Quem é Jesus Cristo? - Revista Novolhar, Ano 9, Número 42, Nobembro e Dezembro, 2011

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CPAD


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Quem é Jesus Cristo? Jesus existiu de fato! A Palestina nos tempos de Jesus Mistérios do nascimento As suas lições Jesus e a mulher As fontes das testemunhas Retratos de Cristo Ruptura e recomeço O Cristo do Corcovado

ÍNDICE

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RELIGIÕES

Menos católicos e mais evangélicos

Ano 9 –> Número 42 –> Novembro/Dezembro 2011

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Pelos 80 anos de Desmond Tutu

Martinho Krebs, um Papai Noel evangelizador

TEMA DO ANO

PERSONAGEM

NATAL

Do discurso para a ação

SEÇÕES

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CRISTIANISMO Novo centro de gravidade

35 MÍDIa Mulheres em desvantagem

OLHAR COM HUMOR > 6 NOVOLHAR SOBRE > 6 notas ecumênicas > 8 DICA CULTURAL > 9 REflexão > 28 REtratos > 30 nós e aids > 32 fábulas de esopo > 33 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2011

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AO LEITOR Revista bimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052

Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Doris Helena Schaun Gerber, Eloy Teckemeier, João Artur Müller da Silva, Marcelo Schneider, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina e Vera Regina Waskow. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte sobre fotos: Roberto Soares Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Arzemiro Hoffmann, Claudete Beise Ulrich, Emilio Voigt, Hugo Solano Westphal, João Soares, José Kowalska, Marcelo Schneider, Nelson Kilpp, Nestor Paulo Friedrich, Olga Farina, Otávio Schüller, Renato Luiz Becker, Roberto Soares, Rui Bender, Sabrina Nunes Bolla, Santiago, Sonia Gomes Mota, Valdemar Schultz, Vera Nunes, Verner Hoefelmann e Werner Wiese. Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 30,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS

Quem é?

C

onta uma história muito, muito, muito antiga que alguns pescadores saíram a pescar no lago de Genesaré, na Palestina antiga. Tarde ensolarada, águas calmas, brisa leve, tudo indicando que a pescaria seria tran­qui­la. Com eles a bordo, o filho do carpinteiro José dormia na popa do barco, quando o tempo virou de calmaria para tempestade; de tarde en­so­la­ra­da para tenebrosa; de alegria em temor. E o filho do carpinteiro, acordado aos gritos por socorro e ajuda, repreende o vento e o mar, e voltam a reinar a calmaria, a brisa boa, as águas mansas. E os pescadores se olham entre si e perguntam: “Que homem é esse que manda até no vento e nas ondas?” Essa pergunta ecoa até hoje e chega a nós, em fins de 2011. Os acontecimentos daquela tarde, no lago de Genesaré, podem ser conferidos nos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. São relatos que a Bíblia Sagrada nos oferece para a reflexão sobre o Filho de Deus, Jesus, nascido de José e Maria e confessado como Senhor e Salvador por bilhões de seguidores em todo o mundo. A Novolhar, inspirada nessa pergunta instigante, aborda a questão com pesquisa, estudo e reflexão para ajudar na busca por respostas. Deixamos este tema de propósito para a última edição de 2011, uma vez que em dezembro celebramos o Natal de Jesus Cristo e queremos contribuir para que esta não seja uma simples tradição repetida a cada ano, mas desejamos valorizar e resignificar o sentido e o valor da festa que celebra o Emanuel – Deus conosco –, aquele que vem e habita entre as pessoas no mundo por ele criado. Que homem é este, que manda até no vento e nas ondas? Que homem é este, que nasce de mulher, como qualquer pessoa? Que homem é este, que ensina o caminho, a verdade e a vida? Que homem é este, que afirma ser o alfa e o ômega? Que homem é este que se diz luz do mundo? Além dessa reflexão, trazemos também uma conversa com o Papai Noel. Ele existe, sim. E pode ser encontrado na época natalina em algum shopping da capital gaúcha. Descobrimos que ele é pastor, como muitos pastores e pastoras que dão testemunho desse Jesus nascido em Belém na Judeia. E na meditação do Pastor Presidente Nestor Paulo Friedrich encontramos a motivação para a celebração do Natal. Jesus é a luz que afasta a aflição. Dessa convicção brota a serenidade e a confiança no futuro que se aproxima em 2012. Feliz Natal! Feliz 2012! Equipe da Novolhar

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opinião DO LEITOR

Dá orgulho na gente

LIVROS DA SINODAL

Novolhar em Portugal

Li a Novolhar do mês de outubro de cabo a rabo. Simplesmente linda. Dá orgulho na gente. Renato Luiz Becker – por e-mail Joinville (SC)

Caras novas Recebi ontem a revista Novolhar nº 41. Por enquanto, só dei uma passada pelos nomes de autores/as e matérias. Gostei muito da diversidade das matérias e das “caras novas” que escrevem. Não é preciso concordar com tudo o que está escrito, mas é preciso admitir que a revista merece muito respeito. Harald Malschitzky – por e-mail São Leopoldo (RS)

Temas 2012 As ediçoes da Novolhar em 2012 abordarão os seguintes assuntos nas reportagens de capa: folclore, mundo feminino, missão, crises conjugais, educação e virtudes. A cada edição, artigos, depoimentos e reflexões tornarão ainda mais atraente e interessante a leitura da Novolhar. Ler a Novolhar será mais um prazer em sua vida!

por Olga Farina

Vai aí o diploma que recebi como participante do Salão de Cartoons de Sintra - Portugal. Consta ali o nome da Novolhar, bem como no luxuoso catálogo com os desenhos, onde a revista é citada também. Infelizmente, não fomos premiados. Santiago – por e-mail Porto Alegre (RS)

IECLB

O TEMA DA IGREJA para 2012 é “Comunidade Jovem - Igreja Viva”, com o lema de Jeremias 1.5a, “Antes que eu te formasse no ventre, te conheci”.

Visite nosso site Os conteúdos de todas as edições da NOVOLHAR estão à sua disposição no site. Visite, consulte, faça uso: www.novolhar.com.br

Tema da próxima edição A edição nº 43, de Janeiro/Fevereiro de 2012, irá tratar em sua capa o tema FOLCLORE. Manifestações culturais Brasil afora.

Ao lermos “Jesus – Filho do Homem”, de Khalil Gibran, teremos uma surpresa, como se estivéssemos numa grande “roda de conversa”, em que mais de cinquenta convidados falam sobre Jesus. Alguns são até nossos conhecidos, mas ouvi-los e confrontar suas falas emociona. Ouçamos alguns. Começamos por Ana, a avó, que via o neto diferente dos outros meninos, isto é, se ele tinha algum doce repartia e subia em árvores para colher frutos que não eram para ele mesmo. Rafka, a jovem noiva das bodas de Caná, que o conheceu na véspera e ofereceu-lhe água e convidou-o para a festa. Tomé, que era cheio de dúvidas e afirma que a “dúvida é uma criança errante e infeliz”. O astrólogo Malaquias, que relacionou a sua ciência com a vinda de Jesus. É com o coração de mãe que Ciborea, mãe de Judas, fala do filho e do desenrolar dos fatos. O livro oferece um outro olhar sobre o Mestre por parte daqueles que conviveram com ele desde a meninice até a cruz. São conversas de muita beleza, quando todos viveram juntos e conviveram entre si. É uma leitura que nos instiga a querer saber mais. OLGA FARINA é integrante do Conselho Editorial da revista Novolhar em São Leopoldo (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2011

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olhar com humor

novolhar sobre

Coroa de Advento por Renato Luiz Becker

Sentei sob a goiabeira para curtir o ócio, mas então tocou o telefone... – Alô! – É o Pedro, vô! Nós vamos te ajudar a fazer a coroa de Advento. – Que bom, Pedro! Já me alegro. Dá um beijo no pai e na mãe. – Dou! Não faz a coroa antes da gente chegar, tá vô? – Beleza, Pedro! Beijo! A ideia da coroa de Advento foi gerada há 170 anos por um pastor luterano que viu e ouviu a dor das meninas e dos meninos de rua de sua cidade. Ele não descansou até construir-lhes um abrigo para dormir, fazer refeições e até aprender profissões. Aproveitou o espaço físico para celebrar, anualmente, o Advento com meditações, cânticos e reflexões com seus protegidos. – Renatooo! Acordaaa! Nossos filhos vêm no final de semana. A Paula disse que o Pedro quer ajudar na confecção da coroa. – Eu sei! Vou contar ao Pedro sobre o pastor Wichern; sobre a roda de carroça que ele pendurou no teto da “casa”; sobre suas celebrações; sobre as velas que, uma depois da outra, ele ia colocando para queimar sobre a roda: quatro grandes para os domingos e 23 menores para os dias da semana. – Veja só! – Pois é. A garotada amou aqueles encontros porque via a roda se iluminando mais e mais enquanto o Natal se aproximava. Com o tempo, decidiram enfeitar a mesma com ramos verdes de pinheiro. Foi assim que nasceu a primeira coroa de Advento. Estou alegre, Valmi. O nosso tempo de Advento também vai ser bonito. A coroa vai lembrar-nos que Jesus vem nos visitar. Opa! Está chegando alguém... – Boa noite, pastor... RENATO LUIZ BECKER é teólogo e ministro da IECLB em Joinville (SC)

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última hora

Qumran digitalizado

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Museu de Israel abre o acesso universal e gratuito às imagens di­gi­ta­li­za­das dos cinco pergaminhos dos ma­nus­cri­tos do Mar Morto. Os manuscritos foram encontrados em Qumran na metade do século passado. Especialistas reclamavam da dificuldade de acesso aos fragmentos. As imagens das cópias exatas dos fragmentos originais têm resolução de 1,2 mil megapixels, cerca de 200 vezes a resolução de uma câmera comum e foram digitalizadas pelo Google. O acesso por intermédio desse recurso permite que o usuário vi­sua­li­ze detalhes dos manuscritos nas línguas originais – hebraico, aramaico e grego – com tradução do manuscrito principal, atribuído ao profeta Isaías,

500 anos da Reforma Luterana

apenas para o inglês até o momento. A empresa prevê a tradução para o espanhol e outros idiomas. Os textos foram escondidos em onze cavernas às margens do Mar Morto no ano 68 a.C. A intenção era protegê-los da invasão do exército romano. Os documentos ficaram nessas condições até ser descobertos em 1947, quando um pastor beduíno jogou uma pedra em uma caverna e percebeu que havia algo lá dentro. Para a conservação adequada, os manuscritos são mantidos no escuro, em salas climatizadas do Museu de Israel, em Jerusalém, desde 1965. Visite: http://dss.collections.imj.org.il. N

Fonte: www.alcnoticias.net

O selo comemorativo dos 500 anos da Reforma no Brasil

O ato de lançamento dos 500 Anos da Reforma, promovido pela Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) e Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), na noite do dia 18 de outubro, no Hotel Plaza São Ra­ fael, em Porto Alegre, reuniu cerca de 160 pessoas. A atividade teve como objetivo marcar o início das festividades que se estenderão até 31 de outubro de 2017, data em que se completa o quincentenário da Reforma Luterana. Um dos momentos marcantes foi a apresentação do video “500 anos da Reforma Luterana”. O selo dos 500 anos da Reforma Luterana é uma criação do pastor Cláudio Kupka, que em sua explicação salientou que o “selo está estruturado em duas cores contrastantes: azul-escuro, que simboliza serenidade, racionalidade, fé e esperança, e cor de laranja, que simboliza movimento, comunicação e expansão. Esse contraste de cores tanto pode representar a ruptura que a Reforma ensejou no pensar teológico, social e cultural, como representar polos entre os quais dialeticamente se articula o posicionamento luterano”. Ao final do evento, os participantes foram presenteados com um calendário comemorativo dos 500 anos da Reforma Luterana (de outubro de 2011 a outubro de 2017). N Maiores informações: www.luteranos.com.br e www.ielb.org.br NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2011

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Notas ecumênicas

Teologia infantil

DOM PAULO Dom Paulo é o sacerdote que, num momento crucial da vida política de nosso país, foi um facho de luz e de esperança para todos os brasileiros que não se conformavam com o regime de arbítrio e as perseguições políticas e sonhavam com um Brasil livre e mais justo socialmente.

O Conselho Mundial de Igrejas (CMI) lembrou, em mensagem que se reportou ao 11 de setembro de 2001, as vítimas do ataque às torres gêmeas de Nova Iorque e reiterou o compromisso das igrejas com o diálogo entre pessoas de diferentes crenças e a promoção de uma cultura de “paz justa”.

Dilma Rousseff – Presidenta do Brasil, em nota cumprimentando dom Paulo Evaristo Arns, cardeal-arcebispo emérito de São Paulo, por seus 90 anos

As crianças têm o direito de saber de Deus. Têm direito de conhecer a Cristo. Elas precisam de recursos, de símbolos e de narrações espirituais que proporcionam um espaço interior para as expressões fundamentais da esperança, do amor e da confiança, algo crucial para o desenvolvimento delas. Rev. Dietrich Werner – coordenador do programa de Formação Teológica Ecumênica do Conselho Mundial de Igrejas (CMI)

Educação É difícil educar os adultos a economizar água e a fazer a coleta do lixo. Acredito que, se conseguirmos passar isso às crianças, o mundo pode ser melhor. Imaginar que, em 2015, pode faltar água nos faz querer aprender um pouco mais aqui para passar às crianças. rosimar da silveira Santana, professora de Juiz de Fora, Minas Gerais, uma das participantes da Vigília Nacional de Oração pela Crianças da Igreja Metodista do Brasil em São Bernardo do Campo (SP)

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Pelo fim da corrupção O Colégio Episcopal da Igreja Metodista soma sua voz aos brasileiros “empenhados em extirpar o pecado social da corrupção nas estruturas de poder” e pede transparência na gestão pública, o fim do sigilo em votações relacionadas a denúncias de improbidade administrativa e falta de decoro e o estabelecimento da Comissão da Verdade.


Teologia on-line O Conselho Mundial de Igrejas (CMI) lançou, em setembro, em parceria com a Globethics.net, um projeto de recursos tecnológicos baseados na internet, de acesso a materiais de pesquisa em teologia e disciplinas relacionadas. A Biblioteca Digital Mundial de Teologia e Ecumenismo (GlobeTheoLib) contém milhares de artigos, documentos e outros recursos acadêmicos, que podem ser acessados on-line gratuitamente por participantes inscritos de qualquer lugar do mundo por meio do endereço www.globethics.net/gtl.

