Um só Deus Criador. Diálogo intercultural e inter-religioso com povos indígenas Frank Tiss e Walter

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Um só Deus criador Diálogo intercultural e inter-religioso com povos indígenas



Frank Tiss Walter Sass

Um só Deus criador Diálogo intercultural e inter-religioso com povos indígenas

OI OS EDITORA

2012


© Instituição Sinodal de Assistência, Educação e Cultura ISAEC/DAI/COMIN – Departamento de Assuntos Indígenas Rua Amadeo Rossi, 467 – Cx. Postal 14 93001-970 São Leopoldo/RS Tel./Fax: (51) 3590.1440 www.comin.org.br

Editoração: Oikos Revisão: Rui Bender Capa: Joice Elisa de Oliveira Arte-final: Jair de Oliveira Carlos Impressão: Impressos Portão Apoio: Pão para o Mundo/Kirchen helfen Kirchen, Alemanha; Kerk in Actie – ICCO, Holanda Conselho Editorial (COMIN) Cledes Markus Hans A. Trein Renate Gierus Roberto Zwetsch Editora Oikos Ltda. Rua Paraná, 240 – B. Scharlau Caixa Postal 1081 93121-970 São Leopoldo/RS Tel.: (51) 3568.2848 / Fax: 3568.7965 contato@oikoseditora.com.br www.oikoseditora.com.br

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Um só Deus criador. Diálogo intercultural e inter-religioso com povos indígenas / Frank Tiss; Walter Sass. – São Leopoldo: Oikos, 2012. 48p.; 18 x 24,5cm. – (Cadernos do COMIN, n. 11) ISBN 978-85-7843-241-6 1. Povo indígena. 2. Povos Kulina – Diálogo intercultural – Interreligioso. 3. Povo Deni – Diálogo intercultural – Interreligioso. 4. Povo Kanamari – Diálogo intercultural – Interreligioso. I. Tiss, Frank. II. Sass, Walter. III. Cadernos do COMIN. CDU 39(=1.81-82)

Catalogação na publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184


Sumário Apresentação............................................................................................. 7 Capítulo I Diálogo inter-religioso e autoconsciência étnica entre os Kulina .................. 9 Frank Tiss Capítulo II O Deus trinitário está presente antes da chegada do missionário ............... 34 Walter Sass Biografia dos autores ............................................................................... 47


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Apresentação

No volume 11 da série Cadernos do COMIN - Um só Deus Criador: Diálogo intercultural e inter-religioso com povos indígenas – temos a alegria de publicar dois artigos de colegas do COMIN, sistematizando seus muitos anos de convivência solidária junto com povos indígenas. Com estes textos o COMIN se dispõe a compartilhar o que, ao longo dos anos, tem aprendido no diálogo com os povos, as culturas, as religiões e as cosmologias indígenas, a fomentar a reflexão teológica intercultural e a contribuir no diálogo inter-religioso. O diálogo intercultural e inter-religioso com povos indígenas inicia com o esforço primordial de superar a assimetria estabelecida pela invasão colonizadora: física, mental e espiritual. Silêncio, escuta atenta, acompanhamento solidário, valorização de seus mitos e histórias sagradas, descoberta do evangelho implícito na respectiva cultura, através de suas falas, seus símbolos e atitudes cotidianas são passos imprescindíveis para um diálogo honesto e aberto com o diferente. Esse diálogo diz respeito a todos os seres humanos nas relações entre si, nas relações com toda a criação e com Deus. O diálogo é fundamental para abrir mentes e ampliar horizontes, romper preconceitos e superar discriminações. Nesta perspectiva do diálogo, que visa a convivência em diversidade reconciliada, os textos nos levam a refletir sobre a presença de Deus entre os povos indígenas e sobre a Sua manifestação na história destes povos. Frank Tiss compartilha sua experiência de mais de uma década junto ao povo indígena Kulina, ao longo do rio Juruá/AM. Ele aprendeu tão bem a língua Kulina, que pôde realizar os diálogos de fé em dias e noites de encontros nas aldeias Kulina em sua própria língua. Diálogo inter-religioso na língua da cultura oprimida é de qualidade especial. A valorização da língua Kulina, das

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histórias sagradas lidas em analogia às histórias bíblicas e à postura humilde de Jesus elevou a autoestima linguística e religiosa dos Kulina, para poderem encarar com autonomia e protagonismo as atitudes de desprezo ainda reinantes em seu entorno. Walter Sass traz suas reflexões a partir dos diálogos com os Deni e Kanamari no rio Xeruã/AM. Parte da constatação fundamental de que o Deus trinitário estava presente entre os povos indígenas muito antes da chegada dos missionários cristãos. Essa noção da presença de Deus entre os povos é bíblica. Deus é em si mesmo comunhão e participação, revela-se com absoluta autonomia e é, ao mesmo tempo, próximo e indisponível. Cada cultura recebe sua revelação de modo fragmentário e é por isso que o diálogo imparcial e incondicional entre as experiências e os saberes espirituais das diversas culturas é tão importante, pois aumenta o conhecimento de Deus. Dois lados aparentemente opostos se complementam, produzem equilíbrio vital. O diálogo sempre se dá entre diferentes. Abra a sua mente e o seu espírito para uma boa leitura! Se você sentir aquela vontade irresistível de reagir, seja concordando e ampliando a reflexão, seja discordando e trazendo os seus pontos de vista diferentes, teremos todo o prazer em receber a sua contribuição. Diálogo é caminho, têm objetivos, mas não tem fim. Conselho Editorial

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Capítulo I

Diálogo inter-religioso e autoconsciência étnica entre os Kulina Frank Tiss O objetivo maior da presença do COMIN (Conselho de Missão entre Índios da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil) entre os Kulina é, em solidariedade com as comunidades indígenas e seus representantes, estabelecer e fortalecer iniciativas que garantam a autodeterminação desse povo. Povos indígenas como os Kulina, que sobreviveram ao crescente predomínio da sociedade não indígena na Amazônia, tiveram seus sistemas sociais e econômicos afetados. Por isso as comunidades devem ser fortalecidas e capacitadas para que possam superar atitudes de impotência e inferioridade e para que independentemente decidam como querem viver na atualidade em concordância com sua cultura. Entendemos que um apoio nesse aspecto seja a nossa maior chance de contribuir para a sobrevivência física e cultural desse povo indígena. Os Kulina têm contatos com grupos não indígenas há mais de 150 anos. O confronto tornou-se maciço desde o final do século XIX, quando um número grande de famílias nordestinas foi levado pelo governo para o sudoeste da Amazônia, para que trabalhassem na extração do látex nessa região, muito rica em seringueiras. Os seringalistas organizaram as chamadas “correrias”, expedições armadas para exterminar grupos indígenas como os Kulina, para que não dificultassem a exploração extrativista. Centenas de Kulina, adultos e crianças, foram levados à morte. Alguns grupos tentaram enfrentar os ataques, outros fugiram para regiões de difícil acesso. Uma parte do povo que escapou das armas de fogo ainda morreu contagiada por doenças introduzidas pelos nordestinos, como sarampo, catapora ou gripe. Mais tarde, nos anos 20 e 30 do

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século XX, os Kulina começaram a se integrar na extração do látex, inicialmente como fornecedores de alimentos baratos e como mateiros, depois como seringueiros. Os patrões exploraram a mão de obra dos indígenas e os mantiveram em dependência econômica. Muitos Kulina abandonaram a sua vida comunitária e passaram a morar nos seringais, o que afetou muito a sua vida social comunitária. A discriminação que os Kulina sofreram desde o primeiro contato com a população não indígena cristã continua até hoje, na maioria dos casos, porém, de modo mais sutil. A essa experiência histórica de inicialmente serem dizimados, depois explorados e marginalizados pela sociedade dominante, conforme a sua autocompreensão, cristã, acrescentou-se a experiência de uma desqualificação explícita da própria tradição religiosa. Principalmente em contatos pessoais com os “brancos”, mas mais tarde também através de pregações, ouviam regularmente que sua religião era primitiva, ignorante ou perigosa. Isso também criou um sentimento de inferioridade e impotência religiosas. Não que tivessem abandonado a sua religiosidade; pelo contrário, após a língua, a tradição religiosa talvez seja a mais viva entre os Kulina. Porém quase nunca reagiam diretamente a intervenções cristãs. Parece que não se sentiam capazes de ter uma opinião própria. Tão prepotente era a cultura cristã em geral e tão intolerantes e convictos de si mesmos eram os depoimentos cristãos ocasionais e a pregação, que os Kulina, em sua suposta primitividade e inferioridade, aparentemente não se viram interpelados nem capazes de relacionar, de alguma forma, a sua tradição religiosa com a pregação cristã. Ao mesmo tempo, os pregadores católicos, evangélico-fundamentalistas e pentecostais admoestavam que uma persistência dos Kulina em sua tradição religiosa – ou seja, em crenças supostamente atrasadas ou inúteis –, não apenas os manteria distantes da verdade e da felicidade, mas resultaria principalmente na futura perdição de suas almas, no sofrimento eterno no fogo do inferno ou algo semelhante. Como saída, indicou-se-lhes uma vida cristã, cujo modelo estaria no pano de fundo cultural e no modo de vida dos respectivos pregadores. Passaram-se como valores importantes e positivos, por exemplo, o indíviduo e a sua própria família, os bens pessoais, o progresso econômico pessoal, o asseio (conforme compreensão ocidental), um modo

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de vida individualmente bem organizado e uma boa reputação na sociedade não indígena. Por isso queríamos também reagir a essa experiência. Como em outros contextos da vida, queríamos, também no que se refere ao desafio que a cultura ocidental-brasileira em geral e particularmente a pregação cristã significam para a cultura e a religiosidade dos Kulina, incentivá-los a buscar respostas próprias e a sua realização. Porém, exatamente por isso, esse objetivo tinha que ser realizado em respeito mútuo e num mesmo nível, como acontece num diálogo. Compreendemo-lo como único modo apropriado para falarmos conjuntamente sobre as diferentes tradições religiosas e a fé, pois, ou um diálogo se realiza de igual para igual, ou ele não é diálogo. Todos os envolvidos em um diálogo, de modo igual, perguntam, respondem e se completam, e o seu resultado está em aberto. Um diálogo não é uma arena para uma competição de argumentos, mas, sim, um espaço para um melhor entendimento mútuo. Se for bem-sucedido, o seu progresso levará a um enriquecimento de ambas as partes. De fato, os Kulina mostraram-se cada vez mais abertos a essa troca de pensamentos em forma de conversas informais sobre religião. A afirmação cristã de que Deus valoriza cada pessoa não é desmentida, logo no momento de expressá-la, por uma atitude de superioridade, que teria (e quase sempre teve) como mensagem implícita que pessoas como os Kulina, do jeito como são, não teriam ainda o conhecimento decisivo e a prática religiosa e cultural, mas antes teriam que superar tal ingenuidade com o auxílio dos cristãos. O ser humano pretensamente amado e apreciado por Deus seria, então, no mesmo instante, declarado culturalmente subqualificado, o que seria (e sempre foi) ainda mais infeliz em relação a grupos sociais já extremamente discriminados. Para um diálogo inter-religioso com os Kulina num sentido mais explícito, isto é, como troca de ideias sobre as religiões entre os parceiros envolvidos no diálogo, num primeiro momento, era necessário fazer um trabalho preparatório para criar as condições para que, posteriormente, o diálogo pudesse ocorrer. Essencialmente eram dois os problemas a serem superados: primeiro, a maioria dos Kulina partia do pressuposto de que nem sequer possuísse uma religião. E segundo, para a maior parte dos Kulina era difícil imaginar que a religião da cultura predominante, poderosa e opressora, portanto o cristianis-

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mo dos “brancos”, estivesse disposta ou fosse sequer capaz de dialogar. A primeira dificuldade é determinada também pela segunda. A abertura e a confiança mútua necessárias para esse trabalho preparatório já existiam. Isso se deve ao fato de que, inicialmente, tivemos fases de mera convivência em algumas comunidades Kulina, e depois, no decorrer dos primeiros dez anos, trabalhamos crescentemente em solidariedade e cooperação com as comunidades para que tivessem melhores condições para uma vida mais segura, independente e, tanto quanto possível, autodeterminada. Cooperamos, por exemplo, na demarcação do seu território tradicional e na formação de professores Kulina. Após análise da língua Kulina e publicação de uma gramática, realizamos seminários nas aldeias para esclarecer-lhes a riqueza e a complexidade de sua língua materna, que muitos deles entrementes tinham considerado primitiva, pelo fato de haver sido seguidamente ridicularizada por não indígenas. Minha esposa, Christiane Tiss, construiu em várias aldeias, juntamente com os seus moradores, filtros comunitários de água na base de areia para garantir água potável. Além disso, ajudamos para uma melhor articulação entre as diferentes comunidades e aconselhamos os indígenas em questões jurídicas. Nessas atividades conjuntas em questões de terra, educação, organização e saúde, sempre demos muita importância a uma maior compreensão mútua dos diferentes panos de fundo culturais do povo Kulina e da população não indígena em seu entorno. Dessa forma, já acontecera um diálogo intercultural que deu as condições para um diálogo inter-religioso, ou mais, o primeiro, quase que inevitavelmente, gerou o segundo. (Ao mesmo tempo, o trabalho intercultural continuava. Em muitas comunidades, realizamos, por exemplo, seminários sobre o problema do alcoolismo, tentando entender o crescente consumo da tradicional caiçuma e de cachaça a partir do contexto das mudanças econômicas, sociais e culturais entre os Kulina durante as últimas décadas. Christiane deu novas perspectivas para o tratamento da tuberculose, refletindo e interligando, em conjunto com grande parte dos xamãs Kulina, os conceitos de tuberculose, tanto da medicina moderna como da dos Kulina.) O diálogo inter-religioso começara principalmente entre nós e os Kulina. Muitas vezes, após o pôr-do-sol, ao sentarmos ao redor de uma lamparina no meio do terreiro ou numa das casas maiores, como é costume dos Kulina, houve muitas trocas de perguntas e respostas a respeito. E os Kulina seguidamente

