CULTURA.SUL 104 - 9 JUN 2017

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO

JUNHO 2017 | n.º 104 5.218 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve d.r.

Espaço AGECAL:

d.r.

Os limites do uso do corpo na arte p. 6

O papel dos audiovisuais na comunicação patrimonial

p. 3

Filosofia dia-a-dia: d.r.

Estamos sempre já a imaginar p. 4 Letras e leituras:

carlos ramos d.r.

António Rosa Mendes: A Construção do Vazio, de Patrícia Reis p. 5

Da minha biblioteca: d.r.

Diário do Farol. A Ilha, a Cadela e Eu, de Ana Cristina Leronardo p. 11

Um representante genuíno da identidade algarvia p. 10


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09.06.2017

Cultura.Sul

Editorial

Missão Cultura

Sempre em evolução

4 M’s: Maio, Museus, Museologia e Misericórdias no Algarve (parte 2) fotos: d.r.

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

AGENDAR

Com oito anos de existência já contabilizados, o Cultura.Sul continua a apostar na evolução dos conteúdos que leva aos algarvios, na tentativa de se ultrapassar em cada dia, em cada momento e de melhor servir o propósito maior de informar e de despertar as consciências para as mais diversas áreas culturais. Mudar a imagem do caderno já aconteceu, como foi acontecendo ao longo do tempo a renovação dos conteúdos, e assim continuamos numa senda de procurar diversificar e ampliar as propostas de leitura e as temáticas sugeridas aos leitores. Estamos neste momento precisamente em mais um desses momentos de evolução e a edição e os autores ganham mais relevo na nova proposta de Pedro Jubilot com a rubrica Quotidianos Poéticos. Por outro lado, integra a partir desta edição as fileiras dos colaborados do Cultura.Sul o nome de Maria Luísa Francisco, com a rubrica Marca d'água, que trará ao caderno o saber de uma empenhada investigadora da área da Sociologia na região. E as novidades não ficam por aqui, vê-lo-ão em breve. Entretanto, cumpre o agradecimento a todos quantos passaram pelo Cultura.Sul com o seu precioso contributo, seja como editores, coordenadores ou colaboradores, emprestando a estas páginas dedicação e alma inexcedíveis e dignas de nota e de reconhecimento. Fazedores de conhecimento e de saber a eles, acima de tudo, se deve a alma deste caderno de cultura que vos continuará a acompanhar, apesar do desinvestimento que existe em suportes de divulgação cultural que vão além das meras folhas de sala de espectáculos. 

Direção Regional de Cultura do Algarve

Patrimonialização dos bens religiosos medievais, modernos e contemporâneos Da totalidade dos edifícios religiosos e assistenciais existentes no Algarve, edificados nas épocas medieval, moderna e contemporânea – isto é, entre os séculos 8.º e 21.º –, encontram-se patrimonializados (isto é, reconhecidos como herança cultural comum das comunidades) cerca de oito dezenas de imóveis, entre os quais se incluem: duas catedrais e diversas igrejas, ermidas, cruzeiros e capelas, algumas destas integradas em fortalezas e casas nobres. A titularidade destes imóveis classificados (com grau nacional, a maioria, ou municipal) pertence ao Estado, a fábricas da igreja, a Misericórdias, e a outras congregações religiosas e entidades privadas. Relativamente ao reconhecimento desse património religioso, datável de época medieval, moderna e contemporânea, encontra-se disponível em linha, no sítio da internet da DGPC, o Atlas do Património Classificado e em Vias de Classificação. Este atlas resulta de um trabalho de cooperação institucional entre a DRCAlg e a DGPC, com o indispensável contributo dos municípios, e disponibiliza informação e permite a monitorização das cerca de duas centenas de bens culturais imóveis patrimonializados localizados no Algarve e respetivas zonas de proteção, nomeadamente informação georreferenciada e caraterização sumária referente aos edifícios religiosos medievais, modernos e contemporâneos classificados e em vias de classificação da região. Para os bens integrados e móveis de cariz religioso, o Algarve conta com um exaustivo

arquivísticos manuscritos da Diocese, das Misericórdias e de outras irmandades religiosas, como Luís Miguel Duarte, Fernando Callapez Correia e Luísa Martins. Sendo ainda de mencionar, sobre a edição impressa e a atividade editorial da Igreja no Algarve, os contributos recentes de Patrícia de Jesus Palma. Salvaguarda dos edifícios religiosos medievais, modernos e contemporâneos

Edifício onde está integrada a Igreja da Misericórdia de Faro inventário artístico da talha e da imaginária realizado por Francisco Lameira e publicado pelos serviços regionais da cultura, cobrindo a totalidade dos municípios algarvios. No que se refere ao conhecimento científico do património religioso de matriz cristã, é indispensável mencionar o importante contributo dos investigadores da Universidade do Algarve, nomeadamente de José Eduardo Horta Correia (trabalhos de investigação da arquitetura religiosa do século XVI e da obra de Francesco Fabri),

de Catarina Almeida Marado (trabalhos de investigação dos antigos conventos do Algarve), de Francisco Lameira (trabalhos de investigação da talha e dos retábulos tardomedievais e modernos). Mas deve-se também destacar o contributo de outros investigadores, como Mário Tavares Chicó e Pedro Dias (sobre a arquitetura gótica tardomedieval e manuelina) ou Vítor Serrão (sobre a pintura dos séculos 16 e 17), outros com importantes trabalhos de investigação e síntese, quer seja sobre a arquitetura religio-

sa no Algarve, como Manuel Castelo Ramos (época dos Descobrimentos), José Manuel Fernandes (do gótico ao ciclo pombalino), Carla Fernandes (época medieval), Daniel Santana e João Miguel Simões (época medieval e moderna), sobre os bens culturais das Misericórdias do Algarve, como Maria Helena e Victor Mendes Pinto (bens artísticos), sobre a arte sacra da Diocese, maioritariamente conservada nos templos ou nos museus e coleções visitáveis da região, como Isabel Macieira e Marco Santos, ou sobre os fundos

Alexandra Gonçalves, directora regional de Cultura, enquanto intervinha nas jornadas

“CONCERTO DE ELZA SOARES" 14 JUN | 21.30 | Teatro das Figuras - Faro A diva da bossa negra apresenta ‘A Mulher do Fim do Mundo’, trabalho altamente aclamado pela critica internacional e que lhe valeu um Grammy Latino em 2016

Compete à Direção Regional de Cultura do Algarve, através da sua Direção de Serviços dos Bens Culturais, propor o plano regional de intervenções prioritárias em matéria de estudo e salvaguarda do património arquitetónico e arqueológico, bem como os programas e projetos anuais e plurianuais da sua conservação, restauro e valorização, e assegurar a respetiva promoção e execução. Isto é, compete à DSBC conceber e atualizar um plano de ação de produção de conhecimento científico, salvaguarda e valorização sociocultural dos bens imóveis classificados de grau nacional existentes na região. A elaboração regular do Plano teve início em janeiro de 2010. O Plano identifica as situações de risco, estabelece prioridades de intervenção e define investimentos. Esta metodologia tem privilegiado o diálogo com os municípios, facilitando uma ação regional concertada, e nela se baseou o mapeamento de investimentos do CRESC Algarve 2020 no domínio do património cultural, elaborado com base em trabalho conjunto com a coordenação da CCDR Algarve e que, no âmbito do Eixo Prioritário 4 – Reforçar a competitividade do Território / Mapeamento dos investimentos em infraestruturas culturais, inclui diversos edifícios religiosos necessitados prioritariamente de intervenções de conservação e requalificação. 

“MEMÓRIA A CORES E PRETO & BRANCO” Até 30 JUN | Galeria de Arte Pintor Samora Barros - Albufeira Nesta exposição podem ser apreciadas não apenas memórias, mas a visão de Rui Palma entre a fotografia a cores e o nascimento da fotografia, o Preto & Branco


Cultura.Sul

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Espaço AGECAL

O papel dos meios audiovisuais na comunicação patrimonial

Veralisa Brandão Museóloga / Historiadora Sócia da AGECAL

Considerando que património não é apenas um conjunto de monumentos ou objetos isolados e descontextualizados do seu entorno e assumindo que estes são testemunhos fundamentais da história e identidade de uma comunidade, torna-se urgente encontrar meios atuais e inovadores de fazer comunicação patrimonial. O grande desafio que se coloca prende-se com o conseguir despertar as emoções e os sentidos para este tipo de matérias. Assim, os meios audiovisuais surgem-nos, justamente, como recursos indispensáveis para a criação de conteúdos acessíveis que reaproximem os cidadãos do seu legado cultural patri-

monial, uma vez que estes desempenham um papel ativo e preponderante na preservação desta herança comum. Tanto mais que, se esses testemunhos se continuam a constituir todos os dias, devemos encará-los como algo vivo e em constante mutação. Assim, é imprescindível produzir produtos criativos, apelativos e didáticos mas mantendo sempre o rigor científico nos conteúdos. Estes novos formatos devem usar as estratégias mais eficazes tendo em conta que se destinam a ser difundidos pelos mass media. Entre alguns casos de sucesso que já vão surgindo no nosso país ficou-me inscrito na memória o filme Pedra e Cal, da realizadora Catarina Alves Costa, inserido num projeto de investigação relacionado com a arquitetura tradicional e turismo cultural do sudeste alentejano, promovido pelo Campo Arqueológico de Mértola e com a colaboração da UAlg. De uma forma muito poética e emocional, mostra-nos como estas

d.r.

