Cultura.Sul 121 9NOV2018

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

NOVEMBRO 2018 n.º 121 0.000 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

MISSÃO CULTURA •••

PROJETO MAGALHÃES: Indústrias culturais e criativas “A cultura como impulso ao desenvolvimento económico sustentável e à criação e difusão de uma oferta cultural inovadora” d.r.

Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade |Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Colaboradores desta edição: Hilda Bárbara Maia Cezário, Luís Campos Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 0.000 exemplares

A região ficará dotada, até final de 2021, de um Centro Magalhães com pólos em vários pontos do Algarve interior •

Direção Regional de Cultura do Algarve

O Alentejo, o Algarve e a Andaluzia efectuaram uma candidatura conjunta com vista à consolidação de um ecossistema empreendedor que permita impulsionar a criação e a difusão de uma oferta cultural inovadora fundamentada nas raízes históricas, patrimoniais materiais, imateriais e culturais comuns, entre outras, com enfoque nas figuras dos descobridores e na comemoração de Magalhães. No passado mês de outubro, foi aprovada a candidatura do Projeto MAGALHÃES ICC ao programa Interreg V. O projeto visa o estabele-

cimento de uma rede de cooperação transfronteiriça para a criação de um Centro de Empreendimento de Industrias Criativas e Culturais - Centro Magalhães. A presença de um tecido produtivo de baixa densidade nos territórios com necessidade de intervenções destinadas a impulsionar a criação de iniciativas empresariais sustentadas (micro, pequenas e médias empresas) no setor das indústrias culturais e criativas, é o motor deste projeto dirigido à consolidação de um ecossistema empreendedor que permita impulsionar a criação e a difusão de uma oferta cultural inovadora para o Alentejo - Algarve – Andaluzia, fundamentada nas raízes históricas, patrimoniais materiais, imateriais e culturais comuns, entre outras, com enfoque nas figuras dos descobridores, na comemoração de Magalhães.

O Projeto MAGALHÃES_ICC envolve a criação de infraestruturas empresariais, programas de incubação/viveiro de empresas, de capacitação empresarial e setorial para empreendedores com o apoio e formação de gestão empresarial, projetos culturais, financiamento, planos de empresa, ateliers geradores de ideias, de capacitação específica em diversos setores das artes, do património, design, editoriais, da animação turística, dos ofícios, entre outros e um programa de fomento e difusão de projetos conjuntos. Com um investimento global previsto, no conjunto dos parceiros previsto de 27 milhões e 333 mil euros a executar até 2021, o projeto tem como parceiros a Gerência de Urbanismo do Ajuntamento de Sevilha, Instituto de Cultura e Artes de Sevilha, Andalucía Emprende - Fundación Pública Andaluza, Agencia Andaluza

de Instituciones Culturales, Universidade de Évora, Direção Regional de Cultura do Alentejo, Direção Regional de Cultura do Algarve, Comissão de Coordenação de Desenvolvimento do Algarve, Comunidade Intermunicipal do Algarve (AMAL), Cooperativa para o Desenvolvimento dos Territórios da Baixa Densidade(QRER), Associação Portuguesa de Treino de Vela (APORVELA). Com este programa a região do Algarve estará dotada, até ao final de 2021, de um CENTRO MAGALHÃES com pólos em vários pontos do Algarve interior: Querença, Alcoutim, Espaço Tor, Loulé Criativo e Casa Poeta João de Deus. A participação da Direção Regional de Cultura do Algarve no MAGALHÃES ICC, tem enfoque na dinamização desta rede de suporte, através da investigação e criação de

conhecimento científico e de disponibilização de conteúdos associados aos Descobrimentos e aos Lugares de Globalização (Sagres, Aljezur, Lagos, Monchique e Silves), promovendo oficinas de trabalho conjuntas com os investigadores e os criadores do espaço transfronteiriço, e com a realização de eventos culturais, para desenvolvimento de propostas inovadoras de produtos e serviços e a concepção de produtos de merchandising regional com base nas artes e ofícios. Esta base de conhecimento partilhada contribuirá para a elaboração do documento “Nichos de actividade empresarial inovadora” relacionado com o reforço do valor do património cultural comum e para a criação de novos produtos, serviços e merchandising "Lugares de Globalização" e a elaboração de livro-guia "Lugares de Globalização". l