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nos convidavam para presenciar diversos ritos religiosos e nos introduziam cada vez mais em sua tradição. Enquanto nós ficávamos cada vez mais impressionados com o fato de como o lado transcendente do mundo se apresenta de um modo diferenciado para os Kulina e de como são ricas as experiências espirituais dos xamãs, logo percebemos também que a maioria dos Kulina não conseguia compreender a sua tradição religiosa como algo que de alguma forma fosse comparável com a tradição cristã. Isso, por um lado, porque, em sua tradição, não achavam aparentemente nada daquilo que parece substancial para a fé cristã, como a Bíblia, templos, pregadores, batismo, procissões, promessas e, principalmente, um Deus que está acima de tudo. Assim, entre eles havia a impressão de que não possuíam uma religião própria. Tal impressão fora reforçada pelas afirmações dos missionários fundamentalistas (de origem norte-americana, alemã e, por último, brasileira) de que aquilo que os Kulina creem ou é tolice, ou coisa do diabo. Uma vez que, por outro lado, a população não indígena da região usa o termo “religião” como sinônimo de “confissão cristã” (“Eu sou da religião católica, mas a minha esposa é da evangélica”), ela evidentemente também nega aos Kulina a ideia de pertencer a uma religião. Isso não se explica simplesmente como um engano idiomático. Muito antes, reflete-se nisso o que de fato pode ser uma religião ou não para as pessoas não indígenas mais simples. Em conversa com os Kulina, muitas delas deixam claro que consideram a prática religiosa dos indígenas como atrasada ou assustadora. Como único elemento positivo, algumas pessoas ainda veem apenas a possibilidade de que os rituais xamanísticos possam levar à cura de doenças internas. Essa compreensão da tradição religiosa Kulina como não religião (no sentido de algo não comparável com a tradição cristã), proveniente de todos os lados, acabou sendo assumida pelos Kulina. Inicialmente, reagimos a isso apenas de forma ocasional em muitas das rodas de conversa durante as nossas visitas às aldeias. Devido à grande dispersão geográfica das aproximadamente 25 aldeias nos afluentes dos rios Juruá e Tarauacá, exigindo viagens de barco de um a vários dias para chegar nelas, pareceu-nos indicado ter um meio de comunica-

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ção que pudesse alcançar e envolver igualmente todos os grupos Kulina em pouco tempo. No início do ano 2005, criamos a áudio-revista Titihade1. Cada edição de Titihade foi publicada tanto em forma de uma pequena revista impressa com imagens como em forma de gravação em fitacassete e CD, pois a maioria dos adultos mais velhos e dos idosos não sabe ler. Nessa gravação, há músicas, principalmente dos próprios Kulina, nos intervalos entre as falas. Usamos exclusivamente a sua língua materna. Alguns dos professores Kulina usam a revista na sala de aula. Os Kulina geralmente escutam juntos os CDs e as fitas-cassete em grupos menores ou maiores. O primeiro número contém um texto que trata do que é religião e como as tradições religiosas, tanto indígenas como não indígenas, podem ser diferentes umas das outras (outros textos desse Titihade falam, por exemplo, do trabalho escolar nas aldeias ou de DST e AIDS)2. São mencionados também alguns exemplos de animismo, portanto de tradições religiosas que são semelhantes à dos Kulina. Essas religiões destacam-se pela compreensão de que animais, vegetais e outros elementos da natureza têm um lado humano, social e cultural, ou seja, uma alma com a qual o ser humano pode comunicar-se dentro de rituais religiosos. O artigo chama ainda a atenção dos ouvintes para o fato de que, se não possuem uma Bíblia, têm uma abrangente tradição oral, através da qual transmitem sua cosmovisão, sua mitologia e sua ética. Acrescentam-se a isso cantos religiosos, danças, rituais e festas, pessoas em função de

Titihade é o nome Kulina do passarinho ticuã, cujos cantos são interpretados como avisos valiosos por caçadores e pescadores. 2 Como os textos sobre questões de tradições religiosas, publicados em três edições de Titihade, provavelmente são a parte mais palpável do nosso diálogo inter-religioso com os Kulina para pessoas externas a esse processo, e como esses artigos transmitem também uma boa parte do conteúdo e, indiretamente, um pouco da forma desse diálogo, citaremos várias partes desses textos neste artigo. 1

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sacerdote, etc. Evidencia-se, então, que também eles têm uma religião. O texto encerra com a seguinte pergunta: Portanto, não foram os não indígenas os primeiros a falar aos Kulina sobre religião, sobre céu e paraíso. Antes deles, os antepassados dos Kulina já sabiam contar muitas coisas sobre isso. Se for verdade que há um grande Deus eterno e onipresente antes de qualquer outra coisa existir, então não foram os não indígenas, os missionários que levaram Deus aos Kulina, mas Deus já estava antes em seu meio. Os não indígenas falam em “Deus”. Os antepassados dos Kulina de fato não conheciam nada que tivesse esse nome “Deus”, mas será que eles também já não o conheciam, referindo-se a ele talvez de outra forma?

Esse artigo foi muito comentado e levou a muitas conversas. Enquanto alguns, por exemplo, achavam que um Deus no sentido cristão simplesmente não aparece em sua tradição, outros, inclusive xamãs, afirmavam que alguns traços de seus personagens mitológicos e de seus poderes transcendentais se pareciam com a ideia cristã de Deus. No segundo número do Titihade encontram-se, ao lado de outros artigos sobre, por exemplo, a tuberculose, o problema do alcoolismo ou o significado das festas tradicionais na vida dos povos indígenas, um texto que, baseado em Mateus 23.23, procura mostrar o que importava e o que não importava, para Jesus, quanto ao modo das pessoas viverem: Muitas vezes já me perguntaram nas aldeias se é verdade o que os não indígenas dizem sobre Jesus, sobre sua vida e sua morte na cruz, sobre o pecado e o céu. Há não indígenas que realmente querem entender o que a Bíblia diz sobre Jesus, o que ele fazia e dizia. Mas há muitos outros não indígenas que apenas procuram na Bíblia o que combina com suas ideias e fecham os olhos para o resto. Os Kulina sempre foram tratados por muitos dos não indígenas como inferiores e primitivos. Até hoje, são poucos os não indígenas que realmente respeitam o jeito e a cultura do Kulina. E alguns não indígenas usam até a Bíblia para provar para os Kulina que o seu jeito de viver, a sua tradição e a sua sabedoria não prestam e que eles teriam que deixar tudo isso para trás e viver igual aos não indígenas católicos ou evangélicos rígidos.

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Já na época de Jesus, havia gente falando de um jeito parecido, e essas pessoas se diziam ser grandes conhecedoras da Bíblia. Elas eram conhecidas como escribas e fariseus. Elas exigiam muitas coisas dos pobres, o que tinham que fazer e o que tinham que dar para o pessoal do templo. Jesus tinha muita raiva deles. Na Bíblia, no Evangelho de Mateus, no capítulo 23, pode-se ler como Jesus criticou e afrontou esses líderes. Ele disse que essas pessoas, que se dizem conhecedoras da vontade de Deus, dificultam a vida do povo humilde, dando muitas ordens que não têm importância, mas daquilo que mais e realmente importa elas não falam: praticar justiça, misericórdia e ter confiança em Deus. Jesus não era como esses líderes do templo. Ele não se importava com regras que dificultam a vida do povo, mas se importava com tudo o que melhora a vida principalmente dos “pequenos”, dos pobres: ele chamou as pessoas para a justiça, a misericórdia e a confiança em Deus.

A circunstância esboçada em Mateus 23 de que as autoridades reconhecidas de doutrinas religiosas com os seus ensinamentos dificultavam a vida das pessoas humildes, principalmente dos pobres, pois para esses se tornava mais sofrido seguir essas regras, faz lembrar a situação dos Kulina. Para esses também foram ensinadas muitas regras e, no contexto da vida indígena, na maior parte constrangedoras, às quais teriam que seguir para garantir a benevolência de Deus e evitar um sofrimento infernal após a morte. Foi exatamente por causa desse tipo de doutrinas que Jesus se aborreceu com aqueles líderes religiosos e os criticou. Ele, que tantas vezes foi apresentado aos Kulina como seu admoestador autoritário, condena agora exatamente essa forma de conduzir em andadeiras religiosas, cuja efetividade vem da ameaça implícita de que quem não obedecer perderá a sua salvação. Para alguns dos Kulina, essa atitude de Jesus foi considerada uma libertação, como se grandes obstáculos tivessem sido tirados do caminho que leva a um encontro mútuo. O Deus dos opressores, na verdade, parece estar ao lado dos oprimidos. E isso, por sua vez, permite a suposição de que ele esteja pronto para dialogar. O texto continua: Agora quero explicar melhor em que Jesus estava pensando quando falou em justiça, misericórdia e confiança em Deus. Primeiro, quero falar sobre a justiça. Jesus não podia aceitar que algumas poucas famílias vivessem bem, enquanto a maioria das outras passava por necessidades e discriminações. Ele quer que todos tenham uma vida boa, e, para alcançar isso, todos têm que ser tratados como iguais. Isso só funciona onde os líderes cuidam igualmente de todo mundo e não beneficiam apenas os próprios parentes e amigos.

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Infelizmente, esse último aspecto é muito comum entre os não indígenas3. Por isso Jesus chamou Herodes, o rei da época, de “raposa”, pois ele abusava do poder. (...) Na opinião de Jesus, um verdadeiro líder deve servir a seu povo mais do que qualquer outra pessoa. E é assim que os antigos Kulina diziam que devia ser um bom tuxaua. Sim, sem que soubessem, muitos dos caciques seguiram mais a vontade de Jesus do que a maioria dos líderes dos não indígenas, muito mais do que prefeitos ou governadores.

Jesus não apenas criticou o comportamento dos fariseus de salientar e mostrar a sua autoridade, mas também não admitiu nenhum tipo de hierarquia entre os seus seguidores (Mt 23.5-12) – a não ser a hierarquia paradoxal em que a pessoa que serve a todas as outras é, de fato, a maior. Isso lembra a organização de uma comunidade Kulina. O seu único líder é o cacique, o tamine. Mas o seu cargo não lhe atribui poder de mandar nos demais. Em geral, a sua tarefa é lembrar os interesses da comunidade e, por exemplo, durante reuniões comunitárias, ajudar na busca de um consenso, coordenando as discussões e distinguindo a opinião da maioria. Além disso, em trabalhos comunitários, espera-se dele que dê um exemplo aos outros e, dessa forma, anime o grupo a agir com total desempenho. A sua casa deve ser a maior: não para ostentação, mas para poder hospedar mais visitantes. Portanto, de fato achamos aqui não apenas uma estrutura social anti-hierárquica, mas até mesmo o ideal de autoridade de Jesus – o maior deve ser o servo de todos os outros – está aí culturalmente ancorado e é concretizado em muitos aspectos da vida cotidiana desse povo. Tive que confessar aos Kulina que, como jovem adulto, sempre considerara a vida em fraternidade, da forma como Jesus a projetou, na qual nem mesmo as autoridades possuem poder, como um ideal que, de fato, nunca fora realizado, pelo menos não de forma duradoura, e que nem era realizável. Depois de haver convivido por algum tempo numa primeira aldeia Kulina, porém, percebi, para minha própria surpresa, que se pode, sim, viver o ideal de Jesus e que há muito tempo isso já estava acontecendo – ali, entre os Kulina, em meio a um povo, portanto, que não é visto como pertencente à tradição cristã.

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Aqui e em outras constatações semelhantes, o artigo refere-se ao contexto de vida concreto dos Kulina, i. e., ao estado do Amazonas e especialmente a seu interior. Aqui, em muitos municípios, corrupção e nepotismo, exploração da mão de obra humana, julgamentos e sua execução pela polícia sem processos judiciais, etc. são comuns e considerados normais pela população não indígena.

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Onde em Mateus 23.23 se lê “justiça”, no original encontra-se krísis, palavra que significa tanto a virtude da justiça como o julgamento em que se faz valer a justiça. Quando se perguntava por justiça na tradição do Antigo Testamento, na qual Jesus também se baseava, pensava-se principalmente na garantia de proteção para os mais fracos. Portanto, ao falar aqui em “justiça”, não se trata de algo espiritual, mas da proteção e da defesa jurídica de grupos que vivem, econômica ou socialmente, à margem da sociedade. O fato de que o próprio Jesus considerava a justiça para os mais fracos como algo essencial surpreendeu os Kulina e chamou muito a sua atenção. Para eles, isso representa o contrário do que até hoje costumam vivenciar no contato com a sociedade supostamente cristã, ou seja, uma grande ausência de justiça. Ainda se questiona, por exemplo, abertamente e até entre pessoas com mandatos políticos, o fato de os Kulina (e também todos os outros povos indígenas do Brasil) terem direito a extensas terras próprias – apesar de a constituição brasileira afirmar isso. Ignorando esse direito, pescadores, caçadores, madeireiros e fazendeiros não indígenas invadem regularmente os territórios dos Kulina. Os órgãos governamentais responsáveis, inclusive a FUNAI, não fazem praticamente nada contra essas violações à constituição. Como segundo objetivo ético mais importante, Jesus menciona a misericórdia. Para explicar de uma maneira mais concreta em que Jesus pensava, segue aqui, em concordância com o exemplo do próprio Jesus, a história do bom samaritano e uma reflexão sobre ela. Os Kulina prestaram muita atenção: Jesus conta a história de tal modo que nem sacerdotes, nem levitas, ambos representantes oficiais da religião predominante, são necessariamente exemplos de verdadeira misericórdia. Em seguida, um samaritano aparece. Dizia-se deles que não faziam parte do povo de Deus: afirmação que parece com o que, no Brasil, muitos pensam sobre os Kulina e outros grupos indígenas. E esse samaritano agora se torna um exemplo de misericórdia. Se Jesus contasse essa parábola hoje, talvez desse como exemplo um Kulina que ainda segue a sua tradição. (...) Os Kulina que vivem conforme a sua tradição não deixam ninguém passar fome, mas sempre dividem com os outros o que têm, dividem comida, e dividem também as suas ferramentas, canoas ou motores.

