CULTURA.SUL 109 - 17 NOV 2017

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o Pร BLICO

NOVEMBRO 2017 | n.ยบ 109 5.391 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve d.r.

Juventude, artes e ideias: d.r.

Ken Follett: Uma Coluna de Fogo p. 7

J celebra cinco anos

p. 2

Filosofia dia-a-dia: d.r.

Depois da noitada... Espaรงo AGECAL:

p. 3

d.r.

ricardo claro

2018 Ano Europeu do Patrimรณnio Cultural p. 5 Da minha biblioteca: d.r.

Revistas a Sul

Faro, Marcos de Urbanismo p. 9

p. 6


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17.11.2017

Cultura.Sul

Editorial

Missão Cultura

Faro Capital Europeia da Cultura 2027 não pode esperar

A arqueologia urbana no Algarve

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

Até 2021 Faro terá de apresentar a sua candidatura final a Capital Europeia da Cultura para 2027. A capital algarvia, se ganhar a nomeação destinada a Portugal nesse ano, partilhará com uma cidade na Letónia o título. São entretanto várias as cidades nacionais que já manifestaram de forma mais ou menos formal a intenção de se candidatarem a acolher em 2027 o evento. Évora, Guarda Aveiro e Coimbra estão entre elas. As enormes vantagens que a escolha de Faro traria para a cidade e para a região são por demais evidentes, mas também o são de igual modo evidentes as 'armas' de algumas das cidades portuguesas candidatas nesta 'luta' pelo título de Capital Europeia da Cultura. O desafio enunciado e lançado pelo presidente da Câmara farense para a conquista desta distinção e de tudo o que a ela está associado não será assim fácil e urge caminhar nesse sentido de forma constante e credível. Entretanto, a Câmara de Aveiro anunciou no seu portal na internet que vai acolher em Setembro de 2018 uma das Conferências Europeias de Cidades Candidatas a Capital Europeia da Cultura. Aveiro coloca-se assim na linha da frente do processo de escolha ao acolher o evento onde cidades candidatas e escolhidas para acolherem a Capital Europeia da Cultura debatem em rede estratégias de desenvolvimento das respectivas iniciativas no quadro desta distinção. Não podemos dormir na forma se queremos de facto marcar nesta corrida um lugar com expectativa de vitória final. 

d.r.

Direção Regional de Cultura do Algarve

A Universidade do Algarve e a Faculdade de Ciências Humanas e Sociais acolheram no passado mês de outubro o IV Fórum Luso Brasileiro de Arqueologia Urbana. A este propósito desenvolveu-se uma reflexão sobre o assunto da arqueologia urbana no Algarve salientando-se que hoje na região se assiste a uma crescente eficácia dos procedimentos de salvaguarda desenvolvidos no âmbito das operações urbanísticas e de outras iniciativas com impacte no território: seja através de metodologias de caraterização não invasivas (batida de terreno e procedimentos geofísicos) ou pouco invasivas (procedimentos geoarqueológicos), que permitem identificar os vestígios soterrados, seja através de escavações arqueológicas que permitem a caraterização das estruturas arruinadas e contextos a elas associados. Nessas circunstâncias, a tomada de decisão relativa à preservação física dos vestígios (e eventualmente à sua valorização) ou à sua «conservação pelo registo científico» tem, cada vez mais, por fundamento critérios objetivos e informações concretas, ainda que nem sempre seja assim entendido por alguns

No Algarve equaciona-se a criação de uma Reserva Regional de Arqueologia agentes do território. A administração central tem um papel regulador fundamental, ao qual se soma o papel das autarquias na gestão do património arqueológico, prevista nos Planos Municipais de Ordenamento do Território e cuja salvaguarda se encontra preceituada, em alguns municípios (nomeadamente Faro e Lagos) através das Cartas de Sensibilidade Arqueológica (Cartas de Risco) incluídas nos regulamentos municipais de urbanização e edificação. Aliás, a sua eficácia na gestão do território urbano constitui-as como um desiderato e uma ambição que se defende para todas as cidades e principais vilas do Algarve até 2030. Os procedimentos preventivos tornados sistematicamente obrigatórios por lei, e seguindo o princípio do «poluidor-pagador» (neste caso, do «destruidor-pagador»), deram origem na região (tal como em todo o país), desde finais do século XX, a um mercado de prestação de serviços especializados de arqueologia e ao aparecimen-