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MARCA D'ÁGUA •••

Cultura e Santidade - II

Maria Luísa Francisco

Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

luisa.algarve@gmail.com

Os céus dentro de mim são tão vastos como os que estão por cima de mim. Etty Hillesum (1914-1943) Começo com uma frase da mística em destaque na crónica do mês anterior, porque não me canso de a reler e de me surpreender. A beleza do que escreve no meio da dor, a capacidade de viajar no seu mundo interior, como forma de lidar com o horror do holocausto e deixar escrito um dos maiores testemunhos humanos e espirituais do nosso tempo, é algo arrebatador. No meio do maior abismo do século XX, ela não revela nem ódio, nem res-

sentimento, lança-se em voo livre nos braços de Deus e escreve: “vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares”. Não é considerada uma santa, mas é uma mística, porque foi uma mulher com sede do Absoluto e através do seu sentir poético e da sua apurada sensibilidade aproximou-se do Divino. No seu diário partilha diálogos extremamente belos com Deus. Etty Hillesum e Edith Stein são duas grandes intelectuais do século XX, que para além de serem judias, morreram em Auschwitz. Viram-se uma única vez. Etty refere no seu diário que viu Edith e a irmã no campo holandês de Westerbork, precisamente antes da deportação para o campo de extermínio. A anotação no diário é muito breve, provavelmente não trocaram palavras, só os olhos e os rostos falaram!

Há um ensaio de Cristiana Dobner, intitulado O rosto. Princípio da Interioridade em que a autora imagina e descreve o que Etty e Edith teriam visto no rosto uma da outra. Reconstruiu o que os rostos disseram. “Um olhar que, sobretudo num momento tão dramático, sem dúvida era capaz de ler dentro, de captar o significado essencial daquele olhar-se recíproco”.

Edith Stein - de filósofa e discípula de Husserl a Santa Desde muito cedo que comecei a ler hagiografias (descrição da vida dos santos). A primeira que li foi de Santa Teresa de Lisieux, depois Santa Teresa d’Ávila, São Francisco de Assis, entre outros, e só mais tarde li Edith Stein. Curiosamente no mesmo ano em que comecei a dar aulas na Universidade. Chamou-me a atenção uma santa que foi profundamente intelectual e académica. Foi educada na religião judaica, teve uma crise de fé e seguiu um percurso agnóstico. A forte transformação do percurso de vida, tal como a sua fé e coragem, impressionou-me muito. Edith frequentava na Universidade de Göttingen o círculo intelectual liderado por Husserl (seu orientador de doutoramento), que agregava pensadores de renome como Martin Heidegger e Max Scheler. Foi uma das primeiras mulheres a doutorar-se em Filosofia na Alemanha. Um dia leu a autobiografia de Santa Teresa d'Ávila (1515-1582) e a sua vida mudou radicalmente. Esta leitura teve um impacto profundo e levou-a a converter-se

ao catolicismo, exercendo intensa actividade no meio católico, como professora, conferencista, tradutora e escritora. Ao mesmo tempo tornou-se cada vez mais contemplativa e mais despojada. A contemplação, como refere o Padre Tolentino de Mendonça, “não é uma sabedoria onde nos instalamos: é antes uma forma de exposição desarmada do olhar, uma colocação sem reservas, uma aprendizagem sempre a ser refeita, um despojamento dos porquês face aos instantes.” Em 1933, leva a sua conversão às últimas consequências e tornou-se freira, entrando para a austera Ordem das Carmelitas Descalças. Na clausura, escreveu o seu livro mais importante, Ser Finito e Ser Eterno, no qual procurou aproximar as filosofias de Husserl e de São Tomás de Aquino (1225-1274). Foi capturada pelos nazis quando foi do Convento na Alemanha para outro na Holanda, onde estava a sua

irmã. Foram enviadas para Auschwitz, onde morreram numa câmara de gás. Edith tinha 50 anos. É habitual as Irmãs Carmelitas optarem por um outro nome, que tenha a ver com a sua vivência espiritual e Edith escolheu este simbólico nome: Teresa Benedita da Cruz. . . A sua última obra intitulada A Ciência da Cruz ficou inacabada…ou talvez a tenha acabado de corpo e alma na sua cruz, a câmara de gás! Em 1998, a mártir e filósofa foi canonizada pelo papa João Paulo II, precisamente como Santa Teresa Benedita da Cruz, padroeira da Europa, pelo contributo cristão que deu não só à Igreja Católica, mas especialmente à sociedade europeia através do seu pensamento filosófico. A sua obra é estudada por investigadores de todo o mundo pelos seus contributos originais na área da filosofia, antropologia, psicologia, pedagogia e fenomenologia. Continua a ser inspiradora pela dimensão mística e por dar voz ao mais profundo de nós! l dr

FILOSOFIA DIA-A-DIA •••

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

Têm os queridos leitores e participantes do Café Filosófico insistentemente pedido para aprofundar temas de filosofia oriental. Muito me compraz satisfazer este desejo, permitindo-me assim falar de Tara, a versão feminina de Buda, a quem os tibetanos consideram “mãe de todos os Budas”. De acordo com a filosofia budista existem 21 emanações de Tara, cada uma de sua cor e com características específicas. Hoje falarei apenas da Tara Verde, conhecida como Buda da Actividade Iluminada. Ela supera obstáculos e salva os seres de situações perigosas. Tara significa precisamente

