Uma Ponte entre Mundos. Missão da IECLB entre Indígenas Hans Trein (Org.)

Page 1

O COMIN é um processo de longo prazo que acompanha os povos indígenas em busca de uma vida digna e com pleno gozo de seus direitos. Sua “missão” é promover protagonismo, transformação e reconciliação nesse campo, de modo que uma história dolorosa, repleta de atrocidades e uma situação presente repleta de suspeição, rejeição e preconceitos levem a uma convivência com respeito pela diversidade e pelo outro. Desta forma, o COMIN torna-se uma expressão muito específica e singular da visão teológica do conceito de missão da Federação Luterana Mundial (FLM), esboçado em seu documento intitulado “Missão em Contexto”. O compromisso do COMIN com os povos indígenas, suas opções estratégicas e seu marco conceitual, bem como seu caráter transformador, particularmente também dentro da igreja, são uma forte contribuição para a comunhão da FLM em seu conjunto. Martin Junge Secretário Geral da Federação Luterana Mundial

Uma ponte entre mundos 50 anos de missão da IECLB entre indígenas


Conselho de MissĂŁo entre indĂ­genas

3


Coordenação geral Hans Alfred Trein Edição e organização de textos e fotografias Ingelore Stark Koch e Susanne Buchweitz Projeto gráfico Lavoro Comunicação e Marketing Fotografias Arquivo Comin, Arquivo PPM, Martin Backhouse, Rogério Link, Walter Sass Apoio Igreja Evangélica Luterana da Baviera – FA-KED

www.comin.org.br

I19g

Ide, Hans-Ullrich A gente pega junto : protagonismo na agricultura familiar / Hans-Ullrich Ide. – Porto Alegre : [s.n.], 2008. 116 p.

1. Agricultura familiar. 2. Agroecologia. 3. Justiça social. 3. Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor. 4. CAPA. I. Título.

CDU 631

Catalogação Evelin Stahlhoefer Cotta – CRB 10/1563 4

5


Mistérios da mata Um coletor de castanha da Amazônia saiu de madrugada. Na mata, começou juntar ouriços. Lá pelo meio dia, escutou algo esquisito. Conhecia bem a mata, mas aquele barulho era estranho... Limpou o suor da testa e escutou... Agora ouviu bem... um “crá, crá, crá” rápido, seguido de um “bjiiiiii”. O barulho logo se repetia: “crá, crá, crá, bjiiiiii”. Ficou muito curioso. Queria ver o que era aquilo... Afinal, já ouvira diversas histórias da mata e de seus mistérios, mas nunca um barulho daqueles. Aproximou-se lentamente. Quando olhou, entendeu o que se passava. Uma cutia roia um ouriço de castanha. Como é muito duro, seus dentes esquentavam. Ai ela enfiava a boca na água. Esta história mostra a animação dos coletores de castanha na época da coleta. Em grande parte da região denominada hoje Amazônia – onde as matas e castanheiras foram substituídas pelo boi – só ficaram algumas histórias, cada vez mais distantes e mais raras de se ouvir. Em outras partes, no entanto, ainda se vive experiências desse tipo... É preciso trabalhar pela preservação das matas, da vida, e pela conservação das histórias. Nelson Deicke Teólogo e enfermeiro, obreiro do COMIN, Ji-Paraná (RO)

6

7


Apresentação

Introdução

Cinquenta anos de contínua Missão entre Indígenas da e na IECLB. A presente publicação inaugura a justa celebração desse jubileu, durante o ano de 2011. Convidamos a lembrar dessa história, a celebrar o serviço prestado e a projetar a sua continuidade com apoios e aprendizados.

O presente livro é resultado de um grande mutirão. Durante sua construção ficou evidente que tem muito mais assunto do que páginas disponíveis. Para que o livro não se tornasse um grosso bloco indigesto, a Diretoria do COMIN optou por tematizar a atualidade da missão entre indígenas. Entretanto, a partir do grande número de contribuições que foram surgindo, sobretudo aquelas que trazem dados e ricas informações históricas, decidiu-se criar mais um livro, uma obra aberta, um livro virtual na página eletrônica do COMIN. Através desse meio moderno e de amplo alcance estamos propondo uma solução inovadora: uma democrática e coletiva reconstrução histórica da Missão entre Indígenas da IECLB, com uma acessibilidade ajustada ao nosso tempo. Assim, tanto este livro impresso quanto a coletiva reconstrução da história no livro virtual são partes de um processo de (re)mobilização de pessoas e recursos em favor da missão entre indígenas da IECLB. A sua participação é muito benvinda! O desenho atual da Missão entre Indígenas da IECLB inicia com uma contextualização histórica que relembra, em largos passos, marcos importantes do período jubilar. Seguem abordagens dentro dos eixos temáticos que fazem parte do Plano Estratégico do COMIN, contendo informações e reflexões sobre sustentabilidade, terra, educação, saúde e organização própria. Esses eixos temáticos que embasam o trabalho com as comunidades indígenas são perpassados por transversalidades com destaque para o diálogo interreligioso, a questão de gênero e o desafio ambiental. A sequência dos textos mistura artigos de fundo com depoimentos mais breves de indígenas, parceiros/as do exterior e reflexões teológicas, para que sua leitura seja mais agradável. Trazemos também um extrato de um estudo de impacto do trabalho do COMIN realizado por Pão para o Mundo, como ilustração para a seriedade e a atenção à contribuição de fato que o COMIN da IECLB comporta. Nossa publicação encerra com a homenagem a algumas personalidades históricas – que faz a ponte para o livro virtual na página eletrônica do COMIN. Uma lista mais detalhada e aberta de pessoas que participaram de 50 anos de caminhada fará parte do livro virtual, pois não houve mais tempo para pesquisar e dar-lhe um formato adequado. Convidamos para participarem com dados, fotografias, artigos, crônicas e “causos” que descrevam com mais suficiência e detalhes o que foi a Missão da IECLB entre Indígenas nos últimos 50 anos.

Muitas pessoas construíram a Missão entre Indígenas. Houve empenho de ministros e ministras ordenadas da igreja e de profissionais das áreas de educação, saúde, agricultura e administração, que superaram condições adversas para contribuir nesse serviço. Em 50 anos, a Missão da IECLB entre Indígenas andou por diversos caminhos. A situação dos povos indígenas mudou muito, como também mudou o enfoque da sociedade brasileira sobre os povos originários. A garantia de direitos indígenas ganhou status na Constituição Federal de 1988. O Estado brasileiro foi desafiado a realizar políticas públicas para corresponder à nova realidade. Os povos indígenas avançaram em sua organização própria. Também mudou a missão, suas concepções e seus métodos. Contradições, novos reconhecimentos e aprendizados foram companhia permanente nessa caminhada. Nesses cinquenta anos a IECLB apoiou solidariamente os povos indígenas de múltiplas maneiras, mas também muito aprendeu da sua sabedoria. Por exemplo, no cada vez mais indispensável cuidado que devemos ter para com a natureza, criação de Deus, da qual fazemos parte como pessoas, todas nós, indígenas e não-indígenas, criadas à imagem de Deus. Dr. Walter Altmann Pastor presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)

Ms. Hans Alfred Trein Teólogo, coordenador do COMIN, São Leopoldo, RS 8

9


Histรณria 10

11


As conquistas, Barbados e a Constituição Brasileira

Animais e divindades Para ilustrar que a idéia de que seres humanos são só as pessoas que pertencem ao nosso grupo particular – o etnocentrismo – é universal, o antropólogo Lévi-Strauss contou a seguinte estória: “Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de inquérito para investigar se os indígenas tinham ou não uma alma, estes (os indígenas) se dedicavam a afogar os brancos que aprisionavam, a fim de verificar, por uma demorada observação, se seus cadáveres eram ou não sujeitos à putrefação”. Em uma de suas reflexões sobre este caso, Lévi-Strauss acentua a diferença existente entre as perspectivas: “... em suas investigações sobre a humanidade do Outro, os brancos apelavam para as ciências sociais, os índios, para as ciências naturais; e se os primeiros concluíam que os índios eram animais, os segundos se contentavam em desconfiar que os brancos fossem divindades” (citado de acordo com Viveiros de Castro, Perspectivismo e multiculturalismo na América indígena, p. 369).

Ainda que demorada, a mudança de foco por parte de setores da sociedade, da academia e das igrejas dos colonizadores permitiu que os povos indígenas passassem de objetos a sujeitos, de tutelados a autônomos.

Os deuses caídos Após a chegada dos conquistadores no Brasil, nos 500 anos que se seguiram, os indígenas, por tudo o que sofreram, vieram a descobrir que os brancos eram “divindades” do inferno e “deuses caídos”: • Dos cerca de 5 milhões de índios existentes em 1500 no Brasil, restavam apenas 150 mil na década de 1950. O desaparecimento de milhões se deu por meio 12

13


No trabalho junto aos povos indígenas, ao crescer o diálogo e a interação com as comunidades indígenas, idéias e convicções teológicas foram postas em dúvida e começaram a surgir perguntas e questionamentos.

14

de matanças sistemáticas, escravização e doenças trazidas pelos colonizadores; • Foi-lhes negado o status de ser humano, ora por bulas papais, ora por decretos do rei de Portugal. Qualquer lei da Igreja ou do Estado favorável aos indígenas era simplesmente desconsiderada, pois nenhum dos dois tinha forças de impô-la; • Foi-lhes negado o direito de continuarem a ser o que eram: o direito de falarem suas línguas, de viverem de acordo com os seus costumes, organizações sociais, tradições, culturas e religiões; • Foram roubados de sua cidadania e condição de seres humanos adultos, pensantes e politicamente autônomos e, no decorrer dos séculos, transformados em pedintes, dependentes e tutelados; • Foram expulsos e roubados de seus espaços existenciais, de seus territórios e terras; • De povos e etnias autônomas e livres, com os quais o império português chegou a assinar tratados, passaram a ser tutelados, tratados como crianças e incapazes; • Durante quase 500 anos prevaleceu o projeto de “integrar os povos indígenas na sociedade nacional”, sem considerar a sua vontade, a sua identidade e cultura.

A resistência indígena Nos últimos 500 anos, os povos indígenas tiveram que usar toda a sua humanidade – mesmo que a condição de seres humanos lhes fosse negada – para fazer frente aos invasores. Como forma de resistência, promoveram guerras e revoltas, fizeram alianças e acordos, opuseram-se à escravização, preferindo, muitas vezes, a morte. A resistência incluiu a fuga para regiões de difícil acesso aos colonizadores e, quando necessário, o disfarce de suas identidades como indígenas e a representação do papel de “caboclos”, escapando assim do preconceito e da perseguição. Através da manutenção das culturas, línguas, religiões, ritos, tradições e jeitos de ver o mundo, resistiram até onde foi possível e não abriram mão de pensar com a própria cabeça e de lutar pelo direito à própria identidade. Ainda que demorada, a mudança de foco por parte de setores da sociedade, da academia e das igrejas dos colonizadores permitiu que os povos indígenas passassem de objetos a sujeitos, de tutelados a autônomos. Na conquista e na elaboração das ideologias, teologias, filosofias e das bases econômicas, financeiras e legais que a sustentaram, a igreja, a academia e a sociedade tiveram decisiva participação. Se para a igreja os povos do Novo Mundo

eram objetos de conversão e caridade, para a academia eram objetos de pesquisa e estudo e para a sociedade não indígena, objetos de exploração econômica e dominação sexual e cultural. Para os poucos setores da igreja, academia e sociedade que ficavam sensibilizados com o sofrimento imposto às pessoas indígenas, o objetivo maior continuava sendo a sua integração pura e simples na sociedade nacional, o mais rápido e o menos traumaticamente possível. A idéia de uma sociedade multicultural, multiétnica e diversa era estranha. O caminho que levou a mudanças no relacionamento com os povos indígenas foi longo. Muito tempo se passou até que as pessoas indígenas deixassem de ser vistas como animais e objetos e passassem a ser consideradas pessoas humanas e sujeitos com culturas diferenciadas. Ainda que a sociedade brasileira seja multicultural e multiétnica em si, a aceitação da idéia da participação dos povos indígenas e suas diferentes culturas foi especialmente difícil no Brasil. A luta pela hegemonia e pela dominação é a chave para compreender o problema. Somente a insistência por parte dos povos indígenas em continuar a falar suas línguas maternas, em manter suas culturas e formas de organização social, em construir e reconstruir suas identidades, em fincar as raízes em suas terras, nos últimos 500 anos, tornou possível a troca de paradigma, a conversão de importantes setores da sociedade, da academia e da igreja.

Em 1979, a partir das mudanças de paradigmas teológicos e o aumento do número de estudantes de teologia e do magistério, a questão indígena foi incluída entre as cinco prioridades da IECLB.

Declaração de Barbados A Conferência de Barbados aconteceu em janeiro de 1971 e foi promovida pelo Conselho Mundial de Igrejas e pelo Departamento de Etnologia da Universidade de Zurique, Suíça. Na oportunidade, foi lançada a Declaração de Barbados I, um resumo e sistematização das reivindicações dos povos indígenas das Américas e do reconhecimento dos erros e sofrimentos provocados pela conquista e colonização. O documento passou a ser um dos mais importantes marcos históricos que indicam a troca de paradigma. Nesta declaração propõe-se, entre outras questões: Que os Estados nacionais garantam aos povos indígenas: • O direito de viver de acordo com a sua organização social, costumes, lín15


A fé luterana, que liberta, compromete e se dispõe ao diálogo, continuou a ser a norma pedagógica e metodológica. Agentes de mudança são as comunidades indígenas, o COMIN é entidade de apoio e assessoria.

guas, crenças e tradições. • Os direitos originários (direitos anteriores à fundação dos estados nacionais) sobre as terras que tradicionalmente ocupam e a sua demarcação como terras inalienáveis de uso coletivo. • O direito à cidadania plena.

Que as missões religiosas: • Respeitem as culturas, crenças, costumes, tradições e as formas de organização social dos povos indígenas, deixando de transformá-los em objetos de conversão e caridade. • Abram mão do projeto de assimilação e integração. • Acabem com a concorrência entre si e parem de produzir cisões daí decorrentes entre os diferentes grupos indígenas. • Suspendam todas as práticas de remoção e deslocamento do todo ou de partes de grupos indígenas. • Façam uma avaliação crítica e profunda de suas práticas missionárias. Que as universidades, em especial as ciências antropológicas: • Parem de transformar os povos indígenas em simples objetos de estudo e pesquisa a serviço do projeto colonizador. • Deixem de lado a hipocrisia que consiste em desvincular o estudo e a pesquisa da luta concreta pela sobrevivência dos povos indígenas. • Assumam o compromisso de apoiar os povos indígenas em suas reivindicações pela restituição de seus direitos à sua cultura e organização social, à terra de ocupação tradicional, à cidadania. A Constituição Federal de 1988 Algumas das mais importantes idéias presentes na Declaração de Barbados de 1971 foram assumidas pelo Brasil na sua Constituição de 1988, que afirma: Art. 231: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à

16

preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes [...]. § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis [...]. Art. 232 - Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

Caminhada da IECLB em sua relação com os povos indígenas O assentamento de agricultores alemães aconteceu, via de regra, em terras que eram áreas de coleta e espaço existencial para diversos povos indígenas. Algumas colonizações foram realizadas em regiões onde as comunidades indígenas já haviam sido expulsas; em outras, o processo de expulsão e extermínio aconteceu no decorrer do assentamento dos colonos. Houve confrontos e mortes dos dois lados, mas em algumas regiões as comunidades indígenas foram violentamente perseguidas e chacinadas. A luta pelo mesmo espaço existencial, política implementada pelos governos imperial e republicano, transformou dois grupos marginalizados em inimigos. Os primeiros atos de piedade cristã e solidariedade de famílias luteranas consistiram no acolhimento de crianças indígenas órfãs que sobreviveram aos massacres. As primeiras tentativas mais institucionais de fazer missão junto a comunidades indígenas aconteceram nas décadas de 1890 e 1900. Uma delas foi a do pastor Wilhelm Hägeholz, que atuou entre 1897 e 1901 em Indaial e Timbó (SC). Ele escreveu no Sonntagsblatt für die Evangelischen Gemeinden in Santa Catarina, de 12 de novembro de 1899: ”... Há vozes que pleiteiam o total extermínio desses remanescentes (de Xokleng no Alto Vale do Itajaí), que tanto apavoram os colonizadores. Eu digo: Não! Não vamos lá com guerra, com armas de fogo e espadas, mas vamos levar-lhes amor e vida. Vamos ajudá-los a experimentar vida plena – vamos cristianizá-los. Aos que argumentam, que os selvagens, o terror das selvas, não devem ser considerados humanos e por isso não ter direito à vida, eu digo: Eles têm direito à vida, sim. Eles também são criaturas de Deus...

Quando o Outro deixa de ser prisioneiro dos meus medos e preconceitos e passa a ser pessoa, o diálogo é possível e, através do diálogo, o crescimento, o aprendizado e o respeito mútuos.

17


18

19


Para concretizar essa ação missionária, precisamos dar os seguintes passos: 1) Muita oração; 2) Fundar sociedades missionárias nas principais comunidades evangélicas no Brasil; 3) Criar uma Associação Central dessas sociedades missionárias; 4) Realizar festas de missão e, através das pregações, incentivar o serviço missionário e destinar ofertas e doações para esse trabalho; 5) Depois da formação de um Fundo de Missão, requerer o envio de missionários de uma Sociedade Missionária da Alemanha; 6) Esses missionários terão que aprender a língua dos botocudos e familiarizar-se com os seus costumes. Isso é viável através de bugres mansos que já vivem entre os brancos; 7) Negociar com o Governo do Estado a cessão de terras para o assentamento dos bugres; 8) Isso feito, pode iniciar o trabalho missionário” (citado de acordo com a tradução do pastor emérito Nelso Weingärtner, em Anuário Evangélico 2010, páginas 142 e 143). O pastor Wilhelm Hägeholz teve que retornar a Alemanha em 1901 e o projeto missionário junto aos Xokleng não foi realizado. Planos semelhantes foram desenvolvidos no Sínodo Riograndense, onde, entre 1900 e 1904, queriam atuar ou atuaram de fato, por curto período de tempo, o pastor Bruno Stysinski e os missionários Curt Haupt e Otto von Jutrzenka. No entanto, somente no final dos anos 50 e inícios dos anos 60 do século passado a iniciativa de um trabalho junto a povos indígenas foi retomada, no rio Arinos, Mato Grosso, com os Rikbaktsa (Canoeiros), entregue à missão da Igreja Católica em fins de 1960, e em Guarita, Rio Grande do Sul, junto aos Kaingang, que existe até hoje. Diz a sabedoria popular que as abóboras vão se ajeitando no andar da carroça. No trabalho junto aos povos indígenas, não foi diferente. No diálogo e na interação com as comunidades indígenas, idéias e convicções teológicas foram postas em dúvida e começaram a surgir perguntas e questionamentos. O pastor Friedrich Richter, em seu livro Die Índios vom Verborgenen Fluss, Freimund Verlag, Neuendettelsau, 1982, avalia: “Será que nosso trabalho no rio Juruena foi em vão? Teve algum sucesso? Com qual critério se mede o sucesso desse trabalho? Existe realmente algum trabalho de sucesso com índios? Talvez a pergunta também esteja formulada de maneira errada. Será que esse trabalho foi realmente, pelo menos um pouquinho, necessário? Hoje – ao observá-lo à distância – posso dizer que sim, sem hesitar. Cada ação junto aos indígenas, para fazer o bem, é uma ação necessária, há tempos. Neste sentido, o trabalho no Córrego Escondido não foi em vão para quem estava lá, mesmo que ele tenha acontecido com muitos sacrifícios. Me alegro hoje que, finalmente, a nossa igreja brasileira tenha reconhecido e assumido seus deveres e suas responsabilidades para com 20

os indígenas, cujos direitos ainda não são reconhecidos. Os índios, todos, são também nossos irmãos” (citado de acordo com a tradução do pastor Walter Sass). Decisivo para o trabalho junto aos Kaingang em Guarita foram: • A criação da escola bilíngüe e a formação de monitores indígenas bilíngües, um sinal inicial de respeito pela cultura Kaingang e a valorização de sua língua. • A criação de um Conselho de Missão para fazer a relação entre as duas frentes missionárias e a diretoria do Sínodo Riograndense e a formação do Círculo de Amigos da Missão nas comunidades, através do qual as comunidades luteranas começaram a se envolver na questão indígena e no seu financiamento. • O início do empenho pelo não-arrendamento das terras indígenas Kaingang de Guarita e a luta pela saída e pelo reassentamento dos colonos em outros lugares, que pode ser considerado o início da retomada de suas terras pelos Kaingang. O envolvimento e o diálogo com os povos Rikbaktsa, no Mato Grosso, e Kaingang, no Rio Grande Sul, juntamente com as mudanças dos paradigmas teológicos nos anos 70 e o aumento do número de estudantes de teologia e do magistério, tiveram quatro consequências importantes: • Em 1979, a questão indígena foi incluída, pelo Conselho Diretor, entre as cinco prioridades da IECLB. • Cada vez mais estudantes, professores(as) e pastoras(es) optaram por se engajar na causa dos povos indígenas. • O diálogo com as comunidades indígenas levou a que assessorias antropológicas e etnológicas e o estudo de línguas indígenas se tornassem gradativamente indispensáveis. • O trabalho foi ampliado para junto de outros povos indígenas. Estas mudanças exigiram a criação de um conselho mais amplo. Por isso, em 1982, foi criado o COMIN, com quatro tarefas principais: • Assessorar o Conselho Diretor nas questões relativas aos povos indígenas. • Apoiar obreiros e obreiras nos campos de trabalho junto aos povos indígenas. • Coordenar e administrar os projetos, alocando recursos, encaminhando relatórios e prestações de contas. • Mediar a questão indígena para dentro das comunidades da IECLB, da sociedade nacional e Igrejas e entidades parceiras no exterior. 21


A partir de 1989 foi instalada uma secretaria executiva em tempo parcial para coordenar o trabalho e a execução destas tarefas. Em 1992 a secretaria executiva e coordenação passaram a trabalhar em tempo integral, e o número de campos de trabalho passou de cinco para oito em 1998. As abóboras foram se ajeitando no andar da carroça. Com a inclusão do direito dos povos indígenas a sua cultura e organização social, às terras de ocupação tradicional, à cidadania plena e diferenciada na Constituição Federal de 1988, esta passou a ser necessariamente a norma legal e jurídica de todo o trabalho do COMIN junto com povos indígenas. Ainda, o Reino de Deus como vivido e anunciado por Jesus Cristo na Bíblia ficou sendo ponto norteador, horizonte de trabalho do COMIN e ponto de partida para o diálogo intercultural e interreligioso com os povos indígenas. A fé luterana, que liberta, compromete e se dispõe ao diálogo, continuou a ser a norma pedagógica e metodológica. Agentes de mudança são as comunidades indígenas, o COMIN é entidade de acompanhamento solidário. Quando o Outro passa a ser pessoa e deixa de ser prisioneiro dos meus medos e preconceitos, o diálogo é possível e através do diálogo o crescimento, o aprendizado e o respeito mútuos. É o primeiro passo rumo a uma diversidade reconciliada, pressuposto para uma sociedade multicultural e pluriétnica, de fato já existente no Brasil, e para uma sociedade mais justa, igualitária e condizente com o Evangelho, ainda por construir. Não vai ser fácil, mas é o único caminho possível, se a missão da Igreja quiser continuar a ter o Reino de Deus como seu horizonte.

Arteno Spellmeier Teólogo, ex-coordenador do COMIN, São Leopoldo (RS)

Sustentabilidade 22

23


Avati etei – o milho verdadeiro As sementes ajudam manter e perpetuar a vida. Assim como a vida humana nasce no ventre materno, a semente germina no ventre da terra, cresce, dá flores e produz novas sementes... Novas vidas.

24

Desde o princípio da humanidade, a história das sementes está intimamente associada à história dos povos tradicionais. A diversidade cultural sempre interagiu, através do tempo, de maneira dinâmica com a diversidade biológica. Na cultura guarani, guardar sementes, em especial as do milho – denominado como avati etei, milho verdadeiro –, tem um significado importante. O milho significa para os Guarani não só um alimento físico, mas também espiritual. Além de servir de diversas formas na base alimentar da comunidade, está relacionado a um dos mais importantes ritos religiosos que acontecem anualmente nas aldeias. O Nhemongaraí – ou batismo do milho – acontece por ocasião da sua colheita, quando são revelados e distribuídos os nomes em língua guarani às crianças da aldeia. Para que sejam atribuídos os nomes às crianças, os pais levam até a opy – a casa de rezas – alguns elementos simbólicos que devem estar presentes no Nhemongaraí. Dentre esses elementos está o mbojape, um tipo de alimento preparado com farinha de milho e água, assado nas cinzas de uma fogueira. O mbojape só pode ser feito com sementes de milho guarani. Por isso, comer desse milho fortalece não somente o corpo de cada indivíduo, mas o corpo da comunidade como um todo. Neste sentido, o cultivo do milho avati etei é indispensável para a manutenção das tradições, assim como a manutenção dos sistemas de cultivo está intimamente relacionada à função religiosa e social. As espigas de milho guarani são armazenadas no interior das casas, onde sempre é destinado um local para o fogo, que se mantém aceso dia e noite. É sobre a fumaça da fogueira, pendurados próximos ao teto das casas, que os cultivares

selecionados são mantidos até o próximo ano agrícola. Os Guarani não estão preocupados em produzir grandes roças, mas sim em perpetuar as plantas verdadeiras da cultura criadas por Nhanderu, que é o Deus Guarani, ou Nosso Pai, criador do mundo, das plantas, dos animais, dos lugares. Atualmente, mesmo diante do problemático contexto fundiário, escassez de terras e de recursos naturais, domínio de um modelo agrícola produtivista, ameaças de contaminação das sementes por variedades híbridas e geneticamente modificadas, perda de direitos pelo patenteamento de material genético e apropriação de conhecimentos associados, a agricultura guarani continua a subsistir por estar vinculada à esfera mais íntima de sua cultura – a religiosidade. Frente às diversas ameaças, principalmente com a liberação do uso de sementes transgênicas de milho que, pelo seu sistema de polinização aberta e cruzada facilitam a contaminação dos milhos tradicionais, a luta em defesas das sementes nativas e crioulas tornou-se símbolo da luta pelo direito à vida e pelo respeito à diversidade com autonomia, independência, segurança e soberania alimentar. Ainda mais, recuperar as sementes nativas possibilita o reencontro com a identidade, a história, o sagrado, a religiosidade, a cultura. Uma aprendizagem exemplar de equilíbrio na relação sócio-ambiental-espiritual praticada por estes povos. A mobilidade espacial está expressa na organização sociocultural dos Guarani e no funcionamento de seu sistema agrícola de forma com que a diversidade de cultivos e cultivares nas roças familiares apresenta-se dinâmica no tempo e no espaço. A prática deste processo migratório de caráter mítico-religioso faz que, entre as aldeias, se continue a manter, fortalecer e criar relações de parentesco (a visitação entre parentes), a troca de materiais e sementes, práticas produtivas tradicionais, fluxo e partilha de informações e aconselhamentos, trabalhos de cura, entre outros. Ações muito simples, porém de grande importância por serem atitudes de resistência, são as práticas de troca-troca de sementes entre agricultores indígenas e a construção de casas das sementes, que promovem a manutenção e recuperação de sementes nativas.

O cultivo do milho avati etei é indispensável para a manutenção das tradições Guarani, assim como a manutenção dos sistemas de cultivo está intimamente relacionada à função religiosa e social.

Manuel Palazuelos Ballivián Zootecnista, obreiro do COMIN, Tenente Portela (RS)

25


Nossas raízes dão vida No seu mito de origem estão os irmãos Kamé e Kanhru, criadores de tudo que existe. A partir deles e da sua criação o mundo divide-se em duas metades, duas marcas: Kamé (comprida) e Kanhru (redonda). Este sistema dualista define o pertencimento de cada Kaingang logo que nasce.

26

Contar sobre a família indígena somente é possível dentro e a partir do povo indígena, neste caso o povo Kaingang. As famílias fazem parte do todo. São o próprio povo, com sua cultura e história. O líder kaingang, Jaime Alves, da aldeia Lomba do Pinheiro em Porto Alegre (RS), expressa isto muito bem: ”A nossa história é a história de todos Kaingang. Ela tem muita riqueza, mas tem também muita violência contra nossos antepassados. Muitos foram mortos. Cortaram a árvore e até o toco, mas não cortaram as raízes. Nós estamos aqui. Nossos velhos viviam em coletividade e nós continuamos vivendo assim. O que contempla ou prejudica uma aldeia, uma família ou um parente, contempla ou prejudica a todos nós Kaingang.” Práticas do dia a dia, nas aldeias ou fora delas, relatos de mulheres e homens, registros e estudos de várias áreas do conhecimento, especialmente interdisciplinares, mostram que o povo indígena Kaingang reconstrói constantemente seu sistema sociocultural. Apresentam concepções e valores próprios, apesar de viverem em espaços urbanos, muitos deles construídos sobre território tradicionalmente ocupado por Kaingang. Um exemplo é a cidade de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. O processo de reconstrução é dinâmico e envolve estratégias. A mudança e a resistência andam juntas. Através de ações e reações internas e externas, atualiza-se, mantendo sempre traços da cultura tradicional. 27


O nascimento e acompanhamento de novos seres é motivo de profundo compromisso e de muito cuidado. Isto vale para sempre e para todos os seres vivos. Esta sociedade indígena entende que a criança é e será o que é seu pai e foi o seu antepassado.