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Por fim, após a justiça e a misericórdia, Jesus menciona a fé como terceira questão mais importante. Outra vez tomo, no texto, a liberdade de relacionar o assunto a ser tratado com um relato bíblico. Falo da pessoa cuja confiança em Deus Jesus presenciou e, impressionado, elogiou como maior exemplo de fé que já havia visto. É o centurião de Cafarnaum (Mt 8). Com uma convicção especial, ele contava com a atuação de Deus e de Jesus a favor das pessoas deste mundo. Também ele, porém, era mais um daqueles que não pertenciam ao assim chamado povo de Deus, mas era um pagão, possivelmente da Síria. Conforme a opinião comum daquela época, ele não tinha nada a que pudesse recorrer diante das pessoas, diante de Deus ou de Jesus, a não ser a sua convicção de que Deus ama os seres humanos. Para Jesus, porém, isso era mais do que o suficiente. Os Kulina podem entender isso como mais um indício de que não precisam se igualar primeiramente aos cristãos “brancos”, que não precisam assumir quaisquer regras de vida e costumes cristãos ou se afiliar a alguma das muitas igrejas cristãs para só então poder contar com a presença do Reino de Deus para si. Isso já podem simplesmente assim, como Kulina. Ou, para ser mais exato, no sentido dos exemplos do centurião de Cafarnaum e de Mateus 23: como Kulina, talvez até o possam melhor. Jesus queria uma vida boa para todos: para o seu povo, para os menosprezados e, também, para as pessoas de outras culturas. Por isso importava-se com justiça, misericórdia e confiança em Deus. Poderíamos igualmente dizer que Jesus se importava com tudo o que fortalece a união entre as pessoas e entre as pessoas e Deus. Os não indígenas e também a Bíblia falam muito sobre o pecado. Se nós pensamos no que foi dito anteriormente, é fácil entendermos o que Jesus queria dizer quando falava em “pecado”: Pecado é tudo aquilo que prejudica a união das pessoas entre si e a união das pessoas com Deus. Oprimir e explorar os mais fracos é pecado, ódio e sovinice são pecados, vingança também é, porque tudo isso destrói a união entre as pessoas. Até mesmo querer convencer os Kulina para que vivessem da mesma maneira que os fiéis não indígenas é um pecado, pois também contribui para conflitos e divisões desnecessários nas comunidades indígenas. Se, por outro lado, vocês fumam ou se tatuam, isso pode prejudicar a sua saúde, mas não seria pecado nenhum, pois não prejudica a união entre vocês nem a união de vocês com Deus. (...) Para Jesus, importa que nós convivamos em solidariedade, que um ajude o outro, pois é assim que temos uma vida boa. (...)

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Infelizmente, hoje em dia, muitos Kulina se deixam contagiar pelo típico egoísmo não indígena: acontece que alguns Kulina deixam pescadores de fora pescarem em seus lagos em troca de dinheiro, sem que a sua comunidade saiba disso. Outros deixam madeireiros tirarem madeira ou caçadores caçarem os animais que deveriam alimentar toda a sua comunidade. Desse modo, uns poucos são beneficiados, mas a maioria leva um grande prejuízo. Quem foi escolhido como tuxaua, professor, agente de saúde ou coordenador de uma organização indígena, pode contribuir muito para o bem-estar e a união do seu povo. Mas quem segue o mau exemplo de muitos não indígenas, aproveitando-se do seu mandato apenas para enriquecer, para aumentar o seu poder e para mandar nos outros, prejudica a vida da sua comunidade. Jesus chamou pessoas que se comportavam dessa forma de raposa e de ninhada de cobras venenosas. Vimos agora que os Kulina que seguem os ensinamentos da sua tradição estão mais perto dos aspectos mais importantes da vontade de Jesus do que muitos dos não indígenas. Por isso, se alguém se interessa em seguir os conselhos de Jesus, jamais deve deixar de ser Kulina. Como Kulina, em sua tradição, pode praticar a misericórdia com seus próximos, fortalecer a união do seu povo e ajudar a superar ódio e vingança, bem como o egoísmo que leva a negócios sujos com os não indígenas. (...)

O professor da aldeia Iari, Idirawi “Tenente” Kulina, disse num dos seminários que, antes de ter escutado isso no Titihade, nunca imaginara que a sua tradição religiosa e a fé cristã não se excluíssem mutuamente. Pois o que antes ouvira em programas de rádio evangélicos e dos missionários da “Missão das Novas Tribos do Brasil” era que as duas tradições religiosas eram estritamente incompatíveis. Para ele, era um pensamento novo e animador que, como Kulina, baseado em sua própria tradição, pudesse entrar em diálogo com a tradição cristã de igual para igual e com respeito mútuo. As críticas de Jesus contra os fariseus geralmente foram e são interpretadas como afirmação da necessidade histórica da separação dos cristãos do judaísmo, entendendo que o cristianismo se sobressaía. Lidas, porém, para e com pessoas de um pequeno povo mantido à margem da sociedade cristã, essas palavras de Jesus tornam-se críticas contra os próprios cristãos. Descobre-se um Jesus que não é um Cristo inatingível e poderoso que justifica a dominação cristã, mas, sim, que protege os menosprezados contra o cristianismo estabelecido. Essa inversão é considerada pelos indígenas como libertadora. A perspectiva dos “pagãos” torna-os missionários de Jesus com uma mensagem para os cristãos. Pode-se avaliar a nossa interpretação do Novo Testamento como unilateral, parcial e desequilibrada demais. Há quinze anos, provavelmente eu teria

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feito a mesma avaliação. Porém, supondo que seja realista a imagem ideal de uma prática teológica neutra e imparcial, ideia que até hoje se encontra na teologia europeia, muito grande parece o perigo de que a tentativa de agir de uma forma equilibrada – no sentido da tradição (europeia) hermenêutica dogmática, na escolha e na interpretação de textos bíblicos –, afinal de contas, acabe facilitando as coisas para os mais fortes e não fortalecendo os mais fracos. Pergunto: como se consegue atuar de um modo equilibrado diante de uma história humana e de missão ao longo de 150 anos aqui nos Kulina e de 500 anos em outros lugares do Brasil – uma história cheia de conquistas e de submissões em nome da cruz, de um lado, e uma história de sofrer perseguição, matança, exploração e desprezo na sombra da mesma cruz, do outro lado? Para trabalhar em direção a um futuro equilíbrio, talvez seja necessário pôr peso inicialmente apenas no lado quase vazio e leve demais da balança. No período de outubro de 2007 a maio de 2008, realizamos seminários de vários dias em três das maiores aldeias da região do médio Juruá (as aldeias Iari, Macapá e Penedo). Aproximamo-nos mais a algumas partes da tradição bíblica de Jesus e colocamo-la em relação com a tradição Kulina. A comunidade da aldeia Macapá contribuiu muito para um diálogo bilateral e em vários níveis, realizando, durante as noites do seminário, uma das últimas etapas da formação de novos xamãs. Entre outras coisas, ocorreram, por exemplo, muitas danças rituais. Durante o dia, a maioria dos próprios xamãs, entre eles o cacique Dao “Januário” e o professor Zohe, também participou intensivamente do seminário, no qual a experiência dos rituais influenciou as nossas conversas. Os participantes dos três seminários sugeriram que déssemos acesso aos principais conteúdos e resultados das nossas conversas para todo o povo Kulina, publicando-as na áudio-revista. Lançamos, então, em setembro de 2008, o quarto número de Titihade, que, sob o título “Discursos de tempos muito

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antigos”, reproduz resumidamente os principais conteúdos e resultados formulados nos seminários. O texto começa com a lenda indiana dos cegos e do elefante. Apenas poucos dos Kulina já haviam visto imagens desse mamífero, mas muitos já sabiam a respeito desse maior animal terrestre do mundo. Na versão impressa do Titihade, encontra-se, ao lado do texto, uma fotografia correspondente. Muitos não indígenas afirmam que só eles conhecem a verdade sobre religião, sobre Deus, o céu e o paraíso, e que, porém, outros não indígenas de outras confissões ou religiões, bem como os indígenas, não entendem muito disso e divulgam muitas coisas erradas. Há um país muito longe daqui, chamado Índia. Agora vocês escutarão uma lenda bem antiga desse país: Há muito tempo, pessoas de uma cidade na Índia brigavam entre si sobre a questão de como se pareceria o poder divino. Alguns achavam que a lua ou o sol fossem a divindade, outros a imaginavam parecida com animais. Outras pessoas pensavam mais em um senhor poderoso. Pessoas mais simples imaginavam Deus como um homem velho e barbudo, sentado no céu. A maioria das pessoas de pele clara imaginava que Deus fosse branco, enquanto os morenos e os negros imaginavam que Deus fosse de cor escura. Como a controvérsia não tivesse fim, solicitaram que o seu velho rei decidisse qual era a resposta verdadeira. O rei, então, ordenou a um dos seus criados: “Vá e reúna todos os cegos que moram nesta cidade”. O criado fez conforme a ordem do seu senhor. Ele mandou procurar todos os cegos da cidade, levou-os ao seu rei e disse: “Meu Senhor, aqui estão os cegos que mandou trazer”. Então o rei ordenou que trouxessem o maior elefante que ele possuía. Em seguida, ele falou aos cegos: “Digam-me, que ser é este que mandei trazer para vocês?”. Os cegos, então, começaram a apalpar o elefante com suas mãos. Alguns pegaram na cabeça e nas orelhas, outros na tromba, outros na cauda ou nas pernas. Depois de eles passarem algum tempo apalpando o elefante, o rei perguntou-lhes que forma tinha esse ser. O cego que havia tocado na cabeça do elefante respondeu que era uma grande panela. O outro que tinha segurado a orelha disse que era como um grande cobertor. Aquele cuja mão havia apalpado a tromba falou: “Não, é como uma mangueira comprida e molhada que se mexe como uma cobra”. “Nada disso!”, gritou aquele que tocara no rabo do animal. “Eu segurei uma grande vassoura na minha mão.” E o cego que havia apalpado uma perna do elefante disse: “Mas o que vocês estão falando? Ele é como o tronco de uma árvore!”. Ouvindo que cada um falara algo tão diferente, os cegos começaram a brigar. Cada um achava que somente ele pudesse ter razão e que os outros estivessem falando bobagens. Ao ver essa cena, as demais pessoas riram e, de repente, sabiam para que o rei havia chamado os cegos e o elefante. Eles entenderam o que seu senhor quisera dizer: “Nós todos somos como aqueles cegos, cada um enxergando somente uma parte da verdade”. Agora estava claro que não é nada prudente achar que apenas um grupo sabe toda a verdade e brigar por causa de conceitos diferentes sobre o divino e o mundo invisível.

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A mensagem da lenda de que, diante do divino, todas as pessoas são iguais aos cegos e que, por isso, apesar da diferença de opiniões, pode haver em cada uma delas uma parte da verdade que, em sua totalidade, ninguém consegue compreender, essa mensagem com sua sabedoria simples alegrou e inspirou muitos dos Kulina. Alguns ficaram animados ao pensar que também eles pudessem contribuir em uma conversa da qual até então se haviam considerado excluídos. Contra a afirmação muito comum nas igrejas locais e entre as minorias religiosas dissidentes de que apenas nelas se encontra toda a verdade, os Kulina argumentam também que elas contrastam demais entre si, tanto em suas constatações como em seus comportamentos. Como grupo externo, os Kulina percebem isso bem claramente. O texto de Titihade resume, a seguir, o que foi dito e anotado a respeito disso durante os seminários: Em algumas aldeias, realizamos seminários para falar sobre a religião dos Kulina e dos não indígenas. Quando fizemos um seminário desses na aldeia Macapá, os Kulina falaram das igrejas e organizações missionárias com as quais têm contato. Como resumo, elaboraram em conjunto o seguinte texto: Escutamos muitas falas diferentes sobre Deus. O padre diz que devemos deixar batizar os nossos filhos pequenos, para que, quando falecerem, estejam com Deus. O pastor da Assembléia de Deus fala: “Acreditem em Deus e frequentem sempre os cultos, para que vocês deixem a bebida alcoólica e estejam unidos com os crentes e para que, assim, no futuro, vocês possam ir para o céu”. Os missionários da Missão das Novas Tribos no Brasil dizem: “Sempre ouçam o que está escrito na Bíblia, para que as bebedeiras e as brigas acabem e, futuramente, as suas almas possam ir para onde Deus está. O que os pajés dizem é ruim e perigoso para vocês”. As pessoas do COMIN sempre falam que Deus ama os menosprezados e os indígenas e que não devemos abandonar o nosso jeito de ser, mas continuar vivendo em união, pois é importante para termos uma vida boa. Depois de conversarmos mais, vimos que cada igreja e cada missão dizem coisas diferentes. Em certos casos, os membros de uma igreja afirmam até o contrário daquilo que outros pregam. Enquanto a maioria diz que o domingo é dia santo, os adventistas falam para nós trabalharmos no domingo e descansarmos aos sábados. Enquanto os evangélicos oram somente para Deus e Jesus, os católicos rezam também para Maria e os santos. Enquanto os católicos e os luteranos fazem festas com danças e suas mulheres podem vestir-se e cortar o seu cabelo do jeito que gostam, os pentecostais dizem que dançar é pecado e que as mulheres têm que andar de saia e de cabelo comprido... E, muitas vezes, quando falam numa igreja

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ou numa entidade missionária sobre uma das outras igrejas ou missões, questionam a doutrina dos outros ou chamam-nos até de mentirosos.