Luto Depois de enfrentar por anos uma dia­ be­te que atingiu diversos órgãos de seu corpo, faleceu no dia 13 de setembro em Hamburgo-Alemanha, aos 78 anos, o bispo lu­te­ra­no Helmut Frenz. Em 1965, ele foi enviado pela Igreja Evangélica da Alemanha (EKD) para servir na Congregação Martin Luther, de Concepción, Chile. Ele se tornou conhecido como defensor de pobres e presos políticos, não apenas no Chile, mas também por intermédio de entidades internacionais em que atuou por muitos anos.

Dia da Bíblia É comemorado pelos evangélicos no segundo domingo de dezembro e tem como tema: “A Bíblia para o Jovem”. A Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) quer conectar a juventude com a palavra de Deus e enfatizar a importância dos princípios bíblicos para a vida. Belém do Pará, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Brasília, Curitiba e Barueri, cidadesede da SBB em São Paulo, hospedam eventos do lançamento do Dia da Bíblia. “Engajar a liderança cristã nessa grande festa em torno do livro mais lido, traduzido e produzido em todos os tempos”, afirma o secretário de Comunicação e Ação Social da SBB, Erní Seibert.

Rev. Erní Seibert

dica cultural

O Caminho dos Diamantes Um passeio pelo Caminho dos Diamantes, nas Minas Gerais, faz a gente reviver a história do Brasil Colonial. Faz parte da Estrada Real e segue de Diamantina até Ouro Preto. Essa rota foi aberta por bandeirantes em busca de pedras preciosas no século 18 e ligava a sede da Capitania, Vila Rica (atual Ouro Preto), à sede do distrito diamantífero, o Arraial do Tijuco (atual Diamantina). Era usada para o abastecimento da região diamantífera, a imigração e o escoamento da produção mineral. Destacam-se Diamantina, declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em 1999, emoldurada pela Serra dos Cristais; o Parque Nacional da Serra do Cipó; a Cachoeira do Tabuleiro em Conceição do Mato Dentro; e, perto de Cocais, o Sítio Arqueológico da Pedra Pintada, que tem pinturas rupestres de seis mil anos atrás. A principal atração é Ouro Preto, patrimônio da humanidade e o maior acervo barroco do mundo, cidade dos inconfidentes e de Aleijadinho. Ladeiras, casarões coloniais e as igrejas da cidade estão tão preservados, que nem parece que já estão ali há dois séculos. NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2011

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CAPA

Jesus existiu de fato! JESUS CRISTO É PERSONAGEM CENTRAL DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE NOS ÚLTIMOS DOIS MILÊNIOS. SUA BREVE PASSAGEM PELO MUNDO DEIXOU MARCAS QUE MOLDARAM CULTURAS INTEIRAS E DERAM ORIGEM À MAIOR RELIGIÃO DA TERRA. ELE EXISTIU REALMENTE COMO PERSONAGEM HISTÓRICO? O QUE SABEMOS DELE, DE SUA INFÂNCIA, DE SUA VIDA E DE SUA MORTE? FONTES E RELATOS SOBRE A SUA VIDA SÃO CONFIÁVEIS? COMO ESSA ESPETACULAR FIGURA HUMANA SERVIU DE BASE PARA QUE SURGIsse O CRISTIANISMO? COMO A SUA DOUTRINA TRANSFORMA MUNDOS E PESSOAS? ESSAS E MUITAS OUTRAS PERGUNTAS são refletidas a seguir. por Rui Bender

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ão há a menor dúvida de que Jesus existiu como figura histórica. Nisso concordam dois teólogos luteranos, especialistas em Novo Testamento. “Não existe prova material de sua existência, assim como não há de nenhum personagem ilustre da antiguidade. Mas existem evidências que beiram a certeza”, observa o Ms. Verner Hoefelmann, professor da Faculdades EST em São Leopoldo (RS). “O testemunho das fontes cristãs e as referências em fontes não cristãs não deixam dúvida de que Jesus de fato existiu”, confirma o Dr. Emilio Voigt, assessor de Formação e Edi­fi­ca­ção de Comunidades no Sínodo Vale do Itajaí (SC). As principais fontes sobre Jesus são os evangelhos, que foram escritos muito tempo após sua morte. Fontes internas, como adeptos e simpatizantes, mas também externas, como o escritor judeu Flávio Josefo e o escritor romano Tácito, que escrevem sobre Jesus no período das primeiras comunidades, atestam a sua existência, lembra Hoefelmann. Em textos dos escritores romanos Suetônio e Plínio, o Jovem, também há breves referências indiretas a Jesus. “Embora breves, essas referências não cristãs reforçam a credibilidade histórica das fontes bíblicas”, entende Voigt. “Mesmo os judeus, que rejeitam a ideia de que Jesus era o messias esperado, não duvidam de sua existência”, acrescenta. “Nenhum mito ou nenhuma farsa teria o poder de desencadear um movimento das proporções do cristianismo, pelo qual, durante séculos, milhares de pessoas deram a própria vida como mártires, entre eles a maioria dos primeiros discípulos”, acredita o professor de teologia.


NASCIMENTO – Mas quando foi mesmo que Jesus nasceu? Os evangelhos não ajudam a responder. Podería­ mos pensar: se o calendário cristão inicia com Jesus, seria óbvio pensar que ele nasceu no primeiro ano da era cristã. Mas não é tão simples assim. Pois, naquela época, contava-se o tempo com outros critérios. Por esses, sabe-se que o rei Herodes morreu no ano 4 antes de nosso calendário. E Jesus nasceu quando Herodes ainda vivia. “Se Jesus nasceu quando Herodes ainda vivia, teríamos que recuar pelo menos seis anos o calendário cristão”, observa Hoefelmann.

Tradicionalmente, vincula-se o nas­cimento de Jesus a Belém, nome que significa “casa do pão”, uma cidade hoje localizada na Cisjordânia, na Palestina. Os evangelistas Mateus e Lucas concordam que ele nasceu em Belém (Mateus 2.1; Lucas 2.1-4). No entanto, Jesus é conhecido como “Nazareno” – seria aquele que vem de Nazaré. “Para alguns pesquisadores, o nascimento de Jesus em Belém não deve ser entendido como fato histórico, mas como um princípio teo­ lógico”, afirma Voigt. Mas essa não é uma questão totalmente fechada. Não há como ter certeza absoluta. Mesmo

se Jesus nasceu em Belém, deve ter crescido e passado boa parte de sua vida em Nazaré, supõe o assessor teo­lógico. INFÂNCIA – E o que sabemos da infância de Jesus? Praticamente nada. “A falta de informações é compreensível”, alega Voigt. Apenas o evan­ge­lista Lucas traz algumas breves refe­rên­cias à infância de Jesus: menino que crescia em estatura e sabedoria (Lucas 2.40, 52) e seu diálogo com os mestres da lei (Lucas 2.41ss). Sabe-se pouca coisa, pois os evangelhos começaram a ser escritos 30 ou 40 anos depois

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Cena do filme The Nativity Story / Reprodução Novolhar

HISTÓRIA ESPETACULAR: Desde o seu nascimento, a vida de Jesus tem inspirado crentes, escritores e diretores de cinema

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que Jesus morreu. Naquela época, quem viveu na infância de Jesus possivelmente também já estava morto. “Além disso, os evangelhos não são uma biografia de Jesus, mas querem transmitir às comunidades cristãs a sua mensagem”, salienta o assessor teológico. Provavelmente, Jesus exerceu a profissão de carpinteiro antes de iniciar sua atividade como mensageiro do reino de Deus (Marcos 6.3). Na época, era comum os filhos seguirem a profissão do pai. Sendo Nazaré uma

vila muito pequena, pode ser que Jesus, para ganhar seu sustento, fosse uma espécie de carpinteiro itinerante. Conforme Voigt, isso explicaria o fato de que ele conhecia pessoas em diferentes lugares. Porém o período de sua atividade pública não é possível determinar com exatidão. “Na pesquisa bíblica, supõe-se que a atuação de Jesus como pregador do reino de Deus tenha durado de um a três anos”, conclui Voigt. Hoefelmann acrescenta: “Pelas informações de João, ela se prolongou por cerca de três anos,

pois Jesus participa de três Páscoas distintas”. Esse período – segundo Voigt – pode ter sido “entre os anos 27 e 30 d.C.”. MINISTÉRIO – O cerne da pregação de Jesus era o anúncio da proximidade do reino de Deus. “Alguns especialistas preferem traduzir a expressão original como reinado, ou seja, o ato de Deus governar e de pessoas se deixarem determinar por seu senhorio e domínio”, observa Hoefel­mann. Tudo o que Jesus diz ou faz está relacionado de alguma forma com o reino. “Curas, exorcismos, acolhida de pecadores, perdão, busca por justiça, renúncia à violência, disposição para servir são sinais ou con­se­quên­cias do reino de Deus”, aponta Voigt. São indícios de que “o reino de Deus já está presente, fermentando a história”, completa Hoefel­mann. Seus sinais já se fazem sentir. Podem ser vistos naquilo que Jesus faz, mas também naquilo que os discípulos fazem, pois também eles são engajados na causa do reino. E quem eram os seguidores de Jesus? Segundo Voigt, o grupo de pessoas que acompanhava Jesus em suas andanças não era grande. Além dos doze, talvez mais uma dezena de indivíduos. O movimento de Jesus era itinerante: percorria as aldeias da Galileia anunciando a vinda do reino de Deus. Por razões logísticas, é difícil imaginar um grupo muito grande. Como acolher e hospedar uma centena de pessoas? Também havia simpatizantes ou seguidores “locais”, que certamente o acolhiam, proviam sustento e ajudavam a divulgar sua mensagem. Mas não há como determinar exatamente seu número. Reprodução Novolhar

A caminho de Emaús: Pintura sobre madeira – 68 cm X 65 cm Rembrandt 1648 – Museu do Louvre – Paris / França

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NOVIDADE – “Entre as novidades do ministério de Jesus está o espaço especial que ele concedeu às mulhe-


MORTE – Quanto à morte de Jesus, Voigt argumenta que ela ocorreu entre os anos 26 e 37 d.C. Era o período em

Reprodução Novolhar

res”, observa Hoefelmann. “As mulheres tiveram um papel importante nas primeiras comunidades cristãs”, acrescenta Voigt. Para o assessor teológico, a ausência de um relato de chamamento de mulheres não significa que elas não aderiram ao movimento de Jesus. Com certeza, elas seguiram Jesus e apoiaram-no em sua atividade. Voigt lembra três mulheres que podem ser identificadas como seguidoras de Jesus na Galileia: Maria Madalena, Maria (mãe de Tiago e José) e Salomé. “Jesus enxerga também nelas a imagem de Deus. Por isso integra-as em seu ministério, questionando assim os preconceitos e as discriminações de que eram vítimas”, salienta o professor de teologia.

prédica de Jesus: Gravura - 15,5 cm X 20,6 cm – Rembrandt 1652 – Amsterdã / Holanda

a palestina nos tempos de jesus Naquele tempo, a terra de Israel, também conhecida como Palestina, tinha uma área geográfica semelhante à de Sergipe, o menor estado brasileiro. No sentido norte-sul, a extensão era de 240 km e, no sentido leste-oeste, variava entre 50 km e 80 km. A população girava em torno de um milhão de habitantes. A maioria vivia em pequenas aldeias e cidades de 500 e 2 mil habitantes. A base da economia na Palestina era a agricultura. Os principais produtos eram grãos (trigo e cevada), vinho e azeitonas. A maioria das pro­priedades eram pequenas, com cerca de 2 a 4 hectares. Quando aconteciam imprevistos, como doenças e más colheitas, a situação das famílias ficava muito delicada. Os maiores problemas eram o tamanho reduzido das propriedades, as catástrofes naturais, os altos impostos e o en­di­ vi­da­men­to. A pescaria era uma importante atividade econômica no litoral e em torno do lago Genesaré. Ao lado da agricultura e da pesca, havia indústria têxtil em escala reduzida, olaria e fabricação de produtos de vidro. Desde o ano 63 a.C., a Palestina era ocupada pelos romanos. O Império Romano permitia aos povos subjugados uma certa autonomia. A dominação, todavia, era nitidamente mostrada em pelo menos três aspectos: recolhimento de tributos (impostos), presença de tropas romanas e propagação da cultura helenista. Herodes Magno (ou Herodes, o Grande) governou a Palestina, como rei subordinado a Roma, no período de 37 a.C. a 4 a.C. Herodes era muito astuto e sempre conseguiu manter boas relações com os imperadores romanos. Internamente, mantinha a ordem por meio de um aparato militar bem organizado, que reprimia com rigor qualquer tentativa de oposição ou revolta. Na época de atuação de Jesus, a Palestina estava dividida em três regiões. O centro da atividade de Jesus era a região da Galileia, governada por Herodes Antipas. Naquele tempo, estima-se que a Galileia tinha em torno de 200 mil habitantes. (E. Voigt)

que Pôncio Pilatos exercia o cargo de procurador romano (uma espécie de governador) na Judeia. Ainda não se chegou a um consenso sobre o ano da morte, mas é provável que tenha sido por volta do ano 30 d.C., concordam Voigt e Hoefelmann. Em todo caso, a prisão, o julgamento e a crucificação aconteceram em Jerusalém, capital da Judeia. Mas, afinal, quem é responsável pela morte de Jesus? “As motivações devem ter sido variadas, mas a decisão pela execução foi uma decisão política”, acentua Voigt. Possivelmente, Jesus foi visto como um rebelde ou agitador político. Sua pregação sobre o reino de Deus também poderia significar pretensões de poder. “Uma parcela do povo (população local) e das autoridades judaicas (membros do Sinédrio) esteve envolvida na morte de Jesus, mas não se pode colocar a responsabilidade sobre o povo judeu”, acentua o teólogo. A palavra final foi do Império Romano na figura de Pôncio Pilatos.