to de uma atividade privada de caráter comercial, com um apreciável volume de negócios e um crescente número de profissionais envolvidos. Constrangimentos à arqueologia no espaço urbano Há dois constrangimentos evidentes nos processos de arqueologia urbana: i) ao nível da produção e difusão do conhecimento mesmo naqueles casos em que a intervenção se limita a uma tarefa exclusivamente técnica, deve resultar da intervenção dos arqueólogos a utilidade científica dos dados obtidos e a produção de conhecimento. Contudo, se convertida em atividade puramente comercial, uma deficiente prática do exercício da arqueologia pode prejudicar a qualidade do conhecimento científico produzido. Mas de pouca utilidade será acrescentar novas informações e produzir conhecimento se este não for partilhado: tornando os dados acessíveis à comuni-

dade científica mas também divulgando-os fora do restrito círculo dos profissionais da arqueologia. Isto é, devolvendo o conhecimento à comunidade. ii) ao nível do arquivo e conservação dos espólios Os espólios arqueológicos resultantes dos numerosos trabalhos arqueológicos efectuados, considerados legalmente «património nacional», encontram-se frequentemente sob responsabilidade dos arqueólogos e/ ou empresas de arqueologia responsáveis pela realização dos trabalhos arqueológicos. São largos milhares de contentores, que os museus deveriam receber em depósito, «devidamente tratados, inventariados, acondicionados e referenciados, acompanhados da documentação produzida no decurso dos trabalhos de campo e de gabinete, indispensável ao seu manuseamento e compreensão», conforme determina o Decreto-Lei n.º 164/2014, de 4 de novembro. Acontece que a maioria dos museus aptos para rece-

ber esses espólios não possui instalações adequadas para tal ou espaço disponível. No Algarve, mais concretamente, equaciona-se a criação de uma Reserva Regional de Arqueologia - ou de uma rede de reservas - que possa acolher a totalidade desses espólios e arquivá-los de forma a poder disponibilizá-los à investigação e, assim, torná-los socialmente úteis. Os centros de estudo e as universidades enquanto pólos de reflexão, de investigação e de geração e de difusão de conhecimento, que têm tido no caso particular da Universidade do Algarve uma parceira privilegiada de grande saliência na arqueologia, na zooarqueologia e também na geoarqueologia e na arqueologia subaquática, entre outras, têm-nos ajudado a conhecer melhor a evolução humana e o nosso território. As temáticas, a multidisciplinaridade do conhecimento convocado, os oradores e os vários modelos de partilha da investigação que integraram o diagnóstico da situação actual da arqueologia urbana encontraram ainda questões difíceis para responder: Arqueologia para quem? Que arqueologia? Que técnicas utilizar? Com que critérios se definem os trabalhos arqueológicos necessários? De quem é a responsabilidade do espólio? Entre outras, que só com a partilha de conhecimento irão conhecendo respostas. 

Juventude, artes e ideias

O J completa cinco anos de edições

Jady Batista Coordenadora Editorial do J

Parece que foi ontem que demos início a este projeto de divulgação do melhor que se faz em Olhão, nas áreas da juventude, da cultura, do desporto e da educação. Entretanto, já passaram cinco anos, 58 edições

mensais contínuas, a promover Olhão e as nossas gentes. Em 2012, quando um grupo de jovens entre os 16 e os 18 anos, colaboradores da Casa da Juventude de Olhão (CJO), decidiram dar um passo em frente no trabalho que já se vinha a fazer, com a edição de uma fanzine (um desdobrável em tamanho A4), poucos acreditaram que hoje estariam aqui. Mas acreditou João Evaristo, na altura responsável pela CJO, e o actual presidente da Câmara Dr. António Miguel Pina (na altura vereador da Juventude). O objetivo foi criar uma pu-

blicação feita por jovens, para os jovens, para promoção das suas ideias, projectos, actividades, mas também um espaço de divulgação de informação de interesse para a juventude. Ficou desde logo definido que a primeira página daria destaque a um jovem talento, por considerarmos que havia essa lacuna a nível dos órgãos de comunicação social - dar destaque aos jovens e às artes. Ao longo de 58 edições destacámos mais de meia centena de jovens talentos. A cada ano, fomos alterando as rubricas e a paginação, sempre no sentido

de melhorar, incluir mais assuntos, responder às necessidades e interesses de quem nos lê. Mais de 500 páginas, 60 jovens talentos com destaque de primeira página, 750 notícias, 50 entidades divulgadas, compõem o currículo do J - Juventude Artes e Ideias. Acresce, ser a publicação com maior tiragem de Olhão e uma das maiores do Algarve; um projecto ímpar no país; uma publicação que para além da sua distribuição em mão e nos vários pontos do concelho acompanha O Olhanense e tem destaque mensal no Cultura.Sul, o caderno de artes do

