D.R.
Espaço AGECAL: d.r.
Na Rota da Escravatura
p. 7
Letras e Leituras de Paulo Serra
Saul Neves de Jesus convida a entrar no novo ano com a seguinte questão:
Pode a arte motivar?
p. 8
Espaço ao Património:
p. 6
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O Legado do Desporto
p. 9
Na Ágora: d.r.
JANEIRO 2018 n.º 111 Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO
A importância dos nomes p. 11
5.168 EXEMPLARES
www.issuu.com/postaldoalgarve
Frentes Ribeirinhas, os locais de fronteira entre a terra e o mar p. 4-5
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19.01.2018
Cultura.Sul
Editorial
Missão Cultura
A má propaganda do Estado
Lugares de Globalização: uma Semana Cultural D.R.
Direção Regional de Cultura do Algarve
Henrique Freire
Editor geralcultura.sul@gmail.com
A melhor política será sempre a que cria as condições de possibilidade para que surjam artistas e públicos: são eles que são a alma e o corpo da Cultura e não o Estado. Dito isto, creio ser uma afirmação de consenso generalizado. Promover o mecenato para os criadores e não para o próprio Estado é ajudar a criar uma cultura com maior e melhor ossatura económica e permitir igualmente um natural desenvolvimento de mercados para os nossos produtos e agentes privados culturais. Urge promover uma nova política fiscal que deixe de perseguir e humilhar os autores e a criatividade artística; redefinir qual a natureza e os limites da acção cultural como política pública. O actual momento é de oportunidade, é o de saber aproveitar os actuais sinais positivos de crescimento da economia com bom senso. Após quase uma década de grande crise económica mundial, que obrigou ao uso de uma maior criatividade do que à utilização de recursos financeiros, que eram escassos, há lições a retirar. As autarquias em geral foram o bom exemplo disso na era do sobreendividamento. Principais fundamentadoras de actividades culturais junto das populações, as câmaras municipais começaram a recorrer em grande medida aos agentes culturais da própria região. O resultado foi positivo. Resta saber se o Estado aprendeu a lição e qual vai ser o comportamento futuro das autarquias. Com ou sem recessões económicas, a melhor política cultural do Estado será sempre a indirecta. Como dizia Viriato Soromenho-Marques, "um Estado que queira interferir directamente na cultura, acabará sempre a fazer má propaganda".
O século XV assistiu ao primeiro desígnio de globalização comercial da Era Moderna. Na sua essência, o projecto foi concretizado por mareantes algarvios que, experimentados na navegação, e aproveitando a conjuntura favorável nas relações com os países da fachada atlântica europeia, exploraram novas rotas comerciais, progredindo para Sul ao longo da costa africana, havendo de englobar as ilhas atlânticas da Macaronésia (Canárias, Açores, Madeira e Cabo Verde). Para o êxito desse movimento foi fundamental o impulso financeiro e político do Infante Dom Henrique, que – sendo dele o maior beneficiário – seria reconhecido pelas vicissitudes da história e a manipulação da memória das pessoas como o grande herói dessa conjuntura sociohistórica. A abertura a um mundo novo (na visão ocidental) congrega o início de um comércio internacional, tendo como veículo principal o mar-oceano; uma nova etapa de desenvolvimento económico; uma nova geografia e conhecimento étnico;
A Sé de Silves é o principal monumento gótico do Algarve o encontro e miscigenação de culturas; o pioneirismo, o desenvolvimento da náutica e da navegação; a queda de barreiras físicas e mentais; o contacto com comunidades até então só imaginadas e fantasiadas; uma nova organização social e administrativa; novas arquitecturas (religiosas e defensivas) e manifestações artísticas. Em 2015, a Região de Turismo do Algarve em parceria com a Direção Regional de Cultura, alguns Municí-
pios do Algarve e as Direções Regionais da Cultura da Madeira e Açores, submeteram à Comissão Nacional da UNESCO a candidatura "Lugares de Globalização", que levou à inscrição de uma rede de lugares na Lista Indicativa de Portugal a Património Mundial. A partir de uma herança comum em torno das rotas dessa Globalização da Era Moderna, pretende-se promover o intercâmbio cultural entre povos e contribuir para o diálogo entre
culturas. Os "Lugares de Globalização" integram um conjunto de bens culturais que constituem: pontos de referência, material e imaterial, associados a acontecimentos relevantes (Sagres, Raposeira, Lagos), obras com mérito arquitectónico (alcáçova e antiga Sé de Silves), dispositivos de produção (engenhos de açúcar de Silves e Machico, salinas de Lagos), núcleos urbanos antigos (Lagos, Silves, Funchal, Machico, Angra, Vila Franca do Campo, Ponta
Delgada), lugares de memória do tráfico negreiro (Lagos) com vários elementos e estruturas de natureza arqueológica. São lugares repletos de nomes, de experiências, de narrativas, densos em histórias, de tempos e de sentidos, com uma espessura antropológica de pessoas concretas e memórias associadas à fase de lançamento desse processo, que se querem integrados numa rede internacional, nela incluindo lugares como Ceuta, Alcácer Seguer, Arguim, Cidade Velha. A Semana Cultural - Lugares de Globalização resulta de uma parceria constituída pela Vicentina – Associação para o Desenvolvimento do Sudoeste, Direção Regional de Cultura do Algarve, os Municípios de Lagos, Vila do Bispo, Aljezur, Monchique, Silves e a Região de Turismo do Algarve, que constitui um incentivo ao desenvolvimento das acções necessárias à concretização do desiderato de inscrição da rede na Lista do Património Mundial da UNESCO. Com financiamento do CRESC Algarve 2020 e três edições previstas – a primeira das quais ocorrerá entre 16 e 23 de Março com um vasto e diversificado programa cultural –, este projecto vai ser apresentado publicamente no próximo dia 24 de Janeiro em Sagres.
Juventude, artes e ideias
Sociedade Recreativa Progresso Olhanense comemora 100 anos
Jady Batista Coordenadora Editorial do J
Para comemorar o seu primeiro centenário deste espaço de Património, Cultura e História de Olhão, foi preparado um programa de actividades que decorreram na passada terça-feira, 16 de Janeiro.
A Sociedade Recreativa Progresso Olhanense fundada em 16 de Janeiro de 1918, é a mais antiga colectividade em actividade em Olhão e uma das mais antigas do país. Considerada de Utilidade Pública, conquistou a Medalha de Bons Serviços - Grau de Ouro da Câmara Municipal, o que prova a sua vitalidade e capacidade em acompanhar a evolução dos tempos, recuperando o seu lugar como referência de cultura e recreio do nosso concelho. Honra seja feita à nova
direcção, eleita em finais de 2014, presidida por Francisco do Ó, que soube congregar os esforços necessários para regularizar a situação financeira e implementar uma dinâmica cultural que serve para o interesse e as necessidades atuais dos sócios e da população em geral. Prova disso é a actividade contínua e regular que resulta da iniciativa da colectividade e das parcerias estabelecidas com a Câmara Municipal e outras entidades da terra, em particular a Gorda
Sociedade é das mais antigas colectividades do país
D.R.
Cultura.Sul
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Filosofia dia-a-dia
Prodígios?! D.R. d.r.
Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica
O sentimento de assombro é a verdadeira marca de um filósofo. Platão, Teeteto
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Na pequena, remota e fictícia localidade algarvia de Vilamaninhos, José Jorge Junior “foi assaltado pelo barulho de pessoas estarrecidas, que fugiam em direcção das suas casas, certas de terem assistido ao grande prodígio dos tempos modernos. Porque um bicho réptil voar de vísceras de fora, só deveria ter acontecido nos tempos bíblicos, muito e muito antigos”. (Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, p. 27) “Ela era azul, castanha e delgada e mexia como a água e o fumo mexem. Parecia um pensamento”. (p.19) Quando tentaram matá-la “saíram-lhe duas asas dos flanquinhos como uma fantasia de circo”. “Digam se não viram a cobra alevantar-se no céu, abrir umas asas de escamas, espelhadas e furta-cores. Saltou por cima dos nossos olhinhos levando atrás de si um sopro de pó verde e humidades. Foi aí vizinhos que eu caí de cu”. (p. 22) Descobrir as causas do extraordinário acontecimento tornou-se a prioridade de toda a população. Tal não aconteceu por decreto. Simplesmente não podia ser de outro modo. As gentes não conseguiam dormir, nem comer, nem deixar de falar do sucedido. Depois do prodígio tudo mudou: “Macário disse. Antes sempre se ouviam as palhetadas. A Matilde disse. Antes você falava direito. E Manuel Gertrudes disse: Punhas-te a dormir como um passarinho e acordavas repousado. E Jesuína Palha disse. Depois daquela visão tudo ficou sobressaltado.
A urgência em descobrir o porquê de algo é o início de toda a filosofia E João Martins disse. Isso já foi. E Jesuína Palha disse. Só quem é cego não vê que depois disso as coisas mudaram de figura. E Macário disse. Que coisas. E João Martins disse. Cada vez a gente se sente mais perdidos”. (p.89) Esta revolução interior, este incómodo insustentável, esta urgência em descobrir o porquê de algo é o início de toda a filosofia. Todo o conhecimento genuíno começa aqui, com o espanto! É ele que nos move, é ele que nos deixa num estado em que somos obrigados a procurar. Não há descanso para o ânimo. Não se pode senão continuar à procura porque o chão nos foi retirado debaixo dos pés. E não se consegue viver sem chão. E não se nos proporcionou outro solo por onde caminhar. Está-se em queda livre, ou a naufragar, para utilizar uma expressão orteguiana Dá-se aos braços e às pernas para se manter à tona. A cabeça não tem descanso, o ânimo entra em ebulição à procura, precisamos absolutamente de entender! É uma necessidade tão forte, tão urgente, tão física, como a de pão para a boca! É a intensa e
dilacerante vontade de saber com que todo o homem nasce mas que está normalmente camuflada por uma densa camada de indiferença, aquele amorfo “vai-se andando” da atitude quotidiana. Nem todos os dias surgem cobras voadoras Será por isso que tão raramente se filosófa? A questão está em que vivemos como que anestesiados e não nos damos conta dos prodígios que acontecem a todo o momento à nossa volta! Olha para aquela bicicleta que está agora ali encostada à parede na rua da frente. Agora? Se está ali há semanas! Há semanas? Eu passo por aqui todos os dias e nunca a vi. Nunca a viste, não, nunca reparaste nela, garanto-te que leva ali encostada semanas. E assim sucessivamente. De manhã, à mesa para tomar o pequeno-almoço, e não se encontra o açucareiro. Levantamo-nos e vamos ao armário, regressamos, damos voltas, e nada. Já nos preparamos para tomar um café amargo quando, de
repente, o açucareiro aparece prodigiosamente à nossa frente! Como é possível só o termos visto agora quando necessariamente ele já ali estava? É forçoso que o açucareiro já ali estivesse, como não o vi antes?! Mas pomos duas colheradas de açúcar na chávena e não pensamos mais no assunto. Não se nos ocorre perguntar como é que o açucareiro foi aparecer milagrosamente, precisamente nesse momento, à nossa frente. Problema resolvido. Ou melhor, problema, uma vez mais, camuflado. A diferença entre a cobra voadora e o açucareiro invisível não é tão grande como aparenta. Trata-se de um modo de estar ido ao mundo, um modo de percepção. E de facto, é prodigioso que às vezes vejamos e outras vezes não. Qual é o mecanismo mental que involuntariamente nos oculta ou desoculta a realidade? Não sabemos, e o que é muito pior, nem sequer pensamos nisso. Por isso mesmo não filosofamos. Vivemos uma existência amorfa, indiferente, apática. É
“PAISAGENS DO ALGARVE” Até 29 JAN | Biblioteca Municipal de São Brás de Alportel Exposição de fotografia de Mauro Rodrigues para quem a natureza é uma grande fonte de criatividade
como se os nossos sentidos estivessem embotados, a funcionar a meio gás. É aquilo a que Edmund Husserl chama a “atitude natural”, tudo nos aparece de forma aproblemática. Não nos perguntamos o porquê de as coisas serem assim, ou de nos aparecerem desta ou daquela maneira. É assim e pronto! E pronto?… O estado de sentir-se obrigado a procurar é de uma intensidade tal que não se aguenta durante muito tempo. A mente precisa de justificações para acalmar, para repor a normalidade. Dá-se o 25 de Abril, a revolta dos cravos, finaliza a guerra no ultramar e politicamente as mudanças são enormes. Todo o país sofre uma revolução. Militares em carros blindados vão espalhando a “boa nova”, explicando às populações, mesmo às mais remotas, a grande modificação que o país atravessa. No entanto, para os habitantes de Vilamaninhos, esses seres sábios, considerados praticamente omniscientes, deveriam acima de tudo trazer a explicação do prodígio. Afinal o que é a revolução
de um país comparada com uma cobra voadora? Revolução que, para mais, em nada alterará o ramram diário daqueles que nascem e morrem esquecidos sem que ninguém nunca dê por eles. E a mentalidade mágica, o “acreditar em milagres” como define o garboso soldado de cima do tanque, é de um exotismo que emudece e incomoda. Algo que os faz ir dali para fora a toda a velocidade, como se o acreditar em prodígios fosse uma doença maligna e quiçá contagiosa. Para os que ficam é a desesperança. Nem os omniscientes garbosos soldados têm uma explicação para o acontecido e resta-lhes tomar o desacreditado prodígio como alucinação colectiva. O pior é que o prodígio apenas acordou as consciências durante um curto período. Com o passar do tempo, retomam-se os antigos hábitos: “Depois do bicho levámos quinze dias sem dizer um nome feio. Mas agora já andamos com a espinha curvada como se nada a gente tivesse visto”. (p. 78). Em alguns o acontecido calou mais fundo: “a mim ainda se me vai sair o cinzento dos miolos pelos tubinhos dos cabelos de tanto pensar na vida”. (p.203) Para os estudiosos de literatura, este romance versa sobre a alienação, mas do ponto de vista filosófico, este é, sem dúvida, um texto exemplificativo do espanto. O verdadeiro espanto é um momento de não retorno, nada volta a ser como antes, há um resquício de incerteza sobre a natureza das coisas, dir-se-ía uma má consciência noética, espécie de pedra no sapato que não pára de azucrinar. “À espera da víbora ainda há quem ande, rua abaixo rua acima, olhos entre as patas, esperando encontrar um rojeiro feito pelo corpo do ser. E todos ficaram diferentes, e falam do antes e do depois”. (p. 65) Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com
“NA AUSÊNCIA DO CORPO" Até 3 MAR | Galeria do Convento Espírito Santo - Loulé Rui Matos expõe 12 trabalhos, afirmando que ‘a escultura é feita de sentimentos'
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Cultura.Sul
Reflexões sobre urbanismo
Frentes Ribeirinhas: Ambiente e Economia, um diálogo difícil júlio carmo
Teresa Correia
Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com
Todos nós conseguimos perceber a necessidade de revitalizar e de qualificar as nossas frentes ribeirinhas, nomeadamente das cidades à beira da água. Desde tempos imemoriais, estes locais de fronteira entre a terra e o mar foram ponto de encontro de mercantilismo, de praças monumentais no tempo das cidades abençoadas pela rainha, e das igrejas. Estes centros são marcantes nas linhas de costa algarvia e na sua génese transmitem a nossa identidade ligada tantas vezes à exploração dos recursos naturais da Ria Formosa, ou do mar, às Descobertas, e ao comércio, com a Alfândega. Estas frentes evoluíram, cresceram e expandiram-se para o interior em mancha de óleo, e para fora com a linha de caminho de ferro, aprisionando-a. O Parque Natural da Ria Formosa, um território de excelência Em Faro, a nossa frente ribeirinha confronta com a Ria
Panorâmica da doca de Faro Formosa, sendo esta um último reduto de tantas espécies protegidas, uma riqueza singular da natureza, e ainda com proveitoso impacto económico e social nas populações locais. Salienta-se que a Ria Formosa conquistou o título na categoria de Zona Marinha das Sete Maravilhas Naturais de Portugal em 2010. É um espaço de território de
excelência, o qual é indiscutível defender. Será, assim, exigente uma alteração das condições físicas das nossas frentes ribeirinhas no equilíbrio complicado das intervenções, as quais não possam provocar impactes significativos no ambiente envolvente. Qual será então a capacidade de carga que poderemos acres-
cer a estas frentes ribeirinhas com vista a estimular a nossa economia e simultaneamente não provocar danos irreversíveis nos espaços protegidos, salvaguardando o ambiente para as gerações futuras? Esta é uma questão fundamental. Na Frente Ribeirinha em Faro temos uma grande diversidade de domínios pú-
blicos e privados sob a jurisdição das mais diversas entidades, de onde destaco a APA-ARH, o ICNF, a ANA – Aeroportos, a Docapesca, as Infraestruturas de Portugal, alguns privados como as Salinas dos Neves Pires, a pequena zona industrial do Bom João desqualificada, a Autoridade dos Portos de Sines e do Algarve e, naturalteresa correia
Linha de caminho de ferro e Ria Formosa
mente por fim, o Município de Faro. Os consensos, fator de sucesso Apesar desta necessária concertação, é possível com diálogo e muito estudo chegar a consensos, pelo que irei apenas sintetizar alguns projetos, onde considero ter sido atingido o sucesso e nos quais participei de perto. Poder-se-á dizer que o projeto do Parque Ribeirinho de Faro, apenas executado na sua primeira fase, e sem ser na sua totalidade, produziu necessariamente um acréscimo de valor à qualidade de vida dos farenses, sendo que os princípios de valorização ambiental não destruíram a capacidade de fruição desse mesmo espaço. A ecovia no troço Faro - Ilha de Faro, desenhada sobre o atual trilho existente, dada a grande proximidade do aeroporto e ainda as questões ambientais exigidas pelo ICNF, não foi aceite pelas entidades, na fase do projeto. Porém, realizou-se uma alternativa desenhada em proposta de traçado que permitiu resolver esta ligação, com pareceres prévios das diferentes entidades, que já assegurou o caminho a seguir.
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5 teresa correia
Percurso pedonal da Frente Ribeirinha de Lisboa O projeto de execução do Porto de Recreio de Faro do lado exterior da linha férrea, elaborado pela Docapesca, foi dos maiores desafios em termos de cooperação entre organismos do Estado. Este Porto terá a capacidade aproximada para 275 embarcações até 12 metros. Este processo foi digno de realce e terminou com um sucesso significativo na aprovação do RECAPE. No entanto, parece não existir, por enquanto, a dinâmica ou a vontade política suficiente para avançar com o lançamento de uma concessão que reforce a viabilidade deste empreendimento tão necessário como âncora à economia do nosso tecido empresarial na Baixa de Faro.
da Cidade. O Plano de Mobilidade e Transporte apresenta propostas concretas para intervir de forma a aliviar a carga sobre esta área. Deverá ser promovido um investimento efetivo na renovação da linha férrea e no material volante ferroviário de forma a torná-lo aligeirado e mais permeável. A questão do Cais Comercial surge agora também como uma oportunidade de desenvolvimento com funções complementares à actividade portuária, Turismo e
de Investigação. É importante a sua reconversão, porém, a função deverá ser ponderada, tendo em conta que este foi e é um equipamento regional da maior importância para a indústria do Algarve. O cimento, as cargas de pedra, ferro e telha, a alfarroba algarvia, o sal de Olhão, e o sal gema de Loulé, assim como o atum proveniente das armações ao longo da costa, são alguns dos produtos que ainda vão sendo carregados no Porto. Pode, no entanto, não ser viável em termos económicos, mas perder
completamente esta valência seria reduzirmo-nos apenas ao Turismo, como economia dominante que já é. A compatibilização, embora difícil nalgum aspeto, é possível e desejável. A zona do Bom João é uma área industrial degradada, sendo, no entanto, possuidora de um potencial urbanístico de grande valor, face à sua proximidade da Ria Formosa. Para tal, é necessário prever fontes de financiamento ainda assim avultados, para recuperar os solos da polui-
ção e infraestruturar dignamente. Na paisagem desta zona surgem ainda factos urbanos complicados, como os depósitos de gaz da RUBIS, que deverão ser relocalizados para novas áreas estratégicas e seguras fora da cidade, assim como o já cansado realojamento das famílias da Horta da Areia, ou o reposicionamento de algumas indústrias existentes que necessitam de novos espaços. Este Plano de Pormenor, cujo início já foi preparado faz tempo, interliga-se também com o Plano de
Urbanização do Areal Gordo que, se fosse desenvolvido, facilmente se tornaria numa alternativa adequadamente localizada para as instalações de armazenagem e de indústria. Planear é um acto de profunda reflexão e de compromissos, não se esgotando no mero desenho urbano, mas acima de tudo num programa, ou seja, num conjunto de usos compatíveis com os fatores físicos, económicos e sociais num determinado sítio. Este revela-se e dita o que pode ou não ser feito. júlio carmo
Os desafios por concretizar Associado ao Parque Ribeirinho, o Plano de Mobilidade e Transporte de Faro apresenta uma proposta de passadiço em madeira, com vista a reforçar a ligação pedonal e ciclável para a outra margem, que neste caso, poder-se-á dizer que seria de toda a importância, mudando completamente o paradigma da ligação ao Montenegro e à Ilha de Faro. A mobilidade está associada ao desenvolvimento sustentável e à evolução das nossas cidades, verificando-se, por vezes, dificuldades de espaço para gerir os diferentes modos, ferroviário, rodoviário, pedonal e fluvial, entre outros, e o seu correto funcionamento num espaço tão contido e sensível como a frente ribeirinha ou a Baixa
Passadiço sobre a Ria Formosa
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Cultura.Sul
Artes visuais
Pode a arte motivar?
Saul Neves de Jesus
Professor catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora https://saul2017.wixsite.com/artes
Neste artigo propomo-nos abordar a questão “pode a arte motivar?”, no sentido de iniciarmos desde logo com optimismo e motivação este novo ano. Esta questão poderia ser analisada na perspectiva da arte ser fonte de motivação para quem a pratica. Aliás, já anteriormente tivemos oportunidade de abordar “a arte como actividade libertadora do instinto” (Bossaglia, 2001), ou como uma actividade que permite o desenvolvimento dum estado de fluxo (Csikszentmihalyi, 1999), apresentando os artistas um sentimento de total envolvimento e a consciência totalmente focada na actividade em si mesma. Isto acontecia, em particular, no Movimento Transvanguarda dos anos 80, ou nos Action Painting dos anos 40 e 50. Neste âmbito, a liberdade e o prazer do artista, quase que em catarse, são as principais características do processo de produção artística. A “pureza” da produção artística está também nesta liberdade, neste prazer e na motivação intrínseca que vários artistas foram revelando ao longo da história de arte. Num outro âmbito, também na arte-terapia, a motivação e o prazer são essenciais na produção artística. No entanto, a abordagem que queremos aqui salientar diz respeito ao poder da mensagem visual que poderá ter impacto na própria motivação de quem aprecia a arte. Em vários artigos anteriores explicitámos o nosso entendimento da arte visual como uma forma de comunicação, pois podemos conseguir sintetizar ideias e salientar pormenores da realidade, através de imagens criadas com os diversos meios ou técnicas das artes visuais. Aliás, costuma dizer-se que “uma boa imagem vale mais do que 1000 palavras”, mostrando o poder que as imagens visuais podem ter.
No nosso percurso de produção artística temos procurado sistematizar ideias e conceitos, sintetizando-os através da criação de imagens visuais. Foi nesse sentido que abordámos o conceito de stresse, em particular no livro “Stress approach by Visual Arts” (Jesus, 2013) ou, de forma bem mais resumida, no artigo “O que é o stresse? Resposta através da imagem visual” (Jesus, 2017). Desta vez, pretendemos analisar o conceito de motivação,
xão sobre o próprio processo de criação em artes visuais. Na tela desenhámos um ponto de interrogação, traduzindo a busca da ideia ou do ponto de partida por parte do artista quando confrontado com uma tela em branco sobre a qual irá projectar a sua criatividade. Assim, tal como qualquer investigação em ciência se inicia com uma questão de partida, também a produção artística se pode iniciar com a questão que o artista coloca a
Obra 'Procurando Inspiração – Art Creation' (2009) destacando ainda o impacto motivacional que podem ter algumas obras. Já em 1988, havíamos abordado a Teoria Hierárquica das Necessidades de Maslow, procurando ilustrar a expressão de cada uma das necessidades através de fotografias. Num outro trabalho, “Procurando Inspiração – Art Creation” (2009), centrámo-nos na refle-
si próprio sobre o que irá pintar na tela, motivando-o para a realização da mesma. Uma outra obra que realizámos, procurando ser inspiradora de motivação, intitula-se “Madeira em Desenvolvimento. Homenagem” (2009). Nela ilustramos o esforço dos trabalhadores nas obras realizadas na realização dos túneis que permitiram melhorar significativamente as aces-
Obra 'Homenagem ao esforço e à invenção da lâmpada eléctrica por Edison' (2011)
sibilidades na Ilha da Madeira, tendo sido colocada a frase “Yes, we can!”, de Barack Obama. Em termos de trabalhos cujo conteúdo ilustra o conceito de motivação, destacamos a obra “Homenagem ao esforço e à invenção da lâmpada eléctrica por Edison” (2011), em que procurámos evidenciar a invenção da lâmpada eléctrica incandescente, em 1879, uma das invenções mais importantes da sociedade moderna, que marcou a passagem da Era do Vapor para a Era da Electricidade. No entanto, embora Edison seja universalmente conhecido por esta invenção, em geral não se sabe que foi ele que, em 1932, referiu que “o génio consiste em um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração”. Assim, quisemos, na mesma obra, evidenciar a descoberta da lâmpada eléctrica e a importância da motivação, do esforço e da persistência para atingir objectivos, desenhando uma figura no topo da tela a ter um insight criativo, junto a uma lâmpada que se acende, suportada por outras noventa e nove figuras a correr e a transpirar. As gotas deste “suor” inundam um mar pleno de energia criativa, encontrando-se escrita a frase “Genius is 1 percent inspiration, 99 percent perspiration!”. Este posicionamento é importante para destacar a importância do esforço e da persistência para atingir objectivos e para concretizar o processo criativo, ao contrário da ideia predominante no senso comum, que pressupõe a genialidade como resultado de factores hereditários. Para além da componente do esforço, que expressa a motivação no plano comportamental, também existe a componente vontade, que expressa a motivação no plano cognitivo. Assim, no final de 2017, realizámos o trabalho “Motivação: vontade e esforço (Homenagem ao cientista Einstein e ao poeta Machado)”, encontrando-se na tela a imagem dum cérebro que dá continuidade a um braço musculado, tendo escrito no cérebro a frase “onde há vontade, há um caminho”, do cientista Albert Einstein, ilustrando o plano cognitivo da motivação, e no braço “o caminho faz-se caminhando”, do poeta espanhol António Machado, ilustrando o plano comportamental da motivação. Ambas as frases são do iní-
fotos: d.r.
Obras 'Motivação: vontade e esforço (Homenagem ao cientista Einstein e ao poeta Machado' e 'Secrets for a happy life (Homage to Banksy and Einstein)' (2017) cio do século XX, tendo cerca de um século, mas são intemporais, pelo conteúdo que expressam.
Obra 'Madeira em Desenvolvimento. Homenagem' (2011) As frases encontram-se escritas em continuidade, aproveitando a palavra “caminho”, pois a vontade e o esforço são complementares, representando as duas componentes da motivação. As letras estão escritas ao contrário,
permitindo a experiência de alguma vontade e esforço por parte de quem está a apreciar a obra para perceber o que está escrito. A esta obra associa-se uma outra intitulada “Secrets for a happy life (Homage to Banksy and Einstein)”, em que uma mão segura dois balões, cada um deles com uma frase que constitui um segredo para uma vida com mais qualidade ou mais feliz. As frases são as seguintes: “I don’t know why people are so keen to put the details of their private life in public; they forget that invisibility is a superpower” (“Não sei porque é que as pessoas estão tão interessadas em tornar públicos os detalhes da sua vida privada; esquecem-se que a invisibilidade é um superpoder”), do artista Banksy (2017); e “A quiet and modest life brings more joy than a pursuit of success bound with constant unrest” (“Uma vida calma e humilde traz mais felicidade do que a busca pelo sucesso numa agitação constante”), de Einstein (1922). Esta última frase foi recentemente leiloada por 1,3 milhões de euros. Havia sido escrita por Einstein, na mesma situação em que escreveu a frase antes referida (“onde há vontade, há um caminho”), esta leiloada por 203 mil euros, tendo sido ambas entregues a um funcionário do Hotel Imperial de Tóquio, como gorjeta. Já agora, em 2018, procuremos ser felizes...
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Espaço AGECAL
Na Rota da Escravatura: Usos sociais da memória dos escravos negros no Algarve d.r.
Elena Morán Arqueóloga técnica superior do Município de Lagos; Sócia da AGECAL
Rui Parreira Arqueólogo e museólogo; Funcionário da Direção Regional de Cultura do Algarve; Sócio da AGECAL
Em meados do século XV, a chegada ao Algarve das primeiras cargas de cativos africanos trazidos por mar desde a África atlântica, traficados e vendidos como mercadoria na Europa da Era Moderna abriu um novo capítulo na história da região e do país. Para lá da aversão que suscita a sujeição e o maltrato infligido a esses seres humanos, arrancados à força às suas comunidades de origem e desapossados dos seus haveres materiais, haveria de ter como consequência um encontro e miscigenação de culturas: africanos e afrodescendentes haveriam de impregnar a cultura portuguesa, e esse seu legado constitui, nos nossos dias, um dos mais ricos elementos diferencia-
dores do nosso património cultural comum. A presença de africanos escravizados na sociedade algarvia (10% desta, no século XVI) está amplamente documentada pelos testemunhos escritos: desde o episódio de 1443, do desembarque e venda dos escravos em Lagos relatado por Zurara, até 1761, com a proibição legal do tráfico negreiro em Portugal. Conservam-se às centenas os documentos de posse, as cartas de alforria, os assentos de baptismo e de óbito, os regulamentos municipais e a documentação das várias confrarias de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Presença de que os africanos sepultados entre os séculos XV e XVII, ao arrepio dos cânones, numa li-
O edifício 'Mercado de Escravos' em Lagos xeira urbana, ainda também em Lagos, dão um impressionante testemunho palpável, constituindo, aliás, uma das mais importantes descobertas arqueológicas portuguesas dos últimos tempos, com repercussão internacional. Mas, além desses testemunhos histórico-arqueológi-
cos, é incontornável o legado que africanos e afrodescendentes embeberam na nossa cultura, uma herança centenária que resulta de uma trajectória comum e que não é mais possível branquear. Esse legado e as memórias do tráfico negreiro permitem-nos reflectir sobre as
questões conceptuais específicas da temática da escravatura e gerir essa herança cultural, fazendo dela um mote de criação contemporânea. Ainda, e sempre, em Lagos, a direcção do LAC / Laboratório de Actividades Criativas concebeu um projecto de residências artísti-
cas (que em 2017 teve a sua quarta edição) que procura integrar o processo de criação como forma de discutir a história do tráfico negreiro e da própria cidade, a partir dos lugares de memória da novidade africana e da sua incorporação nas vivências locais, que se prolonga até aos nossos dias. Também, e sempre, em Lagos, o Município dedicou inteiramente às histórias e memórias da "Rota da Escravatura" um dos núcleos do seu Museu Municipal, instalando-o (em 2016) no emblemático edifício conhecido como "Mercado de Escravos" – na verdade, a antiga Vedoria militar. São apenas dois exemplos que demonstram todo o potencial de gestão desse legado cultural que resultou da tragédia do tráfico negreiro mas que nos permite discutir aquilo que significou a escravatura no âmbito do modo de produção capitalista e a sua persistência nos dias de hoje, sob outras formas, bem presentes nas levas de migrantes africanos por todo o mediterrâneo e nos protagonistas em certas explorações agrícolas e nas indústrias do sexo.
Espaço ALFA
Mostra Fotográfica 2018 d.r.
Paulo Côrte-Real Presidente da ALFA
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Em 2018 a ALFA continuará a dar visibilidade ao seu trabalho fotográfico! Para o efeito, a Mostra
Fotográfica - iniciativa com periodicidade mensal -, surge com novos desafios, no sentido de incentivar a exploração fotográfica e fomentar a sua partilha entre os amantes da fotografia. Dado o papel relevante na divulgação e dinamização cultural que a fotografia possui, entendemos o Património como o tema mais pertinente para o mês de Janeiro. Ponha a sua criatividade
em acção e envie-nos as suas fotografias para mostra.fotografica.alfa@gmail.com, identificando o seu nome e número de sócio, caso seja. A fotografia vencedora terá visibilidade nos canais de comunicação da ALFA. Aproveito a oportunidade para salientar que a adesão como sócio da ALFA reveste-se de inúmeras vantagens. Consulte o nosso site: www.alfa.pt
“CONCERTO DE SÉRGIO GODINHO”
As escolhidas, 20 JAN | 21.30 série | Pavilhão de 12, 1994. Multiusos Sépia das/ Raposeira papel. Col. Centro de – Vila do Bispo Arte Contemporânea Graça Morais Artista irá presentear o público com os temas mais representativos da sua carreira com mais de 40 anos
A ALFA dedica a Mostra Fotográfica de Janeiro ao Património “CONCERTO DE CARLA PIRES” 2 FEV | 22.00 | Casa do Povo de Santo Estêvão - Tavira Neste concerto a artista conta com a cumplicidade de Bruno Mira na guitarra portuguesa e André Santos na guitarra clássica
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Cultura.Sul
Letras e leituras
Ponta Gea: um bairro no coração da memória de João Paulo Borges Coelho fotos:
D.R.
Paulo Serra
Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL
Ponta Gea é o mais recente livro de João Paulo Borges Coelho e provavelmente o mais corajoso, assumindo não somente uma narrativa feita na primeira pessoa como também uma perspectiva em que os acontecimentos narrados são filtrados a partir do espaço-memória de infância. O autor, muitas vezes enquanto criança, rememora os lugares que persistem, muitas vezes, apenas na memória e na imaginação de uma cidade inventada. Não posso deixar de assumir eu próprio esta recensão como um levantamento topográfico feito na primeira pessoa, uma vez que quando a Caminho publicou esta obra e gentilmente ma enviou como oferta, estava longe de imaginar que uns meses depois eu próprio estaria a viver ao lado da Ponta Gea, na cidade da Beira, local que ainda recentemente foi notícia, pelas piores razões. O título do livro tem origem no nome de um bairro da cidade da Beira, «com centro nas coordenadas 19º50’47.14”S e 34º50’25.91’E. Composto por quinze textos que se interseccionam, e que podem ser lidos numa sequência cronológica, ou isoladamente, como se se tratassem de crónicas, as memórias do autor correm aqui o risco de ressurgir ficcionadas. Escreve o autor no «Preâmbulo»: «A infância não é um lugar, nem tão-pouco um tempo. O que é ela, afinal? Se tomássemos a imagem das ilhas, estaríamos neste livro face a um arquipélago de episódios em que o núcleo de cada um me fosse imposto com insistente nitidez, mas em que as margens, mais incertas, exigissem um esforço contrário ao de evocar – o esforço da partida.» (p. 11) Para o autor, pelo menos assim se refere no livro, Ponta Gea não se trata de um livro de memórias da infância, mas de um exercício de ficção, de como o mundo era visto a partir dessa idade em que, como escreveu Proust, «se acredita que criamos aquilo que nomeamos». Na linha de autores que João Paulo Borges Coelho admira, como Thomas Bernhard ou W. G. Sebald, o deambular parece associado ao rememorar, e o recontar associado a um relembrar que se reinventa, mesmo que o autor nos apresente recortes de jornais e fo-
Ponta Gea é o 11º romance de João Paulo Borges Coelho tografias que procuram cristalizar essa memória fidedigna. «Se evocar for trazer para a idade adulta, então talvez a infância seja, no seu sentido mais puro, aquilo de misterioso que se nos escapa por entre os dedos quando evocamos, a viagem que nunca chegou a ser feita e por isso resiste incólume à passagem do tempo. A potência daquilo que imaginamos poder ainda vir a ser.» (p. 12) A memória como História Autor já apresentado no Cultura. Sul, João Paulo Borges Coelho nasceu no Porto em 1955, embora por vezes se possa ler que terá nascido em Moçambique. Frequentou o Liceu na Beira e vive em Maputo. Doutorado pela Universidade de Bradford, é historiador, professor catedrático de História na Universidade Eduardo Mondlane e é professor convidado do Mestrado em História de África na Universidade de Lisboa e romancista. Estreou-se na ficção com As Duas Sombras do Rio (2003) e venceu em 2009 o Prémio Leya com O Olho de Hertzog. Ponta Gea é o seu décimo primeiro romance, editado em Portugal pela Caminho e, em Moçambique, com a chance-
la da Editora Ndjira, da Leya. A incógnita está desde logo patente no título. Esse bairro situado na cidade da Beira, na província de Sofala, em Moçambique, é usualmente grafado como Ponta Gêa. Há quem diga que Gea, que o autor opta por escrever sem o acento circunflexo, é o feminino de Geo – Terra. Esta obra resulta assim num documentário, entre as recordações e a reportagem, ou fabricação. Assim que iniciamos a leitura, a prosa revela-se como tendo verdadeiros arroubos poéticos: «É a primeira e mais persistente lembrança: a água como substância da cidade. Uma água quieta, no mangal como nos capinzais, nos tandos de arroz e nos baldios urbanos cuja noite o monótono som dos grilos trespassava; insidiosa também, na onda paciente que escavava a areia grossa e se espraiava até lamber a raiz torturada das casuarinas, enchendo os corvos de maus presságios e de indignação; e avassaladora, nas chuvadas súbitas e no ar carregado que toldava o horizonte e nos pesava, derrotados, sobre os ombros. Uma água cálida onde nadam todos, aqueles de cujo rasto ainda a espaços me vou apercebendo, e os outros, os que vogam em círculos como peixes
aprisionados no aquário do esquecimento.» (p. 13) É a água a substância que tudo rodeia na cidade da Beira e no bairro da Ponta Gêa. No mar que se espraia pela cidade, onde ainda restam canhões apontados, ao longo da linha de costa; no porto que traz vida e comércio; a água que entra pelos canais que atravessam a cidade, e por vezes alagam a estrada; a água que corre dos rios e aflui para o mar, dando-lhe uma cor acastanhada; a água da humidade e de um calor opressivo feito de transpiração e sal. Ou a chuva, quando finalmente decide abençoar os beirenses: «desaba a chuva vertical e com ela a euforia mansa que me invade sempre que chove assim, por soar a fim do mundo» (p. 291). «Tudo nesse tempo era doce e girava ao meu redor.» (p. 292) Ainda que por vezes haja uma certa alternância ou inconstância em termos do plano temporal em que a voz narrativa, assumida na primeira pessoa, se decide situar – «Tudo nesse tempo era doce e girava ao meu redor.» (p. 292) –, o eu da história evoca os acontecimentos, quase sempre, a partir de um tempo presente, como se o passado se voltasse a desenrolar num agora contínuo, como quando evoca as brincadeiras e explorações próprias da infância: «Vamos agora calados, ansiosos por chegar ao areal da praia. Parece ser aqui o coração do mangal. Aos poucos vão surgindo árvores de mpia e grandes nhacandalas que nos fazem sentir ainda mais pequenos e vulneráveis. Todavia, é tarde para recuar. Teríamos de vencer inúmeros obstáculos, desde a vergonha de uma cobardia assim até à insatisfação de uma curiosidade infantil, mas agudíssima. (…) No chão, os buracos dos caranguejos são agora bocas enor-
mes capazes de engolir até ao joelho uma perna distraída, mas felizmente nenhum dos monstros surge para nos interpelar. (…) Está na potência que as coisas pequenas encerram, na possibilidade de se tornarem monstruosas, a força e a magia deste lugar.» (p. 68) E já nessa infância se pressente como o mundo é um espaço maior, também cheio de incerteza e de complexidades nem sempre justas: «Mete medo um silêncio assim. Entramos muito juntos, torneando abrigos de paus e palha (que o são mais do que casas), baixos, como se tivessem sido feitos para gente pequena ou então para fintar o vento das tempestades. As paredes são quase todas de nhacandala grossa, a estrutura dos tectos feita com as estacas mais finas dessa mesma árvore. Cobrem-nos depois com todo o tipo de coisas a que conseguem deitar mão, desde caniços e palha a chapas e tampas de bidão enferrujadas, e plásticos de cores vivas que dão ao lugar um aspecto alegre de mosaico. (…) Os cheiros são os cheiros da pobreza misturados com o cheiro do sal, do peixe, das algas secas e das feridas frescas das árvores. Passamos por tudo isto rapidamente, na ânsia de chegar à praia. É um espaço que não nos diz respeito e que por isso encaramos com fingido desinteresse. Não queremos atrair as atenções.» (p. 71) Há ainda um certo jogo no rememorar conforme o autor-narrador brinca não ser capaz de relembrar tudo, impondo assim limites à memória: «Um tractor sem idade, expelindo um fumo obstinado para o meio do dilúvio, e um som que não conseguia impor-se na natureza e portanto me está hoje vedado recordar.» (p. 292). Mas se a memória por vezes falha ao lembrar, ou porque, segundo o autor, as circunstâncias em que a memória foi feita não permite justamente uma recriação que seria inexacto recordar com sons que não se ouviram nesse instante de outrora, linhas depois já será possível relembrar com exactidão o som de outrora: «e prosseguiu lentamente a descida do monte espalhando um discreto ruído que afinal já recordo, de máquina de costura, um som de agulha alinhavando o rego aberto no tecido crespo da encosta.» (p. 292) Como a própria memória que vai cozendo as linhas do tempo, mesmo quando tem de juntar ficção com realidade. Esse espaço da infância é, aliás, quase sempre, um espaço de confronto com realidades mais sórdidas ou fantásticas, onde não faltam pequenas histórias de roubos, homicídios, cabarés, corpos que dão à costa, e outros prodígios de feira e circo. Fica no fim a sensação de que este livro narra também o percurso e formação do jovem hoje escritor e de que findo o Liceu na Beira novas descobertas se avizinham.
Cultura.Sul
19.01.2018
Espaço ao Património
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Ficha técnica:
O legado do Desporto
Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural fotos: d.r.
Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus
Sónia Picamilho
Técnica Superior do Instituto Português do Desporto e Juventude de Faro
Recuando cronologicamente no tempo, verificamos que existem registos históricos que relatam acontecimentos desportivos desde as mais remotas descobertas arqueológicas. O desporto foi sempre um fenómeno grandioso, talvez porque desde sempre teve a sua essência associada à emoção, sentimento tão peculiar do ser humano. É certo que nos primórdios, a atividade humana se centrou inicialmente na própria sobrevivência da espécie, mas a partir do momento em que se constituíram sociedades surgiu a necessidade de “entreter”, de ocupar os tempos livres dos seus habitantes, de enaltecer as capacidades físicas de uns, de repudiar as fraquezas de outros, de venerar ídolos nas mais diversas áreas. “Desportivizou-se” a sociedade. Com o tempo o desporto tem vindo a mudar e a corresponder às ânsias de uma sociedade cada vez mais competitiva, egoísta, desenfreada e muitas vezes incapaz de viver o desporto na sua essência. O desporto tornou-se um fenómeno social e mundial e o seu legado é enorme, quer em termos de objectos produzidos, de património edificado, de equipamentos construídos, da tecnologia empregue, quer em termos de património imaterial através das memórias que ficam depois dos eventos desportivos. O desporto teve desde sempre uma conotação positiva, daí a sua popularidade. A prática desportiva federada popularizou um vasto número de modalidades desportivas e com elas surgiram verdadeiras indústrias que lhes deram outro poder. As mil e uma coisas boas do desporto, trouxeram outras mil e uma coisas más, novas ameaças e desafios. Os média divulgam os nossos heróis de forma tão rápida, que atualmente assistimos em direto e praticamente em tempo real às suas grandes vitórias e derrotas, compramos os seus equipamentos, partilhamos as suas emoções, a sua história, rimos e choramos com eles. Os heróis do desporto tornam-se património local, nacional e mundial, estão um pouco por todo o lado, fazem parte da nossa história, da nossa identidade, provocam cerimónias de estado, de reconhecimento público e assim a conotação positiva do desporto perdura primeiro na nossa memória e depois na nossa história coletiva. O seu legado traduz a história do nosso país, pequeno em tamanho mas grande em património, força de vontade, querer e determinação. Atualmente o tema património está na moda, o fado foi considerado património cultural imaterial
• Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves
Os heróis do desporto tornam-se património local, nacional e mundial da humanidade em 2011, em 2014 seguiu-se o cante alentejano e mais recentemente os bonecos de Estremoz (2017). Mas o “desporto” é património? O desporto produz património material e imaterial, mobiliza massas, desperta ódios e paixões, deixa a sua marca um pouco por todo o lado, marca instituições, países e o Mundo. Os Jogos Olímpicos são um bom exemplo do poder que o movimento desportivo pode ter. As ruínas de Olímpia onde decorreram os primeiros Jogos Olímpicos à semelhança do Coliseu de Roma (então Arena), os cavaleiros, os torneios ou as justas hoje em dia bem reproduzidas nas Festas e Feiras Medievais que
nossa história, exemplos marcantes que nos ajudam a compreender a nossa identidade. O associativismo produz património? O associativismo está na base da pirâmide desportiva. Se efetuarmos uma pequena pesquisa pelo mundo virtual, iremos constatar que praticamente todas as localidades sejam grandes ou pequenas têm um clube ou associação com o seu nome ou semelhante. Ora, querem um melhor exemplo de como o desporto está integrado e bem enraizado na nossa sociedade? De como os troféus conquis-
O desporto tornou-se um fenómeno social e mundial decorrem de norte a sul do país, durante todo o ano, e outras tantas construções, registos e objectos chegaram aos nossos dias bem preservadas e permitem-nos relembrar e imaginar a glória das manifestações desportivas da antiguidade. Estes são apenas exemplos do património que o desporto criou ao longo da história, da
tados, as cores dos seus equipamentos, os seus emblemas, representam a nossa identidade cultural e o nosso património histórico? De como o orgulho das gentes locais se manifestam quando questionamos um habitante sobre o seu clube e ele consegue identificar rapidamente os seus ídolos dentro do clube. Os museus
criados sobre o pretexto desportivo, os prémios como forma de reconhecimento, os testemunhos escritos, os testemunhos áudio, as imagens, os estádios construídos, os símbolos criados, são tantos os exemplos do poder do desporto e do seu património. Os clubes e associações foram e são pólos importantes de socialização das populações locais, são agentes mobilizadores inquestionáveis muitas vezes movidos por motivações intrínsecas de dirigentes que “por amor à camisola” dão a cara e constroem um legado que passa de geração em geração. Construir sedes, campos, conquistar troféus, são representativos da grandiosidade e da vontade das suas gentes, parte da sua memória coletiva e identidade cultural. Mas o fenómeno desportivo é muito abrangente, para além da prática desportiva federada, regular e de carácter competitivo abrange a prática desportiva informal. O mais recente aliado do movimento desportivo chama-se “saúde” e as motivações pessoais dos atletas são tão diversificadas como as motivações dos atletas de alta competição. Surgem novos grupos, novas modalidades e atletas informais por todo o país, o movimento desportivo surge agora noutra vertente, sem compromissos a não ser os pessoais. Promovem-se encontros entre pessoas, amizades e socialização, aquela que remonta à origem e criação das primeiras colectividades. O Associativismo está em metamorfose? Somos um país pequeno mas tão grande em feitos e património desportivo! Daqui a alguns anos o Eusébio, a Rosa Mota, o Nelson Évora, o Cristiano Ronaldo e as selecções nacionais ficarão para a história como memórias. Marcaram épocas, gerações, criaram modas, troféus, deram nome a ruas, a aeroportos, a museus, criaram história, história que é preciso preservar e passar às novas gerações. O deporto é um fenómeno poderoso! Quem serão os novos heróis nacionais? Que legados nos irão deixar? Aguardo com expectativa o futuro…
• Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Na Ágora: Adriana Nogueira • Quotidianos poéticos Pedro Jubilot • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Colaboradores desta edição: Elena Morán, Rui Parreira, Sónia Picamilho Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve
facebook: https://pt-pt.facebook.com/postaldoalgarve/ Tiragem: 5.168 exemplares
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Cultura.Sul
Marca d'água
A Cultura de Paz e o Ano Europeu do Património Cultural fotos: d.r.
assinada em 2005, ratificada por Portugal em 2009 e passou a ser conhecida por Convenção de Faro. A Convenção de Faro Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
luisa.algarve@gmail.com
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Na primeira crónica de 2018, gostaria de começar por relacionar dois conceitos que estarão em destaque ao longo deste Novo Ano: Cultura de Paz e Património Cultural. Felizmente, existe cada vez mais a consciência de que uma cultura de paz começa pela valorização e pelo cuidado relativamente ao património cultural. Quando a memória e o património cultural e histórico ajudam a criar bases de entreajuda e incentivam o diálogo intercultural, incluindo a melhoria da qualidade de vida, com o uso sustentável dos recursos culturais do território, o património cultural torna-se factor de paz e de cooperação. O coordenador nacional do Ano Europeu do Património Cultural, Guilherme d’Oliveira Martins, referiu que este Ano Europeu permitirá compreender que “a protecção do património cultural, no contexto de uma identidade aberta e plural, e a sua ligação à qualidade da criação contemporânea podem corresponder a uma visão integrada do desenvolvimento, capaz de preservar uma cultura de paz”. Quando os conceitos se cruzam e entrecruzam tão bem, temos de acreditar que este ano trará a troca de boas experiências com o reconhecimento do património inerente às mais variadas tradições culturais e a transmissão desse património às novas gerações. Creio que este Ano Europeu do Património Cultural poderá ter um sabor especial para alguns algarvios. Refiro-me ao facto de ter sido assinada em Faro esta Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o Valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea. Foi
Esta Convenção é considerada um instrumento inovador de grande importância, onde pela primeira vez se reconhece que o Património Cultural é uma realidade dinâmica, envolvendo monumentos, tradições e criação contemporânea. Neste documento é referida a importância da diversidade cultural e o pluralismo, que têm de ser preservados contra a homogeneização que cada vez mais se verifica. A Convenção visa prevenir ainda os riscos do uso abusivo do Património, desde a mera deterioração a uma má interpretação do próprio património, o que pode levar a conflitos. Há algumas decisões e práticas em relação ao património que geram conflitos, principalmente se estiver em causa a preservação. A cultura de paz e o respeito das diferenças obriga, no fundo, a compreender de uma nova maneira o Património cultural como factor de aproximação, de compreensão e de diálogo. É por isso que este será um desafio para que as políticas culturais articulem as iniciativas do Estado e da sociedade, “liguem a protecção
É possível fazer um mundo melhor do património, a aprendizagem séria, a educação artística, a liberdade criativa e a responsabilidade cívica”. Compreender o Património como factor de inovação e de criativida-
Convenção de Faro sobre valor do Património Cultural foi assinada nesta cidade em 2005 de, de paz e de democracia, significa partilha, significa aprender a ser com os outros. Voltando a citar Guilherme d’Oliveira Martins: “o património cultural num sentido amplo, poderá levar-nos a compreender a realidade humana, não como imagem idílica, mas como encruzilhada de vontades e de dúvidas.” A Cultura de Paz A afirmação de uma cultura de paz, nestes últimos anos, com base nos discursos adoptados pela ONU e UNESCO não significa que não exista por outro lado uma cultura de violência. Deparamo-nos com ela a cada dia. É importante fazer uma reflexão sobre a paz como aspiração humana profunda, pois todos queremos a paz, connosco mesmo e com os outros. Assim sendo, precisamos de interiorizar uma cultura de paz que suponha uma educação para o reconhecimento da pluralidade e da diferença. E que exija ao mesmo tempo uma educação intercultural que promova o diálogo entre diferentes grupos e culturas. A identidade de um povo passa pela vontade de se manter, de ser diferente sem perder a essência, de
“TRAÇOS E FORMAS”
As escolhidas, Até 9 FEV | EMARP série de 12, 1994. Sépia s/ papel. Col. Centro de Exposição de pintura de Meire Gomes, que possuiGraça Morais Arte Contemporânea formação como educadora de infância, artista plástica, teatro amador, cenógrafa e actriz, tendo realizado vários trabalhos nas diferentes áreas
fazer um mundo melhor a cada dia! O Dia Mundial da Paz (instituído por sugestão do Papa Paulo VI, no final dos anos 60), que é celebrado no primeiro dia de Janeiro, é sempre marcado por reflexões que impelem à acção. Gostaria de partilhar uma frase várias vezes mencionada pelo Papa Francisco: “Façamos da não-violência activa o nosso estilo de vida”. O conceito de não-violência foi usado por Gandhi, Martin Luther King e Nelson Mandela. Todos eles são exemplo de como a não-violência é caminho para a paz. Martin Luther King afirmou que “a não-violência é uma arma poderosa e justa. Realmente, é uma arma única na história, que corta sem ferir e enobrece quem a usa”. Cimeira das Nações Unidas sobre a Paz realiza-se em 2018 A Cimeira Global sobre a Paz, organizada pelos membros da ONU, representa um marco importante na temática da Paz. O tema escolhido foi: "Cimeira de Paz Nelson Mandela". A iniciativa será uma ocasião para assinalar o 100º aniversário do nascimento do histórico líder sul-africano, e vai realizar-se no dia 17 de Setembro, na Assembleia Geral das Nações
Unidas, em Nova Iorque. A ONU através de Cimeiras, Dias Internacionais, Semanas Internacionais, tal como Anos Internacionais e Décadas Internacionais, vai relembrando temáticas para reflexão e acção. De salientar uma das Décadas em vigor até 2022: a Década Internacional para Aproximação de Culturas. Neste mundo globalizado e globalizante, é urgente trazer ao de cima as aprendizagens de valores. É a partir desses alicerces que se põe em prática uma cultura de paz e à medida que essa cultura vai sendo cimentada impele a uma cidadania mais activa. Assim, a construção de uma cultura de paz requer uma prática diária com base em valores de paz, de liberdade e de responsabilidade. Uma prática que promova o pensamento crítico e a formulação de propostas para uma sociedade mais activa, onde se inclua a defesa do património. Bibliografia: Francisco, Maria Luísa. (2006). Agenda da Paz. Lisboa: Editora Paulinas Martins, Guilherme d’Oliveira. (2009). Património, herança e memória. Lisboa: Gradiva
“MÚSICA NAS IGREJAS” 20 JAN | 18.00 | Igreja da Misericórdia - Tavira Recital de guitarra de Josué Nunes, que já se apresentou a solo e em várias formações de música de câmara em todo o país e no estrangeiro
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Cultura.Sul
Na Ágora
A importância dos nomes fotos: d.r.
Adriana Nogueira Classicista;
Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com
Durante muitos anos, as únicas leituras que fazia em inglês eram apenas as exigidas pelos trabalhos académicos, livros e artigos de que precisava para as minhas investigações. Achava que não conhecia suficientemente bem aquela língua para me atrever a ler ficção. Um dia, tendo visto à venda, numa livraria inglesa, The importance of being Earnest, a minha peça favorita de Oscar Wilde (da qual conhecia também várias versões teatrais e cinematográficas), ganhei coragem e comprei. Pelo menos, sabia que não iria perder-me, pois conhecia muito bem o texto. A partir daí, passei a preferir ler em inglês os autores de língua inglesa. O título que dei à página de hoje reflete uma pergunta que me surge, por vezes, por razões diversas: quão importantes são os nomes? Como fazer para que não se percam numa tradução? Toda esta peça de Wilde se desenrola em torno da homofonia entre o adjetivo earnest (sincero) e o nome próprio Ernest. Lembro-me de ter lido várias traduções, nenhuma dela dando completamente conta do jogo fonético entre estas palavras, mas tentando arranjar adjetivos que, em português, além de terem um sentido próximo de earnest (sincero, sério, honesto), fossem também nome próprio (ou apelido, em algumas das soluções). Tenho uma versão, de António Pedro, que escolheu Quanto importa ser Leal; outra, de Isabel Morna Braga, que preferiu A importância de ser Amável; uns traduziram por A importância de ser Severo; outros ainda por A importância de ser Honesto. Na peça, a jovem Cecily afirma «my ideal has always been to love some one of the name of Ernest» («o meu ideal de sempre foi amar um homem que se chamasse Amável» –
A peça de Oscar Wilde na tradução de I.M. Braga), pensando que o homem que ama (e que a ama) se chama assim; ele, que não tem esse nome (ou julga não ter, mas não vou revelar o final), ao perceber a importância que ela dá a ser/chamar-se Amável (ou Leal, ou Severo), tenta convencê-la de que há muitos outros nomes igualmente bons, porém não a consegue persuadir. O jogo de palavras funciona melhor na oralidade, onde as maiúsculas que distinguem os nomes próprios não existem e a frase final pode ser entendida nos dois sentidos que a escrita condiciona: «descobri agora, pela primeira vez na minha vida, a extraordinária importância de ser Amável!». Os nomes são considerados importantes, quer o nosso, que nos distingue, quer o da nossa família, que nos identifica e nos integra num grupo. Na literatura, há muitos exemplos desta importância. Na Ilíada de Homero, esse poema primordial da literatura europeia, que narra o final da Guerra de Troia, a resposta à pergunta «Quem és tu?» (6.123), que o herói grego Diomedes faz a Glauco (aliado dos troianos), provoca um dos momentos mais poéticos da obra: «por que queres saber da minha linhagem?/ Assim como a linhagem das folhas, assim é a dos homens./ Às folhas, atira-as o vento ao chão; mas a floresta no seu viço/ faz nascer outras, quan-
do sobrevem a estação da primavera:/ assim nasce uma geração de homens; e outra deixa de existir» (6.145-149). Um simples pronome indefinido Um outro momento ho-
os seus companheiros estão presos na caverna do gigante Polifemo e este lhe pede que diga o seu nome, ao que Ulisses responde: «Ninguém é como me chamo. Ninguém chamam-me/ a minha mãe, o meu pai, e todos os meus companheiros.» (9.366-7).
Glauco e Diomedes. Vaso ático («pelike»), de figuras vermelhas, do séc. V a.C. mérico, desta vez na Odisseia, o poema que narra o regresso de Ulisses a Ítaca, acontece quando o herói e
Esta astúcia de Ulisses provoca um momento de cómico de linguagem: depois de ficar cego, Polifemo grita
tanto que os outros ciclopes acorrem à gruta, perguntando «“Que se passa, Polifemo, para gritares desse modo/na noite imortal, tirando-nos o sono?/ Será que algum mortal te leva os rebanhos,/ ou te mata pelo dolo e pela violência?”// De dentro da gruta lhes deu resposta o forte Polifemo/ “Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência!”». Esta resposta é incompreendida pelos outros, que se afastam, e Ulisses comenta, na sua narrativa «E ri-me no coração,/ porque os enganara o nome e a irrepreensível artimanha.» (9.403-8; 413-4). Na literatura portuguesa, temos um momento igualmente famoso. Na peça de Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa, quando o aio de D. João reconhece a voz do seu senhor, pergunta: «Romeiro, quem és tu?». D. João, descobrindo-se, responde: «Ninguém, Telmo; ninguém, se nem já tu me conheces» (Cena V). Porque o nosso nome deixa de fazer sentido quando perdemos a identidade ou esta não é reconhecida pelos outros. Daí que uma mudança de identidade seja sempre acompanhada por uma mudança de nome, ou o vincar de uma personalidade se faça acompanhar de um cognome (como no caso dos reis. Por exemplo, D. Dinis, o Lavrador). Em português, temos gentílicos que passaram a apeli-
do: de Bragança, de Travassos, etc. Na Grécia antiga, não havendo apelidos, os indivíduos eram conhecidos pelo seu nome, seguido do nome do pai e/ou do da terra onde tinham nascido. Assim se distinguia Xenofonte de Atenas (o historiador) de Xenofonte de Éfeso (o escritor de ficção), ou Aristófanes de Atenas (o comediógrafo) de Aristófanes de Bizâncio (o bibliotecário de Alexandria). Para designar o patronímico, usava-se frequentemente o elemento -id-: Zeus, filho de Crono, é chamado de Crónida; Agamémnon e Menelau, filhos de Atreu, são conhecidos como os Atridas; Aquiles, filho de Peleu, é o Pelida. Em Portugal, há apelidos que também começaram por ser indicadores do nome do pai: Fernandes – filho de Fernando; Mendes – filho de Mendo; Bernardes – filho de Bernardo; e tantos outros. Atualmente, perdemos essa noção, na nossa e em outras línguas onde um fenómeno parecido ocorria: hoje, um inglês chamado Johnson não é, necessariamente o filho (son) de alguém chamado John. Os nossos nomes Na hora de escolher o nome dos filhos, devemos ter sempre muito cuidado, porque há nomes tão cheios de história que pode ser desafiante carregá-los a vida toda. Termino com um excerto do conto «As Noites da Íris Negra», de Enrique Vila-Matas: «– E que espécie de homem é Uli? – perguntei. – Ulisses – disse Catão. – E uma nossa irmã, que já morreu, chamava-se Medeia. Os nossos pais levaram longe de mais, como veem, o seu amor pela antiguidade clássica. (…) Os nomes marcam muito a vida das pessoas (…). Aquiles ou Diomedes ficavam-lhe melhor. Ter-lhe-iam inculcado um espírito pretensioso, guerreiro, orgulhoso. Mas não. Tiveram que chamá-lo Ulisses, e isso creio, ao fim e ao cabo, foi-lhe fatal.» (In Suicídios Exemplares, p.90. de, Assírio & Alvim, tradução de Miguel Castro Henriques). Por vezes, temos de fazer as pazes com o nosso nome. Eu já fiz.
Última Quotidianos poéticos
Fernando Cabrita fotos: d.r.
gida por Manuel Francisco Reina.
Pedro Jubilot
pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt
Nascido em Olhão em 1954, Fernando Cabrita é advogado de profissão. A escrita, nomeadamente a poesia é uma das suas maiores paixões. Tem colaboração dispersa em jornais e revistas e integra várias colectâneas de poesia. Edita desde 1980, e nesse ano, com ‘Os Amantes Em Silêncio’ ganhou o primeiro de vários prémios que tem obtido desde então. Os seus mais recentes livros são: - Le Deuxième Livre de la Maison - Poesia - Marrakesh (bilingue português-francês), Abril 2017; - El Sermón de La Montaña y Oda de Viaje - Poesia – Ilhas Canárias, 2017; e Três Odes – Poesia – Portugal, 2017. É o organizador do Festival Internacional Poesia a Sul, Olhão, que vai entrar na sua 4ª edição anual. Como é o teu quotidiano com a poesia da tua vida? Da tua poesia? Procuro – às vezes com dificuldade – fazer conviver o advogado com o escritor. Manter a vida profissional, que é densa, sem perder a capacidade de aprofundar a minha actividade poética e essencialmente as leituras de poesia. Ler, como forma essencial de poder escrever. Cada vez que oiço poetas a declarar que não lêem mais do que os seus contemporâneos, que não lêem escritores ”passados”, dá-me arrepios. E acho-os mais dignos de pena do que de irritação. Como acontece a poesia nos teus dias, ou como a fazes acontecer? Escrevo sem agenda prévia. Ou a poesia surge e impõe-se-me, ou não ando aí pelos cantos à procura dela, à cata de “inspirações”. Não escolho horas nem locais. Na verdade, sinto que quando a poesia surge, é ela que escolhe. O que me cabe é estar aberto, intelectual e sentimentalmente, para não me opor a isso; nem querer estabelecer horários ou rituais para que se faça poesia a horas certas, como uma obrigação, ou uma agenda, ou um Borda d’Água. Menciona alguns dos teus livros/ poemas preferidos.
A poesia é uma das maiores paixões do advogado Fernando Cabrita Dois livros: Uivo, de Allen Ginsberg; A Noção do Poema, de Nuno Júdice. Depois há poemas: Captain, o my Captain, de Walt Whitman, ou Tabacaria, de Álvaro de Campos. E outros, claro. Autores que gostas ou que possas dizer te inspiram a escrever? Um poema no meu livro Le Deuxiéme Livre de La Maison, que em Abril passado se publicou em Marraquexe e que se intitula Salutation à Mes Maitres (Saudação aos meus Mestres) presta homenagem aos que seguramente me influenciaram e vêm influenciando na escrita poética, nomeando-os e agradecendo-lhes essa influência. Éntendo este poema como uma acto de justiça e de reconhecimento porque é a expressão poética daquilo que desde sempre refiro como darwinismo literário, ou seja, essa noção de que nós escrevemos aos ombros de quantos nos antecederam, bebendo e fruindo dessas suas escritas e da larga influência que elas deixaram em nós. E se alguma originalidade temos na nossa obra ou naquilo que escrevemos, ela está em sermos capazes de pegar na lição desses mestres, nos ecos das suas vozes e, sobre elas, acrescentar de algum modo uma pequenina parcela nossa, uma pequenina sonoridade da nossa própria voz. É um diálogo com os que nos antecederam, em
que os ouvimos e queremos, com eles e junto a eles, fazer-nos ouvir. É assim toda a literatura. Os nomes estão lá, no poema…. Caneta e papel avulso, máquina de escrever, que material usas para escrever, como é o processo material da tua escrita? Como escrevo sem plano prévio e sem hora marcada, não posso dar-me ao luxo de escolher o meio material para essa prática. É o que estiver à mão no momento em que sinta a necessidade (e tenha a oportunidade e possibilidade, que nem sempre são contemporâneas da necessidade) de escrever. Por isso tenho textos em vários cadernos, ou em folhas soltas, escritos manualmente, também sem qualquer caneta específica. É a que estiver disponível e me saia da mochila quando a busco. E também os tenho em ficheiros de computador, se acaso estou ao computador quando surge a elaboração do poema. Vícios, manias e segredos contáveis relacionados com a tua escrita … Não sei se serei a melhor pessoa para falar de vícios ou manias na minha escrita. Penso que cabe a quem leia detectá-los, se os houver, e expô-los. É esse, aliás, um dos papéis do leitor, figura que tantos escritores alegadamente desprezam ao declarar
que não escrevem para ninguém, que escrevem para si próprios ou para o futuro ou lá para o que quer que seja, sob a alegação de que os leitores actuais os não merecem. Ora, a poesia faz-se também para os leitores, como a outra face do processo criativo. Que livros de poesia estás a ler/ leste recentemente? Creio-me um leitor compulsivo de poesia. Agora estou a reler um livro, de um só poema, de Antonio Orihuela, editado em 2007 e intitulado Que el Fuego Recuerde Nuestros Nombres. É um longo e belo texto poético, claramente influenciado na temática, na forma e na filosofia pelos poetas da beat generation, É Neal Cassidy, aliás, quem surge na capa ao volante do seu autocarro. Estou simultaneamente a ler diversos autores arábigo-andaluzes que estão compendiados por Emílio Garcia Goméz desde 1939; e os que mais recentemente constam na antologia Poesía Andalusí, coli-
Queres falar sobre a tua recente coordenação dos encontros Poesia A Sul em Olhão ? O Poesia a Sul foi uma experiência bem sucedida, até agora. Obviamente que só o apoio que desde sempre tem sido dado pelo Município de Olhão e pelo Presidente António Pina permite esse sucesso que, espero, continue. Em três anos conseguimos atingir um patamar de reconhecimento não só nacional, como era a nossa primeira aposta. Tornámo-nos parceiros de outros Festivais Internacionais de Poesia em Marrocos e Espanha, editámos os Cadernos de Poesia onde colaboram escritores de todo o mundo, o nome de Olhão e do Poesia a Sul aparecem referidos em diversa imprensa, rádios, blogs, páginas literárias e programas na Irlanda, no México, no Porto Rico, na França, no Chile, no Vietnam, na Turquia e em outros mais países. Sei que há gente que entende que os Festivais de Poesia não têm qualquer utilidade; que são como que uma feira de vaidades ou uns encontros de amigos. Na verdade, a poesia faz-se na intimidade de cada um, no silêncio de cada autor recolhido em si mesmo. Mas a divulgação da poesia faz-se publicamente, em livros, em jornais, em letras de canções, em recitais, em festivais, em encontros literários. E os Festivais de Poesia cumprem objectivamente essa sua missão de divulgar o trabalho criativo dos autores, de os trazer ao público, de abrir portas ao conhecimento, à experiência, à fraternidade. Pela poesia - e pelos encontros de poetas- se constroem pontes onde muitas outras actividades humanas tantas vezes apenas constroem muros e fomentam rivalidades e ódios. O Poesia a Sul tem procurado também ter esse papel; e demonstrar internacionalmente Olhão como um centro de irmandade poética onde escritores do mundo se encontram e convivem.
Poema de um livro ainda em fase de escrita. E sem título. À flor do junco sucumbíamos. Naquele inverno que passou confessaste-me a tua dor. Subimos a uma montanha onde não havia neve.Nada agitava a flor do junco a rosa. À flor das vinhas sussurrávamos. O quê não lembro. Recordações fragmentos síncopes. E essas coisas que dizíamos eram belas e antigas.