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Reprodução Novolhar

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?: Pintura sobre tela 100 cm X 73 cm – Rembrandt 1631 Igreja de Le Mas d’Agenais

MISSÃO – Enfim, o cristianismo nasceu como uma pequena seita judaica e, após dois mil anos, evoluiu para uma das maiores religiões do planeta, com 2,2 bilhões de seguidores. “O cristianismo floresceu porque possui uma mensagem universal, com uma visão muito realista sobre o ser humano e suas possibilidades”, explica o professor de teologia. Por sua vez, o assessor teológico acredita que “o ímpeto missionário das primeiras comunidades cristãs, motivadas pelo evento de Pentecostes, foi um fator im­portantíssimo”. Na sua opinião, os primeiros cristãos souberam “aproveitar as oportunidades missionárias, pregando nas sinagogas, no templo, em casas, praças e outros lugares públicos”. As viagens missionárias de Paulo e de outros permitiram que a mensagem do evangelho se alastrasse para diversos lugares do Império Romano. Hoefelmann entende que circunstâncias políticas também contribuíram para disseminar a fé cristã. O exemplo mais claro aconteceu no século 4, quando o cristianismo deixou de ser uma religião perseguida para tornar-se religião oficial do Império Romano. Por sua vez, Voigt julga que o papel do Estado não foi tão decisivo: “O fato de tornar-se religião oficial do Império Romano por volta do ano 380 d.C. é possivelmente con­ se­quên­cia da percepção sobre o grande poder de influência do cristianismo”. De qualquer forma, Hoefelmann tem dúvidas se a fé cristã saiu ganhando ou perdendo com aquele episódio no século 4: “Pode ter ganho em quantidade e influência, mas com certeza perdeu em qualidade e na radicalidade de seu testemunho”. N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS)

OS PRINCIPAIS TÍTULOS de jesus O principal título atribuído a Jesus é “Messias”. Esse acabou sendo incorporado a seu nome. “Cristo” não é um sobrenome, mas um título que tem sua origem na língua hebraica e significa “ungido” ou “messias”. No Antigo Testamento, a palavra “ungido” esteve muito ligada aos reis. A unção fazia parte do cerimonial de entronização de um rei e servia como legitimação para o exercício do poder. No período pós-exílico, e principalmente nos dois últimos séculos antes da era comum, o título “Messias” firmou-se como designação para uma figura salvífica e como termo técnico para o redentor do fim dos tempos. “Filho do Homem”, baseado em Daniel 7.13s, é outro título atribuído a Jesus nos evangelhos. Esse termo era uma das mais importantes representações de messias do período romano-helenístico. As primeiras comunidades cristãs utilizavam com muita frequência o título Kyrios, que na língua grega significa “Senhor”, para referir-se a Jesus. Esse título indica que o Jesus ressuscitado foi exaltado e igualado a Deus. Com esse título, as comunidades cristãs também se distanciavam da veneração a outros “senhores”, especialmente do imperador romano, deixando claro quem era seu senhor. (E. Voigt)

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CAPA

Mistérios do nascimento por Verner Hoefelmann

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m 25 de dezembro, vamos comemorar os 2.011 anos de Jesus. Certo? O Novo Testamento silencia sobre as datas. Mas, do ponto de vista histórico, nem o dia tampouco o ano estão corretos. Comecemos, porém, com o que o Novo Testamento diz sobre o nascimento de Jesus. A história é contada em dois evangelhos. Mateus escreve-a a partir de José: ele está um pouco

confuso com a gravidez de Maria e é aconselhado por um anjo, em sonho, sobre o que fazer (Mateus 1.18-25). Tempos depois, alguns magos do Oriente perguntam em Jerusalém por um rei recém-nascido, causando grande alarde no palácio de Herodes Magno. Esse pensou: Ora, o rei sou eu! Então ele arma um plano para matar a criança, mas Jesus sobrevive. A família foge para o Egito, onde, por assim dizer, reinicia a história do povo de Deus, assim como no Êxodo (Mateus 2).

Lucas conta a história a partir de Maria: um anjo aparece-lhe em Nazaré, na Galileia, para dizer que ela será mãe de um menino muito especial (Lucas 1.26-38). Meses depois, o casal precisa deslocar-se para Belém da Judeia, 120 quilômetros ao sul. O governo romano, que tutela o país, quer recensear a população para saber o quanto pode cobrar de imposto. Ali, a criança nasce numa es­tre­ba­ria e é saudada por pastores que guardam suas ovelhas no campo (Lucas 2.1-20).

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Divulgação Novolhar

PEREGRINAÇÃO: Uma estrela de metal presa ao chão marca o suposto local do nascimento de Jesus na Igreja da Natividade em Belém/Cisjordânia

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Os dois relatos têm em comum a afirmação de que Jesus foi gerado pelo Espírito Santo (Mateus 1.18; Lucas 1.35). É uma forma de dizer que está iniciando uma nova história, que tem sua origem em Deus mesmo. Como se fosse o início de uma nova criação, em que não há participação humana, e tudo depende de Deus. Mas quando foi mesmo que Jesus nasceu? Já dissemos que os evangelhos não nos ajudam. Comecemos com o ano. Se o calendário cristão inicia com Jesus, não é óbvio pensar que ele nasceu no primeiro

ano da era cristã? Bem, as coisas não são tão simples assim. Naquela época, contava-se o tempo com outros critérios. Assim, por exemplo, no Império Romano se consignavam as datas conforme o governo dos imperadores (Lucas 3.1) ou então a partir da fundação de Roma. Sabemos, por esses calendários, que Herodes morreu no ano 4 antes de nosso calendário. Como vimos, Jesus nasceu quando Herodes ainda vivia. Como poderia então Jesus ter nascido antes da era cristã?

POR UMA DATA COMUM PARA A PÁSCOA por Marcelo Schneider O Novo Testamento conta-nos que a morte e a ressurreição de Jesus aconteceram na época da festa judaica da Páscoa. Naqueles dias, os judeus celebravam a Páscoa no dia 14 do primeiro mês, em conformidade com os mandamentos da Bíblia (Levítico 23.05; Números 28.16; Josué 5.11). Como os meses do calendário judaico começam todos na lua nova, o dia 14 seria o dia da lua cheia. O primeiro mês, Nissan, começava a partir da lua nova da primavera. Em outras palavras, a Páscoa era celebrada na primeira lua cheia após o equinócio da primavera e era, portanto, uma festa móvel. Fontes antigas dão conta de que isso logo fez com que os cristãos, em diferentes partes do mundo, celebrassem a Páscoa em datas diferentes. Já no final do século 2, algumas igrejas celebravam a Páscoa num dia fixo, mesmo que não fosse num domingo, enquanto outros celebravam no domingo que se seguia a essa data. Até o final do século 4, havia quatro métodos diferentes de calcular a data da Páscoa. No ano 325, o Concílio de Niceia elaborou uma tentativa de trazer uma solução unificada que mantivesse o vínculo com a data da Páscoa celebrada na época de Jesus, estabelecendo que a data da Páscoa fosse o primeiro domingo após a lua cheia depois do equinócio vernal. Essa data, no entanto, não é a mesma hoje em dia para todos os cristãos. O problema por trás da situação que temos hoje surgiu no século 16, quando o calendário juliano, que tinha sido estabelecido em 46 a.C., foi substituído pelo calendário gregoriano. Levou algum tempo para o novo calendário ser adotado por todos os países (o que não aconteceu na Grécia até o início do século 20). No entanto, as igrejas ortodoxas usam o calendário juliano até hoje para calcular o equinócio da primavera e a lua cheia seguinte. É por isso que eles calculam uma data diferente. Em 2011, a Páscoa caiu no mesmo dia em igrejas orientais e ocidentais. O secretáriogeral do Conselho Mundial de Igrejas, Rev. Dr. Olav Fykse Tveit, aproveitou a oportunidade e exortou os cristãos a dar à celebração deste ano um perfil mais ecumênico, reforçando o trabalho de comissões que tentam elaborar um consenso em torno de uma data comum de Páscoa a cada ano no futuro. “Em um mundo dividido pela pobreza e pela violência, é importante que nós sejamos um em nosso testemunho de Cristo crucificado e ressuscitado em ações, bem como em palavras”, disse Tveit. MARCELO SCHNEIDER é teólogo e correspondente de comunicações para América Latina do Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre (RS)

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A confusão deve-se a um monge romano chamado Dionísio Exíguo. No quarto século, o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano. Mas foi apenas em 526 que Dionísio propôs um calendário cristão. Pelos dados que tinha, ele calculou que Jesus teria nascido no ano 754 após a fundação de Roma. Mas o monge errou os cálculos! Se Jesus nasceu quando Herodes ainda vivia, teríamos que recuar pelo menos seis anos a data do calendário cristão. Os dados de Lucas sobre o censo (Lucas 2.1-2), com algumas correções, poderiam confirmar essa hipótese. Sobre o dia, naturalmente, os dados são ainda mais precários. Se Lucas estiver certo ao dizer que na noite de Natal os pastores cuidavam de seus rebanhos no campo, dificilmente Jesus teria nascido em dezembro. Pois dezembro é tempo de inverno na região, e os pastores recolhiam seus rebanhos aos currais para protegê-los do frio intenso e da chuva. Mas por que celebramos então o Natal em 25 de dezembro? Talvez a resposta o surpreenda! Isso aconteceu pela primeira vez na igreja de Roma em 336 para substituir a festa pagã do Sol Invicto. No hemisfério Norte, inicia-se nessa época o inverno, quando o sol parece ficar mais fraco e irradiar menos luz e calor. Parece que vai morrer. Celebrava-se a festa ao sol invencível para que ele recuperasse sua força. Os cristãos deram a essa festa um novo sentido. Jesus é o sol da justiça, anunciado pelo profeta (Malaquias 4.2). Ele é a luz do mundo, e quem o segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida (João 8.12). Tanto na manjedoura como na cruz, ele se mostrou fraco e impotente. Mas sua força estava em Deus. Dele, por isso, provém a nossa esperança. N VERNER HOEFELMANN é teólogo e professor na Faculdades EST em São Leopoldo (RS)


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As suas lições por Werner Wiese

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esus está entre as pessoas que mais decididamente influen­ciaram a história da humanidade até hoje. Sobre ele foram escritos muitos livros. Em quatro (Ma­teus, Marcos, Lucas e João) dos 27 livros do Novo Testamento, Jesus é o personagem central. Os outros 23 também têm a ver com ele. Enfim, por causa do nome Jesus Cristo, centenas de milhões de pessoas no mundo inteiro são chamadas de cristãos.

sua pregação no centro religioso de Israel – em Jerusalém, onde estava o templo –, mas nos rincões da distante Galileia. Lá, distante de tudo e de todos os que tinham alguma importância no mundo, Jesus noticiou que Deus está próximo. Aquelas pessoas, ignoradas e exploradas de muitas ma­nei­ras, ele con­cla­mou para voltar a Deus, porque Deus está de braços abertos para recebê-las e reuni-las como seu povo (Mateus 4.17).

Quem, afinal, era Jesus? – Ele nasceu em Belém um pouco antes da contagem do nosso tempo e cresceu em Nazaré. Por volta do ano 27, ele apareceu publicamente para ensinar. Em torno do ano 30, Jesus foi processado e condenado à morte. Foi executado numa cruz. No Novo Testamento, testemunha-se que, três dias após sua morte, Jesus ressuscitou e apareceu a pessoas próximas a ele, acima de tudo aos discípulos. Esses noticiaram mundo afora a ressurreição de Jesus. Em torno dele, as opiniões se dividiam – como até hoje continuam se dividindo. Muitos quiseram e ainda querem se apropriar de Jesus e suas ideias. O que, afinal, ele ensinou?

A escolha dos doze – Jesus ia aonde as pessoas estavam e, por outro lado, chamou-as para junto de si (Mateus 11.28-30). De modo

Sinais do reino – No esforço de reunir todo o povo de Deus, Jesus não ignorou o indivíduo em suas mais profundas necessidades. O perdão de pecados que Jesus concedia, a cura de enfermidades físicas que realiza-

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Jesus e Os discípulos: Gravura com giz, pena e pincel – 35,5 cm X 47,6 cm – Rembrandt 1634

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O reino e o povo de Deus – Jesus ensinou e fez muitas coisas, mas o centro de suas palavras e ações são o reino de Deus (ou reino dos céus) e seu povo. Para Jesus, reino e povo de Deus são inseparáveis. Isso quer dizer que não existe reino de Deus sem povo de Deus. Naquela época, para Jesus também estava claro que Israel (ou os judeus) era o povo de Deus. Ele não iniciou

particular, escolheu doze discípulos, que enviou para “as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mateus 10.1-6). Depois da ressurreição de Jesus, também foram enviados a outros povos (Mateus 28.18-20). Assim, os doze discípulos representavam não apenas as doze tribos do povo de Deus, mas eram o primeiro sinal do povo futuro de Deus, constituído não só de Israel, mas de pessoas de todos os povos que creem em Jesus como Senhor e Salvador (Marcos 16.15-16). Jesus olhava para mais longe, pois não deixou de atender “estrangeiros”; ao contrário, admirava-se inclusive com a fé desses (Mateus 8.10-11; 15.28).