Como nossos antepassados Desde sua origem e ainda hoje, o povo Kaingang relaciona-se e organiza-se a partir de duas metades. No mito de origem estão os irmãos Kamé e Kanhru, criadores de tudo que existe. A partir deles e da sua criação, o mundo divide-se em duas metades, duas marcas: Kamé (comprida) e Kanhru (redonda). Este sistema dualista define o pertencimento de cada Kaingang logo que nasce. Também outros seres do universo e da cosmovisão deste povo estão organizados assim. Em cada marca há características físicas e de jeito de ser, de caráter. Neste sistema, famílias criam alianças, cooperam entre si, brigam, afastam–se, convidam para morar na aldeia ou pedem para se retirar. Em termos de parentesco, pertencer a uma mesma marca é ter características físicas e de caráter comuns. Estes/as são parentes, primos ou irmãos/ãs. Os/as que não pertencem a esta marca são considerados/as como cunhados/as. A pessoa pertencente a uma marca deve casar, preferencialmente, com alguém da outra marca. Para compreender a família kaingang é importante saber que as crianças, meninas e meninos, herdam a descendência do pai. Quando o pai é Kanhru, por exemplo, os filhos e filhas serão Kanhru. O nome escolhido para a criança pertence a esta marca também. Ele é de fundamental importância para sua identidade e seu papel social na aldeia. O nome traz consigo traços de caráter e físicos. Assim, a pessoa que receber o nome de uma determinada ave, como é o caso do kunyn (pica-pau), herda características do seu pai e deste animal. Na aldeia Por fi, em São Leopoldo, ouvi uma mãe falando sobre seu filho de nome Kunyn (pica-pau). Comentou que ele é agitado, inquieto e muito esperto. Parece com seu pai e também com o pica-pau. Outro exemplo é o relato sobre um jovem de nome Poksy. Conforme o pai, o nome foi dado por um antepassado. “Poksy é uma pequena pedra, comprida e preciosa”. Em seguida, falando sobre as características do jovem, disse que ele é calmo, persistente e precioso como esta pedra. E acrescentou: “A pedra, geralmente, fica no mesmo lugar. Não se movimenta muito.” Marcas envolvem compromisso e cuidado O nascimento e acompanhamento de novos seres é motivo de profundo compromisso e de muito cuidado. Isto vale para sempre e para todos os seres

28

vivos. A sociedade kaingang entende que a criança é e será o que é seu pai e foi o seu antepassado. O pertencimento a uma determinada marca envolve cuidados no ensino e na aprendizagem. Conforme o cacique da aldeia Por fi, Alécio Garfêj de Oliveira: “A criança é o que é o seu pai. Por isto, desde muito pequena a criança vai aprendendo com o seu pai ou seus parentes a colher a taquara na hora certa. Ela precisa conhecer a natureza e aprender a respeitar a natureza. Não pode tirar a taquara de qualquer jeito e a qualquer hora. A criança também vai aprendendo a fazer um balainho, vai fazendo, vai experimentando e logo vai saber fazer também. Quando a criança sai para vender artesanato também é para aprender. Não queremos que elas se criem nas malandragens, que estão por aí. Nós cuidamos das nossas criancinhas”. Ensinar e aprender constrói-se, especialmente, nas ações e reações, em um ambiente de muita alegria. Marinez Garlet, na sua dissertação de mestrado “Entre cestos e colares, faróis e parabrisas: crianças Kaingang em meio urbano“ (PPGSS/ PUCRS, Porto Alegre, 2010), escreve que as famílias da aldeia “sentam-se próximas, no chão, entre risos e brincadeiras, estalam taquaras, raspam-na, tingem e tramam cestarias de formas, cores e tamanhos diversos. Ali a criança vivencia o que acontece ao seu redor, observa e é observada.” De forma semelhante, a presença crescente de aves na aldeia alegra muito as famílias e é assunto constante. São sabiás, jacus e saracuras que têm, no pequeno recanto da aldeia, abrigo seguro. Cuidar das árvores, das aves, das crianças, é característica deste povo. Na visão de mundo dos Kaingang, também a natureza cuida das pessoas. Um exemplo claro e presente é o nome que as famílias indígenas escolheram para a sua aldeia. Assim como seus antepassados, acreditam que o pássaro Por fi cuida delas. Sobrevoa as aldeias, acompanha os diversos grupos kaingang durante as viagens, caminhadas, visitas a parentes. Por fi vai sempre na frente e voa alto para avistar tudo e avisa quando tiver algum perigo rondando. Além das muitas alegrias, há dores e preocupações. Presentes na vida destas pessoas, elas têm impulsionado, regularmente, as lideranças a se manifestarem, anunciando os seus valores. A falta de terra para a sobrevivência física e cultural das famílias indígenas é a preocupação central. A relação da sociedade nacional com a terra é expressão de dor constante. No seminário “Legislação e Direitos Indígenas”, promovido pelo CO-

Desde muito pequena a criança vai aprendendo com o seu pai ou com seus parentes a colher a taquara na hora certa. Ela precisa conhecer a natureza e aprender a respeitar a natureza. Não pode tirar a taquara de qualquer jeito e a qualquer hora.

29


MIN, em 20 de julho de 2009, na cidade de São Leopoldo, o líder kaingang Antônio dos Santos lamentou: “Daqui a alguns anos, o que será da terra? Ela nos cuida. E o que estamos vendo? O que os brancos estão fazendo? Estão vendendo a terra, machucando a terra. Como posso fazer chorar aquela que me dá o alimento? Como posso vender quem cuida de mim?” Com a escassez crescente de recursos naturais, a vida nas aldeias, especialmente aquelas localizadas em espaços urbanos, obriga as famílias a se movimentarem a partir de concepções da sociedade nacional e não da sociedade kaingang. Continuam e continuarão vivos enquanto grupo étnico. Estrategicamente ou não, muitos aspectos próprios da sua cultura estão guardados e, assim, invisíveis para nós. Na publicação Uri e Wãxi – Estudos Interdisciplinares dos Kaingang, organizada por Lúcio Tadeu Mota, Francisco Silva Noelli e Kimiye Tommasino (Território e Territorialidade Kaingang, Resistência cultural e historicidade de um Grupo Jê), Kimiye Tommasino escreveu: “Apesar de todas as tentativas e formas de seu apagamento e destruição, a cada dia, os Kaingang provam aos brancos que existem e insistem como humanidade singular, porque se a humanização da pessoa se faz sempre de um modo particular; eles/as continuam Kaingang.”

Ione Pilger Professora catequista e socióloga, obreira do COMIN, Montenegro (RS)

O trabalho do Conselho de Missão entre Indígenas da IECLB goza de boa reputação na Igreja Evangélico-Luterana da Baviera (Evangelisch-Lutherische Kirche in Bayern – ELKB). Um acontecimento especial foi a visita, no início de 2009, de José Manuel Palazuelos Ballivián (Manolo), especializado em agroecologia. De forma impressionante ele relatou sobre o trabalho do COMIN em Guarita (RS). Para as pessoas que participaram nas reuniões e seminários ficou muito claro que o estilo de vida baseado no consumo tem consequências negativas para o meio ambiente e os direitos humanos. Fomenta-se uma produção agrícola em escala industrial com o uso de pouca mão de obra, que produz alimentos em massa para a exportação e que redunda em lucros exorbitantes para poucas pessoas. Este modelo de produção agrícola resulta na redução do espaço de vida e desemprego para os indígenas, que migram para a periferia das cidades. Do ponto de vista ecológico, este tipo de produção agrícola tem, segundo o palestrante, um grande potencial de poluição e destruição para os solos, a água e o ar. Ao acompanhar os povos indígenas e acom eles – e com a sociedade em geral – refletir sobre as estruturas pecaminosas, o COMIN ajuda a criar consciência para a necessidade de mudanças. Muitas pessoas foram sensibilizadas através das conversas com Manolo nas reuniões e encontros, no decorrer de sua visita à Baviera, e começaram a refletir sobre o seu estilo de vida e a tomar consciência sobre sua conduta de consumo. Foi criada uma boa base para uma mudança de consciência. Por isso, agradeço em nome de Missão um Mundo Só (Mission EineWelt) e da ELKB de coração pelo trabalho do COMIN. Hans Zeller Relator para a América Latina da Igreja Evangélico-Luterana da Baviera

30

31


Fazendo cerâmica: afirmação cultural

Nos últimos anos, o povo indígena Apurinã está em um esforço constante em vistas de sua revitalização linguística e cultural. Como uma forma de auxiliar nesse esforço, o COMIN tem desenvolvido ações pontuais, como oficinas de incentivo à manufatura de utensílios em cerâmica, utilizando técnicas tradicionais. O foco principal é apoiar as pessoas que ainda confeccionam esses utensílios e buscar incentivar o interesse de outras para que o conhecimento cultural não se perca em vistas do intenso contato. Tradicionalmente, a confecção de cerâmica entre os Apurinã é domínio do universo feminino. Os homens, nesse sentido, podem ser requeridos para auxiliar em determinados momentos, como na busca de material e no cozimento das peças. Um segundo foco das oficinas é incentivar, além da retomada do uso doméstico, o uso comercial dos utensílios, com vistas à sustentabilidade. A cerâmica tradicional tem qualidade muito superior aos produtos industrializados. No entanto, ao longo de muitos anos, ela foi estigmatizada. Em decorrência, muitos indígenas não querem utilizá-la, com receio de que sejam identificados como atrasados ou como “caboclos”, como se diz no interior do Amazonas. Assim, a valorização do uso auxilia o povo Apurinã a diminuir sua dependência dos utensílios industrializados, ao mesmo tempo em que possibilita uma alternativa econômica. Se esses utensílios foram estigmatizados ao longo da história, hoje já experimentam valorização no mercado regional. Uma pessoa que se destaca nessa arte na aldeia Camicuã, em Boca do Acre, é Leia Carlos dos Santos Apurinã (Kathuna). Em uma das oportunidades, ela assumiu o compromisso de orientar e fazer os preparativos, uma vez que o processo de fabrica32

ção de cerâmica tradicional leva muitos dias. Primeiro, é necessário buscar o material, depois prepará-lo. Em seguida, é necessário manufaturar em partes, de modo que o barro vá secando aos poucos. Quando o barro foi moldado na sua forma final, é necessário deixar descansar à sombra durante quase um mês, para somente daí proceder ao cozimento da peça. Para que fosse possível visualizar todos os momentos, Leia preparou peças em todos os estágios e construiu um local específico para o trabalho. Enquanto as diferentes etapas foram experimentadas durante a oficina, também foi sendo incentivado o resgate do conhecimento linguístico acerca de todo o preparo e das peças finais. Kerysawaky atha kama tarewataku (pitety, musãi, takatary, kupite, yãtatxi, muthuãna, mekuruãnu), atha aparyku karapanaty, apaka katxary atha apaku. Ipusu amaputxuary katxary. Akuketary katxary karapanaty pani katy. Iuasaa akama tarewataku. Ipusu atuku, xãmina amatxirata, ipusu atha arikataryku, ipusu atha utikaryku. Ateeneka atha kuriwata Quando nós fazemos cerâmica (prato ou panela, vaso, forma de beiju, camburão para vinho, vaso para tomar vinho, pote para colocar água ou farinha, pote para colocar água ou farinha sem pescoço), nós buscamos caripé, e também buscamos barro. Depois nós limpamos o barro. Misturamos o barro com cinza do caripé. Então nós fazemos cerâmica. Depois disso, nós buscamos lenha, depois nós sapecamos, depois nós queimamos. Então nós passamos breu. Dr. Rogério Savio Link Teólogo, ex-obreiro do COMIN, Rio Branco (AC) 33


34

35


Pescar sem que o peixe acabe ”Estamos nos preparando para assumir nossa associação sem precisar da ajuda direta do branco. Assim que isso acontecer, o CIMI, COMIN e OPAN podem ir trabalhar com outros parentes que os precisam mais do que nós.”

36

O projeto de manejo de lagos no rio Xeruã, que busca preservar e futuramente comercializar pirarucus, foi discutido durante anos pelos Deni. O pirarucu, que é muito apreciado pelos amazonenses, quase foi extinto antes da demarcação da Terra Indígena Deni em 2003. Atualmente, a pesca é proibida e o peixe só pode ser comercializado através de manejo certificado. No rio Xeruã existem 169 lagos. O mapeamento dos lagos foi feito pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) com os Deni. Conforme um levantamento técnico, era preciso de três a quatro anos sem pescar nenhum pirarucu antes que se pudesse pensar na comercialização de uma parte. O pirarucu está voltando. O COMIN assessora os Deni com o apoio da Fundação Luterana de Diaconia (FLD) e do Evangelischer Entwicklungsdienst Deutschland (EED) na fase preparatória (2009-2011) do projeto Manejo de Lagos. No primeiro ano, foram ministrados cursos de direitos indígenas e ambientais, de manejo de lagos, desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas. O conceito de manejo não é uma novidade para os Deni. Antigamente, havia grande quantidade de peixes e se pescava com anzol feito de ossos e cipó, com arco e flecha, com arpão de madeira e com armadilhas de cestos. Os lugares de pescaria mudavam semanal e anualmente. Todo mundo vivia sossegado e pescava somente para se alimentar. A Associação dos Deni, que acompanha o trabalho do manejo, assumirá as atividades depois da fase preparatória, que termina em 2011. Como disse o jovem

líder Deni Kapivahari na primeira oficina de Capacitação de Lideres da associação: ”Estamos nos preparando para assumir nossa associação sem precisar da ajuda direta do branco. Assim que isso acontecer, o CIMI, o COMIN e a OPAN podem ir trabalhar com outros parentes que os precisam mais do que nós”. Em uma etapa do projeto, representantes deni visitaram pescadores de Maraã (AM), no rio Japurá, afluente do rio Solimões, para adquirir experiência na contagem de pirarucus com técnicos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá-Tefé (AM). Em 1999, lá também havia poucos pirarucus. Os lagos foram preservados através de manejo e, em 2009, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) autorizou a retirada de 3.500 pirarucus, correspondentes a 30% dos peixes grandes – com tamanho acima de 150 cm – que haviam sido contados no ano anterior. O pescador experiente sabe dizer se o pirarucu é pequeno ou grande. O grande bóia a cada 20 minutos, o pequeno aflora a cada 10 a 15 minutos para respirar. Os Deni aprenderam rapidamente a técnica de contagem. Até 2011, serão ministrados cursos para o fortalecimento da associação, uma cartilha em três línguas (deni, kanamari e português) sobre meio ambiente, cosmovisão indígena, capacitação de lideranças, legislação pesqueira, gerenciamento, monitoramento e contagem de pirarucu, com o objetivo de autossustentabilidade. Haverá mais uma visita aos pescadores de Maraã para observar a pesca do pirarucu. Nas assembléias, serão definidas áreas de uso dos lagos, por meio de categorias (lagos de preservação, comercialização e manutenção), e estratégias para cuidar das áreas onde estarão sendo desenvolvidas as atividades do manejo de pesca. Depois da fase preparatória, as atividades ficarão por conta da associação deni, junto com entidades governamentais. Em 2009, o Manejo de Lagos foi um dos oito projetos a receber o prêmio Gigantes da Ecologia, que integra uma ampla iniciativa de educação ambiental em Santa Catarina e que naquele ano teve como tema “A Água é o Sangue da Terra”. Ms. Walter Sass Teólogo, obreiro do COMIN, Carauari (AM)

37


Além da terra, uma questão vital para as comunidades indígenas é a etnossustentabilidade. Eles se perguntam constantemente: como produzir os bens necessários à vida de forma a tê-los também para os filhos e netos, sem esgotar os recursos naturais?

38

Organização tradicional e associações indígenas

Os povos indígenas sempre tiveram formas próprias de organização para viver e tirar da natureza os bens necessários à vida. Cada povo tem um modo específico de tecer suas relações de parentesco, de liderança, de trocas, de ver e interpretar o mundo. Diante de uma história de desrespeito, massacres e perseguição, com infinitas lutas e movimentos de resistência, os povos indígenas conseguiram, com apoio de aliados, que a lei brasileira superasse a postura de integração do indígena à sociedade nacional que, diga-se de passagem, poderia levar à perda do direito às terras tradicionais. Neste sentido, a Constituição Federal de 1988 é um grande avanço. A partir dela os povos indígenas alcançaram a conquista de ter na lei maior o direito de viver do seu jeito, com sua cultura. Vale lembrar o art. 231 da Constituição Federal: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Isso evidencia uma valiosa mudança na relação do Estado brasileiro com os povos indígenas. A constituição federal rompe com a perspectiva assimilacionista e etnocêntrica e reconhece aos povos indígenas o direito de permanecerem vivendo com sua cultura, língua, organização social, crenças e tradições, além de reconhecer o direito às terras tradicionais. No entanto, na realidade do dia a dia, os indígenas precisam constantemente se articular e lutar para fazer valer seus direitos. O Estado brasileiro cumpre muito pouco do que rege a lei sobre direitos indígenas. Um exemplo claro disto é a moro-

sidade das demarcações das terras indígenas e nos conflitos daí gerados. Além da questão da terra, uma questão vital para as comunidades indígenas é a etnossustentabilidade. Como produzir os bens necessários à vida de forma a tê-los também para os filhos e netos, sem esgotar os recursos naturais? Isto se torna mais crítico ainda para os povos que foram obrigados a viver em áreas pequenas. Neste contexto, surge a possibilidade/necessidade que as comunidades indígenas veem de buscar o acesso de recursos externos – públicos e outros – para a gestão de projetos para suas comunidades. No entanto, embora o Estado ofereça alguns recursos para atividades desta e de outras naturezas, não reconhece as formas tradicionais de organização para manter suas relações na avaliação de projetos e financiamento de ações nas aldeias. A relação aí se processa mediante o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ. As comunidades indígenas precisam criar associações com estatuto, ata de eleição de diretoria, registro em cartório, entre outros. Disto, com ou sem projetos aprovados, surgem as responsabilidades administrativas – e suas multas quando não cumpridas –, como, por exemplo, da Declaração de Imposto de Renda Pessoa Jurídica (DIRPJ. Muitas organizações e associações foram criadas e outras ainda continuam sendo criadas. No entanto, as dificuldades burocráticas, as exigências administrativas, o desconhecimento e a falta de oportunidades de capacitação nesta área, além de outros fatores, fazem com que grande parte dessas associações esteja na inadimplência, muitas vezes, com dívidas junto ao Estado, o que torna mais difícil sua reativação. Em Rondônia (Ji-Paraná), o COMIN também é parceiro dos povos indígenas nesta área, assessorando os grupos com os quais atua quando decidem criar ou reativar uma associação, prestando assessoria jurídica nas questões legais e auxiliando na elaboração e execução de pequenos projetos nas aldeias. Nelson Deicke Teólogo e enfermeiro, obreiro do COMIN, Ji-Paraná (RO)

39


O Conselho de Missão entre Índígenas (COMIN) da IECLB é apoiado desde 1990 por Pão para o Mundo (PPM). Desde 2000, o COMIN está integrado na Fundação Luterana de Diaconia (FLD). Nosso diálogo e a cooperação com os parceiros FLD e COMIN é intensiva e de muita confiança, sendo realizado por vários setores da Diaconia Ecumênica (Pão para o Mundo, Programa Ecumênico de Bolsas, Igrejas ajudam Igrejas). Em 2007, o trabalho do COMIN foi analisado por meio de estudo de impactos. Este mostrou que do COMIN procedem contribuições e impulsos importantes para assegurar a sobrevivência e realizar os direitos dos povos indígenas no Brasil. Isso diz respeito em especial a seus direitos territoriais, à revitalização de sua cultura e à assistência social. Além disso, o COMIN contribui na informação e sensibilização de membros e instituições da igreja luterana (IECLB) e da opinião pública brasileira em relação à questão indígena. O trabalho do COMIN favorece um público alvo extremamente marginalizado na história e na atualidade. Na situação indígena os problemas do país se tornam evidentes de um modo enfático. No acompanhamento e no apoio às comunidades indígenas, o COMIN desenvolveu abordagens exemplares e, durante o processo, se abre reiteradamente a novos desafios.

Reiner Focken-Sonneck Responsável regional na Equipe para o Brasil do Departamento América Latina e Caribe de Pão para o Mundo

40

41


Vendo é que se aprende Para famílias indígenas que se encontram em situação de acampamento, impossibilitadas de acessar matérias primas naturais, o uso de miçangas e de sementes adquiridas tem garantido a expressão da sua arte e a geração de renda.

42

Também a participação de indígenas em feiras de economia solidária tem sido incentivada, como desafio de se construir e fortalecer formas alternativas de produção, consumo e distribuição de riqueza centrada na valorização do ser humano e não do capital. Da mesma forma, é crescente o protagonismo indígena na participação em espaços institucionais de discussão em favor de políticas públicas mais favoráveis para a comercialização temporária de artesanato em outros lugares e regiões.

Manuel Palazuelos Ballivián Zootecnista, obreiro do COMIN, Tenente Portela (RS) O artesanato, que sempre foi de grande importância na cultura indígena, é hoje uma das atividades de maior relevância na geração de renda de muitas famílias kaingang e guarani. A atividade se manifesta através da elaboração de uma diversidade de produtos tradicionais e adaptados, com base no uso de matéria-prima biodegradável proveniente das matas e capoeiras, que responde tanto às necessidades do campo como das cidades. Para muitas famílias indígenas que se encontram em situação de acampamento, impossibilitadas de acessar matérias-primas naturais, o uso de miçangas e de sementes adquiridas tem sido o caminho para garantir a continuidade da expressão da sua arte e a possibilidade de geração de renda. Em todos os casos, a tradição e a criatividade de cada etnia é que caracterizam o estilo e a originalidade dos produtos, expressando a sua identidade, riqueza cultural e relação harmoniosa com a natureza. A realização e aprendizagem do artesanato kaingang e guarani estão fortemente influenciadas pela prática do saber fazer através do vendo é que se aprende, transmitido de geração para geração. Atualmente, as necessidades dos artesãos são muito diversas, e o COMIN tem trabalhado ações conjuntas para o fortalecimento de grupos organizados, onde o componente feminino é bem expressivo. Outras atividades que recebem a cooperação do COMIN, por meio da atuação da nossa equipe, envolvem questões como facilitar a coleta de matéria-prima, animar o trabalho em mutirão, criar melhores condições para o preparo e tingimento do artesanato e promover a qualificação no acabamento final. 43


A participação em feiras de economia solidária tem sido incentivada a partir do desafio de se construir e fortalecer formas alternativas de produção, consumo e distribuição de riqueza

44

Artesanato como ponte entre culturas

Quem de nós já não percebeu a presença de famílias guarani nas diversas rodovias, no litoral ou mesmo nos centros urbanos, comercializando seu artesanato? Com o crescimento das cidades e a consequente redução de territórios, os indígenas do Brasil passaram a se organizar de forma diferente e a contemplar a realidade do momento. Assim, os Guarani de Porto Alegre (RS) e região metropolitana buscam no artesanato alternativas de sustentabilidade para suas famílias. Uma mulher guarani da aldeia Estiva do município de Viamão (RS), em uma de suas vindas à Secretaria Executiva do COMIN, disse: “gostaríamos de não precisar vender nossos bichinhos, pois queremos que a terra possa dar o nosso sustento, mas como conseguir plantar com pouca terra?”. Esta fala evidencia a mudança sofrida por ela e seu grupo e a sua consequente implicação cultural. O artesanato tornou-se uma fonte de renda imediata. Esta alternativa os faz sair de suas aldeias em busca de matéria prima, como cipós, taquaras, madeira e semente, e para comercializar seus produtos. Os Guarani tem um modo de ser e de se relacionar entre si e com a natureza que são retratados no artesanato em madeira. Os “bichinhos”, como são chamadas estas miniaturas, retratam onças, jacarés, macacos, tatus, pássaros, da criação primeva, vinculados ao seu imaginário, as suas histórias, aos seus mitos e ao seu cotidiano. Os bichinhos representam os próprios animais, que têm vida e sentimentos, têm histórias e segredos. A arte de transformar a madeira bruta em uma represen45


Os Guarani tem um modo de ser e de se relacionar entre si e com a natureza que são retratados no artesanato em madeira, “bichinhos”, como são chamadas estas miniaturas. O artesanato torna-se uma ponte entre a comunidade indígena e a sociedade envolvente

tação fiel traz consigo a subjetividade de cada artesão e artesã que deposita o seu sentimento e sua relação com a natureza em sua arte. Nas seguidas vezes que os artesãos guarani chegam ao COMIN, expressam que é cada vez mais difícil garantir locais para a venda de seus artesanatos. Exemplificam que em Porto Alegre um local fixo é o conhecido Brique da Redenção – que é, no entanto, bastante disputado por outras famílias de Guarani, Kaingang e Charrua, e que a venda não é promissora. Outros locais oferecidos para a venda acontecem em escolas, quando são convidados para palestrar sobre sua cultura e modo de viver nas cidades. As famílias indígenas também criam espaços de venda às margens de rodovias e estradas, praias, feiras e eventos, nos centros urbanos. Nem sempre a comercialização nestes locais é bem vista. No COMIN, temos o cuidado de ser apenas um espaço emergencial de exposição e intermediação, para que artesãos e artesãs não deixem de buscar seus espaços próprios para a comercialização de seu artesanato. A Secretaria Executiva do COMIN é local de circulação de pessoas que buscam tanto conhecer a realidade dos povos indígenas no Brasil, como os trabalhos e materiais do COMIN. Muitas pessoas já estão quase saindo, quando o seu olhar recai sobre o artesanato indígena. Este aguça a curiosidade e desperta o interesse por mais informações. Em geral, é nesses momentos que se travam as mais empolgantes conversas e trocas de informações. Em 2010, um exemplo de aproximação da cultura indígena através do artesanato foi a iniciativa da Secretaria de Educação e Desporto (SMED) da Prefeitura de Novo Hamburgo (RS) que organizou, em parceria com a Secretaria Executiva do COMIN, a aquisição de 800 bichinhos e 80 cestos. As peças de artesanato foram buscadas nas comunidades de Estiva, Linha do Pinheiro e Canta Galo. No início do ano letivo cada escola municipal de educação infantil recebeu um cesto e 10 bichinhos. Sem dúvida, foi uma experiência enriquecedora para os Guarani, para os alunos, professores e escolas do município. O artesanato, portanto se torna uma ponte entre a comunidade indígena e a sociedade envolvente. Diversas vezes, após a visitação e conhecimento da diversidade reunida no espaço da sede do COMIN, os visitantes retornam, trazendo colegas, amigos, familiares para conhecimento dos povos indígenas representados pelo diferentes artesanatos. Maria Cristina Rieth Pedagoga, obreira do COMIN, São Leopoldo (RS)

46

Cuidar da natureza – as transformações do bem viver

Sebastião Gavião é professor na aldeia Iterap, do povo Arara, na Terra Indígena Igarapé Lourdes, no município de Ji-Paraná (RO). O pai de Sebastião, já falecido, era Gavião; a mãe, dona Maria Luiza, do povo Arara, e o padastro é do povo Karipuna. Sebastião sabe lidar bem com a diversidade étnica, que já vem da própria família. Na escola, dá aula na sua língua materna. Ele também estuda na Universidade Federal de Rondônia, onde faz o curso de Educação Básica e Intercultural, que forma professores indígenas. Uma das preocupações de Sebastião e de toda a sua comunidade é com o meio ambiente, primeiro, sob o ponto de vista da fiscalização. A Terra Indígena Igarapé Lourdes, como todas as outras terras indígenas em Rondônia, está rodeada por fazendas. Floresta mesmo só existe nas Terras Indígenas e em algumas Unidades de Conservação. Com isso, o assédio pelos recursos naturais, principalmente pela madeira, é muito grande. Constantemente os Arara e Gavião, junto com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), precisam percorrer os principais carreadores, procurando invasores. Por outro lado, é fato que nesses estados onde o desmatamento tem avançado, como Mato Grosso, Rondônia e Pará, indígenas não têm conseguido resistir ao assédio. Acabam se atrelando ativamente a formas predatórias de exploração de recursos naturais, fazendo alianças principalmente com o setor madeireiro, que não tem escrúpulos para atingir seus objetivos. Nessa transação, os indígenas são os que menos ganham do ponto de vista financeiro e os que mais perdem do ponto de vista moral, social, cultural e organizativo. Povos que decidiram parar de vender

Alguns indígenas não têm conseguido resistir ao assédio, principalmente de madeireiros, e terminam por se envolver em formas predatórias de exploração de recursos naturais. Eles são os que menos ganham do ponto de vista financeiro e os que mais perdem do ponto de vista moral, social, cultural e organizativo.

