OUTUBRO • Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO
9.668 EXEMPLARES www.issuu.com/postaldoalgarve
Gastronomia: Património vivo do Algarve
OUT | 2011 • Nº 38 • Mensal • O Cultura.Sul faz parte integrante da edição do POSTAL do ALGARVE e não pode ser vendido separadamente
p. 4 e 5
Em tempo de feiras o baú descobre brinquedos de outros dias p. 6
Quotidianos poéticos revisitam cartas e poemas de Álvaro de Campos p. 8
Comboio Nocturno para Lisboa de Pascal Mercier analisado em Livro.S p. 9
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Cultura.Sul 07.10. 2011
Um espaço que dá relevo a uma fonte de actividade literária que fervilha, muitas vezes, à margem dos circuitos convencionais.
blogosfera
Jady Batista
Da natureza de alguns humanos Henrique Dias Freire
Editor do CULTURA.SUL
Fazer da Cultura um Direito efectivo Estes novos tempos conturbados levam-nos a questionar sobre a sustentabilidade da actual economia especulativa. Em Portugal, também já quase todos nós percebemos da total inviabilidade de continuarmos a alimentar o “monstro” da actual máquina do Estado sorvedouro de dinheiro. Mais do que nunca, o normal crescente acesso aos bens materiais de que nos habituámos nas últimas décadas parece ter chegado ao fim para a generalidade da população. O abismo do retrocesso está instalado. E é nesse contexto que assume a centralidade jamais vista, a questão do direito à cultura como direito humano. O que deveria ser o próximo salto da humanidade encontra-se seriamente ameaçado: o acesso ao direito de fruir de bens simbólicos, imateriais (culturais) e espirituais. O momento é propício para encarar a necessária reflexão da forma como evolui, em Portugal e particularmente no Algarve, a própria ideia de cultura, de arte e do não menos importante jornalismo cultural. Durante mais de três anos, o «Cultura.Sul» tem procurado reflectir sobre de que maneira nos relacionamos com os valores estéticos e culturais, como eles nos influenciam nos processos de aprendizagem e portanto constroem modos de ver e de sentir. Seja em forma de notícias ou de crónicas, novos factos e pontos de vista sobre as origens da nossa cultura e costumes, o «Cultura. Sul» assume-se cada vez mais como a voz interior dos nossos valores. Assim o queiram os nossos leitores que já representam mais de 15 mil acessos/mês na nossa edição online em mais de 50 países.
Ficha Técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire
Como sabe quem me é chegado, se há coisa que me aborrece é ir ao supermercado. No entanto, reconheço que, não raro, trago de lá motivo de reflexão. A presença do meu filho em casa durante o fim-de-semana pede sempre uns mimos culinários para os quais necessitava de ingredientes que não tenho habitualmente. Lá fui. E reparei numa coisa que já me tinha chamado a atenção e na qual não me detivera ainda. Por todo o supermercado há produtos abandonados fora do sítio próprio: quatro iogurtes junto aos pacotes de arroz, uma embalagem de bacon na prateleira dos sumos, dois queijos frescos em cima dos limões. Isto só para dar alguns exemplos. Estive a pensar num termo com o qual eu pudesse qualificar a atitude subjacente a estas deslocadas presenças. Não me ocorre outro melhor: é estupidez. Vejamos, e eu não sou, muito longe disso, um exemplo de disciplina e ordem no momento de fazer as compras. Normalmente faço uma lista, mas posso bem ir sem a fazer. Compreendo perfeitamente que alguém, olhando para o carrinho, pense: “Afinal, não preciso de esparguete, ainda lá tenho”. O que eu não compreendo é que se
que não tem de estar a facilitar a logística do supermercado. Eles é que têm o lucro, eles que suportem as contrariedades. Pois. Mas, na minha opinião, nada disto tem a ver com eles. Tem a ver com cada um de nós.
agarre no pacote de esparguete para o colocar na prateleira mais próxima que, por acaso, é a dos sabonetes. Já me aconteceu, algumas vezes, decidir que, afinal, não vou levar algum produto que já tinha retirado do lugar. Volto lá. Parece-me elementar, faço marcha
atrás e volto a colocá-lo onde o tirei. E, mais fácil ainda ou se estiver muito apressada, posso deixá-lo na caixa: “Desculpe, afinal, não vou levar isto”. É capaz de ser mais correcto. Não sei, digo eu. Haverá, decerto, quem argumente
Adenda: Durante a semana tive de escrever alguns textos (oficiais) segundo o acordo ortográfico. Dura lex ... Nem imaginam o prazer que me dá chegar aqui e escrever à antiga. Só me apetece falar sobre temáticas que envolvam muitas perspectivas, muita objectividade, muitas excepções. Agora é que eu compreendo Maria Eduarda Runa quando, n’ Os Maias nos anos de Inglaterra, rezava Avé-Marias que lhe sabiam a conspiração. É óptimo. Site: ht t p: //a rondadosd ia s.blog spot.com / Postagem: http://arondadosdias.blogspot.com/2011/09/ da-natureza-de-alguns-humanos.html
Espaço CRIA
Inovação, empreendedorismo e as Unidades de Transferência de Tecnologia
Hugo Barros
Gestor de Ciência e Tecnologia do CRIA ‒ Divisão de Empreendedorismo e Transferência de Tecnologia
A inovação e o carácter empreendedor assumem actualmente um papel crucial no crescimento económico, obrigando a uma maior dinâmica dos agentes na identificação e actuação sobre novos nichos de mercado, e
Paginação: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: » baú.S: Joaquim Parra » livro.S: Adriana Nogueira » momento.S: Vítor Correia » museu.S: Isabel Soares » panorâmica.S: Ricardo Claro
incorporando novos conhecimentos com vista à promoção da competitividade. Desta forma, independentemente da localização geográfica, das necessidades que visam suprir, ou da inovação associada, as empresas nascem e actuam hoje num mercado globalizado e concorrencial. Resultante dos contrangimentos dos actuais sistemas económicos, a concorrência assume agora maiores proporções, tornando-se mais difícil a qualquer entidade reunir individualmente todos os recursos e competências necessárias ao desenvolvimento de novas iniciativas económicas. Como resposta, os agentes económicos têm vindo a adaptar o seu
modelo organizacional, no sentido de identificar parcerias nacionais e internacionais, conducentes à obtenção de benificios mútuos, num equilíbrio entre competição e cooperação internacional. Neste contexto, as universidades e centros de investigação consagram no sistema económico actual um papel determinante nos processos de inovação, promovendo e apoiando o potencial empreendedor, e valorizando o conhecimento gerado no seu interior. Consolidadas como unidades formais das universidades ou agentes da sua envolvente, e constituidas por equipas multidisciplinares
formadas para o efeito, as unidades de transferência de tecnologia e apoio ao empreendedorismo procuram eliminar as barreiras entre a geração do conhecimento e a sua transferência para o mercado. Os empreendedores encontram nestes organismos uma porta aberta e uma equipa de apoio à validação e valorização da sua ideia de negócio, desde a fase de construção do plano de negócio, a opções de localização, financiamento, comercialização ou internacionalização. As empresas potenciam o acesso a conhecimento e resultados de I&DT com potencial de comercialização, promovendo a sua competitividade.
Colaboradores: AGECAL, ALFA, CRIA, Cineclube de Faro, Cineclube de Tavira, DRCAlg, DREAlg, António Pina, Pedro Jubilot. Nesta edição: Carlos Gama Cruz, Hugo Barros, João Carrolo, Luís Vicente, Saul de Jesus
Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, Direcção Regional de Educação do Algarve, Postal do Algarve
on-line: www.issuu.com/postaldoalgarve
e-mail: geralcultura.sul@gmail.com
Tiragem: 9.668 exemplares
Cultura.Sul 07.10. 2011
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cinema Cineclube de Faro
Canijo: A coerência de quem sabe bem o que quer Sob pretexto da ansiada estreia de Sangue do Meu Sangue [a exibir dia 7 de Novembro no IPJ], retrospectiva completa da obra ficcional de longa-metragem de um dos nossos mais interessantes e seguros realizadores. Canijo exprime a coerência de um artista que sabe bem o que quer – falar de nós, para que ganhemos a vida. É muito bom podermos oferecer esta oportunidade ao nosso público. No mais, um Ciclo Vidas, de biografias constituído, cada uma de seu tipo, cada qual de seu género. Poetas, terroristas, ditadores, pioneiros, escravos como bichos de feira. Filmes recentes, importantes, de qualidade.
Como “48”, de Susana Sousa Dias e os presos políticos do fascismo, cujos depoimentos recolheu, que repetiremos dia 20, dados os problemas técnicos com a cópia que nos tinha sido enviada em Setembro. Colaborando com a Associação da Saúde Mental do Algarve, promoveremos um Ciclo que comemora o Dia Mundial da Saúde Mental. De entrada livre e com debate no final. Não é a nossa estreia na colaboração com esta Associação, mas é a primeira vez que estaremos num novo local – a somar a muitos outros – por onde vamos dando cinema. De qualidade.