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CAPA va (Marcos 2.1-12), a libertação de quaisquer outras moléstias, incluindo forças ocultas, eram sinais de misericórdia que autenticavam a presença do reino de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré (Lucas 11.20). Sim, Jesus não só proclamava o reino de Deus; ele mesmo em pessoa era o sinal da presença do reino de Deus entre as pessoas (Lucas 17.21). Uma nova fraternidade – O povo de Deus (re)constituído por Jesus é uma nova família. Nessa família, não deve haver estruturas hierárquicas de subjugação e dominação. Nela, quem fizer a vontade de Deus é considerado irmão, irmã e mãe (Marcos 3.35). Chama a atenção que Jesus não inclui o pai na nova família de Deus. Isso não é menosprezo ao pai terreno, mas destaca que ele não quer estruturas patriarcais de dominação, nem estruturas matriarcais de su­fo­ca­ção. Jesus relativiza as estruturas hierárquicas de poder no interior do povo do reino de Deus (Mateus 23.8-12). Consequentemente, quem o segue não pode ser dominador ou sufocador, como os investidos de poder neste mundo, mas servo que espelha um pouco o mestre a quem segue. N WERNER WIESE é teólogo e professor de Teologia na Faculdade Luterana de Teologia em São Bento do Sul (SC)

Jesus e a mulher por Sonia Gomes Mota e Claudete Beise Ulrich

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esus buscava todas as pessoas, mas, em especial, as desprezadas e marginalizadas da sociedade, entre as quais também se encontravam as mulheres. Na sociedade patriarcal da época, as mulheres eram consideradas, desde o seu nascimento, propriedade dos homens: do pai, do marido, do cunhado solteiro, se viúva sem filhos, ou do filho, quando viúva e idosa. Mulheres estéreis eram duplamente desprezadas. Apesar de serem responsáveis pela educação das crianças e pela maior parte do trabalho em casa e no campo, as mulheres tinham poucos direitos. Somente podiam mostrar-se em público com o rosto coberto por um véu. No templo e na sinagoga, sempre permaneciam atrás dos homens ou em lugares separados. Não contavam nas estatísticas daquele tempo: “os que

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Jesus e a samaritana: Pintura sobre madeira 63,5 cm X 48,9 cm – Rembrandt 1655

PRINCIPAIS MOVIMENTOS Fariseus – Sua principal característica era a preocupação com o cumprimento da lei. As normas de pureza não valiam apenas para os sacerdotes ou para o culto, mas para todas as pessoas e em todas as ocasiões. A intenção dos fariseus era vivenciar em suas próprias casas a dignidade de um santuário. A impureza era considerada contagiosa. Quem entrasse em contato com objetos ou pessoas impuras deveria realizar rituais de purificação. Saduceus – Eram pessoas da nobreza leiga e sacerdotal. Tinham forte apego ao Antigo Testamento. Não acreditavam na ressurreição dos corpos ou em qualquer tipo de vida após a morte. Se Deus premia ou castiga, isso só pode ocorrer durante a vida terrena. A negação da existência de anjos ou espíritos era outra característica (cf. Atos 23.8). Zelotas – Também para esse grupo, a fidelidade a Deus é demonstrada por meio do cumprimento da lei judaica. Eles esperavam que Deus trouxesse o seu Reino por intermédio de um messias guerreiro. Defendiam a luta armada para expulsar os romanos e restabelecer a nação Israel. (E. Voigt)

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comeram foram cerca de cinco mil homens, além de mulheres e crianças” (Mateus 14.21). Jesus posiciona-se contra essa sociedade opressora e hipócrita. Anuncia o reino de Deus, que não admite exclusões. Objetiva uma comunidade de iguais e uma família baseada em relações de afetividade e serviço mútuos. Nos evangelhos, há muitas histórias de mulheres ativas e sábias no ministério e no movimento de Jesus. Conheça algumas delas, a seguir.


diácona – Maria e Marta recebem em sua casa a visita de Jesus (Lucas 10.3842). Maria senta-se a seus pés para ouvir a Palavra, numa atitude típica de discípulo. Jesus rompe com a norma dos rabinos, que dizia ser preferível queimar a Lei do que ensiná-la a uma mulher. Marta serve como diácona. Confessa a sua fé de forma decidida: “Eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus que veio ao mundo” (João 11.27). Essa é a confissão central do movimento de Jesus. Maria de Betânia: unge Jesus – Num gesto profético, Maria de Betâ­ nia unge Jesus com óleo precioso, preparando-o para sua paixão (Marcos 14.3-9; Mateus 26.6-13; João 12.1-8). Jesus diz: “Onde for pregado o evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua” (Marcos 14.9). Mulher samaritana: discute teologia e reconhece o Messias – Não sabemos o nome da mulher samaritana com a qual Jesus se encontra no poço de Jacó (João 4.1-30). Apesar de discriminada por ser sa­ma­ri­ta­ na, ela dialoga teologicamente com Jesus e reconhece-o como Messias, tornando-se sua principal testemunha na região da Samaria.

Maria: mãe e discípula – Maria carrega em seu ventre a criança a­nun­ciada e esperada; canta de alegria (Lucas 1.26-2.21); acompanha o seu filho desde pequeno (Lucas 2.41-52). Encoraja Jesus a realizar o primeiro milagre (João 2.1-12), dando início a seu ministério público. Está presente nos momentos de sofrimento e cruz de seu filho (João 19.25) e é uma discípula ativa no início da igreja de Jerusalém (Atos 1.14). Maria e Marta: discípula e

para alcançar seu objetivo. Não se importa em ser comparada a cachorros; permanece firme e consegue de Jesus o milagre da cura. Mulheres junto à cruz: testemunhas – Na hora da crucificação de Jesus, os discípulos fogem. Mas muitas mulheres permanecem e testemunham a morte de Jesus (Mateus 27.55-56; Marcos 15.40-41; João 19.25-27). São também elas que, no domingo, vão embalsamar o corpo de Jesus e encontram o túmulo vazio (Mateus 28.1-8; Lucas 24.1-10; João 20.1-10). Maria Madalena: apóstola dos apóstolos – Maria Madalena tem posição de destaque entre os discípulos de Jesus por ter sido a primeira testemunha da ressurreição. Ela é, portanto, a “após­tola dos apóstolos” (João 20.11-18). Essas mulheres também vi­ven­cia­ ram a ressurreição como proximidade viva e corporal de Jesus, recebendo poder para dar continuidade à sua missão. Assim, o movimento e o ministério de Jesus, o Cristo, continuam presentes entre nós na certeza de que um outro mundo é possível. N SONIA GOMES MOTA é teóloga e pastora presbiteriana, residindo em Kassel, Alemanha CLAUDETE BEISE ULRICH é teóloga e pastora luterana, residindo em Wunstorf, Alemanha

Viúva cananeia: dignidade e vida – Uma viúva cananeia perde o seu filho (Lucas 7.11-17). Sem nenhum amparo, estaria condenada a viver de esmola. Jesus comove-se diante de seu sofrimento e restituilhe o filho e, com ele, a dignidade e o sentido de vida. Mulher siro-fenícia: a que argumenta – Uma mulher siro-fenícia aproxima-se de Jesus e pede-lhe que cure sua filha doente (Marcos 7.2430). Inesperadamente, Jesus reage de forma um tanto grosseira; mas a mulher não desiste. Busca argumentos NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2011

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CAPA

Dá para confiar?

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er testemunha – que papel importante! Tão importante que, quase sempre, se depõe sob juramento. Por isso a pessoa precisa ter visto ou ouvido o fato acerca do qual testemunha. E ainda que o mesmo tenha ocorrido em tempos idos, ela o torna presente a qualquer momento. O depoimento de uma testemunha é atentamente ouvido e analisado, pois através dele toda uma situação poderá sofrer mudança radical. Testemunhas, porém, não surgem por vontade própria. Quase sempre um acaso transforma alguém nessa peça-chave. Tendo, porém, testemunhado o fato, será testemunha para sempre, querendo ou não, sendo-lhe isso agradável ou não. Por esse motivo, nada pode somar ao que testemunhou. Precisa ser objetiva, esforçando-se para se desfazer de toda e qualquer subjetividade. É como uma fotografia, que registra o momento e não lhe adiciona colorido ou nuanças inexistentes. Se ainda hoje, nestes tempos tão modernos, testemunhas continuam indispensáveis, imaginemos sua importância ímpar ao tempo em que foram surgindo os relatos da história de Deus com a humanidade por intermédio de Jesus Cristo, conforme os registros nas páginas do Novo Tes­tamento. Em tal época, a comunicação era, por excelência, oral. Que cuidados eram necessários em termos de memória quanto ao que se vira ou ouvira! Que responsabilidade recaía sobre os ombros de quem devia passar notícias adiante!

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O MAPA DAS TESTEMUNHAS

Arte: Roberto Soares

por Hugo Solano Westphal

SINÓTICOS: Os três primeiros evangelhos são chamados de sinóticos porque possuem uma relação literária e uma visão semelhante entre si. Marcos foi o primeiro evangelho a ser escrito, a partir de tradições orais ou de pequenas coleções escritas (parábolas ou milagres, por exemplo). Mateus e Lucas usaram o texto de Marcos como fonte, além de uma segunda fonte em comum, denominada fonte Q (Q=Quelle em alemão). Além disso, cada evangelista possui ainda tradições exclusivas. Se você quiser conferir exemplos, algumas Bíblias assinalam os textos paralelos sob os títulos ou à margem dos textos. João: O Evangelho de João é independente. Mesmo tendo tradições em comum com os sinóticos (sobretudo a história da paixão), em geral ele utiliza os textos narrativos como motivos para longas reflexões teológicas sobre a pessoa e a obra de Jesus Cristo. as cartas: As cartas do Novo Testamento servem para orientar as comunidades recémfundadas, na ausência de seu fundador. Elas reproduzem, em boa medida, o pensamento de seus autores sobre os temas tratados. Mas também utilizam, às vezes, tradições que nasceram e circulavam nas comunidades, como confissões de fé (Rm 10.9-10) e hinos cristológicos (Fp 2.5-11; Cl 1.15-20). Algumas vezes, o autor indica que está passando adiante o que recebeu (1Co 11.23-26; 15.3-5). (Pesquisa: V. Hoefelmann)


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Aos poucos, a escrita foi se desenvolvendo. Ah, quanto cuidado para colocar no papel (pergaminho, papiro...) o que deveria ser preservado para a posteridade! E quanto cuidado ao fazer cópias (obviamente que manuscritas) dos textos já registrados! Teriam que ser fidedignas ao original. Sem dúvida, coisa para testemunhas em letra maiúscula! Não é por menos que o termo “testemunha” em grego, idioma original do Novo Testamento, é mártys, de onde provêm nossos vocábulos mártir, martírio, martirizar... Ou seja: se necessário, entregava-se a própria vida pela causa acerca da qual se testemunhava. Acrescente-se que, por aqueles tempos, só parariam no “papel” fatos e dados sobre personalidades importantíssimas ou divindades. Por isso não se podia brincar com tais registros. Castigo e morte eram constante ameaça a tais testemunhas. Por isso ser testemunha era isto mesmo: empenhar a própria vida no testemunho prestado. Se necessário, pois, ser mártir. Os escritos do Novo Testamento nada mais são do que testemunhos acerca daquele que era, que é e que será sempre o único e suficiente Salvador, o nosso Senhor Jesus Cristo. Por serem testemunho sobre o Salvador, pode-

PERGAMINHOS: Após séculos de cópias, erros podem ter se infiltrado nos textos das testemunhas

mos aceitar e confiar que esses textos foram passados adiante oralmente e, depois, copiados com a maior fidelidade possível, pois são textos de conteúdo sagrado – textos que anunciam a ação salvífica definitiva de Deus em Jesus Cristo. Com tal conteúdo não se brinca! É certo que não possuímos mais os textos originais que resultaram no Novo Testamento. É certo que, após tantos séculos de cópias, erros tenham se infiltrado nos textos das testemunhas. E não podemos ignorar que algum copista tenha modificado uma palavra ou uma frase por conta própria, pois nenhum ser humano é infalível em sua honestidade. E não podemos evitar que se duvide dessas

testemunhas do Novo Testamento. Aliás, semear a dúvida já é fator presente em Gênesis 3, quando a serpente leva Eva a duvidar do que Deus havia ordenado e essa cede à tentação. O mesmo se tentou repetir com Jesus. Em seu batismo, Deus declarou: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mateus 4.17). E logo a seguir, o diabo investe: “Se és Filho de Deus...” Pois é! Jesus afirma: “Bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam” (Lucas 11.28). Bemaventurados os que não temem nem mesmo o martírio para ser testemunhas dessa palavra. Ainda hoje. N HUGO SOLANO WESTPHAL é teólogo e ministro da IECLB em Itoupava Seca, Blumenau (SC)

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Retratos de Cristo Como a arte construiu nosso imaginário sobre jesus cristo.

Arte cristã primitiva: As primeiras imagens de Jesus Cristo apresentam-no como o Bom Pastor, imagem retirada dos evangelhos. Muitos testemunhos vêm das catacumbas, a maioria localizada em Roma. (O Bom Pastor; Séc. IV; Mármore; 0,43 m de altura; Museu Nacional, Roma)

Como religião oficial: Após a peregrinação da imperatriz Helena à Palestina e a descoberta de uma suposta cruz de Cristo, no séc. IV, surge a imagem de Jesus barbudo, ressaltando os aspectos étnicos de Jesus. (Cristo Étnico; Séc. III; Catacumba de Santa Comodila, em Roma)

Início da Renascença: Até o século X, a cruz sem vítima predominou na ico­no­gra­fia do Ocidente. Aos poucos, o Cristo na glória cede à lamentação por seu sofrimento e morte (Lamentação sobre o Cristo Morto, de Giotto. 1305-1306. Afresco; 2x1,85 m; Capela dell’Arena, Pádua)

Renascimento: Rosto fino, nariz alongado, olhos verdes, pele clara, barba e cabelos longos e levemente ondulados – esse é o rosto de Cristo no Renascimento. (Detalhe da Última Ceia, de Leonardo da Vinci, 14951497. Afresco no refeitório do mosteiro de Santa Maria delle Grazie, Milão)

Barroco mineiro: O Cristo do passo da crucificação é dotado de uma sensibilidade que vai além da típica dramaticidade barroca. (Cristo. “Passos da Paixão”, de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. 1795-1799. Madeira policromada; tamanho natural. Capela da Coroação de Espinhos, Congonhas do Campo/MG)

Modernismo brasileiro: As figuras de Jesus e das mulheres ao pé da cruz são apresentadas descarnadas, distendidas e contorcidas. (Via-Crúcis, de Cândido Por tinari. 1944. Pintura mural. Capela de Pampulha, Belo Horizonte/MG)

por Valdemar Schultz

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osto alongado, olhos verdes, pele clara, barba e cabelos longos e levemente ondulados – é assim que o rosto de Cristo ficou conhecido mun­dial­mente. Mas, nos primeiros séculos da formação do cristianismo, as referências que se tinha dos líderes religiosos e políticos não eram pessoais, mas sim simbólicas. As fontes históricas, incluindo as bíblicas, não trazem nenhuma descrição precisa sobre o aspecto físico de Jesus. O primeiro “retrato” histórico é de um homem identificado como João, o Bom, de 1360. Mesmo assim, o rosto mais conhecido no mundo ocidental é o de Jesus Cristo. As imagens do Senhor da fé cristã foram surgindo nas mãos de artistas ao longo de 18 séculos de história, como bem mostrou a exposição da Galeria Nacional de Londres, Contemplando a salvação: a imagem de Cristo, em 2000. Até o século 9, paralelamente ao surgimento das primeiras imagens de Cristo, a igreja cristã tinha desenvolvido um verdadeiro retrato “falado” sobre sua aparência. As discussões evoluíram conforme os embates teológicos da igreja antiga. Nos primeiros séculos, duas visões sobre a aparência de Jesus concorriam entre si. Um grupo de teólogos e historiadores compartilhava a ideia de que Jesus teve uma aparência nada atrativa ou até mesmo “feia”. Outro grupo