47


A grande preocupação é que os recursos naturais atuais estejam disponíveis para esta geração e para as futuras, que devem ter as mesmas possibilidades de acesso aos recursos naturais que as de hoje.

madeira, hoje se perguntam quais são os bens materiais que sobraram daquele tempo de venda. A segunda preocupação de Sebastião é com a subsistência de seu povo e com o lixo produzido nas aldeias. Os povos que têm mais contato com o mundo ocidental precisam adotar novos comportamentos em relação ao meio ambiente. Antes do contato, com frequência mudavam suas aldeias de lugar como uma forma de “manejo natural”. Quando a caça, a pesca e a coleta de frutos começavam a ficar escassos, mudavam-se para outro lugar, de mais fartura. Foram estratégias de uso dos recursos naturais que contribuíram muito para não se alterar os princípios de funcionamento do meio ambiente e nem se colocar em risco as condições de regeneração desse meio. Com a definição de limites de seus territórios e também com a assistência de órgãos públicos através de instalação de infraestrutura em locais determinados, como escolas, postos de saúde e sistema de abastecimento de água, essas mudanças de local de moradia não são mais tão possíveis. Agora, quase fixos em um lugar, têm que aprender a lidar com outras formas de manejo. A grande preocupação é que os recursos naturais atuais estejam disponíveis para esta geração e para as próximas – as gerações futuras devem ter as mesmas possibilidades de acesso aos recursos naturais que as de hoje. Não se pode mais, por exemplo, praticar a pesca tradicional, jogando timbó nos igarapés, ou derrubar uma árvore frutífera para colher seus frutos. O lixo também se tornou um dos grandes problemas ambientais nas aldeias, principalmente o lixo não degradável, como plásticos, baterias e pilhas. Cada vez mais esse tipo de material chega às aldeias, seja através de aquisição própria ou de programas governamentais. Poucas são as experiências de destinação correta do lixo. Sebastião tem discutido o assunto com a sua comunidade. Com os conhecimentos técnicos adquiridos nos diversos cursos de formação e na universidade, ele sabe que o lixo pode comprometer até o lençol freático próximo a sua aldeia. Contribuir com essa discussão em diversos espaços e nas aldeias, através de oficinas de formação, tem sido um dos papéis do COMIN em Rondônia. Jandira Keppi Teóloga e jurista, obreira do COMIN, Ji-Paraná (RO)

48

49


Deus forma um boneco de terra, para em seguida insuflarlhe o sopro da vida. A terra do boneco não é qualquer tipo de solo. É adamah, terra agricultável, terra de plantio.

50

Terra – matéria prima dos humanos

Leio o desenvolvimento humano como uma história de distanciamento, de alienação dos humanos de sua matéria prima – a terra. Nessa história, homens e mulheres alcançaram conquistas tecnológicas impressionantes. No entanto, a terra e o seu ciclo e ritmo natural de vida perderam em importância. O solo foi reduzido a um meio de produção, um recurso material comercializável, deixando de ter uma conotação de ser vivo. Se compararmos a nossa visão de mundo ocidental com as visões de mundo indígenas, vamos constatar concepções opostas: nós ocidentais falamos em natureza, os indígenas falam de mãe-terra; nós ocidentais consideramos o domínio da natureza como marco de desenvolvimento ao passo que povos indígenas consideram sua integração no todo da criação como marco de desenvolvimento. Parece que quanto mais as sociedades se desenvolveram de suas origens tribais na direção de modernas sociedades de estado, tanto mais elas se distanciaram de sua ligação com a terra. “Um exemplo disso é que nos países desenvolvidos há cada vez menos agricultores – fator quase alçado ao status de critério para medir desenvolvimento”. Na política de desenvolvimento, por muitos anos, falou-se da contraposição de países agrários a países industrializados, para distinguir entre países subdesenvolvidos e países desenvolvidos. Na Alemanha, com 81 milhões de habitantes, menos de 400 mil lutam para sobreviver na agricultura. No Brasil, com 190 milhões, entrementes ainda se considera menos de 12 % de população rural como índice de subdesenvolvimento,

enquanto na costa brasileira vão se multiplicando as grandes metrópoles como inchaços cancerígenos. Em nossa Bíblia conservamos dois relatos da criação. Um deles espelha a cosmovisão de muitos povos indígenas. Por exemplo, para os aborígenes australianos a terra consiste no pó dos antepassados. Para eles não existe morte, apenas transformação. O corpo humano se torna novamente terra, para servir de nutrição para as plantas que, por sua vez, possibilitam a respiração a outros seres vivos ou vira porco do mato para servir de alimento para netos e bisnetos. À semelhança de povos indígenas de outros continentes, eles se autodenominam “os verdadeiros humanos” para distinguir-se de nós outros ocidentais a quem denominam de “os humanos modificados”. O que todos eles crêem coincide conceitualmente com o segundo relato bíblico da criação, no qual Deus forma um boneco de terra, para em seguida insuflar-lhe o sopro da vida. A terra do boneco não é qualquer tipo de solo. É adamah, terra agricultável, terra de plantio. Adão é o terráqueo, feito de adamah, aqueles 12 a 15 centímetros de solo fértil e vivo. Os humanos, portanto, são partes dessa camada de humus animadas pelo sopro de Deus. Assim Adam tem uma relação imediata com a adamah. Para permanecer humano, essa relação não pode ser perturbada e muito menos interrompida. O vínculo com o sopro de Deus lhe atribui a função de elo de ligação entre Deus e terra. Aliás, em geral, esquecemos que também os animais são formados da mesma adamah (Gênesis 2,19). Isso explica porque nas cosmovisões indígenas há trocas muito naturais entre humanos e animais, e que eles entendem os animais apenas como corporificações diversas da essência humana. O vínculo de terra e sopro divino constitui a humanidade. Quando Deus busca de volta o sopro de vida concedido, o boneco de barro volta a ser terra. “Terra à terra, cinza a cinza, pó ao pó. Da terra foste formado, à terra tornarás”... Tanto me parece belo quanto consolador, estar integrado no ciclo da vida dessa forma, estando animado pelo sopro divino. Esse vínculo inseparável também ficou conservado em algumas línguas: os humanos são feitos de humus. A pessoa humana é um pedaço de humus contendo o sopro divino. Quando os humanos se distanciam e alienam da terra, esse vínculo sagrado é destruído. Matar uma pessoa humana significa machucar a terra. Ferir a terra significa matar pessoas humanas. O humus grita por causa da morte de Abel e abre sua boca para absorver o seu sangue (Gn 4.10s). O humus é tão sagrado

Os aborígenes australianos acreditam que a terra é o pó dos antepassados. Para eles não existe morte, apenas transformação. O corpo humano se torna novamente terra, para servir de nutrição para as plantas que, por sua vez, possibilitam a respiração a outros seres vivos.

51


Na Bíblia há dois mitos de criação: o primeiro, estatal, adotado pelo mundo ocidental fala em dominar e sujeitar; o segundo, tribal, muito semelhante ao que pensam os povos indígenas fala em cultivar e guardar.

52

como a vida humana. Somente nesse vínculo sagrado é pensável haver um futuro sustentável. O outro relato da criação é atribuído a autores sacerdotais. Originou-se nos círculos favoráveis à monarquia na área urbana. Nela falta completamente a ligação entre a pessoa humana e a terra. São sublinhados a imagem e semelhança a Deus e o domínio sobre animais e plantas. Nenhuma palavra sobre Adão ou adamah. Enquanto o relato tribal encerra, encarregando os humanos de cultivar e guardar a criação na qual foram integrados, esse relato estatal fala de dominar e sujeitar. Trata a pessoa humana como um ser destacado da criação restante, trata-o exclusivamente como sujeito e agente, trata o restante da criação como objeto, caracteriza a relação entre humanos e restante da criação como uma relação assimétrica, desigual. Os verbos hebraicos que descrevem o domínio dos humanos sobre o restante da criação têm significados de graves conseqüências. No original significam “pisotear, pisar com os pés (como quando se pisa uvas para o vinho), subjugar um país através de guerra, violentar sexualmente, submeter à escravidão”. Será que toda a cultura e ciência ocidental deixaram guiar-se por esse relato da criação, deixando o outro para trás, como um romantismo agrícola anacrônico? Seguramente isso não teria sido possível, sem a correspondente legitimação teológica e eclesiástica. Penso que não é acaso termos conservado a tradição de dois relatos da criação. Num podemos ver o nosso domínio sobre a terra como que num espelho. No outro somos lembrados de nossa ligação com a terra. O conceito de domínio foi amplamente aplicado e resultou no que estamos vendo e vivenciando. Trouxe progresso tecnológico e o sentimento de que os humanos na verdade são os verdadeiros deuses e criadores (Salmo 8,5 “... fizeste o ser humano inferior somente a ti mesmo e lhe deste a glória e a honra de um rei...”). Não é um acaso isolado que Deus foi declarado morto no auge do modernismo europeu.” Diante de todas as mazelas ambientais e da violência na terra, é hora de nos inspirarmos e de nos dedicarmos ao relato da criação que fala dos humanos criados a partir do humus, emprestando os olhos dos povos indígenas e buscando analogias em seus mitos para compreendê-lo ainda melhor. A terra é herança da humanidade, como o é a luz do sol, o ar e a água. Se não trabalharmos contra a

longa mercantilização da terra, daqui a pouco teremos que pagar pela água, pelo ar e pela luz do sol. Todo o pedaço de terra é sagrado para o nosso Deus. Juntos com os animais, nós somos pedaços de humus animados pelo sopro divino. Será utopia almejar que se possa tirar a terra do conjunto de bens que o deus-mercado quer manter como mercadoria? Ms. Hans Alfred Trein Teólogo, coordenador do COMIN, São Leopoldo (RS)

53


Carta às irmãs e aos irmãos não-índios, para todas as gerações, sobre a mudança climática Meus amigos, chega de fazer poluição e desmatar a floresta. Não destruam mais as árvores, a natureza, porque são elas que protegem a terra e armazenam a água. Se forem destruídas não haverá mais água. Nós podemos desaparecer por falta de água, por isso, por favor, parem de poluir o ar, a atmosfera que não agüenta mais tanta poluição. Também nós podemos desaparecer sob essa seca, podemos até ser castigados sobre o fogo com nossas atitudes. Além disso, parece que quanto mais poluição mais doenças diferentes surgem. Vamos parar com essas indústrias que só geram calor e seca; vamos parar, para que possamos nos refrescar um pouco mais. Quando não existia não indígenas aqui, não havia tanta doença nem tanta quentura. Meus irmãos, meus amigos, nós indígenas não poluímos a atmosfera nem poluímos a Natureza. Nós indígenas vivemos sem nenhuma indústria; por que vocês não indígenas não podem viver? Sinto que vocês também podem viver como nós, sem poluição e destruição. Nós indígenas podemos não conhecer muito de livros, mas sabemos respeitar a Natureza, não poluímos ou destruímos a mata irresponsavelmente. Fazemos isso porque reconhecemos que as árvores também têm vida, como a gente. Não poluímos o ar porque reconhecemos que o ar é o nosso ar, precisamos dele para respirar, para continuarmos vivos. Se poluirmos o ar, pegaremos doença que nós mesmos criamos, por poluirmos o ar. Nós indígenas precisamos do ar, por isso que o respeitamos. Meus amigos não indígenas, se vocês não sabem que precisamos do ar para sobreviver, agora saberão. Vocês são homens da ciência e de leis, mas não aprenderam a respeitar o ar, a Natureza. Se vocês não conhecem a Natureza e o sobrenatural, poderão conhecer agora conosco. Meus amigos, eu sou índio e fico refletindo: os não indígenas são muito inteligentes, mas parecem não conhecer nada. Pois eu sou índio e reconheço a Natureza, o ar, a atmosfera, os rios, a mata. Manoel Daora Kanamari Professor Indígena, aldeia Irmãos Unidos, Rio Xeruã, município de Itamarati (AM) Depoimento escrito no dia 25 de maio de 2009 depois um curso realizado pelo COMIN de Carauari (AM) no rio Xeruã.

54

educação 55


Aproveitando a escola para seus próprios objetivos

O povo Deni, como os demais povos indígenas, tem sua tradição milenar na educação. Mas, devido ao contato com os patrões dos seringais e os regatões, eles sentiram a necessidade de conhecer as operações fundamentais da matemática para entender as transações comerciais, uma vez que eram explorados, nunca saldando as suas dívidas. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) começou um trabalho com os Deni em 1979, no rio Xeruã. Em 1998, a equipe do CIMI foi ampliada, com a minha chegada, vindo por parte do COMIN. No início, eu dava aulas de alfabetização na aldeia Morada Nova, onde ninguém sabia ler e escrever. Depois, destacaram-se pessoas aptas para o ensino. As aldeias elegeram seis professores que davam aulas sem remuneração. A contratação dos professores aconteceu finalmente em junho de 2002. Em 2003, a prefeitura de Itamarati (AM) construiu escolas nas aldeias. Os professores participavam desde 2000 do projeto Pira-Yawara da Secretaria Estadual de Educação (AM), um programa para formação de professores indígenas. O projeto, no entanto, tinha muitas falhas: conteúdo muito difícil, falta de acompanhamento, diferentes níveis de professores de três etnias diferentes, não realização por muito tempo destes cursos, não elaboração de material didático bilíngue. A pedido dos professores deni, o COMIN ministrou em Carauari (AM) uma oficina de elaboração de material na língua materna e um curso de português, de didática e de matemática. O resultado da oficina foi a primeira cartilha com textos e desenhos dos professores. Os professores deni fizeram pesquisas com os mais velhos das aldeias e elaboraram um livro bilíngue de mitos. Os professores também elaboraram um livro de matemática bilíngue da 1ª a 4ª série, respeitando seu contexto. 56

Desde 2002, o COMIN oferece dois cursos por ano para os professores deni e kanamari do rio Xeruã, para aprofundar conteúdos do Projeto Pira-Yawara. Os Kanamari, que participam dos cursos desde 2004, pediram ao COMIN para elaborar o seu livro de mitos. O livro bilíngue foi editado em 2007. Os professores escolhem o conteúdo dos cursos. Há o pedido de reforços na língua portuguesa, matemática, geografia, física e ciências naturais. Sempre se busca incluir a cultura e a cosmovisão indígena nestes cursos, respeitando a exigência do Ministério da Educação e Cultura (MEC) de uma educação diferenciada de qualidade. O professor Daora Kanamari avaliou um curso sobre ciências naturais, ecologia, desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas assim: “Gostei muito do curso. Aprendi como as plantas recebem a energia do sol, da água, dos sais minerais e fazem o seu alimento na fotossíntese. Essa energia passa depois para outros seres vivos... Aprendi também como as árvores nos protegem respirando gás carbônico e soltando oxigênio para todos nós respirarmos e vivermos. Aprendi também a história do surgimento do homem e dos animais.” Ms. Walter Sass Teólogo, obreiro do COMIN, Carauari (AM)

Povos indígenas sempre reproduziram sua cultura sem a instituição escola. Depois do contato com os brancos, aproveitam a escola para entender como funciona a sociedade não indígena e para firmar e garantir a continuidade de sua própria maneira de estar no mundo.

57


”Meu nome é Dorvalino e tenho 47 anos. Sou professor Kaingang e moro em São Leopoldo (RS). Participei do curso de formação de professores bilíngues promovido pelo COMIN em parceria com a Universidade de Ijuí (Unijui). Esse curso começou a mudar a minha vida nos trabalhos e nas questões culturais e sociais. Passei a entender o contexto planetário e, a partir disso, comecei a trabalhar pelo o povo kaingang, participando de palestras e de muitos projetos para o futuro. O resultado daquele curso foi que hoje estou na faculdade, fazendo pedagogia e me formo no final de 2011. Prometo que vou mais além.” Dorvalino Refej Cardoso Professor bilíngüe da Comunidade Kaingang Por fi

58

59


É preciso manter o Nhande Rekó “O Guarani não gosta de papel. Mas agora está preocupado com a educação escolar”. A educação escolar passou a representar o acesso a uma série de direitos, como a merenda escolar e a bolsa-família num contexto de fome permanente.

60

Evanir Kich,

A educação escolar indígena no Brasil vem carregada de vestígios de uma prática colonialista de quase cinco séculos de programas e projetos de catequização e integração forçada dos indígenas à sociedade nacional. Historicamente, a escola entre os povos indígenas serviu de instrumento de negação da sua identidade e da sua cultura. A partir da Constituição Federal de 1988, o Estado Brasileiro começou a mudar o enfoque da sua política indigenista. Novos princípios passaram a nortear a educação, que agora deve respeitar e favorecer a diversidade cultural e a identidade étnica de cada povo. Neste contexto, surgiram novos atores, os “professores indígenas” e, com eles a necessidade de formação em vários níveis, especialmente de professores bilíngues. Cada estado brasileiro deve assumir e implementar, através de políticas públicas, a formação em nível médio – magistério indígena – dos professores indígenas das etnias que o habitam. O processo de formação vem sendo gradativamente construído pelo movimento indígena organizado, com apoio e participação de instituições não governamentais, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o COMIN, entre outras. Em 1994, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) propôs o Plano Decenal de Educação, que incluiu a educação indígena. Diversos seminários foram realizados para estudá-lo e propor diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, enfatizando a necessidade do envolvimento das comunidades indígenas nas suas escolas, tornando-as coparticipantes do processo. A partir de 1996, com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(LDB), o Estado assumiu mais efetivamente a formação de professores indígenas, assegurando o direito dos povos indígenas a uma educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngüe, garantida na Constituição Federal e que veio sendo regulamentada por vários textos legais. Avanços significativos na formação em nível de ensino médio foram alcançados e, em alguns estados brasileiros, cursos de ensino superior específico foram implantados. A reconstrução da memória histórica, da identidade cultural, da língua materna e do conhecimento científico pode garantir a autonomia de cada povo, via educação. Porém, considerando-se as peculiaridades de cada povo, ainda há muito para ser feito. Os Guarani tradicionais, por exemplo, tiveram uma grande resistência à escola. Só em 2003, um projeto específico, o Protocolo Guarani, passou a atender os professores indígenas dos estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Uma breve retrospectiva ajuda a contextualizar a resistência, considerando que ao longo do século XX os Guarani mantiveram-se retraídos ao contato com a política indigenista governamental. Devido a essa política e ao regime tutelar praticados pelo Estado, eles haviam optado por permanecer afastados para assegurar a continuidade de seu modo de vida tradicional. “É preciso manter o Nhande Rekó”, ou “o nosso jeito de viver”. O Nhande Rekó envolve a manutenção da língua, que é falada nas famílias. A maioria das mulheres e as crianças, de modo geral, só falam o Guarani. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que afirma o país como pluriétnico e multicultural, declarando que as comunidades indígenas têm o direito de viverem conforme as suas próprias culturas e tradições, a situação mudou e os Guarani voltaram a seus espaços territoriais. A realidade, porém, é que a maioria das aldeias continua sem um lugar para viver com dignidade e segurança. Permanecem à margem de estradas ou em áreas públicas cedidas pelo Governo Estadual e por municípios. De acordo com seu Estevão, Guarani do acampamento Arroio Divisa, BR 290, município de Eldorado (RS), “o Guarani não gosta de papel. Mas agora está preocupado com a educação”. Na compreensão deste povo, “papel” significa “escola”. A educação passou a representar o acesso a uma série de direitos, como a merenda escolar, a bolsa-família, a bolsa escola em um contexto de fome permanente. Mas para os Guarani manterem o Nhande Rekó, o essencial não muda – a ga-

A reconstrução da memória histórica, da identidade cultural, da língua materna e do conhecimento científico pode garantir a autonomia de cada povo, via educação. No entanto, considerando-se as peculiaridades de cada povo, ainda há muito para ser feito.

61


Os professores indígenas precisam estar aptos para atuarem em um contexto onde ciência e cultura se encontram: só assim a educação escolar poderá ser um projeto que abre novas perspectivas dentro de uma prática educacional específica e diferenciada, como é a de cada comunidade indígena.

rantia da terra. Como disse dona Laurinda, kunhã karaí da aldeia Itapuã, município de Itapuã (RS): “temos preocupação com as crianças, pois a diversão, a dança, a pesca, a tradição hoje está enfraquecida por causa da falta de espaço.” Dona Laurinda falou em Guarani na Assembléia Legislativa gaúcha por ocasião do Ato Comemorativo pela Semana dos Povos Indígenas de 2010. No atual curso de professores estão se formando 13 professores guarani no Rio Grande do Sul. O primeiro professor bilíngue guarani do RS, há mais de 20 anos, Agostinho Verá Moreira (aldeia Estiva, município de Viamão), autor do livro “IPARAYPY’IA Alfabetizando em Guarani”, menciona a importância de concluir o curso, como “uma possibilidade do professor indígena fazer o Concurso Público.” Mesmo que as aldeias em espaços ainda não demarcados não tenham escolas – as políticas públicas não chegam lá – é possível afirmar que a educação escolar é uma realidade, com conquistas que geram novos desafios. Nessa dinâmica, o professor indígena tem o papel fundamental de criar junto à comunidade uma escola que atenda suas reais necessidades. Além disso, é preciso ressaltar a importância da formação de professores indígenas para que estejam aptos a atuar em um contexto onde ciência e cultura se encontram: só assim a educação escolar poderá ser um projeto que abre novas perspectivas dentro de uma prática educacional específica e diferenciada, como é a de cada comunidade indígena. Evanir Kich, Educadora, obreira do COMIN, Porto Alegre (RS) Mensagem de Martin Junge/FLM

Na Federação Luterana Mundial (FLM) temos acompanhado por muitos anos o trabalho realizado pela IECLB através do COMIN. Para nós, este processo de acompanhamento redundou em importantes aprendizagens, particularmente na área da missão e da diaconia da igreja. Podemos destacar: Respeito pelo/a outro/a: O COMIN tem se esforçado em construir relações caracterizadas por um profundo respeito pelas identidades dos povos indígenas que acompanha. Esta capacidade de escuta e de facilitação, que possibilita a expressão de seus valores, cosmovisão e conhecimento, é reflexo do permanente desejo de resguardar a dignidade individual e comunitária dos povos indígenas. Sentimos que o COMIN com isso está dando expressão a um aspecto central na “missio Dei”. Mesas de encontro e diálogo: Ao mesmo tempo, temos observado com admiração como o COMIN tem sabido abrir mesas de diálogo e encontro. Seja isso com instâncias do governo ou com outros atores da sociedade civil, mas particularmente também dentro da própria IECLB. Muito valiosos são os materiais didáticos que o COMIN desenvolve para as escolas. Estas mesas de encontro nos recordam da centralidade que o encontro e o diálogo devem ter para todos nós que participamos na missão de Deus. Rev. Martin Junge Secretário Geral da FLM

62

63


64

65


Uma Gramática que surpreende Existe preconceito até contra os idiomas indígenas: “A língua deles deve ser bem primitiva” ou “quando conversam, parece grunhido de macaco” são comentários frequentes que os Kulina escutam.

66

Frank Tiss,

Ao falar em gramática, muitos jovens logo pensam em aulas escolares cansativas e um chatas. Para grande parte dos adultos, a gramática simboliza aquele marco de domínio da própria fala que deveríamos, mas nunca conseguimos alcançar. Se a gramática “dificulta” tanto a nossa vida, será que não é bem pior para um povo indígena que apenas há poucas décadas iniciou a sua alfabetização? Nada disso, muito pelo contrário! Para diversas pessoas do povo kulina, no sudoeste do estado do Amazonas, a gramática de sua língua própria tornou-se uma forma de amentar a auto-estima – quase uma literatura de edificação pessoal. Isso está relacionado à discriminação e aos preconceitos que sofreram, pois existe preconceito até contra os idiomas indígenas: “A língua deles deve ser bem primitiva” ou “quando conversam, parece grunhido de macaco” são comentários frequentes que os Kulina escutam. Só pelo fato de eu me dedicar ao estudo e análise de sua língua, os Kulina entenderam como sinal de verdadeiro respeito e estima. Nunca foi difícil achar pessoas que me ajudassem. Em suas reuniões a cada manhã, os caciques escolhiam duas ou três pessoas para que, durante o dia, ficassem comigo na aldeia e respondessem minhas perguntas. Como resultado deste trabalho, publicamos pelo COMIN a primeira gramática abrangente da língua kulina, escrita em português e com mais que 700 exemplos no idioma indígena. O livro serve para que pessoas de fora possam aprender a falar Kulina. A primeira delas foi a minha esposa. Infelizmente, as pessoas com esse tipo de interesse sempre serão poucas.

No entanto, a gramática serve muito mais para os próprios Kulina. Realizamos seminários de vários dias em diversas aldeias. Diferente dos estudos gramaticais em nossas escolas, estes seminários não tiveram como objetivo melhorar e corrigir a expressão entre os Kulina. Os seminários aconteciam nas tradicionais reniões comunitárias. Os encontros serviram para que eu pudesse “devolver” a riqueza que os Kulina tinham ajudado a descobrir. A partir de exemplos e comparações, mostrei para eles a estrutura lógica e sofisticada de sua língua materna. Estudei línguas antigas e modernas, mas a língua kulina é a mais exata e diferenciada que conheci. E isso não pelo número de palavras, mas por seu sistema gramatical. São principalmente dúzias e dúzias de sílabas gramaticais que, acrescentadas no começo ou no final de verbos e substantivos, modificam o sentido e a função dos mesmos. Dou aqui só dois exemplos relativamente simples: para dizer “professor”, os Kulina usam a palvra mamaride, que vem do verbo mari – “ajudar”. Literalmente, mamaride significa “aquele que ajuda”. E “alunos”, eles exprimem em seu idioma por tonawathabakhinihi, o que tem no seu centro o verbo atha – “aprender” e significa “os um por um feitos aprender”. Inúmeras vezes me surpreendi quando, ao procurar por um bom jeito de exprimir uma idéia mais complicada ou mais abstrata, meus pensamentos acabaram pulando para a língua kulina, na qual, de repente, conseguia formular a frase procurada. Durante os seminários nas aldeias, muitas vezes os Kulina, ao estudarem certas conjugações e declinações de sua língua, pediam “bis”, querendo ouvir mais e mais exemplos, como se fossem melodias animadoras em seus ouvidos. A gramática tornou-se um espelho que mostrou para eles a beleza e riqueza do seu idioma. O professor indígena Idirawi comentou: “Agora vimos que a nossa língua não é nada primitiva, mas tem tudo que as línguas europeias têm, e em certos casos, ela tem mais ainda.”

A partir de exemplos e comparações, mostrei para eles a estrutura lógica e sofisticada de sua língua materna. Estudei línguas antigas e modernas, mas a língua kulina é a mais exata e diferenciada que conheci. E isso não pelo número de palavras, mas por seu sistema gramatical.

67


Depoimento liderança indígena Manoel Daora Meu nome é Manoel Daora. Sou do povo Tukuna que significa “gente”. Os brancos nos chamam Kanamari. Eu vivo na região do rio Juruá, afluente do Solimões, no estado do Amazonas. Sou professor e agente de saúde. Nosso povo sofria muito com a chegada dos seringueiros. Muitos morriam de doenças ou de balas. Muitos foram trabalhar como escravos nos seringais. Mas o nosso povo lutou, apesar de tudo, para preservar a nossa cultura, língua e a nossa religião. O meu pai é pajé até hoje. Ele me ensinou muito. Conseguimos a demarcação da nossa terra Kanamari que fica nos municípios de Eirunepé e Itamarati-AM. Nós Kanamari não tínhamos muito contato com o povo vizinho Deni. O COMIN de Carauari promovia com os Deni nos últimos anos cursos para professores, cursos de saúde alternativa, cursos sobre a ecologia e sobre etno-sustentabilidade. O COMIN abriu espaço para nós. Estudamos as religiões de outros povos e as religiões indígenas num curso promovido pelo COMIN em 2006. Percebemos que todos os povos têm seus mitos sagrados. Não queremos perder a nossa religião que tem seus fundamentos em nossos mitos, cantos, danças, rituais, festas, costumes, rezadores e pajés. Quando vimos que o povo Deni elaborou o seu livro de mitos Deni perguntamos ao COMIN, se não podemos fazer o nosso livro de mitos Kanamari também. O COMIN ajudou a elaborar o livro dos mitos Kanamari. O ano de 2010 foi muito especial para nós. O COMIN elaborou um caderno para a Semana dos Povos Indígenas. Quero agradecer ao COMIN em nome do povo Kanamari do rio Xeruã/Itamarati-AM que construiu junto conosco um caderno sobre a nossa cultura. Agradeço a todos os membros do COMIN e da IECLB do fundo do meu coração. O caderno, o livro dos mitos Kanamari e a apresentação de fotos e textos na página da Internet do COMIN expressam o mais importante da nossa cultura. Digo a vocês que o COMIN é para nós, a meu ver, a primeira e única entidade que está divulgando amplamente a nossa cultura no Brasil inteiro. Assim, os nossos filhos, netos e netas não vão esquecer a nossa tradição e língua. Nós estamos estudando a história do Brasil e o português para conhecer melhor o mundo dos não indígenas. Agora eles também podem estudar a nossa cultura para que todos se entendam melhor. Olhando os textos e fotos bonitos do meu povo, me orgulho de ser Kanamari. Distribuímos o caderno com prazer nas escolas, igrejas e secretarias no município de Itamarati-AM. Depois de tanta discriminação e desrespeito no passado, faz bem ser valorizado. Obrigado.

