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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

JUNHO 2022 n.º 163 8.551 EXEMPLARES

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ARTES VISUAIS

Como têm sido abordadas as “3 Graças” nas artes visuais? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes Exposição “3 Graças”, de Pedro Cabrita Reis (2022) FOTOS D.R.

Pintura “3 Graças”, a partir da gravura de Agostino Carracci (1590-95)

Pintura “As 3 graças”, de Peter Rubens (1630-05)

Pintura “As 3 graças”, de Rafael Sanzio (1504-05)

Pintura “La Ville de Paris”, de Robert Delaunay (1912)

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13 de fevereiro foi inaugurada a exposição “3 Graças” de Pedro Cabrita Reis no Jardim das Tulherias, junto ao Museu Louvre, em Paris, no âmbito da Temporada Cruzada França-Portugal 2022”, contando com a presença do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Ao longo da história da arte, as três graças têm sido recorrentemente representadas por grandes artistas. Da mitologia grega até à arte contemporânea estas três figuras personificam os ideais de beleza feminina correspondentes às diferentes épocas e artistas. Às “Graças” era atribuído o poder de conferir aos artistas e poetas a habilidade para criar o belo. Deusas do amor, conhecidas como “Graças”, eram três jovens que, segundo o poeta Hesíodo, seriam filhas de Zeus e Eurínome, uma ninfa do mar com quem o deus do Olimpo teve um breve caso de amor. As três graças chamavam-se Aglaia, Euphrosyne e Thalya, e estavam sempre juntas. Além do amor e da beleza, as jovens também eram associadas à natureza, criatividade, fertilidade, charme, esplendor e alegria. Nas primeiras representações plásticas, as Graças apareciam vestidas, mas mais tarde foram representadas como jovens nuas, de mãos dadas, olhando duas das Graças numa direção e a terceira na direção oposta. Foi especialmente durante a Renascença que este tema se tornou recorrente na pintura, ocorrendo materializações a partir de obras anteriores. Foi o caso da pintura a óleo sobre cobre feita a partir da gravura de Agostino Carracci, em que as “3 Graças” aparecem sexualmente pouco expressivas. Também na pintura de Rafael destaca-se a palidez e o olhar indiferente das personagens, não sendo expostos os seios e os órgãos sexuais aparecendo

de forma discreta, lembrando corpos Graças” têm sido sempre três figuras de adolescentes, parecendo que o ideal femininas entrelaçadas entre si, nunca de beleza reside na juventude. se afastando. Na obra de Pedro Cabrita Um pouco diferente da representa- Reis as três esculturas, embora concepção de Rafael é a do pintor Rubens, tualmente unidas, estão fisicamente que optou por Graças mais maduras, separadas, representando a expansão com corpos e formas mais opulentas, da sua presença, tornando esta mais cruzando os olhares, sugerindo mais forte, o que pode representar a mulher intimidade. A composição, porém, é atual no mundo ocidental, com mais praticamente a mesma, pois duas das poder e uma presença mais forte e degraças são vistas frontalmente, enquan- terminante, embora a cortiça permita to a outra é representada por trás. manter uma “fragilidade interessante”, No início do século XX, quando os segundo as palavras do artista. movimentos de vanguarda europeus Pedro Cabrita Reis é um dos artistas estavam no auge, Robert Delaunay contemporâneos portuguesas mais repintou as 3 Graças na “Ville de Paris”, conhecido internacionalmente, tendo fragmentando as personagens. inclusivamente representado Portugal Assim, embora os personagens sejam na Bienal de Arte de Veneza, em 2003, as mesmos, as representações ao longo e reside no Algarve. do tempo mudaram muito, mostran- As suas “3 Graças” podem ser vistas do que o ideal de beleza é dinâmico e em Paris até final de junho. Depois muda ao longo do tempo. talvez venham para o Algarve, como No caso da obra de Pedro Cabrita Reis, o próprio afirma: "Um dia, se calhar, houve uma reinterpretação do tema encontro um jardim, ou no meio do “3 Graças”. campo, lá para a serra do Algarve, Esta reinterpretação expressa a onde moro, e ponho-as lá no meio das importância do pensamento e do alfarrobeiras". planeamento da obra no processo de produção artística. Em geral, as obras Ficha técnica artísticas são concretizadas por quem as concebe, mas verifica-se que, na arte Direção GORDA, contemporânea, muitas vezes quem Associação Sócio-Cultural pensa sobre o produto artístico não é Editor Henrique Dias Freire quem o executa. Assim, a perspetiva Responsáveis pelas secções: de “manualidade” do artista tem vindo • Artes Visuais Saúl Neves de Jesus a ser alterada, sobretudo a partir dos • Diálogos (In)esperados anos 60, com a emergência da arte Maria Luísa Francisco concetual. No entanto, atualmente • Espaço AGECAL Jorge Queiroz verifica-se uma conciliação entre a • Espaço ALFA Raúl Coelho importância das ideias e o seu suporte • Filosofia Dia-a-dia Maria João Neves material ou plástico, sendo superada • Fios De História Ramiro Santos a perspetiva da “desmaterialização da • Letras e Literatura Paulo Serra arte” ocorrida no século passado. • Mas afinal o que é isso da cultura? Expressando a importância da dimenPaulo Larcher são ecológica e da sustentabilidade na Colaborador desta edição atualidade, através da cortiça, usou Saúl Jorge Lopes também outros materiais para tornar e-mail redação: geralcultura.sul@gmail.com as peças mais resistentes ao facto de publicidade: serem colocadas ao ar livre. Cada peça anabelag.postal@gmail.com escultórica tem cerca de 4,50 metros online em www.postal.pt e pesa aproximadamente 500 quilos, e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve a que se somam os 400 quilos da base FB https://www.facebook.com/ que as sustenta. Na concretização desta Cultura.Sulpostaldoalgarve obra, contou com a “ajuda” de um braço robótico que esculpiu a cortiça de acordo com um programa de computador. Ao longo da história da arte, as “3


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DIÁLOGOS (IN)ESPERADOS

As Pessoas Invisíveis por detrás dos Museus P Isabel, o que é que o visitante não sabe, nem vê no Museu?

Museu de Portimão está instalado desde 2008 na antiga fábrica de conservas Feu FOTOS D.R.

MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

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trabalho num museu é maioritariamente invisível, e é esse labor que se desconhece e muitas vezes não se valoriza, mas é daí que surge tudo o resto. As exposições, as publicações, as conferências, a programação, o museu vivo! Há um mundo de pequenas coisas a salvaguardar, a estudar e a interpretar até se tornarem acessíveis e visíveis. É a partir daí que se dá voz e se torna um museu num lugar que vale a pena visitar. Hoje escrevo enquanto Delegada Regional da Associação Portuguesa de Museologia. Função que desempenho desde 2011 e à qual me tenho dedicado com gosto, mas preferia passar o testemunho no final deste mandato. Tenho estado presente na vida dos Museus do Algarve, colaborando em actividades, participando em reuniões e estimulando as candidaturas aos Prémios da Associação Portuguesa de Museologia (APOM). O Encontro Transfronteiriço de Profissionais de Museus que começou em Alcoutim em 2012 e depois foi alternando a realização entre Portugal e Espanha, foi dos eventos mais exigentes, mas também mais gratificantes pela cooperação ibérica que se conseguiu. Nesta actividade foi possível trabalhar de perto com a anterior

Delegada Regional da Associação Portuguesa de Museologia, Dália Paulo, entretanto Delegada Regional de Cultura do Algarve. Tinha feito uma pós-graduação em Museologia, mas foi nestas actividades que trabalhei de perto com museólogas e passei a valorizar ainda mais os museus e as pessoas que neles trabalham. Têm um trabalho de extrema importância na preservação do património, das tradições e da memória.

Algarve (RMA), um grupo informal de acção e reflexão museológica, onde participo desde 2011, vejo o quanto a RMA privilegia a cooperação e a partilha entre todos os representantes e como programa actividades conjuntas. “Trata-se, portanto, de uma rede horizontal, com características flexíveis que tem como missão dinamizar o património cultural e a actividade museológica da região.” Conforme

R Na verdade existe um outro “lado” do Museu que não se vê, nem se sabe. O que resulta nos trabalhos visíveis nas diferentes áreas são fruto de uma programação anual e que normalmente se traduz nas publicações, nas conferências e nas exposições que dão vida e animam os museus. Contudo, até chegarmos a esta forma de comunicar, as nossas colecções percorrem um longo caminho e que passa por inúmeros técnicos nos diferentes serviços invisíveis para os visitantes. Às peças damos-lhe uma nova vida e as mesmas, desde que saem do que é o seu contexto original, até chegarem ao museu andam “de mão em mão” até chegarem à sua nova casa. Desde o registo no seu contexto original, passando pelo restauro e a conservação, a inventariação, a investigação, o seu acondicionamento em reserva ou até mesmo na vitrine da exposição, tudo faz parte de uma missão: a de preservar, estudar, expor e interpretar objectos representativos da nossa identidade e da nossa comunidade. P O Museu de Portimão tem uma grande proximidade com a comunidade, que relação estabelece o Museu com as vossas “pessoas”?

É oportuno mencionar que os museus trabalham junto das comunidades, e com e para as comunidades, trata-se de um processo moroso que envolve uma grande proximidade e conquista. A confiança e o acreditar que somos capazes de lhes “agarrar” as histórias e que as podemos contar, ou através dos objectos que nos deixam, ou na primeira pessoa, são sem dúvida dos projectos mais aliciantes do museu e ao mesmo tempo os mais desafiantes. Um técnico do museu é sem dúvida um agente no terreno ao serviço da comunidade e com formação profissional. No entanto, valoriza-se igualmente a sensibilidade social e é enquanto ser humano que estabelece uma relação de proximidade e confiança e que faz toda a diferença no trabalho realizado. Não é descabido afirmar que o museu, ao longo do trabalho desenvolvido, transforma-se na “casa” de todos os que constroem em conjunto a nossa história. É quase impossível guardar “tudo” num espaço físico ou até mesmo na nossa memória e ao mesmo tempo uma grande responsabilidade, no entanto tentamos investir num trabalho conjunto e descentralizado que abranja todo o território e várias áreas temáticas. R

Delegada da APOM agilizou mensagem para quem estava nas praias algarvias (avioneta passou 1/9/2015 e a 15/8/2016)

Breve caracterização museológica do Algarve Existem oitenta e dois espaços de carácter museológico no Algarve, trinta e sete museus, trinta e nove pólos museológicos e sete colecções visitáveis. Destacam-se as colecções de etnografia, arte sacra e arqueologia e arqueologia industrial, tal como a arte contemporânea. Não há nenhum dos 16 concelhos algarvios que não tenha pelo menos uma unidade museológica. Conheço estes espaços museológicos e os seus responsáveis e hoje decidi lembrar as pessoas invisíveis que estão por detrás dos Museus. Nas reuniões da Rede de Museus do

se pode ler no Guia de Museus do Algarve (2019). Tenho todos presentes na minha memória, inclusive dois elementos da Rede de Museus do Algarve que já partiram: Luís e Joaquim Guerreiro, ambos do concelho de Loulé. Desta forma faço uma homenagem a todos os que dedicaram e dedicam a sua vida aos Museus e à Cultura do Algarve. A museóloga algarvia que conheço há mais tempo é Isabel Soares, aliás, conheço-a desde a juventude, mas só nos voltámos a encontrar, anos mais tarde, graças às reuniões da Rede de Museus do Algarve. Estive a conversar com Isabel Soares, actual directora do Museu de Portimão, e aqui fica o nosso diálogo:

P Como tem sido a articulação combinada nas diferentes áreas de trabalho dentro do Museu, entre os técnicos das equipas? R Tem sido um trabalho de articulação entre os diferente saberes, o museu é como se fosse uma “Fábrica de Histórias” com uma cadeia operatória, terá que passar pelos vários serviços e uns dependem dos outros. Para inventariar uma colecção torna-se imprescindível dialogar com a investigação em diferentes áreas e ao mesmo tempo recorrer aos serviços de conservação e ainda criar o diálogo perfeito para comunicar os resultados ao público. Não nos podemos esquecer que uma das mais-valias é a produção de conhecimento, a sua preservação, valorização e divulgação. P Como dar visibilidade a um trabalho invisível?