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Arte bizantina: Após a oficialização do cristianismo pelo Império Romano e durante o Império Bizantino, o Senhor da fé cristã passa a ser retratado de modo triunfal, nos padrões da arte imperial. (Pantocrator da Igreja da Virgem, no Mosteiro de Dafne. Aprox. 1100. Mosaico)

Reforma Luterana: Ênfase na humanidade de Cristo. Máximo de realismo na re­ pre­sentação de seu sofrimento, en­fa­ti­zan­do a Teologia da Cruz. (Crucifixão, Re­tá­bulo de Isenheim, Mathias Grünewald: 1512-1515. Pintura sobre madeira; 2,78 x 3,07 m; Museu Unterlinden, Colmar, França)

Surrealismo: Inspirado em um desenho de São João da Cruz (1542-1592), no qual a cruz parece voar em direção a um moribundo, o Cristo de Dali não tem coroa de espinhos nem mãos e pés cravados nem a inscrição INRI. (Cristo de São João da Cruz, de Salvador Dalí. 1951. Óleo sobre tela. 205 x 116cm. Galeria de arte de Glasgow, Grã-Bretanha)

Período gótico: No auge da expansão do cristianismo, Cristo é retratado de modo triunfante e de pele clara, simbolizando o domínio cristão. (O Belo Cristo; Catedral de Amiens; Trumeau Porta Central; 1225-1236)

Barroco: De estilo naturalista, Velásquez emprega dramaticidade máxima à morte de Cristo. O corpo quase limpo de sangue e os pés em posição de descanso transmitem mais serenidade do que dor. (Cristo cru­ci­ficado, Diego Velásquez. 1632. Óleo sobre tela. 248x169cm. Museu do Prado, Madri.)

ressaltava a sua beleza. Os partidários da feiura de Jesus basearam-se em um texto do profeta Isaías (53.2), que anuncia a vinda do messias como servo sofredor, sem aparência nem formosura, nenhuma beleza que pudesse atrair o nosso olhar. Os partidários da beleza de Jesus basearam-se nos salmos messiânicos: “Tu és o mais formoso dos filhos dos homens; nos teus lábios se extravasou a graça; por isso, Deus te abençoou para sempre” (Salmo 45.2). As duas vertentes foram exploradas pelos artistas em suas pinturas e esculturas. Ora se enfatizou mais o caráter étnico e humano de Jesus, ora a sua natureza divina. Veja no quadro ao lado como a arte construiu nosso imaginário sobre Jesus Cristo. Com maior ou menor variação, o perfil europeu de Jesus já estava definido na Idade Média. Mas a inquietação em relação ao “verdadeiro retrato” de Cristo atravessou séculos. Em 2001, uma projeção por meio de computadores, realizada por cientistas da Universidade de Manchester, na Inglaterra, de um possível rosto para Cristo a partir de um crânio do século I, encontrado numa sepultura em Jerusalém, causou grande estranhamento. A face arredondada, de nariz largo e barba espessa, não corresponde ao imaginário que as pessoas comumente têm de Cristo. Não existindo nenhuma imagem autêntica, todas as figurações de Jesus Cristo são legítimas, enquanto expressam uma determinada visão de época e um modo de crer. A imagem que cada pessoa faz de seu Salvador pode ser um reflexo de uma determinada cultura e visão teológica, como também pode ser uma expressão de fé pessoal. Mesmo assim, determinados exageros, como moldar Jesus segundo os padrões do apelo físico atual, contradiz o que é central na fé cristã: o amor de Deus é incondicional. N VALDEMAR SCHULTZ é teólogo e professor de Artes Visuais em Porto Alegre (RS)

Atualidade: O artista teve intenção de a­pro­ximar jovens da religião, apresentando imagens de Jesus esportista, musculoso, de peitoral marcado, tatuado e com roupagem de super-herói. (Ilustração da série Art4God, Stephen Sawyer, The New York Times, 2010)

Para saber mais: Leia o livro do historiador e crítico de arte Armindo Trevisan: O rosto de Cristo. A formação do Imaginário e da Arte Cristã. Publicado pela Editora AGE, em Porto Alegre (RS), em 2003. NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2011

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CAPA

Ruptura e recomeço cada cristão precisa de duas conversões fundamentais: uma para Cristo e outra de volta para seu contexto social. por Arzemiro Hoffmann

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ocê é casado ou solteiro? Ora, toda pessoa sabe a resposta sem pestanejar. Como alguém sabe se é casado ou solteiro? Elementar! Sou casado porque, num dia muito especial, assumi publicamente esse compro­mis­so diante de Deus e das pessoas. Agora, se alguém pergunta: Você é convertido? Sim ou não? Como saber a resposta? Muito simples: uma pessoa convertida é alguém que, algum dia, assumiu pessoalmente o compromisso de viver uma nova vida com Cristo. É a resposta pessoal à graça de Deus oferecida no Batismo, que insere a pessoa na vida ativa da comunidade de fé. O apóstolo Paulo disse: “Agora não sou mais eu quem vive, mas Cristo vive em mim”. Com sua conversão a Cristo aconteceu uma ruptura com o antigo modo de viver, seus costumes e valores. De perseguidor dos cristãos, Paulo passou a amá-los e a defender sua causa. Ele passou por uma experiência mística/ espiritual que marcou uma ruptura com o passado e o início de um processo de transformação, de conversão.

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Arte de Egon Schiele (1890-1918), com o título Bekehrung (Conversão)

O Novo Testamento usa várias palavras para significar essa experiência operada pelo Espírito Santo a partir do evangelho. Tais como: “justificação por graça mediante a fé”, “novo nascimento”, “receber a Jesus”, “nascer do Espírito” etc. A conversão sempre significa mudança: ruptura com o passado sem Cristo e a entrada para a comunidade cristã. Qual a relação entre batismo infantil e conversão? Em nossa igreja, ao batizar uma criança, é praxe reunir os pais e padrinhos para uma palestra batismal. Sempre é enfatizado que a graça oferecida por Cristo no Batismo espera uma resposta consciente

e pessoal do batizado. Para ajudar os pais a “ensinar todas as coisas”, a igreja estabeleceu o período do Ensino Confirmatório. É um tempo em que os pré-adolescentes são preparados para dar seu “sim” às promessas do Batismo, ou seja, a sua Confirmação. Por que isso é necessário? Não basta ser batizado; o rito batismal não é mágico. É imprescindível viver o Batismo no dia a dia. Assumir o Batismo no dia a dia é viver em novidade de vida. Isso é conversão. Lutero era batizado. Ele se preparava para ser sacerdote, mas vivia em profunda angústia existencial. Essa só foi superada no dia em que entendeu o


significado da “justificação por graça”. Ele confessa que, naquele dia, os céus se abriram sobre ele. Então passou a viver em paz com Deus. Essa descoberta do Deus misericordioso significou uma mudança em sua vida. Eu lembro o dia de minha conversão, assim como lembro o dia do casamento. Foi uma experiência maravilhosa, e dou graças a Deus por ela. Outras pessoas não lembram esse dia nem passaram por uma experiência mística marcante, mas vivem sua fé com alegria e bom caráter. Isso é o que importa. Viver no evangelho é mais significativo do que colecionar experiências. A conversão é uma resposta ao evangelho, que leva ao discipulado de Jesus e remete a pessoa à comunidade de fé. Isso é graça imerecida e, ao mesmo tempo, responsabilidade intransferível. O apóstolo Pedro enfatiza as im­ pli­cações pessoais e comunitárias da conversão: “Despojando-vos, por­ tanto, de toda maldade e dolo, de hipocrisias e invejas e de toda sorte de maledicências, desejai ardentemente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual, para que, por ele, vos seja dado crescimento para a salvação, se é que já tendes a expe­

riência de que o Senhor é bondoso” (1 Pedro 2.1-3). Quem abraça a vida cristã faz uma ruptura com o antigo padrão de vida para assumir um novo comportamento ético. A vida cristã é um processo de permanente transformação. Ninguém nasce pronto. Todas as pessoas precisam crescer para alcançar a maturidade. É necessário que haja zelo para que a vida em Cristo se imponha sobre os antigos valores. Sem uma sólida doutrina bíblica, ninguém alcança essa vitória. Diz-se que cada cristão precisa de duas conversões fundamentais: uma para Cristo e outra de volta para seu contexto social. Cada pessoa cristã é portadora de dupla cidadania: é cidadã do reino de Deus, comprometida com os valores do evangelho; é cidadã brasileira a serviço da transformação da sociedade em que vive. O processo de conversão pode ter dia e hora para começar, porém não tem hora para estar completo. Cada “nova criatura” está em constante processo de conversão. É a bondade de Deus que nos conduz nesse processo em busca de vida digna e plena. N ARZEMIRO HOFFMANN é missiólogo da IECLB e professor na Faculdade de Teologia Evangélica em Curitiba (PR)

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capa

Proclamação do Cristo do Corcovado

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á 80 anos que a paisagem do Rio de Janeiro é pontuada pelo Cristo Redentor, inaugurado em 12 de outubro de 1931, após cinco anos de obras. Símbolo da Cidade Maravilhosa, o monumento, localizado no topo do morro do Corcovado, a 709 metros acima do mar, recebe visitas de muitas pessoas ao redor do mundo. Um emblema do cristianismo, o monumento se tornou um dos ícones mais reconhecidos internacionalmente do Rio e do Brasil. Em 2007, o Cristo foi eleito uma das novas sete maravilhas do mundo. Naqueles dias, ao se completarem 80 anos de existência, o Cristo do Cor­ co­vado estremeceu e se reanimou. O que era cimento e pedra se fez carne e sangue. Estendendo os braços, como quem quer abraçar o mundo, abriu a boca, falou e disse: “Bem-aventurados sois todos vós, pobres, famintos, doentes e caídos em tantos caminhos sem um bom samaritano para vos socorrer. O Pai, que também é Mãe de bondade, vos tem em seu coração e vos promete que sereis os primeiros herdeiros do reino de justiça e de paz. Ai de vós, donos do poder, que há quinhentos anos sugais o sangue dos trabalhadores, reduzindo-os a combustível barato para vossas máquinas

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de produzir riqueza iníqua. Não serei eu a vos julgar, mas as vítimas que fizestes, atrás das quais eu mesmo me escondia e sofria. Bem-aventurados sois vós, indígenas de tantas etnias, habitantes primeiros destas terras ridentes, vivendo na inocência da vida em comunhão com a natureza. Fostes quase exterminados. Mas agora estais ressuscitando com vossas religiões e culturas, dando testemunho da presença do Espírito Criador que nunca vos abandonou. Ai daqueles que vos subjugaram, mataram pela espada e pela cruz, negaram-vos a humanidade, sa­ta­ni­ za­ram vossos cultos, roubaram-vos as terras e ridicularizaram a sabedoria de vossos pajés. Bem-aventurados, e mais uma vez bem-aventurados, sois vós, meus irmãos e irmãs negros, injustamente trazidos da África para serem vendidos como peças no mercado, feitos carvão para ser consumido nos engenhos, sempre acossados e morrendo antes do tempo. Ai daqueles que vos de­su­ma­ni­za­ ram. A justiça clama aos céus até o dia do juízo final. Maldita a senzala, maldito o pelourinho, maldita a chibata, maldito o grilhão, maldito o navio negreiro. Bendito o quilombo, advento de um mundo de libertos e de uma fraternidade sem distinções.

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por Orlando Eller

Bem-aventurados os que lutam por terra no campo e na cidade, terra para morar e para trabalhar e tirar do chão o alimento para si, para os outros e para as fomes do mundo inteiro. Maldito o latifúndio improdutivo, que expulsa posseiros e assassina quem ocupa para ter onde morar, trabalhar e ganhar o pão para seus filhos e filhas. Em verdade vos digo: chegará o dia em que sereis espoliados. E a pouca terra sobre a tumba será pesada sobre vossas sepulturas. Bem-aventuradas sois vós, mulheres do povo, que resististes contra a opressão milenar, que conquistastes


espaços de participação e de liberdade e que estais lutando por uma sociedade que não se define pelo gênero, sociedade na qual homens e mulheres, juntos, diferentes, recíprocos e iguais, inaugurareis uma aliança perene de partilha, de amor e de corresponsabilidade. Benditos sois vós, milhões de menores carentes e largados nas ruas, vítimas de uma sociedade de exclusão e que perdeu a ternura pela vida inocente. Meu Pai, como uma grande Mãe, enxugará vossas lágrimas, vos apertará contra o seu peito, porque sois seus filhos e filhas mais queridos. Felizes os pastores que servem, hu­mil­demente, o povo no meio do povo, com o povo e para o povo. Ai daqueles que trajem vestes vistosas, se envaidecem nas televisões, usam símbolos sagrados de poder, exaltam o Pai Nosso e esquecem o Pão Nosso. Quantos usam o cajado contra as ovelhas ao invés de contra os lobos! Não os reconheço e não testemunharei em favor deles quan­do aparecerem diante de meu Pai. Bem-aventuradas as comunidades eclesiais de base, os movimentos sociais por terra, por teto, por educação, por saúde e por segurança. Felizes deles que, sem precisar falar de mim,

assumem a mesma causa pela qual vivi, fui perseguido e executado na cruz. Mas ressurgi para continuar a insurreição contra um mundo que dá mais valor aos bens materiais do que à vida, que privilegia a acumulação privada à participação solidária e que prefere dar os alimentos aos cães do que aos famintos. Bem-aventurados os que sonham com um mundo novo possível e necessário, no qual todos possam caber, incluída a natureza. Felizes são aqueles que amam a Mãe Terra como sua própria mãe, respeitam seus ritmos, dão-lhe paz para que possa refazer seus nutrientes e continuar a produzir tudo o que precisamos para viver. Bem-aventurados os que não desistem, mas resistem e insistem que o mundo pode ser diferente e será, mundo onde a poesia anda junto com o trabalho, a música junta-se às máquinas e todos se reconhecerão como irmãos e irmãs, habitando a única Casa Comum que temos, este belo e irra­diante pequeno planeta Terra. Em verdade, em verdade vos digo: felizes sois vós, porque sois todos filhos e filhas da alegria, pois estais na palma da mão de Deus. Amém”. N ORLANDO ELLER é jornalista em Vitória (ES)

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REFLEXÃO

O fim do início ou o início do fim Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim.