“aquela que salva”. A sua compaixão para com os seres vivos e o seu desejo de os salvar do sofrimento diz-se ser ainda mais forte do que o amor de uma mãe pelos seus filhos. A Tara Verde é representada com um brilho transparente e radiante como a mais pura esmeralda e sorri pacificamente. A sua mão direita repousa no joelho direito, enquanto a mão esquerda segura com o polegar e o dedo anelar o caule cuja flor azul, completamente desabrochada, se situa ao nível do ouvido esquerdo. Um disco lunar de tom alaranjado irradia da sua cabeça formando um círculo a partir da base dos seus ombros. Veste uma saia de tecidos azuis e alaranjados presa com uma fita e laço amarelo em redor da cintura baixa. Lenços e um pequeno manto branco bordado está colocado sobre os seus ombros. Está adornada com jóias: colares, várias pulseiras nos pulsos e tornozelos, brincos e o cabelo preso no topo da cabeça por uma grande gema está adornado com flores frescas. O resto da cabeleira flui livremente pelas

suas costas. Nada é deixado ao acaso nesta representação: os olhos de Tara representam insight e competência; os braços e as pernas são os quatro incomensuráveis que formam parte do treino de aspiração a bodhichita: bondade amorosa; compaixão; alegria; equanimidade. A face representa a esfera singular da dharmakaya, a verdade que se encontra para além do entendimento conceptual, aquela verdade que apenas a mente búdica consegue aceder. Dos muitos atributos simbólicos da Tara Verde, aquele que mais me chamou à atenção é que ela é dinâmica - é por isso que seu pé direito já está fora da posição de pernas cruzadas, saindo de padmasana - Tara está a pôr-se de pé para ir ajudar os seres que sofrem. Pratica-se meditação sentado na almofada para ganhar capacidades para verdadeiramente interceder para o bem de todos. A prática de Tara não é apenas meditação; Tara é acção! Importa esclarecer que o Budismo é uma filosofia e não uma religião, como algumas pessoas tendem a pen-

d.r.

Tara - A Face Feminina de Buda

sar. Numa religião existem deuses, no budismo não existem deuses que devamos adorar ou glorificar. De acordo com o pensamento budista, a natureza búdica é algo que todos temos dentro de nós e que podemos desenvolver. Os seres iluminados são seres que conseguiram alcançar essa natureza búdica. Aliás, “alcançar” talvez não seja a melhor palavra para nos referirmos ao que aqui está em causa, a natureza búdica não se alcança, desoculta-se! Ela existe em todos nós mas está encoberta por camadas de pensamentos

e emoções negativas: medos, raivas, todo o tipo de sofrimento, etc... À medida que vamos conseguindo acalmar e limpar a nossa mente, essa fonte de luz começa a emergir. Tal como uma jóia magnífica que tenha permanecido muitos anos no fundo de um pântano fica cheia de lama só mostra o seu brilho depois de limpa, assim também a natureza búdica só brilha quando desvelada. Tara no seu corpo esmeraldino adornado de jóias representa a mente pura e livre e encarna todas as qualidades e emoções positivas. Visualizar a imagem de Tara, acalma a mente, entoar o seu mantra dispõe-nos para a meditação. Existe um manancial de técnicas e exercícios muito práticos que podemos realizar para atingir o objectivo que nos propomos! Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com l


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LETRAS E LEITURAS •••

A Nossa Alegria Chegou, de Alexandra Lucas Coelho

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

A Nossa Alegria Chegou, o quarto romance de Alexandra Lucas Coelho e o seu décimo livro, publicado pela Companhia das Letras - que está a relançar as suas outras obras -, quebra diversas convenções e géneros, e instaura um território ficcional difícil de definir, sem a complexidade narrativa de deus-dará, onde sete narrativas se cruzam, em sete dias, num romance transgénero que liga passado e presente. «Alguns mamíferos sabem que vão morrer. Estes três sabem que podem morrer hoje.» (p. 17) Apesar das frases fatídicas com que o romance abre, a sensação que o leitor tem é de acordar com as três personagens num paraíso, como que um Génesis da Criação. Além do índice que indica antecipadamente que a acção decorre em doze capítulos, em contagem decrescente, do doze ao um, o que é reforçado pelo texto, a cada capítulo, conforme se reforça o tempo que resta aos jovens heróis: «Duas horas para o poente» (p. 159). Ossi, Ira, Aurora, são os nomes dos três jovens que, à excepção do da jovem Aurora, não permitem perceber de imediato os seus sexos, se bem que ao longo da narrativa ficará rapidamente claro que o género de cada um é pouco relevante à sua natureza e identidade. Inclusive os três jovens parecem ser inicialmente descritos como se se tratassem de um só ser, uma entidade mitológica: «Três corações, seis pulmões, biliões de nervos numa cama de rede, tórax com tórax, boca com nuca, côncavos, recôncavos, convexos. Jovens como a jovem flor do cacto de Alendabar, a praia onde acordam. Ossi segura o flanco de Ira, que segura o flanco de Aurora. Ela fecha os olhos, flecte o joelho esquerdo. Ira ganha ângulo e entra nela, com Ossi às costas. Primeira vez que acordam juntos, primeiro sexo a três, primeira hora de luz. Este dia esperou por eles para mudar tudo. Pacto.» (p. 17) Este primeiro dia na vida do jovem