Os participantes dos seminários consideraram o texto sobre o tesouro no céu, de Mateus 6, um exemplo muito claro de uma das razões que levam a interpretações tão diversas e até distantes da mensagem bíblica. Eles entenderam imediatamente a ideia original desse trecho do Novo Testamento, mas compreenderam também porque muitos não indígenas, com seu forte interesse num crescimento econômico particular que se encontra em todos os lugares e todas as classes sociais, têm dificuldades com esse texto. Dao “Januário” Kulina, cacique da comunidade “Macapá”, junto ao rio Acuraua, comentou logo após ter ouvido o texto bíblico em sua língua materna: “Quando os ricos das igrejas escutarem isso, vão chorar e lamentar”. Vamos pegar agora um pequeno texto da Bíblia para ver como as igrejas o interpretam de maneiras diferentes. Ele se encontra na parte da Bíblia chamada “Evangelho de Mateus”, no capítulo 6. Ali, Jesus diz: “Não ajuntem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntem para vocês tesouros no céu, onde nem a traça, nem a ferrugem corroem, e onde os ladrões não escavam, nem roubam. Porque, onde está o tesouro de vocês, aí estará também o seu coração”. Com essas palavras, Jesus disse que ninguém pode seguir a ele e querer juntar bens materiais ao mesmo tempo. E ele disse por que: porque quem é rico sempre vive mais preocupado com as suas riquezas e menos com as outras pessoas e com Deus. E isso é verdade: quando começamos a correr atrás de bens, querendo cada vez mais, como motores, um barco grande, uma casa feita de tábuas e coberta de alumínio, ou roupas chiques, então o nosso coração fica ocupado com isso e não se preocupa mais tanto com o bem da comunidade toda. Por isso Jesus fala aqui contra um crescente acúmulo de bens. E nas igrejas, como se lida com isso? Será que chamam a atenção dos ricos, exigindo que dividam as suas riquezas entre os pobres? Não, na maioria das igrejas, não acontece nada disso. Também não se fala muito sobre isso. Pelo contrário, geralmente se têm muitas palavras benévolas para os bem-situados. Muitos pastores e missionários pregam que Jesus não tem nada contra os que conseguem aumentar os seus bens, mas que ele apenas quer que eles sejam generosos com o que possuem. Já outros não indígenas dizem que aqui Jesus não quis falar só dos bens que alguém pode possuir, mas que ele fala dos bens para dar apenas um exemplo das muitas coisas no mundo que ocupam tanto o coração, que não fica mais nada livre para Deus. Dizem que Jesus falou nos ricos, mas pensou também nas pessoas que vivem mais para se divertir e nas outras que só correm atrás de bebida, bem como nas outras que pensam todo o tempo em comida, sexo, poder, etc. Aí parece que Jesus não criticou mais os ricos, mas falou a todo o mundo ao mesmo tempo.

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Mas por que aqui os não indígenas não escutam simplesmente o que Jesus disse bem claramente? Por que interpretam e reinterpretam tanto certas palavras de Jesus até que saia algo diferente? Porque à maioria das igrejas não indígenas pertencem também muitas pessoas bem-situadas. Daí, muitas vezes, falta a coragem de lembrar tudo o que Jesus disse sobre riqueza e poder. Além disso, não são poucos os ricos que enriqueceram explorando os pobres ou tolerando a sua exploração. Com isso ficou mais difícil para os pregadores falarem que Jesus é solidário com os pobres. Jesus pregou para que a vida dos menosprezados se tornasse melhor. Mas, em muitas igrejas, muda-se tanto o sentido das respectivas falas de Jesus que, por final, os bem-situados pouco ou mesmo nem são mais questionados e até podem continuar com suas injustiças para com os menosprezados. Na América do Norte, também vivem indígenas. Um deles, Tink Tinker, durante um período, era pastor e trabalhava numa igreja de não indígenas, mas, depois de um tempo, se afastou. Ele considera de valor as ideias de Jesus para os povos indígenas, mas achou diferente demais o que ele ouviu e viu nas igrejas dos não indígenas. Para dizer de que modo os não indígenas muitas vezes mudam as palavras de Jesus ao falar para índios, Tink Tinker apresentou o seguinte citado: “Jesus foi manipulado para legitimar os interesses... dos exploradores, dos privilegiados e dos poderosos. Ele foi projetado como um pregador de verdades eternas, que conquista e vence as culturas e as tradições religiosas de outras pessoas; um anunciador de catástrofes cósmicas, indiferente quanto a questões sociais atuais; e um pacifista que está distante das tensões e dos conflitos humanos”4. (…) Vamos nós mesmos olhar mais de perto como era Jesus e o que ele dizia. Vamos ver inicialmente como Jesus considerou e tratou os pobres e os menosprezados. Como já ouvimos num outro Titihade, Jesus nasceu e viveu no meio do povo humilde. Além disso, ele se relacionava com pessoas de outros povos, que eram consideradas inferiores naquele tempo, como os cananeus, samaritanos e gregos. Essas pessoas eram tratadas de uma forma parecida como os Kulina hoje em dia muitas vezes são tratados: evitava-se o contato com elas e dizia-se que não pertenciam ao Deus de Israel. Já ouvimos uma história de Jesus sobre um desses samaritanos. Um homem gravemente ferido foi visto por pessoas responsáveis pela religião daquela época, mas elas só olharam e passaram. Um samaritano, porém, ficou com pena do ferido e o ajudou. Desse modo, foi ele quem realizou a vontade de Deus, mas não os representantes da tradição religiosa oficial. Há uma outra história com um samaritano. Ela está escrita na parte da Bíblia que se chama “Evangelho de Lucas”, no capítulo 17. Lá diz o seguinte:

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SUGIRTHARAJAH, R.S. Jesus Research and Third World Cristologies, Theology 93 (1990), p. 387. Citado em: TINKER, George E. “Tink”. Christology and Colonialism: Jesus, Corn Mother, and Conquest, p. 3 (capítulo de livro ainda não publicado; cópia no arquivo do COMIN; compare com Jesus, Corn Mother, and Conquest: Christology and Colonialism, in: Native American Religious Identity: Unforgotten Gods, Orbis 1998; e American Indians and Jesus: Towards an EATWOT Christology, em: Voices from the Third World, Fall 1995).

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“E aconteceu que, indo ele (Jesus) a Jerusalém, passou pelo meio da Samaria e da Galileia; e, entrando numa certa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez homens, leprosos, os quais pararam de longe e levantaram a voz, dizendo: ‘Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós!’ E ele, vendo-os, disse-lhes: ‘Ide, e mostrai-vos aos sacerdotes’. E aconteceu que, indo eles, ficaram limpos. E um deles, vendo que estava são, voltou, glorificando a Deus em alta voz; e caiu a seus pés, com o rosto em terra, dando-lhe graças; e esse era samaritano. E, respondendo Jesus, disse: ‘Não foram dez os limpos? E onde estão os nove? Não houve quem voltasse, para dar glória a Deus, senão este estrangeiro?’ E disse-lhe: ’Levanta-te e vai; a tua fé te salvou’”.

A esse conto bíblico dos dez leprosos os participantes dos seminários deram a forma de drama nos terreiros de suas aldeias. Desse modo, perceberam bem a diferença entre a existência social desse grupo antes e depois de sua cura. Nessa história, conta-se primeiro que Jesus, indo para a cidade de Jerusalém, passou pela região da divisa entre a Galileia e a Samaria. Mas Samaria não ficava no seu caminho para Jerusalém. Portanto Jesus não passou lá por acaso, talvez para encurtar o seu caminho, mas, ao contrário, só porque queria passar por lá. Ele fez, portanto, o contrário que a maioria dos crentes de Israel daquela época, que evitavam de qualquer jeito pisar em Samaria. Ali, dez homens o procuraram. Eram pessoas que sofriam de doenças de pele. Podiam ser doenças perigosas, como a hanseníase (lepra), mas também doenças não perigosas, como, por exemplo, psoríase. Porém todas eram vistas na época como doenças que deixavam as pessoas impuras. Quando, naquela época, alguém apresentava alguma doença em sua pele, tinha que mostrar-se aos sacerdotes. Se esses avaliavam que se tratava de uma doença que deixava a pessoa impura, a mesma não podia mais conviver com as pessoas normais, mas tinha que viver fora das cidades, num lugar reservado só para esses impuros. Esses tinham que usar roupas rasgadas, e sempre, quando alguém se aproximasse deles, tinham que gritar alto que eram impuros. Era uma vida terrível. Não eram as doenças em si que necessariamente eram doloridas ou perigosas. Mas a exclusão e o desprezo que essas pessoas sofriam eram horríveis. Por isso esses dez homens chamaram Jesus de longe, pois para eles era proibido chegar perto de pessoas sãs. A maioria das outras pessoas os teria mandado embora. Mas não Jesus. Ele não teve medo, mas parou e conversou com eles. E ele respondeu ao pedido dos dez e os curou. Assim, ao se apresentarem aos sacerdotes, foram declarados limpos e, com isso, tiveram novamente o direito de viver uma vida normal no meio da sociedade. Dessa forma, Jesus fez com que os mais desprezados de todos se tornassem novamente pessoas aceitas pela sociedade, com a liberdade de viver no meio de seus parentes. Depois de curados, nove logo foram embora e não pensaram mais em Jesus. Muitos cristãos comportam-se da mesma forma: quando estão sofrendo problemas e aflições, vão muito à igreja orar. Porém, depois de Deus ter ajudado e de poderem seguir a sua vida, já não procuram a oração. Eles oram: “Pai nosso que estás no céu...”, mas no fundo não o consideram um pai.

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O único que se comportou diferente foi, outra vez, um samaritano, uma pessoa, portanto, a respeito da qual se dizia que nem seguia a religião certa, nem entendia bem a Bíblia e de Deus. Porém ele voltou a Jesus e louvou a Deus. Ele tratou Deus realmente como um pai, cuja ajuda se procura e, depois de ser ajudado, reparte-se com ele também a alegria. E Jesus elogiou esse homem. Torna-se evidente nesse texto bíblico – bem como em outros – que Jesus não evitava, mas considerava os grupos que, por suas diferenças sociais, étnicas ou religiosas, eram menosprezados e ia a seu encontro. Ele queria que gozassem de justiça e do pleno direito à vida. Da mesma forma, era capaz de reconhecer o jeito de crer dessas pessoas. (...)

Muitos participantes dos seminários ainda ficaram surpresos com o fato de que Jesus aparentemente tivesse tido um interesse especial pelos pobres e menosprezados. Devido ao que até então tinham ouvido na pregação cristã sobre Jesus, acharam tão estranha a perspectiva dos seminários, que ficaram na dúvida se eu, para agradá-los, não estivesse pondo no centro textos que, na verdade, se encontrassem à margem da tradição bíblica. Por isso traduzi também, com e para eles, o discurso programático inaugural de Jesus, conforme Lucas 4. Numa outra parte do Evangelho de Lucas, no capítulo 4, lemos sobre uma das primeiras vezes em que Jesus falou em público. Foi em sua própria cidade, Nazaré. Para se apresentar, Jesus leu um texto bem antigo da Bíblia, que diz: “O Espírito de Deus está sobre mim. Ele me escolheu para levar boas notícias aos pobres e me enviou para anunciar a liberdade aos presos, dar vista aos cegos, libertar os que estão sendo oprimidos e anunciar o ano aceitável do Senhor”. Nessa passagem, Jesus diz para que Deus mesmo o escolheu: para levar um discurso animador aos pobres, para acabar com a desgraça dos oprimidos e para superar a desigualdade dos menosprezados. Portanto não foi por acaso que Jesus sempre ia ao encontro do povo humilde. Podemos até afirmar: se Jesus viesse hoje para cá, ele não moraria nos melhores bairros das cidades, nem nas casas dos melhor situados ou dirigentes políticos, mas ele sempre procuraria estar com as pessoas das periferias das cidades, com as pessoas das comunidades ribeirinhas e indígenas. E ele faria um discurso bom para os menosprezados, palavras que animassem e deixassem a sua coragem crescer. Ele também não teria medo de falar contra as pessoas que enganam e exploram os índios.