Apocalipse 22.13

por José Kowalska

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omo falar de “princípio e fim” sem lembrar que, como muita gente argumenta, em 21 de dezembro de 2012 termina o calendário maia? Cada vez estão mais próximos os “finais” do mundo. Se antigamente passavam séculos entre um “fim” e outro, agora, com a velocidade em que vivemos, os finais estão mais próximos. O “fim” estava perto

quando o Império Romano ruiu na virada do ano 1000, na sombra da morte que trouxe a praga à Europa, até o Bug do milênio na virada para 2000. Também podemos contar os inúmeros visionários que indicaram a seus seguidores que o fim do mundo, assim como o conhecemos, tinha uma data marcada por eles no calendário. Agora somos confrontados, pela tecnologia de ponta, com o fim do mundo pelos filmes de Hollywood, assim como o povo da Idade Média era assustado pelas peças teatrais sobre o inferno e o purgatório. Filmes apocalípticos sempre dão medo, e ainda mais do jeito como Hollywood os produz. Cada lançamento é uma lembrança de que o final será desastroso e muito perigoso para a maioria

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FIM ESPETACULAR: Os filmes de Hollywood usam tecnologia de ponta para nos confrontar com o medo do apocalipse

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da humanidade, mas que, no fim, sempre fica um grupo ou um casal para reiniciar uma nova humanidade. Os filmes sempre nos lembram de nossa finitude. Nós acreditamos numa visão do tempo de forma linear: o ano 2011 vai dar passagem ao 2012; assim o fez 2010 com 2011. Mas vemos o calendário de forma circular. Quando as folhas de um ano terminam e começa um novo, cremos que tudo volta a ter sentido, a ser refeito. No reveillon, a magia acontece e, como se a gente apertasse o botão reset do computador, nossa vida fica nova em folha. Mas devo contar a vocês que o mundo não anda de forma linear nem circular. O tempo, com seus dias e anos, é uma espiral, pois, cada ano que passa, nós não voltamos ao ponto zero. Quando iniciar 2012, não seremos aquele ser que entrou em 2011. Teremos mudado, querendo ou não, cumprindo ou não aquela longa lista de desejos a serem cumpridos. A vida passou por nós, e nós passamos por ela. As relações trocaram, aconteceu muita coisa nesses 365 dias de 2011. Não dá para negar isso. Mesmo que os nomes e os números dos dias e meses sejam, em teoria, os mesmos, eles estão recheados de forma diferente. Tenho escutado de muitas pessoas que passaram por um grave acidente, venceram uma forte doença ou lutaram contra uma adição que, depois daquilo, elas veem o tempo de jeito diferente. Não trocou a quantidade, mas a qualidade. O importante é como se usa o tempo extra recebido. A espiral do calendário eleva-se a níveis insuspeitáveis, a forma de viver é totalmente outra. Deus está presente em suas vidas, não como um adicional que pode ser excluído. Deus é parte importante e principal da equação.

Aqui podemos empregar a sim­bo­ lo­gia do versículo 13 do capítulo 22 de Apocalipse: usar o alfabeto grego para mostrar uma imagem. Alfa é a primeira letra e ômega, a última. Como se nós hoje falássemos, em português, de “a” a “z”. Usando a redundância, queremos incluir a plenitude do tudo. Absolutamente tudo está dentro daquela ideia; não sobra nada. Contamos com Deus em todos os momentos de nossa vida, desde a nossa concepção até o último suspiro. Agradecemos as bênçãos que ele nos permite receber e suplicamos quando as incertezas nos atacam. Então, qual o problema de contar também com ele no fim? Mesmo que o mundo termine, podemos ter a certeza de que Deus estará ao nosso

lado. Não precisamos ter medo; no fim, não estaremos sozinhos, Cristo estará ao nosso lado. O que fazer diante de tanto fim? Tenho escutado: “A gente tem que acreditar em alguma coisa” ou “tudo isso tem que ter um fundo de verdade”. Já falei a várias pessoas que apregoam o fim do mundo no próximo ano: doem seu dinheiro à caridade. Existem muitas instituições que gostariam de receber esse dinheiro, que, no fim das contas, vai perder-se, “pois o mundo vai acabar”. O que você acredita eu não vou discutir. De qualquer jeito, a gente se vê no dia 22 de dezembro de 2012, com Jesus... N JOSÉ KOWALSKA é teólogo e ministro da IECLB no Rio de Janeiro (RJ)

CLAUDIUS

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retratos

O irmão enganado

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vida em família nem sempre é um mar de rosas. Especialmente quando irmãos não se entendem ou competem por atenção, privilégios ou poder. A Bíblia conhece vários exemplos de conflitos entre irmãos. Um dos mais conhecidos é a história de Esaú e Jacó. O primeiro é um rude caçador, o preferido do pai; o outro, pastor de ovelhas, mais caseiro, o preferido da mãe. Naquela época, quem nascia primeiro tinha os direitos de pri­mo­gê­ ni­to. Herdava, por exemplo, a maior parte dos bens da família. Em con­tra­ partida, também era responsável por sustento, proteção e sobrevivência de toda a família. Esaú nascera primeiro. Mas Jacó não se conforma em ser o irmão mais jovem. Ele quer ter os direitos do mais velho e, para alcançar seu objetivo, não hesita em recorrer a meios fraudulentos e pouco éticos. Em primeiro lugar, Jacó oferece ao irmão morto de fome um prato de seu cozido sob a condição de receber, em troca, o direito do primogênito. Enfraquecido pela fome, Esaú aceita (Gênesis 25.27-34). Anos mais tarde, quando o pai dos gêmeos, Isaque, já velho e cego, pressente chegar o seu fim, Jacó não tem escrúpulos em enganar o próprio pai. Quando esse pede a Esaú para caçar algo e preparar-lhe uma comida saborosa, Jacó faz-se passar por seu irmão e leva ao pai um prato saboroso feito por Rebeca, sua mãe.

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Arte: João Soares

por Nelson Kilpp

O objetivo da fraude é receber do pai moribundo a bênção reservada ao filho mais velho, sacramentando, dessa forma, a passagem do pátrio poder. Assim, enganado pelo filho e pela esposa, Isaque abençoa Jacó (Gênesis 27). Mais uma vez, Esaú sai perdendo, já que a bênção paterna não pode ser retirada da pessoa abençoada e, por ser uma bênção única, tampouco repetida. A história dos dois irmãos continua com a fuga de Jacó, que teme o “furor” do irmão enganado (Gênesis 27.43-45). A narrativa bíblica concentra-se, então, nos acontecimentos em torno de Jacó, pois esse será o pai do povo de Israel. Não sabemos por que o escolhido de Deus foi Jacó, mas certamente não foi por sua conduta pouco ética. Apesar da história continuar com o patriarca Jacó, o irmão enganado não deve ser esquecido. Ele fica “em casa”, isto é, permanece junto a seus pais, dando proteção e sustento à sua mãe, Rebeca, depois da morte do pai. Anos mais tarde, acontece o reencontro dos irmãos. Ambos estão bem de vida – em épocas bíblicas isso significa que ambos foram abençoados. Mas Jacó ainda tem medo do irmão. E com razão. Mas o inesperado acon-

tece: “Então, Esaú correu ao encontro do irmão e o abraçou; arrojou-se ao seu pescoço e o beijou; e choraram” (Gênesis 33.4). Esaú desiste de vingar-se pela injustiça sofrida e oferece reconciliação ao irmão. Nesse gesto, a narrativa bíblica vê um reflexo da misericórdia de Deus. Jacó expressa-o assim: “Vi o teu rosto como se tivesse contemplado o semblante de Deus” (Gênesis 33.10). A história desses irmãos mostranos, em primeiro lugar, o que não deve acontecer. Além disso, também aqui Deus revela seus propósitos nas entrelinhas da história. Jacó herda, por meio de trapaça, o que caberia a seu irmão, mas, em contrapartida, vive inquieto e com medo. Esaú, apesar de enganado, não foge de sua responsabilidade com os pais. E, apesar de não receber a bênção especial do pai, não deixa de progredir na vida. E, por fim, ao contrário do filho mais velho da parábola do “filho pródigo” (Lucas 15), Esaú alegra-se com a volta do irmão e corre para abraçá-lo sem rancor, mostrando que a grandeza de espírito pode superar conflitos e salvar vidas. N NELSON KILPP é especialista em Antigo Testamento, ministro da IECLB, residindo em Kassel, na Alemanha


PERSONAGEM

Pelos 80 anos de Desmond Tutu

Desmond Mpilo Tutu foi nomeado o primeiro decano da catedral an­gli­ca­ na de Johannesburgo em 1975 e, pouco tempo depois, virou secretário-geral do Conselho Sul-Africano de Igrejas. E ele não se fez de rogado para revelar o drama da discriminação em seu país ao mundo inteiro. Ele conduziu pessoalmente marchas de protesto, foi ameaçado de morte, e o regime suspendeu o seu passaporte. A sua luta corajosa e baseada nos princípios cristãos da igualdade e da paz lhe valeu o Nobel da Paz em 1984. Dois anos depois, ele foi nomeado arcebispo anglicano da Cidade do Cabo, aposentando-se dez anos depois. E o aposentado não parou, assumindo a presidência da comissão que tratou dos crimes do apartheid. Ele também foi um importante interlocutor ecu­mê­nico no Conselho Mundial de Igrejas e amigo pessoal do Dalai Lama. Quando foi diagnosticado com câncer de próstata, ele brincou: “Quan­do se ouviu lá no céu que eu viria, eles disseram: Não esse sujeito! Segurem-no lá embaixo, porque não daremos conta dele de jeito nenhum!” N

por Clovis Horst Lindner

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suas “carroças de luxo” e finalmente se importassem com os pobres. Às vésperas da Copa do Mundo, no ano passado, ele não se calou e exibiu uma imagem deprimente do seu país ao mundo, mostrando a violência e a corrupção.

CLOVIS HORST LINDNER é teólogo e comunicador, editor da revista Novolhar em Blumenau (SC)

olhar com arte

MENINO COM ARMAS BRASILEIRAS Flávio Scholles, 2003 50 x 70 cm O Brasil é o único país do mundo que tem uma bomba atômica ecológica: a floresta amazônica. Pagamos royalties pelo aquecimento global e não recebemos pelo ar puro. www.fscholles.com.br

Reprodução Novolhar

esmond Tutu completou 80 anos no dia 7 de outubro. O Prêmio Nobel da Paz por causa de sua luta contra o apartheid é um herói na África do Sul. Negro, sacerdote anglicano e militante contra o racismo, ele foi parceiro de primeira hora de Nelson Mandela e outros que lutaram por uma África do Sul livre do regime que dividia o país em brancos (ricos e cheios de privilégios) e negros (a maio­ria pobre e recolhida a bairros que eram como guetos). Desde jovem, em suas manifestações, ele era conhecido como o herói estridente por jamais calar-se. Enquanto é cômico, por um lado, é uma instância moral, pelo outro. Suas pregações e discursos costumam ser expressivos, quase sempre iniciados com alguma piada de um vasto repertório que quase sempre resvala para os tempos do racismo do apartheid. “Por vezes estridente, por vezes afetuoso, jamais ansioso e raramente sem humor, Tutu tem emprestado sua voz desde sempre àqueles que não têm voz”, definiu Nelson Mandela. Ele próprio já não pensa assim e define suas palavras por vezes duras demais como “reflexões de um decrépito”. Ele jamais se cala quando algo duro precisa ser dito. Foi assim há poucos dias, por exemplo, durante a execução de Troy Davis ou quando o governo impediu seu amigo Dalai Lama de participar da festa de aniversário dos seus 80 anos. Não se conteve e pediu aos políticos do seu país para que vendessem

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NÓS E AIDS

Acolhimento do outro por Sabrina Nunes Bolla

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urante o Fórum Ecu­mê­ni­co de Igrejas em Re­c i­f e (PE), visitamos o Hospital Cor­reia Pi­can­ço, ins­ti­ tui­ção de referência para o tratamento de pacientes com HIV/Aids em nosso país. Num dos primeiros quartos, uma pessoa que estava na cama do fundo chamou nossa atenção. Ela estava com o olhar fixo em nós. Ao nos aproximarmos dela, alguém do grupo perguntou se havia algo que pudéssemos fazer por ela. A resposta foi imediata: Preciso de alguém para me ajudar a tomar banho. Naquele momento, percebi que o ato de estender a mão ao próximo e auxiliá-lo numa simples atividade do cotidiano está quase sempre longe de ser atendida. No que se refere ao tratamento da doença, o governo brasileiro é referên-

cia. Mesmo assim, os dados assustam. Segundo o último Boletim Epi­de­mio­ lógico do Ministério da Saúde, há uma incidência crescente da Aids entre as adolescentes e jovens do sexo feminino: na faixa entre 13 a 19 anos, para cada oito casos em meninos há dez em meninas (em 100 mil). Os dados revelam que, embora os jovens tenham acesso maior e mais contínuo a informações sobre prevenção, ainda carecemos de consciência – sentido de responsabilidade – sobre o perigo e as consequências da negligência ou do descaso na prevenção. As metas e ações estratégicas do governo para prevenir e controlar a epidemia da Aids e outras DST têm acontecido através de ações conjuntas entre o SUS – Sistema Único de Saúde e diferentes organizações da sociedade civil. O cuidado e o apoio às pessoas vivendo com HIV/Aids é

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CORREIA PICANÇO: Hospital do Recife é referência nacional no atendimente a pacientes com HIV

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um compromisso pessoal e coletivo – da comunidade e da igreja: * É necessário assumir nosso papel de formadores de opinião. Desde cedo, no diálogo e nas relações familiares e nas atividades do culto infantil, se­ mear o diálogo, o respeito ao diferente e a diversidade, a partilha, os valores básicos da fé cristã e da edificação da vida. Mais tarde, na adolescência e na juventude, quando da consolidação dos valores e da problematização de questões primordiais da existência humana, abordar e trabalhar temas como a sexualidade e a relação com os outros. * É preciso apoiar de forma efetiva as entidades governamentais e não governamentais que trabalham com a temática. Pois existem diversas e produtivas iniciativas na área. Um exemplo é a Fundação Luterana de Dia­co­nia – FLD, que se comprometeu em pautar o tema com todos os seus parceiros, divulgando as ações de informação e prevenção para seu público. * É imprescindível exercitar o acolhimento do outro diferente e desconhecido em nosso meio comunitário e social. Pois é nesse acolhimento fraterno e solidário – antídoto eficaz contra todo e qualquer tipo de preconceito ou discriminação – que exercitamos nossa espiritualidade, testemunhamos nossa fé e contribuímos para a transformação da sociedade. O engajamento na prevenção e no controle da epidemia da Aids e de outras DST, assim como o acolhimento e o cuidado da pessoa vivendo com Aids são partes intrínsecas da missão e do testemunho da igreja no mundo. Negar esse compromisso implica negar a razão maior de ser da igreja. Pois como oportunamente lembra o teólogo Dietrich Bonhoeffer: “A igreja só é igreja quando existe para outros”. N

SABRINA NUNES BOLLA é enfermeira e assessora da Secretaria Geral da IECLB em Porto Alegre (RS)


fábulas de esopo

O avarento

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ESOPO foi um fabulista grego do século 6 a.C., famoso por suas pequenas histórias de animais com um sentido e um ensinamento.

