezembro de 2001 – Uma explosão de hidrogênio provoca distúrbios de funcionamento na usina de Brunsbüttel, Schleswig-Holstein. Somente em fevereiro do ano seguinte, por pressão das autoridades de fiscalização, o reator é retirado da rede para inspeção. Outubro de 2000 – A controvertida usina tcheca de Temelin entra em funcionamento. Até o início de agosto de 2006 são registrados quase cem casos de mau funcionamento. Setembro de 1999 – Numa unidade de reCHERNOBYL: A usina que causou o maior desastre desde Hiroshima está coberta por um sarcófago, que deve ser refeito. processamento de urâUm grupo de países doará o dinheiro para a obra milionária nio na cidade japonesa de Tokaimura, inicia-se uma reação em cadeia descontrolada, liberando altos níveis de radiação. A causa é uma falha humana: operários insuficientemente preparados haviam depositado num tanque de precipitação sete vezes a quantidade máxima permitida de urânio. Abril de 1986 – Até hoje, a maior catástrofe em todo o mundo foi a explosão de um reator de água leve moderado a grafite em Chernobyl, omparações entre acidentes no Japão em março deste ano e outras catástrofes nucleares se acumulam. A história da energia nuclear é mar cad a por panes e desastres, que frequentemente custaram vidas humanas. Segue uma cronologia de quase seis décadas: Julho de 2009 – O reator da usina de Krümmel, no estado alemão de Schleswig-Holstein, é retirado imediatamente da rede devido a um curto-circuito num transformador. No final de 2007, um equipamento de construção análoga incendiara-se após um curto-circuito.
Divulgação Novolhar
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Divulgação Novolhar
Ucrânia (na época parte da União Soviética). O incidente causa a morte imediata de 32 pessoas; milhares de outras sucumbem em consequência da irradiação nuclear; 120 mil têm que ser evacuadas. Nuvens e ventos carregam a radiatividade também para a Europa Ocidental. Até hoje, não se tem uma medida exata das consequências. Março de 1979 – Defeitos técnicos e falhas humanas provocam o colapso do sistema de refrigeração da usina Three Mile Island, próxima a Harrisburg, nos Estados Unidos. Ocorre o derretimento parcial do reator. A centenas de quilômetros do local do acidente, ainda se pode medir uma nuvem radiativa. Mais de 200 mil pessoas são evacuadas. Trata-se do mais grave acidente nuclear nos EUA até hoje. Janeiro de 1977 – Curtos-circuitos em duas linhas de alta-tensão causam prejuízo total na central nuclear de Gundremmingen na Baviera, Alemanha. O prédio do reator fica contaminado com água de refrigeração radiativa. Julho de 1973 – Segunda explosão na estação de reprocessamento de combustível radiativo de Windscale (rebatizada Sellafield a partir de 1983)
FUKUSHIMA: Futuro das crianças está ameaçado. O desastre japonês levantou uma onda de protestos mundiais contra a continuação do uso da energia nuclear para geração de eletricidade
na Inglaterra. Grande parte da unidade fica contaminada. Outubro de 1957 – Incêndio numa das centrais de Windscale em um rea tor para preparação de plutônio destinado à utilização em bombas. Gases radiativos contaminam uma área de centenas de quilômetros quadrados. Pelos menos 39 pessoas morrem em consequência da radiação. Setembro de 1957 – Na unidade soviética de processamento de plutônio Maiak explode um tanque subterrâneo de concreto, contendo detritos radiativos líquidos. Pelo menos mil pessoas morrem, 10 mil sofrem con-
taminação: até hoje não há números confiáveis a respeito. Desde então, uma área de 300 por 40 quilômetros está contaminada por radiatividade. Trata-se de uma das maiores catástrofes atômicas da história, somente relatada em 1976 por um cientista dissidente e oficialmente confirmada em 1990. Dezembro de 1952 – Grave explosão na central nuclear de Chalk River, próximo a Ottawa, Canadá. Uma fusão parcial destrói o núcleo do reator. N Fonte: www.dw-world.de
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ESPIRITUALIDADE
Pressa, tempo e doçura O ENCONTRO ENTRE MARIA E ISABEL FEZ BROTAR DO CORAÇÃO DE AMBAS GENUÍNO LOUVOR A DEUS E FAZ-NOS PERCEBER SITUAÇÕES QUE EXIGEM PRESSA, TEMPO E TERNURA PARA A ORAÇÃO E A AÇÃO HOJE.
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sabedoria popular costuma dizer que “a pressa é inimiga da perfeição”. Assim é no trânsito, por exemplo. Pressa não combina também, num primeiro momento, com família, relações de afeto e de amizade, vida em comunidade e em sociedades democráticas. Há certos processos e vivências que precisam de tempo, ainda que seja necessário, por vezes, ter pressa na iniciativa e na mudança de atitude. Por que a pressa, Maria? De onde vêm tua disposição de tempo e tua doçura? Maria recebeu do mensageiro de Deus a notícia de que ficaria grávida pelo poder do Espírito Santo e daria à luz o Filho de Deus. Na mesma ocasião, tomou conhecimento da gravidez de sua parenta Isabel, já idosa, “porque para Deus nada é impossível”. Sua resposta foi a entrega completa de sua vida aos desígnios de Deus. “Alguns dias depois, Maria se aprontou e foi depressa para uma cida-
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de que ficava na região montanhosa da Judeia” (cf. Lucas 1.39-56). Maria tinha pressa para encontrar-se com Isabel e alegrar-se com ela. Maria tinha pressa para auxiliá-la na lida da casa e nos preparativos para a espera do bebê, visto que Isabel já estava no sexto mês de gravidez. Maria teve pressa para dedicar-se ao que realmente era importante naquele momento: para a cumplicidade na fé, na alegria e na solidariedade. Junto a Isabel, Maria teve tempo. Ficou com Isabel mais ou menos três meses. Maria faz-nos ver a importância de eleger prioridades. O encontro entre Maria e Isabel fez brotar do coração de ambas genuíno louvor a Deus. “Você é feliz, [Maria], porque acredita que vai acontecer o que o Senhor lhe disse”, exclamou Isabel, sentindo o bebê movimentarse em seu útero. Maria louvou a Deus com todo o seu ser, porque experimentou, ela própria, sua ação amorosa e surpreendente. Deus não escolheu para ser mãe de seu Filho uma das moças importantes de sua época, da esfera política ou religiosa, mas uma jovem desconhe-
Jason Nelson
por Scheila dos Santos Dreher
cida, pobre e humilde, uma “Maria ninguém”. Maria louvou a Deus porque ele “se lembrou” dela; louvou-o porque ele agiu na vida de seu povo com tal bondade, destronando os poderosos e colocando os humildes em altas posições. Essa foi também a razão do canto de Ana, a mãe de Samuel, quando Deus lhe concedeu um filho (1 Samuel 2.1-10).
Daí a referência de Martim Lutero a Maria como “a doce mãe de Cristo” em seu texto ao príncipe João Fre derico, no ano de 1521, quando lhe apresentou uma explicação do canto de louvor de Maria – o Magnificat – a seu pedido. A “doçura” de Maria está em permanecer humilde mesmo com a ciência de ter sido lembrada por Deus. A sua “doçura” revela-se
também certamente na pressa para a companhia e o serviço à parenta grávida e na disposição de tempo para estar com ela ainda que carregue em seu ventre o Filho de Deus. A atitude de Maria faz-nos perceber situações que exigem, de nossa parte, pressa e, concomitantemente, tempo e doçura, para a oração e a ação: pressa no socorro e no apoio às vítimas das
enchentes e desmoronamentos ou da seca em diferentes estados brasileiros; às milhares de vítimas em função do terremoto, do tsunami e do vazamento em usina nuclear no Japão; pressa para a mudança política, econômica e social em muitos países; pressa para investir numa educação de qualidade que priorize a formação de pessoas cidadãs comprometidas com a sociedade na qual vivem. Nesse sentido, vale lembrar o que disse o reformador Martim Lutero referindo-se ao cântico de Maria: “Todos os que quiserem governar bem e ser boas autoridades devem aprender bem e guardar na memória aquele cântico”. Bem perto de nós também se faz necessária pressa para socorrer pais e mães já idosos, tempo e doçura para os cuidados que a vida na terceira idade requer; pressa e tempo para estar com os filhos e as filhas pequenos e jovens e doçura para acompanhá-los em seu crescimento e desenvolvimento; pressa, tempo e doçura para relacionamentos mais verdadeiros e duradouros; pressa para ir ao culto e tempo para estar com as pessoas que partilham da mesma fé; pressa, tempo e doçura para a construção de comunidades mais inclusivas, dinâmicas e solidárias. Quando os pastores de ovelhas souberam do nascimento de Jesus, eles foram depressa a Belém para adorar o menino Deus nascido numa estrebaria (Lucas 2.16). As mulheres, primeiras testemunhas da ressurreição, com medo, mas alegres, foram depressa anunciar o Cristo vivo (Ma teus 28.7s). A palavra de Deus traz tamanha novidade, que nos desinstala e nos coloca em movimento: Faz ter pressa, tempo e doçura! N
SCHEILA DOS SANTOS DREHER é teóloga da IECLB em Campo Novo do Parecis (MT)
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penúltima palavra
A incomunidade global
por Claudemir Casarin
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ivemos num mundo onde o individualismo está sendo levado ao extremo pelo desenvolvimento cada vez maior de tecnologias próprias ao isolamento das pessoas. Tecnologias que, de uma forma mercadológica enganosa, levam-nos a pensar que fazemos parte atuante de uma comunidade global. A televisão, a internet, o telefone celular nos dão a sensação de não estarmos sozinhos, quando, na verdade, estamos cada vez mais longe uns dos outros, cada vez mais reféns dos tecnorrelacionamentos da rede mundial de comunicação sem interlocutores. Segundo o Instituto Datafolha, 55% dos brasileiros acessam a inter net. Estamos permanentemente ligados ao notebook, ao ipad, ao smart phone. Todos nós temos pelo menos um blog, um twitter ou um e-mail que nos mantêm ligados diariamente ao fantástico mundo virtual das relações desprovidas de tato, de cheiro, de carne e de calor humano. O deus do homem moderno, do consumidor passivo, é a energia elétrica. A vida atual depende intrinseca-
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é preciso cuidado para não nos deixarmos hipnotizar com as falácias tecnológicas das pontocom.
ter em casa as mais novas tecnologias criadas no Vale do Silício. Sem televisão, sem playstation, sem computador, como fazer para que as crianças não fiquem entediadas em casa? Já imaginaram o que seria de muitos pais se precisassem reaprender a conviver com seus filhos? mente da eletricidade para continuar funcionando. Sem ela, é como se nos tirassem o ar dos pulmões. A bíblia do homo consumidor é o Google. Quer conhecer melhor uma pessoa? O Google diz quem ela é. Quer saber o quê dar de presente de aniversário a alguém? O Google diz o que comprar. Não sabe mais quem você se tornou? Pergunte ao Google. Nossos encontros reais são cada vez mais raros. Cada vez com menor duração. Cada vez mais sem sentido. Buscamos o outro no vazio das relações digitais. Contabilizamos nossas amizades pelo número de contatos do Fakebook (com “k” mesmo). Nada mais fantasioso do que viver com nós mesmos, afastados do outro, da alteridade que nos apresenta verdadeiramente a nós mesmos. Nada mais sem sentido que nos sentirmos próximos de um coreano porque podemos escrever nossa opinião sobre seu peixinho de estimação num blog desatualizado. A tecnologia está afastando pais e filhos. E para disfarçar o crescente vazio relacional familiar, aceitamos as afirmações sugeridas pelo Google, grosseiramente traduzidas, de que nossos filhos são mais cultos e inteligentes à medida que nos exigem
Sabemos mais sobre os mortos no tsunami do Japão do que sobre o câncer que está matando nosso vizinho ao lado. Aliás, nosso vizinho do lado foi nosso amigo de infância, e embora ainda vivamos todos fisicamente no mesmo bairro, só nos encontramos ocasionalmente em alguma comunidade bairrista do Orkut. Claro que a internet tem utilidade. Muitas vezes, até reencontramos alguns amigos através dela. A melhor coisa que inventaram foi o celular com GPS para acompanhar os filhos quando crescem. Mas é preciso cuidado para não nos deixarmos hipnotizar com as falácias tecnológicas das pontocom. Afinal, nem tudo está perdido. Ainda há leitores que respiram poe sia, romance, aventura, e sempre haverá um blecaute que obrigue nossos semelhantes plugados a olhar para fora de suas telas de LCD. E não vamos deixar escapar a oportunidade de acender um fogo de chão e cevar um mate com uma boa prosa de fim de tarde ou alguma outra coisa que a gente goste de fazer verdadeiramente juntos. Porque eletrizantes mesmo são os relacionamentos humanos. N CLAUDEMIR CASARIN é psicólogo/socionomista em Blumenau (SC)
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