PROGRAMAÇÃO
www.cineclubefaro.com CICLO VIDAS
31 OUT ¦ Uivo (Allen Ginsberg), Rob Eps-
CICLO DE CINEMA SOBRE SAÚDE MENTAL
IPJ ¦ 21.30 horas
tein e Jeffrey Friedman, EUA, 2010, 90
Auditório da Escola Superior de Saúde ¦ 14.30 horas ¦ ENTRADA LIVRE
3 OUT ¦ Vénus Negra, Abdellatif Kechiche, França/Bélgica, 2010, 159
RE/CONHECER JOÃO CANIJO
10 OUT ¦ Melhor é Impossível, James
10 OUT ¦ Autobiografia de Nicolae Ceau-
Sede ¦ 21.30 horas ¦ ENTRADA LIVRE
Brooks, EUA, 1997 (o síndroma de trans-
sescu, Andrei Ujica, Roménia, 2010, 180
torno obsessivo compulsivo)
17 OUT ¦ O Atalho, Kelly Reichardt, EUA,
5 OUT ¦ Ganhar a Vida, 2001, 115
11 OUT ¦ Shine, Scott Hicks, EUA, 1996 (a
2010, 104 , M/12
12 OUT ¦ Sapatos Pretos, 1998, 97
música como terapia)
20 OUT ¦ 48, Susana de Sousa Dias, Por-
19 OUT ¦ Filha da Mãe, 1990, 105
13 OUT ¦ Cisne Negro, Darren Aronofsky,
tugal, 2010, 93 , M/12
26 OUT ¦ Três Menos Eu, 1998, 90
EUA, 2010 (esquizofrenia paranóide)
24 OUT ¦ Carlos (O Chacal), Olivier As-
14 OUT ¦ Teatro de Sonhos, Rui Simões,
sayas, França/Alemanha, 2010, 163 ,
Portugal, 2003 (O teatro como terapia)
M/12
Cineclube de Tavira
Uma notícia positiva Por acaso, numa destas manhãs, através do vice-presidente da Federação Portuguesa de Cineclubes, também presidente do Cineclube de Faial (Açores), recebi uma notícia interessante: ontem recebeu uma chamada da secretária do secretário de Estado da Cultura, que entre outros lhe comunicou que é intenção desta instituição “digitalizar os cineclubes”, ou seja, fornecer material de projecção digital aos cineclubes federados. Uma notícia positiva, já que cada vez mais estreiam filmes em Portugal apenas em formato digital, e a única forma dos cineclubes exi-
Espaço AGECAL
João Carrolo
Programador do Teatro das Figuras ‒ Faro Sócio da AGECAL ‒ Associação de Gestores Culturais do Algarve
Uma análise breve sobre a evolução cultural e artística dos últimos 10 a 15 anos no Algarve deteta com facilidade um incremento notável do número de equipamentos culturais, estruturas de produção artística, número de profissio-
PROGRAMAÇÃO
www.cineclube-tavira.com 281 320 594 ¦ 965 209 198 ¦ cinetavira@gmail.com
birem alguns deles é o formato dvd (sob condição da distribuidora em questão querer disponibilizá-lo). Até a concretização desta nobre intenção continuamos a exibir no conhecido e familiar formato 35mm, para alguns um formato condenado, Cena do filme “Rubber - Pneu” para outros um formato defendido com paixão, tal como está a acon- que vem do mundo pornô) e Rubber tecer com música gravada em discos – Pneu, a história louca de um pneu de vinil ou cd... Este mês propomos emraivecido. Ainda, na quarta feira dois filmes italianos e dois nacionais, dia 5 de Outubro, propomos um no meio da Autobiografia de Nico- concerto a solo de Mandrax Icon, um lae Ceausescu (o ditador Romeno), projecto de Folk/Blues. Pela entrada Confissões de uma Namorada de simbólica de apenas 1 euro... O que Serviço com Sasha Grey (uma actriz podem querer mais?
Públicos e Periferias nais dedicados à área cultural e oportunidades para a formação nas artes. Há teatros, museus, centros culturais, galerias e festivais. Há estruturas profissionais e amadoras, coletivos de artistas e espaços de residência. Há programadores, formadores, técnicos e gestores. Há ensino superior, conservatórios e oficinas de formação. Estão-se a dar passos grandes e rápidos na construção duma estrutura formal geradora de arte dedicada a este território em específico. Edificada a estrutura é entretanto o tempo de realizar o trabalho moroso e de detalhe que se consubstancia na criação de conteúdos coerentes que dão sentido a este aparatus. No fundo, criar os fluxos estimulantes que conferem pertinência ao tecido estrutural e criativo entretanto criado. Várias possíveis abordagens existem para dinamizar os fluxos a que me refiro. Hoje, detenho-me em especial sobre o papel reservado ao público à
luz do contexto geográfico algarvio. Da mesma forma que Portugal é periférico em relação às grandes linhas criadoras e difusoras do centro da Europa, também o Algarve é periférico em relação aos principais centros de cultura nacionais, nomeadamente Lisboa e Porto. O Algarve traz consigo uma dupla nota periférica no que às abordagens da criação e fruição das artes diz respeito. Parece-me então fundamental a adoção de estratégias específicas e diferenciadoras que contestem esta periferia. Uma das possíveis passa precisamente por trazer para o centro da equação o papel do público. Concordamos com certeza que o público é parte por demais importante na atividade artística. Julgo que concordamos que o ato de olhar do espetador é uma prática que necessita de ser exercitada. Arrisco-me ainda a afirmar que desejamos espetadores emancipados, no entanto, argumentando contra Rancière
SESSÕES REGULARES
16 OUT ¦ Rise of The Planet of the Apes
Cine-Teatro António Pinheiro ¦ 21.30
(Planeta dos Macacos: A Origem) Rupert
horas
Wyatt, E.U.A. 2011 (105 ) M/12
2 OUT ¦ The Conspirator (A Conspiradora)
20 OUT ¦ Viagem a Portugal Sergio Tréfaut,
Robert Redford, E.U.A. 2010 (122 ) M/12
Portugal 2011 (75 ) M/12
4 OUT ¦ Concerto Folk/Blues ‒ Mandrax
23 OUT ¦ The Girlfriend Experience (Con-
Icon Entrada: 1,00€
fissões de uma Namorada de Serviço)
6 OUT ¦ Le Quattro Volte (As Quatro Vol-
Steven Soderbergh, E.U.A. 2011 (77 )
tas) Michelangelo Framartino, Itália/Ale-
M/16
manha/Suiça 2010 (88 ) M/6
27 OUT ¦ O Estranho Caso de Angélica
9 OUT ¦ La Nostra Vita (A Nossa Vida) Da-
Manoel de Oliveira, Portugal/França/Es-
niele Luchetti, Itália/França (98 ) M/12
panha/Brasil 2010 (97 ) M/12
13 OUT ¦ Autobiografia Lui Nicolae Ce-
30 OUT ¦ Rubber (Rubber - Pneu) Quentin
ausescu Andrei Ujica, Roménia 2010
Dupieux, França/Angola 2010 (82 ) M/16
(180 ) M/12
e à luz da especificidade algarvia, é desejável que estes estabeleçam uma relação próxima e atuante com os processos de criação e de produção. Hoje questiono precisamente o grau de participação e partilha que nós os profissionais das artes e cultura solicitamos àqueles a quem dedicamos a nossa atividade: o público e o espaço geográfico onde desenvolvemos o nosso trabalho. Retomando a ideia da necessidade de exercitar o olhar do espetador e atendendo à particularidade geográfica do Algarve, julgo pertinente que agentes e profissionais da cultura dediquem uma considerável parte dos seus esforços a colocar no centro de ação precisamente o público. Mais do que proporcionar o acesso às obras e criações pareceme importante desenhar projetos que envolvam as comunidades de forma ativa, convidando à participação dos intervenientes enquanto agentes atuantes no processo, proporcionando um contacto com as metodologias próprias dos processos criativos e as ferramentas para os compreender. Tratar-se-á em última análise de proporcionar o acesso
a modalidades de expressão que possibilitem a cada indivíduo a oportunidade de criação dum discurso próprio através da experimentação, do questionamento e do exercício do olhar. Esta é uma estratégia que creio necessária e potencialmente desencadeadora dum reordenamento das relações que unem agentes culturais e comunidade circundante. Um reordenamento que protagoniza um posicionamento mais atento por parte das estruturas de criação e apresentação em relação às pessoas e acontecimentos que estão em seu redor e aos quais não podem ser alheios. Eventualmente, um paradigma de criação e produção que paulatinamente criará as condições para a existência de uma massa de público que tem perante as manifestações culturais e artísticas uma posição assídua embora exigente e seletiva, capaz de um olhar fresco, crítico e de interpretação referencial. Um modelo que no longo prazo competirá para a promoção da proximidade entre público, criadores e objeto artístico subtraindo distância nesta região que é o Algarve.