Como texto central do ensinamento de Jesus, refletimos nos seminários a “regra de ouro” de Mateus 7.12. Nesse versículo, resumem-se direito e ética do 27


Antigo Testamento de um modo que é plausível também fora da tradição cristã. O que ficou logo bem evidente na língua Kulina do texto original de Titihade foi a proximidade dessa regra com o valor principal da cultura Kulina, o manako. Durante os seminários, alguns Kulina mostraram-se surpreendidos e impressionados pelo fato de que algo do ensinamento de Jesus lembrava tanto o seu manako. Manako significa um princípio de vida que sempre procura um equilíbrio entre o receber e o dar, entre o ter e o não ter, entre o fazer e o não fazer, etc., sendo que esses movimentos de ir e vir nunca param. Quem, por exemplo, é solicitado a fazer alguma coisa dentro do normal, praticamente não pode negar. Ser chamado de avarento é uma grande vergonha. E a pessoa a quem algo é oferecido deve aceitá-lo, para não arriscar ofender a pessoa que oferece. Porém, ao aceitar a dádiva, já se confirma que, em algum momento futuro, irá se retribuir com algo. O acúmulo de bens, muito além daquilo que se precisa para si, também é considerado uma forma de avareza. Por isso prestígio não tem quem possui muito, mas quem dá muito. Esse princípio do manako vai muito além da troca e da partilha de bens materiais. Toda a vida é regulamentada por ele, inclusive as questões de direito, religião e moral. Quando crianças brincam de “pega-pega”, com certeza, depois de um tempo, uma delas vai gritar manako, e, no mesmo momento, os perseguidos tornam-se os perseguidores, e vice-versa. A escolha do cônjugue, a convivência de homem e mulher, a divisão de tarefas na comunidade, até uma reunião são determinadas pelo manako: todos os que participam ouvindo deveriam, no decorrer de uma discussão, também falar. Manako acontece entre pessoas, famílias e grupos. Esse dar, receber e retribuir gera uma forte rede social, que ajuda a manter a união e o equilíbrio entre as partes. Boa parte do efeito que se deseja alcançar com a regra assumida por Jesus (conforme Mt 7.12), entre os Kulina já é garantida pelo princípio de vida do manako5. Até aqui já ouvimos com quem Jesus vivia e onde andava. Vamos ver agora o que mesmo Jesus ensinava para as pessoas. Certa vez, uma pessoa perguntou a Jesus qual é o mais importante ensinamento que se encontra na Bíblia. Aí Jesus respondeu: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu cora-

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O desrespeito desse princípio, porém, pode causar também um manako negativo, como, por exemplo, recusa contra quem se recusa ou agressão contra quem é agressivo.

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ção, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a esse, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Assim está escrito na Bíblia, no Evangelho de Mateus, no capítulo 22. No capítulo 7 desse evangelho, podemos ler como Jesus disse algo bem parecido: “Façam aos outros o que querem que eles façam a vocês”. Em seguida, ele disse que nisso se resumem todos os ensinamentos importantes. Essa regra é simples, mas genial. Ela diz: Se tu não queres que alguém roube de ti, então tu também não deves roubar de outros. Se tu queres que outros emprestem das suas coisas para ti, então tu também deves emprestar aos outros do que é teu. Se tu queres que outros te deem passagem em sua canoa, então tu também deves dar passagem a outros. Se tu não queres que outras pessoas se aproximem demais do teu cônjuge, então tu também não deves cobiçar os cônjuges de outros. Se tu queres ser bem recebido nas casas dos outros, então tu também deves receber bem os outros em tua casa, e assim por adiante. Portanto, o que Jesus entendeu como uma regra central para a vida das pessoas não é nada que dificulte a vida das pessoas humildes. Pelo contrário, onde as pessoas seguem essa regra, a vida melhora para todos. Também a vida dos Kulina não perderia em qualidade se seguissem essa regra. Ela também não questiona os ensinamentos dos antigos. Muito antes os confirma. (...) Podemos, portanto, dizer que o que importa para Jesus é que haja união entre as pessoas e entre as pessoas e Deus.

Esses mandamentos de Jesus, então, também não dizem que os Kulina devem se adequar aos “brancos”. Muitos não indígenas católicos e evangélicos acham que os índios deveriam abandonar o seu jeito próprio de viver, os seus ideais e as suas tradições. O discurso de Jesus, porém, é outro: ele não quer acabar com culturas, mas quer que a vida dos indígenas, dentro dos moldes de suas tradições, melhore. O indígena norte-americano Tink Tinker escreve, nesse contexto6, que os não indígenas são na maioria individualistas, cada um e cada uma pensando principalmente em si mesmo. Ele lembra que isso não tem nada a ver com Jesus, mas muitos missionários se referem a ele para fazer dos índios individualistas também; pois muitos pregadores incentivam para uma reorientação religiosa individual, mesmo contra a opinião dos parentes e do grupo indígena, se for preciso. Em todas as culturas indígenas, porém, importam a comunidade, a união de todos; essa é a força dos indígenas. Onde os índios se abrem para esses missionários e seu individualismo ocidental, os indígenas perdem a sua união e, com isso, também a sua força, Tink Tinker reclamou. (...)

Segue um bloco sobre morte e ressurreição, no qual se compara uma parte da respectiva tradição do Novo Testamento com mitos dos Kulina.

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TINKER, George E. „Tink”. Christology and Colonialism: Jesus, Corn Mother, and Conquest, p. 6 (capítulo de livro ainda não publicado; compare com a nota 4).

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Já vimos como e com quem Jesus vivia e o que ensinava. Na Bíblia, muito se fala também sobre a morte de Jesus na cruz. Por isso vamos ouvir agora sobre a crucificação e a ressurreição de Jesus. Antes fomos lembrados de que Jesus andava muito no meio dos pobres e menosprezados e de que lhes deixou ensinamento, na intenção de melhorar a sua vida. Além disso, Jesus também compartilhou os sofrimentos das pessoas humildes. Já o seu nascimento aconteceu sob condições indignas num estábulo. Ele se criou no meio do povo simples. Quando começou a peregrinar e a pregar, andava a pé e às vezes passava fome. Como ele falava palavras de ânimo e coragem aos grupos menosprezados da sociedade, os líderes religiosos e do governo daquela época começaram a persegui-lo. Queriam que ele morresse. Então ele também sofria da mesma forma que as pessoas do povo humilde sofriam quando os governantes se zangavam com elas. E Jesus não procurou fugir. Ele suportou mentiras e tortura. No final, morreu como um criminoso, pregado a uma cruz de madeira. Tudo isso sem ter cometido nenhum crime, mas simplesmente porque os poderosos da época não gostaram daquilo que Jesus falava a o povo simples. Assim como os pobres tinham que aguentar muitas injustiças, ele também aguentou. Embora tenha sido Filho de Deus, ele quis conviver de forma plena com o povo humilde e, consequentemente, teve que suportar também todo o seu sofrimento. Um dos textos importantes da Bíblia sobre a morte de Jesus está na parte chamada “Carta aos Filipenses”, no capítulo 2. Lá diz, entre outras coisas: “Que ninguém procure somente os próprios interesses, mas também os dos outros. Tenham entre vocês o mesmo modo de pensar que Cristo Jesus tinha: Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou permanecer igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida de um ser humano, ele foi humilde e obediente até a morte, a morte na cruz. Por isso, Deus deu a Jesus a mais alta honra e lhe deu um nome que está sobre todos os nomes”. Não foram, portanto, fraqueza e fracasso que conduziram Jesus à morte, mas foi uma grande força, a força de levar a solidariedade até o fim. Como irmão dos menosprezados, Jesus não quis fugir do sofrimento, mas superá-lo. Assim, Jesus foi morto, mas Deus o fez renascer de corpo e alma, sem, porém, que deixasse de ser ainda vulnerável para os opressores. Tudo isso deve dar ânimo aos menosprezados para que não desistam, pois podem saber que a força de Jesus vai além da das pessoas poderosas. Os Kulina têm em sua tradição oral uma história antiga que muitos outros povos indígenas, até da América do Norte, também contam de modo semelhante. É a história da mulher da qual surgiu uma roça7. Podemos comparar Jesus com essa mulher. Ela morreu

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Segue o mito, na forma como os Kulina o contam: Há muito tempo, uma mulher Kulina disse a seu marido: “Embora, temos mais nada de carne! Vamos nós dois caçar!” E eles foram. Em cima de um

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para melhorar a vida de sua família e de seu povo. E onde isso aconteceu, surgiu a primeira roça para os Kulina, que até aquele dia só haviam vivido em total dependência daquilo que encontravam na floresta. E, poucos dias depois do seu sacrifício, a mulher ressuscitou. A morte de Jesus não gerou um roçado, mas deu mais firmeza8 aos pobres e menosprezados, para que eles vivessem em união e para que não faltasse coragem para que enfrentassem tudo o que prejudica a sua união, como injustiça, opressão, exploração e egoísmo. Ao refletirem sobre morte e ressurreição de Jesus, os Kulina da aldeia Macapá lembraramse de mais outros mitos que falam de morte e ressurreição. Então elaboraram o seguinte texto: Entre as histórias que os antigos contaram, há algumas que falam de morte e ressurreição. Elas lembram também a história da ressurreição de Jesus. Numa dessas histórias, uma mulher fala a seu marido: “Vá, atire a sua flecha em mim!”. No dia seguinte, apareceu um roçado nesse lugar, com muita comida boa que fez os Kulina viverem melhor. Depois de poucos dias, a mulher ficou novamente com vida. Temos uma outra história na qual um rapaz fala à sua mãe: “Enterre-me!”, e após ficar enterrado, surgiu uma roça com tanta comida, que os Kulina não precisavam mais passar fome... Jesus também morreu, mas, depois de três dias, viveu novamente. Aí, quando os menosprezados ficavam tristes, podiam animar-se mutuamente: “Não tenhas medo, não vamos desistir, mas andaremos de olhar erguido”.

Diversos participantes dos seminários consideraram a nova sugestão de relacionar seus contos de morte e ressurreição com a tradição bíblica inspiradora. Essa influenciou a sua interpretação em duas direções: por um lado, de uma forma bem imediata, chegaram à compreensão da morte de Jesus como

morro, ela disse: “Olha só, que lugar bonito para uma roça!” Enquanto ela falava, ele estava raspando a ponta da sua flecha. Ela continuou: “Esta ponta de flecha é boa. Vai, dispara em mim! Não há nada para comer. Nenhuma fruta da mata é boa. Eu vou virar cana-de-açúcar, banana grande, algodão, mamão, duas qualidades de inhame, batata doce... Vamos! Haverá uma roça grande”. – “Mas eu amo você! Se eu flechar você, e você morrer, não voltará mais.” – “Eu ressuscitarei! Morrerei agora, mas, quando o sol se pôr, haverá bananas grandes maduras, e amanhã, o meu filho as comerá.” – “Então, disparo em você.” E assim ele fez. Disparou, e ela gritou alto e caiu. Daí o homem chorou muito. Chorando assim, ele chegou em casa, carregando o filho. No outro dia de manhã, quando foi ao roçado para ver, havia muita banana grande madura. Pegou um cacho de banana, cortou cana-deaçúcar e voltou: “Há todos os tipos de alimentos!”. Daí foram todos à terra cultivada por ela. (...) Depois de cinco dias, a esposa voltou. Quando o marido, junto com o seu filho, foi ao roçado para chupar cana-de-açúcar, lá estava ela, cantando. “Olá! Voltei para este lugar onde você me matou. Embora, vamos comer novamente!” (...) 8 No texto original consta dakoree, qualidade de caráter muito positiva e desejada entre os Kulina, que provém de dakora, verbo que pode ser traduzido por “estar ou ser firme, duro, estável, intransigente”.

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um sacrifício em benefício daqueles que amava. Por outro lado, ficaram bem atentos para o fato de que, em seus mitos, além de refletir a compreensão Kulina tradicional dos frutos da roça como milagre causado por um sacrifício (e não principalmente como resultado de trabalho humano), há também um traço encorajador, lembrando o potencial que se encontra na dedicação em favor da comunidade. A parte final desemboca em uma pequena conclusão que os participantes de um dos seminários elaboraram. Visto de fora, esse texto pode parecer simples. Mas ele é algo especial, no sentido de que os Kulina invertem nele a convicção comum da maioria dos não indígenas, tanto no passado como no presente, de que somente os não indígenas entendam algo da tradição de Jesus, mas não os indígenas. Compreendemos a mensagem e também a atitude que transparecem nesse texto como sinal de que agora há, por parte dos Kulina, um fundamento no qual um diálogo inter-religioso pode acontecer. Eles interpretaram a tradição de Jesus como aberta e convidativa para o diálogo com eles. Ao mesmo tempo, a comparação dessa tradição com a sua acabou encorajando-os a entrar autoconscientes, como Kulina, nessa conversa. Eles descobriram no Filho supostamente prepotente e inacessível de um Deus dominador um homem que é poderoso apenas na fraqueza e que vai ao encontro de grupos como eles, leva-os a sério e desafiava-os, mas sem submetê-los. Na figura central da tradição religiosa da cultura predominante e dominadora, os Kulina encontraram um duplo potencial de diálogo: por um lado, eles são desafiados a não se entregar ao desrespeito e menosprezo que estão sofrendo; por outro, também as pessoas da cultura dominante são questionadas em sua visão e prática de vida, que, às vezes, chega a desrespeitar os diferentes. Jesus vivia no meio dos pobres e menosprezados. Ele ensinava o que devia fortalecer a união entre essas pessoas e, com isso, a sua força. Jesus também partilhou a sua vida até a morte. Ele morreu, mas ressuscitou. Dessa forma, ele encorajou o povo humilde para que não desistisse de querer viver bem, apesar da injustiça e do desrespeito que sofre, por parte das pessoas bem situadas. Infelizmente, essa “boa-nova” foi modificada pelos não indígenas por várias das suas missões e igrejas. Com seu jeito de falar de Jesus a os índios, em vez de fortalecerem as comunidades indígenas, fortalecem principalmente os não indígenas. Com as suas pregações, não aumentam a união das comunidades e dos povos indígenas, mas causam divisões. Os respectivos missionários e pastores não perguntam se tradição e ensinamento da cultura indígena em questão talvez valorizam o que Jesus valorizava, mas eles incentivam os índios a abandonar elementos centrais da sua cultura – ritos religiosos, festas, etc. – e viver do