Arte: Roberto Soares

m avarento havia enterrado seu pote de ouro num lugar secreto de seu jardim. E todos os dias, antes de ir dormir, ele ia até o ponto, desenterrava o pote e contava cada moeda de ouro para ver se estava tudo lá. Ele repetiu isso tantas vezes, que um ladrão, que já o observava há bastante tempo, curioso para saber o que o avarento estava escondendo, veio uma noite e sorrateiramente desenterrou o tesouro, levando-o consigo. Quando o avarento descobriu sua grande perda, foi tomado de aflição e desespero. Gemia e chorava enquanto puxava seus cabelos. Alguém que passava pelo local, ao escutar seus lamentos, quis saber o que acontecera. – Meu ouro! Todo o meu ouro! – chorava inconsolável o avarento. – Alguém o roubou de mim! – Seu ouro! Ele estava neste buraco? Por que você o colocou aí? Por que não o deixou num lugar seguro, dentro de casa, onde poderia mais facilmente pegá-lo quando precisasse comprar alguma coisa? – Comprar! – exclamou furioso o avarento. – Você não sabe o que diz! Ora, eu jamais usaria aquele ouro. Nunca pensei em gastar uma peça sequer dele! Então o estranho pegou uma grande pedra e jogou-a dentro do buraco vazio. – Se é esse o caso – disse ele –, enterre então essa pedra. Ela terá o mesmo valor que tinha para você o tesouro que perdeu! N

Moral: Um bem só tem valor quando fazemos uso dele. NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2011

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NATAL

Papai Noel evangelizador Com uma mensagem especial, Martinho Krebs procura explorar o lado cristão da figura do bom velhinho. por Vera Nunes

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ida de Papai Noel não é fácil. Ainda mais num mundo extremamente con­su­mis­ta, onde a figura do bom velhinho que traz presentes no Natal é apenas mais um apelo entre tantos que invadem as lojas, os shoppings e os supermercados no mês de dezembro. Para o pastor Martinho Krebs, o desafio é ainda maior. Além de passar dias e dias recebendo e conversando com as crianças, ele procura transmitir uma mensagem de amor, esperança e, muitas vezes, oferece uma pitada de reflexão, não apenas para os pequenos, como também para os pais. “Eu faço as vezes de Papai Noel desde que possa evangelizar um pouco”, conta. Ele lembra, por exemplo, que, ao invés de perguntar para a criança o que ela quer no Natal, ele questiona sobre o que ela quer ganhar na noite do Menino Jesus. Quando alguém pede uma arma – mesmo que seja uma pistola de água –, ele procura dissuadi-lo da ideia: “Eu chamo os pais, vejo se não é

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possível trocar o brinquedo, tento mostrar que existem outras opções interessantes”. Martinho tem consciência de que esse não é o principal objetivo do trabalho para o qual foi contratado, mas a formação em teologia e, portanto, os aprofundados conhecimentos em psicologia e sociologia permitiram a ele perceber que o Papai Noel tem um papel importante em meio a todas as mensagens dessa época do ano. “Essa é uma das últimas figuras em quem as pessoas confiam”, garante, baseando-se em tudo o que escuta como depositário de promessas. Encarnando o personagem há 11 anos, Martinho também percebeu que o Papai Noel é uma fonte de carinho. “Muitas crianças me abraçam e dizem que estão tristes porque no dia 24 eu vou embora para o Polo Norte”, relata, acrescentando que alguns recebem um abraço que, muitas vezes, não ganham do pai ou da mãe. Ele conta que é comum no último dia receber cartas ou até mesmo presentes dos pequenos. “O Papai Noel ainda representa um valor positivo”, resume. Entre os requisitos para a função, Martinho lembra que o Papai Noel tem que ter atitude. “Muitas pessoas trazem problemas sérios para administrarmos e temos que cuidar para não deixar a imagem negativa para a criança.” Ele conta que, certa vez, uma tia desesperada procurou-o com o pedido para contar a uma criança que ela havia perdido os pais em um acidente. “Eu não dei a notícia, para

O papai noel acima e o pastor martinho krebs ao lado são a mesma pessoa. ele exerce as duas atividades com a mesma paixão e o mesmo objetivo: evangelizar.

que ela não ficasse traumatizada, mas passei uma mensagem sobre o amor dos pais, sobre o significado de um presente deixado, enfim, criei todo um ‘clima’ para que a tia pudesse contar a verdade de uma maneira melhor”, recorda. Papai Noel também tem que ter saúde e disposição. “Somente no ano passado, foram 10.235 crianças atendidas entre novembro e dezembro e 110 mil fotografias tiradas”, contabiliza. Tem que ter paciência e


MÍDIA

Mulheres em desvantagem contêm mais sujeitos femininos em comparação às notícias apresentadas por seus colegas do sexo masculino. Essa tendência vem persistindo nos últimos dez anos. Quanto ao conteúdo das notícias produzidas por jornalistas do sexo feminino, 13 por cento de todas elas

por Rui Bender

disciplina para aguentar a barba e o cabelo crescendo desde fevereiro. “Eu só me liberto no dia 26 de dezembro, quando posso raspar a barba”, recorda. Com as demais exigências para o cargo, Martinho não tem qualquer dificuldade: olhos claros e barriga natural. Para completar, só mesmo a risada, e ele prontamente entoa um ho, ho, ho, que remete à figura clássica N do bom velhinho. VERA NUNES é jornalista em Porto Alegre (RS)

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Fotos: Arquivo Pessoal

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penas 24 por cento das pessoas que são notícia na imprensa escrita, no rádio e na televisão são do sexo feminino, denuncia o Plano de Mo­ni­ to­ramento Global da Mídia (PMGM), projeto da Associação Mundial para a Comunicação Cristã (WACC, sigla em inglês). Esse projeto reúne ativistas e pesquisadores em uma rede de caráter voluntário dedicada a documentar e mudar padrões de representação das notícias. Esse percentual registrado em 2010 é uma melhora significativa em relação a 1995, quando apenas 17 por cento eram do sexo feminino. Portanto, a imagem do mundo apresentada nas notícias continua sendo predominantemente masculina. Lamentavelmente, essa imagem não é coerente com uma realidade em que pelo menos a metade da população mundial é constituída de mulheres. Por outro lado, nas notícias transmitidas por rádio, televisão e jornais, o percentual daquelas que estão a cargo de jornalistas do sexo feminino é exatamente o mesmo registrado em 2005: 37 por cento. Desde o ano 2000, o percentual de notícias apresentadas por mulheres comparado ao dos homens cresceu em todos os principais assuntos, exceto em ciência e saúde. Mesmo assim, as notícias dos jornalistas do sexo masculino continuam superando as das mulheres em todos os assuntos. Entretanto, as notas de jornalistas do sexo feminino

concentram-se especificamente nas mulheres. Há aqui um crescimento significativo, pois em 2005 as mulheres representavam apenas 10 por cento do conteúdo das notícias. Por sua vez, em 84 sites de notícias da web, as mulheres perfazem apenas 23 por cento como sujeitos das notícias. Isso sugere que a sub-representação das mulheres nos meios noticiosos tradicionais migrou para o mundo noticioso virtual. N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS), com informações do Boletim do Plano de Monitoramento Global da Mídia NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2011

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TEMA DO ANO

MÃO NA MASSA: O grupo de homens de Joinville e sua obra fruto da reflexão do tema do ano

Do discurso para a ação A PROPOSTA DE LEVAR A SOCIEDADE A REFLETIR SOBRE UM TEMA IMPORTANTE COMO O AMBIENTAL DESAFIA OS PRÓPRIOS PROPONENTES À COERÊNCIA E A AÇÕES CONCRETAS sugerindo MUDANÇAS. por Clovis Horst Lindner

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stá chegando ao fim um ano muito importante para a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. O debate ambiental foi o foco das atenções a partir do tema “Paz na Criação de Deus – Esperança e Compromisso”. Foi um ano dedicado a muita reflexão e, também, a alguma ação concreta em torno da urgente preservação am-

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biental. Uma questão importante, entretanto, deve ser levantada, até como um aspecto da necessária avaliação de toda a reflexão realizada. Ao cobrar postura ambiental da sociedade e dos cidadãos, como se posiciona a própria igreja diante da questão ambiental? A pergunta busca por coerência entre discurso e ação. A pergunta pela coerência arrisca uma espiada para dentro das instalações eclesiais, ou seja, dos espaços que

a igreja utiliza para seus encontros e atividades. Com seus templos, centros comunitários, casas de retiros, asilos, residências pastorais e sedes administrativas de sínodos, sem contar a frota de veículos e o grande número de servidores e voluntários que lhe dão vida e movimento, a igreja é um gigantesco corpo vivo. Para manter-se, utiliza-se de energia, água e uma infinidade de recursos naturais e produz diferentes tipos de resíduos. Tal dependência do planeta em que a instituição eclesial existe não é novidade. Mas a preocupação com a forma como ela se insere no ambiente e o utiliza é razão para uma profunda reflexão, que levanta uma série de questionamentos. A igreja, em seus diferentes níveis, é administrada também com vistas à questão ambiental? Quais os cuidados adotados com o lixo, as sobras em festas comunitárias, os materiais usados em retiros e seminários, bem como com o material de expediente em secretarias, por exemplo? Que cuidados ambientais contemplam bosques e jardins que cercam templos, cemitérios, casas pastorais ou centros comunitários? Questões ambientais sérias e refletidas são colocadas na balança ou o veneno é mais prático e menos trabalhoso do que a enxada? As folhas que caem das árvores são tratadas como lixo ou como componentes da adubação natural? Que produtos e técnicas são utilizados na limpeza e manutenção interna e externa dos ambientes? Quais os cuidados com a água? A questão ambiental faz parte do planejamento estratégico no meio eclesial, entra no foco quando se planejam encontros e retiros? Ela é levada em conta na avaliação pósevento? Até mesmo nos cultos, há preocupação concreta com a questão


verde ou nos limitamos a incluí-la nas orações de intercessão? Obras nas comunidades têm preocupação com o impacto ambiental e a redução do consumo de água e energia? São perguntas inquietantes e que se levantam em todas as áreas em que nos movemos como igreja nas atividades diárias. A questão primordial, entretanto, é a do exemplo. Quem cobra deve ao menos estar disposto a incluir o objeto de sua cobrança nas ações do seu próprio dia a dia. Quem propõe um debate como esse do tema do ano deve tornar-se ele próprio objeto de avaliação. Nesse sentido, há um fantástico projeto que está dando certo na Alemanha. Trata-se de um selo verde eclesiástico, chamado Der Grüne Hahn (O Galo Verde). O símbolo do selo faz referência aos galos no alto das torres das igrejas, que estão lá como vigias. O Galo Verde é um atalaia am­bien­tal sobre as torres das igrejas. Trata-se de um programa am­ bien­tal em que qualquer paróquia ou instituição eclesial alemã pode inscrever-se. Ela elabora e executa um programa ambiental para suas dependências e atividades e se submete à avaliação de observadores do Der

Grüne Hahn. Uma vistoria periódica determina se a instituição pode receber o selo do Galo Verde e se está apta a mantê-lo de período em período. O programa está construído sobre o tripé Credibilidade – Sustentabilidade – Responsabilidade. O ideal do projeto é desafiar para uma administração responsável em relação ao futuro, no sentido de que uma igreja que defende a Criação também executa suas ações de modo responsável ambientalmente, buscando manter o planeta habitável para as gerações vindouras. Mais detalhes sobre o Galo Verde podem ser obtidos no site do selo: http://www.gruenerhahn.net/. A proposta de implantar um selo semelhante no Brasil deve começar a deslanchar em 2012. Independente do selo verde, já há diversas comunidades e instituições da IECLB preocupadas com a questão ambiental em suas obras e instalações. Um exemplo recente é o da paróquia São Mateus, em Joinville (SC). Lá, um grupo de homens ligado à Legião Evangélica Luterana construiu, com recursos próprios e tecnologia subsidiada pelo fabricante, uma Estação Ecológica para Captação da Água

da Chuva. A cisterna, erguida com recursos e mão de obra de homens acima dos 60 anos, garante toda a água necessária para uso sanitário e de limpeza nas dependências da São Mateus. “Se quisermos cuidar da água do planeta, precisamos ter atitude: re­utilizar, captar água da chuva, contribuir com o meio ambiente, disseminando por meio da prestação de serviços e testemunhos o seu uso consciente”, lista o pastor Renato Luiz Becker. O grupo trabalhou o tema do ano durante reflexões bíblicas com a assessoria de Becker e não pensou duas vezes para executar uma ação concreta. Com a obra concluída, ela foi inaugurada festivamente em culto, cujo tema central foi a questão da água no planeta. Os participantes do projeto depositaram as suas ferramentas aos pés do altar e celebraram, emocionados, a ação concluída. Exemplos como esse ajudam a mostrar que é preciso mais do que bons discursos. A sociedade precisa do exemplo da ação, e a natureza agradece. N

CLOVIS HORST LINDNER é teólogo e comunicador, editor da revista Novolhar em Blumenau (SC)