Saúde

Manoel Daora Kanamari, aldeia Santa Luzia, rio Xeruã, Itamarati-AM 68

69


Tecnologia Kulina para água pura

No final do projeto, os Kulina eram donos da tecnologia. Eles aprenderam a dominar todo o processo, tornando-se capazes de manter e reproduzir os filtros, de forma autônoma. Os Kulina vivem em meio a grandes reservas de água doce, bem próximas da superfície da terra. No entanto, água doce não quer dizer água potável. A água impura pode ser um grande perigo, resultando em doenças como diarréia e vômitos, que são algumas das muitas causas de mortes entre as crianças. Assim, durante nosso trabalho no médio Juruá, no Amazonas, surgiu o projeto de fabricação própria de filtros. Em outras palavras: queríamos tornar potável a água disponível na superfície, em vez de extraí-la do subsolo. Os filtros deveriam ser simples, mas eficientes. Como um passo importante, decidimos criar um modelo totalmente produzido a partir de materiais disponíveis localmente: areia das praias dos rios, madeira das matas, caixas, barricas e outros materiais disponíveis no comércio de peças de encanamento em Eirunepé, uma cidadezinha que fica próxima da aldeia. Construímos e testamos, junto com os Kulina, um filtro no terreno da Casa de Saúde Indígena. A aldeia kulina se candidatou para fazer parte do projeto piloto e escolheu dois representantes que, depois de confirmado o bom funcionamento da instalação, vieram buscar o filtro. Junto com a equipe do COMIN, desmontaram-no, levaram as partes para a aldeia e juntaram-nas de novo. Barris cheios de areia imitam o processo do leito do rio que transforma a água potencialmente impura do subsolo em água potável: a areia retira as partículas de impurezas, e, mais importante que isso, purifica biologicamente a água, eliminando a existência de bactérias. 70

O procedimento era sempre o mesmo: uma assembléia da comunidade planejava a construção do filtro e escolhia duas pessoas – os guarda-filtros – como responsáveis pelo manejo técnico. Depois disso, os moradores da aldeia providenciavam a madeira e a areia, e o COMIN entrava com os outros itens.

71


Revitalização do saber tradicional na saúde

O filtro funcionou bem e testes confirmaram que a água era pura. Muito rapidamente outras aldeias começaram a se interessar. O procedimento era sempre o mesmo: uma assembléia da comunidade planejava a construção do filtro e escolhia duas pessoas – os guarda-filtros – como responsáveis pelo manejo técnico. Depois disso, os moradores da aldeia providenciavam a madeira e a areia, e o COMIN entrava com os outros itens. O filtro era construído de forma coletiva, por toda a comunidade. Ela também se responsabilizava por colocar a areia nos barris. Os dois guarda-filtro receberam treinamento para a construção de toda a estrutura, e formação em questões técnicas e de saneamento básico. Nos últimos anos, foram instaladas bombas manuais simples em cima de balsas para a coleta de água. Essas bombas também foram construídas e mantidas pelas aldeias, a partir do uso do mesmo material para encanamentos. A proposta era que os Kulina pudessem manter e consertar tanto o sistema de filtragem quanto as bombas, no caso de problemas. No final do projeto, eles eram donos da tecnologia. Aprenderam a dominar todo o processo, tornando-se capazes de manter e reproduzir os filtros, de forma autônoma. Christiane Tiss Médica, ex-obreira do COMIN, Celle, Alemanha 72

Indígenas têm direito a uma política pública em saúde diferenciada e de valorização dos saberes tradicionais.

A Missão Guarita, criada na década de 1960, vinculada à Paróquia Evangélica de Tenente Portela da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em Tenente Portela (RS), inicialmente prestou serviços à comunidade da Terra Indígena Guarita. Assim, foi instalada uma enfermaria que prestava atendimentos ambulatoriais até a década de 1980. Nesse período, também houve ações para potencializar o conhecimento tradicional em saúde, sobretudo na utilização de plantas para chás e unguentos. A partir da criação do COMIN, em 1982, enfatizou-se uma ação diferenciada em saúde, valorizando os saberes tradicionais das etnias Kaingang e Guarani. Na década de 1990, foi implantado o Programa Saúde Kaingang que priorizou o investimento na capacitação de pessoal indígena na construção de uma abordagem diferenciada em saúde. “Fui uma das primeiras indígenas que cursou o Auxiliar de Enfermagem daqui da Guarita, agora atuo na EMSI”, contou Anísia B. Sales, que atua no Setor Km 10, em Guarita. A proposta de capacitação da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI), da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA)/Ministério da Saúde, acabou se expandindo, agregando a participação e a intervenção de outras comunidades indígenas no Rio Grande do Sul. A partir da cosmovisão holística que os povos indígenas têm da saúde e das boas condições da mãe-terra, o COMIN incentivou o cultivo de ervas medicinais e a produção de medicamentos caseiros. Com isso, foram estimulados os conhecimentos e saberes da medicina tradicional indígena, valorizando e respeitando os 73


“Se os nossos idosos, que são os detentores do saber, não tiverem oportunidade de se pronunciar, de falar de seus saberes, estaremos perdendo junto com eles aspectos importantes de nossa existência”.

74

especialistas tradicionais de cada povo, os Kujã kaingang e os Karaí guarani. Estabeleceu-se, então, na interlocução com a comunidade, um conceito de saúde preventiva, interligada à revitalização dos processos terapêuticos tradicionais. Na década de 2000, executaram-se programas e atividades pautadas na revitalização da medicina tradicional. O COMIN passou a atuar complementariamente à política pública diferenciada do Estado na saúde indígena. Ao lado do trabalho de assessoria continuada, o COMIN executou dois projetos especiais com verbas públicas: Nutrição Guarita (PNG) e Revitalização entre Grupos de Mulheres Kaingang. O PNG referia-se a um convênio entre o estado do Rio Grande do Sul, através da Secretaria de Saúde e o ISAEC-DAI/COMIN, em 2001, para a execução de serviços de assessoria técnica com o objetivo de reverter os índices de mortalidade infantil por desnutrição em Guarita. Além disso, previa a capacitação de técnicos em saúde da Secretaria Estadual da Saúde/RS e das equipes de saúde para atuar junto aos povos Kaingang e Guarani. O foco principal eram as crianças menores de cinco anos com carência nutricional. A intervenção abrangia uma suplementação nutricional às famílias com carência nutricional e a realização de oficinas de nutrição com as mães e avós detentoras do saber tradicional. Nas oficinas se acompanhava regularmente o peso das crianças e eram abordados cuidados e condutas materno-infantis. O primeiro êxito do PNG, que durou apenas um ano, foi que não houve mais óbito infantil e o segundo é que o COMIN pôde viabilizar uma continuidade do trabalho, com apoio dos parceiros de Sulzbach-Rosenberg e Dr. Luppa, da Alemanha. Já o projeto entre mulheres kaingang, dos setores Pau Escrito, Bananeira e Missão, na Terra Indígena Guarita, sobre saberes tradicionais de manejo e uso de espécies medicinais e nutricionais (2007-2008), foi financiado pelo Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia (PPIGRE), da Secretaria da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A proposta era revitalizar e socializar os saberes tradicionais no uso e manejo de plantas como forma de reconhecer o saber que contribuiu na prevenção e cura de enfermidades e no bem-estar comunitário. As duas iniciativas tiveram como premissa o protagonismo indígena e a valorização de seus saberes e cultura. De acordo com uma liderança kaingang, “se os nossos idosos, que são os detentores do saber, não tiverem oportunidade de se pronunciar, de falar de seus saberes, estaremos perdendo junto com eles, aspectos importantes de nossa existência”. Entende-se que a memória viva transmite vários

aspectos relacionados à cultura e ao modo de ser de cada povo. “O alimento também é um remédio, deixa as crianças saudáveis, fortes e com energia para brincar. As gestantes precisam de cuidados durante a gravidez e parto para terem crianças saudáveis,” disse Tereza Kanheró. Abriram-se possibilidades de diálogo no fortalecimento e na revitalização dos saberes tradicionais, à promoção da saúde preventiva. A equipe do COMIN tem prestado assessoria em Educação em Saúde, sempre buscando estimular e fortalecer a identidade indígena, respeitando, valorizando e revitalizando o uso de ervas de domínio tradicional. Tereza Fernandez, do povo Guarani, contou que faz tempo que trabalha com o COMIN. “Ajuda a minha comunidade para ter mais esclarecimento sobre os cuidados com a vida. Para nós Guarani ter saúde é ter semente para plantar na nossa terra e se alimentar bem. Nós também doamos sementes aos nossos parentes, para sempre terem”. Atualmente, o COMIN oportuniza e incentiva espaços de reflexão e intercâmbio de saberes. “Nesses encontros de mulheres, são falados muitos assuntos do nosso conhecimento e que a gente não falava mais. As nossas falas colaboram para preservação da nossa cultura, no nosso cuidado e da nossa língua, que servem como nossa identidade e defesa”, avaliou uma liderança. As temáticas que emergem do grupo são problematizadas para a compreensão de todas e são fundamentais para o fortalecimento, continuidade e compromisso do grupo. Assim, os grupos constituídos por mulheres kaingang e guarani compartilham vivências e saberes, respeitando as diferenças e interesses distintos na busca de melhorias sociais para o fortalecimento comunitário e o protagonismo histórico.

Na sua assessoria em Educação em Saúde, a equipe do COMIN busca estimular e fortalecer a identidade indígena, respeitando, valorizando e revitalizando o uso de plantas e ervas de domínio tradicional.

Noeli Teresinha Falcade Pedagoga e técnica de enfermagem, obreira do COMIN, Tenente Portela (RS) Sandro Luckmann Teólogo, obreiro do COMIN, Santo Ângelo (RS)

75


Meu nome é Rosalina e tenho 43 anos. Sou Kaingang e moro na aldeia em São Leopoldo (RS). Atualmente estou estudando enfermagem na Faculdades EST. Lideranças e comunidade Kaingang Por fi de São Leopoldo estão muito gratos pelo trabalho realizado pelo COMIN, auxiliando os trabalhos culturais e sempre estão presentes em todas as dificuldades que ocorrem, como por exemplo, nas atividades educacionais, construção do Centro Comunitário e no auxílio à busca de madeiras para a construção das nossas casas. Agradecemos à Ione e ao COMIN pelo empenho. Esperamos que continue essa boa parceria junto com a gente para conseguir a melhoria para o bem estar de todos.

Através de amigos como Arteno Spellmeier e Hans Trein, do diálogo com a Secretaria do COMIN, dos relatórios anuais e de contatos com Walter Sass, conheço bem o trabalho do COMIN. O mesmo vale para a Central do Gustav-Adolf-Werk (GAW), em Leipzig. Por isso, foi motivo de grande alegria quando Walter Sass e o cacique Deni Saravi visitaram o grupo do GAW de Berlim, em janeiro de 2010, por ocasião de sua viagem pela Alemanha. Tivemos um longo diálogo sobre a situação do povo Deni e sobre os métodos e objetivos do trabalho missionário do COMIN. Poucos dias depois, eles participaram da instalação do novo Secretário Geral do GAW, Pastor Enno Haaks, em Leipzig. O Catálogo de Projetos do GAW de 2010 traz a descrição do projeto de um sistema de filtragem de água para as aldeias no rio Xeruã, cujo financiamento foi assumido pelo GAW para os próximos quatro anos. Os encontros com o cacique Saravi e com Walter Sass nos convenceram da grande importância que esta iniciativa tem para a saúde e alimentação dos Deni. Também tomamos conhecimento com grande alegria que os Deni perguntaram sobre bíblias em sua língua. Queira Deus que o apoio para a obtenção de água potável venha a se transformar em apoio para que os Deni possam tomar conhecimento das histórias e imagens sobre água do Antigo Testamento (Gênese 2, 8, 24 ou Salmo 42.2 ou Isaías 55.1ss) e do Evangelho segundo João 4. Dr. Dr. h. c. Wilhelm Hüffmeier Presidente do Gustav Adolf Werk, Diasporawerk der Evangelische Kirche in Deutschland

Rosalina Aires de Paula Pela Comunidade Kaingang Por fi, São Leopoldo (RS)

76

77


Xamãs, thothoho e tuberculose O COMIN apostou em um aprendizado mútuo, que facilitou tanto o trabalho dos xamãs como dos profissionais não indígenas de saúde. Uma das situações que encontrei ao trabalhar como médica pelo COMIN junto ao povo Kulina, na região do Médio Juruá, Eirunepé, no Amazonas, foi o grande aumento da incidência da tuberculose. Muitos homens e mulheres estavam infectados, muitos morreram e outros ficaram com dificuldades irreversíveis no pulmão. Os programas públicos de saúde tentavam resolver a situação. Internaram indígenas em hospitais, treinaram agentes de saúde, tudo, porém, com pouquíssimo resultado. Decidimos então entender como os Kulina, da sua parte, veem a tuberculose. Durante quatro anos, entrevistei pessoas de todas as aldeias, incluindo sempre os xamãs nas entrevistas. As respostas foram organizadas, sistematizadas e devolvidas para os Kulina. No final do processo, havia ficado claro que, além da doença – mais recente – chamada “tuberculose”, existia uma outra, com sintomas muito semelhantes, chamada de “thothoho” (tosse). Em abril de 2008, pela primeira vez foi realizado um seminário de saúde com xamãs Kulina. Os representantes da medicina indígena e eu, como médica, passamos vários dias reunidos. O objetivo foi ensinar e aprender mutuamente para avançarmos no tratamento destas duas doenças. No seminário, os xamãs trocaram idéias e anotaram tudo o que sabiam sobre o thothoho. Como é causada por substâncias mágicas, disseram, ela necessita de um xamã para ser tratada, e não de um hospital. E, pela primeira vez, estudaram sobre a tuberculose, tanto no quadro negro como no microscópio. 78

79


O sentimento de gratidão por aprender a diferenciar as duas doenças foi grande. Até então, como os sintomas são muito semelhantes, havia grande dificuldade em identificar o tratamento adequado. Uma cartilha sobre o assunto foi elaborada e distribuída em todas as aldeias. Nos textos, os xamãs afirmam: thothoho e tuberculose são doenças distintas. Thothoho deve ser tratado por um pajé. No entanto, se após cinco dias não houver melhora, o doente precisa submeter-se a um exame de tuberculose. O caminho de um aprendizado mútuo facilitou tanto o trabalho dos xamãs como dos profissionais não indígenas de saúde. Desde o seminário, em 2008, aumentou o número de doentes kulina na procura de tratamento para tuberculose. Christiane Tiss Médica, ex-obreira do COMIN, Celle, Alemanha

Envelhecer com dignidade – uma questão de cultura? Lucio Flores, do povo Terena, e Hans Trein, do COMIN, tomavam uma xícara de café com bolo, na Casa Schalom, em Eisenberg, na Alemanha. Os dois observavam a atividade das mulheres e homens idosos na terapia ocupacional. A maioria tinha severas limitações, estava em cadeira de rodas... Lucio, então, comentou que nas sociedades indígenas não se encontra idosos dependentes, como se via ali. Seria impossível imaginar uma pessoa idosa indígena em cadeira de rodas! Ele não se lembrava de nenhum idoso em situação de dependência. Por que essa diferença? Na conversa, veio a idéia de que essa diferença pode estar ligada também à diferença entre identidade individual e identidade coletiva. Nas sociedades ditas desenvolvidas, com sua identidade centrada no indivíduo, cujo valor se prova pelo trabalho e pelos bens, o idoso chega ao ponto de não ser mais necessário no processo produtivo. O avanço tecnológico torna seu conhecimento obsoleto. A seguridade social ajuda a empurrá-lo ainda mais para a inatividade. Não seria exatamente esse sentimento de não ser mais necessário, de ser descartável, o maior fator da crescente dependência física, mental e emocional? Entre indígenas, é diferente. Os anciãos se sabem carregados por suas comunidades: a comunidade lhes atribui até o último suspiro plena capacidade para trabalhar por sua sobrevivência. Além disso, conta com sua experiência de vida e conselho. Até há pouco, não tinham acesso à aposentadoria... Durante a conversa chegou uma cadeira de rodas nova para o Sr. Becker, de manejo inteiramente eletrônico, locomoção com botões... Será que cada cultura produz os seus idosos e a sua respectiva dignidade? Arquivo COMIN

80

81


Terra 82

83


Uma aventura de sete anos

Para a sobrevivência de um povo indígena, nada é tão importante como a garantia coletiva das suas terras. É nelas que está a sobrevivência, a caça, a pesca e as frutas silvestres com as quais se alimentam. Ali encontram o material que necessitam para fazer as suas casas, canoas e ferramentas. Toda a sua cultura e suas tradições estão relacionadas à terra. Embora os indígenas detenham a posse permanente e o “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos” existentes em suas terras (parágrafo 2º do Art. 231 da Constituição Federal de 1988), elas constituem patrimônio da União. E, como bens públicos de uso especial, as terras indígenas, além de inalienáveis e indisponíveis, não podem ser utilizadas por outros que não os próprios índios. Portanto, a demarcação dos territórios tradicionalmente ocupados por povos indígenas é dever da União Federal, que busca resgatar uma dívida histórica com os primeiros habitantes destas terras; propiciar as condições fundamentais para a sobrevivência física e cultural desses povos; e preservar a diversidade cultural brasileira, como determinado no artigo 231 da constituição brasileira. Ao marcar claramente os limites das terras com as dos vizinhos é que se evita conflitos e a exploração ilegal por madeireiros, fazendeiros ou pescadores. No começo dos anos 90, os grupos kulina que vivem na região do médio rio Juruá, no sul do Amazonas, pediram várias vezes para que o governo iniciasse a demarcação do seu território. Já havia ocorrido vários conflitos com madeireiros e pescadores e com famílias ribeirinhas que começaram a ocupar as margens de alguns rios dentro da área. 84

A demarcação da terra, feita pelos próprios Kulina, foi um trabalho gigante – sete longos anos. Mas eles conseguiram. Em 1998, o governo brasileiro homologou a área como “Terra Indígena Kulina do Médio Juruá”.

85


Os órgãos responsáveis na época, mesmo tendo prometido, nada fizeram. Assim, em uma grande reunião, com a participação de representantes de todas as aldeias, os Kulina decidiram demarcar a terra por conta própria. Foi uma decisão ousada, pois se trata de um território de mais de 7 mil quilômetros quadrados. Eles encontraram aliados para este grande projeto na organização indígena União das Nações Indígenas do Acre, e em organizações de apoio como o COMIN, a Operação Amazônia Nativa (OPAN) e a organização evangélica alemã Pão para o Mundo (PPM). O que uma empresa contratada teria feito com a ajuda de helicópteros, os Kulina fizeram a pé, trabalhando com as próprias mãos e carregando nas costas, durante dias e semanas, ferramentas e alimentos. O trabalho foi gigante. Os grupos abriram uma picada de seis metros de largura, circundando o território, e clareiras de um hectare onde a picada mudava de direção. Enquanto os homens trabalhavam no projeto, ficando dias longe, as mulheres assumiram todas as tarefas nas aldeias. Havia vezes, em que um grupo queria desistir – tudo era muito sofrido. Nesses momentos, as lideranças traziam novo ânimo, lembrando que, ao viver cercado de brancos, é importante deixar claro os limites e, mais ainda, ter um documento sobre a sua terra. “É o único jeito de garantir condições de vida também para os filhos e netos.” Foram sete longos anos de trabalho. Mas os Kulina conseguiram. Em 1998, o Estado Brasileiro homologou a área como “Terra Indígena Kulina do Médio Juruá”. Frank Tiss Teólogo e linguista, ex-obreiro do COMIN, Celle, Alemanha

Meu nome é Bruno Ferreira, tenho 43 anos. Sou Kaingang, professor formado em História, moro na Terra Indígena Guarita, no município de Redentora (RS). Tive os primeiros contatos com o COMIN no início de 1990, por conta do trabalho que o COMIN estava desenvolvendo com os professores Kaingang do Rio Grande do Sul. Esse trabalho deu início ao primeiro curso de formação de Professores Bilingues em Magistério Específico para o Povo Kaingang, nos anos de 1993 1995. Esse curso deu inicio à toda a caminhada em direção a uma formação escolar diferenciada nas terras Kaingang, no RS, a partir da nova Constituição Brasileira. Outro trabalho importante do COMIN, a meu ver, é o apoio dado às demarcações e à retomada das terras kaingang, tendo como ponto alto a autodemarcação da Terra Indigena de Irai, em 1992. Depois dessa demarcação, os Kaingang desencadearam as demais retomadas, em Votouro, Nonoai, Ventarra, Montes Caseiros, Serrinha e outras. Esses dois trabalhos que cito aqui são muito importantes para a sobrevivência para os Kaingang como grupo étnico, seja de sustentabilidade econômica, de sua afirmação cultural e lingüística. Bruno Ferreira Professor, Guarita, Tenente Portela (RS)

86

87


O Direito Originário, como o próprio nome já diz, é o Direito que está na origem, ou seja, onde tudo começou. Trata-se, portanto, de um Direito que vem em primeiro lugar.

88

Os povos indígenas e o direito originário à terra

Muitos se perguntam: por que os povos indígenas têm tanto direito assim a suas terras? Questionam-se principalmente aqueles que são atingidos pela demarcação de uma terra indígena. Em geral se trata de proprietários com títulos emitidos pelo próprio Estado que compraram e estão ocupando as terras há gerações. Como pode ser que depois de décadas de uso das terras, de repente vem o Governo (a FUNAI) e diz que as terras são indígenas e determina legalmente que elas devem ser devolvidas aos indígenas? Geralmente esses processos são muito conflituosos. Já durante o processo de estudos de identificação e delimitação coordenados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), as pessoas envolvidas se revoltam, resistem, lutam contra, se sentem indignadas, violentadas. Ocorrem muitas mobilizações, os atingidos se organizam, buscam apoio na sociedade, contratam advogados, se socorrem de parlamentares e outras autoridades, sindicatos. Mas, ao final, após anos de luta, de sofrimento para todos os lados, as terras acabam sendo reconhecidas e demarcadas como terras indígenas. As famílias que ocupavam essas terras, independente do tempo de ocupação, acabam tendo que sair. Por direito, ou são indenizados, ou reassentados, ou ainda as duas coisas. Se não correrem atrás do seu direito ficam sem indenização ou reassentamento. Mas, por que isto é assim? Que direito maior é esse que os povos indígenas têm, que acaba por anular até mesmo títulos de propriedade plenamente válidos, que foram concedidos pelo próprio Estado em tempos idos? Trata-se do que se cha-

ma de Direito Originário, ou ainda, como já foi conhecido no passado, do Indigenato, ou Direito de Indigenato. O Direito Originário, como o próprio nome já diz, é o Direito que está na origem, ou seja, onde tudo começou. Trata-se, portanto, de um Direito que vem em primeiro lugar, um Direito que é anterior a qualquer outro Direito. Ele existia antes de outro Direito. E, como todos nós concordamos na nossa vida em sociedade, quem chega antes, quem vem em primeiro lugar, tem mais direitos. Poderíamos dizer, guardadas as devidas proporções, que todos nós concordamos que quem chega primeiro para assistir um filme pode escolher o melhor lugar na platéia, e ninguém que chega depois pode dizer a essa pessoa: saia daí que eu quero sentar no melhor lugar. Poder fazer isto, um valentão até que pode, mas daí temos que reconhecer que, se isto fosse possível, não viveríamos numa democracia, onde todos temos nossos direitos garantidos, inclusive o direito de chegar primeiro e escolher o melhor lugar. Se não fosse assim, não viveríamos no que chamamos de Estado Democrático de Direito. Assim, de uma maneira bem simples de se entender, os indígenas foram os que chegaram antes nesse nosso cinema chamado Brasil. E eles chegaram muito, mas muito antes. Eles já estavam assistindo o maravilhoso filme que é nosso país há dezenas de milhares de anos, quando, de repente, se abateu sobre eles, e sobre milhares de outros povos indígenas no mundo inteiro, a maior hecatombe que já ocorreu na história da humanidade. A partir dos séculos XV e XVI, praticamente um quarto da humanidade de então, aproximadamente 100 milhões de pessoas, nas Américas, na Oceania, na África, foram dizimadas, milhares de povos indígenas, ou, para manter as idéias no nosso tema, milhares de povos originários, foram exterminados para sempre, total, ou parcialmente. A rigor então, o Direito Originário dos Povos Indígenas/Originários existia antes de existir o próprio Estado Brasileiro. Assim, ele é, inclusive, maior e mais forte do que o próprio Direito do Estado. Recentemente, no turbulento e badalado caso do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, do Estado de Roraima, que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que é nosso maior e mais importante Tribunal no país, foi exatamente este o cerne em discussão. O Brasil inteiro acompanhou esse caso, as opiniões estavam divididas, uns a favor dos indígenas, outros a favor dos ocupantes não indígenas daquelas terras, alguns destes com títulos há mais de 50 anos. O STF acabou decidindo em favor

Já é de longa data que, não só no Brasil, mas na maior parte do mundo, os direitos dos pobres, dos indígenas, dos negros, das mulheres, e de muitos outros segmentos sociais não são respeitados.

89


Assim como olhamos para os povos indígenas, temos também que olhar para as pessoas que têm sido atingidas pelas demarcações dessas terras, muitas das quais receberam essas terras do próprio Estado.

90

dos indígenas. Na verdade, quem conhece os direitos dos Povos Indígenas e sabe sobre esse tal de Direito Originário, já sabia de antemão que a decisão do STF seria e só poderia ser esta. Essa corte, que julga todos os casos que têm por base nossa Constituição, não tinha outra alternativa. Se decidisse contra os indígenas, ela própria teria rasgado a Constituição da qual é a principal defensora. Muitos também pensam que esta tal história de Direito Originário é uma novidade, uma moda que mais cedo ou mais tarde vai acabar. E assim, muitas vezes, acabam ludibriando a boa-fé das pessoas que estão sofrendo o grave problema de terem que sair de suas terras e devolvê-las aos indígenas. Esta também é uma idéia errada. As discussões sobre o Direito Originário dos Povos Indígenas, do Brasil, das Américas, da África, são muito mais antigas do que o próprio Brasil. Quando a Europa começou a se expandir a partir de 1400 DC, primeiro para a África, depois para o mundo inteiro, o debate sobre esse Direito já era muito grande, principalmente dentro da Igreja e dentro das universidades da época. E a idéia que prevaleceu, desde então, é a de que os povos indígenas têm o Direito Originário sobre as terras que ocupam e nem mesmo o Papa, nem os reis poderiam invadir, destruir, massacrar, escravizar ou transferir esses povos de lugar. Nós sabemos que nada disto ocorreu. Já é de longa data que, não só no Brasil, mas na maior parte do mundo, os direitos dos pobres, dos indígenas, dos negros, das mulheres, e de muitos outros segmentos sociais não são respeitados. Os povos europeus, muitas vezes, com o apoio da própria Igreja, invadiram, destruíram, mataram, escravizaram e saquearam o mundo inteiro. Se adonaram das terras, mesmo que soubessem que estavam fazendo isto contra as suas próprias leis. Muitas vezes, são os próprios Estados que descumprem as leis e agridem os direitos. Matam-se pessoas, povos, mas não se consegue matar idéias, direitos. Estes permanecem. Durante os já mais de cinco séculos de história de nosso país, houve inúmeros movimentos contra e a favor dos direitos dos povos indígenas. Isso não impediu que eles fossem lenta e paulatinamente sendo destruídos e seus territórios conquistados e colonizados, na maioria das vezes pelo próprio Estado. Já tivemos oito constituições federais em nossa história, mas somente na última, na atual Constituição Federal de 1988, é que pela primeira vez foi inscrito, em um texto constitucional, um capítulo inteiro sobre os povos indígenas – o Capítulo VII - Dos Índios. Isto foi resultado da luta democrática que se instalou no país no período após a

ditadura militar. O país passou a respirar mais liberdade, as pessoas se mobilizaram para garantir seus direitos e os indígenas conquistaram, finalmente, o reconhecimento de seu Direito Originário. Está escrito, no Artigo 231 da Constituição, que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. E assim, quando a FUNAI realiza um estudo, reconhecendo que uma determinada terra é de ocupação tradicional indígena, não resta outra alternativa, se queremos de fato viver em um Estado Democrático de Direito, onde todos, sem distinção de cor, raça, religião, classe, gênero, idade, têm seus direitos garantidos, que não seja a demarcação dessas terras e sua devolução aos donos originários. Comentamos ainda um aspecto que também tem sido utilizado de forma equivocada, inclusive por juízes, sobre esse tema. Dizem aqueles que são contra os indígenas e este Direito, que então teríamos que devolver todas as terras do Brasil aos indígenas e voltar todos para a Europa. Nada mais distorcido e mal intencionado, por um simples e mesmo lamentável fato: a grande maioria dos indígenas que aqui viviam originalmente sequer existe mais. Foram dizimados, e isto não é coisa do passado. Somente no Século XX quase cem povos foram exterminados e suas terras tomadas. Estamos, portanto, falando de uma ínfima parcela de pessoas e de terras. Somados todos os indígenas ainda existentes, não dá 0,5% da população brasileira. Somadas todas suas terras, não chegamos a mais do que 12% do território brasileiro, mas isto em função das terras maiores da Amazônia. Nas regiões Nordeste, Leste e Sul de nosso país, somadas todas as terras originalmente ocupadas pelos indígenas, não chegamos a 1% de todo o território. Precisamos, portanto, nos questionar: será que seremos de fato uma sociedade democrática, livre e principalmente justa se não devolvermos aos donos originários pelo menos esses poucos percentuais de todo um vasto território que sempre foi seu? Mas, assim como temos cada vez mais olhado para esses povos e garantido seus direitos, temos que olhar para as pessoas que têm sido atingidas pelas demarcações dessas terras, muitas das quais receberam essas terras do próprio Estado. Não podem, portanto, ser chamadas simplesmente de invasores de terras, ou matadores de indígenas. E isto não está bem resolvido, ainda, pelo nosso Direito e precisa ser mudado. A Constituição diz que os títulos que incidem sobre as terras indígenas são

Defendemos que todos os ocupantes de boa fé de terras indígenas, que receberam seus títulos de proprietários de qualquer Governo, tanto da União, quanto dos Estados, sejam indenizados.