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mesmo modo que eles. O seu discurso não é como o discurso de Jesus. Jesus queria que os menosprezados vivessem uma vida melhor, uma vida de igualdade e de justiça. Os assuntos daqueles pregadores, porém, são outros. Eles não falam contra os invasores das terras indígenas nem contra as pessoas que vivem enganando os índios, mas dizem que importa apenas salvar as almas para uma vida eterna. Jesus e Deus, porém, não estão preocupados apenas com a vida após a morte, mas também com a vida já aqui nesta terra. (…) Ouvimos sobre vida, morte e ressurreição de Jesus e sobre os seus ensinamentos. E vimos que, se concordamos com esses ensinamentos, não precisamos ao mesmo tempo abandonar o jeito Kulina de viver. Não há por que querer construir uma igreja na aldeia e abandonar o pátio como lugar de realizar os ritos religiosos e as reuniões. Não há por que deixar para trás os cantos antigos, querendo trocá-los pelos hinos de uma igreja não indígena. Igualmente não há necessidade nem do cargo de pastor, nem de patrão, pois já existem os xamãs e os tuxauas Kulina. Não é abandonando a sua tradição que os indígenas se aproximam mais de Jesus. Pelo contrário: é quando começam a querer viver do mesmo modo como os não indígenas que a sua vida se distancia mais dos ensinamentos de Jesus. Pois onde acontece que grupos indígenas passam a viver do modo em que vive a maioria dos não indígenas, os índios dão cada vez menos valor à união, tornam-se individualistas e decidem cada vez mais sozinhos e não querem mais repartir o que possuem. Quanto mais se afastam dos ensinamentos dos antigos, tanto mais se afastam também dos ensinamentos de Jesus. Ou seja, se uma pessoa Kulina quer levar a sério o fato de Jesus chamar para a união, ela jamais deve querer se igualar aos “brancos”, pois um dos princípios de vida mais fortes deles é que cada um tem que cuidar de si mesmo. O jeito dos Kulina de viver unidos sempre garantiu uma vida boa para todos, pois ninguém precisava passar fome ou necessidades. O jeito egoísta dos não indígenas, porém, garante uma vida boa apenas para poucas famílias, enquanto a maior parte do resto do seu povo vive mal ou até na miséria. Os não indígenas falam a toda hora nos nomes de Deus e de Jesus, mas muitos deles estão bem distantes dos seus ensinamentos. Os Kulina, por outro lado, falam pouco em Jesus e em Deus, mas estão muito próximos de algumas partes dos ensinamentos de Jesus. (...) Quando realizamos um seminário sobre essas questões na aldeia Iari, os Kulina da aldeia encerraram o seminário elaborando em conjunto o seguinte texto: Para que os não indígenas entendam melhor as palavras de Jesus, nós também podemos ajudá-los. Pois, bem antigamente, os nossos antepassados ainda não sabiam nada de Jesus, mas viviam conforme os principais ensinamentos dele, repartindo, por exemplo, os seus alimentos com as outras famílias da comunidade, sem querer nada em troca. E era isso que Jesus também já tinha dito quando ensinou como se deve conviver. Os não indígenas costumam dizer: “Os Kulina não entendem nada dos ensinamentos de Jesus”, mas são eles mesmos que vivem em contradição com o que Jesus disse.

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Capítulo II

O Deus trinitário está presente antes da chegada do missionário1 Walter Sass A Trindade mesma é o “cânone último” para o diálogo com o outro e para o diálogo de culturas. Uma cultura “cristã” é uma cultura das relações trinitárias, abertas, que muito latino-americanamente se poderia dizer “cultura de comunhão e participação”. Todo gesto cultural que porta comunhão e participação, relação ao outro, responsabilidade, é cultura evangélica.2 Luís Carlos Susin

Vivi sete anos com o povo indígena Kulina e 13 anos com o povo Deni no estado do Amazonas no vale do rio Juruá. Conviver com uma cultura bem diferente da própria é uma escola da vida. Aprendi muito mais do que pude ensinar. A convivência foi e é importante para conhecer a cultura, a religião, a língua e os costumes de um povo. A solidariedade foi e é necessária na luta pela terra e contra os preconceitos dos não indígenas. Os indígenas não experimentaram a Boa-Nova em sua história. Até a sua própria religiosidade lhes foi negada. O bispo luterano da Nigéria Alex Malasusa fala sobre o diálogo entre as diferentes religiões: “Na Europa se quer entrar no diálogo antes de ter lido as

O texto é uma versão ampliada, reformulada do artigo “O Deus trinitário está presente antes da chegada do missionário”, publicado nos Estudos Teológicos, v. 44, n. 2, p. 73-81, EST, São Leopoldo, 2004. O título é uma adaptação do livro de Leonardo BOFF, Nova evangelização – perspectiva dos oprimidos, 4. ed. Fortaleza: Vozes, 1991. p. 80: “O Deus-Trindade chega sempre antes que o missionário”. 2 SUSIN, Luís Carlos. Revelação e condicionamento cultural, in: SUESS, Paulo (Org.). Culturas e evangelização. São Paulo: Loyola, 1991. p. 188. 1

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Sagradas Escrituras do outro. Onde fica o fundamento comum?” Os Deni não têm escrituras sagradas. Mas eles têm seus mitos e seus rituais religiosos. Por isso, antes de tudo, temos que conhecer a espiritualidade Deni. Com a ajuda dos anciãos e dos professores Deni, elaboramos um livro de mitos Deni. Esse livro conta como surgiram os povos, os animais, as plantas e como foi o dilúvio... Quando eu anotava com os Deni seus mitos, percebi algo bem especial: no início do mundo, todos os bichos, plantas, estrelas eram seres humanos. O homem não é o centro do mundo. Tudo e todos são interligados. Os indígenas veem este mundo como uma “sociedade da vida”. Percebi como os seus mitos estão vivos ainda hoje no dia a dia. Os velhos contam as histórias antigas: – Uma vez fui com o então estagiário Rogério Link para o roçado dos Deni. Os indígenas queriam apanhar folhas de vekama, uma planta que asfixia os peixes. Ficamos curiosos e perguntamos: “Como é que o povo Deni descobriu a planta vekama, que faz com que os peixes fiquem tontos?” Os Deni contaram, ainda ali no roçado, a história da menina bonita Mahaniru, que foi assassinada, mas do túmulo dela nasceu essa planta. Os Deni até hoje cantam para Mahaniru antes de uma pescaria. Os Deni e outros povos indígenas contam a história de dois irmãos que recriaram o mundo depois de um dilúvio (Nenhum povo vive mais no paraíso!). Os Deni chamam-nos Tamaku e Kira. Um deles, Tamaku, é muito ordeiro. Seu irmão, Kira, é brincalhão e atrapalhado. É a sabedoria da vida: dois lados aparentemente opostos se complementam. Isso cria uma abertura para o outro e, ao mesmo tempo, uma atitude de humildade frente à opinião e à visão do outro. Um dia, Tunavi Deni sentou-se ao lado da minha rede e contou o mito do pajé, Kapihava, que foi atrás de água: “Não existia água na terra. Depois de uma longa caminhada em direção ao sol, encontrou um sapo grande, Turatura, que pediu ao pajé que ele o matasse para obter água. Ao matar o sapo, surgiram os primeiros rios, o Cuniã e os outros rios.” Tunavi Deni contou a história de uma maneira surpreendente. Às vezes, ele falava de Kapihava, outras vezes substituía o nome de Kapihava pelo nome de Jesus. O professor Ahe Joab Kanamari da aldeia Taquara, no município de Carauari-AM, desenhou o surgimento de Tamaku de uma árvore no início do mundo. O Tamaku do desenho dele parece com o Cristo Redentor de Rio de

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Janeiro abençoando o mundo e vestido com uma batina. No livro dos mitos Kanamari, que elaboramos com os professores, um outro professor desenhou Tamaku dentro da árvore como um indígena pintado como um homem Kanamari. Missionários da Missão Novas Tribos, que trabalham entre os Kanamari no município de Eirunepé-AM, traduziram alguns textos do Novo Testamento e substituem o nome de Jesus pelo nome do recriador do mundo Tamaku. Como se vê, os indígenas não têm dificuldades de inserir Jesus em sua cosmovisão. Tanto os Kulina como os Deni me perguntaram, quando souberam que sou pastor, se podia batizar as crianças. Dei uma resposta negativa: “A minha igreja não existe em Carauari. Não é bom dividir um povo com muitas religiões diferentes”. Deus (Sinukari, Tamaku e Kira) está presente entre os Deni desde o início do mundo. Ele é o mesmo Deus das igrejas cristãs. Os Deni me contaram que muitos já tinham sido batizados durante viagens rápidas de religiosos ou durante visitas dos indígenas às cidades de Itamarati e Carauari. O primeiro religioso que passou nas aldeias Deni foi um pastor estrangeiro, que trouxe, além do batismo de adultos, muita roupa. Depois chegaram os padres e um pastor adventista. Eu sempre coloco no diálogo com os Deni: “Vocês têm Tamaku e Kira. Tamaku e Kira foram criados por Sinukari. Sinukari é o mesmo Deus dos cristãos”. Depois de uma viagem fluvial difícil, mas bem-sucedida, falo, às vezes, sem pensar: “Graças a Deus, graças a Sinukari, graças a Tamaku e Kira!” Só pode haver um único criador do mundo. A Irmã Warna Stelter, da Casa Matriz de Diaconisas da IECLB, trabalhou na área de saúde de 1993 até o final de 1997 com os Kulina do Médio Juruá. Ela contou no dia do seu Jubileu de Prata como diaconisa na Casa Matriz de Diaconisas em setembro de 1996, em São Leopoldo, sobre sua experiência com o povo Kulina: “Um povo que, como todos os povos indígenas destas Américas, foi considerado um povo sem Deus e que, portanto, precisava conhecer a imagem do evangelho. Hoje, depois de quase quatro anos entre eles, tenho mais certeza de que Deus esteve e está entre eles, norteando e iluminando suas vidas”3. O tuxaua Saravi Deni conta como cristãos não respeitaram a cultura indígena. Um pastor chegou à sua aldeia e batizou sua aldeia inteira e

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STELTER, Warna; SCHOULTEN, Cler Regina. Relatório de Atividades do Projeto Kulina Médio Juruá – 1996. Eirunepé, dezembro de 1996, p. 7s. (Arquivo do COMIN).

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proibiu comer quelônios, porcos do mato e peixes sem escamas. O povo não aguentou por muito tempo essas novas leis. A fome falou mais alto. Quando Saravi encontrou o mesmo pastor em Manaus e contou que eles não obedecem mais às novas leis, o pastor falou: “Então vocês vão para o inferno!” A resposta de Saravi foi: “Deus é maior. Foi Tamaku que criou tudo para nós comermos”. Há muitos textos da Bíblia que falam do Deus trinitário já presente no meio deste mundo antes que o missionário tivesse chegado. Na parábola de Jesus a respeito do Juízo Final (Mt 25.31-46) consta que Jesus está presente entre os famintos, sedentos, estrangeiros, doentes, nus e presos, sem que eles ou os solidários com eles o reconheçam. Podemos concluir que, na visão da fé cristã, pode-se considerar que o relacionamento entre os homens é um relacionamento repleto do Espírito Santo, como também todos os sinais de solidariedade desinteressada, toda comunhão, surgida de amor entre pessoas humanas que não fica restrita a si mesma, sem o conhecimento prévio de Cristo. Um canto do hinário do Sínodo da Amazônia expressa assim: “Entre nós está e não o conhecemos”. Para aqueles que socorriam os necessitados, Jesus fala na parábola: “Recebei em herança o Reino que foi preparado para vós desde a fundação do mundo” (Mt 25.34). Outra palavra-chave para um diálogo interreligioso me cativa cada vez mais: “Jesus lhes respondeu: Em verdade, em verdade, eu vos digo, antes que Abraão fosse, Eu sou” (Jo 8.58). Essa palavra provocou a sentença de morte: “Eles colheram pedras para atirá-las contra ele” (Jo 8.58). A Epístola aos Hebreus fala: “Depois de ter por muitas vezes e muitos modos falado, Deus falou-nos a nós num Filho. Por quem, outrossim, criou os mundos” (Hb 1.1+2). A Epístola aos Colossenses fala de Cristo, dizendo que “nele tudo foi criado, nos céus e na terra, tanto os seres visíveis como os invisíveis” (Cl 1.16). O prólogo do Evangelho segundo João, capítulo 1, fala do Verbo no início do mundo, que através dele tudo foi feito e que se fez carne. Foi emocionante a colocação do representante da UNI-AC, o indígena Carlos, durante a avaliação participativa do COMIN em Porto Alegre em 2001, falando para nós luteranos: “Nós também somos filhos de Deus!” Sim, o Deus trinitário já estava e está presente no meio dos povos indígenas antes que qualquer missionário chegasse a eles. Depois da convivência nas aldeias indígenas, comecei a ler trechos da Bíblia com outros olhos. Nas comunidades luteranas testemunhei: os povos indígenas, muitas vezes, me evangelizaram, vendo, por exemplo, a sua vida comunitária, compartilhando sua despreocupação com o 37


acúmulo de bens, sua ‘educação de atenção’ tradicional e a visão diferenciada da relação entre o homem e a natureza. “Se o discurso do mundo ocidental se sustenta na relação de ‘posse’, ‘conquista’ e ‘domínio’, isto é, numa relação onde a concepção de natureza passa a ser mero objeto para o homem, vimos [...] que nas sociedades indígenas as diferentes partes que compõem o universo se interpenetram.”4 Qual é a minha motivação para conviver, para ficar ao lado dos povos indígenas? A motivação é o primeiro missionário, o Deus trinitário, criador do mundo e de todos os povos (Pai), o Verbo Libertador, que se tornou homem para ficar perto da realidade dos últimos cantos do mundo (Filho), e o comunicador, intérprete, tradutor, exegeta, a fantasia de Deus (Espírito Santo), que quer uma humanidade sem muros e fronteiras com um espírito derramado sobre toda a carne (Jl 3.1). Desde o início do mundo, há um diálogo entre Pai, Filho e Espírito Santo. O mundo é levado para dentro desse diálogo através do Filho Jesus Cristo, o Verbo de Deus que se fez carne. O Pai manda o Filho, que manda o Espírito Santo, numa relação dinâmica desde o início do mundo, um diálogo para dentro e para fora. Jesus envia seus discípulos para a Galileia (Mt 28.7-20). Os discípulos têm a tarefa de ir para a Galileia e não ficar em Jerusalém. Jesus lembra os discípulos duas vezes dessa tarefa. Indo para a Galileia, eles vão encontrar o Jesus ressuscitado. A Galileia é o lugar da corrupção, da mentira, da violência, do racismo, do contrabando e do desrespeito ao diferente. A questão indígena é uma das Galileias mais candentes hoje em dia. Nenhuma comunidade que não vai para a Galileia e nenhuma Galileia que não experimenta a presença de uma comunidade cristã! É importante ler não só Mt 28.19, mas também Mt 28.7 e Mt 28.10. Na parábola de Jesus a respeito de um banquete nupcial, o dono da festa manda “ir para as saídas dos caminhos” (Mt 22.9), um convite para todos os que estão na margem da vida: pobres, aleijados, cegos e coxos. É um convite para um banquete de vida (casamento), de alegria. Essa parábola não fala de uma conversão forçada, violenta para um funeral, mas de um convite enfático, insistente, para a festa da vida. Os missionários na Ameríndia interpretaram a

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GIANNINI, Isabelle Vidal. Os índios e suas relações com a natureza, in: Luís Donisete GRUPIONI, Benzi (Org.). Índios no Brasil. São Paulo: Global, 1998. p. 152.

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parábola de acordo com as suas práticas violentas, fazendo uso indevido de Lc 14.23 (“obrigue os que você encontrar ali a virem, a fim de que a minha casa fique cheia”). Não houve diálogo entre a igreja e os povos indígenas. Não nasceu uma igreja indígena. O primeiro passo de um diálogo verdadeiro é ouvir, ouvir e mais uma vez ouvir as vozes dos diferentes povos indígenas, entender suas cosmovisões, seu relacionamento com os espíritos, com as suas sociedades, e ficar solidário com as suas lutas pela dignidade humana, pela autonomia e por seu espaço de vida. Isso significa deixar de lado as nossas projeções em cima do índio, tanto idealistas como negativas, e relativizar a nossa própria cultura (Fp 2.5-11). O apóstolo Paulo fala que “vemos em espelho confuso” (1Co 13.12a). O diálogo verdadeiro “face a face” (1Co 13.12b) é um presente de Deus. Jesus conseguiu livrar-se das projeções falsas e vivia o diálogo aberto com todos “face a face”. Um segundo passo de um diálogo inter-religioso é admitir a ambivalência de todas as religiões (inclusive o cristianismo). Por um lado, todas as religiões articulam as perguntas e respostas da humanidade a respeito do sentido da vida, de onde viemos e para onde iremos. O desejo de uma vida plena, articulada de muitas maneiras e modos, que transcende o mundo real, passageiro, frágil e insatisfatório. Por outro lado, todas as religiões mostram também a ausência de Deus, as injustiças, os sofrimentos dos homens, a angústia da morte e a insatisfação com a falta de harmonia interior e exterior. É necessário, também, ouvir as críticas modernas às religiões (ao cristianismo inclusive) que os enxergam como ilusões, meras projeções humanas. É verdade que com a nossa razão não podemos provar que Deus existe, mas também não podemos provar que Deus não existe. A própria Bíblia critica um certo conceito de religião. Caim mata o seu irmão Abel enquanto pratica religião (Gn 4.1-8). A religião pode tornar-se fanática, violenta e mortífera. Os indígenas presenciavam essa face da religião na figura do colono, soldado e missionário cristão. Todas as religiões têm a ambivalência entre Caim e Abel. Os profetas, Jesus e o apóstolo Paulo denunciam a religião de justificação pelas obras. Os Deni falam de um dilúvio que destruiu o mundo. Os primeiros homens não confiaram no poder do Criador Supremo, Sinukari. Essa desconfiança trouxe o dilúvio e, mais tarde, as pragas, feras e uma vida mais dura. Deus manifesta-se em todas as religiões? Para responder a essa pergunta, temos que ter em mente o pensamento de Anselmo de Canterbury: Deus é 39


aliquod quo nihil maius cogitari possit [Deus é aquilo em relação ao qual não é possível pensar nada maior]. Deus não é um elemento, uma fração do mundo. O mundo, sim, tem vestígios de Deus, que podem ser reconhecidos, pois o mundo é criado. Todas as religiões têm os seus mitos da criação do mundo, da origem do mundo. Mas Deus é Deus, e o mundo não é Deus, e sim a criação de Deus. Segundo a fé cristã, o Deus trinitário preexistente em todas as culturas, religiões e histórias humanas revela-se no Verbo, na Palavra de Deus, em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Com essa Palavra de Deus os mistérios e adivinhações sobre ele têm um fim. A Palavra confirma que o Deus trinitário, preexistente, leva o mundo para dentro de si no seu diálogo. Mas a Deus, segundo a mensagem cristã, encontramos “somente na fé” ou, em outras palavras, “repleto do Espírito Santo”. O conteúdo da mensagem cristã não pode ser constatado e objetivado fora da fé. “A fé vem do ouvir, o ouvir vem da palavra de Cristo” (Rm 10.17). O exclusivismo, o inclusivismo e o pluralismo na teologia das religiões não satisfazem plenamente, considerando o respeito pelo outro e a própria fé no diálogo inter-religioso. 1 – O exclusivismo enxerga o cristianismo como a religião absoluta, com a verdade absoluta. Só através de Cristo e de uma conversão radical se alcança a salvação. As antigas missões dos jesuítas e as missões evangélicas fundamentalistas são exemplos do exclusivismo. Não se via e não se vê nada de positivo na religião indígena, mas ídolos humanos adorados como deuses, uma vida na escuridão, possessa por Satanás e superstições. O mundo de hoje deve estar suficientemente sensibilizado pelos direitos humanos, ideais igualitários e democráticos, que são inspirados em boa parte pela tradição judaico-cristã, contra tal intolerância e totalitarismo. 2 – O inclusivismo da teologia das religiões quer superar o exclusivismo e vê “sementes da verdade cristã” nas outras religiões; por exemplo, são “sementes do Verbo” nas religiões indígenas a partilha, o senso comunitário, a relação dos índios com a natureza e a negação de hierarquias e de líderes com poderes absolutos. Mas, apesar da superação do exclusivismo, esse conceito de “sementes da verdade cristã” nas outras religiões ainda considera o cristianismo superior às outras religiões. Esse conceito não enxerga a sociedade indígena e a sua religião como um sistema integral de uma cultura. 3 – O pluralismo da teologia das religiões supera o exclusivismo e o inclusivismo. Todas as religiões são caminhos verdadeiros, todas elas têm a verdade, 40


são manifestações de uma realidade transcendental, captada por óculos humanos no seu respectivo tempo e lugar. Os grandes líderes e fundadores das religiões são considerados pessoas extraordinárias, aptas a abrir-se para uma realidade transcendental e aptas a concretizar a vontade de Deus. Um representante da teologia pluralista das religiões, John Hick, conclui a respeito de Cristo: It can no longer be an a priori dogma that Jesus is the supreme point of contact between God and mankind.5 No diálogo inter-religioso, segundo essa teologia pluralista das religiões, existe uma perspectiva acima de todas as religiões. Temos que fazer as seguintes perguntas à teologia pluralista: qual é o ponto de partida para uma visão acima de todas as religiões? Através de que chego às conclusões? Através da razão humana? Que critérios tenho para distinguir verdades e não verdades no diálogo? A confirmação indiferente da minha e das outras religiões num pluralismo qualquer, sem ficar atento às inverdades na minha religião e nas outras, além da verdade presente em todas elas, leva a uma tolerância barata na qual não se faz mais a pergunta pela verdade. Devemos entrar sinceramente num diálogo inter-religioso verdadeiro com a essência da nossa própria fé, o Deus trinitário, que se manifesta em sua palavra, Cristo, no qual o mundo foi criado. Importante no diálogo é que Deus já estava presente antes da chegada do missionário cristão. O Não-Saber-de-Cristo não é tão fundamental como o Ser-em-Cristo, que é uma pré-condição humana.6 O Verbo de Deus foi dado para ser passado adiante. O Verbo pode ser passado adiante porque pode ser entendido através do Espírito, que é anterior à chegada do missionário. Por isso o diálogo inter-religioso com os povos indígenas não pode ser impositivo (exclusivismo) ou seletivo, com um ar de superioridade (inclusivismo) ou indiferente (pluralismo). O diálogo mútuo seria descobrir a palavra universal de Deus, manifestada em Cristo, preexistente em todas as religiões, em todas as culturas, cada uma delas em sua integridade. O diálogo é possível porque nenhuma cultura (a religião faz parte da cultura) consegue fechar-se totalmente a o seu próprio futuro. Em cada cultura existe uma abertura

Apud GÄDE, Gerhard. Viele Religionen – Ein Wort Gottes. Gütersloh: Chr. Kaiser/Gütersloher Verlagshaus, 1998. p. 218. Tradução minha: “Não pode ser mais um dogma a priori que Jesus seja o ponto supremo de contato entre Deus e a humanidade”. 6 TAYLOR, J. V. Der Heilige Geist und sein Wirken in der Welt, Düsseldorf, 1977, p. 198. „In-Christus-sein ist eine Urbedingung menschlicher Existenz, die grundlegender ist als das Nichts-von-Christus-Wissen” (ap. G. GÄDE, op. cit., p. 340). 5

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para experiências transculturais. Os povos indígenas mostraram e mostram ao longo da história a capacidade de ficar abertos para o novo sem perder sua identidade. Qual é a função hermenêutica peculiar da mensagem cristã (não do cristianismo)? A mensagem cristã afirma, no diálogo com as outras religiões, a cada uma delas a sua própria verdade sem acréscimos e sua mensagem universal, sem querer intensificar ou diminuir a outra religião. A diferença entre as religiões não é um “mais” ou um “menos” na minha ou na outra religião, mas um “escondido” e um “descoberto”, de tirar um véu do rosto do mundo, também do rosto das religiões na sua ambivalência, inclusive do rosto do cristianismo, que se afastou da mensagem principal de Cristo ao longo da sua história. “Até hoje, quando se lê o Antigo Testamento, esse mesmo véu permanece. Ele não é retirado, pois é em Cristo que desaparece” (2Co 3.14). Um diálogo inter-religioso proposto desse jeito é aberto, surpreendente e enriquecedor, pois o Espírito Santo quer se manifestar nos dois lados, nos dois interlocutores. A pluralidade das religiões não precisa ser extinta para dar lugar a uma religião única. O Espírito Santo fez com que no dia de Pentecostes cada um falasse em sua própria língua (At 2.6). A graça não destrói as peculiaridades culturais e religiosas, que dão testemunho do anseio a uma comunhão vivencial com Deus que vá além de toda compreensão e toda experiência. Mas o Espírito quer nos livrar de um absolutismo trivialmente entendido que se fecha frente a uma solidariedade universal da humanidade e um respeito pelo outro. Esse absolutismo quer impedir que o Espírito faça o que é próprio dele: unir os homens entre si e com Deus.7 O antropólogo Eduardo Viveiros Castro desafia, a nós que hesitamos em entrar num diálogo inter-religioso, tendo em vista a desastrosa história dos 500 anos de missão cristã entre os povos indígenas na Ameríndia. A cruz e a espada andaram juntas. Não houve um diálogo, mas uma imposição de valores de um outro mundo, destruição e diabolização da religião indígena. Não houve diálogo, não houve uma Boa-Nova da Vida, mas a mensagem da morte. Eduardo 7

GÄDE, op. cit., p. 348. Tradução minha: “Die Gnade zerstört nicht die kulturellen und religiösen Eigenarten, die selbst Zeugnis geben von der Sehnsucht nach einer alles Begreifen und alle Erfahrung übersteigenden Lebensgemeinschaft mit Gott. Aber sie will sie erlösen von einer trivial verstandenen Absolutheit, die sich gegen eine universale Solidarität der ganzen Menschheitsfamilie sperrt, die Achtung vor den anderen verweigert und den Geist Gottes an seinem Ureigenen hindern will: Menschen miteinander und mit Gott zu verbinden”.