ta possa passar por incluir nas equipas profissionais ligados ao vídeo, temporariamente ou mesmo de forma permanente, como já é recorrente para a área da fotografia. Vídeos documentais de curta duração, relativos a determina-

do património e utilizados em contexto expositivo, podem por vezes ter resultados inesperados e estimulantes. Damos o exemplo de um pequeno vídeo sobre os sapatos de ourelo que foi realizado no Museu Municipal de Olhão. A técnica de produção destes sapatos encontra-se perdida, mas a existência do vídeo tem gerado uma vaga de interesse por parte de um grupo de pessoas na comunidade que procura descobrir como era produzido este tipo de calçado. Por outro lado, tendo em conta a quantidade de instituições culturais existentes no Algarve a criar comunicação patrimonial, levanta-se a questão da dispersão de conteúdos, audiovisuais ou de outra natureza. Deste modo, pensamos ser imprescindível a criação de uma plataforma online exclusivamente dedicada à divulgação, de forma acessível e criativa, do património cultural algarvio, material e imaterial, mas isso seria já matéria para um outro artigo. 

ver uma “audição” de uma escola de música de Olhão. No meu tempo, as audições eram como ir à missa. Todos vestidos a rigor, unhas cortadas e mais alguns pormenores que permitiam enaltecer a já grande coleção de músicas que íamos tocar. A minha primeira foi de piano no grémio, agora devoluto, mas já na malha da especulação imobiliária. Eram cerimónias pesadas, sem arte cénica. O que interessava eram as notas que o nervosismo nos fazia dar ao lado, e os sorrisos de quem orgulhosamente nos tinha

ali levado. A Drum School veio mudar isto de uma forma absolutamente incrível! Sala cheia de gente orgulhosa, alunos de sorriso rasgado a esconder o nervosismo natural e uma dinâmica em palco brilhante. Não houve tempos mortos, nem enfadonhos. Houve música à séria. Se esta crónica serve para fazer alguma coisa pela música, desta vez serve exclusivamente para dar os parabéns a quem mostrou trabalho sério com o futuro musical de Olhão. Sem mais a dizer... 

Filme Pedra e Cal, da realizadora Catarina Alves Costa casas tradicionais eram e são vividas, bem como a tomada de consciência dos habitantes de que as suas casas são património. Esta indelével questão é fundamental quando justamente está em causa a divulgação de uma herança que ao

ser valorizada mais facilmente será preservada. Sabemos que muitas vezes as instituições culturais não têm meios financeiros suficientes para criar um produto com a dimensão que acabámos de mencionar. Pensamos que a respos-

Juventude, artes e ideias

Gala Drum School d.r.

João Pedro Baptista Músico

Ainda estou a recuperar da noite de 16 de Maio. Já tentei escrever por várias vezes o que senti naquela noite... Acabei o dia de folga a saber que ia haver um concerto no auditório. Desta feita, da Drum School. Paguei seis euros por dois bilhetes para

Alunos da Drum School deram a conhecer a sua música “O TEMPO EM QUE A HORA MUDOU” Até 17 JUN | Galeria de Arte do Convento do Espírito Santo, em Loulé Pedro Palma inova a técnica do vidro com suportes, ferramentas e técnicas não convencionais, estabelecendo reflexões, análises simbólicas sobre questões, relacionadas com a ideia do tempo

“CONCERTO DE ANA MOURA” 24 JUN | 22.00 | Praça da República de Tavira A fadista vai cantar temas como ‘Desfado’, ‘Dia de Folga’, ‘Cansaço’, ‘Tens os Olhos de Deus’ ou ‘Fado Loucura’


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Cultura.Sul

Filosofia dia-a-dia

Estamos sempre já a imaginar (ou como funciona a nossa cabeça)

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

As gerações mais novas fazem tudo com o telemóvel, não precisam de papéis nem de relógios. Eu sou um pouco bota de elástico, e além da agenda levo sempre na carteira um pequeno caderno de apontamentos. Hoje a esferográfica falhou. Entro na primeira papelaria que encontro para comprar outra. Deparo-me com um abundante mostrador. Existem canetas das mais variadas formas, cores e feitios, umas com ponta mais grossa, outras de ponta fina. Os sistemas de veiculação da tinta também variam, bem como os preços, desde a Bic à Mont Blanc tudo é possível. Acabo por me perguntar o que é que me permite dizer que todas elas são canetas se todas elas são tão diferentes? Têm o mesmo uso, servem para escrever. Mas um lápis também serve para escrever e não é uma caneta. Por outro lado, posso usar uma caneta para muitos outros fins que nada têm a ver com a finalidade para que foi construída. Tenho uma colega que utiliza constantemente uma caneta para apanhar o cabelo, em forma de toutiço, na parte de trás da cabeça. Na papelaria há também bonecos-caneta. Neste caso a utilidade caneta está camuflada e aparece como um extra. O seu primeiro identificador não é ser caneta. Afinal, o que é que me permite subsumir todos estes objectos tão diversos no singular e único conceito de caneta? Então, do fundo da memória, como um pássaro inadvertido que de repente esvoaça bem alto, lembro-me que tudo se deve à imaginação. Até para o acto de conhecimento mais elementar é requerida a imaginação. De facto, estamos sempre a imaginar! O filósofo Emanuel Kant (1724-1804) na sua obra Crítica da Razão Pura trata, justamente, da problemática do conhecimento. Ali se demonstra que o órgão, por excelência, que utilizamos para conhecer é o Entendimento que recebe a

informação que lhe entra pelos órgãos dos sentidos, que são as nossas janelas para o mundo, depois de organizada pela Sensibilidade através das suas formas à priori Espaço e Tempo, produzindo o Fenómeno. O entendimento recebe estes fenómenos e trata, por sua vez, de os organizar através das Categorias ou Conceitos Puros que podem ser de quatro tipos: quantidade, qualidade, relação e modalidade. De uma forma muito simples quer isto dizer que não andamos a tropeçar na quantidade, mas se quisermos contar cadeiras, precisamos de utilizar a categoria “Quantidade” que é um conceito puro do entendimento. Do mesmo modo, para podermos dizer que algo existe ou não existe, que é possível ou impossível, precisamos de estar na posse da categoria da modalidade que é aquela que nos permite emitir este tipo de juízos. Mas tem de haver um terceiro termo, “que deva ser por um lado, homogéneo à categoria e, por outro, ao fenómeno e que permita a aplicação da primeira ao segundo. Esta representação mediadora deve ser pura (sem nada de empírico) e, todavia, por um lado intelectual e, por outro, sensível. Tal é o esquema transcendental.” (CRP p. 182) O esquema é sempre um produto da imaginação. E há que distinguir o esquema da imagem. Quando, por exemplo, disponho cinco pontos uns a seguir aos outros, tenho uma imagem do número cinco. Em contrapartida, quando penso no número em geral, que pode ser cinco ou cem, este pensamento constitui um método para representar um conjunto, de acordo com um certo conceito. Ora é esta representação de um processo geral da imaginação para dar a um conceito a sua imagem que Kant designa por “esquema” desse conceito. (CRP p. 183) Estão a ver o esquema? Como é que isto funciona, na prática? Em todas as subsumpções de um objecto num conceito como aconteceu, por exemplo, com a classificação das canetas na papelaria a representação do primeiro tem de ser homogénea à representação do segundo, isto é, o conceito tem de incluir aquilo que se representa no objecto a subsumir nele. Kant

exemplifica-o de forma cristalina: “possui homogeneidade com o conceito geométrico puro de um círculo, o conceito empírico de um prato, na medida em que o redondo, que no primeiro é pensado se pode intuir neste último.” (CRP 181). Mas o que acontece com os conceitos sensíveis puros? O que acontece com o conceito de triângulo, por exemplo? É aqui que o esquema se torna relevante! Ao conceito de um triângulo em geral nenhuma imagem seria jamais adequada. Com efeito, não atingiria a universalidade do conceito pela qual este é válido para todos os triângulos sejam eles equiláteros, isósceles ou escalenos. “O esquema do triângulo só pode existir na imaginação e significa uma regra da síntese da

a imaginação é fundamental. É esta a nossa natureza. Estamos, sempre, já a imaginar! O Imaginário e a Cidade Bjarke Ingels (1974-), o jovem arquitecto fundador do grupo BIG, é autor do manifesto Yes is more onde se afirma que se o que nos define é sermos o oposto de um outro, então, estamos apenas a ser seguidores em sentido inverso! “Não será possível fazer as pessoas felizes sem nivelar por baixo? E realizarmos os nossos desejos sem passar por cima de ninguém?” Resolveu filosofar de forma tridimensional. Os seus edifícios põem em prática os novos conceitos filosóficos que propõe, tais como o Edonismo Sustentável ou o Periscópio Democrático. d.r.

imaginação com vista a figuras puras no espaço.” (CRP 183). Esqueçamos os triângulo e pensemos num cão. “O conceito de cão significa uma regra segundo a qual a minha imaginação pode traçar de maneira geral a figura de certo animal quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular, que a experiência me oferece ou também a qualquer imagem possível que posso representar in concreto. Enfim, não precisamos de ser fantasiosos, criativos, ou sonhadores, para imaginar. Em qualquer acto de pensamento

“Os arquitectos tornam-se os parteiros [em sentido socrático, claro!] de uma nova espécie de arquitectura moldada pela multiplicidade de interesses”. Sem tomar partidos, a arquitectura do sim cria uma realidade em que não é preciso escolher, torna-se inclusiva, contempla todas as vertentes do conflito e aumenta o nó górdio. Resultados? Uma fábrica de reciclagem de lixo que é também uma estação de ski e cujo insipiente dióxido de carbono que cria é transformado em fumo artístico; um palácio governamental transparente onde o cidadão comum pode

Ficha Técnica:

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural

ver se, de facto, aqueles que elegeu para o representar dormem a sesta ou trabalham; uma sala de parlamento com um periscópio gigante que faz com que os políticos não possam deixar de ver a cidade e as gentes sobre a qual tomam decisões, e muito, muito mais... O Espaço do Pensamento Na minha cidade imaginária existem boas condições para filosofar, há espaço e tempo para a partilha e construção conjunta de pensamento. Que quer isto dizer? Quer dizer, por exemplo, que em vez da habitual conversa de café em que cada um se lamenta da vida, do tempo, do governo ou do que quer que seja, há possibilidade de descer realmente ao cerne daquilo que nos importa. Espaço e tempo para perceber, por exemplo, como actua a faculdade da imaginação em nós. Curiosidade para tentar averiguar como acontecem estes milagres quotidianos que de tão anestesiados e indiferentes que andamos, nem nos damos conta. Como é que eu consigo subsumir uma caneta no conceito de caneta? Como reconheço que um cão é um cão ou como identifico triângulos? Como funciona a minha mente? Como funciono eu própria? Na cidade em que resido criei um espaço-tempo a que chamei Café Filosófico onde uma vez por mês os participantes se reúnem para realizar este tipo de viagem. Às vezes o café transforma-se em Simposium quando é Dionísio que serve à mesa, e os convivas têm o cuidado de beber só até àquele ponto em que a língua se solta, mas não se entaramela! É o meu contributo para tornar um sonho realidade: trazer a filosofia para fora dos muros da Academia. Fazer, enfim, o que Sócrates fazia: conversar com os outros cidadãos da cidade. Averiguar do rigor dos conhecimentos obtidos, medir-lhes alcance e finitude, purgá-los se necessário fosse, para deitando abaixo as pseudo-compreensões, começar então a construir a casa-cidade com fundamentos sólidos. Estas reflexões continuam nos Cafés Filosóficos realizados em Faro: inscrições em filosofiamjn@gmail.com 

Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Marca d'água: Maria Luísa Francisco • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Panorâmica: Cátia Marcelino • Quotidianos poéticos: Pedro Jubilot Colaboradores desta edição: João Pedro Baptista Rui Oliveira Veralisa Brandão Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, FNAC Forum Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 5.218 exemplares


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Letras e leituras

Cortar o silêncio: A Construção do Vazio, de Patrícia Reis

A desconstrução do silêncio A Construção do Vazio, último romance de Patrícia Reis fecha um tríptico do qual faz parte No Silêncio de Deus (2008) e Por Este Mundo Acima (2011). O Vazio de que a obra trata também pode ser interpretado como um silêncio. O silêncio declarado ou camuflado, através daquilo que se tenta abafar com palavras que são ruído a ocultar a verdade, é um dos fortes aspectos da obra, da mesma forma que predomina a noção do som. O som na forma de música, no seu efeito catártico de exprimir emoções ou libertar repressões, na ária Casta Diva de Bellini interpretada por Maria Callas, ou na música de piano que tantas vezes acompanha a escrita da autora, aqui com Ludovico Einaudi, ou nas palavras doces de um amigo que faz as vezes de amante. Como nos escreve Sofia: «O poder do som. O som como veículo emocional. O som no tom certo que é a voz de Deus. Pode ser.» (p. 109). Ou como quando refere que «O corpo pode ter uma voz, um som, uma música. O meu só tinha conhecido o silêncio, e depois a dor e o grito.» (p. 65). Até porque a única pessoa que a poderia ter salvo, e que a deveria ter amado e protegido acima de tudo, é essa mãe bonita que aparenta fragilidade, mas fria e distante: «Não se podia falar com ela. Tudo lhe fazia dores de cabeça e, na presença do meu pai, mirrava, um corpo a esforçar-se por desaparecer» (p. 11). O silêncio de Sofia é de tal forma que ela anuncia mesmo, apesar de entretanto já estar em terapia há sete anos, que «Não há palavras para a solidão a que cheguei.» (p. 133) enquanto ouve o seu corpo a envelhecer. E enquanto o ruído parece ser uma constante da Humanidade: «O barulho é infernal, uma cacofonia que agride.» (p. 109), é sem palavras que Sofia se fecha no seu mutismo e guarda o seu segredo, talvez apenas adivinhado pela amiga ao ver as suas nódoas, vendo-se a si própria como uma menina-desastre e depois como uma menina-tesoura para «cortar, cortar, cortar. Sempre a direito.» (p.60). E é a cortar o silêncio que a narradora (certamente ao serviço da autora) não está com rodeios no que respeita a descrever a violência de que Sofia é vítima. A linguagem, sempre tão pensada, chega a ser crua ao narrar sem rodeios a violação de Sofia pelo pai o que pode atingir os leitores como um murro no estômago: «Via as minhas

Fechar o ciclo Ler Por Este Mundo Acima (obra já aqui apresentada no Cultura.Sul) ajudará ainda a compreender como esta narrativa que vem no fim pode afinal ser a primeira: «Vamos falar do passado para resolver o futuro?» (p. 149). Em A Construção do Vazio refere-se o ano de 2018 e que Lisboa vive um recolher obrigatório mas pouco mais saberemos. É ������������� apenas ����������� consoante nos aproximamos do final que percebemos como se fecha o ciclo enquanto Sofia vai desfiando o curso dos acontecimentos num encadeamento que poderia servir a uma qualquer distopia das várias que por aí proliferam agora mas que está sempre muito próximo da lógica irracional dos dias que se vivem nos nossos dias: «E, de repente, o Presidente dos Estados Unidos da América torna-se uma saudação tenebrosa de outros tempos. Os ataques começaram devagar e depois foram acontecendo, matemáticos, certeiros, explosivos. Há dois meses, o parlamento inglês fechou as portas. Foi declarado o estado de sítio. É certo que será permanente. Como se a esperança tivesse apagado a chama e o optimismo não tivesse mais argumentos. Vive-se a medo, come-se a medo, respira-se a medo. Ninguém grita.» (p. 141). A enumeração e a gradação dão conta de um clímax que se cria nestas últimas páginas e anunciam claramente que «estamos a chegar ao fim do mundo.» (p. 140). Cenário pós-apocalíptico que é o que encontramos nas páginas de Por Este Mundo Acima. Porque Sofia é uma boneca quebrada e que faz dos seus cacos uma armadura mas, ainda assim, não deixa de estar revestida apenas e simplesmente por por-

celana. O abuso que sofreu em criança marca-a (e divide-a) de tal forma que permanece em Sofia a recusa de cumprir o que o corpo lhe pede: «Era o meu corpo a pedir que lhe desse um outro uso. Era a minha cabeça a ver se tinha resolução. Um filho seria uma história necessariamente feliz.» (p. 136). Dividida entre o sentir e o pensar, Sofia escolhe a solução que acha mais lúcida: «nunca teria uma criança que pudesse ser abusada e, não sendo possível proteger os filhos da totalidade dos perigos do mundo, a ideia de os ter para o mundo era impensável.» (p. 136). A mácula que Sofia carrega em si, que parece criar uma visão deturpada no modo como percepciona o seu corpo, cresce até se tornar um cancro que a suprime, tornando-a frágil e vazia ao ponto de recusar conceber uma vida nova em si, acto supremo de amor que, como se percebe nas passagens anteriores, poderia significar, ao gerar uma nova vida, a renovação da sua própria vida. Esta sua história é inclusivamente contada numa sucessão de vazios, pelos hiatos que temos entre os vários capítulos onde acompanhamos o crescimento de Sofia em várias etapas muitas vezes apresentadas em saltos temporais: na infância, na juventude, depois aos vinte e seis, aos trinta e oito, aos cinquenta e cinco. E é no final que nos deixa este testemunho escrito onde pela primeira vez rompe o silêncio dos muros que foi construíndo em torno do seu vazio, ao assumir pela primeira vez, com estas páginas que nos ficam como o seu legado, a sua história e o passado que vê como mácula, apesar de ser completamente inocente face a uma corrupção que lhe foi forçada a partir do exterior. É curioso que Sofia perceba, ainda assim, que a dor foi uma opção sua. Quando escreve sobre Lourenço e nos diz que, «se for sincera, teria sido um companheiro de vida se não fossem os conflitos que tive de ultrapassar, sobreviver, essa marca ou cicatriz que escolhi carregar.» (p. 72). E pouco depois, lemos como Sofia ouve como um eco mental o aviso da sua amiga Sara: «O sofrimento é opcional, Sofia, é opcional, opcional...» (p. 82). Eduardo, o editor, o mesmo homem que encontraremos em Por Este Mundo Acima a relembrar permanentemente os amigos que perdeu é aqui esse amigo “especial” de Sofia que irá preservar a memória e identidade da amiga e guarda com desvelo a sua fotografia e as suas cartas. Nessa outra obra deste tríptico, ficamos a saber que Pedro, o jovem que acompanha Eduardo, «tem uma ideia muito vaga da mãe mas em contrapartida sabe tudo sobre Sofia» (p. 168) e quando pergunta se ela não era feliz, Eduardo

responde-lhe: «Não, Pedro, nunca foi feliz. Ela dizia que não possuía essa vocação. Eu acredito que Sofia se limitou a deixar-se arrastar, com uma eficácia tremenda, para o lado mais triste da vida.» (p. 170). Paradoxalmente, Eduardo que parece escrever exclusivamente apenas para Sofia será talvez a única pessoa a descobrir o segredo dela ao ler os seus escritos. Esse testemunho que Sofia deixa sob a forma deste livro a Cecília, a sua terapeuta, que a acompanha ao longo de sete anos de psicanálise e a quem contou apenas mentiras a tentar ludibriar o caroço da verdade com

cascas de mentiras e fantasias. Porque há verdades que continuam a cortar e a ferir mas mesmo quando reveladas em busca de uma justiça de pouco adiantam, como o caso referido da «mulher que fora abusada pelo marido – um pai é sempre uma espécie de marido – e que fora a tribunal, com testemunhas das sucessivas agressões, pronta para a humilhação de dar a cara. Perdera o caso por o júri ter considerado que “a provocação era feminina”.» (p. 50). 