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Cultura.Sul 07.10. 2011
panorâmica • TRADIÇÃO E MODERNIDADE À MESA
A gastronomia como património cultural Se durante anos a gastronomia esteve votada ao ostracismo pela maioria dos sectores culturais que não a entendiam como parte integrante do património cultural ou ainda que assim a entendessem atribuíam-lhe um lugar menor no panorama cultural, hoje a verdade é outra, completamente diversa. Os media, os operadores dos sectores do turismo e das exportações, os governos e os líderes de opinião, bem como as populações em geral, compreendem hoje que, cada vez mais, a gastronomia é um património cultural inalienável e indispensável à afirmação cultural da identidade de um país ou região. Saber cozinhar está na moda, as demonstrações de cozinha ao vivo proliferam, ser chefe é uma profissão de prestígio e vender um destino turístico, uma marca, ou um produto passa muitas vezes pela sua colagem à gastronomia enquanto património imaterial de uma cultura. O Cultura.Sul esteve à conversa com o chefe Luís Parreira para desvendar os recantos da gastronomia algarvia e do seu potencial, a sua originalidade e versatilidade, bem como a sua riqueza e estudo, para desenhar um retrato da gastronomia algarvia neste caminho do futuro que passa pela sua assumpção e exercício enquanto realidade cultural e patrimonial.
O Chefe Luís Parreira
Salada de batata-doce de Aljezur com morcela frita Ingredientes:
Confecção:
Batata-doce 800 g Morcela 400 g Canela, alho, coentros, azeite, sal e orégãos a gosto
Começa-se por assar as batatas-doces a 180ºC durante 40m. Depois de assadas deixam-se arrefecer, tira-se a pele, cortam-se em cubos grandes, temperam-se com um pouco de canela em pó, orégãos e um fio de azeite. Frita-se a morcela, cortada em rodelas finas em alho e azeite, mistura-se tudo, polvilhase com coentros picados (só as folhas) e está pronto a servir.
A gastronomia está perante uma oportunidade única
destaque
Para o jovem chefe, que aos 26 anos tem já sete de carreira com passagens pelas cozinhas de alguns dos melhores hotéis da região, “a gastronomia é sem sombra de dúvida uma das facetas do património cultural”, e a salvaguarda deste património, “passa por um conjunto de acções que devem ser desenvolvidas em simultâneo e cujo desenvolvimento faz todo o sentido que se faça agora, num momento em que em termos de visibilidade a gastronomia se encontra numa posição de grande vantagem”. “As cadeias televisivas de referência, os livros, os jornais, a internet e todos os meios de comunicação, estão hoje disponíveis de uma forma a que creio nunca antes se assistiu para darem visibilidade à gastronomia e esta é uma oportunidade imperdível”, afirma o
mais-valias faz todo o sentido”, afirma, ao mesmo tempo que defende que “a tradição e a sua versão reinventada não são melhores uma do que a outra, apenas formas diversas de concepção de uma realidade, mas sempre com base na tradição, porque sem ela a inovação não vive”. O chefe é peremptório nas potencialidades da cozinha típica algarvia. A somar à sua riqueza, Luís Parreira destaca a vantagem de a região ter produtos únicos e conciliáveis em momentos diferentes do resto das zonas do país. “O Algarve, por questões que se prendem com o clima e com a sua proximidade com o mar, tem uma gastronomia cuja originalidade é inegável e que pode apresentar pratos confeccionados com produtos frescos antes da época”, relembra Luís Parreira.
actual chefe do restaurante Clube Lusitano do Real Picadeiro em Pêra. Para Luís Parreira, a cozinha algarvia tem uma riqueza notável e que falta dar a conhecer, “em particular porque as pessoas reconhecem o Algarve pelo seu peixe e marisco e pouco mais, quando a região tem muito mais para oferecer, nomeadamente, no que respeita aos pratos típicos da serra”. “A minha formação e o meu percurso profissional levaram-me a estudar a cozinha regional e a especializar-me nesta área”, diz, realçando que este foi
o caminho percorrido para dar forma à sua vertente de criador e inovador nas artes da cozinha. Inovação e tradição “Criar pratos a partir da cozinha tradicional algarvia é um desafio constante para mim, seja agarrando num prato tradicional e vestindo-lhe uma nova roupagem, por exemplo a partir da reinvenção das guarnições (acompanhamentos), seja partindo dos seus ingredientes base e recriando o
“ARDENTE” Até 8 OUT | 21.30 | Teatro Lethes – Faro
A tragédia de D. Pedro I e D. Inês de Castro está entre os temas mais abordados pelas artes e literaturas de todo o Mundo. A ACTA aborda de novo este tema numa tripla perspectiva de novidade
“Criar pratos a partir da cozinha tradicional algarvia é um desafio constante, seja quando se agarra num prato tradicional e se recriam as guarnições dandolhe nova roupagem, seja quando se parte dos seus ingredientes base para criar um novo prato” prato”, explica o chefe, que se tornou uma figura conhecida dos farenses em geral através das suas demonstrações de cozinha ao vivo no Mercado Municipal da cidade. Para Luís Parreira a inovação não compete, nem põe em causa a tradição gastronómica. “Para mim, a necessidade de melhorar é um paradigma, pelo que reinventar os pratos tradicionais algarvios tentando acrescentar-lhes
Muito para fazer na recolha do acervo gastronómico No que respeita à salvaguarda do património gastronómico algarvio, o também monitor na Escola Superior de Hotelaria do Algarve diz que “está muito por fazer”. “A defesa do património nesta área do ponto de vista académico é um trabalho que está pouco desenvolvido e sobre o qual se conhece ainda pouco”, afirma, recordando que o trabalho de recolha que existe tem sido feito por cozinheiros, chefes e por pessoas interessadas na matéria, “mas encontrase em grande medida por coordenar e compilar”, um esforço que diz, “é importante que se faça em prol da manutenção do saber e da tradição”. Neste campo, recorda, “algum do trabalho que tem sido feito deve-se exactamente a esta nova vaga de interesse que se gerou a partir da vontade de recriar os pratos tradicionais”, mas a verdade é que há ainda um longo caminho a percorrer. Viver o património gastronómico Por outro lado, muito tem sido feito na divulgação da cozinha típica do Algarve e por via disso em prol da salvaguarda deste património através das demonstrações de cozinha ao vivo que se fazem um pouco por toda a
“SERENIDADES” Até 22 OUT | 10.30 às 16.30 | Galeria Municipal de Albufeira Susana Gonçalves imprime nos seus trabalhos um espírito de serenidade e equilíbrio das formas, fazendo destes os elementos comuns na diversidade da sua mostra
Cultura.Sul 07.10. 2011
Ricardo Claro
Filetes de cavala com dueto de gaspacho em tertúlia com berbigão da Ria Formosa aberto ao natural Ingredientes: Filetes de cavala 800 g Cebola 400 g Tomate maduro 600 g Pepinos 400 g Pimentos 400 g Alho seco 80 g Pão caseiro 1 kg Berbigão 400 g Azeite, vinagre, limão, coentros, sal grosso, pimenta e orégãos a gosto Confecção: Retirar os filetes da cavala, limpar de espinhas e marinar em azeite, sal, alho, orégãos frescos. Reservar no frio. Limpar o tomate de pele e graínhas, cortar em cubos com cerca de 1cm, fazer o mesmo processo aos pimentos, cebola e pepinos. Dividir os ingredientes em duas partes, com uma faz-se o gaspacho algarvio (juntar o alho picado, temperar com azeite, sal, vinagre e orégãos) e com outra um gaspacho andaluz (juntar miolo de pão, temperar com azeite, sal, pimenta, orégãos e moer tudo,
região e no país e estrangeiro e que levam a cozinha tradicional da região a milhares de pessoas. Exemplo disso são as demonstrações que Luís Parreira faz repetidamente e que, diz, “contam cada vez mais com maior adesão e interesse”. “É muito importante levar a cozinha tradicional até às pessoas, bem como as formas inovadoras de a apresentar e confeccionar, ao mesmo tempo que se ensina a cozinhar com produtos frescos, de forma saudável e tendo atenção às questões nutricionais”,
passa-se pelo chinês). Corta-se uma fatia de pão, aromatiza-se com azeite e alho e leva-se ao forno a torrar. Corta-se os filetes (40 segundos de cada lado) e fica pronto a servir. Abrir o berbigão num recipiente bem quente e regar com um pouco de sumo de limão, devem ficar suculentos. Empratar em prato fundo, colocando o gaspacho moído a tapar o fundo, uma fatia de pão torrado, o gaspacho algarvio por cima, os filetes sobrepostos e decora-se com uma folhas de coentros, um fio de azeite, um pouco de flor de sal e o berbigão.
afirma o chefe. No Mercado Municipal de Faro, onde Luís Parreira faz uma demonstração mensal, no primeiro fim-de-semana de cada mês a cozinha algarvia é revivida de mil e uma formas, sempre saudáveis e o património gastronómico da região é recordado da melhor forma possível, na prática. Porque a faceta mais entusiasmante da gastronomia enquanto realidade patrimonial é essa mesma, os pratos tradicionais são património vivo e que se vive.