Ossi, do jovem Ira, e da jovem Aurora, é afinal, como se anunciou logo de início, possivelmente o último das suas breves vidas de flores ainda a desabrochar. A musicalidade e a sensualidade da linguagem literária de Alexandra Lucas Coelho acompanham a sensualidade da relação entre os três protagonistas, cuja relação sexual a três é descrita logo nas primeiras páginas. Se em alguns momentos do livro, o leitor pode sentir-se balançado a pensar neste livro como uma narrativa juvenil é a carnalidade e o erotismo, a alegria dos sentidos, que fazem parte da relação entre cada um dos vértices deste triângulo amoroso que claramente puxam o leitor para uma narrativa que se quer real, factual, pese embora muito do que se leia pareça inventado, como aliás parece salientado logo na segunda página, quando Felix, um quarto jovem entra em cena, ao chegar à praia de Alendabar para espalhar as cinzas do pai. «Felix nunca esteve nesta parte do mundo. Nunca ouvira sequer o nome Alendabar: - Parece inventado – disse à mãe (…). Olho na estrada, Ursula respondeu: - Todos os nomes são inventados.» (p. 18) Os nomes de personagens são, de facto, inventados ou então, como com Felix, Ursula, Atlas, o Rei, são claramente simbólicos. Nomes de espécies de plantas e de animais são também inventados pela autora. Como a própria linguagem que se evoca neste romance é inventada. Por isso, o leitor pode novamente ser levado a pensar, num primeiro momento, que este é um mundo inventado (com direito a mapa no verso da contra-capa), num qualquer universo paralelo de ficção alternativa, ou de um antigo mundo, mas depois percebe-se que não se incorre aqui no domínio da ficção científica nem numa qualquer distopia num futuro improvável. Leia-se a seguinte passagem sobre as histórias: «cá estarão os três para as contar, como desde o começo foram contadas, criando o que não existe para entender o que existe. O humano é esse primata (…) que imagina histórias, ri com elas, chora com elas. Só ele sabe como estar vivo é o

grande buraco negro.» (p. 172) O reino de Alendabar é constituído por três aldeias, a do vulcão, a ribeirinha e a das terras altas. Referenciam-se deuses, pirâmides, escravos e um Rei do gado, mas gradualmente encontram-se elementos de ancoragem num mundo que é bem real e próximo, com lixo a poluir os mares, aviões, helicópteros, e computadores, onde não falta inclusivamente a mais recente tecnologia de ponta, como é o caso da inteligência artificial de Jade. Contudo, fica a sensação que Alendabar é um mundo à parte, de uma era mítica, e aquilo que chega de tecnologia vem do exterior, como o próprio lixo que começou a poluir o mar há um ano. O número três ganha também uma simbologia própria O número três, como já foi referido, ganha também uma simbologia própria, sendo que os próprios capítulos estão repartidos em vários episódios, separados pelo símbolo de três pequenas pirâmides que formam em si próprias uma pirâmide. A própria trindade formada por estes jovens de 17 anos é vista como uma unidade: «voltarão a ser três. Nenhum deles quer ser dois com alguém.» (p. 34) Três jovens heróis que já acarretam o peso do mundo de Alendabar às costas, todos eles unidos por uma perda cujo denominador comum é o Rei, a apostar no fim de um reinado, mesmo que isso implique a morte que não temem. Como acontecia em deus-dará, romance anterior da autora, nesta narrativa subverte-se a dicotomia do género, para chegar a um lugar onde não há masculino nem feminino, como acontece com Ira: «macho à força primeiro, fêmea à força depois, nem uma nem outro, agora.» (p. 25) «Os humanos são homens, mulheres, transgénero, intersexo.» (p. 92) A difusão de contornos acontece igualmente com a questão da mestiçagem, aqui traduzida na cor da pele: «Aurora corre pela beira-mar. De onde lhe vem tanta claridade? Pai escuro, mãe escura. Ira também saiu mais claro do que a mãe, mas pai não conheceu. Ossi é o mais negro dos três, de longe.» (p. 34)

Fotos d.r.

Quarto romance de Alexandra Lucas Coelho quebra diversas convenções e géneros •

Romance tem sempre mais de real do que de fantasia O romance de Alexandra Lucas Coelho tem sempre mais de real do que de fantasia, porque Alendabar está muito próximo dos males do mundo, pelo que há sempre ecos de referências quando se lê que um dique rebentou há uns anos e foi preciso pagar a muita gente mais para se calar, do que para reconstruir o dique. «Um hominídeo desce das árvores, o cérebro aumenta, o polegar roda, ele afia uma pedra na outra: primeira faca. Eras depois, ser matador é profissão, gravadas em templos que humanos visitarão outras eras depois, inclinando-se para a tinta semi-sumida, mas onde ainda é possível ver a matança de um mamífero, começando pelo afiar da faca. Os humanos da era digital farão ah! e oh!, impressionados com aquela violência primitiva, enquanto a não muitos quilómetros dali uma faca corta a garganta de mamíferos em série, que já cheiraram o sangue dos anteriores, e sabem que vão morrer. O que o primitivo fazia às claras, em pequeno número, o civilizado faz em larga escala, sem ver.» (p. 53) Quando Ira viveu na cidade, pôde ainda assistir à tragédia da desproporção humana configurada nos Invisíveis: «milhões que não bebiam água potável, e ainda assim, ou também por isso, rezavam a Deus.» (p. 159) Ira testemunha ainda a auto-imolação de um homem em protesto contra a poluição, a destruição do planeta, os combustíveis fósseis» (p. 160) Mas apesar do prenúncio de fim dos tempos que se vive no livro, vence sobretudo o sentimento de que Alendabar pode renascer, até na forma como a sua criação e os mitos

são constantemente relembrados. Até no gesto simbólico de Felix e Ursula que se preparam para comer as cinzas de Atlas, pai e marido, misturando-as com a polpa de um fruto de Alendabar, mito carnívoro de que se pode renascer a partir da ingestão do passado. O leitor colhe ainda indícios de uma ligação entre estes três jovens amantes que executam uma revolução de fim dos tempos. Indícios esses, como outros, que nunca se resolvem, pois mesmo que este seja um romance de leitura breve, quase de um fôlego, em contagem decrescente, há ainda muito mais que está para lá da realidade da história e que fica a cargo do leitor resolver, enquanto Alendabar será também transformado em mito: «aquele mundo imaginário que a partir de agora só existirá nas histórias» (p. 172) A Nossa Alegria Chegou é como um canto às armas, da mesma forma que Ira, Ossi e Aurora, esses «Três corações a bater juntos» (p. 57), preparam uma Revolução (como aquela outra de flores vermelhas que alguém lembra no livro) e têm as próximas doze horas até ao equinócio, altura de renovação, para tentar salvar o mundo em que vivem, «em contagem decrescente até anoitecer» (p. 22), conforme a própria narrativa ganha impulso e aceleração ao longo dos capítulos repartidos em cada uma das doze horas de luz que sobram do último dia de Verão, até que o sol esteja a dois dedos do mar. Num tempo em que os cactos de Alendabar também esperam voltar a florir. Porque a verdadeira revolução é alegria e prazer. A condizer com a belíssima capa, de João Paulo Feliciano, que talvez não por acaso faz uso das cores da bandeira nacional. l


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REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••

Urbanismo e Capital Europeia da Cultura

Teresa Correia

Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com

A Cultura como forma de promoção das suas cidades Muito se tem falado de Cultura, no desenvolvimento das nossas cidades, e, claro, a propósito da candidatura de Faro à Capital Europeia da Cultura 2027, evidencia-se uma necessidade imperiosa de refletir.

As cidades são expressão de cultura, tanto pela sua arquitetura, património construído, como pelo seu tecido em termos urbanísticos. Por outro lado, são também palco de grandes eventos, com uma promoção relativamente mediática das suas elites, assim como uma regeneração socioeconómica alavancada pelos eventos em causa. Percebe-se que a Cultura tem vindo a ser sub-financiada, tantas vezes, exemplo disso é uma certa depressão das direções regionais, como pelos poucos investimentos na preservação de monumentos nacionais, entre outros. Para acontecer a Capital Europeia da Cultura, é inevitavel um investimento local significativo e pesado a propósito dessa consagração, sendo também uma oportunidade para a regeneração urbana e para a construção

de alguns edifícios emblemáticos. No Porto tivemos a Casa da Música e em Guimarães tivemos uma regeneração urbana notável, assim como a criação da Plataforma das Artes e da Criatividade. As regras europeias são exigentes e pormenorizadas. A escolha deverá ”obedecer a um contributo para a estratégia a longo prazo, a dimensão europeia do projeto, o conteúdo cultural e artístico, a capacidade de realização, o impacto e a gestão”. Está, pois, instalada a corrida por parte de várias cidades de Portugal, tais como Aveiro, Coimbra, Évora, entre outras.

A renovação urbanística que se impõe As estruturas edificadas de suporte a um evento desta dimensão, assim

como à escala europeia, obriga a um planeamento de longo prazo, tanto urbanístico como cultural, assim como uma visão estratégica no seu contexto regional. Faro tem potencial e um urbanismo que, ainda assim, tem dignidade e valor, mas será realista confirmar se temos capacidade de realização para tal dimensão de projeto. Cada largo e cada praça deverá ser renovada, o seu património valorizado, para que possamos ser uma cidade que recebe com dignidade os grandes da Cultura Europeia. Os eventos terão de ser cúmplices da cidade e integrarem-se no próprio tecido da mesma. A frente ribeirinha é essencial para a nova imagem da cidade, mas a cidade, toda ela, terá de ser equipada e integrada nessa operação. A renovação urbanística irá aqui ter significado especial e essa deverá ser

d.r.

As cidades são expressão de cultura •

trabalhada em conjunto com os pequenos proprietários de cada casa e de cada beco e travessa. Será preciso uma luz de inspiração nessa herculeana tarefa, e uma força persistente de regulação constante. l

ARTES VISUAIS •••

Pode a arte ajudar a proteger os oceanos? d.r.

Saul Neves de Jesus

Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora https://saul2017.wixsite.com/artes

No último número abordámos o tema “Pode ser criada arte a partir da poluição?”, em que fizemos referência ao artista Nut Brother que, em 2015, passou 100 dias a aspirar o ar das ruas de Pequim, durante cerca de quatro horas diárias, tendo no final fabricado um tijolo a partir da poluição aspirada, procurando consciencializar para o problema da poluição do ar em Pequim. Este mesmo artista realizou posteriormente uma outra iniciativa em que procurava consciencializar para a poluição considerada potável da água na China, tendo para o efeito enchido e exposto 1000 garrafas de água. No entanto, estas garrafas eram de plástico... Ora, a utilização de plástico representa um dos principais problemas com impacto ambiental na atualidade.

O plástico constitui cerca de 85 % do lixo encontrado nas zonas costeiras de todo o mundo. Todos os grandes oceanos têm acumulações de lixo flutuantes na sua zona central, os chamados “giros”, havendo dois no Pacífico, dois no Atlântico e um no Índico. Mas a “ilha de plástico” do Pacífico Norte é a maior, sendo o plástico cerca de 92% do lixo acumulado. São cerca de 80 mil toneladas de plástico a flutuar, segundo um estudo publicado recentemente na revista Scientific Reports, o que representa um valor muito superior às estimativas feitas em estudos anteriores. Estima-se agora que esta “ilha” de plástico a flutuar tenha 1,6 milhões de quilómetros quadrados, o que equivale a mais de 17 vezes o tamanho de Portugal. A maior parte do material que existe chega como detritos grandes, que se degrada ao longo do tempo em partículas nocivas cada vez mais pequenas, micropartículas que viajam da superfície do oceano para o fundo, microplásticos que, além de contaminarem o ambiente, entram na cadeia alimentar, vindo a afetar a saúde humana. Só os europeus geram, anualmente, 25 milhões de toneladas de resíduos de plástico, das quais apenas 30 % são reciclados. Nas águas do Mediterrâneo, cuja “rota de saída” passa por Portugal, o plástico representa atualmente 95% dos resíduos. Se tudo continuar como está, as previsões

indicam que em 2050 haverá mais plástico do que peixe nos oceanos. Assim, este problema ameaça o turismo, a pesca e a saúde das pessoas e do planeta. A arte tem sido usada como uma das principais manifestações no sentido de procurar consciencializar as populações para o perigo que representa o plástico existente nos oceanos. Por exemplo, a fotógrafa britânica Mandy Barker criou o projeto “SOUP” (sopa), nome dado pelos cientistas e ambientalistas à água misturada ao plástico suspenso no fundo do mar, e procura fotografar artisticamente o lixo encontrado nos oceanos. Em Portugal, a bióloga marinha Ana Pêgo criou o projeto “Plasticus maritimus”, sendo muito do lixo encontrado nas praias convertido em obras de arte. Na própria Universidade do Algarve, lançámos recentemente a campanha “UAlg + Saudável, com – Plástico”, pretendendo-se que o curso de artes visuais se envolva nesta campanha. Também gostaríamos de fazer referência ao projeto “Skeleton Sea – Arte do Mar”, da autoria dos artistas e surfistas João Parrinha (português), Xandi Kreuzeder (alemão) e Luis de Dios (espanhol), que procura sensibilizar a população para a preservação dos oceanos através da expressão artística. Neste momento, estes artistas

Imagem de obra na exposição "Keep The Oceans Clean", no Oceanário de Lisboa •

têm uma exposição no Oceanário de Lisboa, intitulada "Keep The Oceans Clean" (Mantenha os oceanos limpos), que reúne nove instalações artísticas feitas com lixo encontrado tanto em praias como no mar. Também merece destaque a exposição “Over Flow”, da autoria do artista japonês Tadashi Kawamata, patente na Galeria Oval do MAAT, até 1 de abril de 2019. Esta exposição convida o visitante, através de uma instalação imersiva, a focar-se em questões em torno do turismo e da ecologia globais. No fundo, o que podemos ver é uma catástrofe ecológica imaginária, em que os detritos transportados pelos oceanos engoliram a civilização. Tudo isto

resultado de um ano de pesquisa de campo em Portugal, fazendo parte da instalação resíduos de plástico e barcos abandonados, recolhidos na costa portuguesa durante as campanhas de limpeza de praias. Como mensagem final, gostaríamos de salientar que devemos reduzir os plásticos de uso único e mudar os nossos hábitos para uma economia circular, assente nos 3R: Reduza, Reutilize e Recicle! As novas gerações vão viver no mundo que ajudarmos a criar e, por muitas diferenças que haja entre as pessoas, as culturas e os países, o planeta terra é a Casa de todos nós, sendo fundamental ajudar a preservá-lo! l


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d.r.