Sensibilizando o público para o que se faz nos bastidores do museu, dentro e fora de portas. Abrindo os espaços técnicos ao público e mostrando o saber-fazer, criando iniciativas abertas nas quais é possível interagir com os técnicos e observar as colecções no contexto de trabalho. Assim, abrindo as portas das reservas para dar a conhecer o outro lado do museu e ainda criando conjuntamente actividades educativas para e com a comunidade. R

P Que tipo de museu é preciso construir nos dias de hoje? R É preciso construir um museu para todos e com todos, hoje em dia os museus têm que estar abertos à diversidade e à inclusão, onde devemos tornar acessível, a todos e a todas, a cultura, a arte e o nosso património. No museu actualmente encontramos um passado longínquo, um passado recente e espaço para um futuro. Os museus têm que ser espaços atractivos e interactivos: Há muito que deixaram de ser sítios onde encontramos “coisas velhas” e “sem vida”. Hoje, tentamos que os museus, para além de preservarem e exibirem o seu património material e imaterial, também tenham um papel importante na promoção da economia local e regional, que contribuam de forma criativa para a participação das comunidades na discussão e no debate de temas atuais.

Maria Luísa Francisco - Obrigada por esta conversa que nos levou pelo museu fazendo dele um espaço ideal para passar tempo de qualidade. Afinal, o museu ideal será sempre aquele que nos faz sentir em “casa”. * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

O som do pensamento FOTO D.R.

MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

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cabamos de entrar num verão dito “normal”: sem confinamento, com livre acesso às praias, sem máscaras na cara... Este regresso à normalidade pode fazer-nos esquecer o passado recente. Há precisamente um ano atrás, no artigo que escrevi para este jornal, intitulado Possuir ou Pertencer falei da “invasão” das cidades pelos animais selvagens. Dos pavões da Índia aos cervos do Japão, das cabras britânicas aos javalis portugueses, por todo o mundo se registaram estas ocorrências. Os habitantes das cidades “invadidas” dividiam-se entre alarmados e deliciados. Contudo, existiu uma experiência que a todos agradou: escutar o canto dos pássaros à alvorada (em vez das buzinas e dos motores dos automóveis). Inexplicavelmente, apressámo-nos a recuperar a “normalidade” barulhenta esquecendo o prazer que a tranquilidade auditiva nos trouxe.

A poluição sonora é uma ameaça invisível que paira sobre todos nós. Um estudo publicado na revista científica Biology Letters em 2019 mostra como o ruído antropogenético - ruído causado pela actividade humana - está a afectar os animais. Os cientistas descobriram que a poluição sonora que causamos está a fazer-se sentir em muitas espécies de anfíbios, artrópodes, aves, peixes, mamíferos, moluscos e répteis. Os animais marinhos que dependem dos sons e das vibrações para caçar, vêem-se prejudicados devido ao ruído do tráfego marítimo, das plataformas de exploração de petróleo, dos sonares militares, etc. Animais terrestres como as rãs, por exemplo, que usam os sentidos auditivo e vocal para o acasalamento, não conseguem expressar-se e ouvir-se devidamente, e ficam sem par. As tartarugas marinhas, que usam a audição como meio de navegação e de localização dos seus predadores, têm registado perdas auditivas, enganam-se nas rotas e tornam-se presas muito vulneráveis. Até as aves do Jardim Zoológico de Lisboa se vêem obrigadas a alterar a sua fre-

quência de canto devido à poluição sonora, testemunhou Alice Veiros, educadora ambiental nesta instituição. Por causa do barulho, as tartarugas estão a ensurdecer, os pássaros estão a modificar o seu canto, as rãs não conseguem acasalar... O que estará a acontecer connosco? É fim de semana e preparamo-nos para desfrutar do tempo livre. Vamos ao cabeleireiro e somos expostos ao ruído excruciante dos secadores de cabelo. Decidimos comprar roupa nova e a “música de animar compras” está altíssima e bombardeia-nos os ouvidos. Chegamos a casa e queremos descansar um pouco, mas o vizinho de um lado tem a música em altos berros, e o vizinho do outro lado resolveu tratar do jardim: levamos com o heavy motor do cortador de relva, da serra eléctrica e do soprador. Enfim, animemo-nos que vamos jantar com amigos que não vemos há imenso tempo! Sentamo-nos à mesa e a conversa flui animadamente. Porém, essa fluidez dura pouco. O restaurante contratou uma banda para nos animar-enquanto comemos. Devido ao volume amplificado

em que cantam e tocam, já não se consegue falar nem ouvir quem quer que seja. Abrimos a boca para comer, ou para fazer coro com a banda, que vomita os êxitos pop em covers de gosto duvidoso. Parece ficção, bem sei, mas há um ou dois séculos atrás existiam espaços públicos em que era possível conversar. Que teria sido de Fernando Pessoa, de Mário de Sá Carneiro, de Santa Rita Pintor, sem o Café Nicola, a Brasileira, ou o Martinho da Arcada? Que teria sido de Paul Signac, de Erik Satie, de Claude Debussy, ou de Paul Verlaine sem o cabaret Le Chat Noir de Paris? Amanhã será um dia melhor, vamos à praia! Não é que todos os habitantes da cidade e arredores tiveram a mesma ideia? As sombrinhas, de tão juntas, obrigam-nos a partilhar visual e auditivamente as vidas uns dos outros. Inteiramo-nos das mazelas da avó da sombrinha de trás, do relato de futebol da sombrinha do lado, e quando o bebé da sombrinha da frente desata a berrar achamos que o melhor é ir caminhar à beira mar. A amiga que não vemos há muito tempo também vem. Enquanto caminhamos - fala, fala, fala, fala - conta tudo o que ficou por dizer ontem, à mesa de jantar. Chego a casa e dou por mim a constatar que estive na praia e não ouvi o mar. *** Relendo o que escrevi apercebo-me que posso dividir estes horrores sonoros em 2 categorias: os ruídos evitáveis e os não evitáveis. Nesta última secção encontram-se os motores de combustão, por exemplo, que não se transformarão em silenciosos motores eléctricos ou a hidrogénio por um passe de mágica. Na categoria evitáveis estão todas as actividades de animação e entretenimento - bastaria não as fazer acontecer! - mais as nossas conversas de chacha, com maior ou menor volume, totalmente prescindíveis. Indo um pouco mais fundo, ou talvez criando uma categoria mais subtil teríamos o a evitar e nela incluiríamos todos os nossos pensamentos tóxicos e a contínua ruminação mental patente na maioria de nós. *** Na origem, a filosofia surgiu na forma da oralidade. Sócrates interpelava as pessoas que encontrava ao passear pelo mercado; nunca escreveu. Platão, que tanto escreveu, falou-nos persistentemente das limitações da escrita (veja-se a Carta Sétima, por exemplo). A sua vasta obra permanece intimamente ligada à conduta oral, na forma de diálogo. Apenas a dialógi-