Luís Parreira durante uma demonstração de cozinha ao vivo em Faro
Tertúlia Algarvia: O património em diálogo à mesa Durante a conversa que o Cultura. Sul manteve com o chefe Luís Parreira descobrimos que para a capital algarvia está previsto um projecto verdadeiramente inovador e que promete aliar a gastronomia a todas as demais manifestações culturais numa oferta única que promete dar a conhecer a verdadeira alma algarvia. A proposta é a de num único espaço encontrar o artesanato e os produtos típicos, os vinhos, os petiscos e as refeições gourmet, ao mesmo tempo que pode receber formação nos segredos da cozinha e visitar o património edificado, tudo com a marca Algarve como elo de ligação. O espaço a abrir na Cidade Velha, em Faro, promete pôr à conversa todos
os aspectos do orgulho algarvio e de ser algarvio numa “Tertúlia Algarvia”, o nome que o projecto vai assumir. Sem contar os segredos deste projecto multifacetado, que são a alma do negócio, o chefe sempre vai deixando escapar que assumiu a responsabilidade relativa à área gastronómica desta nova porta para o coração de Faro, por considerar que tem todas as condições para se desenhar como uma aposta ganhadora e inovadora. Daqui a um ano será possível, depois de uma visita pelo património edificado da Vila-Adentro em Faro, deixar-se provocar por um petisco ou uma tapa típica da região antes de se propor a um jantar gourmet, preparado a partir dos
pratos tradicionais algarvios. Entretanto, pode, sem nunca abandonar o mesmo espaço, conhecer o que de melhor a região oferece em artesanato, vinhos, doçaria, azeite e uma outra infinidade de produtos, e se quiser optar por aprender as receitas e os truques, a tertúlia também lhe dará conversa, com workshops e propostas de formação para que as suas artes culinárias ganhem dotes de chefe de cozinha. Isto e muito mais será o desafio dentro de algum tempo naquela que é uma iniciativa que pretende contribuir para a manutenção do património cultural da região, ao mesmo tempo que se afirma como um pólo de renovação para a Cidade Velha em Faro.
Tavira acolhe curso de arte na comunidade A associação corpodehoje leva a cabo nos fins-de-semana entre 14 de Outubro e 16 de Dezembro um curso de arte na comunidade em horário pós-laboral que pretende dar a educadores e artistas ferramentas na área da dança criativa e demais áreas artísticas que lhes permitam desenvolver projectos de ensino artístico em ambiente escolar e na comunidade. Dirigido não só a professores das áreas artísticas e a artistas, como realçou ao Cul-
tura.Sul Pedro Nascimento, da organização do curso, mas a todos os interessados que directa ou indirectamente tenham contacto com as estruturas de ensino e formação e com projectos artísticos na comunidade, este é um curso que se estenderá sete sextasfeiras e sábados, num total de 14 dias. De acordo com Pedro Nascimento, a grande aposta desta formação, que conta já com todas as vagas ocupadas e que arranca no próximo dia 14,
está na vertente prática, o que será potenciado com a presença de crianças e jovens de projectos, onde a associação desenvolve o seu trabalho e que servirão de base à aplicação prática aos conceitos passados aos formandos pelo leque de formadores presentes. A ideia é a de majorar preparação de todos os actores dos processos de desenvolvimento de projectos artísticos nos meios educacionais e na comunidade para que estes possam ver melhoradas as suas
performances e resultados. Por outro lado, o domínio de novas ferramentas, áreas e técnicas, são outras das preocupações do curso que dará a cada formando um certificado. Ainda durante a formação, cada formando terá como desafio a criação de um projecto ou objecto artístico que poderá levar à prática no último módulo da formação, testando desde logo as dificuldades e as vantagens obtidas pelo uso das ferramentas disponibilizadas
no âmbito da formação. Ana Borges, Filipa Francisco, Helena Faria, José Geraldo, Ludger Lamers, Ma-
dela Wallenstein, Margarida Mestre e Marion Gough, são os nomes que integram o elenco de formadores.
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Cultura.Sul 07.10. 2011
baú
Vames à fêra? Gaitinha ou tingalatinga vermelhinha Joaquim Parra
Professor de História e coleccionador baudopostal@gmail.com
destaque
Outubro é, por tradição (pelo menos aqui no reino dos Algarves), o mês das feiras e… das moscas. In illo tempore, era um mês aguardado com grande ansiedade e entusiasmo pela pequenada que, amealhando centavo a centavo, ao longo do ano, na barriga do seu porquinho ou pote de barro, via chegado o momento de os “esventrar”, contar os tostões e pedir aos pais, “vames à fêra?”. A ida à feira era, pois, um momento importante e impacientemente aguardado (até havia quem vestisse a roupa do Domingo). Não havia, como hoje, uma grande profusão de lojas e, para a pequenada (os que podiam, porque infelizmente eram muitos os que o não podiam fazer), era o momento de comprar aquele brinquedo que tanto se desejava, porque os das lojas, embora de qualidade superior, eram muito caros. E eram as barraquinhas de brinquedos as primeiras a chamar a atenção da pequenada e, por arrasto, os pais. Pela banca espraiavam-se os brinquedos de lata, plástico, madeira e barro: para os meninos, os carrinhos, camiões e tractores, as motas, as pistolas e espingardas, os instrume ntos
musicais e por aí fora; para as meninas, as bonecas, os tachinhos e panelinhas, os fogões, os ferros de engomar… Nem os pais ficavam indiferentes, pois muitas vezes aproveitavam para comprar mais uma figurinha de barro para o presépio. As barraquinhas não tinham o aspecto pasteurizado, homogeneizado e asséptico que têm hoje. Cada feirante tinha a sua tenda, e as estacas espalhavam-se pela área circundante, fazendo com que, regressar da feira sem pelo menos uma nódoa roxa nas canelas, fosse quase um milagre. O pó ou a lama, completavam o “décor”. Abraçado(a) ao novel brinquedo, os passos seguintes eram na direcção dos divertimentos. O carrossel, com os animais e as “panelas” às voltas, (quando apareceu o carrossel em “8”, foi uma revolução), os carrinhos de choque (os carres de barroaçe), que andavam numa pista oval, com pára-choques de lata, o Poço da Morte, em que um ou mais motociclistas desafiavam as leis da gravidade, provocando Ahhhh’s e obrigando os mais sensíveis a tapar os olhos, os aviões, as barracas dos tiros ao alvo e, nos sítios mais resguardados da feira, os jogos de batota (o gaitinha ou tingalatinga e a vermelhinha).
Mais tarde apareceram umas cadeiras presas por umas correntes que andavam à volta, levando a pessoa quase a ficar paralela ao chão, mas depois de alguns acidentes desapareceram. Também havia o comboio fantasma, mas as pessoas normalmente saíam de lá a rir. Especificamente para as crianças não havia muita variedade, resumindo-se à pista dos carrinhos, que davam voltas e mais voltas, levan-
que, boquiabertos de espanto ou a rir, viviam uma noite inesquecível. Para as crianças, era uma recordação que ficava para toda a vida. Quando a fome apertava, a variedade também não era muita. Algodão doce (cujo pauzinho era religiosamente guardado para ser disparado na espingarda de lata), torrão de Alicante, farturas (“malaquecos e brunhóis”), cachorros quentes ( à portuguesa, com
papo-secos e salsichas pequenas ) ou a grande novidade que era o frango de churrasco. O regresso a casa era feito ao colo do pai ou da mãe, com as mãos e os queixos todos lambuzados, acordados ou a dormitar, mas agarrados ao seu brinquedo que, nessa noite de magia, até tinha direito de dormir à cabeceira da cama (ou nos braços da criança). Para o ano há mais… Se Deus quiser.
do os pais ao “desespero” perante o pedido de “só mais uma voltinha… vá lá!”. Mas a coroa da feira era o circo. Para muitas crianças, e não só, era a única oportunidade de ver ao pé e ao vivo animais selvagens. “Estão quase a abrir as portas do circo” anunciava-se pelos altifalantes, enquanto as pessoas com o bilhete se iam juntando à entrada. Com muitos minutos de atraso “estratégico”, abriam-se as portas para um mundo de magia. Os equilibristas, os mágicos, os palhaços, os números com animais (cavalos, cães, tigres, leões, aves) e os contorcionistas atraíam centenas de pessoas (crianças e adultos)
“RUI VELOSO” 8 OU T | 20. 30 | Casino de Vilamoura - Loulé Jantar-concerto com o compositor e guitarrista considerado por muitos como o pai do rock português
“FOTOGRAFAR: A FAMÍLIA ANDRADE, OLHARES SOBRE TAVIRA” Até 7 JAN 2011 | Museu Municipal / Palácio da Galeria – Tavira Exposição sobre as memórias de uma cidade no século XX a partir do espólio de uma família de fotógrafos profissionais, os Andrades
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Galeria ÚNICA,Lagoa
Espaço ALFA
Projecto “Cooking Sessions” promove talentos e sabores do Algarve Carlos Gama Cruz
Gestor de Projectos e Membro da Direcção da ALFA ‒ Associação Livre Fotógrafos do Algarve
Carapaus alimados para entrada, cozido da serra com batata doce como prato principal e doce de figo para sobremesa foi o menu do quarto dos seis “workshops” que a ALFA está a desenvolver no Algarve, sob o mote “Cooking Sessions”. Uma jovem talento da cozinha e um profissional de fotografia ensinaram 16 alunos a confeccionar comida tradicional portuguesa, com ingredientes adquiridos nas bancas do Mercado de S. Brás, em mais uma sessão promovida pela Associação Livre Fotógrafos do Algarve (ALFA), desta vez, na cozinha antiga do Museu do Trajo,
no feriado de 5 Outubro. A experiência prolongou-se pela manhã e incluiu uma passagem de moda no Algarve do século XIX, onde bonitas modelos vestidas de damas a rigor, com cetim, lindos brocados, e rendas posaram para as câmeras dos fotógrafos participantes, dando nova vida à exposição Sombras e Luz, patente no Museu. Mais do que uma manhã bem passada num formato intimista para aprender fazendo, as “Cooking Sessions” são experiências únicas que proporcionam momentos de prazer, numa viagem por lugares carismáticos, onde a cozinha tradicional, as novas tendências da cozinha avançada, as provas de vinho, a música e a fotografia estão de mãos dadas. O primeiro ateliê realizou-se no inicio do ano na cozinha barroca do Seminário de S. José no Paço Episcopal
na cidade velha em Faro. As próximas sessões podem ser conhecidas em breve no facebook e estão previstas para Aljezur e Tavira, cidade que prepara a candidatura da Dieta Mediterrânica a património imaterial da UNESCO. O projecto “Cooking Sessions” beneficia do apoio técnico da Escola de Hotelaria e Turismo do Algarve, das entidades acolhedoras e desenvolveuse graças às parcerias firmadas com as marcas: Baesuris – sal artesanal, Jóia do Sul - azeite, Quinta dos Vales - vinho, Companhia das Pescarias do Algarve – bivalves e pescado, NIOBO empresa de material de fotografia e a Digital Mais TV. A ALFA é uma associação cultural que tem como fim dinamizar, promover e divulgar a fotografia, a criatividade, e outras formas de expressão artística relacionadas, em todo o Algarve.