ESPAÇO AO PATRIMÓNIO •••

Marafado património imaterial

Luís Campos Cineasta

Deparo-me sempre com uma bicuda questão a cada nova pergunta sobre o meu local de origem. Nasci na Beira Baixa, mas sou um adolescente algarvio. Vivi tantos anos no estrangeiro como em qualquer um dos locais onde me fiz homem. Já tive uns 15 locais de residência em pouco mais de trinta anos de vida, distribuídos por meia-dúzia de países. A minha proveniência é uma espécie de imaterial definição do termo, mas estou hoje certo, como aliás sempre estive, de que nunca me conseguirei dissociar da minha marafada costela portimonense. Foi com naturalidade que comecei a trilhar um rumo profissional ligado à magia da sétima arte na sequência de uma contínua formação em cinema, a meias entre os deslumbramentos que recolhia dos extintos vídeo-clubes locais, das ainda então salas de romaria popular (quem não

se recorda do saudoso Cine-Esplanada na zona ribeirinha de Portimão?) e, mais tarde, dos ensinamentos obtidos pela frequência no ensino superior dedicado à área em questão. Apesar de nunca ter dado como certo o local onde me poderia achar em casa, sempre soube que o meu lar era algures no espaço que corresponderia ao cinema. Tem sido, aliás e invariavelmente, através do cinema que nos procuro e nos encontro enquanto espécie humana una e indivisa. É nos filmes que consigo encontrar reflexos e significados dos nossos comportamentos; e portanto zelo para que esse espaço não desapareça. Se me tirarem o cinema, fico sem abrigo. Hoje, com relativo distanciamento, percebo que é por essa razão que tenho vindo a aplicar esforços nas iniciativas que tenho promovido - todas elas de directa relação com a componente da escrita cinematográfica. Se a primeira, base de tudo o que seguiria, foi no lançamento do GUIÕES (www.guioes.com), certame que tem contribuído para estimular os índices de escrita cinematográfica em Língua Portuguesa, dar voz aos guionistas lusófonos espalhados pelo mundo que têm histórias por contar e para a aproximação das várias frentes da indústria cinematográfica em torno da prática e das valias da escrita de cinema.

Mais de seiscentas pessoas já procuraram o GUIÕES para exibir material que escreveram Mais de seiscentas pessoas já procuraram o GUIÕES para exibir material que escreveram - todas unidas por um mesmo desejo, o de poder contribuir para a contínua evolução do cinema (e da espécie humana por consequência). Seguiu-se o PLOT (www.plotscriptlab. com), um laboratório profissional de guiões que une profissionais de reconhecido mérito internacional com guionistas, realizadores ou produtores com projectos em desenvolvimento. Passadas três edições - a partir da última das quais em parceria com o renomado festival IndieLisboa -, mais de vinte pessoas já puderam aprimorar e reflectir sobre os projectos nos quais têm vindo a dedicar toda as suas fontes de criatividade e de energia. Para além da minha própria experiência enquanto guionista e realizador e das aulas/palestras que fui dando em instituições da Holanda, Brasil e Portugal, os últimos anos da minha vida foram repartidos nas actividades que vieram a permitir o nascimento e a subsistência das iniciativas acima descritas. Os complexos tempos que decorrem incidem cada vez mais na pertinência do cinema não poder cair

Segunda edição do DRAMA.pt está prevista para Junho de 2019 •

em desuso; é cada vez mais essencial continuar a pensar-se, discutir-se e a promover-se o cinema. O intrínseco desejo de partilhar os ensinamentos que fui adquirindo sobre o mundo da escrita cinematográfica e essa contínua missiva da promoção da arte e do ofício cinematográfico levou-me a desenvolver um sonho antigo: o DRAMA.pt, ou seja, uma actividade de formação em escrita cinematográfica ao longo de duas semanas que pudesse combinar o tema com o património cultural da região Portimonense. A ideia foi bem acolhida pelo município, pelo Museu de Portimão e por uma dezena de entidades locais cujas parcerias permitiram o nascimento da actividade neste último Julho de 2018. Doze participantes de diferentes origens tiveram a oportunidade de aprofundar o seu conhecimento sobre a escrita cinematográfica à medida em que iam descobrindo as paradisíacas propostas culturais e paisagísticas de Portimão. Entre passeios de bicicleta,