foto: carlos ramos

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

cuecas, eu de pernas para o ar, eu a vê-las no chão e o meu pai a lamber-me na casa de banho, o sexo imberbe, e eu a perguntar, isto serve para quê? É suposto dizer o quê?» (p. 22). Sofia sem palavras para construir um sentido do que lhe está a acontecer, entre um pai que a viola e uma mãe que a ignora ou agride. De joelhos no chão da casa de banho, sem um som nem mesmo para exprimir a sua angústia e dor pois se o pai cheirasse o seu medo, num instinto animal, seguia-se «a estalada e o silêncio. Sim, porque eu não chorava. Não valia a pena. Só gritei uma única vez. Um dia em que o meu corpo não podia enfiar-se no corpo dele ou o contrário, a guerra é estranha e já não sabemos onde estamos. Até se ter deitado comigo, depois de os dedos me terem aberto, o meu pai falou-me sempre baixinho, como se me dissesse um segredo. E eu calada. Sempre calada.» (p. 22). Sofia tenta tornar-se transpararente, mas «Apesar disso, dessa minha capacidade para o alheamento, passei a ser o escape dos dois. O meu pai violentava-me, a minha mãe ignorava e batia-me. Não havia a quem pedir socorro. Nunca o fiz.» (p. 29).


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Cultura.Sul

Artes visuais

Quais os limites para o uso do corpo humano na arte?

Saul Neves de Jesus

Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

Recentemente estive em Amesterdão e estava a decorrer a exposição “Body Worlds – The Happiness Project Amsterdam” (“Os mundos do corpo – O Projeto Felicidade”). Supostamente, esta exposição, com mais de 200 preparados anatómicos de corpos humanos reais, pretende ajudar a “descobrir as maravilhas do corpo humano”. Mas será que os espetadores, ao observarem as obras expostas, sentem “as maravilhas” do corpo humano, em vez de alguma aversão em relação ao mesmo? É óbvio que isso vai depender da sensibilidade de cada espetador. Mas a questão de fundo que esta exposição nos leva a colocar tem a ver com os limites no uso do corpo humano na arte. Logo no segundo artigo de opinião, nesta minha participação no Cultura.Sul, intitulado “Mas isto é Arte?”, procurei analisar a questão dos limites da obra de arte, apresentando o exemplo da instalação realizada por Guillermo Habacuc, em 2007, em que apanhou um cão abandonado, tendo-o colocado atado a uma parede de uma galeria de arte, deixando-o a morrer lentamente de fome e de sede, perante os visitantes dessa exposição. Nessa análise considerei que, os caminhos da arte são cada vez mais difíceis de definir, mas que pelo menos os limites da ética devem ser respeitados. Aproveitando as palavras do poeta José Régio, em “Cântico Negro”, “não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí”… Desta vez temos a problemática da utilização do corpo humano nas artes visuais. Nos últimos anos temos assistido a um aumento da sua utilização, até pelo incremento da arte performativa, que trabalha com a expressividade do corpo humano. Em Portugal, mais concretamente na Cordoaria Nacional, em Lisboa, também

tivemos a exposição “Real Bodies – Descubra o corpo humano”, no final de 2015, a qual foi vista por mais de 50 mil pessoas. Esta tem sido apresentada como a maior e mais completa exposição de órgão e corpos humanos reais, organizada por uma empresa norte-americana, e já foi exibida noutras cidades, somando mais de 15 milhões de visitantes. Em mais de 1.500 metros

quadrados, a exposição apresentava mais de 350 órgãos e corpos humanos verdadeiros em várias posições anatómicas, em particular órgãos afetados por doenças e ainda corpos de atletas durante a prática desportiva, bem como corpos a realizarem atividades do dia-a-dia, nomeadamente relações sexuais. A última sala era a galeria dos desportistas, com dez corpos que pareciam estar em movimento, enquan-

to praticam diferentes desportos, para motivar as pessoas a mexerem-se. Já anteriormente, em 2007, depois de ter sido vista por cerca de 20 milhões de pessoas em todo o mundo, havia ocorrido em Portugal a exposição “O Corpo Humano Como Nunca o Viu”. Na altura eram 17 corpos humanos inteiros e mais de 250 órgãos provenientes de doações à ciência, que foram cremados no

final da exposição. Pensada para toda a família, a exposição foi concebida para dar a conhecer o funcionamento do corpo humano e incentivar os visitantes a assumir hábitos de vida mais saudáveis. Teria sido interessante avaliar se, após assistirem a estas exposições, as pessoas alteravam os seus hábitos de vida no sentido de se tornarem mais saudáveis, em particular se começavam a praticar mais desporto. fotos: d.r.

Foto de parte da exposição 'Real Bodies' (1)

Foto de parte da exposição 'Real Bodies' (2)

Foto de parte da exposição 'Real Bodies' (3)

Foto de parte da exposição 'Real Bodies' (4)

Foto de parte da exposição 'Real Bodies' (5)

Foto de parte da exposição 'Real Bodies' (6)

Tenho sérias dúvidas que o efeito tenha sido esse, sobretudo na exposição mais recente, “Real Bodies”, até porque nesta era possível observar fraturas em ossos, próteses, órgãos danificados por doenças graves, nomeadamente ovários com quistos, fígados atacados pela cirrose ou hepatite, bem como próstatas e seios com cancro. Além disso, uma parte desta exposição consistia num espetáculo de suspensão, em que homens e mulheres, artistas da “Wild Suspension Team” (“Equipa de Suspensão Selvagem”), se penduravam pela pele com ganchos de metal, ficando suspensos no ar, sendo visível o sangue a escorrer pelo seu corpo. Em Roma, pelo menos 13 pessoas tiveram que ser vistas por médicos depois de assistirem a essa parte da exposição “Real Bodies”, tendo o espetáculo sido cancelado quatro dias depois da inauguração. No entanto, a organização do evento afirmou que se sentia na obrigação de cancelar a exibição porque acreditava que mantê-la eliminaria a possibilidade de admirar essa técnica incrível de performance artística. Esta situação faz-nos lembrar a obra de Damien Hirst “A impossibilidade física da morte na mente dos vivos” (1991), em que se encontra colocado um tubarão-tigre morto dentro de um tanque feito de vidro e aço, suspenso numa solução de 5% de formaldeído. Num artigo de opinião anterior havíamos colocado a questão sobre se isto pode ser considerado Arte e voltamos a colocá-la também em relação à exposição “Real Bodies”. A imagem visual pode ser usada para chocar e a arte tem procurado desenvolver cada vez mais esta abordagem, em particular explorando os limites no uso do corpo humano, mas não acredito que desta forma se promovam hábitos de vida saudável ou a felicidade dos espetadores. Talvez até se aumente mais a aversão, em vez da percepção de beleza ou a satisfação com certas partes do corpo. Para o caso de querer fazer o teste no seu caso pessoal, informo que a exposição a que fiz referência no início deste artigo estará aberta ao público até 3 de setembro. 


Cultura.Sul

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Espaço ALFA

Qual a dimensão social da fotografia?

Rui Oliveira

Membro da ALFA

Há quase dois séculos que a fotografia conquistou o seu lugar no mundo das artes pelas suas características únicas, quer da captação do real, quer pelas infinitas possibilidades de recriação dessa mesma realidade. Igualmente, se reconhece o relevante papel que a mesma desempenha ao nível jornalístico, enquanto linguagem universal capaz de informar e de chegar mesmo a conduzir a alterações de acontecimentos sociais. Mas terá a fotografia outras dimensões sociais? Poderá a fotografia contribuir para o resgatar da auto-estima? Ou ser um veículo de reconhecimento e valorização pessoal e social? O fotógrafo Paulo Côrte-Real, defensor desta dimensão da

fotografia, tem desenvolvido um vasto trabalho nesta área. Refere que, muitas vezes, mais importante que a obra fotográfica, é todo o processo que conduz até à imagem final. Esta dimensão está presente no seu mais recente projeto fotográfico desenvolvido com cinco pescadores reformados residentes na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas da Santa Casa da Misericórdia de Olhão, "HOMENS ENTRE A TERRA E O MAR", patente ao público até dia 30 de junho no Museu Municipal Compromisso Marítimo de Olhão. Através da interação entre o fotógrafo e os pescadores, onde o convívio, os diálogos e o revisitar de novo aqueles que sempre foram os ambientes do dia-a-dia, o vol-

tar a sentir a brisa e o cheiro da maresia, o pisar do cais, que durante anos foi o seu lar, o olhar a lota e tomar nas mãos as re-

des e a agulha, o reencontro com velhos amigos, foram-se construindo as imagens fotográficas. O trabalho fotográfico foi

complementado com a construção conjunta de pequenas notas biográficas. Estes cinco homens foram sem dúvida os

protagonistas deste projeto, com o qual os intervenientes ficaram certamente todos mais ricos. 