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Vítor Correia
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Quotidianos poéticos
Álvaro de Campos
Algures num espaço e tempo do Algarve, a vida e a ficção intrometeram-se na poesia de Álvaro de Campos de Fernando Pessoa no universo literário universal deve muito aos versos de Álvaro de Campos. Alguns dos mais importantes poemas da sua obra foram escritos por Campos, como por exemplo aquele que é considerado como dos mais importantes e mais traduzidos poemas do séc.20- ‘A Tabacaria’. É através de Álvaro de Campos que Pessoa se tornou a grande figura da literatura portuguesa aquém e além fronteiras. Álvaro de Campos é o mais moderno «Ó fábricas, ó la-
Pedro Jubilot
pjubilot@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
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Na conhecida carta a Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de Janeiro de 1935, Fernando Pessoa escreve sobre a génese dos heterónimos: «Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, (…)é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade». Para além disso criou-o à sua imagem e semelhança. Desde o seu retrato físico: 1,75 de altura, mais dois centímetros do que ele; à sua vida: transportando-o para uma vivência da sua infância adaptada à realidade algarvia: «Meu horizonte de quintal e praia!»; «Na nora do quintal da minha casa o burro anda à nora, anda à nora / E o mistério do mundo é do tamanho disto». Mas só por conhecer bem a terra, podia Fernando Pessoa ter sentido assim uma chegada de Álvaro de Campos a Tavira, parando diante da paisagem: «Cheguei finalmente à vila da minha infância./Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei./(tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado). Tudo é velho onde fui novo». E ei-lo depois, ali na cidade observando a paisagem vista da mesa do café que convoca um «Chá com torradas na província de outrora(…) Na ampla sala de jantar das tias velhas» ali no nº 40, do largo da Alagoa, defronte
E Piccadilies e Avenues de l’Opera que entram/Pela minha alma dentro!», mas o mais regional «E fui criança como toda a gente./Nasci numa província portuguesa» …e mais ligado às raízes familiares «o relógio tictaqueava o tempo mais devagar/(…)o chá das noites socegadas que não voltam». Agora tem uma biblioteca, uma rua e uma associação cultural com o seu nome na sua cidade, mas ainda é pouco para o poeta, sobre o
Placa toponimica evocativa de Álvaro de Campos à antiga igreja da Nossa Senhora da Ajuda. Mas o homem de gabardine cinzenta levanta-se, e sente: «Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala. De repente avanço seguro, resolutamente»… a pé pela velha ponte romana sobre o rio de uma maré-baixa. Olha pró lado da barra e pressente ao fundo «Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe,/E depois as praias próximas, os cais vistos de perto. Depois vira para um bonito jardim florido que tem já um coreto vindo da fundição do ouro no Porto. Já na residencial ‘Sécqua’ o homem que de roupa interior branca acende um cigarro, aparece reflectido no espelho do guarda-fato, como um «(…)tipo judeu vagamente português de cara rapada». Da janela do seu quarto observa a mulher que chega num carro preto, olhando para o edifício, fugindo da chuva oblíqua. Toca a campainha e sobe apressada. Quer saber qual a porta do Sr. Engenheiro. Bate e ele abre-a. Traz cartas, mapas e projectos. E também alguns livros. De novo só, o homem «alto e magro de cabelo liso aparado» tem febre e escreve: «cada rua é um canal de uma Veneza de tédios», a frase solitária que surge
na folha logo que premidas as teclas da máquina Royal. Pensa que esta poderá bem ser a sua última visita a «Esta vila da minha infância é afinal uma cidade estrangeira. Sou forasteiro, tourist, transeunte». Ninguém escolhe onde nasce, muito menos poderia um heterónimo. No entanto, esta origem de Álvaro de Campos não é fortuita, uma vez que o seu criador tinha mesmo vários familiares ali na antiga cidade de Tavira. Mas é talvez da influência do seu tio-avô- Jacques C. Pessoa, essa histórica figura : ‘livre-pensador’ (como escrito na sua lápide funerária no cemitério de Tavira), que se reforma o Pessoa de Fernando e se forma a nova pessoa em Álvaro de Campos. Ou então, tal como diz Teresa Rita Lopes, ‘Álvaro de Campos é o retrato melhorado de Pessoa’, é através de Álvaro de Campos que Fernando Pessoa se libertava, que viajava, que amava, que se elevava. Este heterónimo era tão importante para ele que tinha uma vida para além da escrita dos poemas. Tanto assim foi que acabou por sobreviver ao próprio Pessoa. Campos ainda assinava poemas em 12 de Outubro de 1935, um pouco antes da morte de Fernando Pessoa, coisa que este então já não fazia. A importância actual da poesia
“COISAS” 8 OUT | 21.30 | Cine-Teatro Louletano Neste espectáculo Pedro Tochas quer partilhar consigo as suas coisas. Nada como rir em conjunto com as pequenas coisas da vida
Horóscopo boratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks, ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes»; o mais filosófico «Não sou nada/ Nunca serei nada.Não posso querer ser nada/Àparte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo»; mas também o mais sentimental «Mas, afinal,/só as criaturas que nunca escreveram/Cartas de amor/É que são/ Ridículas» e temperamental «Nada me prende a nada./Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo». É o mais cosmopolita «Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis, /(…)nos Ascots,/
qual Pessoa confessou: «(…) pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida».
Bibliografia: Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro; Poemas de Álvaro de Campos (várias edições). Alvaro de Campos, engenheiro de Tavira edição Casa Álvaro de Campos-Tavira, 2011; Teresa Rita Lopes, Vida e Obras do Engenheiro, 1990, estampa.
“INÍCIO DA ABSTRACÇÃO” Até 31 OUT | 10.00–13.00 – 14.0018.00 | Galeria Municipal - São Brás de Alportel Gabriela Rosa revela a sua forma de expressão artística numa mostra diversificada de trabalhos pintados a óleo sobre tela.
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livro
Comboio nocturno para Lisboa: o interior do exterior do interior do nosso mundo interior (p.87). Este é um assunto que me ocupa, por vezes, o pensamento, e ver ali, preto no branco, as minhas interrogações, provocou-me um grande bem-estar. Não refazemos, a determinada altura, a história da nossa vida? Não contamos histórias, convencidos que estamos da verdade em que se fundam? Interrogase também Amadeu do Prado, na p. 145, num texto chamado AS SOMBRAS DA ALMA: As histórias que os outros contam sobre nós, e as histórias que contamos sobre nós próprios: quais são as que mais se aproximam da verdade? Será assim tão evidente que são as próprias? Será que cada um é uma autoridade para si próprio?