91


São dois direitos que devem ser garantidos: o direito originário dos povos indígenas sobre suas terras e o direito a uma justa indenização dos ocupantes que tenham títulos válidos sobre elas.

nulos, mesmo que tenham sido dados justamente pelo próprio Estado. Isto até pode ser legalmente correto, mas não é justo. E sabemos que nem sempre as leis caminham junto com a Justiça. No Estado do Rio Grande do Sul já houve mudanças. Quando uma terra indígena é demarcada, o Estado deve indenizar as terras dos colonos ocupantes que receberam os títulos do Estado. Mas isto não acontece no RS, e nem no resto do Brasil, quando os títulos foram dados pela União, pelo Governo Federal. E esta é uma legislação que deve ser alterada. Defendemos que todos os ocupantes de boa fé de terras indígenas, que receberam seus títulos de proprietários de qualquer Governo, tanto da União, quanto dos Estados, sejam indenizados por terem que devolver suas terras à União para uso exclusivo de seus donos originários. Isto em nada enfraquece o Direito Originário dos indígenas, pelo contrário, empresta-lhe antes um revestimento de JUSTIÇA SOCIAL. O Direito precisa ser lógico, mas principalmente moral e justo. A Igreja precisa empenhar-se nesta tarefa, pressionando as autoridades para que haja direito a uma justa indenização das benfeitorias e das terras dos ocupantes de boa-fé, que são atingidos pela demarcação dos territórios originais dos povos indígenas. São dois direitos que devem ser garantidos: o direito originário dos povos indígenas sobre suas terras e o direito a uma justa indenização dos ocupantes que tenham títulos válidos sobre elas. Mozar Artur Dietrich Advogado, superintendente regional do INCRA/RS, Porto Alegre (RS)

Em 1999, fui convocado para assumir o cargo de assessor para a América Latina da Igreja Evangélico-Luterana da Baviera (ELKB). Uma das primeiras tarefas consistiu em elaborar com os/ as colegas do Brasil, para o ano 2000, uma declaração conjunta da ELKB e da IECLB referente às comemorações dos 500 anos. Neste contexto, estava em foco, não por último, um chamamento ao arrependimento em vista da História do Brasil. Constatamos, nesta oportunidade, quanto ao tema “Povos Indígenas”: “Os conquistadores ignoraram os direitos e a dignidade dos povos indígenas, os exploraram, os escravizaram, lhes transmitiram doenças contagiosas ou, em muitos casos, simplesmente os assassinaram. Uma população de aproximadamente 5 milhões de pessoas, por ocasião do início da conquista, ficou reduzida a 330 mil pessoas indígenas, atualmente, ou seja, uma fração mínima da população do Brasil como um todo...” A declaração conjunta fortalece a cooperação e a parceria entre as duas Igrejas “em favor de uma História de solidariedade, em que todas as pessoas tem reconhecidas a sua dignidade e a expectativa de paz num novo século sem exclusões”. O trabalho do COMIN situa-se neste contexto. Nós da ELKB apoiamos esse trabalho através de uma parceria entre o Distrito Eclesiástico Sulzbach-Rosenberg, COMIN e Kaingang de Guarita, através de recursos orçamentários para o pagamento de obreiros e obreiras, através do apoio a projetos e de um círculo de pessoas amigas do COMIN. Duas vezes ao ano informamos este círculo sobre o trabalho do COMIN e pedimos apoio financeiro para desafios do momento. O COMIN tem na Baviera muitos/as amigos/as e apoiadores/as competentes para ajudar no importante trabalho junto às pessoas indígenas no Brasil. Wolfgang Döbrich Conselheiro aposentado, ex-assessor para a América Latina da Igreja Evangélico-Luterana da Baviera (1999 a 2008)

92

93


Um carpinteiro incomum Dois irmãos moravam como vizinhos. Suas terras eram divididas por um rio. Nos últimos tempos, um desentendimento sobre as divisas que já vinha de longe começou a se avolumar. Brigaram tão feio que não quiseram mais se ver, que dirá, se falar. Certo dia chegou um carpinteiro, pedindo trabalho. Vinha com suas ferramentas e a sua vontade. Só lhe faltava uma tarefa. O irmão resolveu dar uma utilidade ao monte de madeira que estava empilhada no pátio. Pediu ao carpinteiro que construísse uma cerca bem alta na beira do rio, para que não precisasse mais ver nenhum sinal do irmão. Então, viajou. Depois de algumas semanas retornou. Ficou muito incomodado com o que encontrou. Em lugar de uma cerca, o carpinteiro tinha construído uma ponte. Enquanto xingava o carpinteiro por essa alteração da ordem, viu o seu irmão vindo pela ponte, de braços erguidos, pedindo perdão. Ele não se agüentou e foi ao encontro do irmão, fazer as pazes. Quando se deram conta, o carpinteiro já ia longe. Chamaram-no de volta. Queriam comemorar e festejar a reconciliação. Mas, o carpinteiro pediu licença de continuar o seu caminho. “Ainda tenho muitas pontes a construir”. O COMIN é um construtor de pontes entre culturas, cuja história opõem seus representantes, indígenas e colonos, ambos elos oprimidos em nossa sociedade. O histórico conflito de direitos pela terra os fez chegar até o ponto da cerca, resultando em discriminação e desprezo mútuo. O COMIN vê aqui uma tarefa de reparação e reconciliação. Faz isso dentro dos parâmetros legais e com o objetivo de reconciliar o que pelo preconceito e a discriminação parece irreconciliável. É compreensível que, durante o período de tensão, o COMIN também seja xingado pela ponte que está construindo, pois sua proposta é contrária às regras de força que predominam na sociedade. Nossa inspiração vem da reconciliação que nos foi dada em Cristo. I Coríntios 5.17 ss. Evaldino Keller Conselheiro do COMIN pelo Sínodo da Amazônia

94

95


Os povos indígenas estão sempre buscando o exercício de uma cidadania diferenciada, sempre empurrando o Estado a assumir esse seu caráter pluricultural, onde de fato cada cultura, cada língua, cada jeito de ser e pensar e de conceber o mundo seja respeitado.

96

O Direito só chega se a gente corre atrás

Maria Eva Canoé é coordenadora pedagógica da educação escolar indígena da região de Guajará-Mirim, estado de Rondônia. Ela é mãe de quatro filhos, esposa e atualmente coordenadora do movimento indígena de Rondônia, Sul do Amazonas e Noroeste do Mato Grosso. Na escola ou no movimento, está sempre na luta pela defesa dos direitos indígenas. Por onde passa, diz que a história dos povos indígenas não é só história do passado – como ainda é trabalhado em muitas escolas não indígenas – mas também é história do presente e do futuro. Um futuro que, nas leis, começou a ser traçado com a Constituição Federal de 1988, que trouxe um novo olhar para os povos indígenas. De fato, foi a Lei Maior do nosso país que possibilitou uma nova perspectiva. Fruto de muita mobilização desses povos e de seus aliados no período constituinte, o texto constitucional reconheceu aos índios sua organização social, seus usos, costumes, línguas e tradições e o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Se antes a legislação previa a assimilação desses povos à sociedade não indígena nacional, agora o determinante é o reconhecimento dessa diversidade étnica. Da negação que existia anteriormente, o Estado passou a ter o dever do reconhecimento e valorização das centenas de culturas indígenas existentes no nosso país. Essa mudança de paradigma põe a demarcação das terras como primeiro assunto de pauta. Não é possível reconhecer e valorizar culturas de mais de 220 povos indígenas existentes no nosso país sem a demarcação de suas terras tradicionais. E – ainda que a Constituição Federal de 1988 tenha estabelecido um prazo de cinco anos para o Estado demarcar todas as terras indígenas – mais da metade dessas terras não foi demarcada.

Hoje, ainda muitos povos nem mesmo têm a posse de suas terras tradicionais, encontram-se na beira de estradas – como é caso de muitas comunidades guarani, foram acolhidos por seus parentes vizinhos – como os Gavião, expulsos de suas terras e acolhidos nas terras dos Arara – ou estão morando em vilas enquanto suas terras estão nas mãos de fazendeiros. São muitas histórias de usurpação de terras tradicionais e o Estado não tem dado conta, por ineficiência e falta de vontade política, de atender essa demanda. Apesar disso, os povos indígenas seguem olhando para o presente e para o futuro. Além de continuamente exigirem a demarcação de suas terras, lutam para que políticas públicas sejam definidas e implementadas de acordo com as suas realidades. E isso não é fácil, pois o Estado brasileiro, apesar de reconhecer essa diversidade étnica, não mudou suas características de Estado-Nação para um Estado pluricultural. Significa que ainda não houve mudanças substantivas nas práticas e nas estruturas político-administrativas do Estado para atender esse caráter multiétnico. Por conta dessa debilidade estatal, na definição e implementação de políticas públicas, os povos indígenas quase sempre têm que se adaptar ou se adequar às estruturas político-administrativas do Estado. Entretanto, nem mesmo isso tem feito os povos indígenas desanimarem. Estão sempre lutando para o exercício de uma cidadania diferenciada, sempre empurrando o Estado a assumir esse seu caráter pluricultural, onde de fato cada cultura, cada língua, cada jeito de ser e pensar e de conceber o mundo seja respeitado. Como sempre se diz nas assembléias indígenas o Direito só chega se a gente corre atrás. Falando na sua própria língua ou em um português arranhado ou bem expressado os povos indígenas estão sempre correndo atrás dos seus direitos e mostram que a história dos povos indígenas não é só história do passado, mas do presente e do futuro, como diz a líder Eva Canoé.

Os povos indígenas dão exemplo ao lutar pelos seus direitos, mostrando que sua história não é só história do passado, mas do presente e do futuro.

Jandira Keppi Teóloga e jurista, obreira do COMIN, Ji-Paraná (RO)

97


Uma base para o engajamento do Arbeitskreis Brasilien (Grupo de Trabalho Brasil) da Igreja Evangélica de Kurhessen-Waldeck em favor do COMIN, sem dúvida são os 20 anos de contatos pessoais (Spellmeier, Scheffler, Trein, Sievers). Desde o início de 2010, estamos combinando temas, montando estruturas e construindo a parceria para além desses contatos pessoais. O interesse principal é o intercâmbio de experiências na caminhada para uma convivência na diversidade, tanto aqui como lá. Especialmente importante para o AK Brasil é a seguinte observação: no COMIN a confissão diante da injustiça contra a minoria indígena ocorrida durante a colonização alemã, há mais de 150 anos, não apenas elaborou um discurso convincente, mas palmilhou uma caminhada de reconciliação na prática. Essa caminhada pode conduzir a conflitos intensos dentro das comunidades luteranas, pois a defesa de direitos da minoria indígena pode se dirigir contra os interesses dos próprios membros da igreja (reassentamento). O AK Brasil reconhece aqui um engajamento exemplar de cristãs e cristãos evangélicos, no qual o reconhecimento teológico de culpa e o mandato evangélico para a reconciliação tem potencial para superar os próprios interesses. Bruno Inkermann Engenheiro agrônomo, Oficina Ecumênica Kassel RFA Kurt Grützner Pastor, coordenador da Capelania Policial AK Brasil da Igreja Evangélica de Kurhessen-Waldeck

98

99


“os brancos... roubam no braço e no papel, pois não sabemos escrever.”

A força dos Deni na demarcação do seu território

A Terra Indígena Deni, como hoje é denominada, está situada entre os municípios de Itamarati (AM) e Tapauá (AM). A terra dos antepassados é situada nas planícies do rio Purus e Juruá (AM), ambos afluentes do rio Solimões, entre o rio Cuniuã o rio Xeruã. A demarcação, financiada pelo Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL) e executada pela Fundação Nacional de Apoio ao Índio (FUNAI), foi concluída em agosto de 2003. Em 2006, também com o apoio do PPTAL, foi construída uma casa de vigilância flutuante na boca do rio Xeruã. Na região do rio Xeruã existem quatro aldeias, com uma população de 617 pessoas. Na região do rio Cuniã vivem 520 Deni. Para chegar a essa demarcação foi uma luta dos próprios Deni. Eles tiveram o primeiro contato com não indígenas na segunda leva de seringueiros nos anos 1942 e 1945, quando sua área foi invadida por causa do látex vendido aos americanos durante a Segunda Guerra Mundial. Os Deni foram obrigados a trabalhar semiescravizados para os seringueiros. Sua estrutura social e suas plantações sofreram um impacto muito grande. Além disso, os não indígenas trouxeram doenças mortais para os Deni, como tuberculose, pneumonia e sarampo. Nos anos 80, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) começou a visitar o povo Deni, até então despercebido pelo povo brasileiro. Em 1992, uma epidemia de sarampo, trazido por madeireiros, matou 66 Deni nas aldeias do rio Xeruã. Numa carta das lideranças Deni do rio Xeruã e do rio Cuniuã, em 1992, ao então presidente da FUNAI, Sidney Possuelo, eles escrevem: “os brancos... roubam no braço e no papel, pois não sabemos escrever.” 100

O filho do cacique Maca Deni, Saravi da aldeia Morada Nova, ficou um ano em Manaus com tuberculose e foi indicado como novo líder por causa dos seus conhecimentos de português. Saravi começou a sua luta pela terra dos antepassados, invadida por seringueiros e pescadores de Manaus e Cruzeiro do Sul que tiraram toneladas de peixe na boca do rio Xeruã. Os peixes e os quelônios ficaram cada vez mais escassos. Em 1985, um grupo de trabalho composto por funcionários da FUNAI, do Instituto de Terras da Amazônia, do CIMI e dos próprios Deni fez a identificação da área indígena. O laudo antropológico não foi entregue à FUNAI e o processo estagnou, até o ano de 1999. A liderança Bahavi Deni da aldeia Buzina escreveu em 1996 sobre a importância da terra e da mata: ”É na mata que está a nossa alimentação. Lá também há a carne de caça, as frutas e os peixes. O rio e os igarapés também ficam na mata. A mata é muito importante para proteger a terra. Ela também protege a água e os animais. Não queremos a retirada de madeira da nossa mata para não acabar com ela. Sem a mata, fica só uma terra pobre. Por isso que queremos a nossa terra demarcada.” Em janeiro de 1999 foi composta uma nova equipe de trabalho da FUNAI para identificar e delimitar a área deni. O relatório final foi publicado no diário oficial em 2001. Mesmo assim, a demarcação não saía por falta de recursos. Em 2001 um vereador de Itamarati, Manoel Paulinho, começou a colocar placas e picadas na parte do rio Xeruã, dizendo que a terra era da sua família. Os Deni retiraram as placas, dizendo que a terra era sua muito antes da chegada dos seringueiros. O vereador entrou em contato com uma empresa da Coréia do Sul, WTK, que disse que comprou uma grande parte da área deni e colocou picadas e placas em grande estilo. O Greenpeace soube disso e entrou em ação, trazendo representantes de muitos países para ajudar os Deni na autodemarcação. Foram feitas picadas iniciais, mas a FUNAI proibiu a continuação do trabalho do Greenpeace. Mesmo assim, o objetivo do Greenpeace foi alcançado: divulgar a necessidade da demarcação da área Deni. A FUNAI mandou uma empresa para fazer a demarcação e os Deni, a OPAN, o CIMI e o COMIN acompanharam o trabalho até a conclusão da demarcação.

”É na mata, que está a nossa alimentação. Lá também há a carne de caça, as frutas e os peixes. O rio e os igarapés também ficam na mata. A mata é muito importante para proteger a terra”

Ms. Walter Sass Teólogo, obreiro do COMIN, Carauari (AM) 101


Justiça e Reconciliação A justiça e a paz se abraçarão (Salmo 85,10). Sem justiça não há paz. No curso da história humana sucedem-se fatos e episódios que criam injustiça. A injustiça empurrou e mantém ainda dois terços da humanidade na miséria, através de guerras, conquistas, escravidão, colonização. Assim como a discriminação, a pobreza é construída e, portanto, também pode ser desconstruída, através de reparação, de justiça restaurativa junto àqueles que sobreviveram. Indígenas precisam da justiça restaurativa para que possa haver paz. A parte fundamental dessa justiça restaurativa deve ser operacionalizada politicamente pelo Estado. Nossa Bíblia é portadora da justiça restaurativa. Entretanto, uma interpretação equivocada transformou um bem em mal. O que era para ser reparação passou a ter o significado de vingança, retribuição: “Olho por olho, dente por dente”. Uma leitura cristã depreciativa do judaísmo virou o seu bom significado ao avesso. No sermão do monte, Jesus não cria uma antítese ao “que foi dito aos antigos”, mas radicaliza ainda mais a sua própria tradição religiosa. A justiça restaurativa é a base para a reconciliação e para a paz. A missão do COMIN e, por extensão da IECLB, é de reconciliação com base na justiça. Assim como Cristo nos reconciliou com Deus, nossa tarefa é trabalhar pela reconciliação. Em lugar de muros queremos construir pontes, ajudar a reconciliar o que parece irreconciliável – indígenas, descendentes de escravos e colonos – porque Deus nos convoca para essa tarefa. Assim diz o apóstolo Paulo, em 2 Co 5.18: Ora, tudo provém de Deus que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação. A reconciliação da qual eu falo não é de se dar tapinhas nas costas nem de apenas não se desejar o mal. A reconciliação acontece quando o mais fraco e injustiçado pode dizer: agora eu me sinto respeitado em minha dignidade de ser humano igual aos outros. No COMIN fazemos o nosso trabalho tendo numa mão a Bíblia e na outra a Constituição Federal. Nosso olhar está focado no horizonte do Reino de Deus. Ms. Hans Alfred Trein Teólogo, coordenador do COMIN, São Leopoldo, Rio Grande do Sul

102

103


Falando a verdade, nós não temos hora; não sabemos se vai nos sobrevir vida finada. O mesmo é com o milho. Ele não sabe se amanhã vai haver chuva de pedra ou vento forte, que o derrube e quebre completamente.

104

Os pés que rezam e rememoram a história

Levantar a Terra, Esticar a Terra Os povos Kaiowá do Mato Grosso do Sul são os mesmos Pai-Tavyterã do Paraguai. Pai-Tavyterã significa “habitantes do povoado do centro da terra”. Para eles, a terra “foi erguida pelo Ser Criador”, Ñanderu omopu´ã yvy, primeiro porque o próprio Ser Criador precisava de um lugar para apoiar seus pés e, segundo, para que os futuros habitantes da terra tivessem um lugar onde apoiar seus pés e um lugar de onde tirar seu sustento. Como outros grupos humanos, também para os Kaiowá o centro da terra, yvayvakua ou yvypyte, tem grande importância na sua orientação espiritual e fica na região onde teria começado a criação do mundo e dos seres humanos. O Ser Criador teria levantado a terra em território kaiowá – pai-tavyterã. É o que nos diz a própria autodenominação do grupo, que se entende como “habitantes do povoado do centro da terra”. Os pés adquirem uma importância muito grande nos relatos sobre a origem do mundo e dos humanos. Eles também têm uma grande importância na forma como os Kaiowá e os Pai-Tavyterã mantêm viva essa tradição, nos seus cantos, nas suas histórias e nas suas celebrações. O Ser Criador levanta a terra porque precisa um lugar para pôr seus pés e para que os Kaiowá tenham um lugar para seus pés. Sabendo que seriam muitos os que iriam habitar a terra, Ele estica a terra, ampliando sua superfície, para que todos os humanos tenham um lugar para seus pés. A terra é um espaço andado, percorrido, humanizado, cultivado. “Nosso Primeiro Pai” abre uma clareira na mata e faz nela a primeira roça. “Nossa Primeira Mãe”

é uma viajante, como “Nossos Primeiros Irmãos”. Ao andar, os primeiros habitantes da terra descobrem os animais e as plantas, lhes dão nome e aprendem a conviver com eles e a criar da terra seu sustento.

Narrar Deus com os pés Dos cantos dessas comunidades indígenas, o “canto-reza longo”, jerosy puku, é uma espécie de sinfonia teológica que sintetiza a história da criação e da ocupação da terra. A história é proferida durante as grandes celebrações do grupo, por ocasião da festa do milho e da festa do menino. Os versos são cantados e caminhados em uma espécie de marcha ascendente que proporciona aos celebrantes experiências de encontro com o Ser Criador. Durante a caminhada ritual, os cantores avançam num espaço imaginário, entram e ocupam novas terras e novos céus, cujas características são enumeradas no canto. As estrofes da “longa reza”, proferidas durante a caminhada, costumam ser divididas em vários Jasuka. O primeiro Jasuka narra o surgimento do céu e da terra. Na versão recolhida por Samaniego (1968), o canto começa assim: “No princípio, era meu Último-Primeiro Pai Eterno, quando ainda não existia nada”. Na segunda estrofe evoca-se: “Meu Grande Pai Eterno” e se menciona diretamente seu agir, ao cantar “Eu levantei esta terra, (...) no passado remoto; com a espuma primordial de Jasuká eu levantei esta terra (...) com Jasuká, fulgurando a luz dos relâmpagos”. Este lugar (Jasuká) é alcançado logo nas primeiras horas da noite, quando recém inicia a procissão. A terra é contemplada como nos primórdios, uma tênue neblina forma um anel ao seu redor. À medida que a reza avança, vão-se rememorando diversos episódios das origens. É como se a reza fosse desenhando cada personagem e evocando suas circunstâncias. Assim, comenta-se que se está chegando ao corpo de Tani (referência a Santo Estanislau), ao corpo do milho, ao corpo do índio, ao corpo de “Nosso Pai” (Tani retére. Tani é forma abreviada de [São] Estanislao. Retére provém de rete rehe e significa “por seu corpo”. Na seqüência: Itymby retére, Ava retére, Ñande Ru retére e Ñande Ru retére). Ao caminhar durante a sua longa reza, os Kaiowá rememoram ritualmente as dificuldades enfrentadas pelos seus antepassados, simbolizados na figura do “Nosso Irmão”. O caminhar repete a peregrinação do herói cultural que, enquanto andava, foi aperfeiçoando o mundo, tornando-o humano. Nas palavras do kaiowá Mário Toriba,

Quando a reza chega neste lugar e começa a mencionar a tristeza daqueles que nos ensinaram o nosso modo de ser, começamos a chorar. Então o rezador, enquanto caminha com sua reza, pensa nos seus filhos, pensa no destino da sua palavra, no destino da história que ele conta.

105


enquanto os indígenas vão estabelecendo vínculo com a origem, o sol, omboapýmaramo, “esse que nos ilumina”, começa a contar sua tristeza, oipapa iporiahu, começa a se lembrar que chorou no passado. É por isso que, na madrugada, os cantores enfrentam dificuldades para rezar. A tristeza do “Nosso Irmão” se reflete neles. Aqui aparece o profundo sentido comunitário da palavra. O rezador, no meio da tristeza que vem das histórias do “Nosso Irmão”, das gerações passadas e da sua própria, precisa abrir caminho com sua reza. Abrir e percorrer caminhos não se faz só. O líder espiritual precisa do apoio da comunidade que o acompanha simbolicamente na figura dos “ajudantes”, yvyra’ija. A relação com esse passado, a julgar pela emoção de que vem acompanhada, está carregada de uma energia psíquica singular, como mostra a fala de Mário Toriba: “Quando a reza chega neste lugar e começa a mencionar a tristeza daqueles que nos ensinaram o nosso modo de ser, começamos a chorar. Então o rezador, enquanto caminha com sua reza, pensa nos seus filhos, pensa no destino da sua palavra, no destino da história que ele conta. Quem vai continuar a reza? Quem vai encher de bem as crianças? Estas perguntas entristecem sua palavra. Sua voz se tranca, porque à tristeza da reza ninguém consegue resistir. Todos nossos quebrantos são relatados na reza. Ela nos lembra de nossos antepassados, do sofrimento de Nossa Mãe grávida e sem marido, andando a deriva. Essa lembrança nos faz chorar. Nós sabemos pela reza o que aconteceu conosco e o que pode acontecer.”

Um experiência pessoal entre os Pai-Tavyterã Da expressão narrativa musical e religiosa protagonizada pelos homens, existem também algumas gravações e traduções de uma versão protagonizada pelas mulheres. Uma delas é intitulada Takua Rendy Ju Guasu Ñengarete, “Canto Ritual da Grande Mulher Fulgurante”. Friedl Grünberg (1995), antropóloga austríaca que conviveu muitos anos com os grupos pati-tavyterã, destaca o poder feminino na versão do longo canto presenciado e estudado por ela. As mulheres iniciam a marcha ritual dizendo “A partir da espuma primordial de Jasuká descobriu-se Nosso Grande Pai Último-Primeiro. Ele cresceu mamando no seio, na flor, de Jasuká, Nossa Avó ou o Princípio Ativo do Universo”. Também neste canto, a história é caminhada. Ao celebrar a palavra com os pés, as mulheres pronunciam as histórias fundacionais e cultivam-se nelas. À medida que avançam, debulham inúmeros episódios dos mitos de origem. Assim, também 106

107


108

as mulheres kaiowá e pai-tavyterã atualizam as imagens e os relatos míticos com seu canto e seu andar ritual. Uma forma de “narrar Deus”. Também elas precisam de uma memória que conjugue as expressões narrativas ao movimento corporal. Esse gesto, tanto na tradição dos homens como na das mulheres, está vinculada com a terra que é esticada pelo Ser Criador para abrir caminhos. As comunidades kaiowá costumam dizer da palavra cantada e dançada que ela é um ser peregrino. Ao ser proferida, essa palavra percorre a superfície do corpo (da carne) do Dono do Ser, Tekojára ro’o pe jerosy, que aponta para a totalidade do cosmo.

e dançar todas as coisas para garantir sua duração, para que elas saibam como manter seu começo.” Enquanto persistir o descompasso e não se realizar o sonho de reinaugurar os espaços de liberdade, ninguém será mais real que aqueles e aquelas que proferem as boas palavras; nenhuma tarefa será mais importante que a de abrir caminhos que nos aproximem das Origens. Os pés através dos quais se reza e se rememora a história “aproximam” os humanos de sua história e refundam os mitos de origem. Eles consagram o caminho em templo de esperança.

Fundamento dos pés Como o corpo humano, para os indígenas a terra vê, ouve, fala, sente, boceja, se cansa, adoece e morre. Ela é a base, o fundamento, sobre o qual se apoia a existência humana. É o espaço no qual a vida gera vida. Ela se abre em caminhos que conduzem às fontes ou reservatórios da subsistência material, em caminhos que propiciam a comunicação. Caminhando, as comunidades kaiowá e pai-tavyterã lembram à terra e aos humanos como tudo começou e enfrentam as outras histórias que ameaçam sua existência. Caminhando, rezando com os pés, os Kaiowá e os Pai-Tavyterã não só rememoram ritualmente eventos primordiais, mas também projetam sua situação atual no ambiente onde esses eventos ocorreram. Assim, quando ao caminhar evocam a peregrinação de “Nosso Irmão Maior”, o herói cultural do povo, eles também evocam as circunstâncias em que hoje vivem as famílias kaiowá. O testemunho de Mário Toriba ilustra a insegurança do ser humano e sua espiritualidade, que deriva do descompasso entre as origens e o presente, o que não tem a ver só com os humanos, mas também com os outros seres da criação, como o milho, onde, os Kaiowá encontram a metáfora de si mesmos. “Falando a verdade, nós não temos hora; não sabemos se vai nos sobrevir vida finada. O mesmo é com o milho. Ele não sabe se amanhã vai haver chuva de pedra ou vento forte, que o derrube e quebre completamente. Isso pode acontecer, mas o milho não sabe. Ele nem sabe se vai haver colheita. A nossa vida e o nosso corpo são como o corpo do milho, não conhece o amanhã. Por isso devem ser ritualizados determinados momentos da vida. Para nós indígenas, a reza narra a história do corpo do milho, desde o começo até o fim. A reza conta o começo das coisas, por exemplo, como o milho começou. A comunidade deve celebrar, deve fazer cantar

Dra. Graciela Chamorro Teóloga e antropóloga, professora de História Indígena na Universidade Federal da Grande Dourados, obreira voluntária do COMIN, Dourados (MS)

109


Existem duas razões que nos levam a apoiar o trabalho do COMIN: o primeiro, é que existe uma longa tradição nas relações com o povo Kaingang de Guarita (RS) e com o COMIN, que estão solidamente ancoradas nas comunidades de nosso distrito eclesiástico. Em 1976, o pastor Martin Backhouse foi enviado de Schwandorf, Alemanha, como missionário, para Guarita. Desde o início, um círculo de amigos do Decanato apoiava o seu trabalho lá. Com a criação do COMIN, em 1982, este se tornou para nós mediador e interlocutor. Em 1994, a ampliação das relações resultou em uma parceria oficial, trazendo novos impulsos. Temos consciência de que já se conseguiu alcançar muitas metas em Guarita, mas que ainda há muito por fazer. Nesse caminho adiante, nós queremos apoiar o COMIN e a nossa Igreja Irmã pelo tempo necessário para se alcançar uma estabilização satisfatória. Em segundo lugar, nos identificamos com o COMIN pois ele concebe o apoio aos indígenas como um trabalho de reconciliação. A tomada dos territórios tradicionais por colonizadores europeus, a partir de 1824 – entre os quais muitos alemães – também trouxe aos Kaingang perdas e sofrimento. Pressuposto para justiça e paz é a reconciliação. Nesse processo, queremos cooperar como construtores de pontes, realizando assim o nosso compromisso cristão como parte da Igreja em todo mundo, engajando-nos também por pessoas em outros países. Continuamos entendendo a nossa cooperação como “ajuda para auto-ajuda” e não como “esmola”. Os projetos que apoiamos junto ao COMIN, principalmente a assessoria em nutrição, prevenção de saúde, formação escolar e agrícola, devem contribuir para que os Kaingang possam responsabilizar-se, logo que possível, pelas suas próprias necessidades e cuidar de sua sustentabilidade com o seu próprio trabalho. Nesse processo é muito importante respeitar a cultura, as tradições e costumes dos indígenas – e o COMIN tem demonstrado uma metodologia exemplar para isso – para que a identidade imprescindível à autoconsciência não seja apenas resguardada, mas até mesmo reforçada. Nesse contexto fazemos votos de que a IECLB e o COMIN não deixem de se empenhar para que os colonos brancos nos arredores de Guarita respeitem os indígenas como pessoas de igual valor. Dr. Adolf Rank Pelo Decanato Sulzbach-Rosenberg

Sociedade envolvente 110

111


O desafio de mudar a mentalidade

A sociedade brasileira ainda está longe de viver e respeitar as diferenças étnicas reconhecidas e assentadas na Constituição Federal de 1988. A sociedade brasileira é formada por indígenas, descendentes de escravos africanos, descendentes de imigrantes europeus e asiáticos. A participação política desses diferentes grupos na vida social produziu diferenças que lançam suas sombras, até hoje. Ações de discriminação e preconceito, silenciamento da cidadania, negação de direitos e exclusão do processo econômico e político continuam ocorrendo em relação a etnias diferenciadas, entre as quais os povos indígenas. Muito recentemente, a pluralidade cultural e religiosa e a temática indígena passaram a fazer parte do currículo do ensino no Brasil como tema transversal. Somente a partir de março de 2008, a lei federal 11.465 tornou obrigatória a inclusão da temática e cultura indígena no currículo oficial da rede pública e privada de ensino. Mas, mesmo constando na legislação, ainda falta formação para a abordagem do tema em sala de aula Desde 1982, o COMIN tem em sua missão a tarefa de dar testemunho evangélico junto à sociedade brasileira e, em especial, à IECLB, para contribuir no processo de mediação cultural e sensibilização para o diálogo intercultural entre os povos indígenas e os diversos setores da sociedade. A intervenção do COMIN acontece a partir de palestras, aulas, seminários, oficinas, produção de material didático, cursos de extensão e de pós-graduação entre outras atividades. Duas atividades merecem destaque: a produção do material da Semana dos Povos Indígenas e o Curso de Pós-Graduação Lato Sensu “Educação, Diversidade e cultura Indígena”. 112

O COMIN tem em sua missão a tarefa de dar testemunho evangélico junto à sociedade brasileira e, em especial, à IECLB, para contribuir no processo de mediação cultural e sensibilização para o diálogo intercultural entre os povos indígenas e os diversos setores da sociedade.