ca possibilita ao discípulo descobrir a verdade por si mesmo na interacção entre perguntas e respostas, e permite também ao mestre adaptar o seu ensino às necessidades do educando. Com o tempo, a sensibilidade sonora foi sendo erradicada da filosofia ocidental e o filosofar oral foi depreciado. A Academia considerou que o som da voz e a essência do som como movimento deviam ser sacrificados em favor da sustentação do pensamento através da escrita. Porém, o som é muito mais para o discurso do que um meio de transporte passivo. Através do som articulado da fala, podemos ouvir-nos uns aos outros pensar. Ouvir, como observou Hegel, é um sentido corporal, interior e transitório, radicalmente diferente da clareza, estabilidade e fria inércia do mundo visual. Ouvir, lembra Burrows, é ser tocado e envolvido, e a voz é o limiar entre o eu e o outro. *** No Café Filosófico os participantes encontram-se presencialmente, ou on-line, ou em formato misto. A reflexão surge tendo por base estes artigos que publico mensalmente aqui, no Cultura.Sul. Reunimo-nos para pensar juntos. O acto de pensar é, normalmente, privado. O pensador tem por hábito retirar-se da actividade social. No Café Filosófico, os participantes resistem conscientemente a esse impulso, procurando evitar a habitual insularidade do pensar. Reflectir em conjunto exige coordenação e sensibilidade ao tempo do outro: esperar que a opacidade de uma ideia se dissipe, qual neblina, para que possamos passear juntos pela mesma paisagem filosófica. O que fazemos é ouvir-nos uns aos outros. Ouvir é participação, enfatizando a semelhança com a fonte e não a diferença em relação a ela. E falar são também as pausas, a respiração entre as palavras, os silêncios. Sendo por definição um espaço de encontro informal, o Café Filosófico acontece em locais públicos, abertos a qualquer um que queira participar. Há 7 anos que ando a fugir do ruído e das “animações” destes sítios, buscando um lugar vazio e silencioso, mas fértil de possibilidades, como a clareira de um bosque. Juntos queremos resgatar o som do pensamento. Próximo Café Filosófico: 24 de Junho às 18:30 Hotel AP Maria Nova Lounge Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico PUB.


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FIOS DE HISTÓRIA

A Última Nau FOTO D.R.

RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

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ultidões eufóricas esperavam-no em ambiente festivo: tocavam os sinos das igrejas, soavam trombetas e foguetes. Dançava-se nas ruas e abriam-se as janelas para o ver passar. Nesse ano de 1573, em todas as vilas e lugares por onde passou foi recebido em clima de apoteose. Foram 43 dias em contacto com o povo e o país real. D. Sebastião alimentava o sonho da heroicidade e da expansão em África. Conquistar Marrocos era a sua ambição maior. E a rodeá-lo, um grupo de jovens confidentes que o empurravam para a aventura. E para o desastre. E esta jornada que o trouxe ao Alentejo e ao Algarve era já o prenúncio de uma nova operação de mobilização de gentes e de vontades, depois da campanha em falso no ano anterior. Partira el rei da cidade de Évora, sexta -feira, pelas dez horas do segundo dia do mês de janeiro. Saiu pela porta do Rossio ao som das trombetas, atabales e charamelas. Entre moços fidalgos da sua Casa e confiança, D. Sebastião leva vestido - assim o descreve o cronista João Cascão – “gabão e roupeta e calças de racha cor de rosmaninho, e chapéu alto pardo”. Trajo pouco apropriado para o mau tempo - chuva, lama

e vendaval -, que se fazia sentir e pelos ruins caminhos que havia de apanhar. Ainda assim, o entusiasmo do povo crescia à medida que soava a notícia da sua chegada a cada lugar. E o que mais tocava aquela gente - avança o cronista - era a »simplicidade do rei falando com todos, embora esquivo no contacto com as mulheres e acomodando-se resignadamente a toda a espécie de alojamentos, mesmo os mais desconfortáveis«. Em S. Pedro das Cabeças, por exemplo, onde se terá travado a batalha de Ourique que El-Rei fez questão de visitar, a comitiva foi recebida por um temporal que arrastou cavaleiros, carroças e animais pelas ribeiras, que saindo do leito, transformavam os campos num imenso mar de água e lodaçal. E em Almodôvar chovia tanto dentro das casas como na rua. Passado o Alentejo, a 21 de janeiro já estava em Lagos que elevou à categoria de cidade. Nessa quarta-feira, ouviu missa na ermida de Nª Sra da Piedade e tomou depois a estrada para Sagres e Cabo de S. Vicente, onde visitou o convento e a vila do Infante. No percurso de regresso, foi sendo recebido e aplaudido por »muita gente de cavalo e a pé«. E num passeio de barco entre Portimão e Alvor, »do mar veio dar-lhe obediência uma muito grande baleia«, que suscitou o comentário de um homem do mar que seguia no bergantim real: »até

os peixes lhe vinham fazer festas«. Percorreu o Algarve de lés a lés, demorando-se mais em Lagos, Loulé, Faro e Tavira. Mas não esqueceu Monchique, que desejou elevar à categoria de vila e concelho, não o tendo concretizado devido à forte oposição de Silves, onde esteve logo de seguida. A 28 de janeiro, já em Albufeira, deu entrada pela principal rua da aldeia que »de uma banda e de outra, estava cheia de gente e às janelas algumas moças bem parecidas«. Como de costume »houve dança de folias de homens e uma dança de meninas pelo que depois o rei foi até à igreja Matriz«. À tarde foi de barco ver a costa e no desembarque tinha a recebê-lo Rui Barreto, que »de Quarteira lhe veio a Albufeira beijar a mão«. Ainda teve tempo para ir às lebres e na quinta feira, dia 29, partiu para Loulé, passando antes por Quarteira, quinta de Rui Barreto, onde no pátio das casas onde se recolheu lhe »correram umas vaquinhas e um touro«. Logo depois, pôs-se el-Rei a cavalo e »foi a uma caçada de porcos ou javalis e alguns veados«. Acabada a montaria, o monarca foi recebido a caminho de Loulé pelo Juiz da vila com perto de 100 cavalos, que »fizeram salva de arcabuzaria«, passando a Loulé onde pernoitou no castelo. No dia anterior à partida para Faro, »fez mercê da alcaidaria-mor de Loulé a Gonçalo Nunes

Barreto que era governador da vila«. Na capital do reino, numa sexta-feira, dia 30 de janeiro, foi a comitiva recebida em festa às portas da cidade e junto à igreja de S. Pedro »fizeram-lhe um arco de madeira, a modo de porta, muito formoso, soberbo e bem concertado de panos de seda». Seguiram-se os pedidos feitos em nome da »rainha vossa avó” que era Senhora da cidade. Nas muitas cerimónias organizadas em sua honra, entregou-lhe o alcaide-mor as chaves da cidade e os »vereadores receberam-no com um pálio de damasco estrangeiro encarnada». O rei ouviu missa no mosteiro de de Nª Sra da Assunção e depois de uma corrida de touros a pé e a cavalo, os quais viu numa das janelas dos seus aposentos, meteu-se num bergantim com o estribeiro mor e Rui Barreto e foi ver a Torre das Vigias, a barra e a ilha que está no próprio rio«. No último dia do mês, depois de ouvir missa na Ermida de Sto António e de voltar ao convento das freiras, pelas dez horas, partiu em direção a Tavira. O primeiro sinal de festa,

deste percurso, foi à igreja de Nª Senhora da Luz e chegado a Tavira foi recebido pelos vereadores, seguindo-se um desfile »por uma rua muito comprida (...) e às janelas muitas mulheres moças (...) e algumas deitavam à comitiva água de cheiro, e a rua estava tão cheia de gente, assim da terra como de castelhanos, que vieram ver a El-Rei de Aiamonte que não havia poder romper«. Sempre com grande pormenor descritivo, o cronista acompanha o resto da jornada por Castro Marim, Aiamonte e Alcoutim. Daqui, subiu ao Alentejo tendo fechado o périplo real em Vila Viçosa, a 14 de fevereiro, ou seja, 43 dias depois. De entre todos, D. Sebastião foi o rei que mais vezes visitou o Algarve. Por todo o lado havia festas e arraiais, corridas de touros, jogos de cartas e caçadas ao javali. Pelas ruas era o alvoroço e todos o queriam ver e tocar. Anos mais tarde, a 26 de julho de 1578, Lagos voltou a ser o cais de partida, desta vez, para a aventura que deitaria tudo a perder. Uma armada formada por 800 navios e um exército de 15 a 23 mil homens - incluindo nobres, cavaleiros, soldados, mercenários e aventureiros -, zarpou em direção a Cádiz e depois a Marrocos. Nada correu bem: contratempos imprevistos, falta de planeamento estratégico, desconhecimento do terreno e impreparação dos soldados. Mais o calor, a fome, a sede e a desproporção de forças entre as hostes oponentes. Tudo junto, conduziram o exército português, esgotado e cansado, à tragédia e a um balanço fatal: 8 mil mortos e muitos milhares de prisioneiros. A jovem nobreza portuguesa e do Algarve que o acompanhou, ficou praticamente dizimada. Perante a derrota que se tornara inevitável, o rei fizera ouvidos surdos às últimas tentativas de outros nobres para aceitar a rendição. Resolveu não acatar os conselhos e atirou simulando coragem: »Morrer sim, mas devagar!(1)« Na poeira do deserto caiu o sonho e o rei com ele. O país logo a seguir. “Foi-se a última nau, ao sol aziago(2)” – assim falou o poeta.

Referências e citações: (1) in »História de Portugal«, Oliveira Martins, 1879; (2) in »Mensagem«, F. Pessoa, Europa América, 2ª edição.

NOTA Com esta crónica, termina esta fase de colaboração quinzenal-

mente regular, do jornalista Ramiro Santos, durante os últimos dois anos. O POSTAL agradece a disponibilidade demonstrada por este nosso colaborador, que foi muito para além do compromisso desinteressadamente assumido. Havemos de voltar a ver-nos um dia destes.


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POSTAL, 17 de junho de 2022

MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

O Algarve de Costa-a-Costa:

Tavira, D. Paio e os Sete Cavaleiros FOTOS PAULO LARCHER/ D.R.

PAULO LARCHER Jurista e escritor

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s comboios que servem Tavira param numa estação excelentemente localizada. Foi dela que numa bela manhã saímos para a praça, saudando de passagem o soldadinho que se despede não de nós mas da moçoila (namorada?, irmã?…) que lhe acena da rotunda num eterno e brônzeo adeus. Dessa praça fronteira à estação partem quatro ruas: dessas, uma leva aos altos da cidade onde bate o seu coração mais antigo, outra dirige-se suavemente para o centro cívico e o dolce far niente do turismo. Foi por esta que marchámos. Está uma temperatura de Verão. “De ananazes”, na expressiva frase do Eça, mas a bela luz de Tavira tudo faz perdoar como dizia Raul Brandão: “A luz, essa sim, é que é admirável: Uma luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra”(1). Tavira é pois o tema desta crónica. Uma Tavira que foi fenícia, romana e moura e que em 1242, pelo braço castigador de D. Paio Peres Correia, Mestre da Ordem de Santiago, se tornou

portuguesa, gerando a lenda local conhecida por os Mártires de Tavira, com direito a festa anual e tudo. - Está uma caloraça dos diabos! queixa-se de repente o António(2), no esforço de subir a íngreme Calçada dos Sete Cavaleiros, mas vida de cronista é mesmo assim: quente ou frio, seco ou húmido, lá vai ele em busca da identidade, da frase que caracterize com precisão o lugar e lhe capte o espírito. Estava mesmo muito calor, tanto mais que uns minutos antes nos tínhamos sentado a repousar numa sombreada esplanada ocupada por turistas de todos os calibres, onde éramos os únicos a usar calças compridas, contrariando a vetusta observação do Manuel da Fonseca - um dos nossos guias espirituais nesta peregrinação algarvia: “Em frente da câmara, as duas esplanadas dos cafés estão cheias de uma gente recatada e bem vestida. Não têm a menor parecença com turistas.”(3) Pois é, os tempos mudam, penso com os meus botões enquanto subimos a rua escorregadia. Procuro com o olhar aquilo que aqui nos traz: as Igrejas de Santa Maria do Castelo e da Misericórdia, porque tenho uma tese que quero provar utilizando estas duas evidências apenas(4). A tese é a seguinte: a religião (pelo menos naqueles tempos da reconquista), não ensinava o bem mas o seu contrário, se bem que disfarçado em roupagens de pura hipocrisia. Tenha o leitor em atenção que atrás de mim o António vai perorando: que nada daquilo é cultura, que cultura é admirar o lindo rio, é perscrutar a fachada dos prédios em busca de detalhes airosos, é estar atento às raparigas bonitas que passam, é saborear um bom petisco e por aí fora… Mas eu teimo em querer contar a história dos Mártires de Tavira. Em linguagem telegráfica é seguinte: D. Paio Peres Correia, mestre da Ordem de Santiago, conquista Cacela;

tempos depois, sete freires vão inadvertidamente fazer falcoaria para uma zona demasiadamente perto do castelo de Tavira, propriedade moura; logo lhes vem ao encontro uma força militar que limpa o sebo aos dignos freis-cavaleiros; D. Paio, mal soube do acontecimento, revoltado com a tremenda afronta, acorre com os demais cavaleiros monges e ataca Tavira, vence as forças inimigas, penetra na cidade e liquida, um a um, todos os seus habitantes, combatentes ou não, num delírio de vingança. Quem serão afinal os mártires de Tavira?, pergunto-me eu, a sete séculos de distância… Pois então, no cima da colina onde assenta a Igreja de Santa Maria do Castelo sobre as ruinas da mesquita moura, irei ter (espero eu) uma primeira visão do sepulcro pétreo dos sete cavaleiros. Vou rezando aos meus santinhos para não nos acontecer como ao Nobel Saramago que deu com o nariz na porta da dita igreja: “Daqui [o viajante] foi até Tavira, aonde terá que voltar outro dia se quiser ver o que trazia na ideia: o Carmo, Santa Maria do Castelo, a Misericórdia, S. Paulo […]”(5). Felizmente uma excelente organização - Artgilão Tavira - que hoje em dia gere os fluxos turísticos nalguns monumentos da cidade, acolheu-nos com uma simpatia exemplar, mostrou-nos os trabalhos de restauro em curso na igreja, permitiu que fotografássemos o sepulcro dos cavaleiros e a putativa lápide funerária de D. Paio e (mais importante ainda sopra-me o António…) fez questão de nos oferecer uma garrafa de um vinho recém lançado que se chama como? Não adivinham? Pois chama-se exactamente: “Sete Cavaleiros do Castelo”! Faltava-nos visitar a Igreja da Misericórdia para provar a tal tese de que vos falei, a de que a Igreja naqueles tempos fazia lembrar Frei Tomás: “Faz como ele diz não faças como ele faz”. De facto, na original e elegantíssima Igreja da Misericórdia (só ela já justifica uma visita a Tavira), o revestimento parietal é todo feito de belíssimos azulejos oitocentistas representando as catorze Obras de Misericórdia. Corria-as todas, tentando encontrar uma que incitasse ao massacre impiedoso dos inimigos ou sequer que o referisse ou desculpabilizasse mas nada, nada mesmo. É que, vamos lá ser francos, trucidar os inimigos, mais as suas mulheres e os seus filhos, e os velhos e os cães e gatos, até se pode compreender no desvario de uma refrega, mas fazer disso moti-

vo de orgulho e festa não consigo compreender. A guerra é sempre um retrocesso da humanidade e devemos ultrapassá-la e não festejá-la. Quem não se está a lembrar agora, ao ler estas linhas, dos sangrentos episódios da nossa vizinha, digamos assim, Ucrânia? A guerra acontece, pois, e devemos honrá-la mas nunca celebrá-la. É a minha opinião, claro. Outras haverá.

- Achas mesmo que a tua tese sobre a hipocrisia humana carecia de demonstração? - pergunta muito irónico o António.

Via-se bem que ele não estava muito interessado numa resposta, pelo que meti a viola no saco e olhando o pacífico Gilão que brilhava aos nossos pés, dei um valente trago no meu Sete Cavaleiros do Castelo e, ao fazê-lo, veio-me à memória o nosso amado Manuel da Fonseca quando cinquenta anos atrás, fitando talvez este mesmo rio, ele pensou: “Sob o céu cor de cobre, os arcos da ponte, desenhada no espelho parado da água, olham espantados para a foz, sonhando tempos antigos.”(6). (1) Guia de Portugal, Estremadura, Alentejo, Algarve, edição da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1927 . (2) António Homem Cardoso, fotógrafo e amigo, que me acompanha neste trajecto do Algarve Costa-a-Costa. (3) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986, p. 87. (4) Veja bem o leitor que me defendo bem não caindo na armadilha de pretender visitar as vinte e muitas igrejas de Tavira, cujo número exacto, aliás, é ainda hoje fonte de muita controvérsia. (5) José Saramago, Viagem a Portugal, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1985, p. 221 (6) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986, p.88


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ESPAÇO ALFA

Sobre a fotografia minimalista

SAÚL JORGE LOPES Membro da ALFA - Associação Livre Fotógrafos do Algarve

S

FOTO D.R.

ão histórias contadas por imagens que despertam emoções, mas despidas de elementos e capazes de desencadear um forte impacto visual. Fotografia exigente na mobilização e participação de quem vê. Faz apelo ao uso e abuso da criatividade Uma fotografia de sugestão pela ausência ou redução dos elementos figurativos presentes na imagem. A criação ou utilização do espaço negativo amplia a visão do que nos rodeia. É uma fotografia de realce do detalhe, que obriga a uma composição, com foco no essencial. Utilização do contraste e o realce das texturas confere-lhe dimensão. Linhas que conduzam o olhar, definam planos ou espaços, simetrias ou elementos repetitivos, fazem parte integrante da sua estrutura conceptual. Tudo em harmonia vai permitir criar ou sugerir uma atmosfera capaz de construir uma história. Uma fotografia que permita que o fotógrafo e o observador se identifiquem e assumam o essencial do momento registado. Exige uma aprendizagem permanente acrescentando ao nosso trabalho rigor e inovação.