Adriana Nogueira
Classicista Professora da Universidade do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com
Leio muito e faço leituras muito variadas: ensaio, poesia, romance. Às vezes contos. Raramente biografias. Contudo, esta variedade e quantidade nunca me cansam, pois estar rodeada de livros, com alguns na mão, é sempre fonte de prazer e aprendizagem. Mas há muito tempo que não lia um livro que me enchesse tanto as medidas. E as minhas medidas são grandes, posso garantir. O livro foi Comboio Nocturno para Lisboa, de Pascal Mercier (pseudónimo de um professor de filosofia de uma universidade de Berlim, o suíço Peter Bieri), editado pela Publicações Dom Quixote, em 2008. Comprei este livro num dia em que, coincidentemente com o título, tinha de apanhar um comboio e não tinha levado nada para ler. Na contracapa, que li em diagonal (não gosto de as ler muito atentamente, pois por vezes revelam mais do que devem) estava escrito que um tal Raimund, em Berna, consegue fazer com que uma portuguesa não se suicide. Depois, descobre um livro de um autor português, «que foi médico, poeta e resistente durante o salazarismo. Raimund é, desde há muito tempo, professor de latim e grego (…). Aprende português e, numa noite, mete-se num comboio para Lisboa». Estavam lá, pensei, os ingredientes que me garantiriam um bom divertimento na viagem de regresso a casa, condimentado com o extra da personagem principal ter a mesma profissão e a mesma especialidade que eu. Não é todos os dias que vemos o herói ser professor de latim e grego (ou conhecemos uma personagem chamada Adriana. Mas isso só descobri mais tarde). Porém, não foi assim que aconteceu. O livro não era uma espécie de policial como eu me convenci que seria (nem sei onde fui buscar essa ideia) e talvez algum encontro fortuito me tenha desviado da leitura nessa viagem. A verdade é que só mais de um ano depois voltei a pegar nele. E foi o encantamento. Também me tinha enganado com a contracapa, cuja leitura foi muito útil: «Um livro que apetece reler lentamente, mal se acaba de ler». Pensei “Não tenho tempo para reler um livro de 423 páginas. Vou ter de o ler devagar”. Foi o que fiz e pude apreciar uma leitura envolvente, que faz pensar, que nos obriga a posicionar
perante a nossa história (relativamente) recente, que nos leva para o nosso interior (lugar onde frequentemente não nos apetece ir). Neste livro acompanhamos Mundus (diminutivo do seu nome próprio, Raimund), de apelido Gregorius (como é tratado na maior parte do livro), na busca que empreende para descobrir quem foi Amadeu do Prado, o homem que escreveu um livro que o deslumbrou. Somos guiados pelas páginas daquela obra, ao mesmo tempo filosófica e diarística, de um médico que viveu e morreu durante o Estado Novo. Acompanhamo-lo na juventude, conhecemos a sua família, os seus professores, os seus colegas, os seus amigos e os seus amores. Mas nada disto nos é dado imediatamente. Também nós, como Gregorius, temos de ir descobrindo aquele «ele», enquanto o nosso «eu» se vai desvendando. O livro está repleto de reflexões filosóficas, apresentadas de forma simples e que falam a cada leitor, como se tivesse sido escrito para cada um que abre as suas páginas. Não é possível ficar indiferente, pois os pensamentos de Amadeu do Prado encontram, certamente, eco, em cada um de nós,
cada um pelas suas razões. «O interior do exterior do interior» Assim começa uma reflexão de 4 páginas (84-87), sobre um tema que se repete em outros momentos do livro e que trata dos equívocos que a nossa imagem provoca em quem não nos conhece. O livro apresenta em itálico o que respeita ao texto de Amadeu do Prado para se distinguir do resto da narrativa: Aquilo que eu parecia e mostrava ser, pensei, nunca o havia sido, nem um único minuto da minha vida. Nem na escola, nem na universidade, nem no consultório. Será que acontece o mesmo com os outros? Será que ninguém se reconhece no seu exterior? Que imagem de si próprios lhes surge como um cenário de deformações grosseiras? Que todos se apercebem do horror de um abismo que invariavelmente se abre entre a percepção que os outros têm deles e o modo como se vêem a si próprios? Que as duas intimidades, a interior e a exterior, se podem afastar de tal maneira que acaba por tornar-se quase impossível considerálas como intimidade com o mesmo ser? (p.86) E acrescenta: Mesmo o exterior de um interior continua a ser um pedaço
O que é a dignidade? Gregorius conhece João Eça, um resistente antifascista, que vive num lar de idosos. À sua custa (numa emocionante cena), o estrangeiro percebe que o outro tem as unhas arrancadas, da tortura que sofreu, e treme das mãos. A partir daí, o narrador diznos que Gregorius só lhe servia meia chávena de chá e nós entendemos porquê. E é entre estas duas personagens que se trava uma conversa sobre a dignidade (pp.357-358): «O facto de haver coisas que uma pessoa, em condição alguma, queira fazer ou aceitar: talvez a dignidade consista precisamente nisso, arriscou Gregorius. Nem era necessário que fossem limites morais, acrescentou. Podia abdicar-se da dignidade de muitas outras maneiras. (…) Lamber botas para subir na carreira. Um oportunismo desenfreado. Falsidade e cobardia para tentar salvar um casamento. Coisas dessas. – O pedinte? – perguntou Eça. – Será que alguém pode ser pedinte sem perder a dignidade? – Talvez, se na sua história houver uma obrigatoriedade, algo inevitável, em que ele nada possa fazer. E se o assumir. Assumir-se a si próprio – disse Gregorius. Assumir-se a si próprio – isso também fazia parte da dignidade pessoal. Era uma estratégia para sobreviver dignamente a um aniquilamento público. Galileu. Lutero. Mas também alguém que se torna culpado e resiste à tentação de o negar. Precisamente aquilo de que os políticos são incapazes. Sinceridade, a coragem de ser sincero. Perante os outros e perante si próprio». Em poucas palavras percebemos o que é o trágico e que só há tragédia, como diz Aristóteles, se houver dignidade na queda. Mais prosaicamente, recordo a indignidade a que os praxistas brutais sujeitam os caloiros, fazendo com que as praxes académicas percam o sentido e deixem de ser aquilo para que foram
criadas: momentos de entrosamento e integração no grupo ao qual se acaba de chegar e não um espaço de humilhação e perda de dignidade.
• Da minha biblioteca O livro de Pascal Mercier fezme lembrar um poema de Konstandinos Kavafis (1863-1933), o poeta grego contemporâneo de Fernando Pessoa, autor do poema que aqui trago. Há quem veja desespero nestas palavras: eu vejo a esperança que nasce da consciência das nossas limitações e daquilo que nos faz infelizes. Está em nós o poder da mudança:
A cidade Disseste: «Vou partir para outra terra, vou partir para outro mar. Uma outra cidade melhor do que esta encontrar-se-á. Cada esforço meu um malogro escrito está; e é - como morto - enterrado o meu coração. A minha mente até quando irá ficar nesta estagnação. Para onde quer que eu olhe, para onde quer que fite por aí ruínas negras da minha vida vejo aqui, onde tantos anos passei e dizimei e dei em estragar». Lugares novos não vais encontrar, não encontrarás outros mares. A cidade seguir-te-á. De volta pelos caminhos errarás os mesmos. E nos bairros os mesmos envelhecerás; e dentro dessas mesmas casas cobrir-te-ás de cãs. Sempre a esta cidade chegarás. Para os noutra parte - esperanças vãs não há barco para ti, não há partida. Assim como dizimaste aqui a tua vida neste pequeno recanto, em toda a terra a vi estragares. (na tradução de Nikos Pratsinis e Joaquim Manuel de Magalhães, para a Relógio d’Água, em 2005). Nota: exceto as citações, esta página foi escrita segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico.
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museu
• MUSEUS – A VEZ E A VOZ DO VISITANTE
Isabel Soares
Alcoutim - Rede de Núcleos Museológicos Foto: Isabel Soares
Museóloga/Arqueóloga
Hoje vamos passear pelo interior algarvio. Escolhemos a vila alcouteneja, situada em plena Serra do Caldeirão, longe da agitação do litoral, numa zona plena de beleza natural. Junto de Alcoutim, avistámos o Guadiana ‘estrada’ de outros tempos que banha esta vila com cerca de 5000 mil anos de história. Aqui o tempo continua a ter outra grandeza. Uma lembrança traz outra, mais profunda ainda. Neste despertar de lembranças descobrimos, entre as gentes da terra, histórias e figuras que nos parecem quase ficção, mas que na verdade são memórias que reconstroem o passado e o enriquecem magicamente. A nossa viagem começou precisamente pelas memórias mais recentes e deixou para depois os sinais de um passado mais longínquo (monumentos e vestígios arqueológicos). Memórias de uma fronteira…
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Na zona mais baixa da vila, junto ao rio, descobrimos a figura do ‘contrabandista’, que observa o Guadiana: trata-se pois, de uma estátua alusiva ao contrabando. Foi neste sítio que pessoas da terra nos contaram que as águas espelhadas do rio, que reflectem o casario das duas margens, espanhola e portuguesa, escondem histórias do quotidiano, daquelas que nasceram dum e doutro lado da ‘linha’. Nestas terras de fronteira toda a gente trabalhava para subsistir. E, tal como aconteceu com outras povoações raianas, esta terra beneficiou da linha divisória que separava e, ao mesmo tempo, unia as povoações, que por imposição estavam apartadas, mas que pela proximidade eram vizinhas. Assim, durante largos
Casa do Ferreiro anos esta linha de fronteira criou oportunidades para melhorar a vida daqueles que se arriscavam, contrabandeando o que podiam para a outra margem. O trabalho árduo de dia nos campos e o contrabando arriscado de noite ao longo do rio foram o ganha-pão de muitos, que para fugir à miséria tentavam a sua sorte, iludindo o controlo fronteiriço, pontuado pelos postos da guarda-fiscal. Mas deixemos estas histórias e retomemos o nosso percurso. Assim, seguimos viagem para a parte mais velha da vila, onde visitámos o antigo ‘guardião’, o Castelo. O antigo ‘guardião’… Caminhámos então para dentro do recinto do castelo de Alcoutim. Este foi seguramente o ‘guardião’ da época, controlando o rio e todos aqueles que queriam penetrar no interior do reino. Segundo se conta, foi palco de muitas guerras e tratados, como o da Paz de Alcoutim, entre Portugal e Castela, pondo fim à primeira Guerra Fernandina. A sua importância na defesa fronteiriça valeu-lhe, ao longo dos tempos, sucessivas reconstruções. Neste posto de vigia, para além
de se conhecer a sua história, pode-se também admirar uma panorâmica única. Assim, espairecemos de olhos postos no rio, diante da povoação de Sanlucar del Guadiana e do seu castelo. Também lá visitámos um dos núcleos museológicos de Alcoutim. Trata-se, pois, do núcleo de arqueologia que o castelo alberga. Este apresenta um percurso histórico com mais de 5000 anos, através dos vestígios arqueológicos descobertos no território de Alcoutim, sobretudo, dos períodos: neolítico, romano, islâmico e pós-reconquista cristã. Espaços que ‘abrigam’ o saber e as memórias dos alcoutenejos Dispondo já de alguns dados sobre a região, fomos à descoberta de outros espaços e lugares que valorizam e preservam o património cultural do território. Para isso, procurámos os restantes núcleos museológicos que desvendam a história da vila. Primeiro passámos pelo Núcleo Museológico de Arte Sacra, situado na Capela de Santo António, onde visitámos a exposição Um olhar sobre as igrejas de Alcoutim, que nos apresenta o roteiro de arte
“CONTINUUM” 8 OUT | 2130 | Centro Cultural de Lagos Trata-se de um espectáculo multimédia (música, vídeo, voz falada, etc.) concebido e interpretado por José António Sousa (Ja.x), com a participação especial de Maria João Alcobia
sacra do concelho. Esta exposição retrata um percurso histórico que começa no Manuelino e termina no Neoclassicismo, através de painéis informativos e as representações das obras mais importantes. Também aqui estão expostas algumas imagens e alfaias litúrgicas. Deixando o núcleo urbano de Alcoutim, partimos em direcção à freguesia do Pereiro, onde descobrimos a Casa do Ferreiro. Esta afamada oficina viveu, há mais de quarenta anos, da arte de trabalhar o ferro. O espaço foi remodelado e actualmente apresenta objectos e memórias
que nos deixam vislumbrar os segredos de uma profissão que foi determinante no fabrico de utensílios de ferro para uso caseiro (trempes, tenazes, grelhas, lavatórios, camas, portas, janelas, ferrolhos) e para as actividades do meio rural (charruas, enxadas, foices, forquilhas, picaretas, ferraduras, balanças, entre outros). Assim, as mulas que ajudavam nas lides dos campos tinham os seus cascos tratados pelo ferrador, assim como as enxadas e foices e os arados que sulcava as terras de Alcoutim foram fabricados pelo ferreiro. Embora não possamos já sentir o cheiro a carvão ou o calor dos ferros em brasa, este sítio evoca a importância do ferreiro, num tempo em que quase tudo era feito em ferro. De seguida, deslocámo-nos para a localidade de Santa Justa, onde visitámos um núcleo subordinado ao tema A escola primária. Neste local apreciámos uma sala de aulas dos anos 50/60 do século XX, realidade bem diferente dos dias de hoje. Para além dos espaços já referidos, Alcoutim possui ainda diversos núcleos museológicos que se encontram abertos, apenas mediante marcação, como é o caso dos núcleos de Vaqueiros, Martinlongo, Giões e o
do Pereiro sobre a cultura oral. Estes espaços foram adaptados e recuperados com o objectivo de retratarem a região, nomeadamente a organização social, a vida no campo, as actividades artesanais e a memória oral das comunidades. Para terminar, prosseguimos o nosso passeio acompanhando o serpentear do Guadiana e observando a paisagem até ao lugar Guerreiros do Rio, onde visitámos o seu curioso ‘museu’ dedicado ao Guadiana. Percorremos a exposição Olhar o Guadiana Por Dentro, que dá a conhecer a história do território e do rio e, sobretudo, das suas gentes. Nesta exposição, destacam-se alguns elementos que nos deixam ‘olhar o rio por dentro’, como a história e as vivências das pessoas, a fauna e a flora do rio e das suas margens, as artes de pesca tradicional e também as embarcações usadas neste troço navegável. Deixámos Alcoutim com a noção de que muito ficou para ver e descrever. Um património arqueológico que desvenda segredos milenares, um património natural que nos oferece paisagens pitorescas e um património cultural com muitas, muitas tradições enraizadas numa cultura tradicional de um Algarve rural. Foto: Arquivo da Rede de Museus de Alcoutim
Do outro lado da Margem / Sanlucar del Guadiana
“GOLDEN 80’s” Dias 21, 22, 28, 29 OUT | 20.30 | Casino de Monte Gordo
O Casino de Monte Gordo transporta-o até aos Anos 80! Os grandes êxitos da música, do cinema, as tendências da moda e toda a influência que esses anos dourados tiveram na nossa sociedade global estão representados neste espectáculo.
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opiniõe
Mas isto é Arte? Saul Neves de Jesus
Professor Catedrático da Universidade do Algarve
Em 1991, Damien Hirst expõe o trabalho “A impossibilidade física da morte na mente dos vivos”, em que se encontra colocado um tubarão-tigre morto dentro de um tanque feito de vidro e aço, suspenso numa solução de 5% de formaldeído. Será que isto pode ser considerado Arte? Esta questão é colocada por muitos dos que foram ver este trabalho, sendo a mesma questão que é colocada por muitos que vão visitar museus ou ver exposições de arte,
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Busto de José Régio
traduzindo algum cepticismo sobre a Arte actual. No entanto, esta questão não é apenas colocada hoje em dia, havendo ao longo da história da arte vários momentos em que isso aconteceu, demonstrando alguma resistência das pessoas a novas abordagens, a chamada resistência à mudança, que acontece também no mundo da arte. Um exemplo clássico ocorreu com o surgimento da pintura impressionista, a qual não era reconhecida logo quando surgiu, não sendo aceites nos circuitos académicos de arte obras com as características impressionistas, até aos anos 70 do século XIX. Por isso, a primeira exposição de pintura impressionista, após os quadros terem sido recusados no Grande Salão de Paris, teve que decorrer no estúdio do fotó-
grafo Nadar, a 15 de Abril de 1874, sendo expostos, entre outros, quadros de Cézanne, Pissaro, Monet, Degas e Renoir. No entanto, desde há várias décadas, a pintura impressionista talvez seja a mais popular e aquela que permite um maior sucesso comercial aos artistas que a utilizam. Também recusado havia sido o trabalho “A fonte”, um urinol branco de porcelana, assinado com o pseudónimo R. Mutt, que Duchamp apresentou, em 1917, para uma Exposição da Sociedade para Artistas Independentes de Nova Iorque. O presidente da direcção da sociedade afirmou à imprensa que esta “não era uma obra de arte, sob qualquer definição”, embora sendo uma exposição aberta a todos, desde que pagassem seis dólares, o que Duchamp fez. Este artista realizou vários “readymades”, como por exemplo expor um chaveiro na forma de garrafa (“Bottle rack”, 1914). Assim sendo, “A fonte”, de Duchamp não surge como um trabalho isolado, mas antes como um trabalho inserido numa originalidade e identidade que, de forma persistente, Duchamp desenvolveu, fazendo história, o que lhe permitiu entrar para a história de arte, sendo, actualmente, a sua obra considerada uma das mais importantes na história de arte do século XX, pois marcou o início de vários movimentos de arte moderna, em particular a arte conceptual, segundo a qual a ideia ou o conceito que se pretende transmitir é o mais importante na arte. Podemos assim entender a arte como uma forma de comunicação, não tendo as obras de arte que ser o produto das mãos do artista, ou esteticamente belas, ou emocionalmente profundas. Duchamp foi persistente na sua originalidade e identidade, desenvolvendo um percurso coerente, que permitiu