113


Além de ter se constituído como uma prática de comunicação entre culturas, o Caderno da Semana Indígena incentiva outras atitudes concretas de busca de diálogo, comunicação, interação e empenho pelos direitos indígenas.

114

Material da semana dos povos indígenas O material da semana dos povos indígenas é um subsídio didático-pedagógico, composto por um caderno e um cartaz destinado a escolas da rede pública e privada, universidades, profissionais da educação, estudantes e comunidades da IECLB. Seu objetivo é divulgar a causa, a realidade, a história e as culturas indígenas de nosso país e, desta forma, promover a aproximação, o conhecimento, o respeito, a superação de preconceitos, o incentivo ao diálogo e o engajamento em favor dos seus direitos. Assim, desde o final da década de 1980, o COMIN tem elaborado folhetos para as comunidades e escolas da IECLB, que os adotaram como subsídio didático sobre as populações indígenas. A partir de 1999, o folheto foi transformado pelo COMIN em Caderno da Semana dos Povos Indígenas. Ao ampliar a sua abrangência e adquirir alcance nacional, as edições atuais constam de cerca de 50 mil exemplares. O material é elaborado com participação direta das comunidades indígenas, que coletam, selecionam e articulam o conteúdo a ser publicado. Em geral, traz dados da história, cultura, desafios e formas de vida. Os diversos temas e assuntos são apresentados por meio de textos, ilustrações, fotos, jogos e imagens selecionadas. Cada edição aborda a vivência de apenas um povo. A proposta transformou-se em um meio de comunicação importante – de dois lados. De um lado, apresenta textos, fotos e desenhos de um povo indígena. Nas palavras de Manoel Daora Kanamari, de Itamarati/AM, o COMIN presta um inestimável serviço de divulgação da cultura e das tradições Kanamari, tanto para os próprios filhos e netos como também para a sociedade não-indígena. Com isso contribui para o entendimento mútuo, eleva a auto-estima e o orgulho de ser Kanamari. “Depois de tanta discriminação e desrespeito no passado faz bem ser valorizado. Obrigado“. De outro lado, uma professora da Universidade Regional de Blumenau (Furb), Santa Catarina, expressou que o “Caderno da Semana dos Povos Indígenas do COMIN oportuniza a construção de vias de comunicação e conhecimento entre diferentes etnias. Aproxima vivências, amplia leituras e olhares, reduz preconceitos e desafia a conhecer melhor a diversidade brasileira.” Além de ter se constituído como uma prática de comunicação entre culturas, o material incentiva outras atitudes concretas de busca de diálogo, comunicação, interação e empenho pelos direitos indígenas.

Assim, a partir das sugestões contidas no Caderno da Semana Indígena, escolas e universidades promovem visitas a aldeias de crianças, jovens, educadoras/ os e universitárias/os, onde tomam contato com a vida cotidiana das comunidades indígenas. Ou intercâmbios, em que crianças, jovens, idosos, homens, mulheres e lideranças indígenas se fazem presentes nas escolas, respondendo perguntas, dialogando e conversando.

Curso Lato Sensu O curso de Pós-Graduação Lato Sensu “Educação, Diversidade e Cultura Indígena” é uma realização conjunta entre COMIN e Faculdades EST. Seu objetivo é qualificar profissionais da educação e de outras áreas para práticas em educação na diversidade, com ênfase nas culturas indígenas. O diferencial mais evidente é a presença de estudantes indígenas, apontando para as especificidades culturais que precisam ser consideradas nos processos educativos. O curso tem 400 horas aulas com disciplinas que abordam temáticas como História dos Povos Indígenas, A Colonização, Migração e Relações Interétnicas, temas da antropologia indígena, políticas públicas, territorialidade, pedagogias que considerem a alteridade e a diversidade. Também ocorrem atividades de campo nas aldeias indígenas. Uma dessas visitas foi na Aldeia Guarani da Estiva, no município de Viamão (RS). Os estudantes passaram o dia em convívio com esta comunidade, que ofereceu comidas tradicionais, fez apresentação de cantos e danças, falou sobre sua história e cultura, relatou sobre seus desafios e conflitos. A avaliação do grupo apontou para a importância destas atividades nas aldeias, pois, a partir delas, outras reflexões foram introduzidas no curso. A docência do curso conta com profissionais do COMIN, da Faculdades EST, das Universidades Federais de Santa Catarina e Rio Grande do Sul (UFSC e UFRGS) e também docentes indígenas Kaingang e Guarani – todas/os com um perfil de competência acadêmica aliado com prática indigenista. A participação de professores indígenas é fundamental, uma vez que traz a perspectiva específica da história e realidade a partir do olhar dos povos indígenas. Já em sua primeira edição, o curso tem sido avaliado muito positivamente. Nas palavras de alguns estudantes: “O curso mostrou diversas possibilidades de interação com as mais diferentes

Precisamos construir uma proposta diferente de convivência na sociedade. O desafio é como produzir uma nova prática. O curso foi e é um grande exemplo que é possível vislumbrar novos horizontes.

115


culturas. Precisamos construir juntos uma nova proposta de convivência na sociedade. O desafio é como produzir uma nova prática. O curso foi e é um grande exemplo que é possível vislumbrar novos horizontes.” “Sou formada em pedagogia e atuo como professora de Educação Básica na rede pública estadual. Esse curso de pós-graduação vem ao encontro de questionamentos que eu já fazia com relação à ausência do trabalho sob a ótica da diversidade e das culturas indígenas na escola não indígena. A partir dele retorno à escola com novos instrumentos para enriquecer meu trabalho e dos demais professores com quem convivo”. “Sou professora de História e o curso de pós-graduação está sendo de grande importância para conhecer aspectos da cultura indígena e suas diversidades. Com isso, poderei contribuir para divulgar a riqueza cultural dos povos indígenas e contribuir para romper com idéias preconceituosas que atrapalham o entendimento entre as pessoas.”. Ms. Cledes Markus Teóloga e educadora, obreira do COMIN, São Leopoldo (RS)

Meu nome é Sonia Lopes dos Santos. Meu pai possui ascendência indígena. Há muitos anos, venho acompanhando atividades junto a indígenas, e hoje participo da Coordenação Executiva do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI). O CEPI é um órgão que tem como principal finalidade orientar e fiscalizar as políticas públicas para os povos Indígenas. Gosto muito desse trabalho, pois entendo que o Estado brasileiro precisa compensar parte de sua dívida histórica para com os Povos Indígenas. Conheci o COMIN através de contatos com os obreiros que realizavam trabalhos com os indígenas. Comecei a entender a importância que essa instituição tem na defesa dos direitos indígenas e a importância de seu apoio nas mais diversas áreas. Percebo que o COMIN se coloca como aliado, respeitando o jeito de ser e viver dos indígenas, ou seja, respeita a cultura própria de cada povo. O que é mais importante é que o COMIN respeita a religiosidade dos indígenas, oportunizando espaços de diálogo e fortificação de sua cultura. Para mim, o COMIN tem contribuído muito, não apenas nas atividades desenvolvidas nas comunidades indígenas, mas também na minha caminhada pessoal e profissional. Através do COMIN voltei a aperfeiçoar meus conhecimentos sobre culturas indígenas, ampliando saberes que hoje aplico no meu trabalho diário. Falo principalmente do curso de especialização oferecido pelo COMIN em 2009/2010 denominado Educação, Diversidade e Culturas Indígenas, onde aprofundei meus conhecimentos teóricos e metodológicos no que diz respeito à diversidade. Sendo assim, em primeiro lugar, destaco como ponto mais importante a metodologia que o COMIN utiliza em seus projetos, proporcionando aos indígenas espaços de diálogos entre as diversas etnias, levando a construção de sua autonomia enquanto povo pertencente a uma cultura ancestral. Em segundo lugar, as oportunidades que são oferecidas aos envolvidos nas causas indígenas com o trabalho de multiplicadores sociais. Sonia Lopes dos Santos Coordenadora do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, Porto Alegre (RS)

116

117


Há mais de 20 anos perdura uma boa cooperação entre o COMIN e Pão para o Mundo (PPM), envolvendo o Programa Ecumênico de Bolsas. Em seu Plano Estratégico 2008-2014, o Programa Ecumênico de Bolsas promove especialmente pessoas desfavorecidas de minorias étnicas, povos indígenas, refugiados, pessoas portadoras de deficiência e mulheres. São apoiados principalmente formações e estudos na área da segurança alimentar, mudança climática, disciplinas sociais e diacônicas, como também temas ligados à reconciliação, pesquisa/promoção da paz e justiça de gênero. Temos grande apreço pelo trabalho do COMIN, uma vez que este procura compreender a cultura e a cosmovisão dos povos indígenas, apoiando e promovendo as pessoas em seus próprios modos de vida, o que restitui sua dignidade tirada pelo processo de colonização. O COMIN assume o papel de mediador entre os povos originários do Brasil e os agricultores da Europa. Por isso, o Programa Ecumênico de Bolsas vem apoiando o curso de especialização “Educação, Diversidade e Culturas Indígenas“, no qual tanto indígenas quanto não-indígenas ensinam e estudam. Para nós, do Programa Ecumênico de Bolsas, é importante a abordagem que aqui se faz para um futuro em que se possa conviver em respeito ao ser diferente. Gisela Mann Responsável pela América Latina e o Caribe, Obra Diacônica da Igreja Evangélica da Alemanha

118

119


Sou Sara Cristiane Karighá Sales e tenho 27 anos. Moro com meus pais na Terra Indígena Guarita, Setor Três Soitas, município de Tenente Portela (RS), a qual pertence à maior terra indígena de Kaingangs no Rio Grande do Sul. Aqui vivem cerca de 8 mil Kaingang e Guarani e nossa terra está dividida em 12 setores/comunidades/aldeias, em três municípios. Sou solteira e tenho quatro irmãos, dos quais dois casados. Sou professora kaingang concursada na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Gomercindo Jetê Tênh Ribeiro, na qual estudam aproximadamente 295 alunos kaingang, do 1º ao 9º ano de ensino fundamental. Somos ao todo 18 professores/as, dos/das quais 10 indígenas. Trabalho com séries iniciais (1º ano) desde 2004 e tenho formação superior no curso de Pedagogia – Orientação Educacional e Supervisão Escolar. O COMIN trabalha há muitos anos conosco na Terra Indígena Guarita, nas áreas de educação, saúde, sustentabilidade. Graças a isso tive contato com o COMIN e pude me inscrever no curso de pós-graduação “Educação, Diversidade e Cultura Indígena”, que está sendo realizado em parceria com a Faculdades EST. É um curso de 400 horas/aula, realizado em três etapas presenciais e com uma monografia de conclusão de curso. Este curso é importante para que eu possa me qualificar mais. Assim, posso ajudar melhor meu povo na luta por uma educação de mais qualidade e por uma vida mais digna. Consegui obter bons resultados. Não tive dificuldades de aprendizagem nos componentes curriculares cursados. Os mesmos foram muito proveitosos e de fundamental importância para meu crescimento pessoal e profissional. Pude comparar e analisar a forma de vida dos nossos antepassados através dos temas abordados. Fui desafiada a rever conceitos e refletir sobre a forma como é tratada a questão indígena no Brasil, como é tratada nas escolas e por que é importante estudar a diversidade, a história e a cultura dos povos indígenas. A contribuição deste curso vai muito além do que eu imaginava inicialmente. Com certeza toda a comunidade indígena será beneficiada com uma melhor qualidade de ensino. Sou muito grata ao COMIN pela oportunidade que me ofereceu de fazer este curso, graças a uma bolsa de estudos. Saio enriquecida para a vida inteira. Tomara que o COMIN continue trabalhando conosco e dando oportunidade a outros/as indígenas de se qualificarem mais para o bem de nossos povos. Sara Karighá Sales Pedagoga e professora kaingang, Tenente Portela (RS)

120

Tranversalidade 121


Relações de Gênero no contexto indígena

Durante o tempo de trabalho junto com o povo Xokleng no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, diversas vezes fui perguntada sobre como eu era aceita e como realizava o trabalho junto com este povo pelo fato de ser mulher. A pergunta ganhava mais ênfase quando se tratava do envolvimento com assessorias no direito à demarcação da terra, da indenização dos prejuízos referente à construção da Barragem Norte e de outras questões consideradas atividades de ordem mais masculina no contexto da sociedade local. Estas interrogações me levavam a observar e refletir sobre as relações de gênero no contexto indígena. As perguntas ganhavam relevância na sociedade regional – mas junto ao povo indígena elas não tinham sentido. As mulheres xokleng participavam ativamente de todas as atividades, reuniões, mobilizações e decisões da comunidade referentes à terra, sustentabilidade, educação e saúde. Os homens participavam ativamente das atividades domésticas como os cuidados com a casa e com a educação dos filhos. Assim, a pergunta revelava diferentes formas de perceber e vivenciar as relações de gênero, que pude averiguar e vivenciar no contexto dos povos indígenas. A antropóloga Margareth Meed, após pesquisas e estudos com comunidades Nativas da Nova Guiné entre 1931 até 1933, já afirmava que as relações de gênero são construções culturais. Diferentes culturas respondem diferentemente às condições de seus contextos e realidades, o que faz com que também haja construções diferenciadas no que se refere aos papeis, atitudes e comportamentos de gênero. Assim, sempre haverá variações nas relações de gênero em cada cultura. 122

Entre os indígenas, as relações de gênero seguem princípios e orientações cosmológicas e ancestrais fundamentadas na mitologia indígena, e como tal, estão articuladas com todas as outras dimensões da realidade – econômica, religiosa, política ou social do grupo.

123


Tudo é orientado para integrar e amparar as pessoas: as famílias se auxiliam mutuamente, crianças órfãs, viúvas e viúvos são amparados, a liderança é alguém que está a serviço da comunidade, e os trabalhos são realizados em mutirão; não há o consumo individual dos bens ou alimentos.

Da mesma forma, as variações nas relações de gênero ocorrem entre as culturas dos povos indígenas, pois também ali acontecem construções diversas. Esta diversidade é percebida pelas próprias comunidades, como nos mostra a fala de um líder xokleng ao analisar as relações de gênero: “a mulher xokleng é muito participativa da vida da comunidade. Ela sempre foi uma líder, faz iniciativas, fala em público, comanda grupos para mobilizações, não se importa com o que a sociedade nacional fala, ela se impõe. Até tivemos uma cacique Presidente. Outras mulheres de outros povos, no entanto, são mais quietas, não se expõe tanto nas reuniões e nos movimentos, mas mesmo assim, elas têm autoridade e participam das decisões. Os homens não tomam decisões sem consultá-las antes.” Estas diferentes construções ganham mais relevância se considerarmos que as relações de gênero seguem princípios e orientações cosmológicas e ancestrais fundamentadas na mitologia indígena, e como tal, estão articuladas com todas as outras dimensões da realidade – econômica, religiosa, política ou social do grupo. Além disso, estão associadas à visão de mundo, aos valores, às perspectivas elaboradas pelo grupo e perpassam a construção de todas as instituições e dos projetos políticos nos quais a comunidade investe. As relações de gênero, desta forma, envolvem princípios e valores culturais determinantes para a existência étnica, possibilitando sentido e significado; equilíbrio e controle sociopolítico. Romper com esses princípios e valores poderá resultar na desestruturação social daquele povo. Entre estes princípios fundamentais está a organização em subgrupos e a reciprocidade.

A organização indígena em subgrupos As maiorias dos povos indígenas, seguindo orientações cosmológicas e ancestrais, constituem-se como sociedades organizadas em subgrupos, que, articulados entre si, conformam a possibilidade de existência de grupo étnico. Cada subgrupo tem funções específicas dentro do todo. Por exemplo, certas ações curativas ou celebrativas só podem ser realizadas por determinado subgrupo. Estão articulados entre si, por relações de reciprocidade em que os diversos segmentos sociais (mulheres crianças, jovens, adultos, idosos, os pajés, as curadoras, as parteiras, as lideranças) têm sua importância e exercem funções primordiais para a existência do povo como tal. Nestas relações, as mulheres têm funções socioeducativas fundamentais para a continuidade. 124

Estes subgrupos também vão indicar as possibilidades de matrimônio, que sempre serão entre facções distintas. Eles também darão indicativos das formas de relações de parentesco e gênero possíveis entre seus membros e estabelecer compromissos de reciprocidade, como as formas de relações e os compromissos em relação aos cunhados, às noras, aos primos. Um exemplo desta forma de organização encontra-se no povo Kaingang, formado pelos subgrupos Kamê e Kajrukrê com base no Mito de Origem. Cada um é identificado com a sua marca. Esta organização configura-se por relações de complementaridade e reciprocidade entre as duas metades. Elas regulamentam as relações matrimoniais em que se busca a pessoa parceira na metade oposta. Isto consequentemente gera reciprocidades e intercâmbios entre as famílias.

Nas relações de gênero as comunidades indígenas confrontam o equilíbrio interno com a assimetria que vem de fora.

Princípio da reciprocidade As relações de gênero na comunidade indígena estão dentro de um contorno mais amplo da sociabilidade. Cada pessoa e cada comunidade está envolvida em redes de relações e interações com outros coletivos estabelecidas em afinidades, incluindo muito mais do que apenas outras pessoas, famílias, subgrupos, grupos étnicos ou linguísticos. Eles mobilizam uma variada multidão de Outros, humanos como não-humanos: animais, plantas, espíritos e divindades. Nesta rede de relações tudo está conectado, formando uma comunidade e uma complementaridade. As relações sociais estão baseadas no princípio da reciprocidade, isto é, a comunicação entre sujeitos que se interconstituem no e pelo ato social da troca. Esta troca não se manifesta simplesmente por meio de transações, mas em dádivas. A circulação de bens, de pessoas, de ações, de palavras, obedece às exigências de uma contínua reciprocidade. Elas carregam consigo um invencível efeito de retorno. Faz da dádiva um instrumento de circulação que os torna também agentes interligados continuamente. A pessoa que recebe a dádiva não pode esquivar-se de devolver a equivalência do bem recebido. Ou seja, o outro fica obrigado a aceitar o presente e a oferecer de volta uma dádiva equivalente. Neste sentido, o que confere prestígio em uma comunidade indígena não é o acúmulo e a posse de riquezas, mas antes, a distribuição delas. Uma pessoa que acumula para si e não distribui não é bem-vista numa comunidade. 125


126

127


O princípio da reciprocidade, da troca de dádivas, impregna todas as relações, sejam operações comerciais, rituais, matrimônios, parentesco e gênero. Na reciprocidade há mais do que “coisas” trocadas, pois estão em jogo alianças, vínculos, teias de relações, a inclusão das pessoas no grupo, e a própria continuidade do grupo. A reciprocidade é, portanto, uma categoria fundamental na vida dos povos indígenas. Ela aponta para a interrelação e interdependência entre todos os sujeitos. Ela propicia e fundamenta intercâmbios, comunicação, compromissos e cuidados mútuos, solidariedade e cooperação entre as diversas pessoas e os diversos habitantes do planeta. Nos relacionamentos humanos, esta categoria põe em evidência a comunidade, que forma uma rede na qual as famílias colocam sua segurança. Nela tudo é orientado para integrar e amparar as pessoas: as famílias se auxiliam mutuamente; crianças órfãs, viúvas e viúvos são amparados; a liderança é alguém que está a serviço da comunidade; os trabalhos são realizados em mutirão; não há o consumo individual dos bens ou alimentos: quando uma família faz a coleta de mel e frutas, não apenas os da casa, mas todos os parentes e vizinhos próximos vêm participar do banquete. O professor Xokleng Nanblá relata que, “quando as famílias vão caçar, coletar mel ou fazer uma compra, sempre trazem algo a mais para poder distribuir para alguma família que venha precisar ou solicitar.” A família, portanto não é um núcleo isolado, mas mantêm interações, reciprocidade, complementaridade, intercâmbios e compromissos com o grupo de parentesco mais amplo, com os subgrupos e com toda comunidade. A reciprocidade e complementaridade se perpetuarão nas relações comunitárias. Neste contexto é que se inserem as relações de gênero. Elas não estão alicerçadas em relações de poder, mas de complementaridade. Há divisão de tarefas, mas estas não estão numa dimensão de outorgar mais ou menos prestígio. São divisões que têm um caráter cultural de complementaridade. Entre o povo Guarani, por exemplo, no cultivo do milho, o homem tem a tarefa de limpar e preparar a terra e a mulher, a de plantio e da colheita. Na confecção dos cestos, o homem tem a tarefa de buscar a matéria prima e a mulher, de confeccionar o cesto. Nas atividades curativas, celebrativas e educativas há certas práticas que são realizadas pelas mulheres e outras pelos homens, sempre de forma complementar e recíproca. Também se percebe uma equidade de gênero nos fórum de decisões, onde qualquer medida ou atitude em relação às atividades econômicas, educativas, políticas, ce128

lebrativas, religiosas, de sustentabilidade, sempre acontece no âmbito da comunidade, com a participação igual de homens e mulheres, jovens, crianças e pessoas idosas. É visível que nas sociedades indígenas que estão baseadas em concepções voltadas para a reciprocidade, seus membros são compelidos a perpetuar a prática das trocas significativas – e as relações de gênero estão fundamentadas em valores de reciprocidade. Na sociedade ocidental, assim como em outras, a proposta é diferente: o enfoque é hierárquico, onde também as relações de gênero serão especialmente consignadas a um sexo e negadas a outro. Com isto queremos indicar que não é possível simplesmente utilizar referenciais teóricos de uma sociedade e aplicá-los a outra, na tentativa de analisar e compreender as relações de gênero que se estabelecem naquela sociedade.

Público e o Privado Outra dimensão importante que aponta para construções diferenciadas de relações de gênero está na idéia do que vem a ser espaço público e privado, importante categoria nas reflexões do tema gênero a partir da perspectiva ocidental. Na concepção da sociedade ocidental existe a idéia muito arraigada de que o mundo público pertence aos homens e a vida privada pertence às mulheres. Tais concepções vão se naturalizando e estabelecendo dinâmicas, (por exemplo, a divisão sexual do trabalho) que limitam concretamente o exercício da cidadania, da liberdade de escolha, ou seja, impedem as mulheres de serem sujeitas de direitos. Na sociedade indígena temos que inverter a concepção do que é o espaço público e privado. Público é o espaço da casa, do terreiro, do quintal, da roça. Neste espaço o centro é o fogo de chão manejado pelas mulheres. Ali se encontra a casa de reza, o centro comunitário, o quintal. Ali a comunidade se reúne para planejar e avaliar as atividades do dia. É local das refeições comunitárias. Local onde acontecem as festas e as cerimônias religiosas. Local de cantar, contar histórias e repassar a cultura. Local de aconselhar, orientar e cuidar dos doentes. Os encontros, as conversas, as falas, a transmissão de conhecimento acontecem neste ambiente. A vida pública, portanto, acontece neste espaço amplo da casa, do terreiro e do roçado, coordenado e organizado pelas mulheres. Privado é o local da mata. A não ser quando o grupo de homens sai para caçar, a mata é lugar de quem quer estar sozinho, de quem busca privacidade e isolamento. 129


O espaço onde se dão as relações de gênero recebe concepções, sentidos e significados distintos conforme as culturas, e estas distintas percepções precisam ser consideradas ao abordar as relações de gênero. Com a intensificação das relações das aldeias indígenas com os espaços da sociedade não indígena, começa a existir um novo olhar sobre as dimensões públicas e privadas, com a incorporação de concepções e representações da sociedade nacional. Além disso, novos espaços de poder surgem e se impõem para a comunidade indígena, o que gera o desafio de como compatibilizar as novas formas de representação do público e privado e os novos espaços com os tradicionais – bem como a circulação de homens e mulheres por estes espaços. Temos visto cidades sendo espaços importantes de sustentabilidade para famílias indígenas a partir da venda do artesanato onde circulam homens, mulheres e crianças. Outros espaços políticos, como as regionais da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ministérios públicos federais e estaduais, secretarias estaduais e federais e ministérios, buscam nos homens interlocutores preferenciais para as negociações.

Protagonismo feminino O protagonismo das mulheres nas comunidades indígenas é uma realidade observada nas atividades compartilhadas, na divisão de tarefas, nos cargos ocupados na liderança política e religiosa e na participação ativa das mobilizações em favor de direitos de seus povos. Cito o exemplo vivenciado junto às mulheres xokleng do Vale do Itajaí em Santa Catarina, em que o protagonismo feminino foi uma realidade observada em todo tempo de trabalho. As mulheres participavam ativamente e de forma qualificada nas tomadas de decisões em tudo o que dizia respeito aos interesses de sua comunidade. A vida de Aiú é um exemplo deste protagonismo feminino. Aiú era uma mulher de 98 anos que iniciou a mobilização pela demarcação da terra Xokleng no Alto Vale do Itajaí. Em sua tradição oral, a história de invasões e espoliações estava bem viva. Ela conhecia um a um os movimentos que levaram à redução de suas terras. Em uma manhã de outono, após diversas ofensivas por parte de madeireiras, 130

ela decidiu ir, se mobilizar em busca do direito e da justiça do seu povo. Pediu que seus netos armassem uma barraca naquele elevado; acendeu o fogo com a lenha que o filho trouxera e tranquilamente começou a cozinhar o milho para alimentar a comunidade que chegava para o grande movimento de recuperação de suas terras. O povo Xokleng sabe que Aiú buscou e teve orientação divina para esta mobilização, pois ela era uma sábia inspirada, para quem Deus se revelava em sonhos. Uma líder respeitada pelo seu povo. A sua iniciativa e o seu exemplo sempre e de novo revigoram a luta pelo direito Xokleng.

Movimentos e associações de mulheres Indígenas As relações de gênero são construções não definitivas, mas podem mudar conforme as situações sociais enfrentadas pelas sociedades. Os povos vão reconstruindo e ressignificando suas relações em vista de novas demandas e contextos. Neste sentido, a partir do contato cada vez mais intenso e permanente com a sociedade nacional, os povos indígenas tendem a incorporar padrões de relacionamento que se impõem a eles como sendo melhores, superiores e universais. É assim que estes povos têm sido pressionados a instituir dentro de suas comunidades novas relações e novas categorias sociais e políticas antes não existentes. Neste contexto, as mulheres xokleng fazem uma análise da contemporaneidade destas relações. Elas afirmam que hoje a tendência é a coexistência de duas formas de relações de gênero no contexto indígena. Uma, a que se refere às relações internas da comunidade, que seguem os preceitos tradicionais e contempla a equidade de gênero; e a outra, que diz respeito às relações mantidas com a sociedade nacional em que esta estabelece que a interlocução preferencial e o parâmetro para as negociações, as intermediações e as comunicações, seja o homem em detrimento da mulher. Neste contexto, as mulheres indígenas estão empenhadas em criar novos espaços de poder além daqueles já existentes tradicionalmente nas aldeias. Alguns destes espaços são os movimentos e as associações de mulheres. As atividades e o caráter dos movimentos e das associações revelam preocupações com a vida, a justiça e o bem estar de toda a comunidade. Os objetivos principais são políticas públicas que contemplem o seu direito à vida. Entre as principais temáticas estão a demarcação de terras, a sustentabilidade, a educação, a saúde, a organização e sobrevivência cultural de seus povos. A primeira associação de mulheres xokleng de Santa Catarina no início dos anos 131


de 1990 tinha como preocupação principal encontrar formas de contribuir na sustentabilidade de suas famílias e, junto disso, estudar a legislação indígena para contribuir de forma qualificada na luta pela terra. Assim, foram conferindo qualidade ao artesanato que confeccionavam e qualidade à contribuição nas mobilizações por direitos. O tema de gênero no contexto indígena O tema de gênero no universo indígena da aldeia é a clara expressão da força interventora do mundo não indígena. Ele reflete a concepção fragmentada que se tem da sociedade e da vida, em que cada segmento etário, profissional, de gênero e religioso é pensado como separado da coletividade. Mas é assim que estes povos têm sido pressionados a instituir dentro de suas comunidades o tema de gênero, por fazer parte das políticas públicas de inclusão. No entanto, em muitos povos se encontra resistências pelo fato de que essa abordagem representa algo totalmente alheio as suas tradições e, consequentemente, uma ameaça. Em outros povos a temática recebe respaldo com associações e movimentos de mulheres, que concebem nestes espaços novas possibilidades de acesso às políticas públicas. Assim, esta nova configuração, se por um lado traz avanços na luta por políticas públicas setorizadas na área da educação, saúde, direitos indígenas, por outro, acarreta desafios e problemas para os modos e concepções de vida tradicionais. O desafio maior é como compatibilizar as novas formas de representação com as formas tradicionais. Ms. Cledes Markus Teóloga e educadora, obreira do COMIN, São Leopoldo (RS)

132

133


Como Igreja Protestante dos Países Baixos, apoiamos o COMIN por várias razões: achamos o seu trabalho muito importante e interessante, pois atende um grupo de pessoas marginalizadas no Brasil. Consideramos importante que pessoas marginalizadas sejam vistas e lhes seja dada voz. À medida em que o COMIN realiza isso, nós queremos apoiar esse trabalho. Também a reflexão teológica sobre a posição dos povos indígenas é interessante para nós: o que podemos aprender, como protestantes, de sua cosmovisão indígena e como podemos entabular um diálogo interreligioso, são temas que nos desafiam. Nosso objetivo é conectar os diferentes projetos que apoiamos em todo o mundo com as nossas comunidades locais na Holanda. O desafio na relação com o COMIN é tornar seu trabalho conhecido em nossas comunidades e refletir sobre o lugar dos povos indígenas na América Latina e também no Brasil. Como chegar ao diálogo entre povos indígenas e uma igreja como a luterana é um desafio para o COMIN. Nós queremos aprender dele, como fazê-lo, pois somos uma igreja semelhante. Acreditamos que os povos indígenas desempenham um papel importante e que podemos aprender de sua cultura e de sua teologia. Eu trabalho na organização ICCO & Kerk in Actie – significa Igreja em Ação - no Departamento de Missão para a Igreja Protestante dos Países Baixos. Ela é a organização executiva de todo nosso trabalho missionário e diaconal no exterior. Hester Oosterbroek Coordenadora do Programa Brasil de ICCO & Kerk in Actie 134

Meu nome é Sheila e tenho 21 anos. Minha família sempre foi ativa na comunidade luterana. Meu envolvimento com o culto infantil, o grupo de jovens e o grupo de liturgia despertou em mim um grande interesse pela teologia. Comecei a estudar em 2007. Saí da cidade pacata em busca do meu sonho. Entretanto, conforme o tempo foi passando, aquilo que parecia certo, virara incerto. Estava frustrava com o que acontecia ou deixava de acontecer em algumas comunidades “tradicionais” da IECLB. Pensei, então, em desistir da teologia... Foi então que, em 2008, conheci o trabalho do COMIN e tudo se tornou mágico novamente. O encantamento que eu havia perdido retornou no trabalho com os povos indígenas. Decidi continuar e finalizar o curso de teologia. Descobri que o que me fazia bem era, justamente, essa opção pelo marginalizado, pelo desfavorecido; que o meu caminho era lutar por uma vida mais digna e justa para essas pessoas. Para mim, esse é o verdadeiro sentido de ser cristã. Fui muito bem acolhida pelo corpo do COMIN e tive a oportunidade de realizar, em 2009, um estágio em um dos campos de trabalho, localizado em Ji-Paraná, no estado de Rondônia, com o povo Arara e o povo Gavião. Foi uma experiência maravilhosa e inesquecível. Através do COMIN descobri que conviver com a multiculturalidade, com o diálogo interreligioso, com o diferente, com o inusitado, com respeito às diferenças e sem etnocentrismo é, atualmente, um desafio para a humanidade. Quando deixamos de lado o etnocentrismo e passamos a viver com/em outra realidade, aprendemos novos valores e tornamo-nos mais humanos. Sheila Dillenburg Estudante de Teologia, Faculdades EST, São Leopoldo RS) 135


A missão como diálogo Quando a “boa Notícia” é anunciada de forma arrogante, desconsiderando tudo o que existe de extremo valor para a vida de um povo indígena, torna-se “má notícia”.

136

Entre as histórias que os antigos contam, há algumas que falam de morte e ressurreição. Elas lembram a história da ressurreição de Jesus. Numa destas histórias, uma mulher fala para seu marido: “Vá, atire a sua flecha em mim!”. No dia seguinte, apareceu um roçado neste lugar, com muita comida boa que fez os Kulina viverem melhor. Depois de poucos dias, a mulher ficou novamente com vida … Jesus também morreu, mas, depois de três dias, viveu novamente. Aí, quando os menosprezados ficavam tristes, podiam animar-se mutuamente: “Não tenhas medo, não vamos desistir, mas andaremos de olhar erguido”. Frank Tiss Teólogo e linguista, ex-obreiro do COMIN, Celle, Alemanha

Ao longo de mais de 160 anos de contato com a sociedade não indígena, os Kulina ouviram muitas e muitas vezes, tanto de católicos como de evangélicos, que sua tradição religiosa não tinha nenhum valor. Os “pregadores” de fora riram dela, consideraram-na primitiva ou a tomaram como “coisa do diabo”. Desse modo, o contato com o cristianismo tornou-se um grande fator para que os indígenas sentissem-se ainda mais desprezados. Se a “boa Notícia” é anunciada de forma arrogante, desconsiderando tudo que há centenas de anos é de extremo valor para a vida de um povo indígena – que já vem sofrendo todos os tipos de desprezo – torna-se uma “má notícia”. Quando fomos trabalhar, minha família e eu, no médio Juruá, no Amazonas, queríamos contribuir para que os indígenas voltassem a decidir sobre a sua vida e percebessem que têm condições para isso. Esse é o enfoque do trabalho do COMIN. Um dos temas a ser enfocado era justamente o conflito entre as nossas diferentes tradições religiosas. A discussão deveria acontecer por meio de conversas – um diálogo interreligioso – e não em forma de palestras e monólogos. Esse formato permite um melhor entendimento mútuo e, se bem-sucedido, leva a um enriquecimento de ambas as partes. Após muitas conversas informais, passamos a realizar encontros nas aldeias. Aproximamo-nos de algumas partes da tradição bíblica de Jesus e as relacionamos com a tradição Kulina. Sempre foram diálogos muito animadores, para os dois lados. O texto elaborado pelos Kulina em um destes seminários exemplifica a riqueza do que vivemos e que para mim representa um verdadeiro diálogo interreligioso: 137


O rio corre para o oceano O grande pensador Paulo Freire contou uma vez que, antes de um rio cair no oceano, ele treme de medo. Olha para trás, para toda a jornada: os cumes, as montanhas, o longo caminho sinuoso através das florestas, através dos povoados, e vê à sua frente um oceano tão vasto que entrar nele nada mais é do que desaparecer para sempre. Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar. Voltar é impossível na existência. O rio precisa arriscar-se e entrar no oceano. E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece, porque então o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano, mas de se tornar oceano. Por um lado é desaparecimento e por outro lado é renascimento. O oceano de Deus recebe rios das mais diversas tradições e culturas. No Reino de Deus não interessa mais, qual água veio de qual rio. A IECLB é um rio ao lado de muitos outros. Existir para servir ao longo do caminho é a sua missão! Possivelmente também nós trememos diante do encontro com os outros, os completamente diferentes de nós, por causa de nossas inseguranças. Mas ao chegarmos no oceano, percebemos a insignificância de nossos temores diante da grandeza multifacetada do projeto de salvação de Deus. Somos privilegiados para nele contribuir, como rio de tradição cristã, mas de modo algum, somos seus donos. Arquivo COMIN 138

Ação de Deus em Babel e Pentecostes

A Bíblia é o testemunho da fé em Deus. E a diversidade cultural faz parte deste testemunho de fé. Os textos de Babel (Gênesis 11.1-9) e Pentecostes (Atos 2.1-13) revelam que Deus assume a diversidade cultural na sua ação. Em Babel, a dispersão e diversidade de línguas seria um castigo à humanidade, devido ao seu orgulho e ganância? Não. Porque Babel é um conto de resistência ao mundo citadino-militar. A construção de torres, nas cidades da época, era para fortificação militar. Os textos de Deuteronômio 1.28; 9.1; Isaías 2.15; 25.2s; 30.25; Jeremias 51.53, auxiliam na compreensão da função da torre como fortificação militar. De modo especial, Jeremias 51.53 afirma que a construção de torres é típica da Babilônia e conhecida por Israel. Babel representa o projeto de homogeneização dos povos. Deus denuncia e combate o sistema opressor, de formar um só povo, uma só língua. Deus se pôs ao lado dos pequenos grupos em sua diversidade cultural e na dispersão territorial. A confusão é querer fazer toda a humanidade igual. Por sua vez, em Pentecostes tem-se o nascimento da Igreja e da proclamação da obra salvífica de Deus aos diferentes povos, como uma unidade criada pelo Espírito Santo. É a possibilidade de a mensagem divina ser divulgada e aceita em outros povos, em outras culturas. A abertura às culturas é obra de Deus. As diferentes culturas são assumidas como meio para o anúncio, mediante a ação do Espírito Santo. A partir daí que os apóstolos se dirigiram às diferentes partes do mundo para testemunhar e anunciar o que haviam conhecido da obra de Deus em Jesus (Atos 8.4, 14).

Babel representa o projeto de homogeneização dos povos. Deus denuncia e combate o sistema opressor, de formar um só povo, uma só língua. Deus se pôs ao lado dos pequenos grupos em sua diversidade cultural e na dispersão territorial.

139


A diversidade cultural é uma benção de Deus a serviço da humanidade e de toda a criação.

Tradicionalmente se interpreta que Babel é superada em Pentecostes. Porém, o relato de Atos afirma que a unidade é promovida pelo Espírito Santo. As diferentes pessoas entendiam o que eles anunciavam, na própria língua (Atos 2.6). Pentecostes é a continuidade da ação de Deus em assumir e valorizar a diversidade cultural, como em Babel. Deus opõe-se ao projeto citadino de aglutinar e oprimir, em Babel. E, em Pentecostes, os discípulos se encontram em Jerusalém e as pessoas entendem o anúncio da obra divina. Nas duas situações, Deus atua na diversidade cultural dos povos. Do contrário, por que impedir a cidade e a torre de Babel e, depois, enviar o Espírito Santo para que os apóstolos falassem de modo que as pessoas pudessem ouvir e entender? A crítica de Deus não está na união dos seres humanos, mas nos projetos que visam uniformizar e homogeneizar a humanidade. A ação de Deus é contra o poder dominador e contra o imperialismo cultural a serviço deste poder. A dispersão geográfica e a diversidade cultural são bênção divina. Ela ainda salvará a humanidade e o nosso planeta! Sandro Luckmann Teólogo, obreiro do COMIN, Santo Ângelo (RS)

“Missão entre índios” – este termo é encarado com grande ceticismo na Alemanha. Também aqui temos conhecimento da opressão militar, religiosa e cultural praticada pelos conquistadores contra os povos indígenas da América do Sul. Do trabalho do COMIN pode-se aprender que missão entre povos indígenas é algo totalmente diferente: A Boa Nova do amor de Deus é traduzida em amor engajado, em convivência, no escutar atencioso aos indígenas, no respeito à sua cultura e religião. Esta postura leva a que nós, não indígenas, aprendamos que há outras formas de viver e de se organizar em sociedade, ao lado daquela que nos é conhecida. Ao visitar diversas aldeias do povo Madiha (Kulina) na Amazônia, diversas coisas me chamaram a atenção. Por exemplo: os Kulina vivem em uma sociedade tribal, em que há responsabilidade mútua de todos por todos. A caça é partilhada, independente da quantia de animais caçados. A prática da partilha e a responsabilidade mútua impedem que haja pessoas pobres e excluídas. Outra coisa que chamou a minha atenção e provocou minha admiração: A paixão com que algumas jovens mulheres kulina jogavam futebol e, mais admirado ainda fiquei, quando soube que elas não dão a mínima para o resultado. Não lhes interessa saber se uma equipe é melhor que a outra. Vale pelo prazer de jogar. Em nosso meio damos a este tipo de brincadeira o nome de “jogos cooperativos” – em oposição à maioria dos jogos, em que estão em primeiro plano a concorrência e a disputa. Também isto é um modelo para outra forma de conviver em sociedade, que corresponde muito mais ao espírito de Jesus que ao nosso modelo de sociedade baseado na concorrência. A forma de articular e viver missão do COMIN nos permite aprender com os povos indígenas e nos permite vislumbrar um pouco de como o mundo deveria ser de acordo com a vontade de Deus. Kurt Herrera Relator para América Latina da Obra Missionária Evangélico-Luterana da Baixa Saxônia (OMEL)

140

141


O cacique Saravi Deni conta como foi o contato com um pastor adventista que batizou sua aldeia inteira e proibiu os Deni de comer porcos do mato e peixes sem escamas, segundo as leis de pureza do Antigo Testamento. O povo não aguentou por muito tempo essas novas leis.

142

Diálogo Interreligioso qualifica a nossa fé

O bispo luterano da Nigéria Alex Malasusa falou muito bem do diálogo interreligioso: ”Na Europa quer se entrar no diálogo antes de ter lido as Sagradas Escrituras do outro. Onde fica o fundamento comum?” Os Deni não têm sagradas escrituras, mas têm seus mitos, suas histórias sagradas e seus rituais religiosos. Por isso, antes de tudo, temos que conhecer a espiritualidade deni. Com os anciões e os professores deni elaboramos um livro de mitos – Deni ima bute – sobre a origem do povo, de animais, plantas, do dilúvio e outros mitos. Analisando os mitos ameríndios, percebemos que ali o homem não é o centro do mundo. Todas as espécies estão interligadas e as suas identidades são completamente relacionais. É uma “sociedade da vida”. Quando eu anotava com os Deni os seus mitos de origem, percebi neles algo bem especial: No início do mundo todos os bichos, plantas, estrelas eram seres humanos. Os mitos, desde antigamente, são transmitidos oralmente e são vivos no dia a dia: nas pescarias, nas caçadas, no trabalho na aldeia e no roçado, nas curas dos pajés e nas danças. Os Deni e outros povos indígenas contam a história de dois irmãos que recriaram o mundo depois de um dilúvio. Também entre eles, nenhum povo vive mais no paraíso! Os Deni chamam-nos de Tamaku e Kira. Um deles, Tamaku, é muito ordeiro. Seu irmão, Kira, é brincalhão e atrapalhado. È a sabedoria da vida: dois lados, aparentemente opostos, se complementam. Isto cria uma abertura para o outro e ao mesmo tempo uma atitude de humildade frente à opinião e visão do outro. Um dia, Tunavi Deni sentou-se ao lado da minha rede e contou a história do primeiro pajé mitológico, Kapihava, que foi atrás de água. Não existia água na terra.

Depois de uma longa caminhada em direção ao sol, encontrou um sapo grande, turatura, que pediu ao pajé que ele o matasse para obter água. Ao matar o sapo, surgiram os primeiros rios, o Cuniuã e os outros rios. Tunavi Deni contou a história de uma maneira surpreendente. Às vezes ele falava de Kapihava, outras vezes, substituía o nome de Kapihava pelo nome de Jesus. Eu me lembrava de textos da Bíblia que falam do Deus Trinitário já presente no meio deste mundo, antes que o missionário tivesse chegado (João 8,58). O cacique Saravi Deni, quando se fala em diálogo interreligioso, sempre conta como foi o contato com um pastor adventista que batizou sua aldeia inteira e proibiu os Deni de comer quelônios, porcos do mato e peixes sem escamas, segundo as leis de pureza do Antigo Testamento. O povo não aguentou por muito tempo essas novas leis. A fome falou mais alto. Quando Saravi encontrou o mesmo pastor em Manaus e contou que eles não obedeciam mais as novas leis, o pastor falou: “Então vocês vão para o inferno!” Saravi respondeu: ”Deus é maior. Foi Tamaku que criou tudo para nós comermos.” Durante um curso com os professores sobre as religiões do mundo, em 2006, foram lidos textos do Antigo e do Novo Testamento sobre o dia do descanso. Iniciou-se uma discussão com a pergunta: Qual é então o dia de descanso que deveríamos observar? Os cristãos têm o domingo, os judeus o sábado e os muçulmanos a sexta-feira. Os professores descobriram que o importante não é o dia, mas o descanso em si. Descanso há na vida indígena em abundância nos rituais, nas danças e no descanso gostoso do dia-a-dia na rede. Lutero concordaria com os professores indígenas. Importante é a mensagem de Jesus da vida em abundância que ele quer trazer. Ms. Walter Sass Teólogo, obreiro do COMIN, Carauari (AM)

143


Tanto o Centro para Missão Mundial e Serviços da Igreja Evangélica Luterana da Élbia do Norte (Nordelbisches Zentrum für Weltmission und Kirchlichen Weltdienst/NMZ) como o Conselho de Missão entre Indígenas (COMIN) da IECLB tem em seu nome o termo “missão”. Em nossa Igreja, o termo “missão” é visto com olhos críticos devido ao mau uso que se fez dele e ao sofrimento provocado em seu nome no decorrer da História da Igreja Cristã. Sempre de novo discutimos sobre o significado atual este termo. A nós interessa uma compreensão de missão que é determinada pela visão de uma Vida Boa para todas as pessoas. Para isso, critérios determinantes são: Justiça, Preservação da Criação e Diálogo Interreligioso, tema que, nos últimos anos, ganhou importância. Apoiamos o trabalho missionário do COMIN com prazer, pois percebemos que o COMIN compartilha conosco esta compreensão atualizada de missão, que se compromete através do seu falar e agir. O COMIN luta ao lado dos povos indígenas, discriminados secularmente, por mais justiça na sociedade e na própria Igreja. O COMIN também não tem medo dos conflitos decorrentes desta luta, também não dos que surgem no seio da própria IECLB, e se engaja a favor do trabalho de conscientização e de reconciliação entre indígenas e não indígenas. Além disto, o COMIN está aberto a aprender com o diálogo com as religiões e cosmologias indígenas e fomenta a discussão interna sobre a própria fé (cristã). Este trabalho missionário inspira e dá impulsos ao NMZ. Baerbel Fuensinn Relatora para América Latina do Centro para Missão Mundial e Serviços da Igreja Evangélica Luterana da Élbia do Norte (NMZ)

Meu nome é Saravi. Eu sou cacique dos Deni. Desde que o COMIN veio trabalhar com os Deni, através de Walter Sass, muitas coisas mudaram por aqui. Acompanhando Walter em diversas viagens pude observar a realidade em outros lugares e fazer palestras sobre a nossa vida. Contei várias coisas do tempo da nossa escravidão no tempo da chegada dos seringueiros. Contei da luta para conseguir a nossa terra de volta. Contei como é a vida hoje. Melhorou muito. O pessoal gostou das minhas palestras. Muitos perguntaram se a gente não vai perder a nossa cultura. Sempre falei que eu nasci, me criei e lutei pela terra. Não quero morar na cidade. Não posso abandonar a minha terra. Os jovens pensam também assim. Eles gostam do forró, mas participam das festas tradicionais com suas danças e músicas. O computador, telefone, energia e outras coisas que chegaram com o branco e vão chegar mais ainda, facilitam a nossa vida. Temos que saber usar tudo isto sem abandonar a nossa língua e a nossa cultura. A cultura é importante para mim e para o meu povo. Não esquecemos a nossa língua no tempo da borracha e não vamos esquecê-la nunca. Vi em Rondônia como é difícil a vida dos povos indígenas, sem caça, sem peixe, com pouca terra, muitos vendem a madeira. Vi no Solimões como muitos povos perderam a sua língua e cultura. Não quero isto de jeito nenhum. Falei que temos a nossa religião, temos as nossas histórias antigas. Tamaku é que nos criou. Nós lemos a Bíblia, eu comparo muito e acho que temos muitas coisas iguais e coisas diferentes. Contei a história de um pastor adventista que queria nos escravizar com as suas leis. Ele não respeitou a nossa cultura. Não queremos também divisão entre nós por causa de muitas religiões na aldeia. Não aceitamos isto. Mas falei também que nós somos gente com pernas, mãos, boca, olhos, cabeça como todo mundo, somos gente e não bichos, somos todos iguais. Viajei até para a Alemanha. Gostei da Alemanha que me tratou com muito respeito em todos os lugares. Isto não acontece em todos os lugares no Brasil. Na minha cidade de Itamarati o pessoal me respeita agora, mas no tempo da borracha fomos tratados como bichos. Muito obrigado pela oportunidade de poder ter ido. O trabalho junto com meu amigo Walter Sass deu tudo certo. Gostei da neve, sou um dos poucos indígenas que experimentou a neve. Nunca tinha visto neve antes. Agradeço ao COMIN pelo trabalho que faz conosco. Aprendi muito com Walter. O COMIN e os amigos de Walter ajudaram muito. Melhorou a vigilância da nossa terra e do pescado, temos escola com professores indígenas que todo ano participam de cursos do COMIN. Juntos fizemos cursos de saúde e de cuidados com as crianças, recebemos auxílio para melhorar a água que bebemos e estamos no meio de um grande projeto Manejo de Lagos, para melhorar muito o nosso sustento. Fico satisfeito e alegre, assim como todo o povo Deni. Saravi Deni

Cacique do povo Deni no rio Xeruã, Itamarati (AM) 144

145


Missão inseparável de Diaconia Em anos passados, a reflexão a respeito da dimensão missionária entre indígenas chegou a formular a idéia de uma “missão calada” e de uma “evangelização implícita”, ambas vinculadas a uma inserção conhecida como “pastoral da convivência”.

146

Muitas pessoas que conhecem e apreciam o trabalho solidário do COMIN junto às comunidades indígenas enxergam facilmente o caráter diaconal do apoio à demarcação de terras, à sustentabilidade, à educação e saúde e à organização própria. Contudo, têm dificuldade de enxergar a dimensão missionária, pois o trabalho não tem mais por objetivo cristianizar as comunidades indígenas, muito menos, criar entre elas comunidades luteranas. Em anos passados, a reflexão a respeito da dimensão missionária entre indígenas chegou a formular a idéia de uma “missão calada” e de uma “evangelização implícita”, ambas vinculadas a uma inserção conhecida como “pastoral da convivência”. A missão calada traduzia a vontade de acentuar uma prática de solidariedade sem o respectivo discurso cristianizante, que tinha fortes traços de colonização mental e espiritual, pois vinha com roupagem cultural eurocêntrica. A evangelização implícita representava a postura fundamental de descobrir e reforçar os elementos evangélicos de partilha e reciprocidade já existentes nas culturas indígenas. Ultimamente, pode-se acrescentar mais uma dimensão missionária: afirmação da dignidade e resgate da auto-estima – seja no diálogo interreligioso, buscando por mitos e histórias sagradas das comunidades indígenas, valorizando-as e evidenciando a sua capacidade de diálogo com as histórias sagradas da fé cristã, seja no aprendizado e na valorização da língua indígena materna, que, embora não tenha expressão escrita, não fica nada a dever a qualquer outra língua ocidental. Em ambos os casos, as comunidades indígenas experimentam dignidade e elevação da auto-estima, pois

até ali sua fé era considerada apenas uma crendice supersticiosa e a sua língua apenas um sistema de sons sem maior elaboração. Ambas as dimensões, a diaconal e a missionária, também estão presentes nas comunhões de mesa de Jesus. A primeira é a partilha do alimento para matar a fome física. A segunda é a experiência de dignidade e de auto-estima, de verdadeiros filhos e filhas de Deus, cidadãos e cidadãs plenas em seu acolhedor Reino. Além disso, a missão entre indígenas é claramente uma estrada de duas vias. Não apenas vamos até as comunidades indígenas para levar-lhes um tesouro, mas delas recebemos muitos tesouros. Seus saberes milenares, seus conhecimentos específicos que vêm sendo descobertos pela ciência, seus usos e costumes culturais tão diferentes dos nossos, seu relacionamento respeitoso e até mesmo espiritual com a boa criação de Deus nos desafiam a pensar alternativas e nos abrem os olhos para os becos sem saída para dentro dos quais a humanidade está sendo conduzida pelo modelo civilizacional ocidental sob os olhos complacentes e a postura impotente das igrejas cristãs. A outra via da missão entre indígenas, portanto, é a missão junto a não indígenas. O objetivo dessa missão é evangelizar pessoas e instituições da sociedade envolvente, principalmente igrejas e escolas, mas também órgãos de políticas públicas, associações, meios de comunicação e até mesmo partidos políticos, para desconstruir velhos preconceitos colonialistas e a discriminação e depreciação (racial) e cultural. Em seu lugar, a missão entre indígenas propõe uma atitude fundamental de respeito ao outro, ao diferente. A abertura ao diferente na verdade é um requisito de sobrevivência do planeta. O diálogo intercultural, o compartilhar de diferentes saberes e experiências, desde as bases materiais até as esferas espirituais indicam para a reconstrução de bases sustentáveis de vida para a humanidade. Nesse sentido é evangelização explícita tendo o Reino de Deus pregado por Jesus Cristo como referência. Não é apenas a salvação do indivíduo, mas sim a salvação de toda a humanidade e a criação que está no foco dessa missão evangelizadora, assim como já estava no foco de Jesus Cristo.

A dimensão diaconal e a missionária estão presentes nas comunhões de mesa de Jesus. A dimensão diaconal é a partilha do alimento para matar a fome física. A dimensão missionária é a experiência de dignidade e de auto-estima, de verdadeiros filhos e filhas de Deus, cidadãos e cidadãs plenas em Reino.

Ms. Hans Alfred Trein Teólogo, coordenador do COMIN, São Leopoldo

147


Direitos territoriais e desenvolvimento indígena Estudo de caso de PPM: Brasil

Por ocasião de seu Jubileu de 50 anos, em 2009, Pão para o Mundo (PPM) elaborou uma intensa documentação sobre os impactos do trabalho de parceiros na África, Ásia e América Latina. A principal ênfase dos estudos foi verificar os resultados em termos de aumento da dignidade e empoderamento de pessoas atendidas e o fortalecimento de formação comunitária de grupos e sua capacidade de organização. O COMIN, que tem o apoio de PPM há muitos anos, foi o parceiro no Brasil escolhido como objeto da pesquisa, realizada a partir do recorte “Fomento de Direitos Territoriais e Desenvolvimento Indígena”. O texto a seguir apresenta uma síntese do estudo de caso elaborado por PPM. O documento completo possui cerca de 80 páginas e avalia os resultados do trabalho do COMIN como muito positivos.

Quem é o COMIN? O Conselho de Missão entre Índios da Igreja Luterana foi fundado em 1982 e coordena a atividade missionária da IECLB com povos indígenas. O COMIN não entende sua atividade missionária como tarefa de evangelização dos povos indígenas, mas sim como um processo de reconciliação entre culturas, especialmente entre indígenas e brancos provenientes de comunidades luteranas da Europa. Fundamentos desse processo de reconciliação são a convivência respeitosa com a cultura e a religião indígenas e o diálogo e solidariedade entre os grupos. A IECLB se declara solidária com as demandas dos povos indígenas referentes ao res148

149


peito e defesa dos direitos à terra e dessa forma se expõe ao campo de tensões e conflitos na luta por interesses dos membros de comunidades luteranas e dos indígenas. Com isso, cabe ao COMIN a importante tarefa de mediar e construir pontes. A base central do seu trabalho é o fomento de um processo de desenvolvimento determinado pelos próprios indígenas. Os problemas dos povos indígenas não devem ser solucionados para eles, mas com eles. Com base nesta proposta pedagógica e a partir da compreensão de missão mencionada anteriormente, o COMIN apóia seus grupos-alvo: • nos processos de demarcação de terra nas áreas indígenas. • no fortalecimento da estrutura organizacional e poder de negociação indígenas. • no fortalecimento de estruturas econômicas sustentáveis e adequadas à cultura. • na introdução de condições de educação e saúde para indígenas. • através da promoção de diálogo interreligioso e intercultural.