aulas de surf, passeios de kayak na Ria de Alvor, caminhadas por praias deslumbrantes e pela Serra de Monchique, sessões de cinema com cineastas internacionais convidados, aulas de ioga, degustações da gastronomia da região ou passeios de barco com visita às características grutas do Barlavento, o DRAMA.pt constituiu-se num imediato sucesso para quem com ele se cruzou. Está já prevista uma segunda edição, que irá decorrer em Junho de 2019, na qual se procura aperfeiçoar a lógica das dinâmicas a estabelecer entre visitantes e património regional. Os portugueses são caracterizados por uma inata capacidade de bem receber e eu sempre estive convicto de que a melhor forma de conseguir proporcionar uma inexcedível e memorável experiência aos participantes do DRAMA.pt seria através da demonstração daquilo que de melhor existe em mim: o mundo cinematográfico onde resido e esta marafada amiga costela que nunca m’empatará. l

ESPAÇO AGECAL •••

Há que se ter memória! Há que se passar à ação!

Hilda Bárbara Maia Cezário Museóloga

Sócia da AGECAL – Associação de Gestores Culturais do Algarve

Apesar do desmonte que o campo dos museus vem sofrendo no Brasil (e já agora, a ameaça a todas AS estruturas democráticas de poder) é preciso manter a memória viva e alerta, conhecendo a história e todos os seus avanços, para sabermos reconhecer os retrocessos quando nos deparamos com eles. Por isso, há que se ter memória! E para que estejamos atentos, trago à mesa aquilo que considero um dos maiores avanços do setor museológico brasileiro nos últimos tempos: a

criação da Política Nacional de Educação Museal (PNEM), publicada em Diário Oficial da União pela Portaria nº 422, de 30 de novembro de 2017, com direito, inclusive, a uma publicação do IBRAM no primeiro semestre deste ano – o Caderno da PNEM*. Após o lançamento da Política Nacional de Museus (PNM) em 2003, a criação do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) ** em 2009, a recém lançada PNEM deve ser compreendida não apenas como uma política pública, mas como uma consolidação de um modo de fazer política no campo dos museus. É preciso falar da importância que o processo de construção da política representa, sobretudo diante de um cenário que já evidenciava, a parcelas, o esfacelamento do setor museológico. A PNEM aponta princípios e diretrizes para o campo da Educação Museal, a partir de um amplo processo participativo e integrador. Este, teve por base o diálogo e a reflexão proveniente de espaços coletivos de discussão, iniciado

pelo IBRAM em 2010 e concluído no ano passado. Durante estes sete anos, o trabalho contou com a participação de servidores técnicos do IBRAM, dos profissionais do setor, professores, estudantes e usuários de museus interessados. Contudo, houve um protagonismo dos educadores em museus de todo o território nacional, presentes seja através das Redes de Educadores em Museus de vários estados, seja pelo compromisso das suas respectivas instituições ou mesmo individual. Resolvi trazer este caso, pois percebo que tanto aqui em Portugal como lá no Brasil existe um histórico de instituições museológicas predominantemente ligadas à estrutura do Estado, portanto, ao serviço deste, o que não quer dizer, necessariamente, que estão ao serviço da sociedade. Ao contrário do esperado, as instituições parecem anular-se enquanto parte da sociedade, reproduzindo o discurso que o Estado, enquanto poder político, deseja. Este estratagema evoca na nossa

memória os tempos do Estado Novo (tanto português como brasileiro), porém, com um discurso que surge dissimulado por entre os gracejos das inovações tecnológicas e a diversidade de recursos expositivos mais interativos, expressivos, etc. Assim, a ação educativa parece não passar de um serviço do Estado (paternalista) – da instituição para a sociedade. Por isso, falta-nos a renovação do modus operandi. Parar de produzir narrativas “pintadas de rosa”, nas quais tudo é bonito e não existem questões fraturantes. Importante parece ser o aprofundamento do nosso papel social, alterando o modo de fazer: passar do “fazer para” ao “fazer com”. É preciso colocarmo-nos como parte integrante da sociedade e, enquanto gestores e profissionais de museus, assumirmos o papel de construção conjunta por uma sociedade mais equilibrada. A corresponsabilidade pelas políticas públicas e pela promoção de espaços de diálogo e reflexão é

fundamental, sobretudo, no contexto privilegiado da construção de narrativas de memória e patrimônio. Acredito que processos como o caso da PNEM contribuem para um amadurecimento, não apenas das instituições públicas, mas, também, para a maturação da própria cidadania. Talvez este seja o ponto mais importante: o exercício da participação cidadã por pessoas, coletivos, instituições formais, públicas e privadas que, de forma associada, responsabilizam-se por algo que é de todos e para todos. A participação está relacionada ao processo de conscientização acerca da importância da nossa função social. Mas, para isso, há que se passar à ação! * Disponível em: https://www.museus. gov.br/wp-content/uploads/2018/06/Caderno-da-PNEM.pdf ** Órgão Federal recém extinto pelo governo “Temeroso”, dando lugar a ABRAM - Associação Brasileira de Museus. l


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