aos seus trabalhos ganharem sentido na história de arte. Talvez o júri tivesse razão quando não considerou “A fonte” como objecto de arte, no momento em que ela foi apresentada, mas é óbvio que actualmente qualquer crítico de arte pode afirmar com segurança que foi uma importante obra de arte, porque Duchamp foi persistente e coerente, criando contexto histórico para a apreciação da sua obra. É totalmente diferente de alguém se lembrar de apresentar um trabalho deste tipo numa exposição, nunca tendo feito nada antes, nem indo fazer a seguir. Por isso, tem pouco sentido o comentário de algumas pessoas quando olham para uma obra de arte: “eu também fazia isto”. Temos que aprender a apreciar a arte, não só olhando, mas procurando compreender o sentido e o contexto da sua realização. Assim, a consistência da produção original marca a identidade de um artista e que faz com que os seus trabalhos possam ser considerados obras de arte. Voltando a Hirst, autor do exemplo que apresentámos no início deste artigo, queremos destacar que ele tem realizado vários trabalhos em que aborda a morte através da arte, mostrando a consistência e identidade do seu percurso. Por exemplo, em 1991, apresentou o trabalho “Milhares de anos”, em que aparecia uma cabeça de vaca em decomposição, da qual se alimentavam larvas até se transformarem em moscas que depois eram electrocutadas num aparelho eléctrico para matar moscas e, em 2007, apresentou o trabalho “Por amor de Deus”, em que incrustou mais de 8000 diamantes no crânio de uma caveira. Já agora, em 2004, o trabalho de Hirst a que foi feita referência no início, “A impossibilidade física da morte na mente dos vivos”, foi vendido por dez milhões de dólares. Vários outros artistas têm realizado
Os caminhos da arte são cada vez mais difíceis de definir, mas parece-nos que pelo menos os limites da ética devem ser respeitados. Aproveitando as palavras do poeta José Régio, em “Cântico Negro”, “não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí”… “MOZART GROUP” 7 OUT | 2130 | Auditório Municipal de Lagoa Filip, Michał, Paweł e Bolek são quatro instrumentistas formados em Academias de Música prestigiadas de Varsóvia e Łódz, na Polónia, que decidiram tocar música clássica com humor
“readymades” com animais. Por exemplo, Maurizio Cattelan colocou um cavalo morto suspenso no tecto, “O Novecento (Século XX)” (1997), procurando produzir analogias entre o cavalo e o século que estava a terminar. Com animais vivos também há vários exemplos na história de arte contemporânea. Por exemplo, Francis Alys (2001) enviou um pavão vivo, como obra de arte, com o título “O Embaixador” para a Bienal de Veneza em vez de comparecer pessoalmente. Por seu turno, em 2007, Mark Wallinger apresentou numa exposição um cavalo que havia participado em competições, com o título “Uma verdadeira obra de arte”. E, já em 1969, Jannis Kounellis havia exposto numa galeria em Roma doze cavalos como se estivessem num estábulo. Era uma resposta de crítica ao espaço branco e ambiente anti-séptico das modernas galerias de arte. Assim, todos estes exemplos podem ser considerados arte, na perspectiva da Arte Conceptual, em que o artista procura comunicar ideias ou conceitos através da arte. No entanto, tal como noutras situações de comunicação, parece-nos que os limites da ética não devem ser ultrapassados, mesmo que por supostas razões estéticas. Assim, façam tudo o que quiserem desde que não prejudiquem os outros, incluindo animais. Nesse sentido, os nossos limites não nos permitem aceitar como arte a instalação realizada por Guillermo Habacuc, em 2007, em que apanhou um cão abandonado, tendo-o colocado atado a uma parede de uma galeria de arte e ali o deixou a morrer lentamente de fome e de sede, perante os visitantes desta exposição. Este não foi um caso isolado, pois Habacuc foi convidado a repetir a sua instalação na prestigiada Bienal Centroamericana de Arte, realizada em 2009. Pouco nos importa que digam que também são sacrificados animais para os avanços na ciência e na medicina, ou que o objectivo desta instalação era provocar as pessoas face à situação dos animais abandonados. Os caminhos da arte são cada vez mais difíceis de definir, mas parecenos que pelo menos os limites da ética devem ser respeitados. Aproveitando as palavras do poeta José Régio, em “Cântico Negro”, “não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí”…
“ARKHÉ - UM PRINCÍPIO ÚNICO” Até 31 OU T | 10. 30 às 16. 30 | Galeria de Arte Pintor Samora Barros - Albufeira A pintora algarvia Lídia de Almeida lança a reflexão sobre a importância de desfrutar da beleza da vida com o seu mais recente trabalho
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Cultura.Sul 07.10. 2011
Espaço Cultura
Património Cultural como indústria cultural? Ao longo dos últimos cinco anos, diversos textos e documentos têm vindo a modelar as políticas públicas no Algarve para a área do património cultural, refletindo um diagnóstico da situação atual que abrange os domínios do Património Cultural Construído, das Paisagens Culturais, do Património Cultural Móvel e Integrado e do Património Cultural Imaterial. Para além da discussão acerca do Património como recurso cultural, gerador de conhecimento, de educação e de autoestima, importa agora desencadear uma reflexão alargada sobre a herança cultural da Região como geradora de riqueza e de trabalho. Se o Património Cultural constitui um valioso recurso económico para o Algarve, importa questionar se o setor público deverá fomentar e contribuir para consolidar um mercado para os bens culturais, distinguindo o seu valor de troca e, designadamente, transformando-os em produtos turísticos. Nesta medida, o conhecimento criado pelas mais diversas atividades de investigação, as intervenções de conservação e restauro, as operações de musealização dos diversos lugares, convertendo-os em espaços de fruição cultural, não seriam senão outros tantos aspetos de uma indústria cultural constituída em torno do Património. Contudo, mesmo antes de ponderar os possíveis modelos de gestão para os espaços culturais e equipamentos conexos, importa considerar: quem deve pagar os quase sempre
Se o Património Cultural constitui um valioso recurso económico para o Algarve, importa questionar se o setor público deverá fomentar e contribuir para consolidar um mercado para os bens culturais, distinguindo o seu valor de troca e, designadamente, transformando-os em produtos turísticos Obras na Fortaleza da Arrifana (Aljezur) vultuosos investimentos iniciais necessários? No contexto regional (e nacional), a resposta a esta questão é, inevitavelmente, na esmagadora maioria dos casos: a administração pública (cen-
tral ou autárquica) com os impostos cobrados a todos os contribuintes. Ou seja: quem paga todo o processo de criação de conhecimento e as ações de valorização do Património Cultural é toda a sociedade.
Nestas circunstâncias, caberá perguntar se a administração pública (central ou autárquica) pode esperar obter lucros com o investimento realizado no setor patrimonial. Muito dificilmente a resposta a esta questão poderá ser afirmativa, já que ao investimento inicial haverá que somar as despesas de manutenção/conservação dos bens
culturais e os custos de funcionamento dos equipamentos, incluindo as despesas com pessoal de receção/vigilância. Neste sentido, nenhum monumento ou museu do Algarve poderá considerar-se «rentável». Os benefícios gerados pelo setor são de outra ordem. O investimento em Património Cultural envolve, no Algarve, prestadores de serviços especializados nas áreas do diagnóstico, levantamento, inspeção, conservação e restauro, convertidas em setores de atividade económica que movimentam um crescente, e nada despiciendo, volume de negócios. O retorno social desse investimento público favorece o conjunto da sociedade, através do acesso ao conhecimento e à fruição dos bens culturais e do incremento do respetivo potencial educativo. Por outro lado, esse mesmo investimento reforça a oferta cultural da Região, em complemento requalificador do tradicional turismo de sol e mar, contribuindo indiretamente para as receitas geradas pelas atividades em turismo cultural e de natureza, de que beneficiam os setores privados da hotelaria e restauração e os operadores turísticos. Na atual conjuntura económica, estas questões deveriam fazer-nos refletir sobre as opções e decisões de investimento em Património Cultural – numa perspetiva sustentável e sem agrilhoar esse investimento (que corresponde a um esforço do todo social) à prática de um turismo com frequência rentabilizado somente por uma parte, minoritária, da sociedade. Direção Regional de Cultura
António Pina Convida
Churchill e o chimpanzé
Luís Vicente
Director da AC TA ‒ A Companhia de Teatro do Algarve
Conta-se, que quando Churchill convocou a Inglaterra para um redobrado esforço de guerra a fim de avançar com medidas que no plano bélico eram tidas como imperiosas para a sobrevivência dos ingleses e dos povos europeus face aos avanços da besta nazi, terá sido abordado pelo responsável da Cultura do seu governo que lhe terá dito, conformado, “Lá vamos ter de cortar na Cultura!”, ao que Churchill terá respondido: “Nem pense nisso, homem! Então estamos a fazer esta guerra para quê?!...”. Tal resposta, face às circunstân-
cias, justificaria um Nobel - mas não foi por a ter dado que Churchill o recebeu (da Literatura) em 1953. Ou terá sido, também... Recebeu-o, seguramente, porque embora Churchill não soubesse (da fonte segura que hoje o sabemos nós, graças às neurociências) que o homem partilha com o chimpanzé a consciência do ser, sabia, no entanto, que o chimpanzé não compartilha com o homem a consciência do saber: não escreve, não pinta, não dança, não esculpe, não representa, em suma, não cria. Desconhece, portanto, o que seja Cultura.
Sabia Churchill da importância da Cultura, designadamente, para a construção do edifício do saber, e que tal património é exclusivamente humano. Sabia que o que nos destingue do chimpanzé, que é bicho que pertence à categoria taxonómica que nos é mais próxima, é ser impossível descodificarmo-nos e compreendermo-nos sem o saber que nos proporciona a Cultura. Sabia que sem Cultura não haveria Humanidade, o homem não seria o Homem. Ora, vivemos um tempo tendente a acentuar o desenvolvimento e afirmação da tentação de se considerar
a Cultura como área da actividade humana não prioritária... Pois não, não é: mas também não o são, por exemplo, os Transportes, uma vez que sempre podemos ir a pé. E se tivermos de carregar algum peso, sempre o podemos levar às costas, como as bestas! E as pescas? Também não são prioritárias. Sempre podemos pescar à linha. E se não tivermos linha, sempre podemos pescar à patada, como os ursos! E se continuássemos com os exemplos chegaríamos ao chimpanzé. E afastar-nos-íamos de Churchill.