Como se deu o estudo de impacto Para o levantamento dos impactos do trabalho do COMIN foram realizadas pesquisas de campo em três diferentes regiões do Sul do Brasil e da Amazônia. Teve-se o cuidado de escolher um grupo de entrevistados o mais representativo possível. Também foram consultadas pessoas sem ligação direta com o COMIN, com percepção mais objetiva devido a sua maior distância. O COMIN trabalha com parcerias bem elaboradas, sem as quais não teriam sido possíveis as transformações que foram verificadas. Neste contexto, junto com os resultados planejados, quase sempre acontecem transformações não esperadas. As conseqüências mais importantes podem ser resumidas como segue: • De maneira geral, constata-se que a auto-estima dos indígenas está visivelmente fortalecida. Nas negociações com os órgãos oficiais, lutam fortalecidos por seus direitos. Igualmente participam com mais força nos processos de direcionamento e controle das questões de saúde e educação. Conquistaram importantes serviços sociais públicos, como, por exemplo, o pagamento de aposentadorias. • No tocante à área de estudos em Santa Catarina, foi constatado que os Xokleng redescobriram sua identidade cultural. Novamente falam a sua língua, são alfabetizados em Xokleng e somente depois estudam português. Além disso, têm possibilidade de acesso à universidade. A luta dos Xokleng para conseguir indenização pública pela perda de terras e do espaço de moradia em conseqüência da 150

construção de uma barragem resultou em melhorias na infraestrutura da área onde vivem. Apesar de o processo de demarcação ter sido interrompido, conseguiu-se que o estado de Santa Catarina alterasse sua Constituição no sentido prever a possibilidade de indenização para colonizadores/agricultores não indígenas que precisam abandonar terras localizadas na área dos Xokleng. • No Acre e Amazonas, os Kulina levaram a termo o processo de demarcação da terra. Isso resultou em melhorias concretas na sua situação de vida, pelos resultados positivos em termos de segurança alimentar em conseqüência do controle sobre a caça e a pesca. Além disso, se constatou um crescimento da população Kulina. • As medidas em favor da promoção da saúde na região pesquisada em Eirunepé (AM) resultaram em uma melhoria da situação de vida dos Kulina. Três quartos da população Kulina no médio Juruá dispõem de água potável em conseqüência da introdução de filtros. Nestes grupos dos Kulina, também a mortalidade infantil baixou. • Em relação ao impacto sobre mulheres, foi possível constatar que, no decorrer da dissolução da União das Nações Indígenas do Acre (UNI-AC), ocorreu um forte movimento de emancipação das mulheres indígenas. Durante esse processo, elas conquistaram direito a voto e uma participação maior em grêmios de decisão nas organizações indígenas. O movimento de mulheres SITOAKORE tornou-se uma força importante na reestruturação do movimento indígena em toda a região: uma conseqüência inesperada e que levou a outra mudança não planejada – a fragilização do movimento indígena no Acre. • Em outros contextos, foi possível ver que medidas que por um lado levaram a transformações positivas, ao mesmo tempo provocaram mudanças negativas não esperadas. Por exemplo, o reconhecimento de professores e professoras e agentes de saúde indígenas no quadro de prestação de serviços sociais públicos muitas vezes leva à categorização de grupos indígenas (professores, professoras, aposentados, aposentadas, agentes de saúde, parteiras) que, nesta forma, não são parte da estrutura social indígena. Isso tem influência nas relações sociais entre os indígenas nas suas aldeias, como no que se refere à autoridade e ao respeito perante aos mais velhos. Tanto em relação a impactos para fora quanto para dentro da IECLB, o COMIN se desenvolveu como um ator reconhecido na área do diálogo intercultural e interreligioso e é consultado nessa função. No trabalho de sensibilização realizado pelo COMIN, em instituições de formação como escolas e universidades, percebe-se, especialmente em crianças, jovens e professores, mudanças de percepção em rela151


ção aos indígenas. Em alguns setores da população, isso leva a um reconhecimento maior dos povos indígenas. No que se refere a mudanças nas relações dentro da IECLB, pode ser constatado que a Direção da Igreja consulta o COMIN de maneira crescente como instância de assessoria para questões indígenas e se utiliza dele na mediação de conflitos. Além disso, o diálogo direto entre os sínodos da IECLB e o COMIN se intensificou; com isso, melhoraram as condições para que o tema Missão entre Indígenas seja integrado nos planos de ação dos sínodos. Os investimentos do COMIN na área da educação resultaram no aprimoramento da cooperação com instituições de formação da IECLB, como a Escola Superior de Teologia (EST) e escolas nos sínodos.

Resultados e avaliação dos impactos Todas as mudanças constatadas podem ser consideradas relevantes para os grupos-alvo. Em muitos aspectos os resultados são consistentes, especialmente quando demonstram transformações no comportamento e na visão de pessoas no seu ambiente. Onde a questão sobre o direito à terra for definitivamente clareada, a situação de vida dos indígenas pode ser incrementada de maneira decisiva. O trabalho pela introdução de sistemas de ensino e saúde culturalmente adequados, como também de economias etnossustentáveis, contribuiu em alto grau para a redescoberta da identidade dos povos indígenas e para o fortalecimento da sua auto-estima. Em relação aos critérios gerais de PPM, entre os quais o fortalecimento da dignidade humana e da autoconfiança, o aumento da capacidade de organização ou do fomento de iniciativas de empoderamento, foi possível demonstrar nas três áreas geográficas da pesquisa que, especialmente nesses aspectos, surgiram muitos processos positivos de mudança que, além disso, têm um alto grau de sustentabilidade. Isso é tanto mais importante uma vez que as conclusões do estudo mostraram que o trabalho com povos indígenas acontece em processos de desenvolvimento a longo prazo, sempre de novo marcados por retrocessos, e que muitas vezes são dificultados por forças externas. Por isso, as transformações positivas em relação ao fortalecimento da auto-estima, do grau de organização e do empoderamento dos povos indígenas ganham um sentido especial, pois são condições essenciais para o fortalecimento da resistência dos povos indígenas.

152

Colaboradores 153


Se o COMIN é o que é hoje, é graças ao trabalho de muita gente. Não apenas de obreiras e obreiros, mas de pessoas que dedicaram seu tempo de forma voluntária na participação em conselhos, diretorias e outras instâncias. Foram estas pessoas que muitas vezes apoiaram decisões difíceis, assumindo conosco riscos e conseqüências. Antes de assumir o cargo de secretário executivo, respectivamente coordenador do COMIN, coordenei a caminhada da IECLB na Amazônia, nas novas áreas de colonização, e fui durante nove anos Secretário Adjunto da Obra Gustavo Adolfo da Alemanha (GAW). Nestas duas tarefas e durante os 16 anos em que coordenei os trabalhos no COMIN (de maio de 1992 a fins de abril de 2008) sempre procurei olhar o engajamento no trabalho missionário como um processo, em que pessoas com suas histórias, dons e limitações estão envolvidas. O processo missionário é complexo, pois visões de mundo e convicções teológicas diferentes se entrechocam. Os critérios para avaliar se um processo missionário é evangélico ou não evangélico não podem ser exclusivamente teóricos. O testemunho como um todo faz a diferença. Colar a teoria com a prática exige compreensão e humildade, pois só tenho o direito de ser como sou se o outro pode ser do jeito como ele é. Deus não fala somente a minha língua. Ele entende e fala a língua da outra pessoa também. Se não for assim, a probabilidade de eu ter criado em minha imaginação um deus à minha própria imagem para me servir é muito grande. Um deus criado à minha própria imagem não é o Deus da Bíblia, é um ídolo e não serve para nada. Durante meu trabalho na coordenação, o que considero ter sido o mais enriquecedor, foi ter buscado consolidar, com obreiros e obreiras, conselheiros e conselheiras, as várias “partes” do COMIN em um só corpo. O fato de termos tanta diversidade nas equipes e nos povos com os quais trabalhamos exige grande energia para acomodar as diferentes demandas que surgem. A força do COMIN e de qualquer outra organização está na sua unidade – metodologia e elementos que são iguais no todo – e, simultaneamente, na sua diversidade. É preciso somar e, ao mesmo tempo, respeitar as características e procedências de cada uma e de cada um. Levar em conta, no trabalho diário e no mundo, a diversidade e criatividade – para mim, isso é viver o Reino. O conceito de missão no COMIN é algo que ainda está em construção. Ele precisa dialogar com a interculturalidade, com religiosidades diversas. Neste sentido, missão é, num primeiro ato, diálogo interreligioso e, num segundo ato, testemunho. Arteno Ilson Spellmeier foi incumbido com a coordenação e secretaria executiva do COMIN pelo Conselho Diretor da IECLB, em fins de março de 1992 e iniciou o trabalho em dois de maio de 1992. Compartilhou esta tarefa, inicialmente com Mozar Artur Dietrich e, mais tarde com o Hans Alfred Trein, com demais obreiras e obreiros e conselheiras e conselheiros, até 30 de abril de 2008.

Fritz Tolksdorf, pastor O indigenista alemão e membro da igreja luterana, Fritz Tolksdorf, veio ao Brasil em 1936. Com sua esposa Herta, foi residir em 1956 na localidade de Porto dos Gaúchos como fiscal indigenista nomeado pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e mais tarde da FUNAI.

154

Fritz Tolksdorf tinha a tarefa do SPI de defender os indígenas contra a corrida cada vez mais acelerada por empresas colonizadoras, seringalistas, seringueiros e garimpeiros, pacificar os Rikbaktsa, os Beiço-de-Pau e assegurar as suas terras. Onde o movimento fosse maior e possíveis confrontos mais iminentes, ele deveria criar um Posto de Proteção dos Índios. Foi tarefa difícil, pois muitos interessados na região não consideravam os indígenas como gente, mas como caça liberada. Tolksdorf tinha de acompanhar as inúmeras equipes de medição de terras para que os indígenas ficassem, pelo menos, com um pedaço da sua terra original. Mais tarde, o posto da missão indígena da IECLB foi passado para a Igreja Católica, muito a contragosto de Fritz Tolksdorf, pois a IECLB não via mais como dar suporte à distância.

Norberto Schwantes, pastor O pastor Norberto Schwantes iniciou um trabalho missionário com a comunidade Kaingang de Guarita (RS) em 1961. Isso foi uma grande novidade. A missão junto a indígenas desafiava a igreja a sair de si, servir a outros injustiçados e empobrecidos ao longo do processo de colonização. A contribuição especial do pastor Schwantes foi iniciar um trabalho missionário com os Kaingang a partir de dentro da comunidade de Tenente Portela, onde exercia o pastorado. Schwantes foi um pensador à frente de sua época, quando se empenhou por uma escola normal indígena para formação de monitores bilíngües, focada no resgate da identidade cultural e sua integração com a sociedade civil circunvizinha. Naquela época a escola indígena bilíngüe era única em todo o território nacional. Além disso, criou na missão indígena uma pequena cooperativa agrícola, uma escola para crianças e uma enfermaria.

Arnildo Flori Wiedemann, enfermeiro Arnildo Flori Wiedemann trabalhou com o povo indígena Rikbaktsa, no Mato Grosso, em 1968, junto com Fritz Tolksdorf. Depois que a IECLB transferiu o trabalho junto aos Rikbaktsa, em 1969, à missão da Igreja Católica, Arnildo viveu com os povos Nhambiquara e Marubo, fez o curso de enfermagem do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), respectivamente Fundação Nacional do Índio (FUNAI), entre os anos 1970 a 1975. Em 1976, iniciou o seu trabalho junto ao povo Suruí, em Espigão do Oeste, Rondônia. Obreiro da IECLB, atuou como enfermeiro e mediador entre a população não indígena e a população indígena. Ficou junto ao povo Suruí até sua transferência para dentro da recém demarcada Terra Indígena Sete de Setembro, em 1978/79.

Friedrich Richter, pastor Friedrich Richter, pastor, formado no seminário de missão em Neuendettelsau (1957), Alemanha, enviado pela Igreja Evangélica Luterana da Baviera, chegou no Espírito Santo em 1958, com sua esposa, Córdula. Depois de aprender português, foi para a colonização “Gleba” junto ao rio Arinos, Mato Grosso.

155


Foi instalado em 25 de setembro de 1960, chegando ao lugar da Missão Luterana - Córrego Escondido, em fins de março de 1961. Sua tarefa era trabalhar com as famílias evangélicas de agricultores e com os Rikbaktsa, também conhecidos como Canoeiros. Richter iniciou a construção de um posto missionário entre os Rikbaktsa. Era uma casa coberta com folhas de palmeiras e com paredes de paxiúba, semelhante às casas dos seringueiros. Ao redor, tinha um roçado para subsistência. Seu trabalho foi muito árduo e aconteceu de 1961-1964; só foi interrompido devido à grave doença de sua esposa que teve de retornar à Alemanha. Ainda que mais tarde tenha se questionado profundamente sobre o trabalho missionário, “Eu praticamente invadi uma cultura que estava imutável há milhares de anos”, lembrou que sua presença ajudou para denunciar injustiças cometidas contra os povos indígenas, além de exercer um apoio solidário de proteção cultural: “A história dos indígenas da América do Sul foi escrita só com sangue. O missionário traz a público as barbaridades que, sem a denúncia, ficariam enterradas no silêncio da natureza. Os povos indígenas que sobreviveram foram aqueles onde o contato começou com uma missão comprometida com a preservação da cultura indígena.”

Johannes Hasenack, pastor Fiquei fascinado com os contatos que pude ter com habitantes nativos da Amazônia, nos anos em que atuei como pastor e joão-faz-tudo na Gleba Arinos, residindo em Porto dos Gaúchos, no Mato Grosso, de 1957 a 1959. A Escola Marechal Rondon, construção de madeira coberta de tabuinhas, era também nossa moradia – do pastor, da esposa Ingeburg (Burghardt, nomeada professora pelo Estado MT, e do primogênito Claus Martin, nascido em setembro de 1957 (+08/12/1996). A motivação para que o Sínodo Riograndense e a IECLB decidissem ter presença formal no noroeste mato-grossense, a partir de 1957, foi a migração dos agricultores luteranos para o norte do Brasil. Impressionaram-me, sobretudo, os Rikbaktsa ou Canoeiros, que residiam entre os rios do baixo Juruena e Arinos. Não cheguei a ter contato mais próximo com outros povos indígenas, que viviam próximo dali. Diversos acontecimentos que dizimaram os povos indígenas no contato com os brancos “deixavam claro para qualquer pessoa com sensibilidade que, mais do que catequese e evangelização, era urgente, fazer tudo que seria possível para a própria sobrevivência dos grupos nativos. Com esta argumentação, desde já, fica mais do que justificado também o que a IECLB fez e faz em termos de apoio aos indígenas no Brasil.

Heinrich Güttinger, pastor O pastor Heinrich Güttinger trabalhou na Missão Indígena em Guarita, Tenente Portela (RS) de 1973 a 1979. Ele veio ao Brasil em 1964, para a Paróquia Salvador e Centro Social Mathilde Renner, em POA, participando também do Conselho de Missão da IECLB. Em 1973, a Igreja recebeu

156

um convite da FUNAI para instalar uma escola agrícola entre os indígenas. Por decisão do Conselho de Missão, Güttinger transferiu-se para Tenente Portela, para elaborar e coordenar o projeto. Ao deixar o Brasil em 1979, os indígenas com os quais havia trabalhado prestaram uma homenagem na festa de despedida. Cantaram hinos e versos de sua própria autoria e deram adeus “aquele que é nosso pastor, de quem sentiremos saudades e a quem sempre seremos gratos por tudo o que nos ensinou”.

Martin Backhouse, pastor Foi o pastor Heinrich Güttinger que me “atraiu” para o trabalho em Toldo Guarita (RS). Em agosto de 1974, eu visitava pastor Rudolf Fischer, em Erval Seco (RS) – que era membro do Conselho Administrativo (CA) do CEAI (Centro Educativo e Administrativo Indigena), e o CA realizava sua assembléia em Guarita. Na oportunidade, Güttinger perguntou se eu não teria interesse em trabalhar ali. Minha tarefa principal seria coordenar o trabalho de professores formados em Guarita e que já estavam trabalhando. Eu era solteiro, não estava trabalhando , conhecia a área de ensino e estava disposto a viajar. De volta para a Alemanha, coincidentemente, pastor Ulrich Fischer, encarregado pela América Latina, me disse que havia uma vaga pela IECLB no Brasil. Perguntou se eu não aceitaria. Isso é que é ser chamado... Martin Backhouse veio para o Brasil em 1976. Coordenou o trabalho em Guarita de 1976 a 1980. Convocado inicialmente para coordenar o ensino escolar indígena, sua missão foi se ampliando para quatro diferentes áreas: 1. uma estação de tratamento de doentes; 2. uma cooperativa agrícola que expandiu e diversificou suas atividades; 3. desenvolvimento da primeira escola primária incompleta, “Marechal Rondon”, reconhecida pelo Estado brasileiro como escola indígena; 4. Estudos e celebrações junto à comunidade cristã de confissão luterana com seus estudos e celebrações. A ênfase do seu trabalho foi transformar a mentalidade de não indígenas no sentido de revisarem sua postura de preconceito e discriminação. Os tempos não eram fáceis. Na época, a Fundação de Apoio ao Índio (FUNAI) tinha uma postura de tutela e assistencialismo. A prática ilegal de arrendamento de terras indígenas criou situações de muita tensão. Entre 1980 e 1983, Backhouse ainda participou no CA, época em que a IECLB ampliou sua missão entre indígenas também para a Amazônia e foi necessária a criação de um novo conselho como interlocutor da secretaria de missão. Assim foi criado o COMIN.

Friedrich Gierus, pastor Minha caminhada com a questão indígena começou em 1976, durante minhas atividades na Secretaria de Missão da Igreja. Nesta época, a IECLB mantinha um trabalho missionário apenas entre os índios Kaingang, no Toldo Guarita (RS). Nos anos seguintes, no entanto, teve início o trabalho missionário entre os índios Kulina, Cinta-Larga, Suruí, Zoró e Deni nos estados do Acre e Amazonas. Quando assumi a Paróquia Evangélica de Vila Toupava, em 1984, tomei conhecimento

157


da luta pela sobrevivência dos Kaingang no Toldo Chimbangue, Oeste Catarinense. O conflito pelas terras deste povo indígena vinha desde 1947, quando a firma colonizadora Luce, Rosa & Comp. Ltda. vendeu as primeiras terras do Toldo Chimbangue. Até aos anos de 80, este processo de invasão e venda da gleba do povo Kaingang continuou sem maior resistência por parte dos indígenas, que, não obstante aos cuidados da FUNAI, não tinham ninguém que os ajudasse na luta pela sobrevivência e os apoiasse juridicamente. Aos poucos perderam seu mato, suas roças. Do cemitério deles fizeram um potreiro. Os índios ficaram desesperados. Por um lado, a pressão e agressões físicas por parte de colonos e por outro lado a inoperância e o descaso dos órgãos governamentais competentes. A situação ficou insuportável. Desta situação brotou a idéia de um gesto de solidariedade. Articulamos um brado por socorro mediante uma greve de fome que foi realizada num estabelecimento da Igreja Católica em Florianópolis, durante os dias de 17 a 25 de setembro de 1985. Participaram desta ação 16 pessoas, além de três indígenas, indigenistas e padres da Igreja Católica Romana e um pastor da Igreja Metodista. A ação resultou no decreto governamental da liberação de 912 hectares de terras para os indígenas e o reassentamento dos colonos desapropriados. Esta ação teve apoio de muitas lideranças da nossa Igreja, Hoje, a preocupação pela causa indígena deixou de ser um problema exclusivamente do COMIN. Outras questões difíceis entraram no cenário, como a desapropriação de colonos que, de forma legítima, compraram terras, com o consentimento de órgãos governamentais e precisam deixar as propriedades, depois da terceira ou quarta geração. Os dois lados sofrem e é preciso achar uma solução que seja justa para todos.

Lori Altmann, pastora e professora Inseri-me na questão indígena a partir de 1976, através de um grupo de interesse sobre o tema na Escola Superior de Teologia (EST). O grupo fazia leituras e discussões de textos sobre a realidade indígena no Brasil e organizou seminários sobre esta temática com estudantes da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), do Seminário dos Jesuítas e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 1977, após um curso de iniciação à linguística voltada para línguas indígenas, realizei meu estágio da Faculdade de Teologia na aldeia do povo indígena Tapirapé e na Missão de Guarita da IECLB, junto aos Kaingang. Atuei entre o povo indígena Suruí de Rondônia na função de professora e depois entre os Kulina, do Acre, como pastora em trabalho missionário. Participei da discussão sobre a constituição do COMIN como obreira. Atuei em São Leopoldo no Projeto Índios Desaldeados, na localização e acompanhamento de famílias indígenas na região metropolitana da grande Porto Alegre. Atualmente sou pastora voluntária no COMIN, assessorando especialmente nas áreas de formação e produção do material da semana dos povos indígenas.

158

Desse tempo todo, considero que o destaque foi a formulação e realização da proposta da Pastoral da Convivência entre o povo Kulina e outros povos através dos/as obreiros/as do COMIN.

Roberto Zwetsch, pastor e professor A partir de um convênio firmado pela IECLB com a FUNAI – prevendo um trabalho de assistência à saúde e um projeto de educação, basicamente alfabetização em português – e do nosso interesse em conhecer mais de perto a realidade indígena, suas culturas e línguas, fomos enviados, Lori (Altmann) e eu para Roraima, em 1978. Fomos viver próximos aos Suruí do Parque Indígena Aripuanã, perto de Cacoal, centro do então Território Federal. Um dos pontos mais importantes que orientou nosso método de trabalho missionário foi o que chamamos de convivência (depois cunhamos a expressão pastoral de convivência, que definiu nossa forma de compreender e praticar missão entre indígenas). Já algum tempo no Parque Aripuanã, fomos surpreendidos quando o diretor do Parque nos perguntou quando iríamos começar a construção do prédio da escola (para ensino de português). De acordo com ele, isso havia sido acordado por pessoas da igreja que nos antecederam nos primeiros contatos com a FUNAI em Cacoal. Não era esta a nossa proposta e a escola, se fosse existir algum dia, deveria seguir o caminho normal de uma alfabetização na língua indígena e não no português. Foi o início de um contencioso que, agravado por outras arbitrariedades, acabou por nos expulsar da área no final de 1979. Restou para nós duas coisas dessa experiência difícil que vivemos: 1) Um grande aprendizado junto aos Suruí, que nos acolheram como irmãos. 2) Uma grande frustração com o autoritarismo do órgão indigenista oficial e sua incapacidade de admitir outras metodologias de trabalho com os indígenas.

Sighard Hermany, engenheiro agrônomo Iniciei minha atuação na área Indígena Guarita, em abril de 1980, como representante da IECLB-ISAEC e orientador técnico junto a Escola “Clara Camarão”, no convênio com a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em substituição ao pastor Martin Backhouse. A escola destinava-se à formação de monitores educadores bilíngües kaingang-português e monitores agrícolas. As constantes divergências em relação à metodologia aplicada e a proposta da escola e o não cumprimento por parte da FUNAI de assumir a contratação e remuneração dos jovens formados fizeram com que a IECLB se retirasse do projeto após a formatura da última turma. Passei a atuar em outro núcleo da IECLB na mesma área, chamada de Missão Indígena Guarita. O trabalho de fortalecimento da comunidade, a formação da cooperativa, a consciência do uso e valor da terra desenvolvido pela Missão Guarita eram vistos como um foco de resistência e contestação. Vale lembrar que vivíamos ainda no período da ditadura militar e quaisquer iniciativas de organização comunitária e formação de consciência era visto com desconfiança pelos órgãos governamentais. Apesar das tensões e conflitos foi um período de vivência e aprendizado muito rico que me acompanham até os dias de hoje.

159


João Artur Müller da Silva, pastor e gerente editorial da Editora Sinodal Lá se vão 28 anos desde a sexta-feira, 20 de agosto (1982), na Senhor dos Passos, 202, em Porto Alegre, quando um grupo de oito obreiros elaborou os objetivos e as atribuições do Conselho de Missão entre Índios da IECLB. A necessidade de um tal conselho já era assunto de conversas entre pessoas comprometidas com a causa indígena desde 1979. Fato que precipitou a criação do COMIN foi o retorno dos pastores Martin Backhouse e Ornulf Steen às suas pátrias. Ambos haviam atuado na Missão Indígena Guarita (RS) e queriam que a Igreja seguisse refletindo e debatendo temas pertinentes à causa indígena. “Definir o envolvimento missionário da IECLB na questão indígena” foi mais um componente das conversas e discussões naquele dia. Ao reler a ata desta reunião, me dou conta que elaborei o primeiro orçamento do COMIN, composto por apenas cinco itens! Entre os primeiros conselheiros estava Normélio Kramke, falecido em dezembro de 1983, vítima de um acidente. Eu segui integrando o COMIN nos anos seguintes, e exerci a Presidência de 1991 a 1992.

Mozar Dietrich, advogado Ingressei no COMIN em 1986, representando os estudantes da EST no Conselho. Fui secretário do Conselho do COMIN até abril de 1989, quando fui contratado como secretário executivo. Em agosto de 1994, logo após ter me formado em Direito pela Unisinos, fui contratado como assessor jurídico, exercendo esta função até agosto de 1998. Dentre as conquistas que tivemos como instituição nesse período, considero como as mais importantes: a) o reconhecimento e o papel que o COMIN passou a exercer dentro da IECLB, b) a expansão que tivemos nos campos de trabalho junto aos povos indígenas, e c) a atuação que o COMIN teve nos processos Constituintes em 1987/88, que elaborou e aprovou nossa atual Constituição Federal, e de 1988/89, que elaborou a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Em um período pós ditadura militar, a sociedade brasileira respirava novos ares e ansiava por mudanças e avanço na conquista de direitos. O COMIN/IECLB exerceu um papel essencial nesse processo termos de mobilização da IECLB e sociedade brasileira como um todo. No entanto, mais importante que isso, exerceu um papel fundamental na mobilização e apoio aos povos indígenas e suas organizações, que foram de fato protagonistas nos processos constitucionais que inscreveram textos garantidores dos direitos fundamentais das pessoas e dos grupos sociais étnicos de nossa sociedade. Hoje, o Brasil é reconhecidamente um país pluriétnico e se orgulha disto.

Wilfrid Buchweitz, pastor Fui convidado e eleito para a Presidência do Conselho do COMIN em duas gestões, entre os anos 1995 e 2003. O desafio era caminhar com este grupo de trabalho no trato da relação da IECLB e suas comunidades com os Povos Indígenas no Brasil. Assim como o país, as igrejas cristãs, salvo poucas exceções, contribuíram, às vezes até

160

foram protagonistas, para a destruição de milhões de vidas e de povos inteiros. Graças a Deus de uns tempos para cá os olhos da sociedade brasileira, de outros países e das igrejas abriram-se ou foram abertos para a verdade. Cresce a consciência de que indígenas são seres humanos com direitos iguais a todas as outras raças. A atual Constituição do Brasil ampliou enormemente o espaço para os direitos dos povos indígenas. E vários tipos de organizações e várias igrejas se colocam ao lado de pessoas e povos indígenas para escrever um novo capítulo da história. Tão ou mais importante que isso é que entre os próprios povos indígenas cresceu a consciência do seu valor e eles começaram a lutar por seus direitos e sua sobrevivência. Vi o COMIN aprendendo muito na reflexão e na prática. Vi a Igreja mudando sua postura. E vi algumas comunidades mudando o jeito de olhar a questão indígena. Agradeço muito pela possibilidade daqueles oito anos. Foram muito difíceis algumas vezes. E foram muito bonitos outras vezes.

Richard Wangen, pastor O pastor Richard Wangen foi presidente do COMIN de seis de dezembro de 2003 a 15 de março de 2006, dia de sua morte. Ele já apoiava o trabalho do COMIN desde os anos 90, principalmente através da tradução dos relatórios de trabalho dos/as obreiros/as do COMIN para a língua inglesa, facilitando assim a comunicação com as entidades de apoio financeiro dos Estados Unidos, Noruega, Finlândia e Suécia. Pastor Wangen identificava-se integralmente com o conceito de missão do COMIN: como diálogo, testemunho e solidariedade. Ele mesmo entendia, como diria no culto de despedida no Cemitério Ecumênico em São Leopoldo (RS) o colega pastor Donald Nelson, a missão como sendo de dimensão cósmica, abrangendo todas as coisas, todos os seres vivos, inclusive os seres humanos, em todas as suas dimensões. Ele não conseguiu conceber Deus menor do que isto e a missão das pessoas de fé como menor do que esta.

Uma mensagem Por falta de tempo para uma pesquisa ainda mais apurada, destacamos algumas pessoas que participaram do processo da Missão entre Indígenas na IECLB. Mas é bem maior a lista das pessoas que dedicaram sua energia e amor, contribuindo para a construção dessa história. A todas e a todos, um imenso agradecimento. Ao trazer aqui alguns nomes, queremos iniciar um processo a ser continuado no que estamos denominando de livro virtual – que no futuro também será impresso. Para preencher as lacunas, precisamos de todas e de todos, recontando fatos, resgatando fotos – ainda há muita pesquisa por fazer.

161


O COMIN é um processo de longo prazo que acompanha os povos indígenas em busca de uma vida digna e com pleno gozo de seus direitos. Sua “missão” é promover protagonismo, transformação e reconciliação nesse campo, de modo que uma história dolorosa, repleta de atrocidades e uma situação presente repleta de suspeição, rejeição e preconceitos levem a uma convivência com respeito pela diversidade e pelo outro. Desta forma, o COMIN torna-se uma expressão muito específica e singular da visão teológica do conceito de missão da Federação Luterana Mundial (FLM), esboçado em seu documento intitulado “Missão em Contexto”. O compromisso do COMIN com os povos indígenas, suas opções estratégicas e seu marco conceitual, bem como seu caráter transformador, particularmente também dentro da igreja, são uma forte contribuição para a comunhão da FLM em seu conjunto. Martin Junge Secretário Geral da Federação Luterana Mundial

Uma ponte entre mundos 50 anos de missão da IECLB entre indígenas


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.