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Viveiros Castro coloca que os indígenas precisam conhecer a nossa cultura e religião para aprender a se defender: “A gente vive querendo saber em que eles acreditam. Por que eles não podem saber em que a gente acredita? A gente tem apenas que ter uma relação com eles... de uma certa humildade, perceber que a gente não é tão todo-poderoso, que a nossa religião nem é a panaceia para os índios, nem um veneno mortal, um agrotóxico que bastou pulverizar e cai todo o mundo duro no chão... Eles têm que ter uma noção do nosso acervo cultural, eles têm que saber controlar”8. Foi impressionante, na avaliação participativa do COMIN em Porto Alegre (2001), escutar líderes indígenas falar a respeito do diálogo inter-religioso lendo a Bíblia à sua maneira, aplicando a mensagem cristã à sua realidade. Temos que respeitar os povos indígenas que não se sentem atraídos pelo cristianismo ou vivem a sua religião e a religião cristã sem sincretismo, paralelamente. Podemos também nos alegrar quando um índio aceita a mensagem cristã. “O índio não pode perder sua sensibilidade indígena ao abraçar a mensagem cristã. Deverá sentir-se ainda mais radicalmente indígena e experimentar a fé cristã como uma potenciação de seu ser indígena. Esse desafio parece utópico. Mas é na direção dessa utopia que deve tender o caminho do evangelho na história de cada povo.”9 Hoje em dia, não há somente um diálogo inter-religioso entre o cristianismo e a religiosidade indígena que não tem o conhecimento da mensagem cristã ou não quer saber de entrada de igrejas cristãs em suas comunidades. Há um diálogo também entre a mensagem cristã e diferentes denominações cristãs que existem nas comunidades indígenas. Há pastores evangélicos indígenas, monitores, catequistas católicos indígenas em suas comunidades. Às vezes, existem numa mesma aldeia diferentes igrejas cristãs. Há indígenas evangélicos que não querem mais saber da sua tradição e dos seus pajés, há outros evangélicos que conseguem viver a fé cristã e conseguem viver ao mesmo tempo sua religiosidade valorizando os seus pajés. Na pequena aldeia Kanamari Flexal, no rio Xeruã, município de Itamarati/AM, na qual eu também atuo, existe um grupo de Kanamari seguindo as regras da Assembleia de Deus com seus próprios CASTRO, Eduardo Viveiros. O papel da religião no sistema social dos povos indígenas. Cuiabá: GTME, 1999. p. 32-33. 9 BOFF, op. cit., p. 85. 8

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dirigentes de cultos, uma igreja adventista com seu pastor Kanamari e indígenas que não querem largar a sua tradição com seus ritos, mitos e pajés. Esse último grupo não participa dos cultos das duas igrejas evangélicas. Depois de perceber que sua religiosidade foi valorizada por nós obreiros do COMIN, ajudando na elaboração do livro dos seus mitos, os Deni pediram Bíblias da IECLB. Acho que o caminho esteja certo: o evangelho não foi imposto negando a religiosidade e a cultura indígena. Os Deni a leem e a comparam com os seus mitos e descobrem semelhanças e diferenças. O compartilhar dos alimentos, a busca de soluções durante conflitos, a valorização dos velhos e o carinho encontram-se nas palavras de Jesus e na sua cultura. Os Deni vivem e penso que já viviam segundo esses valores, mesmo antes de terem conhecido a Bíblia. Muitos missionários que conseguiram converter indígenas perguntam-se por que muitos indígenas voltam na terceira geração à religiosidade tradicional. A resposta é de que algo faltou na maneira de transmitir o evangelho aos indígenas. Para o pajé, a sua experiência, sua disponibilidade para as diversas manifestações de Deus na natureza é um complemento à mensagem cristã na forma como foi pregada. “O mundo moderno e globalizado nos arrebata a fé, esse bem tão indispensável para a manutenção das nossas utopias. Voltar às nascentes é aprender outras formas de adorar, outros ângulos para contemplar o Criador e não se esquecer das práticas do seu povo; é adorar dessa maneira sem sentir-se pagão ou traidor. Índio vai ao culto, vai à missa, canta, reza, se batiza e batiza os filhos, depois volta e bebe da fonte tradicional, aos pés dos seus sábios. O processo do retorno é assim: cultua-se muito, com outros povos, da forma deles e há sinceridade nesse gesto. Por algum tempo, consegue-se essa nessa multiplicidade de práticas religiosas, em meio à forte correnteza do grande rio. De tempos em tempos, lá estão os índios aos pés dos seus sábios, recebendo deles a mais genuína alimentação, reaprendendo a dialogar, da sua forma original, com o Grande Espírito, a entender o semelhante e a conviver em paz com a natureza. Vivemos num grande rio, mas como um peixe que sobe anualmente até as nascentes para revigorar o espírito e enfrentar os desafios propostos diariamente.”10

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FLORES, Lucio Paiva. Adoradores do Sol; reflexões sobre a religiosidade indígena. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 25-26.

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Há uma bela reflexão de Dóris Kieslich, na época catequista luterana na Prelazia de Tefé/AM (1985-1991), intitulada “Questões teológicas na ação indigenista”, na qual ela se pergunta como proclamar o evangelho de Cristo sem destruir a espiritualidade indígena: “Sabemos que os mitos, histórias, estórias, celebrações, enfim, toda a cultura dos povos indígenas, nas palavras de um teólogo, são como uma grande rede protetora que se estende sobre o mundo geográfico e social do índio. Vemos que cada novo acontecimento de importância, quando incorporado, explicado, acaba sendo como mais um nó dessa rede. Um novo Deus, trazido ao povo, teria um significado tão grande, que a rede não o suportaria. A mesma se romperia, e os índios ficariam ‘desprotegidos’ em sua identidade, em sua autocompreensão. Isso os destruiria, e a história das missões foi de destruição de nações inteiras de índios, justamente porque os missionários romperam a rede. Não gostaria de ser cúmplice na prática do mesmo erro”11. Doris vê o caminho na seguinte maneira: Tem que haver um diálogo de total abertura de troca de saberes. Falando em troca de saberes com os índios, “admito com isso que o índio tem saber... O evangelho sempre vem ao ser humano de forma encarnada. Se levarmos isso bem a sério, poderíamos talvez admitir que o evangelho se encontre encarnado na cultura indígena, mesmo antes do missionário chegar até eles”12. O Espírito de Deus age onde quer. Então isto “encoraja-me a ver nas culturas indígenas a ação do espírito de Deus. As culturas, os ritos, as celebrações, as tradições e as religiões deveriam ser avaliadas a partir do critério da contribuição para a vida digna, abundante, feliz, que Cristo veio trazer”13. Dóris aponta para a distinção luterana da palavra de Deus, que são a Lei e o Evangelho. A lei que regula a convivência dos homens, denunciando injustiça, maldade e violência, e acusa os homens da sua arrogância, autoestima exagerada e orgulho, confiando demais nas suas próprias obras. A lei leva à metanoia, ao arrependimento, à conversão, a uma mudança de mente e atitudes em relação ao Deus da Vida, aos seres humanos

KIESLICH, Doris, Questões teológicas na ação indigenista, Boletim do GTME, Tupari, Cuiabá/MT, setembro de 1992, p. 3. 12 KIESLICH, idem. 13 KIESLICH, idem. 11

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e à natureza. O evangelho anuncia a graça de Deus em favor da vida plena que se revelou em Cristo.14 No meu relatório das atividades, experiências e perspectivas do projeto “Missão entre os Kulina do Médio Juruá de 1988 a 1989”, escrevi no final algo que posso afirmar ainda hoje depois do trabalho com os povos Deni e Kanamari: Ao longo desses anos junto com o povo Kulina, sinto o diálogo cada vez mais rico entre duas maneiras de ver a vida e relacionar-se com ela como um processo integral. Cada vez mais aprendo com esse povo que sabe do mistério da vida, do essencial, da partilha, do respeito à natureza, à criança e ao convívio com outros. Não tenho uma visão romântica. Os Madiha se chamam gente, que nem nós. Eles sabem das suas falhas. Os mitos narram isso. Mas a história foi violenta demais para esse povo e ainda é. Um verdadeiro encontro das duas religiões, das duas manifestações de dar sentido a este mundo se concretizará no momento em que nós deixarmos cair muitos elementos destrutivos da nossa cultura. Eu estou no meio desse diálogo, aprendendo, escutando, descobrindo em longas meditações nas viagens, na aldeia, a mensagem Daquele que está ao lado daqueles que lutam pela vida. Hoje acrescentaria a esse texto o pensamento de Hans-Georg Gadamer sobre um diálogo verdadeiro: “O que perfaz um verdadeiro diálogo não é termos experimentado algo novo, mas termos encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria experiência de mundo”. Precisamos de um novo olhar universal para o diálogo, um olhar entre seres humanos buscando a harmonia entre seus saberes, respeitando suas diferenças e aceitando uma contribuição mútua num contexto de complexidade e complementaridade, em sintonia com os novos paradigmas da ciência e com as necessidades urgentes de uma nova ética. Walter Sass Missão Deni-Carauari/AM, março de 2012

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KIESLICH, idem. “Bom é o que proporciona a vida. Mau é o que aliena, diminui, destrói a vida. A agente de pastoral, no meu caso catequista, desta forma teria e tem a missão de denunciar a ‘não vida’ na cultura indígena e tornar evidente a vida. Denunciar a lei dentro da cultura e trazer à tona o evangelho. Jamais poderá fazê-lo, no entanto, como indivíduo estranho que vem de fora. Deverá fazê-lo inserido na cultura, de forma comunitária e com o povo. Caso contrário, se tornará novamente dominador, definindo a Lei e o Evangelho não a partir da vida, mas a partir de sua visão, da sua cultura, das suas pressuposições, da sua identidade cultural.”

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Frank Tiss nasceu em 02 de março de 1966, na Alemanha. Formação: Cursou Teologia no Seminário de Missão em Hermannsburg/Alemanha de 1985 a 1991. Seu vicariato foi em Uelzen/Alemanha, e de 1992 a 1993 em Ibirama/SC. Atuação Profissional: Trabalhou pelo COMIN com o povo Kulina no sul do estado do Amazonas entre 1994 e 2009. Acompanhou a autodemarcação de terras, dedicou-se à formação de professores indígenas e ao estudo da língua Kulina. Trabalhou intensamente no combate ao alcoolismo e realizou junto com os Kulina uma série de seminários na área do diálogo inter-religioso. Desde meados de 2009 está na Alemanha: atua voluntariamente na Igreja Luterana, dá palestras sobre missão em solidariedade e diálogo inter-religioso. Publicações: Coordenou o periódico “Titihade” – mídia própria na língua Kulina. Escreveu uma série de artigos e entre os livros publicados destacam-se a Gramática da Língua Madiha/Kulina (Oikos, 2004) e Nehekomaneza ikha madie tobikani kha wima (Oikos, 2007).

Walter Werner Paul Sass nasceu em junho de 1949 em Wolfsburg, Alemanha. Formação: Cursou Teologia no Seminário Missionário em Hermannsburg entre 1966 e 1973. Fez Mestrado em Teologia (Novo Testamento) na Universidade de Hamburgo entre 1974 e 1976. Seu vicariato foi em Miami Beach/Flórida e sua ordenação ocorreu em Fintel/Alemanha. Atuação Profissional: Entre 1979 e1984 assumiu o pastorado (na IECLB) em Ariquemes e Ouro Preto nas Novas Áreas de Colonização, atendendo também comunidades luteranas no Acre, Amazonas e Roraima. Entre 1985 e 1991 trabalhou com o povo Kulina no Médio Juruá/AM. Entre 1992 e 1998 assumiu o pastorado em Stapel/Alemanha. Voltou ao Brasil em 1998 e, a partir de então, está atuando pelo COMIN junto ao povo Deni no Médio Juruá/AM. Publicações: É autor de diversos artigos e organizador de vários livros, entre os quais Nossa Casa da Vida: Atsowa hak itsonem warahonem-Arikha uza tukhiraria zama iphuharu, o Universo no olhar Deni e Kanamari (Oikos, 2012), Nossa Língua Deni, Cartilha de Alfabetização e Textos de Leitura (Oikos, 2010), Tâkuna, Nawa Bûh Amteiyam Amkira, Mitos Kanamari (Oikos, 2007), Mitos Deni (Oikos, 2004).

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Publicações da série Cadernos do COMIN: 1. A máscara Índia de Deus – COMIN, 1992 2. Panderej: os peritos no arco – Ismaier Tressmann, 1993 3. Madija: Resistindo a partir da cultura – Nelson Deicke, 1994 4. Os Povos Indígenas e o Estado brasileiro: traços de um massacre físico, cultural e jurídico – Mozar Artur Dietrich, 1995 5. Arete: as festas ou o tempo verdadeiro dos Guarani – Graciela Chamorro, 1996 6. Solidariedade que resiste e transforma: diante das mudanças globais, qual o novo papel dos povos indígenas e das organizações de apoio na luta pelos direitos indígenas? – COMIN, 1997 7. Diagnóstico da população Mbyá-Guarani no sul do Brasil – Ivori Garlet e Valéria S. de Assis, 1998 8. Os Guarani: sua trajetória e seu modo de ser – Graciela Chamorro, 1999 9. Culturas e Tradições Religiosas: implicações para o ensino religioso – Cledes Markus, 2002 10. Políticas públicas para uma educação escolar indígena diferenciada – Bruno Ferreira, 2012

Observação: Disponíveis apenas os volumes 9 e 10: Culturas e Tradições Religiosas: implicações para o ensino religioso e Políticas públicas para uma educação escolar indígena diferenciada.

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