CRISTIANISMO

Novo centro de gravidade por Marcelo Schneider

como a Comunhão Anglicana, o Conselho Mundial de Igrejas, a Aliança ma mudança sem prece- Evangélica Mundial, a Sociedade dentes na latitude e lon- Mundial Pentecostal e representantes gitude do cristianismo ao do Conselho Pontifício para a Promoredor do mundo está em ção da Unidade dos Cristãos. Analisando os dados demográficurso a pleno vapor e levando a um cos e as práticas das igrejas ao redor profundo realinhamento de forças. Essa, entre outras, foi uma das con- do mundo hoje, Peter Crossing, do clusões da segunda edição do Fórum Centro para o Estudo do CristianisCristão Global (FCG), realizado no mo Global, do seminário teológico início de outubro em Manado, In­do­ Gordon-Conwell, disse ao público do né­sia. Uma das palestrantes do evento, evento que, um século atrás (1910), a teóloga Dana Robert, da Faculdade 66% dos cristãos do mundo viviam de Teologia da Universidade de Bos­ na Europa, mas hoje eles representam ton, afirmou que “nos últimos cem apenas 26% do total. Por outro lado, anos, o cristianismo sofreu uma das há um século, os africanos representamaiores mudanças demográficas e vam apenas 2% dos cristãos ao redor culturais de seus dois mil anos de do mundo; em 2010, o índice já subiu para 20%. história”. Cem anos atrás, o “centro de O encontro reuniu líderes de todas as principais tradições cristãs mun­ gravidade” do cristianismo (termo diais e das mais diversas perspectivas designado para descrever a região do teológicas e comunhões mundiais, mundo que melhor engloba suas características) estaO centro gravitacional do cristianismo deslocou-se para a África va perto de Madri, Es­pa­nha, quando a maioria dos cristãos eram europeus. Em 2010, esse lugar seria a região ao sul de Timbuktu, na república africana de Mali. O cristianismo ainda é a maior religião do planeta (2,23 bilhões de fiéis), seguido Divulgação Novolhar

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pelo islã (1,58 bilhões). Ao analisar esses números, o Dr. Sang-Bok David Kim, da Aliança Evangélica Mundial e também um dos pai­n e­l is­t as do FCG, acrescentou que “embora os muçulmanos estejam aumentando mais rapidamente do que os cristãos, isso não se deve tanto a novas conversões, mas à sua taxa de natalidade mais elevada” (muçulmanos: 1,9%; cristãos: 1,2%). A teóloga Dana Robert afirmou que o cenário atual lança questões diretas a todas as igrejas. Ela acredita que os cristãos de hoje estão focando mais a missão com propósitos múltiplos, tanto querendo resgatar a tradição como recuperar-se dela. “O diálogo acerca da missão e do testemunho tornou-se urgente na agenda das igrejas que estão diminuindo à medida que lutam para redesenhar sua identidade no contexto da glo­ba­ li­za­ção”, defendeu. “Mas, ao mesmo tempo, surgem mais e mais correntes que definem a si mesmas como guardiães das raízes mais primitivas do cristianismo”, concluiu. Nesse ínterim, o FCG parece ter mostrado que também o ecumenismo busca uma nova formulação. Robert diag­nostica que “a busca por unidade dos cristãos hoje não se parece com aquela dos anos 1950 e 1960, quando líderes protestantes, em sua maioria, pressionavam por unidade orgânica em detrimento da diversidade de testemunho”. Um dos latino-americanos presentes no evento, o pastor Walter Alt­mann, moderador do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas, afirmou que “a esperança em Cristo é o meio através do qual devemos abordar os desafios impostos pelas atuais mudanças de cenário”. N MARCELO SCHNEIDER é teólogo e correspondente de comunicações para América Latina do Conselho Mundial de Igrejas em Porto Alegre (RS)


RELIGIÕES

Fotos Divulgação Novolhar

embora os católicos ainda representem 68%, há um decréscimo de um ponto percentual ao ano no brasil. enquanto os pentecostais estabilizam em 12%, 0s protestantes históricos voltam a crescer e somam 7,4% dos cristãos no país.

Menos católicos e mais evangélicos por Rui Bender

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os próximos 20 anos, o Brasil pode deixar de ser o país mais católico do mundo, revela o Novo Mapa das Religiões, pesquisa di­vul­ gada recentemente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). De 2003 a 2009, a população católica caiu a uma

velocidade de um ponto per­cen­tual ao ano, chegando ao índice mais baixo (68,43%) desde os primeiros registros censitários em 1872. Por enquanto, o Brasil ainda continua sendo o maior país católico do mundo. Os católicos somam hoje 130 milhões de brasileiros e brasileiras. Mas, a continuar essa perda de um ponto percentual anualmente, em duas décadas menos da

metade da população será católica. A grande novidade da pesquisa é o crescimento de 5,9% para 7,4% dos evangélicos de igrejas históricas e tradicionais e a estabilização dos pen­te­ costais em 12% do total da população brasileira no período. O catolicismo está mais presente entre os mais ricos, da classe AB (69,07%), e entre os mais pobres, da classe E (72,76%). Quanto

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ESPIRITUALIDADE

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às outras religiões, os evangélicos tradicionais estão concentrados, primordialmente, nas classes AB (8,35%) e C (8,72%), reduzindo a participação nas camadas mais baixas, chegando a representar 4,69% da classe E. Aliás, a classe E foi aquela que se revelou a menos religiosa de todas (7,72% não têm religião). Outra constatação interessante apontada pela pesquisa da FGV é que a religiosidade é menor nas duas pontas extremas do espectro educacional. Entre aqueles que têm menos de três anos de escolaridade, 9,94% não têm religião. Na outra ponta, 17,04% dos mestres e doutores igualmente não professam uma religião. Os estados mais católicos do país estão no Nordeste: 74,9% de sua população. O estado com a maior concentração de pentecostais é o Acre (24,18%), enquanto o Espírito Santo é o estado que reúne o maior número de evangélicos tradicionais e históricos (15,09%). Vitória, no Espírito Santo, com 18,13%, Rio Branco, no Acre, com 14,63%, e Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, com 13,71%, são as três capitais que abrigam o maior número de evangélicos tradicionais e históricos. Religiões orientais e afro-brasileiras estão mais presentes no topo, considerando a renda. Quanto maior a renda, mais diversidade religiosa existe. Nos últimos anos, houve no Brasil uma queda acelerada do catolicismo, mas não em direção aos evangélicos pentecostais, porém mais em direção aos evangélicos tradicionais e todas as religiões alternativas ao catolicismo e aos grupos evangélicos, avalia o coordenador da pesquisa Marcelo Neri. N RUI BENDER é jornalista em São Leopoldo (RS). Artigo escrito com informações de www. alcnoticias.net e Agência Brasil

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Luz que afasta a aflição Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz.

por Nestor Paulo Friedrich

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m agosto deste ano, soubemos do campo de refugiados em Dadaab, Quênia, na África. Nesse campo vive – vive? – quase meio milhão de pessoas. É gente como a gente, que teve de fugir de sua terra natal, a Somália, por causa de conflitos. Conflitos por razões diversas jogaram os cidadãos e as cidadãs de um mesmo país uns contra os outros. Um detalhe – bem mais do que um detalhe – chamou a atenção quando chegaram as primeiras notícias de Dadaab. Ao fugir de sua pátria, a Somália, centenas de mães precisam tomar uma decisão dramática durante a fuga: como elas não conseguem levar no colo ou até mesmo arrastar pelos braços frágeis os filhos ainda pequenos, quase todos enfraquecidos pela fome e sede, e como não podem parar, pois estão fugindo, elas são obrigadas a abandonar um, dois ou mais filhos durante esse caminho. Se pararem para descansar, as mães correm o risco de ser violentadas. Se não seguirem caminho, a chance

Isaías 9.6

de encontrar um pedaço de pão ou um copo d´água ficará ainda mais distante. Então, ao serem obrigadas a seguir adiante, sem conseguir carregar ou arrastar consigo os filhos, ficam para trás o filho ou a filha mais debilitada. Para tentar salvar uma parte da família, outra parte, a mais frágil, crianças, pagam o preço com sua vida: morrem. Há dois mil e setecentos anos, o profeta Isaías atuou numa região onde as condições de vida eram muito precárias. Aliás, essa região nem era tão distante de Dadaab. O livro do profeta está recheado de palavras que apontam essa realidade: invasão por soldados de outros povos, dominação, exílio, suborno, órfãos, leis injustas, lideranças corruptas, hipocrisia religiosa. Aquela terra estava tomada pela escuridão. Aquela gente vivia uma tremenda aflição. Setecentos anos antes de Jesus foi assim: vida difícil, muito difícil, para milhares de seres humanos. Poderíamos dizer: “É, naquele tempo... tanto tempo atrás, a vida era difícil mesmo. Não podia ser diferente”. Ainda que essa afirmação fosse verdadeira, embora não seja, o que dizer diante


não continuará a obscuridade” (Isaías 9.1). E o profeta chega ao ponto alto dessa boa notícia: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Isaías 9.6). Uma criança! Mais uma apenas? De certo modo, sim. Viveu e experimentou todo tipo de ameaça. Nos

a dramática fuga ao egito torna jesus um refugiado também. nessa criança, deus nos permite sentir sua presença frágil, próxima, amorosa e, ao mesmo tempo, poderosa, inconformada, transformadora e promotora de vida.

Rembrandt, “Fuga para o Egito” (1627)

da realidade em Dadaab em 2011? E, para não esquecer, Dadaab, lá na África, é tão somente um exemplo das atrocidades cometidas contra pes­soas em todo o mundo contemporâneo. No caso do Brasil, seres humanos definham por causa da seca, ainda que seja num território rico em água no seu subsolo. Quando não falta chuva, a vida está constantemente ameaçada por outras atrocidades cometidas. Pensemos na violência do trânsito, nas grades diante de nossas casas, na oferta das drogas aos nossos filhos, nas filas nos hospitais, nos abusos em nome da religião etc. E pelo mundo afora, quanta atrocidade! Mas a verdade é que a vida não precisa e, pela vontade do criador e mantenedor da vida, não deve ser assim, nem em Dadaab, tampouco no Brasil, em nenhum lugar. Isaías – tanto tempo atrás – foi enfático: “Mas para a terra que estava [e está] aflita

braços da mãe, carregada por um burrico, conseguiu fugir e alcançar local seguro. Mesmo assim, não foi simplesmente mais uma criança. Nessa criança, Deus se fez gente e mostrou o seu rosto à humanidade. Nela, Deus nos permite sentir sua presença frágil, próxima, amorosa e, simultaneamente, poderosa, inconformada, trans­for­ma­do­ra, promotora de vida. Ao acender essa luz no horizonte do povo aflito, Isaías canalizou o vigor da esperança dessa gente e deu-lhe uma clara perspectiva de futuro bom. As palavras do profeta foram impulso para esperança renovada. No lugar da escuridão e da aflição, sinalizaram para condições de vida mar­cada e determinada pelo que expressam as palavras paz e justiça. Com a vinda do Príncipe da Paz, a paz reinará plena, soberana. Justiça e paz... hoje... talvez o termo cuidado seja apropriado para resumir o que o menino, filho de Deus, quis com justiça e paz. Cuidado com as palavras que pronunciamos; cuidado com nossos gestos e ações; cuidado com a natureza; cuidado nas relações familiares e entre povos; cuidado com o uso da religião; cuidado com o bem público; cuidado. Concretamente, esse prenúncio de Isaías significou – lá, naquele tempo – e significa hoje que a convivência no mundo criado por Deus pode ser diferente, melhor, de sorte que nenhuma mãe tenha que deixar um rebento de seu ventre pelo caminho da desventura – e até da morte. Com o nascimento do meninopríncipe-da-paz, Deus interferiu em nossa história e afastou a aflição com a sua luz. Por isso é que celebramos Natal! Feliz Natal! N NESTOR PAULO FRIEDRICH é Pastor Presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), com sede em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Nov/Dez 2011

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penúltima palavra

A educação não muda o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas mudam o mundo.

Paulo Freire

por Otávio Schüler

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indisciplina nas escolas ocupa um bom espaço na mídia. E com o país em situação desconfortável no item educação, o fato tende a ser apontado como uma das causas. “No meu tempo, havia disciplina e ordem” – é o que se ouve muito. Convém, porém, cuidar para não incorrer numa onda de saudosismo. O acesso à escola na época era limitado. Frequentava-se até a 4ª série e, para prosseguir, passava-se por um exame de admissão ao ginásio, onde um bom número já era barrado. Era uma escola para poucos, elitista e com regime autoritário do magister dixit. Os tempos mudaram, e há outro entorno sociopolítico. Democratizouse o acesso à escola. A família mudou e fica menos tempo com os filhos. Geralmente, não está preparada para o novo contexto e carrega um sentimento de culpa, não raras vezes adotando uma postura de superproteção. Os pais não querem que seus filhos passem pelo mesmo por que eles passaram.

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Divulgação Novolhar

Resgatar a parceria

Se vão bem, são inteligentes; se vão mal, a culpa é do professor e da escola. A relação família-escola foi minada pela desconfiança, e o professor encontra dificuldades para trabalhar nesse contexto. Passamos de uma espécie de ditadura dos pais e da escola para uma ditadura de filhos e alunos. O médico psiquiatra Içami Tiba diz: “A família é o primeiro grupo social que o homem conhece, é a base da sociedade. É com a família que o indivíduo aprende quase tudo”. Eu gosto do exemplo do mochi­ nho: tem três pernas para se sustentar. Assim entendo a escola – aluno, professor e pais – num processo edu­ca­ tivo compartilhado e perpassado pela dimensão espiritual. Lutero exortou, em 1524, autoridades e famílias para a importância da educação, dizendo: “O mais rico progresso para uma cidade é quando tem muitas pessoas bem instruídas, muitos cidadãos sensatos, honestos e bem-educados”. Vale para nós hoje. Como pode um filho aprender uma conduta amorosa e respeitosa se em casa ouve os pais falando mal do professor e da escola? Como pode aprender uma conduta

amorosa e respeitosa vendo os pais transgredindo regras banais de convivência social? Não é possível trazer de volta a escola autoritária do passado, pois não podemos trazer de volta o entorno so­cio­político de então. Ela só conseguirá trabalhar seus problemas com a parceria dos pais e se esses confiarem nela para a educação de seus filhos dentro da visão de um só corpo. Para que se formem “cidadãos sensatos, honestos e bem-educados”, é preciso resgatar a parceria dos pais sem os erros do autoritarismo do passado e sem a falta de limites do presente, dentro de um processo de confiança recíproca entre os membros do corpo escola, a fim de que todos possam regozijar-se uns com os outros, cf. 1 Coríntios 12.25-26: “Para que não haja divisão no corpo; pelo contrário, cooperem os membros, com igual cuidado, em favor uns dos outros; de maneira que, se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se regozijam”. N OTÁVIO SCHÜLER é professor aposentado e presidente do Conselho da Igreja da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, em Estrela (RS)


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