Postal do Algarve (distribuído com o jornal Público), está presente na internet, disponível no ISSUU, promovida pelo grupo de Facebook - inOlhão, com mais de 16 mil membros e com página própria, com mais de seis mil seguidores. Ao fim destes cinco anos cabe-me agradecer mais uma vez a honra de poder coordenar este projecto desde a primeira edição, agradecer e dar os parabéns a todos os colaboradores, assim como a todos os que têm participado nesta iniciativa e, acima de tudo, aos leitores que nos têm acompanhado. 


Cultura.Sul

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Filosofia dia-a-dia

Depois da noitada... d.r.

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

AGENDAR

Sempre me impressionou o final do Simpósio. O que aí se relata é de somenos importância com respeito aos conteúdos filosóficos desse diálogo platónico que versa sobre Eros. Tudo se passou em casa de Agatão, que oferecia uma ceia para, de forma mais íntima, celebrar o facto de a tragédia que escrevera ter sido premiada. Para a ocasião, Sócrates banhou-se, vestiu-se a preceito e calçou até umas sandálias, o que não era nada habitual, pois costumava caminhar descalço. Desse convívio, em que se comeu até ficar saciado mas se bebeu com moderação a fim de “não transtornar as cabeças” para poderem conversar, ficaram para a posteridade os discursos de Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agatão e Sócrates, e também o apaixonado elogio de Alcibiades a este último. Findos os ditos discursos, uma nova onda de convivas juntou-se à festa para beber e celebrar. Estes “não mais obedeceram a qualquer regra e foram por isso obrigados a beber vinho em profusão”. Por isso mesmo, Fedro, Erixímaco e os outros retiraram-se. Aristodemo, conviva que esteve presente nessa noite e que relatou os acontecimentos a Apolodoro, cujas palavras Platão terá então registado, afirma que tendo dormido longo tempo, pois “os galos cantavam e o dia já despontava quando acordou”, apercebe-se então de que os outros ou ainda dormiam ou já tinham partido e que “apenas Agatão, Aristófanes e Sócrates se mantinham ainda acordados e bebiam por uma grande taça, que passava da esquerda para a direita”. Até que por fim

O Simpósio aconteceu na casa de Agatão, que ofereceu uma ceia para celebrar o facto da tragédia que escrevera ter sido premiada Aristófanes e Agatão também adormeceram, já a manhã ia alta. Eis aqui o último parágrafo deste relato: “Tendo-os deixado adormecer, Sócrates levantou-se e saiu. Aristodemo seguiu-o como era seu costume, Sócrates dirigiu-se ao Liceu e depois de se ter banhado, passou o dia nas suas ocupações habituais e, finalmente, ao cair da tarde recolheu a casa para descansar.” Causa-me perplexidade o facto de Sócrates, depois de uma noitada, em vez de descansar ter ido para o Liceu. Ali deverá ter praticado ginástica e depois terá iniciado alguma conversa peripatética. O pós-noitada foi um dia como os outros: não alterou em nada as suas rotinas, não parecendo que os excessos de comida e de bebida aliados à falta de um sono reparador lhe tenham causado qualquer cansaço ou afrouxamento das qualidades físicas e intelectuais. Evidentemente, a maioria de nós não poderia ter-se comportado desse modo. Muito simplesmente, seriamos incapazes dessa disciplina. Esta é uma das palavras que tais como a honra, a delicadeza ou moral, está a ficar fora de moda! Como fora de moda estão certos comportamentos que se lhe associam.