Na senda da Cultura

Portimão celebra a tradição com Marchas Populares Portimão celebra os santos populares com desfiles de marchas, arraiais na antiga lota e muita animação no centro histórico da cidade, na terceira edição das "Marchas e Santos Populares". A partir de hoje, 9 de Junho, e até dia 29, Portimão vai viver 20 dias de muita tradição, que pretendem trazer às ruas milhares de pessoas residentes mas também turistas que nesta altura do ano visitam a cidade. As Marchas Populares voltam a desfilar nas freguesias do Município e, este ano, os desfiles contam com a participação do Sporting Glória ou Morte Portimonense, do Clube de Instrução e Recreio Mexilhoeirense, da Sociedade Recreativa Figueirense e da Marcha da Vila de Alvor. O primeiro desfile é hoje, na Zona Ribeirinha de Portimão, o segundo será a 16 de Junho, no Polidesportivo da Figueira, dia 23 o desfile faz-se na Zona Ribeirinha de

d.r.

As marchas voltam a desfilar pelas freguesias de Portimão Alvor, e a festa vai culminar no dia 29 de Junho, na Praia da Rocha, com um percurso pela Avenida Tomás Cabreira, a começar no Miradouro e a terminar na Fortaleza de Santa Catarina. Todos os desfiles

começam às 22 horas. A zona histórica de Portimão volta a ser palco do evento que é celebrado na Rua Nova, em conjunto com as colectividades locais, no Clube União Portimonense e

na Sociedade Vencedora Portimonense, que estão empenhados em partilhar a vivência do espaço público com todos os visitantes e turistas que acorrem à cidade para viverem a festa.

Rua Nova recebe sardinhadas, bailaricos e saltos à fogueira Manda a tradição que nas noites de Junho, nas celebrações de Santo António, São João e São Pedro, se salte à fogueira e se dance pelos recantos e ruas da cidade. Neste sentido, a Rua Nova vai ser palco de sardinhas, saltos à fogueira e muita animação musical nos dias 12, 23 e 28 de Junho, das 19.30 às 00.30 horas. O Sporting Glória ou Morte Portimonense é o responsável pela organização dos tradicionais arraiais e bailes na antiga lota de Portimão, nos sábados de 10, 17 e 24 de Junho, a partir das 22 horas, com direito a sardinha assada e muita música. Os desfiles contam ainda com a participação de cinco marchas convidadas: a Marcha Infantil do Lar da Criança, a Marcha do Centro Comunitário Duna-Caslas/Meia–Praia

Lagos, a Marcha da Associação Grupo da Amigos da Pedreira, a Marcha do Clube de Futebol Os Estombarenses e a Marcha de Silves. Quinhentos participantes na terceira edição do evento Entre marchantes, coreógrafos e figurinistas, que darão largas à imaginação e ao espírito popular, evocando temas ligados ao património sociocultural e às tradições do Algarve, a edição deste ano vai reunir cerca de quinhentos participantes. A iniciativa é organizada pelo Município de Portimão, em conjunto com as Freguesias de Portimão, Alvor, e Mexilhoeira Grande, o Lar da Criança de Portimão, o Clube União Portimonense, a Sociedade Vencedora Portimonense, a APS - Administração dos Portos de Sines e do Algarve, a Merendeira e o CRESC Algarve 2020. 


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Cultura.Sul

Letras e Leituras

Vozes de guerra: Rapazes de Zinco de Svetlana Alexievic

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Svetlana Alexievich nasceu em 1948 na Ucrânia, e cresceu em Minsk, capital da Bielorrúsia, onde vive actualmente. Jornalista e escritora, autora de vinte guiões de documentários e cinco livros, tem várias obras adaptadas ao cinema e ao teatro. Foi distinguida com mais de uma dezena de prémios internacionais, do Médicis Essai 2013 ao Books Critics Circle Award 2006, e consagrada com o Prémio Nobel de Literatura em 2015, pela qualidade da sua «obra polifónica» como «um memorial ao sofrimento e à coragem na nossa época». Das cinco obras em prosa, quatro foram publicadas pela Elsinore, sendo as mais recentes, publicadas este ano, Rapazes de Zinco e As Últimas Testemunhas. Rapazes de Zinco é, à semelhança das outras obras da autora, um livro de não-ficção, onde se entretecem as vozes de centenas de entrevistados numa polifonia que a autora registou e que tenta reunir em coro como testemunho da verdade da guerra soviética no Afeganistão. Estes rapazes são os quinze mil mortos devolvido em caixas de zinco às mães, mesmo quando dentro dos caixões apenas seguia um uniforme de gala e a terra alheia onde combateram «para que o peso seja adequado» (p. 45), e cerca de quatrocentos e cinquenta mil feridos e doentes que combateram o Afeganistão no exército soviético entre 1979 e 1989, isto é, uma geração que viveu numa década de guerra. Contestado na União Soviética aquando da sua publicação este livro foi aclamado como uma «obra-prima de reportagem». Svetlana Alexievich criou aliás um novo género de não-ficção onde o objectivo é criar uma «prosa documental» a partir de centenas de entrevistados: soldados, enfermeiras, mães, filhos e filhas que viveram essa guerra. A autora assume-se como maestro de todas estas testemunhas, sem desaparecer completamente por trás das suas vozes, pois existe um eu que se assume como filtro dos depoimentos (especialmente no início): «Nos relatos impressiona (com frequência!) a agressividade ingénua dos nossos rapazes. Ainda há pouco tempo, eram alunos do último ano da escola soviética. Ao passo que eu

quero conseguir deles o diálogo do homem com o seu homem interior.» (p. 35). É sua a voz que se repete em eco como um lamento ou uma promessa: «Não quero voltar a escrever sobre a guerra...» (p. 25). E num jeito mais literário a escritora assume mesmo o seu processo ficcional: «Gosto da linguagem oral, nada pesa sobre ela, está solta e em liberdade. Tudo passeia e festeja: a sintaxe, a entoação, os sotaques e – o sentimento é restabelecido com exatidão. Sigo o sentimento, não o acontecimento. Como se desenvolviam os nossos sentimentos e não os acontecimentos. É possível que o que faço se assemelhe ao trabalho de um historiador, mas eu sou historiadora do que não deixa vestígios. O que se passa com os grandes acontecimentos? Transitam para a história, ao passo que os pequenos, mas importantes para o homem pequeno, desaparecem sem deixar rasto.» (p. 35). Apesar da voz autoral insurgir em alguns momentos, como apontamentos nos seus «blocos de guerra», onde há entradas cronológicas como num diário, à medida que se sucedem os depoimentos percebe-se a defesa destes ensaios documentais onde a ficção não tem lugar até porque essa serve apenas para fugir ao real: «A imaginação? A imaginação sossega.» (p. 45). Há um registo cru e gráfico da guerra e das atrocidades vividas nesses períodos e nesses cenários em que a ordem natural das coisas parece suspensa, onde a vida se torna mais excessiva do que a imaginação. Aliás, «Para quem está na guerra, a morte não tem nada de misterioso. Matar é simplesmente apertar o gatilho. Ensinaram-nos isto: sobrevive quem disparar primeiro. Esta é a lei da guerra. “Devem saber fazer duas coisas: mover-se depressa e disparar com precisão. Aqui quem pensa sou eu.”, dizia o comandante. (...) Disparava, sem pena de ninguém. Era capaz de matar uma criança. Pois toda a gente combatia contra nós: homens, mulheres, velhos, crianças.» (p. 45). A sombra do regime «Chamam-nos de “afegãos”. Um nome alheio. Como um sinal distintivo. Uma marca. Não somos como todos. Somos diferentes. Como somos, então? Não sei quem sou:

fotos: d.r.

Svetlana Alexievich

um herói ou um palerma a quem se aponta com o dedo? Talvez um criminoso? Já se vai dizendo que foi um erro político.» (p. 47).������������ Um dos praças, granadeiro, pergunta à autora: «A que propósito escreve este seu livro? Para quem? Nós, que viemos de lá, não vamos gostar de certeza.» (p. 48). Mas a resposta pode ser encontrada logo em seguida num outro depoimento de um fuzileiro motorizado: «O Afgan libertou-me. Curou-me da fé de que tudo no nosso país está certo e que os jornais escrevem a verdade, que a televisão diz a verdade.» (p. 51). Viver num regime como o soviético significa ser «sugado pelo sistema» (p. 111) e anular a vontade pessoal,

até porque quem partia para uma guerra como esta partia sempre como “voluntário”: «Decidiam por mim em toda a parte. Incutiram-me a ideia de que um indivíduo nada pode. Dei de caras num livro qualquer com a expressão «o assassínio da coragem». Quando chegou a altura de ir para lá, não havia em mim nada para assassinar. «Voluntários, dois passos em frente.» Davam todos dois passos em frente, e eu também, dois passos em frente.» (p. 71). Estes jovens guerreiros assumem afinal que a Pátria amada deve ser servida, mesmo quando esta os engana, até ao derradeiro sopro de vida: «Nasci aqui... A Pátria, como a mulher amada, não se escolhe, é-nos dada, se nasceste neste país, tens de ser capaz de morrer nele. Pode-se morrer como um animal, pode-se cair em combate, mas tu tens de saber morrer. Quero viver neste país, mesmo que ele seja pobre e desditoso» (p. 118). E quando se volta da guerra também não se volta igual: «Esses soldados-rapazinhos vão crescer e reviver tudo. A sua maneira de ver as coisas vai mudar, certas coisas serão esquecidas e outras emergirão dos depósitos da memória.» (p. 99). Porém, a mudança só ocorre mais tarde: «O homem não muda na guerra, muda depois da guerra. Muda quando olha, com os mesmos olhos que viram o que houve lá, para o que há

aqui. Nos primeiros meses, a visão é dupla: estás lá e cá ao mesmo tempo. A transformação dá-se cá. Agora sinto-me pronto a refletir sobre o que me aconteceu lá.» (p. 114). Fica ainda a ideia que pelo menos para alguns dos ex-soldados a guerra foi não só uma experiência determinante como voltariam a passar por ela: «Apesar de tudo, desejaria passar outra vez por tudo e tornar-me quem sou agora.» (p. 116). Naturalmente que a autora não se limita a recolher depoimentos aleatórios, pois sente-se inclusivamente no decurso da leitura como há um encadeamento coeso dos vários testemunhos e, por vezes, através da forma como os entrevistados incorporam as perguntas ou os pedidos da autora no discurso: «Percebi... Vou contar-lhe mais do homem do que da guerra. Daquele homem que nos nossos livros raramente aparece. Têm medo dele. Escondem-no. Do homem biológico. Sem ideias...» (p. 110). Este praça fuzileiro, declara ainda, mais à frente, que para alimentar este lado voraz da guerra como um sistema ao serviço do regime é «preciso partir do princípio de que somos bestas, e este lado bestial está escondido por um verniz muito fino de cultura (...) A besta vem à tona do homem num instante... Num abrir e fechar de olhos... Mal ele tenha medo por si, pela sua vida. Ou que detenha poder. Um pequeno poder. Minúsculo!» (p. 111). Svetlana Alexievich vai ainda mais longe nesta orquestração coral, pois na polifonia da sua obra confluem ainda vozes literárias, com citações aos mais diversos autores, como Shakespeare ou Dostoiévski, ou quando nos apresenta os escritos de rua, deixados por um povo anónimo, em muros e tanques. A autora visitou o Afeganistão na qualidade de jornalista de investigação quase no fim da guerra, onde terá realizado algumas das entrevistas que compõem esta sua terceira obra de não-ficção. E porque através desta recolha de vozes de quem testemunhou a guerra a autora atreve-se a levantar a sua voz contra o regime da União Soviética e a sua propaganda, Rapazes de Zinco valeu-lhe um processo na Rússia. Ao longo deste documento, sente-se inclusivamente a desconfiança e a contrariedade dos soldados face à escritora, afirmando que a guerra não é um assunto de mulheres. Contudo são os depoimentos das mães que aqui se destacam neste livro onde mais uma vez a autora aclamada com o Nobel, e conforme referido pela Academia Sueca, «funde literatura e jornalismo�������������� »������������� para expressar «uma história das emoções, uma história da alma». 


Cultura.Sul

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Na senda da Cultura

'Barro Cal': a cultura barrocalense mostrada por terras de Santo Estêvão

Cátia Marcelino / Henrique Dias Freire Jornalista catiam.postal@gmail.com

Entre a serra e o litoral encontra-se o barrocal algarvio, uma área pouco explorada com uma identidade muito própria, que merece toda a atenção. A Associação de Gestores Culturais do Algarve (AGECAL) reconhece a importância desta zona algarvia e escolheu a pacata aldeia de Santo Estêvão, em Tavira, para dar vida à cultura do barrocal do Algarve, através da primeira edição da "Barro Cal - Festa Feira do Barrocal Algarvio". “Inserir a dimensão cultural no desenvolvimento do Algarve” foi o objectivo de Jorge Queiroz, director do Museu Municipal de Tavira e presidente da AGECAL, ao realizar pela primeira vez esta festa-feira, que pretendeu mostrar a todos os visitantes “como a cultura e os recursos culturais podem ajudar a manter a identidade e a riqueza do Algarve”. Em conversa com o Cultura.Sul, Jorge Queiroz sublinhou o facto do projecto ter “a população como protagonista e ser feito para os cidadãos mostrarem as suas culturas porque o Algarve é uma região riquíssima em termos de património”. Para o presidente da AGECAL, “este é um projecto de gestão cultural aplicada. Nós partimos de um problema, que é o problema da desertificação, das assimetrias, do envelhecimento e do abandono dos recursos do campo, para descobrir como é que a cultura e as associações culturais podem ajudar a inverter este processo ou pelo menos a travá-lo”.

que esta “é mais uma mostra com um conjunto de iniciativas que demonstram que não é só o litoral algarvio que importa e que o barrocal é também uma parte fundamental da nossa cultura portuguesa, onde as pessoas e instituições também devem investir”. A vice-presidente da Câmara, Ana Paula Martins, partilha da mesma opinião e realça a importância de “começar a valorizar cada vez mais aquilo que é nosso, aquilo que vem da terra, as matérias, a cultura, as tradições e o património”. Para a vice-presidente, “todos estes elementos devem servir como factores impulsionadores do desenvolvimento económico e se o fizermos com muita qualidade, de certeza que vamos aumentar a procura e o interesse”. Evento começou com seminário onde se debateu ‘O Campo como recurso cultural’ Exposições, músicas, passeios, jogos, danças e muitos petiscos da região mostraram, de diferentes formas, a riqueza do barrocal algarvio, de 26 a 28 de Maio, em Santo Estêvão. Momentos para disfrutar em família que deram a

fotos: cátia marcelino

Várias entidades participaram no seminário 'O campo como recurso cultural' conhecer, sobretudo aos mais jovens, aquilo que eram os valores e a cultura de antigamente que, para Jorge Queiroz, “sempre foi uma cultura para todas as idades”. Um programa “muito bem concebido porque pensa o território, com o território e com as pessoas desse território”. Alexandra Rodrigues, directora regional da Cultura, entende que “a relação entre uma componente cultural e uma componente da terra só pode dar bons frutos e bons

resultados. Este cruzamento artístico e cultural com as actividades tradicionais é muito mais interessante do que a cópia dos modelos daqueles que nos visitam, como aconteceu ao longo de várias décadas”. O seminário "O campo como recurso cultural", realizado na Casa do Povo de Santo Estêvão, marcou o início da festa-feira com a presença de convidados ilustres como Ana Paula Martins, vice-presidente da Câmara de Tavira, Alexandra Rodrigues,

directora regional da Cultura, Fernando Severino, director regional da Agricultura, Dália Paulo, comissária do Programa 365 Algarve, e José Liberto, presidente da Junta de Freguesia de Santo Estêvão e Luz de Tavira. Os convidados especiais do seminário foram pessoas com experiências concretas neste âmbito, nomeadamente, João Guerreiro, ex-reitor da Universidade do Algarve, Rafael Morales Astola, gestor cultural e professor na Universidade de Santa Luzia, em Espanha, e Rui Penas, do projecto "Ao Luar Teatro". Os convidados fizeram uma reflexão sobre a gestão cultural e a valorização do mundo rural, num debate moderado por Jorge Queiroz, segundo o qual, a qualidade do seminário era mais importante do que o número de convidados. Na sessão de abertura do evento, o director regional da Agricultura, Fernando Severino, mostrou-se satisfeito com a iniciativa “que faz justiça às questões do barrocal”. O evento contribui para a “construção de um Algarve mais sustentável” e deve servir de “exemplo para melhorar e para construir novos caminhos”.

Presidente Jorge Botelho realça a importância do barrocal algarvio

365 Algarve acredita que a iniciativa cria condições para que se pense o território

Ao Cultura.Sul, o presidente da Câmara de Tavira, Jorge Botelho, disse acreditar

A comissária do programa 365 Algarve, um dos parceiros da AGECAL neste projec-

Evento faz homenagem ao barrocal algarvio e mostra cultura da região

to, considera que “esta primeira festa-feira do barrocal algarvio faz todo o sentido no programa 365 Algarve porque nós trabalhamos com a matéria-prima do território e com os fazedores de cultura do território. São eles que oferecem, são eles que escolhem o que querem apresentar” e a "Barro Cal" é sem dúvida uma iniciativa realizada de uma forma colaborativa que promove o desenvolvimento regional. Dália Paulo acredita que “a cultura transforma e, ao transformar, fará de nós, algarvios, cidadãos mais felizes. Ao sermos cidadãos mais felizes, significa que temos uma auto-estima maior e um amor maior pela região, o que significa também um aumento da qualidade do produto turístico que oferecemos”. Iniciativa promove a reaprendizagem de saberes A "Barro Cal" assume uma função lúdica e educativa de reaprendizagem de saberes, de relação equilibrada entre o Homem e a natureza, e de sensibilização das várias gerações para as múltiplas fontes de conhecimento e disciplinas artísticas. A cultura não era muito valorizada na região e esta homenagem ao barrocal algarvio vem enaltecer a freguesia e mostrar aquilo que esta zona tem de melhor para oferecer, porque, de acordo com Jorge Queiroz, “temos de ir às raízes da cultura portuguesa para poder construir um contemporâneo de qualidade”. A primeira festa-feira do barrocal algarvio é organizada pela AGECAL, com apoio do município de Tavira, da Freguesia de Luz de Tavira e Santo Estêvão e do Programa 365 Algarve, contando também com a colaboração da Casa do Povo de Santo Estêvão. A AGECAL vai celebrar dez anos em 2018, e é uma associação que sempre procurou juntar os recursos de cultura do Algarve, trazer a dimensão cultural para o desenvolvimento rural, centrados em alguns aspectos ligados ao turismo, e esta festa-feira é mais uma iniciativa nesse sentido. 


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Cultura.Sul

Marca d'água

Um outro Algarve fotos: d.r.

Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia

luisa.algarve@gmail.com

AGENDAR

Há um Algarve telúrico e rural que me fascina desde cedo, um Algarve onde passei uma parte da minha vida e que sempre me inspirou quer na escrita poética, quer na escrita académica. Para além das vivências e da aprendizagem com as pessoas mais idosas, não poderei deixar de referir um livro intitulado: Um Algarve Outro – contado de boca em boca da autoria de Glória Maria Marreiros (Livros Horizonte, 1991). Este livro levou-me a valorizar mais o que em parte já conhecia. Ajudou-me a ter um olhar mais atento sobre o património cultural imaterial do Algarve e sobre as gentes da serra algarvia. Conheci pessoalmente Glória Maria Marreiros num dos muitos Congressos do Algarve organizados pelo Racal Clube, e na mesma altura conheci Margarida Tengarrinha. Duas algarvias defensoras de muitas causas, defensoras dos saberes da serra algarvia, da riqueza imaterial do Algarve e cujo trabalho de recolha muito admiro. Depois entrei no ensino superior em Lisboa e conheci outras referências nesta área. Sempre pensei que voltaria para o Algarve onde me dedicaria a estudar e a conhecer melhor a região que me viu nascer, fosse academicamente ou não. Numa palavra, dar um contributo para o desenvolvimento de uma região, que pela sua diversidade, pela riqueza da paisagem natural e humana tem um imenso potencial para um desenvolvimento cada vez mais sustentável. Ainda em relação à obra acima referida, o escritor Domingos Lobo, num comentário online, valoriza o trabalho de Glória Maria Marreiros dizendo: “Um outro Algarve, ainda com ressonâncias berberes no falejar, no uso das mezinhas, das ervas, nas crenças ténues, esparsas na cultura, do Islão – uma cultura fermentada pelos séculos, atravessada pelo esquivo céu dos hebreus. Um Algarve profundo, humano, que não colhe nos recortes badalados do biquíni, nos campos de golfe, nas discotecas da moda; esse território das gentes que o habitam, que encontramos presente e afirmativo, com apuro sensível, com

Maria Luísa Francisco dedica o primeiro artigo da nova rubrica a António Rosa Mendes atenta dedicação, numa fala por vezes indignada, outras rumorejando um lirismo de puríssima fonte, um verbo sempre expressivo e lúcido, na obra de Glória Maria Marreiros.” Ao longo desta rubrica mensal irei abordar temas sempre diferentes, e trazer um pouco de um outro Algarve, que, creio, ainda surpreenderá muitos leitores. Há uma ancestralidade e um modus vivendi em certas zonas rurais, que para quem vive nos meios urbanos poderá ser inacreditável! Naturalmente irei partilhar temas

ligados à área da cultura e ligados ao meu trabalho, enquanto investigadora na área da Sociologia. As várias dinâmicas migratórias, sociais e culturais no interior algarvio têm sido o meu objecto de estudo. O título da rubrica “Marca d’água” tem a ver com o facto de as questões ligadas à água me interessarem particularmente, e porque de alguma forma se cruzam com as minhas áreas académicas, quer da Pós-graduação Sociologia da Cultura e das Religiões, do Mestrado em Ecologia Humana e Problemas So-

Tertúlia na Biblioteca Municipal de Lagoa com António Rosa Mendes como orador convidado “NA ROTA DO FADO VADIO” 11 JUN | 21.30 | Rua Silva Lopes - Lagos Espectáculo com António Pinto Bastos e Cristina Santos, acompanhados na guitarra portuguesa por Fernando Silva, Rogério Ferreira na viola de fado e Nani, na viola baixo

ciais Contemporâneos e do Doutoramento em Sociologia Rural e Urbana. E ainda porque “Marca d’água” significa selo de garantia, a garantia de que escrevo por vezes mais com a emoção do que com a razão! Um representante genuíno da identidade algarvia A minha gratidão pelo que aprendi com o Prof. Doutor António Rosa Mendes faz com que lhe dedique este meu primeiro artigo da rubrica “Marca d’água” do suplemento Cultura Sul. Lembro-me que lhe mostrei o primeiro artigo publicado na rubrica “Patrimónios” neste mesmo suplemento onde agora escrevo. Não imaginava que tão poucos anos depois estaria a escrever estas linhas in memoriam de António Rosa Mendes. Fez no passado dia 4 Junho quatro anos que partiu. Conheci o Prof. Doutor António Rosa Mendes no âmbito de umas Jornadas ligadas ao património, onde fui moderadora, há uns dez anos. Ambos algarvios e docentes na mesma Universidade, não tínhamos sido apresentados até então. A primeira característica que apreciei em António Rosa Mendes, logo

na mesa que moderei e onde era um dos oradores, foi o seu registo de acentuada pronúncia algarvia e a forma expressiva como as suas mãos acompanhavam as suas palavras. E, claro, o seu comprometimento com a região algarvia. Só mais tarde soubemos que ambos fizemos o Mestrado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Ele no Departamento de História em 1991 e eu no Departamento de Sociologia em 2002. Conhecia a minha investigação sociológica no interior algarvio e sempre estimulou e valorizou o meu trabalho. Aliás, era uma pessoa que valorizava muito o trabalho de outros investigadores e fazia-o também com os seus alunos. António Rosa Mendes é daqueles algarvios que deixou um legado, não só pelo que escreveu, mas também pelo papel desempenhado enquanto Comissário de Faro Capital da Cultura 2005. Foi um entusiasta do Património Cultural, tendo tido um papel importante na Licenciatura em Património Cultural e um dos dedicados promotores do Mestrado em História do Algarve na Universidade do Algarve. Orientou muitos alunos, que conheço, e por isso posso dizer que se sente que beberam o espírito do mestre, que ganharam o gosto pela valorização e divulgação do património algarvio. Era um homem inteligente, atento e de bom senso. Tinha grande curiosidade intelectual e uma enorme perspicácia, era culto e brilhante. O seu refinado sentido de humor vinha facilmente ao de cima. Às vezes tínhamos diálogos muito engraçados em que acentuávamos ainda mais a pronúncia algarvia e usávamos palavras de um Algarve rural que já pouca gente usa ou conhece. Era um representante genuíno da identidade algarvia. O seu conhecimento da história e cultura do Algarve e a sua eloquência estavam sempre presentes em todos os diálogos. Um homem singular com singulares amigos, que aos poucos fui conhecendo e que foram e continuam a ser importantes para mim. O seu conhecimento da história e cultura do Algarve e a sua eloquência estavam sempre presentes em todos os diálogos. Um homem singular com singulares amigos, que aos poucos fui conhecendo e que foram e continuam a ser importantes para mim.

“SALT(E)ADORES DE HISTÓRIAS” 11 JUN | 21.45 | Portela de Messines - Silves Os salteadores levam aos mais pequenos uma bagagem cheia de histórias, apresentando um espectáculo que é uma espécie de salada de frutas divertida, colorida e vivaça


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Cultura.Sul

Da minha biblioteca

Diário do Farol. A Ilha, a Cadela e Eu de Ana Cristina Leonardo Adriana Nogueira

Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

O livro sobre o qual vou escrever é único. Literalmente. Tem a particularidade de não se encontrar à venda em nenhuma livraria, mas apenas por encomenda direta à editora, que o fará… à mão. Exatamente. Por isso, cada exemplar é único e demora dias a ser feito, ficando com a certeza de que não haverá nenhum igual. Porque a filosofia da editora, Beatriz Hierro Lopes, é essa: que não haja edições em massa, nem livros iguais; que não haja coleções, porque cada livro e cada autor têm a sua personalidade e projetos próprios; que se eliminem os intermediários (livrarias, distribuidoras) e que ganhem em partes iguais aqueles que constroem o livro: o escritor, porque o escreve, e a editora, porque o faz. Hierro Lopes edita o texto, pagina, mistura as cores, pinta a capa, cose as folhas umas às outras e vende-o diretamente ao leitor/comprador, personalizando com o nome que indicarmos, assinando (e às vezes) numerando cada exemplar. Nas últimas edições, um lacre com o logótipo da editora dá um ar de sua graça. Escolhi o Diário do Farol. A Ilha, a Cadela e Eu, porque foi o primeiro livro editado por Hierro Lopes. Por coincidência, a autora, Ana Cristina Pereira Leonardo, cronista do jornal Expresso, nasceu em Olhão, e o ambiente descrito na obra é o da ilha do Farol. A Ilha

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Ia começar a escrever que a ação se passa no Farol, mas este

maria leonardo

livro não é um livro onde haja uma ação a passar. É um livro de «estar», onde as coisas acontecem ao ritmo da natureza e do modo como as personagens vão interagindo com ela: com a chuva, o vento, a areia, os animais, as aves. Em forma de diário, vamos passando pelos dias que se acumulam em pequenas entradas numeradas de 1 a 55, que podem ocupar poucas linhas ou algumas páginas, ao sabor do tempo. É inverno e a ilha está quase deserta. A narradora consegue criar um ambiente simultaneamente parado e cheio de força, como se o tempo por ali não passasse, onde o olhar se pode d.r.

A Cadela

demorar nas pequenas coisas e os pensamentos não pesam («8. Desde que chegámos, o hibisco sob a acácia da casa deu três flores. Hoje de manhã uma delas estava toda encarquilhada, como se fosse uma folha de papel crépon do tempo da infância. Fiquei a pensar que as coisas vivas nos lembram coisas mortas e às vezes o contrário. São pensamentos simples» – p.13), mas se os elementos se impusessem na paisagem: «28. Faz um vento

danado. Varre os céus e a ilha deixando-a ora a descoberto, ora à mercê das nuvens. O mar encrespado do canal muda de cor conforme a luz incide ou não incide sobre ele. […]. No canal, as ondas correm enviesadas parecendo empurrar toda a água do mar na direção da ilha» – p.26). A Cadela Esta cadela é o motor de muito do que a narradora faz, visto

“POR LINHAS E CÍRCULOS ME LEVO” Até 28 JUN | Biblioteca Municipal de Albufeira Nesta exposição, Estrela (Cátia do Santos) ilustra os seus pensamentos em traços abstractos pintados em acrílico

ser a sua companheira dos passeios (escolhidos ou forçado, à sua procura). Quando aquela chega a casa a cheirar muito mal, ou suja, ou molhada, ou a dona se dá conta de que as pessoas da ilha a conhecem e têm alguma história com ela (estes pronomes «a» e «ela» referem-se à cadela), certamente acontecida nas horas de ausência, não há ralhar nem castigos, mas a manifestação do carinho que as une e da inevitabilidade da desigualdade da relação: «Chamo-a insistentemente. Finge que não me ouve embora não se afaste nunca demasiado. Depois parece desinteressar-se do jogo e começa a farejar o chão à sua volta. Sou obrigada a voltar para trás. Não há nada de mais caricato do que um ser humano a tentar, inutilmente, ser obedecido por um cão. Faço-lhe uma festa quando chego perto dela e tomamos juntas o caminho de casa» (p.21). Não sabemos como se chama, mas sabemos que tem um amigo, cujo dono já morreu, e que, depois disso, passou a ser

«o cão de todos e de ninguém. Dizem-me que se chama Levezinho. À noite, cava um buraco na areia em frente da casa que foi do dono. É aí que dorme. Já vários o tentaram recolher, mas ele recusava-se a dormir a não ser ao relento. Mesmo com frio e chuva. Um cão solitário, o que combina particularmente bem com a ilha nesta altura do ano» (p.16). e Eu É com dificuldade que conseguimos afastar a narradora da autora, pois esta já disse que a obra se baseou na sua vivência de dois meses na ilha do Farol, no inverno de 2014. Para dificultar, há mais duas características que contribuem para a ideia de veracidade: o facto de o livro ter quatro fotografias (que incluem a cadela e o farol) e o género ser o diarístico, mas não do tipo confessional. Cada leitor, com as suas próprias referências, verá as dela. Ou não. Mas, certamente, verá as suas. Porque

as citações ou alusões também não estão no texto para dar estilo, mas surgem com a simplicidade que acompanha o pensamento divagante. Por exemplo, depois de constatar que «O silêncio voltou e o céu está carregado de estrelas», termina com dois versos, assinalados em itálico, como que acordados pelo sossego: «Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,/ Eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia» (p.33). Percebemos que é uma citação. Se reconhecermos Herberto Helder, tanto melhor. Estas referências que lhe (nos) vêm à memória, despoletadas por um pequeno nada, pode depreender-se neste passo: «Apanhei de novo a cadela a rebolar-se com assinalável prazer no cadáver ressequido de uma ave que não consegui identificar. Na minha cabeça chamei-lhe cadáver esquisito, expressão que neste caso pode ser interpretada literalmente» (p.31). Quando li, sorri, pois também eu, ao ler «cadáver esquisito», me lembrei logo do cadavre exquis dos surrealistas. E fiquei com vontade de jogar. Conhecem? Pode-se desenhar ou escrever. Eu costumava fazer com os meus amigos assim: um escreve uma frase numa linha e termina com uma palavra na linha seguinte, dobrando a folha de papel de modo a que o próximo (quantos mais, melhor) só veja essa última palavra e, a partir dela, escreva, por sua vez, uma frase, repetindo o processo. O resultado será, evidentemente, um texto surrealista, muito interessante. Vieram-me outras memórias (quem conta sete ondas antes de mergulhar?) e, acima de tudo, muita tranquilidade. Agora que o verão está a chegar e os barcos para o Farol estarão a abarrotar, é bom ler este livro calmo, feito de tempestades e de mar revolto. 

“MALA - MOSTRA DE ARTISTAS DE LAGOS” Até 1 de JUL | Centro Cultural de Lagos Evento apresenta a vasta actividade dos artistas de Lagos, acompanhando o balanço da diversidade do trabalho dos artistas do concelho.


Última Quotidianos poéticos

Tiago Nené fotos: d.r.

foto: região sul

Poema do livro inédito ‘Nuvem com Superfície Variável’

Nuvem com superfície variável III / René Bértholo, 1974 Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

Nasceu em Tavira (1982), é licenciado em Direito, e exerce advocacia em Faro, onde reside. Tem desenvolvido intensa actividade na promoção da poesia do Algarve. Fundou com Fernando Esteves Pinto a associação cultural Linguagem de Cálculo e participou no Sulscrito. Fundou o Texto-al, com Luís Ene e Carlos Campaniço. Traduziu para português alguns livros de poemas de autores de língua espanhola. Está representado em diversas antologias de poesia e revistas, participou como autor convidado em encontros e conferências de escritores como o Palavra Ibérica (Punta Umbría) e Correntes d’Escritas (Póvoa de Varzim). Publicou como autor, os livros de poesia ‘Versos Nus’ (Magna, 2007). ‘Polishop’ (Colecção Palavra Ibérica, 2010), ‘Relevo Móbil Num Coração de Tempo’ (Lua de Marfim, 2012). Parece, no entanto, um pouco desconsolado, com a poesia na sua vida, e a vida na sua poesia: É um quotidiano em que a poesia é cada vez menos procurada, ao contrário de há uns anos em que havia claramente mais entusiasmo pelos segredos da escrita. Tornei-me um ser mais cerebral e creio que isso se reflecte na minha poesia, que é muito mais fria do que antes. Busco explorar ideias. Ao leitor caberá encontrar a poesia que mais gosta no meio dessas palavras. Apesar disso, no passado mês de Abril, foi-lhe atribuído o prestigiado Prémio Literário Amália Vaz de Carvalho com o livro ‘Este Obscuro Objecto do Desejo'. O júri reconheceu as qualidades que quis pôr à prova. Para além disso, há o apoio à edição do livro, que é uma das componentes do Prémio, a par da quantia monetária. Felizmente ganhei e não escondo que fiquei feliz. O mais importante é que o livro sairá no final de 2017, e numa editora relevante. Esse é para mim o maior prémio. Já tinha recebido antes uma menção

Tiago Nené tem desenvolvido intensa actividade na promoção da poesia do Algarve ta. Não tenho horários para a escrita. Neste momento escrevo quando tenho um projecto em mãos. Quando é assim, posso escrever durante o dia, entre tarefas profissionais. De preferência ao ar livre, com uma chávena de café. A ouvir música. Gosto de ouvir música portuguesa enquanto escrevo. Sérgio Godinho, Márcia, Samuel Úria, Dead Combo, ou Amália Rodrigues são óptimos para escrever. Uso papel e caneta. Depois dá-se o processo de reescrita, que é no computador.

honrosa num outro prémio, sem que a obra tivesse sido apoiada. Encontra-se a ler… «Poesia Presente», uma antologia de António Ramos Rosa que saiu recentemente. Tiago considera o poeta de Faro, como sendo talvez a sua maior influência literária nos dias de hoje. Tive a honra de o conhecer no final da sua vida. Sei que chegou a ler um livro meu, o que muito me satisfaz. E mencionou de seguida alguns outros autores que gosta, como Leonard Cohen, Al Berto, Herberto Helder, Manoel de Barros, Maria Benedetti, entre muitos outros. E na sempre difícil tarefa para um escritor, de entre tantas e diversas leituras e influências, ter de selecionar um livro/poema que consi-

Sylvia Beirute, o mistério recentemente revelado…

dere relevantes apontou os seguintes: Al Berto, O Medo. Poema: Foram Breves e Medonhas as Noites de Amor. Rui Costa, A Nuvem Prateada das Pessoas Graves. Poema: A Nuvem Prateada das Pessoas Graves. Do quotidiano de escrita/na escrita Gosto de escrever à medida que vou lendo outros autores. Preciso de ir buscar inspiração aos outros. É lá que encontro a motivação cer-

Foi um pseudónimo criado para me dar total liberdade criativa. Criei muita coisa, escrevi muito, falhei muito mas, por entre tanta coisa, cresci muito. Tenho a certeza que se não fosse essa experiência não teria atingido o estado de maturidade em que me encontro. Por outro lado, foi engraçado ter vivido a especulação em torno de quem seria o autor por trás de Sylvia Beirute (‘Uma Prática para Desconserto’; 4águas, 2011). Tudo isso foi muito poético. Mas como tudo na vida, terminou. Teve o seu tempo. Foi um longo exercício. Talvez um dia publique uma antologia com os melhores poemas de todo esse tempo.

Há cinco mil milhões de anos, esta terra arfava numa massa de rochas e fogo. Hoje à noite um peixe cintilante voou uma vez, afundou de novo em azul visível, olhou para baixo, bem para baixo e encontrou as luzes de um milhão de pensamentos. Cá fora, pela cidade, nos pórticos da igreja e ao longe das razões adolescentes riem e fumam, enquanto o seu significado se move para trás da névoa e da marcha de todo o tempo. Há cinco mil milhões de anos, esta terra arfava numa massa de rochas e fogo. E hoje à noite cores ameaçadas voam, escapando sem cessar, uma vez que é sabido que sob as penas brancas existe carne quente apaixonando a gordura; Mas olhemos com olhos flutuantes e vejamos os sinais de néon, todos os fluxos de água, os espinhos das flores ou a contundência das órbitas de estrelas distantes que em muito passam a ideia de agora. De qualquer forma, e apesar disso, um ar superior parece livre no céu, fluxos com ventos laterais não se deixam filtrar por verdadeiras ideias ou conflitos, um pinheiro cresce como se não respeitasse qualquer sugestão de não-desejo. Há cinco mil milhões de anos, esta terra arfava numa massa de rochas e fogo. de uma mosca nocturna forrando o céu a sede insaciável, as memórias estão cortadas pela metade, enxertadas por sonhos de cisnes pré-históricos, trilobites, aves mesozóicas, inaugurando um silêncio esculpido em cascas de som. E hoje à noite um peixe cintilante voou uma vez, afundou de novo em azul visível, olhou para baixo, bem para baixo, e encontrou as luzes de um milhão de pensamentos. 


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