ESPAÇO AGECAL

Culturas: de guerra e de paz JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

“Os governos têm função primordial na promoção e no fortalecimento de uma Cultura de Paz”. Artigo 5º da Declaração sobre uma Cultura de Paz, ONU 13 de setembro de 1999

A

história da humanidade evidencia uma permanente e incessante luta de grupos pelo domínio e alargamento de territórios e apropriação de recursos. Quais as causas? A origem das guerras tem motivado investigação em diversas áreas

disciplinares, surgiram teorias filosófico-morais e religiosas, biológicas sobre selecção e sobrevivência (Lorenz), demográficas centradas na sobrepopulação (Malthus), económicas que analisam a apropriação da riqueza por grupos dominantes, culturalistas centradas na transmissão e ritualização de comportamentos, psicossociológicas sobre os instintos agressivos e patologias ligadas ao exercício do poder. Toda a relação social é cultural, consubstanciada em valores. O ser humano não é naturalmente bom ou naturalmente mau, a educação e cultura determinam as concepções da vida social, a relação com os outros, o conflito e a cooperação. O antagonismo e o conflito surgem quando grupos humanos desejam os mesmos recursos. A palavra tem

nesses contextos função decisiva, Lord Bertrand Russel aconselhava a evitar discursos públicos emotivos. Formas de organização dos sistemas políticos podem prevenir ou evitar a concentração de poder num individuo ou grupo. Actuar preventivamente sobre as causas dos conflitos é desenvolver valores de paz. Sociedades educadas para a competição, interna e externa, não só consideram normal a desigualdade social, as supremacias nacionais, económicas, sociais e raciais, como são estruturadas para a exclusão e o uso da agressividade. As culturas de guerra e de paz estão em oposição, patentes na luta de Ghandi pela descolonização e independência da India, de Mandela na Africa do Sul para acabar com

o “apartheid”, ambos apelaram à resistência pacifica e alteraram situações de injustiça. A Europa do humanismo, do património e das artes, das obras e monumentos que atraem milhões de visitantes, é também uma Europa belicista. Ocorreram no continente devastadoras guerras entre impérios, movimentos civis e religiosos, no século XX duas guerras provocaram no mundo 38 milhões de mortos (1914-18) e 72 milhões (1939-45). A Europa nunca foi ou sequer é uma unidade cultural, linguística ou religiosa. O continente possui 50 Estados, com percursos históricos, conflitos étnico-culturais, de fronteiras e por recursos, preferível seria um modelo de integração inclusivo, imune a blocos geopolíticos e militares, privilegiando ambiente,

economia, cultura e ciência. A desvalorização das culturas é um rastilho, discursos de superioridade moral, cultural e económica separam os povos, humilham outros e dificultam relações de paz.. A cultura da paz, compreendida e usada nas políticas publicas e na diplomacia, induz vantagens económicas, ambientais e de desenvolvimento social. Os acontecimentos que vivemos justificam reflexão e discussão aberta, sem preconceitos ideológicos, em particular sobre as causas das guerras, o armamentismo como doutrina geopolítica e de mercado, o papel dos media e da cultura, as fragilidades do sistema alimentar global. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico PUB.


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Entrevista a Richard Zenith sobre Pessoa: U “Pessoa, por mais desdobrado que fosse, por mais dispersado e repartido entre ‘outros eus’, era apenas um ser humano”

Richard Zenith passou décadas a estudar a obra pessoana e a reunir documentação para reconstituir a vida do poeta FOTO RICARDO LOPES / D.R.

P Quando lemos o título Pessoa. Uma biografia é impossível não pensar, primeiro, que há um jogo com o artigo indefinido. O leitor deve associar este Uma a um trocadilho com as várias vidas de Pessoa, multiplicado nos seus heterónimos, ou apenas ao facto de que toda a biografia é sempre passível de uma futura revisão?

“A vida imaginária de Pessoa era como que infinita” PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

A

primeira edição em portug u ê s Pe s s o a : Um a Biografia, de Richard Zenith, chegou às livrarias a 19 de maio. Publicado numa belíssima edição de capa dura da Quetzal, e ilustrada com fotografias, este assombroso livro com quase 1200 páginas, publicado nos EUA e na Grã-Bretanha em 2021, chega-nos agora com tradução de Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes. O mais completo trabalho biográfico sobre Fernando Pessoa até hoje, foi escolhido como um dos melhores livros de 2021 por prestigiadas publi-

cações anglo-saxónicas, como o The New York Times. E, claro, finalista do Prémio Pulitzer 2022 – o que só por si é um grande mérito. A biografia está belissimamente escrita. A prosa, erudita e clara, arrebata-nos. O biógrafo adota um tom muito próximo do narrativo, pelo que esta Uma biografia, lê-se com o arrebatamento próprio de um romance. Ao lermos sobre a vida de Pessoa, contactamos também com um completo retrato da viragem do século XIX e início do século XX. Richard Zenith passou décadas a estudar a obra pessoana e a reunir a imensa documentação que lhe permitiu reconstituir a vida do poeta. Fernando Pessoa nasceu em Lisboa num dia de Santo António – 13 de junho de 1888 –, e foi também nesta cidade, de que nunca se afastou durante a idade adulta (depois de passar os seus anos de infância e juventude

em Durban), que o poeta faleceu, aos 47 anos, no dia 30 de novembro de 1935. Na altura da sua morte, quase ninguém tinha lido um único poema seu. Na sua famosa arca de papéis soltos deixou um extraordinário legado literário, filosófico e espiritual; um verdadeiro quebra-cabeças ainda por montar. Richard Zenith, autor norte-americano naturalizado português, radicado em Portugal há mais de 30 anos, é escritor, tradutor, investigador, e um dos mais destacados especialistas (nacionais e internacionais) da vida e obra pessoanas. Presenteia-nos agora com aquele que é, certamente, o livro do ano, possivelmente da década. P O Richard adopta aqui um tom muito próximo do narrativo, pelo que esta Uma biografia prende-nos como um romance. Não se coíbe aliás, de inserir um

“certamente” ou “muito possivelmente” para escrever o que considera poder ter acontecido, criando cenários possíveis, sem exatamente fantasiar. Chega a tecer quem Pessoa teria sido, se tivesse ido viver para Inglaterra, como quase aconteceu… Este tom narrativo chegou-lhe naturalmente como parte do processo de reconstruir uma vida? R O tom narrativo foi-me surgindo por uma necessidade. Biografar é contar a história de uma vida. Uma miscelânea de factos não faz uma história. Têm de ser narradas com arte e sensibilidade, que espero ter adquirido graças ao meu longo contacto com Pessoa. Sim, há pinceladas do “muito provavelmente” ou “ao que parece”. Tive o cuidado de sempre indicar aos leitores quando não há bem certeza deste ou daquele pormenor.

R Por um lado, queria realçar que Pessoa, por mais desdobrado que fosse, por mais dispersado e repartido entre “outros eus”, era apenas um ser humano. A biografia é sobre uma vida – uma vida, é certo, bastante invulgar. Por outro lado, não existem biografias definitivas e não apenas por serem passíveis de futuras revisões. Qualquer biografia é apenas uma maneira de contar a vida em causa. Haverá sempre outras maneiras.

Autor é um dos mais destacados especialistas, nacionais e internacionais, da vida e obra pessoanas FOTO HANMIN KIM / D.R. P É surpreendente como, para usar palavras suas, um homem «vulgarmente conhecido como “o Pessoa”, não parecia haver pessoa nenhuma, apenas poemas e personae» (p. 21). No entanto, esta reconstrução da vida e obra do poeta estende-se por mais de 1000 páginas. Isto deve-se a num tempo de vida >


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LETRAS & LEITURAS

Uma Biografia «comentários políticos, textos históricos, tratados sociológicos» (p. 23).

pessoa pode ser visto como uma mostra de humilde subjetividade?

R Uma pessoa desligada e distanciada está assim em relação a um certo mundo. Esse mundo faz parte do filme; ajuda-nos a visualizar e perceber o tipo e o grau do distanciamento. E Pessoa — embora profundamente afastado do mundo num certo sentido — estava ao mesmo tempo muito atento a tudo que acontecia ao redor dele. Era um leitor assíduo de jornais e escreveu com paixão sobre os assuntos do dia, incluindo, por exemplo, centenas de páginas sobre a primeira guerra.

R Não é bem isso. Deixando-me surgir em primeira pessoa, pontualmente, ao longo do texto, eu queria recordar aos leitores que, num certo sentido, estou ao mesmo nível deles, compartilho com eles a experiência de descoberta e surpresa.

“Pessoa era dotado de uma inteligência invulgar que se manifestou cedo”

O escritor foi finalista do prémio Pulitzer 2022 FOTO HANMIN KIM / D.R.

> terem cabido muitas existências? R Muitas existências, mas também muitíssimos interesses e uma curiosidade em fermento permanente. A vida imaginária de Pessoa era como que infinita. P A forma como ao longo da biografia se refere a Fernando, quando jovem, e Pessoa, como autor, foi premeditada ou terá acontecido naturalmente essa cisão? R Naturalmente. Foi uma maneira, entre outras, de aproximar-me – e de aproximar os leitores – ao biografado nas suas diversas idades. P Curioso aliás como decide abrir a biografia com a lista das «Dramatis personae», isto é, as dezenas de heterónimos ou autores fictícios criados por Pessoa. No entanto, refere ainda que aqui contempla-se a «maior parte». Será possível chegar eventualmente a um número preciso? Haverá ainda grandes revelações na arca de Pessoa? R Acho que não vale a pena contabilizar o número exacto de heterónimos e outros autores fictícios. Houve mais

de cem nomes a que Pessoa contemplou atribuir alguma tarefa literária. Por vezes eram realmente apenas nomes, sem nenhuma espessura biográfica. Há duas ou três dezenas de autores fictícios com uma obra que, pequena ou grande, é de algum modo significativa. Maria José, por exemplo, é autora de uma única carta de amor, mas é fascinante. Há ainda muitos papéis da arca por publicar e alguns deles podem esclarecer o nosso entendimento de Pessoa enquanto pensador político e espiritual. Grandes revelações? Não me parece, mas posso estar enganado. Pessoa tem uma rara capacidade de surpreender na sua vida post-mortem. P Quer fale de Durban quer fale de Portugal, a contextualização do mundo e do tempo de Pessoa ocupa-lhe várias páginas, o que aproxima esta biografia de um portentoso retrato do final do século XIX e do início do século XX. Ainda que o poeta pareça desligado e distanciado do mundo que o rodeia, este magnífico fresco ajudou-o a compreender melhor a obra de Pessoa? Afinal ele foi também um brilhante ensaísta, e autor de

P Da mesma forma, sendo um estrangeiro ainda que radicado em Portugal, há mais de 30 anos, parece tornar possível uma imodéstia na forma como elogia Pessoa, comparando-o a «poetas tão distintos como Virgílio, Petrarca, Dante e Shakespeare» (p. 159). Da mesma forma que quando descreve Lisboa, o faz como um recém-enamorado. Acha que esta perspetiva a partir de fora coloca, paradoxalmente, Pessoa e a sua cidade na justa perspetiva? R A sua citação está truncada. Compa-

ro Camões, não Pessoa, com Virgílio,

Petrarca, Dante e Shakespeare. Comparo Pessoa com modernistas do calibre de Eliot, Pound, Musil e Yeats. Creio que o meu alto apreço pelo biografado é objectivo, justo. Vale a pena frisar, também, que não considero tudo que Pessoa escreveu genial e não me coibi de abordar aspectos do homem menos agradáveis, como a sua misoginia, um certo racismo, um certo elitismo, um possível anti-semitismo. Quanto a Lisboa, o meu enamoramento com a cidade começou há quase 35 anos e continua até hoje. P Terminar a escrita de um livro, que é também um acutilante e decisivo ensaio sobre o conjunto da obra do autor, com a vida como pano de fundo, levou-lhe mais de 12 anos. Será seguro afirmar que sente sobretudo libertação? Ou já se prepara para novos desafios? R Acertou. Não só me preparo, já me empenho num novo desafio de escrita. Mas não quero dizer mais.

P A certa altura podemos ler que «Pessoa já estava a treinar-se atleticamente (…) para se tornar um olímpico da literatura.» (p. 211) Noutro passo, também se pergunta «Pode o génio, afinal, ser uma questão de destino?» (p. 86). Ao ler esta biografia, a questão que se impõe, logo quando Fernando revela o seu brilhantismo na escola, é: Pessoa era naturalmente um génio ou, sobretudo, empenhou-se, apesar da sua dispersão, em transformar-se num génio? R Pessoa era dotado de uma inteligência invulgar que se manifestou cedo, mas as suas obras juvenis, embora revelem preocupações e características do poeta maduro (a invenção de alter egos e escritores fictícios, por exemplo), ainda não denunciavam indícios de génio. Pessoa, de facto, preparou-se para ser um génio. Queixava-se da sua fraca força de vontade para completar obras extensas, como o seu Fausto fragmentário ou o Livro do Desassossego, mas foi por querer e insistir muito que se tornou o escritor português mais genial do século XX. P Neste seu trabalho também ele genial, não se inibe de ilustrar como é que decorreram algumas das suas descobertas, ao longo desta tarefa hercúlea. Por exemplo, quando explica como encontrou um poema inédito de Pessoa (p. 176) nas suas pesquisas numa biblioteca em Durban. Assumir-se na primeira

Obra, com quase 1200 páginas, é a mais completa biografia sobre Fernando Pessoa escrita até hoje


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