Disciplina Entre os sinónimos das palavra disciplina encontramos os seguintes: obediência, acatamento, restrição, sujeição, subordinação, cumprimento, condicionamento. A sua relação com o estabelecimento de limites é nítida aqui. Tendemos a pensar que o limite é algo mau, no entanto, para alguns filósofos pré-socráticos, o limite era mais perfeito que o ilimitado. A filósofa María Zambrano (1904-1991) também reflecte sobre o limite de forma positiva: “o leito é tão necessário ao rio, que sem ele não haveria rio, mas pântano. As águas ao evadir-se teriam um instante de ilusão de ter alcançado liberdade, de ter recuperado a integridade do seu poder. Mas o poder ir-se-ia esgotando perante a falta de limites; mesmo sem mais obstáculos que a extensão ilimitada, a fúria da água desceria vencida sobre o plano ilimitado. O leito faz o rio tanto como a fúria da água que por ele passa”. No campo do yoga, a disciplina ou tapas, por vezes traduzida como sacrifício, é a terceira das Nyamas (normas de auto-aperfeiçoamento): “tapas traz a destruição das impurezas, o que leva à perfeição dos sentidos do

corpo. [kaya]. [A realização do tapas traz inteligência corporal para o indivíduo, o que significa que ele age e se expressa com muito mais desenvoltura e espontaneidade que os demais].” (Patandjali Sutra II, 43) No Budismo tibetano a disciplina é o segundo dos seis paramitas ou perfeições em que há que treinar. Antes haverá que ter treinado nos quatro incomensuráveis que fazem parte do bodhichitta de aspiração: amor, bondade, compaixão, alegria e imparcialidade. Quando a aspiração, nestas quatro componentes, estiver estabilizada pode então iniciar-se o treino nos seis paramitas pertencentes ao bodhichitta de aplicação: generosidade, disciplina, paciência, diligência, concentração e sabedoria ou insight. Os primeiros quatro têm três sub-divisões cada um, o quinto duas sub-divisões e o sexto é de apenas um tipo. Concentremo-nos no paramita da disciplina que, como dissemos, se subdivide em três aspectos. O primeiro consiste em abster-se de acções prejudiciais. As acções prejudiciais, por sua vez, podem ser de dois tipos: a primeira diz respeito a cometer qualquer das dez acções não virtuosas que se

“SÍNDROME” 17 NOV | 21.30 | Cine-Teatro Louletano A Companhia Olga Roriz apresenta o seu mais recente espectáculo. Uma proposta inquietante e intensa, entre teatro e dança contemporânea

organizam em três grupos: corporais (matar; roubar; má conduta sexual); verbais (mentir; caluniar ou intrigar, falar grosseiramente; manter uma conversa ociosa); mentais (invejar; ter má vontade; ter uma visão errónea). Além destes dez, existe um outro tipo de comportamento prejudicial que consiste em quebrar um voto. Evitar estes dois tipos de transgressões é o primeiro modo de aplicar a disciplina. O segundo tipo de disciplina consiste em ser virtuoso através de pensamentos, palavras e actos. Não importa se o que conseguimos fazer é algo grandioso ou muitíssimo pequeno, basta que seja íntegro, honrado. O terceiro tipo de disciplina consiste em trabalhar para o bem dos outros. Existem imensas formas de beneficiar os outros directa ou indirectamente conta, sobretudo, a motivação com que o fazemos. Os primeiros cinco paramitas precisam de ser abraçados pelo sexto, o insight, uma sabedoria liberta de conceitos. Contudo, saber enumerar os paramitas na ordem correcta e conhecer todas as suas sub-divisões e articulações de nada serve, se não se praticar. No dia a dia, como treinar a disciplina?

Escolha uma tarefa que tem de ser feita e observe a sua disposição. É boa ou nem por isso? Quando eu era pequena a minha mãe costumava dizer-me: “é melhor aprenderes a gostar de fazer a cama porque tens de a fazer todos os dias!” Grande conselho! Ao fazer as coisas com gosto tudo flui melhor, parece que custa menos. Não se trata aqui do sentimento de agrado que resulta da tarefa cumprida, terminada, mas antes do desfrute que se obtém durante a sua realização. Para tarefas menos atractivas podemos concentrar-nos nos benefícios que acarretam tornando-as, desse modo, mais apetecíveis. Cultivar a boa disposição é imprescindível, pois qualquer tarefa se desempenha, então, mais facilmente. E como se cultiva a boa disposição? Treinar a generosidade - primeiro paramita - é um método eficaz. O acto de dar, de partilhar, põe-nos imediatamente bem dispostos. E de bom humor somos muito mais capazes de ser disciplinados. Se observarmos bem, cada paramita facilita o que se lhe segue. Veremos como no próximo Café Filosófico! Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com 

“DRENAGEM” Até 24 NOV | