Sustentabilidade. Em defesa do planeta - Revista Novolhar, Ano 9, Número 40, Julho e Agosto, 2011

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CPAD


10 a 27 Sustentabilidade

Obsolescência programada. Consumo consciente. Responsabilidade social. Agricultura familiar. Turismo rural. Educação. Espiritualidade.

ÍNDICE

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memória

Autos da ditadura militar de volta ao Brasil

Ano 9 –> Número 40 –> Julho/Agosto 2011

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Um novo tempo no mundo árabe

O templo dos leprosos luteranos

oriente médio

história

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costa rica Casa da Esperança: Solidariedade

SEÇÕES

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ARTE

Releitura: base para uma nova obra

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olhar com arte Scholles comenta suas obras

OLHAR COM HUMOR > 6 NOVOLHAR SOBRE > 6 notas ecumênicas > 8 DICA CULTURAL > 9 REflexão > 29 REtratos > 30 nós e aids > 32 fábulas de esopo > 33 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Jul/Ago 2011


AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052

Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina e Vera Regina Waskow. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte sobre fotos: Roberto Soares Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Aldo Zischler, Carlos Humberto Gottchalk, Dezir Garcia, Domingos Armani, Eliane Quadro, Enos Heidemann, Helio Mattar, Ildemar Kanitz, Juliana Mazurana, Miltom de Oliveira, Monia Kothe, Nelson Kilpp, Nelson Krenke, Paula Oliveira, Rui Bender, Sérgio Andrade, Sérgio Eugênio Farina, Silvana Henzel, Silvia Regina de Lima Silva, Vera Kern Hoffmann, Vera Nunes

Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 30,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS

Cinismo mortal

A

ecologia entrou na moda. Sustentabilidade é palavra bonita, que agora integra belas frases de anúncios milionários de bancos, indústrias químicas, empresas de cigarros e de refrigerantes. Todo mundo se veste de verde, muitas vezes para não mudar nada. Verde agora é o uniforme dos devastadores. Prevendo a tendência, o nosso cartunista Santiago já produziu uma charge nos anos 1970 em que árvores são derrubadas e transformadas em papel para imprimir cartazes que convocam para a preservação ambiental. Ironias à parte, enquanto o planeta agoniza o comportamento sustentável, que realmente poderia mudar alguma coisa, continua coisa rara. Para o historiador e escritor uruguaio Eduardo Galeano, “a ecologia neutra, que mais se parece com jardinagem, torna-se cúmplice da injustiça de um mundo onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos, mas sim privilégios dos poucos que podem pagar por eles”. Para Galeano, o que realmente está acabando com o planeta é o nosso cinismo. Não estamos fazendo o que alardeamos. Continuamos consumindo desenfreadamente. Não há limites para o lucro e o acúmulo. Apesar de todos os dramáticos alertas, nada mudou substancialmente no comportamento da humanidade, que agora recicla parte do lixo, trata a ecologia como um tema importante, dorme de consciência tranquila, mas não cessa a devastação e não reduz o consumo. Com sua edição sobre sustentabilidade, a Novolhar quer contribuir de modo significativo para o debate de um dos temas mais urgentes do século 21. A capa do artista gráfico Roberto Soares é representativa disso. O planeta, retratado como uma maçã, transforma-se numa espécie de fruto proibido simbólico que vai sendo lentamente devorado, em trágica analogia com o fim do único paraíso que temos. Vale a pena conferir também, entre outros, o resgate histórico do jornalista Rui Bender sobre um templo luterano que serviu a leprosos no extinto Hospital Colônia Itapuã, à beira da Lagoa dos Patos. Equipe da Novolhar

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opinião DO LEITOR

LIVROS DA SINODAL

Bela leitura Pergunta versus resposta Sou assinante há alguns anos e, a cada nova edição, sou surpreendida com reportagens cada vez mais atualizadas e interessantes. Já tenho 80 anos, já acompanhei muitas publicações da Editora Sinodal, mas a revista Novolhar tem sido uma bela leitura para minhas tardes ao som de um bom CD, pois traz matérias interessantes, objetivas e atuais. Da edição maio/junho do presente ano, destaco o tema Ascensão, de que gostei muito; também muito atual a importância do esclarecimento sobre cremação, pressa, tempo e doçura. A equipe de redação da revista está de parabéns; continuem assim e que Deus abençoe toda a equipe e ilumine nossos membros para buscar leituras como a desta revista. Iracy Engelmann Zwetsch por e-mail Paróquia da Paz, Joinville (SC)

Na edição de maio/junho de 2011, vi respondida minha pergunta/crítica quanto à utilização da bicicleta para ajudar a desfazer o “nó da mobilidade” (edição de julho/agosto de 2009). São ótimas as dicas do “Bike com segurança”. Ainda é bom dizer que ciclista pedalando é considerado automóvel e ciclista empurrando bicicleta é considerado pedestre. Isso para a questão do uso da faixa de pedestre e da calçada. Parabéns pelo novo olhar às bicicletas. Norival Mueller por e-mail Schroeder (SC)

ERRAMOS: O seminário do Conselho de Missão entre Indígenas da IECLB sobre “Educação e Diversidade” que foi divulgado neste espaço na última edição, aconteceu nos dias 16 e 17 de maio e não julho, como publicado.

Visite nosso site

Os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar.com.br

Espaço do leitor Sua opinião é muito importante para nós aqui na redação da Novolhar. Por isso escreva-nos e diga o que pensa sobre os artigos e as temáticas abordadas. Mande-nos um e-mail para novolhar@editorasinodal.com.br ou entre em contato através de nossas redes sociais, buscando a Editora Sinodal no

Tema da próxima edição A edição nº 41, de Setembro/Outubro de 2011, tratará do tema AS IDADES DO SER HUMANO. Infância, adolescência, juventude, idade adulta e terceira idade estarão na pauta.

por Ildemar Kanitz Os riscos e as possibilidades que a geração Z tem no mundo virtual é o assunto abordado no livro “Violência & Internet”, das autoras Marlene Neves Strey e Renata Chabar Kapitanski. A violência está presente em todos os lugares, pois faz parte da cultura dos povos, e apresenta-se de forma muito variada. De maneira clara e objetiva, o livro fala da origem, das formas e dos interlocutores da violência em nossos dias. O segundo assunto do livro, vinculado ao primeiro, é a internet – mais especificamente as redes sociais. O livro aponta para as possibilidades da internet, mas também ajuda os leitores com dicas bem práticas e objetivas sobre o funcionamento e os cuidados que se deve ter ao entrar em redes sociais, pois lá nossas crianças e adolescentes podem ser vítimas de ciberbullying, pedo­fi­lia, racismo, pornografia, ho­mo­fo­bia... e por isso merece muita atenção. É um tema atualíssimo e uma leitura necessária. Por isso, boa leitura! ILDEMAR KANITZ é teólogo e atua no pastorado escolar no Colégio Sinodal, em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Jul/Ago 2011

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olhar com humor

novolhar sobre

Praças com brinquedos por Nelson Krenke

Os playgrounds são espaços onde as crianças aprendem regras da sociedade, a interagir e a fazer amigos. De uma forma mais ampla, isso ajuda os pais a conhecer seus vizinhos e criar uma relação de comunidade. É um espaço democrático e, se bem projetado e fabricado em conformidade com as normas técnicas da Asso­ciação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), oferece segurança aos usuários. A norma serve de baliza para a avaliação de condições mínimas de segurança desse espaço e envolve sociedade, crianças e os responsáveis pela manutenção. Esses requisitos mínimos diferenciam uma árvore de um trepa-trepa, rampas de uma construção de um escorregador. A norma traz requisitos mínimos que aumentam a segurança da criança no brinquedo, por exemplo: a altura máxima que uma gangorra pode atingir, a distância que deve ter entre um brinquedo e outro, o tipo de piso que pode ser utilizado em determinada situação, possíveis armadilhas que devem ser evitadas etc. Aplica-se aos seguintes equipamentos: balanços, escorregadores, gangorras, carrosséis, paredes de escalada, playgrounds, plataformas multifuncionais. A regulamentação do setor é uma contribuição para a sociedade. Atualmente, verifica-se que a maioria das áreas de lazer ou playgrounds oferecidos às crianças não é segura e, portanto, se registra um alto índice de acidentes nesses equipamentos. A NBR 14350 – 1 e 2 define quais os cuidados mínimos que devem ser tomados quando esses equipamentos são adquiridos e colocados à disposição dos usuários. NELSON KRENKE é gestor da empresa Krenke Ind. e Com. de Brinquedos e Parques Infantis, em Guaramirim (SC)

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SBU tem presidente brasileiro

Divulgação

última hora

O diretor executivo da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), Rudi Zimmer, foi eleito presidente da Diretoria Mundial das Sociedades Bíblicas Unidas (SBU), aliança que congrega 147 sociedades bíblicas no mundo. O anúncio foi feito em 17 de maio durante reunião da Diretoria Mundial, realizada na abadia de Missenden, Buckinghamshire, Inglaterra. Criadas em 1946, as SBU têm o objetivo de criar estratégias de cooperação mútua que facilitem o processo de tradução, produção e distribuição das Escrituras Sagradas. O vice-presidente da Diretoria Mundial é o secretário-geral da Sociedade Bíblica do Líbano, Michael Bassous. Atuando há 20 anos na Sociedade Bíblica do Brasil e, desde 2005, ocupando o cargo de diretor executivo da entidade, Zimmer é doutor em Teologia, com MBA em Administração pela Fundação Instituto de Administração e por mais de 20 anos foi professor de seminário teológico. Pastor luterano, Zimmer continua ensinando e orientando os estudos bíblicos em sua igreja local. “Deus colocou mais esse desafio em minha vida. Agradeço a todos pelo voto de confiança. Peço que intercedam por mim, para que eu consiga cumprir mais essa missão, contribuindo para que a palavra de Deus alcance ainda mais corações mundo afora”, declara Rudi Zimmer. N

100 milhões de Bíblias A Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) acaba de realizar um feito histórico para o país e para o mundo. Na tarde de 26 de maio, imprimiu e encadernou a Bíblia de número 100 milhões, em cerimônia interna, realizada na Encadernadora da Bíblia, à qual compareceram cerca de 100 pessoas, entre membros da diretoria, funcionários e convidados. A expressiva marca é contabilizada desde setembro de 1995, quando a Gráfica da Bíblia, instalada na Sede Nacional da SBB em Barueri (SP), foi inaugurada. “Trata-se de um momento histórico. Celebramos hoje os 100 milhões de Bíblias que Deus nos concedeu para a semeadura de sua Palavra em todas as nações”, afirmou o presidente da SBB, Adail Carvalho Sandoval. Um dispositivo digital foi instalado nas máquinas da unidade de encadernação para fazer a contagem regressiva até o tão esperado centésimo milionésimo exemplar da Bíblia. Símbolo dessa marca mundialmente inédita foi justamente uma edição comemorativa, alusiva a essa conquista. A publicação é composta por duas traduções: a Tradução Brasileira, uma tradução histórica, de 1917, a primeira a ser feita totalmente no Brasil, e a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, tradução pioneira, lançada no ano 2000, responsável por trazer o conteúdo bíblico em uma linguagem mais simples e fácil de ser compreendida pela população brasileira. (Luciana Garbelini – AssessoN ra de Imprensa da SBB) NOVOLHAR.COM.BR –> Jul/Ago 2011

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The Human Piano é o novo site da Anistia Internacional na Turquia. Para cada tecla que você pressionar no piano humano, você fica sabendo de uma situação real de alguém que sofre discriminação e violência motivada por preconceito. As músicas compostas podem ser gravadas no site e compartilhadas no Twitter ou Facebook. Visite: www.humanpiano.org

Notas ecumênicas

E OS CRISTÃOS?

Divulgação

Temos de fazer deste mundo um lugar melhor. Temos que colocar no twitter o que as pessoas estão fazendo. São os jovens que vão liderar essa luta. É sua vocação. Cada geração tem um chamado. Talvez o chamado desta geração seja um mundo pacífico. Martin Luther King III em coletiva de imprensa realizada logo após sua palestra na Convocatória Ecumênica Internacional pela Paz (CEIP), reunida em Kingston, Jamaica, em maio

Compromisso A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil usará a Declaração pela Paz, do encontro de Kingston, como material didático em suas comunidades e grupos de reflexão, assim como já faz na análise de temas da paz, justiça e cuidados da criação. 8

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Peter Williams/CMI

No twitter

A questão principal que temos de responder é o que nós, como cristãos, podemos fazer juntos diante da crescente violência, agressão, exploração e terror. Paul Canon Oestreicher, pacifista, na abertura da Convocatória Ecumênica Internacional pela Paz

Galo verde A pastora Elga Zachau, da Alemanha, apresentou em Kingston, Jamaica, o rótulo ecológico dado a igrejas e organizações que atingem um certo nível de compromisso e ação concreta com o meio ambiente: o Galo Verde. Batizado em homenagem ao animal que, tradicionalmente, aparece nos cataventos de torres de igrejas naquele país, o Galo Verde tornou-se símbolo de um programa de gestão e inspiração. O selo do Galo Verde já foi aplicado a mais de 25% das igrejas na Vestfália, incluindo várias igrejas protestantes e dioceses católico-romanas. Mais detalhes sobre o projeto no site www.gruener-hahn.net (em alemão).


Indignação Divulgação

Guatemaltecos estão aterrorizados com a notícia divulgada no dia 15 de maio sobre a decapitação de 27 camponeses de 13 a 33 anos, entre eles duas mulheres, na granja Los Cocos, no município de La Libertad. “A Guatemala está sitiada. Estamos tocando no fundo. Isso não pode continuar assim. A violência é intolerável e denota a falta de políticas públicas.”

CNBB

O cardeal-arcebispo de Aparecida, dom Raymundo Damasceno de Assis, é o novo presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que presidirá a entidade junto com o vice-presidente, arcebispo José Belisário da Silva, de São Luís, Maranhão, e o secretário-geral, dom Leonardo Ulrich Steiner, bispo da prelazia de São Felix, Mato Grosso, de 2011 a 2015.

Divulgação

Oscar Julio Vián Morales é arcebispo metropolitano da Guatemala

dica cultural

Lemon Tree é um filme cativante. Aborda de frente a milenar incapacidade de judeus e árabes de conviver e admitir a existência um do outro. O filme em si, feito por um israelense e estrelado por uma palestina, é um forte argumento contra a conclusão de que a humanidade é uma experiência fadada ao fracasso. A trama que Eran Riklis, diretor do filme, criou é fortíssima. Ela parte de um detalhe, algo insignificante, e transforma-o numa gigantesca metáfora sobre o conflito Israel-Palestina. Salma, uma palestina viúva, vive do pomar de limões que possui na Cisjordânia. Um dia, mudam-se para a bela casa no lado israelense o próprio ministro da Defesa de Israel, Navon (Doron Tavory), e sua mulher Mira (Rona Lipaz-Michael). O serviço secreto israelense ordena o corte dos limoeiros para garantir a segurança do ministro. Salma decide resistir da melhor forma possível. Davi contra Golias, como citará explicitamente o advogado a quem Salma vai recorrer: Ziad Daud (Ali Suliman).

Reprodução Novolhar

Lemon Tree

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capa

Sustentabilidade Uma postura em defesa do planeta

SUSTENTABILIDADE É A PALAVRA MAIS DECANTADA DA ATUALIDADE QUANDO O ASSUNTO É O NECESSÁRIO E URGENTE EQUILÍBRIO ENTRE AS NECESSIDADES DE CONSUMO CADA VEZ MAIS ACELERADAS, A PRODUÇÃO CRESCENTE E A CAPACIDADE DO PLANETA DE SUPORTAR A CARGA. DEPOIS DE UMA ERA DE ABUSOS E DESPERDÍCIO, CADA VEZ MAIS O CONCEITO DE CONSUMO RACIONAL PESA NA BALANÇA DA HUMANIDADE. por Rui Bender

Foto: Divulgação

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ustentabilidade. Nunca antes se ouviu falar tanto dessa palavra. Até não é muito fácil de pronunciar, mas seu significado não é tão complicado. “Sus­ten­ta­bi­li­da­de é a forma como nos relacionamos com o meio ambiente, incluindo as pessoas. Consiste na utilização racional e consciente da água, do solo e do ar, sem exagero, sem poluição e sem desperdício”, explica o sociólogo Dezir Garcia, assessor administrativo da Fundação Luterana de Diaconia (FLD), sediada em Porto Alegre (RS). Ele com­ple­men­ta que “isso implica reduzir o consumo de recursos não renováveis e aumentar o consumo de recursos provenientes de fontes renováveis, permitindo a satisfação das reais necessidades das pessoas tanto no presente como no futuro”.

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O conceito de sustentabilidade começou a ser esboçado na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo (Suécia) em junho de 1972. Foi a primeira conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e a primeira grande reunião internacional para discutir as atividades humanas em relação ao meio ambiente. Ela lançou as bases das ações ambientais em nível internacional, chamando a atenção para a degradação ambiental e a poluição. Afinal, esses problemas não se limitam às fronteiras políticas, mas afetam países, regiões e povos localizados muito além de seu ponto de origem. Embora a expressão “desenvolvimento sustentável” ainda não fosse usada, a Declaração de Estocolmo já abordava a necessidade de “defender e melhorar o ambiente humano para as atuais e futuras gerações”. Vinte anos após a Conferência de Estocolmo, em 1992, a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro – a Eco-92 – consolidou o conceito de desenvolvimento sustentável. A conquista mais importante da Eco-92 foi juntar estes dois termos: meio ambiente e desenvolvimento. Assim consagrou o uso do conceito de desenvolvimento sustentável. A Eco-92 contribuiu para uma maior conscientização de que os danos ao meio ambiente eram majoritariamente da responsabilidade dos países desenvolvidos.

O assessor da FLD recorda que “a concepção de desenvolvimento sustentável começou a se formar e difundir junto com o ques­tio­na­ men­to do estilo de desenvolvimento adotado, quando se constata que esse é ecologicamente predatório na utilização dos recursos naturais, socialmente perverso com a geração de pobreza e extrema desigualdade social, politicamente injusto com a concentração e o abuso de poder, culturalmente alienado em relação a seus próprios valores e eticamente censurável no respeito aos direitos humanos e às demais espécies”. Dezir entende que, durante muitos anos, “a medida do desenvolvimento era o crescimento econômico”. Na verdade, ainda é. “Mas hoje cresce na opinião pública e nos meios científicos uma postura em defesa do planeta, da vida, reconhecendo que a economia não pode matar a natureza, o próprio ambiente em que vivemos”, admite o sociólogo. Para ele, não precisamos confrontar o atual modelo, mas “abrir espaço para múltiplas formas de organização produtiva e social comunitária, solidária e cooperativa, que podem prosperar em paralelo no atual modelo de produção”. Está em jogo hoje “se nossa sociedade tem capacidade de produzir um novo pacto civilizatório internacional de respeito ao planeta e convivência pacífica entre as nações de modo sustentável”.

AGENDA 21 – Outra importante conquista da Eco-92 foi a Agenda 21. “Trata-se de um programa de ação que viabiliza o novo padrão de desenvolvimento ambientalmente racional. Ele concilia métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica”, descreve o assessor da FLD. Prioridades da Agenda 21 são os programas de inclusão social, a sustentabilidade urbana e rural, a preservação dos recursos naturais e minerais e a ética política. “Mas o ponto mais importante dessas ações prioritárias é o planejamento de sistemas de produção e consumo sustentáveis contra a cultura do desperdício”, enfatiza Dezir. Ele acredita que a Agenda 21 será retomada na Rio+20, conferência que deve ocorrer entre 4 e 6 de junho de 2012.

SETE EIXOS – Enfim, o uso do termo “sustentabilidade” propagou-se rapidamente. “Os aspectos econômicos, sociais e ambientais são os parâmetros da sustentabilidade”, afirma Dezir. Pelo parâmetro anterior, uma empresa era sustentável se fosse economicamente saudável. A partir de discussões feitas internacionalmente, o conceito passou a incluir o aspecto ecológico como elemento importante. Mas isso trouxe um problema e uma constatação. Se os empresários e os governantes não cuidassem do aspecto ambiental, poderiam ficar sem matéria-prima e talvez sem consumidor, além de contribuir para a destruição do planeta. Assim, os aspectos econômicos, sociais e ambientais formaram o chamado tripé da sustentabilidade: pessoas, planeta e lucro.

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“Há registros de que as empresas que apresentam essa tríplice conta de resultados perceberam antes de outras que, no futuro imediato, o consumidor se tornará cada vez mais responsável e exigirá saber o impacto econômico, ambiental e social que geram os produtos que ele premia com sua compra”, observa Dezir. “O objetivo da adoção do tripé não consiste apenas em minimizar os riscos ambientais e sociais, mas demonstrar que suas práticas podem transformarse em plataformas geradoras de inovação, que, em vez de aumentar custos, reduzem os mesmos pela eficiência operacional que introduzem na empresa”, alega. O conceito de sustentabilidade contém sete eixos fundamentais: sustentabilidade social, que significa melhoria da qualidade de vida da população, igualdade na distribuição de renda e diminuição das diferenças sociais; sustentabilidade econômica, que implica compatibilidade entre padrões de produção e consumo, regularização do fluxo dos investimentos públicos e privados, acesso à ciência e à tecnologia; sustentabilidade ecológica, que envolve a redução dos resíduos tóxicos e da poluição, a reciclagem de materiais e energia, a conservação, tec­no­lo­ gias limpas e de maior eficiência e regras para uma adequada proteção ambiental;

precisamos ampliar a consciência de que os recursos naturais têm fim, racionalizando o consumo, combatendo a cultura do desperdício e desenvolvendo novas tecnologias a partir de bens renováveis. DEZIR GARCIA (FLD) Divulgação

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sustentabilidade cultural, que significa respeito aos diferentes valores entre os povos e incentivo a processos de mudança que acolham es­pe­ci­fi­ci­ da­des locais; sustentabilidade espacial, que implica equilíbrio entre o rural e o urbano, desconcentração das metrópoles, adoção de práticas agrícolas não agressivas à saúde e ao ambiente, manejo sustentado das florestas e industrialização descentralizada; sustentabilidade política, que envolve, no caso do Brasil, a evolução da democracia representativa para sistemas descentralizados e par­ti­ci­pa­ti­vos, a construção de espaços públicos comunitários, maior autonomia dos governos locais e descentralização da gestão de recursos; sustentabilidade ambiental, que

significa a conservação geográfica, o equilíbrio de ecossistemas, a erra­ di­ca­ção da pobreza e da exclusão, o respeito aos direitos humanos e a in­te­gração social. EDUCAÇÃO – “Ações sustentáveis podem e devem ser realizadas e incentivadas na família, na escola, nas empresas públicas e privadas, enfim em todos os espaços de atuação humana”, propõe Dezir. Ele defende que “precisamos ampliar a consciência de que os recursos naturais têm fim, racionalizando o consumo, combatendo a cultura do desperdício e desenvolvendo novas tecnologias a partir de bens renováveis”. Entre as muitas ações sustentáveis podem-se citar a classificação, a utilização de sacolas de supermercado

E A NATUREZA DÁ CONTA? Garrafa PET: O tempo médio de decomposição de uma PET é superior a 500 anos. Numa única garrafa existem, entre rótulo, corpo e tampa, três polímeros com prazos distintos de decomposição. A degradação lenta ocorre porque, somente após uma decomposição física e/ou química, os micro-organismos podem agir sobre os componentes.

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Chiclete: O tempo varia de uma marca para outra e ainda depende do quanto o chiclete foi desgastado durante a mastigação. Como todo composto orgânico, o local onde ele é colocado também é importante. Ainda assim, até um chiclete se decompor por completo passam entre cinco e dez anos.


CAPA biodegradáveis ou de pano, o consumo racional de água, energia elétrica e alimentação. No caso de empresas, pode-se perguntar se os detritos são descartados corretamente, se a empresa tem ou auxilia projetos sociais, incentiva o estudo dos funcionários e se há ações de conscientização junto à comunidade. Essas questões definem se uma empresa é sustentável ou não. Conforme o assessor da FLD, “a sustentabilidade é um conceito em constante construção e deve ser desenvolvido a partir do agir cotidiano das pessoas e da sociedade de modo geral”. Portanto o sucesso do processo de construção da sustentabilidade passa pelas ações individuais e coletivas da humanidade, admite Dezir. O sociólogo também reconhece que a educação tem um papel importante na construção da sus­ten­ta­bi­li­da­ de. Sua primeira grande contribuição é “traduzir o conceito abstrato de desenvolvimento sustentável em realidades concretas”, define. Para que isso seja viável, as escolas têm que abordar a temática da sustentabilidade de forma transdisciplinar e, quem sabe, mais adiante trabalhar essa temática dentro do próprio currículo. Além da formação intelectual, “as escolas devem contribuir para a construção de uma consciência ecológica, de ações solidárias e responsáveis de seus alunos”. N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)

Pneu: Com a legislação específica, a reciclagem de pneus no Brasil aumentou muito nos últimos anos. Para reutilizá-los, é preciso voltar ao processo de fabricação; por isso as empresas produtoras de pneus são as maiores recicladoras.

Rumo ao precipício embora nunca tenha se tornado um programa oficial da indústria mundial, a obsolescência programada move a sociedade moderna de consumo, que está acabando com o planeta. por Clovis Horst Lindner e Marcelo Schneider

U

m adolescente queixa-se do estado de seu iPod ao avô e pede que esse lhe traga um novo dos Estados Unidos. Espantado, o avô pergunta o que é um iPod. Situações como essa mostram que as coisas hoje ficam velhas antes de ser conhecidas por todas as pessoas. Embora a busca por novidades seja regra hoje em dia, isso nem sempre foi assim. A história de uma lâmpada incandescente no corpo de bombeiros de Livermore, Califórnia (EUA), é um bom exemplo. Produzida no final do século 19, ela foi colocada no soquete em 1901. Monitorada desde 1972 por causa de sua longevidade, a lâmpada

Bituca: O fumo é um material orgânico; então tem uma decomposição mais rápida, entre poucas semanas e alguns meses, dependendo de onde estiver. Já o filtro, feito à base de celulose, tem uma degradação que varia entre dois e cinco anos.

recebeu uma festa para mil convidados em 2001, com direito a bolo e parabéns. Ela completava um século sem romper o filamento. Entre a lâmpada secular e o último modelo de iPod há uma longa história sobre uma das características mais marcantes da economia moderna: a obsolescência programada. Thomas Edison e outros orgulhavam-se da durabilidade de suas lâmpadas, até que um cartel secreto dos principais fabricantes do mundo mudou essa história. No Natal de 1924, em Genebra (Suíça), o cartel Phoebus decidiu reduzir de 2.500 para 1.000 horas a du­ra­bi­li­dade média de uma lâmpada, obrigando os fabricantes a cumprir a meta. Com rígido controle, foram es­ta­be­le­cidas multas para quem produzisse lâmpadas mais duráveis.

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Sacolas plásticas: Tem um tempo de degradação estimado em 200 anos. Todos os anos circulam 12 bilhões delas pelo Brasil. Abandonar o seu uso nos supermercados é uma necessidade urgente e pode ser uma boa forma de você colaborar e começar a mudar a sua conduta ambiental.

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Reprodução Novolhar

programada é matéria de estudo em escolas de design, tornando o cres­cimento contínuo o centro da economia, ao lado da publicidade e do crédito, que são os pilares do tripé que sustenta o con­su­ mismo. Por isso, a cada dois anos, é lançado um novo modelo de iPod, com maior capacidade, mais opções e novas inter­ faces para satisfazer o usuário que, após alguns meses de uso, INCOMUM: Esta lâmpada do corpo de bombeiros de Livermore (EUA) brilha há mais de um século sem romper o filamento já acha seu aparelho ultrapassado. A existência do cartel nunca foi Obviamente, a lógica de um sisadmitida oficialmente. Só se sabe dele tema assim não é sustentável. Para porque o historiador Helmut Höge Serge Latouche, professor emérito da trouxe à tona os registros do acordo. Universidade de Paris, “a sociedade do Mas o ideal da obsolescência progra- crescimento contínuo é como um bómada sobrevive até hoje, na visão de lido que ninguém pilota, prestes a desque “um produto que não se desgasta pencar no precipício”. O ciclo de vida é uma tragédia para os negócios”, do produto, um eufemismo moderno como já advertia uma agência de pu- para a obsolescência programada, cria blicidade em 1928. um fluxo constante de resíduos que o O designer industrial Brooks Ste- planeta não pode suportar. vens ressuscitou a obsolescência Os opositores da teoria do cresciprogramada nos anos 1950 ao dese- mento contínuo sabem que a postenhar eletrodomésticos para despertar ridade não nos perdoará por termos o desejo e tornar o consumidor um acabado com os recursos do planeta. insatisfeito crônico, à caça de novi- Em seu lugar, sugerem uma revolução: dades. Desde então, a obsolescência o decrescimento, uma ideia provocado-

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E A NATUREZA DÁ CONTA?

MONITOR: Como boa parte dos eletroeletrônicos, o monitor de computador e os aparelhos de TV contêm metais pesados, como mercúrio, cádmio e níquel. É difícil estimar o tempo que eles demoram para se decompor, mas o maior problema de um acondicionamento inadequado é o contato deles com o solo e com o lençol freático.

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ra que pretende romper com o discurso eufórico do crescimento sustentável e resume-se numa palavra: reduzir. “Ao reduzir o consumo e a produção, podemos liberar tempo para desenvolver outras formas de riqueza que tenham a vantagem de não esgotar ao ser usadas”, explica. “Se a felicidade dependesse de nosso nível de consumo, deveríamos ser absolutamente felizes, porque consumimos 26 vezes mais do que nos tempos de Marx”, compara Latouche. A alternativa é o modo de produção da natureza, que produz em abundância e sem resíduos. O que sobra são nutrientes. Esse é um ciclo virtuo­so que pode ser adotado também na indústria, usando materiais bio­de­gra­dá­veis nos processos de produção. Para Latouche, a sociedade do de­c res­c i­m en­t o seria uma resposta mais coerente ao alerta de Mahatma Gandhi: “O mundo é suficientemente grande para satisfazer a necessidade de todos, mas sempre será demasiado pequeno para a avareza de alguns”. Quem sabe assim, no lapso entre os lançamentos do último e do penúltimo modelos de iPod, caibam mais do que dúvidas e espanto e sobre tempo para que também o avô descubra para que serve o novo aparelho que seu neto quer dos Estados Unidos. N CLOVIS HORST LINDNER é teólogo e editor da Novolhar, em Blumenau (SC) MARCELO SCHNEIDER é teólogo e assessor do Moderador do Conselho Mundial de Igrejas, em Porto Alegre (RS)

vidro: A estrutura do vidro tem minerais com alta resistência em sua composição; por isso seu tempo de degradação natural é indeterminado. Para ser decomposto, é necessária a ação de processos como a fusão ou a mistura a outra substância. É um dos materiais mais recicláveis que existe.


Dave Di Biase

CAPA

Consumir sem ser consumido diante de um consumidor cada vez mais consciente e pronto a decidir sobre o produto que quer comprar, a publicidade está revendo o seu papel e ouvindo a voz de quem compra. por Sérgio Eugênio Morais Farina

Caixinha longa vida: De dois a três polímeros diferentes, como resina plástica, papelão e alumínio, estão na caixinha. Por isso a degradação é lenta, podendo levar até 500 anos.

Latinhas de alumínio: A vida útil das latas varia de cem a 500 anos. Entre os fatores responsáveis estão o tipo de tinta utilizada, a quantidade empregada e a forma de fabricação, a partir de ação térmica ou mecânica.

O

título deste artigo pode parecer antagônico. De um lado, temos o fim da cadeia produtiva capitalista: a publicidade e a propaganda. Uma ciência travestida de arte e entretenimento, que serve para fazer os bens de consumo, materiais e as­pi­ ra­cio­nais serem adquiridos. Do outro lado, a sensação de que o consumismo desenfreado está esgotando não somente os recursos naturais, mas o próprio ser humano. Vivemos um dilema: como garantir que a economia possa continuar crescendo e trazendo mais riquezas para o desenvolvimento das nações e das pessoas sem que isso acabe com a nossa nave-mãe?

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PILHAS: Pilhas e baterias contêm metais perigosos à saúde e ao meio ambiente, como mercúrio, chumbo, cobre, zinco, cádmio, manganês, níquel e lítio. Há lugares próprios para sua destinação. Procure postos de coleta em supermercados e outros locais. Use as recarregáveis ou opte pelas de longa duração.

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A resposta está na sus­ten­ta­bi­li­da­ de. Cada vez mais, a sus­ten­ta­bi­li­da­de deixou de ser o ato de abraçar árvores e constitui um debate fundamental para reavaliar os nossos valores reais e o nosso estilo de vida. A crise econômica de 2008 e 2009 foi a gota d’água para o mundo parar e repensar. Gota d’água talvez não seja a palavra mais certa, mas sim bolha. Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, os países ricos viram-se em condições tão adversas. Milagrosamente, os países em desenvolvimento passaram quase sem balançar na marolinha econômica e começaram a desempenhar um papel mais ativo na economia

mundial. É a vez dos BRIC’s (Brasil, Rússia, Índia e China – mercados emergentes). Durante todo esse processo de se reerguer, a discussão passou a ser o crescimento sustentável. O lucro pelo lucro não só condena quem compra, mas também quem produz. Cada vez mais, as empresas estão percebendo que produzir sem controle pode afetar seu próprio negócio. Da mesma forma que os consumidores perceberam que o ato compulsivo de comprar não preenche todos os vazios, mas sim esvazia os bolsos. Vivemos um momento ímpar na história. E coisas que poderiam soar antagônicas hoje são apenas um reflexo de que o mundo mudou. Hoje vemos bancos ensinando pequenos clientes a usar o dinheiro de forma consciente, mostrando que o sonho de comprar não pode virar o pesadelo de não poder pagar. Vemos companhias de combustíveis investindo em novas formas de energia, menos poluentes e renováveis. Vemos empresas criando novas tecnologias para consumir menos água e ter mais ar puro. Vemos redes de supermercados trocando o plástico por sacolas feitas de material reciclável. Da mesma forma que vemos pessoas aprendendo que ter é menos importante do que ser. É preciso entender que as indústrias não produzem apenas bens de consumo. Elas produzem empregos, que produzem riqueza, que garante

a comida, a moradia, a educação e o desenvolvimento da nossa e das futuras gerações. Sustentabilidade é perenidade. É pensar a longo prazo, é planejar. É esquecer do sentimento efêmero e delicioso, que desaparece assim que se abre um pacote que tinha dentro algo que você desejava e comprou. Num mundo em que a informação e o conhecimento viraram commodities, que o compartilhamento de ideias nas redes sociais é cada vez maior, a propaganda também está revendo seu papel. As pessoas ganharam um poder gigante de influenciar as compras. Basta ver no youtube a quantidade de vídeos mostrando a decepção de comprar um produto que não correspondeu à expectativa do consumidor. Ou mesmo as reclamações no twitter de coisas que foram compradas pensando que são gato e viram lebre. Nesse contexto, a propaganda passou a ser mais uma tradutora da realidade, em que o maior desafio é continuar sendo criativa para levar os consumidores às lojas e ao mesmo tempo ser responsável para que essa experiência não seja um desastre. Propaganda é comunicação. Só que, hoje, a comunicação deixou de ser uma via de mão única, onde só um fala. O consumidor tem voz. E a voz ecoa em todas as mídias. Para o bem e para o mal. N SÉRGIO EUGÊNIO MORAIS FARINA é publicitário em São Paulo (SP)

E A NATUREZA DÁ CONTA? Algodão: Fatores como a composição, a forma de produção e os pigmentos utilizados influenciam a decomposição dos tecidos à base de algodão. O tempo médio estimado fica na faixa dos 30 anos. Já em casos de algodão puro, em condições ideais, esse tempo pode cair para poucos meses.

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PAPEL: A degradação do papel varia entre três e quatro meses em um ambiente favorável, com temperatura alta, umidade e luz. No caso dos cartazes, o problema está na cola ou na fita adesiva usada para fixação. Dependendo do tipo de cola, há características tóxicas que impedem a reciclagem e atrasam a decomposição.


CAPA

Consumo consciente

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ntre os principais objetivos das Nações Unidas ao criar o Dia Mundial do Meio Ambiente, comemorado em 5 de junho, estão mostrar o lado humano das questões ambientais, capacitar as pessoas a tornar-se agentes ativos do desenvolvimento sustentável e promover a compreensão de que é fundamental que comunidades e indivíduos mudem suas atitudes em relação ao uso dos recursos e das questões ambientais, de modo a contribuir para a sustentabilidade da vida no planeta. Nesse sentido, a missão desempenhada pelo Instituto Akatu pelo Consumo Consciente é central nesse processo, contribuindo para mobilizar as pes­soas para o uso do poder transformador de seus atos de consumo consciente como instrumento de construção dessa sustentabilidade. Hoje mais de dois terços da população mundial consomem somente o mínimo do que precisam ou abaixo disso, enquanto apenas 16% da huma-

ÁGUA: As principais causas de deteriorização dos rios, lagos e oceanos são a poluição e a contaminação por poluentes e esgotos. O ser humano tem causado todo esse prejuízo à natureza através dos lixos, esgotos, dejetos químicos industriais e mineração sem controle. O ser humano é o único mamífero que faz cocô dentro da água, que depois trata para usar em casa e beber.

Luiz Renato D. Coutinho

por Helio Mattar

nidade consomem 78% dos recursos naturais extraídos do planeta. Além dessa desigualdade, a humanidade já está consumindo 30% mais recursos do que a Terra consegue repor. Esses dados mostram que o atual modelo de produção e consumo é completamente inadequado para a construção de um mundo social e ambientalmente sustentável. Isso é especialmente verdadeiro se considerarmos que o modelo de consumo dos países desenvolvidos vem inspirando o restante do mundo e induzindo as populações a viver no que chamamos de “sociedade de consumo”, que estrutura o sistema econômico numa base muito frágil de consumo excessivo, muito maior do que as pessoas realmente precisariam para viver. Se esse padrão de consumo ex-

cessivo da maioria das nações desenvolvidas for adotado pelo resto da população mundial, precisaremos de cinco planetas para suprir essa voracidade de consumo. Nesse contexto, seria de extremo otimismo esperar que a solução para essa extraordinária concentração e esse desperdício de recursos naturais fosse conduzida por um único agente social, sejam organizações multilaterais, governos nacionais, corporações ou sociedade civil. Dada a enorme pressão de alguns dos mais poderosos interesses, nenhum desses atores conseguiria isoladamente operar mudanças na velocidade e escala necessárias para alcançar a sustentabilidade e evitar uma catástrofe ambiental irreversível e uma violenta convulsão social, que

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PETRÓLEO: O combustível que move o desenvolvimento do planeta também é a maior fonte de poluição e destruição, apesar de todas as medidas restritivas. O petróleo e seus derivados deixam as marcas de suas garras nas águas, em terra e no ar. Onde quer que passem, a destruição que causam é de difícil remoção.

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CAPA poderão romper seriamente essa relação desequilibrada e vulnerável entre regiões e países do globo. Mudanças nas políticas governamentais tendem a ser lentas demais devido às dificuldades de negociação diante dos interesses de curto prazo das poderosas forças econômicas na sociedade. Mudanças no modelo de produção, ainda que com um extraordinário esforço no desenvolvimento de novas tecnologias que não ameacem o meio ambiente, ainda estariam longe do gigantesco ganho de produtividade necessário no uso dos recursos naturais. Mantidos a atual pegada ecológica e o presente modelo de produção e de consumo da humanidade, seriam necessárias cinco vezes mais produtividade no uso dos recursos para prover as populações de países desenvolvidos e subdesenvolvidos. O que fazer então? É necessário um processo mundial, começando pelas sociedades dos países, para criar uma responsabilidade coletiva de criar mudanças na escala e na velocidade necessárias. Tão hercúleo quanto inovador, o desafio requer diálogo, porque diferentes atores sociais serão necessários para construir um entendimento amplo e mútuo. E porque a inter­de­pen­dência dos impactos sociais e ambientais de nossas ações se tornou evidente. Só então soluções que pareciam totalmente inviáveis, por causa de uma luta pelo poder entre atores sociais cegos e surdos, podem tornarse viáveis e transformar-se em um conjunto inteligente e negociado de ações voltadas para o longo prazo e o bem coletivo, e não para a manutenção de privilégios individuais de curto prazo. N HELIO MATTAR é diretor presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente em São Paulo (SP)

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Empresa cidadã cada vez mais as empresas pautam suas ações por preceitos de sustentabilidade, trocando o caráter assistencialista por uma postura de responsabilidade social. por Vera Nunes

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inguém duvida de que o comportamento empresarial no Brasil está mudando. Há quem diga que buscar desenvolver suas atividades de forma sustentável é uma exigência social que pressiona as organizações. Mas há quem defenda que essa postura nasceu dentro das próprias empresas, conscientes da necessidade, e foi sendo aperfeiçoada com o passar dos anos. Independente de quem surgiu primeiro, hoje é quase impossível não falar em sustentabilidade também nas empresas. Ações sociais, de cidadania ou relacionadas ao meio ambiente es-

tão aumentando e, por con­se­quên­cia, ajudando a melhorar o país. O coordenador executivo do Programa Gaúcho da Qualidade e Produtividade (PGQP) Luiz Ildebrando Pierry aponta que esse tema vem sendo debatido em congressos e eventos da entidade desde 2008, mas só em 2013 haverá um instrumento de avaliação capaz de medir o nível de sus­ten­ta­bilidade de uma empresa. Tudo isso porque existe um longo processo de discussão, análise e pesquisa sobre como melhorar os instrumentos de avaliação do programa, qual a necessidade que precisa ser atendida e

VOIGT: As empresas buscam compartilhar a sua “bem-aventurança” com a sociedade

Fotos: Vera Nunes

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para onde a sociedade está evoluindo. Só para ter uma ideia, das quase 10 mil empresas que assinaram termos de adesão ao PGQP, apenas 13 são candidatas ao Prêmio de Inovação, instituído este ano. “No início, não tínhamos clareza sobre os conceitos; fomos discutindo, lançamos produtos, aperfeiçoamos critérios até chegar à premiação”, recorda Pierry. O primeiro grande debate, lembra o coordenador, foi sobre a própria qualidade e a produtividade. “Isso foi há 20 anos, e hoje ninguém mais questiona esses pontos. Agora já estamos avaliando a Inovação e, em breve, será a Sustentabilidade”, adianta. Pierry salienta que a chegada da chamada geração “Y” – jovens entre 20 e 30 anos – ao mercado de trabalho propõe uma nova sociedade, com outros critérios de consumo. “Eles vão consumir muito mais, mas vão consumir melhor. É o chamado consumo consciente ou consumo inteligente”, avisa, acrescentando que essa mudança vai exigir outro modelo de go­ver­nan­ça, tanto na instituição pública como na privada. O resultado é uma evolução social. À medida que a sociedade estiver mais consciente, as empresas vão precisar de novas ideias, de novos talentos, de pessoas mais empreendedoras, portanto com um melhor nível educacional. “É um caminho único, que vai melhorar a sociedade como um todo”, resume o coordenador executivo do programa que atinge diretamente 9.400 empresas, mais de 1,3 milhão de pessoas e uma rede de 80 comitês setoriais e regionais, per­me­an­do diversos setores da economia gaúcha, com a capacitação de mais de 250 mil pessoas nos fundamentos da qualidade. Vocação empresarial – Para o sociólogo Léo Voigt, a responsabilidade social das empresas com a sustentabili-

dade não depende de pressões sociais e também não repercute em qualquer ganho financeiro. “Ninguém compra um refrigerante de uma determinada marca porque ela tem um programa social”, avisa. Para ele, essa preocupação tem que estar inserida na organização. Seja por qualquer motivo: senso cívico, ética ou melhoria das condições da população. Voigt acrescenta que algumas empresas sempre buscaram formas de compartilhar, digamos assim, sua “bem-aventurança” com a sociedade. No início, diz o sociólogo, as empresas brasileiras que tinham um sucesso sistemático acabavam aceitando projetos de patrocínio cultural ou apoiavam projetos sociais. Só que, além de ajudas eventuais, essas ações tinham um caráter assistencialista. No final do anos 1980, com o surgimento do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e, mais tarde, do Instituto Ethos (1998), surgiu o conceito de Responsabilidade Social, sepultando as ações eventuais e de caráter assistencialista. No final dos anos 1990, o movimento ecológico ganhou força e o conceito de responsabilidade social passou a abarcar a empresa cidadã, socialmente responsável e sustentável. Diretor executivo do Instituto Vonpar desde 2007, Léo Voigt explica que a empresa decidiu investir nesse tipo de ação, não porque é moralmente aconselhável, mas porque é correto, pelo ambiente e porque seus indicadores do sistema ISO e outras avaliações apontavam a necessidade dessa melhoria. Assim, com a criação do instituto, foi desenvolvido um projeto de reciclagem com catadores, que beneficia diretamente 1.560 pessoas em 62 galpões de reciclagem em 41 cidades do Rio Grande do Sul. O instituto, explica Voigt, não é um braço social da Vonpar, mas

Pierry: A chegada da chamada geração “Y” ao mercado de trabalho propõe uma nova sociedade, com outros critérios de consumo

uma agência de cooperação técnica e financeira que participa do fomento ao desenvolvimento econômico e social de populações em situação de exclusão social. O objetivo, resume Voigt, é “fazer essas pessoas transitarem de classe, saírem da posição abaixo da linha de pobreza, e assim estaremos ajudando a erradicar a miséria no país”. Os ganhos em um galpão de reciclagem, aponta o sociólogo, variam de um salário mínimo até R$ 1.500,00 nos locais mais estruturados. O resultado para a sociedade, salienta Voigt, que é mestre em Ciências Políticas pela UFRGS, é a restauração social desse indivíduo e de seus descendentes. “Numa preocupação economicista, pode-se dizer que se interrompe o processo de exclusão nessa geração, ou seja, os filhos poderão ter outra oportunidade de vida”, observa. N VERA NUNES é jornalista em Porto Alegre (RS)

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CAPA

Agricultura familiar: uma saída por Juliana Mazurana Ação irritante e potencial corrosivo para pele e mucosas. Dermatite de contato, irritação, dor e queimação ocular, turvação da visão, conjuntivite e edema palpebral. Dor de garganta, queimação e laringite. Cefaleia, cãibras e náusea. Alterações neurológicas, que podem se complicar com convulsões, coma e morte. (...) causa contaminação do solo, da água e do ar, prejudicando a fauna, a flora e a saúde das pessoas.

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ssas informações foram extraídas da bula de um único produto, classificado como “medianamente” tóxico: um herbicida dentre os mais utilizados no Brasil e no mundo, muitas vezes nos jardins de nossas casas (o mata-mato). Agrotóxicos são tóxicos, porém não apenas para a bactéria, pulgão ou erva “invasora”, mas para a saúde humana e planetária. À medida que se conhece mais a fundo a temática dos agrotóxicos, fica difícil identificar elementos de sus­ten­ta­bi­li­dade – ambiental, social, econômica – nessa tecnologia, que, no fundo, é parte do modelo de agricultura e de abastecimento de alimentos que predomina desde as décadas de 1960 e 1970, a chamada Revolução Verde. Nela, governos, empresas, centros de ensino e pesquisa, amparados no argumento do crescimento da população mundial e do combate à fome, não apenas incentivaram, mas praticamente impuseram um novo

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modelo à agricultura, baseado no uso de adubos químicos e agrotóxicos. Assim se abriu caminho para as indústrias agroquímicas no país. Apenas em 1989, após pressões de grupos com preocupações sociais e ambientais, o Brasil criou a Lei Federal 7.802, que trata desde a pesquisa, produção até o uso e a fiscalização dos agrotóxicos. A regulamentação, contudo, ocorreu somente doze anos depois através do Decreto 4.074 (2002). À legislação brasileira somam-se os acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, que, além de orientar os países para um desenvolvimento mais justo e sustentável, também estipulam prazos para banir alguns agrotóxicos. Apesar desse ar­ ca­bouço legal, a produção, o consumo e a venda de agrotóxicos, bem como as contaminações e intoxicações só aumentaram no Brasil. Atualmente, são mais de 400 princípios ativos utilizados na formulação de mais de 2.000 tipos de agrotóxicos,

que são legalmente permitidos no Brasil (muitos deles já proibidos em outros países). Um estudo da Universidade Federal do Paraná (FPR) apontou um aumento de 50% no consumo de agrotóxicos no Brasil nos últimos dez anos. O estudo também aponta uma concentração de dois terços do mercado por apenas seis mul­ti­nacionais: Bayer e Basf (Alemanha), Syngenta (Suíça), Monsanto, Dow Chemical e DuPont (EUA). Segundo a UFPR, o Brasil é hoje o maior mercado e de maior ritmo de expansão no consumo de agrotóxicos no mundo. O argumento de que seria impossível produzir sem agroquímicos, pois isso causaria um colapso no abastecimento mundial de alimentos, agravando ainda mais o problema da fome, tem sido utilizado para justificar esse modelo. Contudo, há demonstrações suficientes de que é possível produzir mais e melhor sem comprometer a segurança alimentar da população. O trabalho de organizações como o CAPA (Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor), vinculado à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), na promoção da autonomia da agricultura familiar e da agroecologia, na valorização da bio­di­ver­sidade e dos conhecimentos locais, tem sido referência na proposta de um desenvolvimento sustentável para o Brasil. O documento “A agroecologia e o direito à alimentação”, elaborado pela ONU, demonstra que a agricultura familiar pode dobrar a produção de alimentos por meio de práticas agro­ eco­lógicas e recomenda aos Estados a reorientação de seus sistemas agrícolas para modos de produção sustentáveis, a fim de garantir alimentação adequada e superar o contexto de crise alimentar, ecológica e energética. N JULIANA MAZURANA é assessora de projetos da Fundação Lut. de Diaconia em Porto Alegre (RS)


CAPA

Turismo com jeito de roça por Aldo Zischler e Eliane Quadro

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projeto “Acolhida na Colônia”, desenvolvido em Santa Catarina, tem por objetivo criar alternativas para que as famílias de agricultores e seus jovens permaneçam no campo, gerando renda e oportunidades de crescimento. A proposta é que as famílias da colônia abram as portas de suas casas ao convívio com famílias e grupos de outras cidades, compartilhado tarefas, histórias, cultura e paisagens de sua região.

A família que recebe oferece hospedagem simples e aconchegante, com direito a conversas à beira do fogão a lenha, mesa farta baseada na culinária local e passeios pelo campo. Os agricultores, cientes da responsabilidade para com a natureza, desenvolvem e oferecem agricultura orgânica, garantindo com isso alimentação saudável para o visitante e para sua própria família. O projeto foi baseado e está integrado à associação Accueil Paysan,

Elaine Quadro

SUSTENTÁVEL: Projeto transforma turismo em integração com o homem do campo

desenvolvido na França em 1987, com a proposta de valorizar o modo de vida no campo através do agroturismo ecológico. O “Acolhida na Colônia” foi criado no Brasil em 1998 pela en­ ge­nhei­ra agrônoma Thaise Guzzatti no município de Santa Rosa de Lima, como uma forma de viabilizar a permanência das famílias no campo. Hoje o projeto envolve aproximadamente 180 famílias em 24 municípios. Em 2005, obteve o reconhecimento das Nações Unidas, recebendo o prêmio “Desenvolvimento do Milênio”. Nosso primeiro contato com o projeto foi na cidade de Anitápolis, na propriedade de Fernando e Regina, a Pousada Sítio Pasárgada. Houve um certo espanto quando, no momento da reserva, a proprietária fez uma “entrevista” para nos conhecer melhor. Desejava saber quem ela iria receber para conviver com sua família, quais eram nossas expectativas e deixou-nos cientes da proposta do projeto. Para nós, isso foi importante, pois ficou claro que não íamos a um hotel-fazenda, mas para um final de semana de convivência com uma família no campo. Fernando e Regina deixaram a cidade para viver e trabalhar no campo, onde estão criando seus filhos, mostrando que o campo é um celeiro de oportunidades quando se tem um projeto de vida. Para tanto, eles incentivam seus hóspedes a conhecer as propriedades vizinhas, comprando ou consumindo seus produtos. Outra experiência que conhecemos foi em Santa Rosa de Lima, com o casal Leda e Valnério, na Pousada Doce Encanto. Eles estavam prestes a abandonar suas terras para ser caseiros em um sítio em São Paulo. Desistiram porque não poderiam levar seus filhos, que, na época, eram pequenos. Esse fato os forçou a fazer mais uma tentativa de ficar em seu pedaço de chão.

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CAPA Nesse período, iniciou uma organização solidária, a Agreco – Associação dos Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral. Nesse movimento de pessoas que vinham conhecer o projeto nasceu o “Acolhida na Colônia”. Primeiramente, o casal transformou sua estufa de fumo abandonada em um café colonial e posteriormente em pousada para atender os visitantes da Agreco. Hoje seus filhos estão trabalhando e estudando nas áreas de Agronomia e Topografia, para que possam continuar sua vida no campo. Em sua pousada, o casal comercializa sua produção e a de seus vizinhos. Percebemos, no contato com essas famílias, que sustentabilidade e proteção do meio ambiente não são somente uma questão de princípios, mas a base de um modelo de negócio lucrativo e diferenciado. O que procuramos quando visitamos o campo? Um lugar sem a formalidade de um hotel, sem cardápios com preço para ter que ficar calculando o quanto estamos gastando, sabendo que o dinheiro gasto está ajudando diretamente no sustento das famílias e não indo para algum grupo hoteleiro. Um lugar onde possamos ter conversas agradáveis, com troca de experiências com as famílias. Ar fresco, contato com a natureza, banhos de rio e uma visão privilegiada de paisagens. Tudo isso associado a um bom exercício físico, antes de apreciar uma boa comida caseira. Sem remorso! N ALDO ZISCHLER e ELIANE QUADRO são engenheiros e desenvolvedores de software em Florianópolis/SC.

Para saber mais Acolhida na colônia: www. acolhida.com.br Agreco: www.agreco.com.br Associação ACCUEIL PAYSAN: www.accueil-paysan.com

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Promover a sustentabilidade por Vera Kern Hoffmann

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e modo crescente, ouvemse manifestações acerca da necessidade urgente de ampliar a reflexão sobre o futuro de nosso planeta. Cada vez mais pessoas se dizem preocupadas com as consequências de suas atitudes para a sobrevivência das espécies. Por conseguinte, coloca-se a questão de como promover atitudes conscientes e também eficazes que tenham um embasamento em convicções pessoais bem refletidas e realmente interiorizadas. A escola tem um papel importante na reflexão sobre as teorias e as práticas em relação ao meio ambiente e em relação à sustentabilidade de nosso planeta. É no confronto de ideias que podem ser edificados parâmetros para a escolha de valores de vida que permitam que o estudante assuma de maneira responsável o seu papel no mundo e se comprometa com suas próprias atitudes. Na proposta pedagógica do Instituto de Educação Ivoti (IEI), a valorização da vida é um princípio fundamental. Na educação infantil e nos anos iniciais acontecem, desde o ano de 2000, ações que visam ao estudo de projetos ambientais. O manejo adequado da água, as possibilidades do uso de energias alternativas, a importância da troca das sacolas de plástico pelas de pano, por exemplo, foram motivo de muito estudo e po­ si­cio­na­mento das crianças.

No ano de 2008, iniciou o Programa Herbário Vivo, que é realizado com o objetivo de conscientizar as crianças para que assumam uma postura responsável em sua relação com o meio ambiente, preservando-o

Arquivo IEI

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e socializando seus conhecimentos e suas vivências com a família e a comunidade. A proposta pedagógica do Herbário Vivo está inserida no compromisso com os quatro pilares da educação para o século 21 (aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver juntos) da UNESCO. No intuito de dar continuidade ao estudo iniciado em anos anteriores, o Instituto de Educação Ivoti começou a elaborar estratégias para ampliar a abrangência da cidadania ambiental dos estudantes das séries finais do ensino fundamental, médio e EJA. Foi instituído o Fórum Ambiental Per-

manente como uma oportunidade de discussão e de comprometimento dos estudantes com os espaços formais e não formais de ensino. Foram colocados os seguintes objetivos iniciais do Fórum Ambiental Permanente: estabelecer um fórum permanente de troca de informações e reflexões sobre o ambiente em que vivemos; unir as turmas em torno de um propósito comum e para o bem de todos; criar um espaço de diálogo e de formação de consciência, além da tomada de decisões concretas/ações em relação ao meio ambiente; fortalecer a cooperação entre diferentes faixas etárias.

Foi lançado o desafio aos representantes dos estudantes para que, no exercício de sua liderança, sensibilizassem seus colegas a refletir sobre ações que promovam a melhoria do ambiente que habitam, de modo a também se comprometer para que esse processo seja ampliado e envolva sempre mais pessoas. Muitos compromissos foram levantados pelas diferentes turmas, como por exemplo: colaborar com a reciclagem, separando lixo seco do orgânico; evitar o desperdício de papel; desligar as luzes ao sair da sala de aula; levar sacolas de pano ao mercado; reutilizar materiais escolares; juntar o lixo do chão, mesmo não sendo o nosso. O Fórum tem um caráter permanente e deverá ter continuidade a partir das necessidades que os estudantes levantarem nas assembleias, que ocorrem pelo menos uma vez ao mês. Muito mais do que as ações imediatas, esperamos que o Fórum tenha como resultado que os estudantes se apropriem de vivências profícuas e que optem por valores de vida que favoreçam a construção de um ambiente saudável, que lhes assegure melhores relações entre si no presente e no futuro. N VERA KERN HOFFMANN é vice-diretora do Instituto de Educação Ivoti (IEI) e professora no Instituto Superior de Educação Ivoti (ISEI), em Ivoti (RS)

A proposta pedagógica do Herbário Vivo está inserida no compromisso com os quatro pilares da educação para o século 21(aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver juntos) da UNESCO.

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Divulgação Novolhar

CAPA

As organizações da sociedade civil sempre vão existir, porque a existência desse campo de organizações autônomas é uma condição da democracia

Ser útil à sociedade por Domingos Armani

a sustentabilidade das organizações sociais vai muito além da elaboração de projetos. ela se mantém pelo valor social dos projetos e por sua capacidade de ser útil à sociedade. 24

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ma das maiores preocupações dos gestores de organizações sociais é a busca por recursos que possam dar sustentação à dinâmica ins­ti­tu­ cional. E tal preocupação leva, em geral, à elaboração de inúmeros projetos, à participação em um sem-número de editais públicos e a muita incerteza e estresse. É pouco comum, infelizmente, que os gestores se deem conta de que a busca por recursos não se resume à elaboração de bons projetos. E, mais ainda, que a sus­ten­ta­bi­lidade da organização não começa nem termina com a aprovação de projetos. Pois a sustentabilidade de uma organização é compreendida como “a capacidade de sustentar de forma duradoura o valor social do projeto político-institucional”. Isto é, a sus­


Divulgação Novolhar

ten­ta­bi­li­da­de expressa um esforço permanente, nunca finalizado, de demonstrar publicamente que o trabalho realizado gera um valor importante para a sociedade. Trata-se de dar uma contribuição diferenciada ao en­fren­ta­men­to de problemas sociais e de tornar isso um valor social reconhecido pelas instituições, pelos gestores públicos, pelos financiadores, pela mídia e, mais amplamente, pela opinião pública. Então, buscar a sustentabilidade é, em primeiro lugar, ter uma proposta de ação institucional clara, bem fundamentada teórica e me­to­do­lo­gi­ ca­men­te, sempre sintonizada com os novos desafios do contexto. Buscar a sustentabilidade é criar um clima interno de comprometimento com as causas sociais, de desprendimento, de dedicação, de trabalho rigoroso e bem feito, de ação em equipe, de senso crítico e de capacidade de aprender o tempo todo. Buscar a sustentabilidade é ter uma estratégia diversificada de comunicação, que informe adequadamente associados, colaboradores, parceiros e o público mais amplo a respeito do posicionamento institucional sobre temas de interesse, sobre o trabalho realizado e, especialmente, sobre seus

“uma organização é sustentável enquanto é útil para a sociedade” Domingos Armani

resultados para a vida das pessoas. Por fim, buscar a sustentabilidade é saber mobilizar recursos (de todo tipo e não só financeiros) de forma consistente com a missão e as prioridades institucionais. É saber apresentar a organização e seus feitos, seu valor social, de forma e na linguagem adequada a cada potencial parceiro ou financiador. É aproveitar cada oportunidade de mobilização de recursos para também mobilizar corações e mentes em torno das causas sociais promovidas. Como dica para fortalecer a sus­ ten­ta­bilidade de uma organização, pro­ponho uma parada coletiva ou um processo de revisão institucional, par­ ti­cipativo, orientado pela pergunta: Que características da organização

(éticas, políticas, organizacionais, técnicas, metodológicas, operacionais, financeiras) favorecem sua sus­ten­ta­ bi­li­dade e quais não? Uma organização é sustentável na medida em que é útil para a sociedade no enfrentamento de desafios sociais. Essa é a razão de sua existência. Quando a sociedade percebe que sua causa não é mais tão relevante ou que o valor de seu trabalho tem se reduzido, porque não se renova, não traz aportes novos, não demonstra bons resultados, então é hora de parar para refletir ou para fechar a organização. As organizações da sociedade civil (OSCs) sempre vão existir, porque a existência desse campo de organizações autônomas é uma condição da democracia. São elas que representam interesses coletivos, que canalizam demandas, que apontam problemas, que defendem direitos e que fazem pressão e controle social. Entretanto, se o campo das OSCs tem permanência, as organizações que o constituem mudam constantemente, de acordo justamente com seu valor social, sua capacidade de ser úteis à sociedade. N DOMINGOS ARMANI é sociólogo, mestre em Ciência Política e consultor de OSCs em Porto Alegre (RS)

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Foto: Comunidade de Canoinhas (SC)

CAPA

A espiritualidade tem um papel especial na proposta do Programa Sustentabilidade da Federação Luterana Mundial

Sustentabilidade e espiritualidade por Miltom de Oliveira

o Programa Sustentabilidade da FLM para as igrejas luteranas na América Latina busca a adoção de técnicas de planejamento estratégico participativo para as igrejas. 26

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evei tempo em minha vida para perceber com maior profundidade o significado da palavra “es­p i­r i­t ua­l i­d a­d e”. Como a mudança interior pode contribuir para que as pessoas desenvolvam atitudes sustentáveis. Na minha experiência empresa­ rial, atuei em várias áreas. A partir de 1986, quando era responsável por uma equipe multidisciplinar na área de gestão e desenvolvimento de pes­ soas, começamos a ensaiar os primeiros passos no sentido de compreender a influência da espiritualidade na formação das pessoas. Começamos introduzindo, no Plano de Desenvolvimento Individual (PDI) dos execu-


tivos da organização, a reflexão sobre temas ligados à espiritualidade. Hoje me orgulho de ter participado de uma equipe que foi uma das primeiras no Brasil a propor essa reflexão e introduzir o conceito e a prática da espiritualidade na gestão empresarial. Na época, buscávamos um modelo de gestão com melhoria dos resultados empresariais, com qualidade de vida para as pessoas e com respeito à natureza. Quando fui indicado pela IECLB como um dos referentes no Programa Sustentabilidade da Federação Lute­ra­ na Mundial (FLM) para as igrejas luteranas na América Latina e no Caribe, não imaginava a oportunidade ímpar que teríamos para dialogar e vivenciar a importância da es­piri­tualidade também na adoção de técnicas de planejamento estratégico par­ticipativo para as nossas igrejas. Vide http:// sustentabilidad.wordpress.com. Quero enfatizar que a es­pi­ri­tua­li­ dade tem um papel especial na proposta do Programa Sustentabilidade da FLM, que se alicerça em três áreas de atuação: 1) planejamento estratégico participativo; 2) desenvolvimento e mobilização de dons e recursos; 3) pensando e construindo igreja.

Respeitando as realidades e características diferenciadas das igrejas da América Latina e do Caribe, a proposta de planejamento estratégico, como ferramenta, quer concretamente apoiar a realização da missão da Igreja de Jesus Cristo neste mundo. Destaco que o grupo animador do Programa Sustentabilidade investe tempo em nossos encontros, sensibilizando-nos e capacitando também para a abordagem do tema es­ pi­ri­tua­li­da­de, que perpassa as nossas ações diárias. A escuta atenta de textos bíblicos (como Marcos 2.1-12 – Jesus cura um paralítico) desperta em nós sentimentos e atitudes como fé, amor, compaixão, tolerância, perdão, persistência, alegria, ética, compromisso, responsabilidade e planejamento. Fica também claro esse enfoque da espiritualidade no PAMI – Plano de Ação Missionária da IECLB através das quatro dimensões (evangelização, comunhão, diaconia e liturgia) e dos três eixos transversais (educação cristã, sustentabilidade e comunicação). O Roteiro para Planejamento Comunitário do PAMI (www.luteranos.com. br/pami) incorporou em sua me­to­do­ lo­gia a consciência da importância da es­pi­ri­tua­lidade em seus oito passos

para a elaboração do Plano de Ação Comunitário. Sabemos que nossas igrejas trabalham o tema espiritualidade intensamente em muitos espaços: nos cultos, nos estudos bíblicos, no trabalho com as crianças, com os jovens, com as mulheres, com os homens, na música, no presbitério, nos trabalhos dia­co­nais, enfim, em muitos momentos e lugares. Reconhecemos quanto se tem escrito, falado e orientado em nossas igrejas sobre os efeitos das mudanças climáticas e a busca da sus­ten­ta­bi­ li­da­de em dimensões mais amplas. No entanto, parece-me que falta algo mais estruturado. Penso que o desafio das lideranças, tanto ordenadas como leigas, é encontrar o melhor caminho para obter o compromisso dos membros de nossas igrejas para colocar em prática, no seu dia a dia, atitudes e ações, muitas vezes simples, que ajudam a salvar o planeta. Portanto meu sonho é que através do planejamento comunitário também encontremos espaços para discutir e propor metas que ajudem a resgatar a criação de Deus. N MILTOM DE OLIVEIRA é um dos referentes da IECLB no Programa Sustentabilidade da FLM e reside em Belo Horizonte (MG)

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Divulgação Novolhar

ESPECIAL

ENTREGA: Documentos do “Brasil Nunca Mais” foram repatriados por Olav Tveit do CMI em junho

Os registros que puderam voltar por Marcelo Schneider

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m 1978, a advogada Eny Moreira foi a Genebra pedir o apoio do Conselho Mundial de Igrejas-CMI para guardar cópias feitas em segredo dos autos da ditadura militar no Brasil, que vinham sendo juntados pelo Rev. Jaime Wright e por Dom Paulo Evaristo Arns. Ela estava preocupada com os registros das torturas e pediu apoio a um projeto para coletar e catalogar essa informação. Assim começava o envolvimento do CMI num dos esforços coletivos mais complexos de resgate da verdade e da dignidade de

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centenas de perseguidos pelo regime militar brasileiro. Parte desses esforços culminaram na tarde de 14 de junho, em São Paulo, no evento público de repatriação de documentos e microfilmes mantidos a salvo no exterior pelo CMI e pelo Center of Research Libraries (CRL), na Suíça e nos EUA respectivamente. Eles foram entregues às autoridades brasileiras para dis­p o­n i­b i­l i­z á-los, no prazo de um ano, para consulta pública de qualquer cidadão através da internet no “Brasil: Nunca Mais” Digit@l.

Por mais de quatro horas, cerca de 200 participantes se reuniram no auditório da Procuradoria Regional da República – 3ª Região para ouvir 19 oradores representando autoridades públicas, membros de órgãos governamentais, representantes de igrejas e de outras esferas desse processo de cooperação multilateral que marcou o projeto “Brasil: Nunca Mais”. O quadro de forte apelo por justiça e verdade presentes nas falas dos vários oradores criou um ambiente reconfortante e acolhedor para o testemunho de dois ativistas ecumênicos que sofreram abusos da ditadura militar na década de 1970. O ex-funcionário do CMI, Ani­ val­do Padilha, da Igreja Metodista do Brasil, não conseguiu segurar as lágrimas quando partilhou detalhes do que lhe aconteceu quando foi preso em 27 de fevereiro de 1970 e nos interrogatórios que seguiram. Padilha exilado e forçado a viver longe de sua esposa, grávida do filho que só conheceu aos oito anos de idade. Referindo-se ao papel do CMI no projeto “Brasil: Nunca Mais”, o procurador-geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos, expressou sua gratidão pelos esforços cruciais para a defesa e conservação dos documentos. Em seu discurso, o secretáriogeral do CMI, Rev. Dr. Olav Fykse Tveit, expressou gratidão a todos os envolvidos no processo. A delegação do CMI permaneceu em São Paulo durante toda a semana, acompanhando o encontro de famílias confessionais do CLAI e visitando iniciativas de igrejas-membro do CMI no Brasil. No último dia da visita ao Brasil, 19 de junho, Tveit pregou em um culto ecumênico na Primeira Igreja Pres­ biteriana de São Paulo. N MARCELO SCHNEIDER é teólogo e assessor do Moderador do Conselho Mundial de Igrejas, em Porto Alegre (RS)


Divulgação Novolhar

REFLEXÃO

Um coração livre Onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração. Mateus 6.21

por Enos Heidemann

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nde está o tesouro? Desde a nossa mais tenra idade, ouvimos histórias e assistimos a filmes que tratam da caça a tesouros perdidos. Tesouros eram cobiçados. Encontrar um conjunto de riquezas, formado por dinheiro, joias, pedras e metais preciosos, era um sonho que movia muitas pessoas em busca de bens valiosos que foram guardados ou escondidos em algum momento da história. Falar, porém, de tesouros é também se referir a pessoas, sentimentos e coisas de grande valia e a objetos pessoais valiosos e de estimação. Muitas pessoas, quando perguntadas “onde está o teu tesouro?”, respondem que seu tesouro são seu cônjuge, os filhos,

a família, seu trabalho, a melhor amiga, os estudos, as habilidades e os dons pessoais, o time de futebol, enfim, pessoas, coisas, potenciais ou valores que podem ser classificados como preciosos. Nesse sentido, mesmo que hoje pouco se fale da caça a tesouros escondidos, não teremos maiores dificuldades em entender a afirmação de Jesus na palavra bíblica de Mateus 6.21: “Onde está o teu tesouro, aí estará o teu coração”. Jesus, porém, ao citar esse provérbio, fá-lo no contexto do chamado sermão do monte. Ele estava ensinando as pessoas que o seguiam acerca de vários temas espirituais, relacionais e comportamentais. Jesus alerta sobre

tesouros terrenos, sobre bens men­su­ rá­veis, pois anteriormente havia dito: “Não ajunteis tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde os ladrões cavam e roubam” (Mateus 6.19). Jesus desaconselha colocar a segurança nos bens que se possuem e adverte contra todo tipo de ganância, que é a busca ávida por bens. O tema que Jesus traz para a reflexão é atual. Não diferente daquele tempo, mas certamente com muito mais ênfase, somos motivados pela escala de valores e empurrados a uma vida de busca constante e desenfreada por bens de consumo e acúmulo de riquezas. Somos medidos pelo que produzimos, possuímos e acumulamos. Quem tem menos vale menos! O problema levantado, porém, não está nos bens enquanto tais. A visão da fé sobre a vida permite-nos acolher e apreciar, com simplicidade e gratidão a Deus, os bens colocados à nossa disposição pela natureza ou aqueles conseguidos através do trabalho honesto. O problema surge quando, para a posse dos bens, lesamos o direito à dignidade de alguém ou quando esses bens se tornam o valor supremo em nossa vida, fazendo com

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RETRATOS

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que, para obtê-los, sacrifiquemos valores, bens naturais e relacionamentos pessoais. Eles podem tomar conta de nossa vida a ponto de passarmos a ser servidores deles. Jesus fala de tesouros destrutíveis. “Fala da esperança depositada sobre aqueles ou aquilo que não pode ser esperança. Segurança firmada sobre pessoas e circunstâncias que, ao menor sinal de mudança, frustram as mais confiáveis expectativas. Rea­ lização buscada nas futilidades daqueles e daquilo que é extremamente passageiro.” Onde está o teu tesouro? Onde está o teu coração? Jesus dá-nos um bom conselho quando diz que guardar tesouros na terra não é uma estratégia inteligente de vida. Ele aponta, sem rodeios, para a natureza des­tru­tível dos tesouros acumulados na terra, os quais são destruídos pelas traças e pela ferrugem e são levados por ladrões ou destruídos e consumidos num piscar de olhos. Jesus é a encarnação do amor de Deus. Tudo o que disse e fez foi para que tivéssemos vida e vida em abundância. Ele não quer nosso coração aprisionado por valores materiais e nem pela absolutização de relacionamentos pessoais. Quando algo ou alguém é tudo para nós, a perda disso ou desse pode significar nada. Jesus quer nosso coração livre em busca das coisas do alto, de valores do reino de Deus. Ele quer nosso coração livre para amar. Um amor que nos mantém no movimento diário da busca e da promoção da vida, da comunhão, da solidarie­dade, da partilha, do cuidado com o próximo e a criação. É desse tesouro que fala Jesus. É ali que Ele quer o nosso coração. N ENOS HEIDEMANN é teólogo e ministro da IECLB na Paróquia São Marcos, em Porto Alegre (RS)

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Ilustração: João Soares

Tiago, o maior por Nelson Kilpp

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“caminho de Santiago“ é uma conhecida rota de peregrinação que reproduz o caminho percorrido na Idade Média por inúmeros peregrinos até o famoso santuário de Santiago de Compostela no norte da Espanha. Esse santuário tem

uma longa história. Sua origem está vinculada ao discípulo de Jesus chamado Tiago, filho de Zebedeu, irmão de João. Para diferenciá-lo de outro Tiago, filho de Alfeu, ele geralmente é chamado de Tiago, o maior, ou seja, o mais velho. Tiago era um nome muito conhecido na época de Jesus. Ele próprio tinha um irmão com esse nome. O nome hebraico, na verdade, é “Jacó”, o mesmo do famoso patriarca de Is­ rael. Ele foi transformado, nas línguas latinas, em “Iago” e, posteriormente, em “Sant(o)iago”, abreviado para “Tiago”. Juntamente com seu irmão João, Tiago, o maior, foi um dos primeiros discípulos vocacionados por Jesus. “[Jesus] viu outros dois


irmãos, Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, que estavam no barco em companhia de seu pai, consertando as redes, e chamouos. No mesmo instante, deixando o barco e seu pai, eles o seguiram” (Mateus 4.21s). Tiago e João eram, portanto, assim como Pedro, pescadores galileus. Não sabemos o que motivou os dois irmãos a abandonar a pescaria no mar da Galileia para seguir Jesus. Em todo caso, estiveram com Jesus desde o início de sua atividade. Por isso, ao lado de Pedro e João, o nosso Tiago sempre teve um lugar de destaque no grupo dos discípulos de Jesus e na vida da comunidade (por exemplo Lucas 8.51). Ele esteve presente nos momentos importantes da vida de Jesus, por exemplo no monte da transfiguração e no jardim do Getsêmani (Mateus 17.1; 26.37). A vida de Tiago mostra que um discípulo não nasce pronto, mas amadurece através de um longo processo de crescimento. Ainda no início de seu ministério, Jesus dá aos dois irmãos Tiago e João o apelido de “os filhos

do trovão”. Esse cognome deve-se, sem dúvida, ao fato de que os irmãos eram um tanto impetuosos e, quem sabe, até briguentos. Quando esteve com Jesus no monte da transfiguração, Tiago foi um dos que pôde presenciar a glória e o poder que cercavam seu mestre Jesus (Mateus 17.1-8). Mas ele provavelmente entendeu mal esse extraordinário poder dado ao mestre. Como muitos outros, também Tiago pensava que Jesus expulsaria os romanos da Palestina e fundaria um novo reino, em que os discípulos teriam importantes funções de comando. Mateus 20.20-28 conta que a mãe de Tiago (e João) pede a Jesus que dê a seus filhos um lugar de destaque no futuro reino de Jesus. Quando esse perguntou se os dois irmãos também poderiam “beber o cálice” que ele iria beber, responderam afoitamente: “Podemos”. O impetuoso, afoito e ambicioso Tiago também esteve presente no Getsêmani momentos antes da prisão de Jesus. Ali, Tiago e seus companheiros mostraram toda a sua fraqueza,

adormecendo quando tinham a tarefa de vigiar. Mas todo esse caminho foi necessário para que Tiago aprendesse que Jesus veio trazer o reino do amor e não o reino da violência. No fim de sua vida, por levar a sério esse novo reino do amor, Tiago sofreu o martírio no ano 43 sob o rei Herodes Agripa: “Por aquele tempo, mandou o rei Herodes prender alguns da igreja para os maltratar, fazendo passar a fio de espada a Tiago, irmão de João” (Atos 12.1s). Clemente de Alexandria acrescenta que ele foi decapitado após ter convertido seu acusador. De acordo com uma lenda, o cadáver de Tiago foi levado por seus discípulos, num barco sem tripulantes, até o noroeste da Espanha, onde foi sepultado. No século 9, o apóstolo Tiago teria aparecido a um eremita no “campo da estrela” (Compostela), o que levou à construção de um santuário sobre o suposto sepulcro de Tiago, que se tornou o destino da famosa peregrinação. N NELSON KILPP é especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB, residindo em Kassel, na Alemanha

olhar com arte

MORENA – A VAQUINHA DE CINCO TETAS

Reprodução Novolhar

Flávio Scholles, 1994 1000 x 100 A tela inspira-se numa música típica da região. Quando os europeus vieram para o Vale do Sinos, encontraram aqui a alegria dos índios, negros e portugueses e colocaram essa alegria em sua música, criando a bandinha. www.fscholles.com.br

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NÓS E AIDS

Mulheres em risco

Grupo de pessoas que trabalham em parceria com a Diaconia em Natal (RN) no trabalho de sensibilização.

por Sérgio Andrade

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Richard Hanson/Diaconia

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á faz algum tempo que o poder público e diversas organizações que atuam na luta contra a Aids e na prevenção ao vírus do HIV deixaram para trás o conceito de “grupo de risco” – caracterizado pela formação de pessoas com “maior potencial de contaminação” por seus comportamentos, opções sexuais e outras práticas. Está cada vez mais evidente que o comportamento das pessoas e suas escolhas – independentemente de fazer parte daquele ou de outro grupo social – pela não prevenção com o uso de preservativos, pelo (des)cuidado mútuo, pela falta de diálogo aberto e por uma prática sexual “pouco” saudável, sem considerar o outro como ser humano com direitos, inclusive sobre seu próprio corpo, é que determinam o atual e preocupante quadro de contaminação com o vírus do HIV no Brasil. Pesquisas recentes do Ministério da Saúde apontam claramente para o crescimento dessa doença entre as mulheres. A proporção direta entre mulheres e homens contaminados com o HIV tem caído drasticamente, revelando que mulheres casadas, empobrecidas e donas de casa são aquelas que mais sofrem com essa realidade. Se essa conjuntura se confirma na maioria dos estados brasileiros, caberia a todos uma busca sincera e profunda das causas que emolduram tal fenômeno.

Estudiosos indicam que grande parcela desse cenário é resultado de relações históricas moldadas ao longo do tempo, em que se evidencia que as relações entre homens e mulheres permanecem desiguais, desproporcionais e maléficas. Na cama, não são somente o amor e o desejo que se fazem presentes. O poder e o machismo também revelam suas faces. Se reconhecermos que o risco de transmissão da doença é maior através de líquidos sexuais e sangue entre pessoas, estando uma delas contaminada, deveríamos considerar atentamente a importância da prevenção, que, por sua vez, passa pela necessidade de mudanças radicais na maneira como homens e mulheres se veem na sociedade e nas relações diárias. Afinal, em muitos casos, os homens são vistos com seus direitos, e as mulheres, com seus deveres. Por essas razões, é fundamental que lideranças religiosas assumam uma posição contundente, inovadora

e profética. Através de mensagens, palestras, cursos, vasto material literário e exemplos de vida, as igrejas poderiam assumir posicionamentos claros em defesa de ações voltadas às mulheres (Atos 16.16-26). Mais do que isso, essas comunidades deveriam ser espaços de liberdade de pensamento, partilha e expressão, favorecendo o respeito à individualidade e ao corpo do outro (Romanos 12.5), fundamentando sua prática no diálogo e na dignidade humana, como no exemplo de Jesus (João 4.1-19). Devemos confessar que grande parte de nossa leitura e prática da Bíblia perpetua a condição de subser­ viência e fragilidade feminina, como se as mulheres devessem permanecer passivas sob o risco de vida proporcionado por homens que mentem, maltratam, subjugam e fazem morrer, aos poucos, a dignidade. N SÉRGIO ANDRADE é deão da Catedral Anglicana da Santíssima Trindade e coordenador políticopedagógico da ONG Diaconia, em Recife (PE)


fábulas de esopo

Ilustração: Roberto Soares

O burro e o cachorrinho

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m homem tinha um burro e um cachorrinho. O cachorro era muito bem cuidado por seu dono, que brincava com ele, deixava que dormisse em seu colo e, sempre que saía para um jantar, voltava trazendo alguma coisa boa para ele. O burro também era muito bem cuidado por seu dono. Tinha um estábulo confortável, ganhava muito feno e muita aveia, mas, em compensação, tinha que trabalhar no moinho moendo trigo e carregar cargas pesadas do campo para o paiol. Sempre que pensava na vida boa do cachorrinho, que só se

divertia e não era obrigado a fazer nada, o burro chateava-se com a trabalheira que ficava por conta dele. – Quem sabe se eu fizer tudo o que o cachorro faz, nosso dono me trata do mesmo jeito – pensou ele. Pensou e fez. Um belo dia, soltouse do estábulo e entrou na casa do dono, saltitando como tinha visto o cachorro fazer. Só que, como era um animal grande e atrapalhado, acabou derrubando a mesa e quebrando a louça toda. Quando tentou pular para o colo do dono, os empregados acharam que ele estava querendo matar o patrão e começaram a bater nele com

varas até ele fugir da casa. Mais tarde, todo dolorido em seu estábulo, o burro pensava: – Pronto, me dei mal. Mas bem que eu merecia. Por que não fiquei contente com o que eu sou em vez de tentar copiar as palhaçadas daquele cachorrinho?

Moral: É burrice tentar ser uma coisa que não se é. ESOPO foi um fabulista grego do século 6 a.C., famoso por suas pequenas histórias de animais com um sentido e um ensinamento.

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mundo árabe

A queda dos regimes na Tunísia e no Egito representa o início de um novo tempo no Oriente Médio, e hoje a revolução pródemocracia estendese a outros países no mundo árabe. por Paula Oliveira

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esde o processo de independência contra o domínio colonial europeu no século passado, as monarquias corruptas, os estados teocráticos repressivos e os regimes totalitários instalaram-se em boa parte dos países árabes. Os governos não promoveram reformas sociais, políticas ou econômicas para atender as demandas sociais. Essa revolução político-social que hoje se estende a vários países árabes é uma reação à ineficiência de um sistema político atrasado e submetido à lógica da guerra fria. Segundo o sheikh Khaked Taky (49), diretor de Assuntos Islâmicos da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil, “as rebeliões são contra a corrupção e a injustiça militar que faz o povo de escravo e que mata

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Arquivo pessoal

Novo tempo

Sheikh Khaked Taky em conversa com o ex-governador de São Paulo, Alberto Goldman

pessoas sem julgamento e sem motivo”. Ele afirma que “o povo quer um governo novo, democrático e eleito pelo próprio povo”. Outro aspecto que ele considera lastimável é que a dinâmica do conflito árabe-israelense camuflou essa realidade por diversas décadas: a ausência de direitos políticos, a repressão à liberdade de expressão, a inexistência de um sistema judiciário transparente e o desrespeito aos direitos humanos constituíram o elemento catalisador dessa revolução. “As causas são de cunho social e político; nada têm a ver com a religião”, afirma Khaked, que cita como exemplo o estopim do pedido de liberdade popular no Egito, onde cristãos e muçulmanos uniramse para derrubar o governo: “toda religião é contra a injustiça, e o povo

egípcio é um povo religioso, que luta contra a corrupção e a desigualdade vigente”. Para quem ainda se pergunta por que a revolta se estendeu a vários outros países do mundo árabe, a resposta é simples. Para o sheikh Khaked, nascido no distrito de Kafar Elsheikh, República Árabe do Egito, fica claro que, depois da queda do tunisiano Ben Ali e do egípcio Hosni Mubarak, os protestos começam a delinear um momento histórico para a região e ressaltam as diferenças políticas, culturais e sociais. “A partir da revolta do povo egípcio, o mundo árabe começou a se conscientizar de que necessitava de mudanças, e, um a um, os países estão clamando por sua liberdade e democracia. O povo não tem mais medo”, reconhece o sheikh.


“Justiça, segurança, igualdade e respeito. Esses são os mandamentos religiosos. Os líderes têm que trabalhar e ensinar ao povo esses valores morais, até que todos tenham uma boa vida.”

Arquivo pessoal

No norte da África, a Argélia vive, desde o começo do ano, protestos contra o presidente Abdelaziz Bouteflika, que ocupa o cargo desde que venceu as eleições, pela primeira vez, em 1999. Recentemente, a população do Marrocos também aderiu aos protestos, questionando o reinado de Mohammed VI. A revolta também chegou à península arábica: na Jordânia, os protestos são contra o rei Abdullah, no posto desde 1999. Já ao sul da península, massas têm saído às ruas para pedir mudanças no Iêmen, presidido por Ali Abdullah Saleh desde 1978, bem como em Omã, onde o sultão Al Said reina desde 1970. Também na Líbia, país fortemente controlado pelo líder revolucionário Muammar Kadafi, a população entrou em sangrento confronto com as forças de segurança, deixando centenas de mortos. E na península arábica, no pequeno reino do Bahrein, aliado estratégico dos Estados Unidos, a população quer mudanças no governo do rei Hamad Bin Isa Al Khalifa, que está no poder desde 1999. Além desses países árabes, um foco latente de tensão é a república islâmica do Irã. O país persa (não árabe, embora falante dessa língua) é o protagonista

Sheikh Khaked Taky

contemporâneo da tensão entre Islã/ Ocidente e também tem registrado protestos populares que contestam a presidência de Mahmoud Ahmadinejad, no cargo desde 2005. Enquanto isso, a Tunísia e o Egito vivem o lento e trabalhoso processo pós-revolucionário, no qual novos governos vão sendo formados para tentar dar resposta aos anseios da população. Enquanto isso, os países do

Ocidente terão que lidar com um novo Oriente Médio. Neste momento, ninguém tem nenhuma ideia de como ele vai ser. “Justiça, segurança, igualdade e respeito. Esses são os mandamentos religiosos. Os líderes têm que trabalhar e ensinar ao povo esses valores morais, até que todos tenham uma boa vida”, reflete o sheikh. N PAULA OLIVEIRA é jornalista em São Paulo (SP)

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arte

Releitura: base para uma nova obra por Monia Kothe

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enino colocando ara­pu­ca na plantação, tela do pintor Flávio Scholles (reproduzida à esquerda), foi utilizada na aula de artes para desafiar a turma da 6ª série do ensino fundamental do Instituto de Educação Ivoti, em Ivoti (RS), a fazer uma releitura de imagem. Uma obra “muito criativa e ao mesmo tempo simbólica”, afirma a aluna Ana Júlia Holler. A leitura da imagem faz parte do processo de compreensão do aluno acerca da obra. Várias questões foram levantadas por eles, e alguns aspectos do resultado plástico do trabalho foram apontados nesse momento.

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“Percebi que nessa obra original havia bastante mistura de cores e que o artista não se preocupou muito em fazer o menino perfeito”, argumenta Matheus Führ. Para a aluna Gabriela Müller, “uma coisa que chamou minha atenção foi a técnica utilizada pelo autor do trabalho com a mescla de cores e as cores em si e por não terem um padrão rígido”. Paralelamente aos aspectos plásticos, também foram levantadas questões sobre o meio ambiente, a preservação das matas e o contrabando de animais silvestres. A partir desse momento, os alunos iniciaram seus trabalhos de releitura usando a técnica de pintura com tinta têmpera sobre folha A3. Foram observados aspectos técnicos, e também o conceito de releitura foi construído por eles nesse momento. “Uma releitura não é uma cópia. É uma base para uma nova obra. Em uma releitura podemos trocar as cores, o jeito como as coisas são feitas e até trocar as coisas de lugar”, explica Matheus Führ. N MONIA KOTHE é professora de Artes Visuais e Educação Musical no Instituto de Educação Ivoti e Instituto Superior de Educação Ivoti, em Ivoti (RS)

As releituras dos alunos foram construídas sobre diálogo anterior e interpretação da obra do autor. a partir da esquerda, os resultados das releituras da obra de scholles, feitas pelas alunas eduarda dalarosa, gabriela muller, sofia wilke e caroline leonhardt (acima).

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Rene Hass

história

ITAPUÃ: Abandonada, a antiga capela luterana serviu à comunidade isolada pelo preconceito

O templo dos leprosos luteranos por Rui Bender

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essenta quilômetros ao sul de Porto Alegre, na região de Itapuã, próximo à Lagoa dos Patos, emergiu na década de 1940 uma vila autônoma, com regras de convívio próprias. Tinha escola, duas igrejas (católica e luterana), enfermaria, padaria, lavanderia, refeitório,

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cadeia, olaria, entre outras estruturas urbanas. Curiosamente, possuía duas áreas: a suja e a limpa. Na área suja viviam cerca de 700 pessoas portadoras de hanseníase. Quer dizer, leprosos. Na área limpa, residiam freiras franciscanas, médicos e funcionários do Hospital Colônia Itapuã.

A vila parecia, na verdade, um campo de concentração para leprosos, discriminados pelo preconceito de uma sociedade desinformada. Em seu cotidiano, os hansenianos procuravam reproduzir aspectos da sociedade externa que os havia excluído. No final da década de 1950, já não era mais necessário o inter­namento compulsório, que foi abolido por lei em 1954. Isso levou a uma diminuição dos pacientes do leprosário. Entretanto, muitas pessoas que saíram dali não foram mais aceitas em suas comunidades de origem e acabaram retornando. O maior problema social dos hansenianos era o estigma que carregavam por causa de sua doença. Assim, 60 anos após sua fundação, o Hospital Colônia Itapuã continuava sendo a casa de 75 leprosos, que passaram a dividir o espaço daquela cidadefantasma com uma centena de pacientes do Hospital Psiquiátrico São Pedro, transferidos para lá na década de 1970. Desde o princípio, também havia entre os internos do leprosário pessoas de origem luterana. Por volta de 1948, havia aproximadamente 100 luteranos, procedentes de várias comunidades do Sínodo Riograndense (conforme a Folha Dominical, edição de dezembro de 1948). Eles eram visitados regularmente pelos pastores de Porto Alegre (Gottschald, Schlieper, Vath). Os cultos e as celebrações da Santa Ceia eram realizados no refeitório geral, local impróprio para isso. Nasceu o sonho de ter um templo próprio. Então a Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (OASE) de Porto Alegre empenhou-se espe­cial­ mente para materializar esse sonho. Rendimentos de suas festas ajudaram a concretizá-lo. Assim, em dezembro de 1948, foi inaugurado o templo luterano


RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)

Arquivo Hogar de la Esperanza

do Hospital Colônia Itapuã. Era um belo e original projeto do renomado arquiteto Theo Wiederspahn. No dia da inauguração, o presidente do Sínodo Riograndense, pastor Hermann Dohms, foi a primeiro a entrar no templo. Na prédica em seguida, o pastor Karl Eduard Gottschald enfa­tizou que “temos a obrigação de servir àqueles que querem cultivar e conservar sua fé na forma da herança evangélica”. Rolf Droste, pastor que atendeu Itapuã em 1957, lembra que entre 30 e 40 pessoas frequentavam os cultos naquele ano. Nas celebrações da Santa Ceia, cada participante usava seu próprio cálice. Não se faziam visitas aos membros. Não havia contato físico, tudo era muito frio, recorda. Essa frequência caiu para 11 pessoas na década de 1960, lembra o pastor Douglas Wehmuth. Em 1977, baixou para seis pessoas por culto – que era mensal. Douglas, que atendia o povo luterano de Itapuã desde 1983, lembra que já não se usava mais o templo, pois o telhado caíra e o piso desmoronara. Os cultos aconteciam numa en­f ermaria. Todos os que se declaravam luteranos estavam muito debilitados, sem condições de sair da cama. Douglas relembra que, em 1984, houve poucos cultos, pois todos os acamados haviam falecido. Restava apenas uma pessoa na Colônia Itapuã que se dizia luterana. Era homem; ele decidiu acompanhar sua esposa às missas na igreja católica. Terminou então o serviço luterano naquela comunidade, 36 anos após a inauguração do belo templo que hoje infelizmente está em ruínas. Apaga-se assim uma página singular de nossa história. N

ABRIGO: Moradores do Hogar de la Esperanza em San José, Costa Rica

solidariedade

Casa da esperança Minha vida tem sido uma experiência de destruição, com meus pais, com várias esposas e a morte de um filho. Ruptura com meus irmãos... Não tenho nenhum contato com minha família. Vivia na rua, não tinha como tomar banho ou trocar de roupa. Em toda a minha vida, o único que nunca me abandonou foi Deus. Agora estou na “Casa da Esperança” e estou começando a viver de novo. por Silvia Regina de Lima Silva

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ogar de la Esperanza – esse é o nome de uma comunidade formada por pessoas com HIV e AIDS em San José, Costa Rica. Quando criada em 1994, o objetivo era abrir um espaço para receber pessoas que viviam e conviviam com HIV e AIDS e outras situações de sofrimento social. Naquela ocasião, não havia em Costa Rica nenhuma instituição de­di­ca­da a esse trabalho. Orlando Na­v arro Rojas e Yadira Bonilla, apoiados pela Pastoral da Esperança, foram os idea­ lizadores desse projeto e hoje são seus diretores. A Casa da Esperança é um centro de atenção integral onde se vive a experiência de comunidade, independente de credo, orientação sexual,

etnia, religião. Nela se encontram heterossexuais, homossexuais, travestis, bissexuais que têm HIV e AIDS. Por meio da formação laboral e social desenvolvem-se habilidades que possibilitam a reinserção social e uma vida digna. A casa oferece acompanhamento médico, psicológico e espiritual para que cada pessoa possa melhorar sua qualidade de vida, fator indispensável para viver com saúde, especialmente as pessoas que são soropositivas. Na Casa da Esperança moram a­tual­mente 25 pessoas. Além de assumir juntas as tarefas da casa e o cuidado uns dos outros, esse espaço acolhe e anima outros projetos, como POR LA VIDA (Pela Vida), que busca defender os direitos das mulheres soro-

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ESPIRITUALIDADE

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positivas, e o PREVENSIDA, um programa para a Promoção, Informação, Educação, Prevenção, Acompanhamento e Incidência do HIV e AIDS. Nesse projeto, a partir de uma visão cristã, oferece-se um espaço de reflexão sobre o tema da AIDS aos grupos eclesiais, pastorais, movimentos, centros educativos e a diferentes instituições. Outro projeto é a “Carpa” (Barraca). A cada 15 dias, em domingos, um grupo que mora na Casa da Esperança levanta-se mais cedo e prepara o café da manhã para pessoas que vivem na rua. Leva-se o café até uma praça, arma-se uma barraca e ali é servido o café a um grupo de aproximadamente 90 a 100 pessoas, que chegam de diferentes lugares da capital. Um grupo de pessoas voluntárias está presente para conversar, escutar histórias, conhecer a situação desse grupo de pessoas e de forma muito respeitosa demonstrar sua solidariedade. É difícil dizer em poucas palavras o significado dessa experiência para a vida daquelas pessoas que participam da comunidade e para as pessoas que, como eu, acompanham de forma amiga e solidária esse projeto. Na Casa da Esperança, encontra-se alegria, e o mais lindo é ver que as pessoas vão reencontrando sua dignidade, que se transformam à medida que podem expressar livremente suas necessidades e sentimentos, são amadas e descobrem-se com uma missão no mundo. É um lugar onde encontro Jesus. O cuidado, o carinho mútuo e o serviço em prol dos outros transformam o que era limitação e morte em possibilidade de vida plena. Com eles e com elas podemos dizer: Na Casa da Esperança, a gente começa a viver de novo. N SILVIA REGINA DE LIMA SILVA é diretora do Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI) em San José, Costa Rica

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A reverência de geração em geração a reverência é uma postura que pode ser aprendida e transmitida. no adulto que se abaixa em reverência diante de um bebê retorna a humildade que faz crescer. por Carlos Humberto Mendes Gothchalk

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ocê sabe o que é reverência? Conhece o valor de uma postura reverente? Talvez você conheça e utilize mais a palavra “irre­ve­ren­te”, não é mesmo? E todos nós sabemos bem como se comportam pessoas irre­ ve­ren­tes. Normalmente, chamamos pessoas irreverentes de bocas-sujas, barraqueiras, zombadoras, indelicadas, grosseiras, chucras, chulas, antisso­ciais e gozadoras. Afinal, o que é reverência? Qual é seu significado prático? Como posturas de reverência podem ajudar no dia a dia? O “Tio Aurélio” diz que reverência é “respeito, marcado pela veneração, às coisas sagradas”. Mas quais coisas são sagradas que merecem nosso total respeito? Imagine o seguinte: a nossa vida, as nossas relações, a natureza em todas as suas expressões. Você considera sagradas essas dimensões da vida? Será que o simples fato de acordarmos

todos os dias se revela como um ato profundamente sagrado? Pois é mais uma jornada de possibilidades que se anuncia para cada um de nós, por mais que tenhamos a pretensão de achar que nossas rotinas serão sempre iguais e repetidas. A reverência é uma postura e, como tal, pode ser aprendida e transmitida. A melhor imagem desse aprendizado encontramos no nascimento de uma criança. Em sua enorme fragilidade, o bebê dá um recado direto: “A vida de vocês renova-se através de minha vida; hoje sou herança viva das alianças de amor e sangue de vocês; o que serei a partir de agora, em grande parte, depende do que vocês farão comigo, como me tratarão; hoje a vida que inicio, respirando por mim mesmo e aprendendo tudo o que o viver de vocês estiver disposto a compartilhar comigo, tem continuidade. Nada ficará retido. Eu sou manifestação renovada da vida”.


Simona Balint

Nos adultos, diante da criança que chega, podemos observar com naturalidade uma saudação respeitosa com inclinação da cabeça diante daquela vida. Eis aí a reverência se apresentando de forma simples e natural. É um “grandão”, um homem grande, uma mulher grande que se curva diante da simplicidade e da singularidade

“Tu, porém, Senhor, permaneces para sempre, e a memória do teu nome, de geração em geração.” (Salmo 102.12)

daquela criaturinha dependente de tudo. No íntimo desses adultos, a memória escondida do próprio nascimento traz de volta vozes e fatos do pas­sado. Atualiza as forças vivas da vida num dinamismo que envolve: emo­ções, sensações de todos os tipos, cores e sabores. No adulto que se abai­xa em reverência diante do bebê, a força da vida fica muito contente e feliz, pois a humildade volta bem mais forte nesse gesto de rebaixamento, expresso em acolhida, atenção total e disposição real para o cuidado necessário na manutenção dessa nova vida. Antigas tradições espirituais judaicas diante de nascimentos de bebês faziam com que a comunidade reverenciasse o Grande Autor da Vida com expressões como: “Tu, porém, Senhor, permaneces para sempre, e a memória do teu nome, de geração em geração” (Salmo 102.12). Ou seja, estavam apenas registrando de forma sagrada a importância de sermos seres reverentes. Acolhedores da mais pura expressão da vida humana, que é a consciência. O fato de saber que sabemos das coisas para tornar mais leve a nossa vida e a vida dos outros. De que nosso conhecimento não se perde e nossa memória recupera todas as forças necessárias para darmos os saltos de qualidade para reverências sempre mais renovadas. Creio que era a isso que o apóstolo Pedro se referia quando testemunha: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1 Pedro 2.9). N CARLOS HUMBERTO MENDES GOTHCHALK é teólogo, mestre em Teologia, consultor em gestão de pessoas (RH) e especialista em aconselhamento e psicologia pastoral, em Indaiatuba (SP)

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penúltima palavra

Os sentidos da dor cimento, pelos órgãos competentes, de que a grande maioria das doenças físicas tem uma causa emocional. A cultura reconhece a dor psíquica, mas atualmente trata dela como se tratasse uma quebradura óssea apenas com “anestesias”, levando a fraturas expostas, pois nesse caso sem a dor não há a possibilidade de proteção. “Anes­te­sia­mos” sem tratar a causa,

todos os dispositivos de índole biológica têm um limite de eficiência que, uma vez ultrapassado, determina o seu fracasso. Sigmund Freud por Silvana Henzel

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Divulgação Novolhar

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essa forma Freud abre o tema da dor. Ele diz que o sistema nervoso tem uma propensão a fugir da dor; então, senti-la é o fracasso dos dispositivos orgânicos e psíquicos de fuga. Sentimos dor diante de um excesso que invade. E aí uma reação pode ser protetora. Pensamos em dores físicas. Mas não somos apenas corpo. Somos, além do corpo, um psiquismo que nos diferencia de forma singular. E que é soberano. Para entender isso, basta ver pessoas com graves limitações físicas que conseguem construir autonomia e independência, enquanto outras, de “corpo são”, ficam estagnadas em uma vida desvitalizada, imobilizadas em uma eterna dependência, como um deficiente, mas que sofrem de limitações que não são do corpo. Sofremos todos de dores psíquicas, temos conflitos. Mas isso não pode ultrapassar o nosso limite e nos imobilizar. Sabemos também do reconhe-

sem buscar ver onde está “quebrado” dentro de nós, imobilizando ainda mais o sujeito que sofre. “Anestesias” servem a um momento específico, e devemos questionar situações de uso contínuo. Crianças sempre falam ou expressam a verdade. São sinceras. E o que temos feito com nossas crianças? Estamos medicando a infância. Não queremos que denunciem que estão sofrendo com o déficit de nossa atenção e desrespeito, pois até o fato de colocá-las em um lugar de demasiado poder é tão violento quanto são o desrespeito ou as agressões. A criança agita-se para ser respeitada em sua singularidade, assimetria e em suas necessidades, inclusive de ter limites claros. Assim como deseja qualquer ser humano. Ao “anestesiarmos” desnecessa­ riamente a dor humana desde a infância com tarjas pretas, excessivamente prescritas por quem tem competência para fazê-lo, fracassamos na possibilidade de tratar devidamente as quebraduras psíquicas. Dessa forma, a causa da dor segue ativa, apesar de amordaçada quimicamente, expondo o indivíduo a seu fracasso enquanto sujeito psíquico. O discurso social é de preocupação com os sintomas, como o abuso de drogas ou o respeito às minorias, mas é preciso dar voz ao sujeito em vez de tentar calá-lo. A psicanálise vai mais uma vez na contramão da cultura quando defende o respeito à singularidade, às diferenças e propõe a construção de recursos que permitam a autonomia do sujeito. A dor sinaliza para que possamos tratá-la, e isso não é possível com mordaças disfarçadas em forma de gotas e comprimidos. A dor pode ser calada ou ouvida. N SILVANA HENZEL é psicóloga psicanalista e diretora administrativa da Sigmund Freud Associação Psicanalítica em São Leopoldo (RS)


ANUCIANTES EDITORA SINODAL



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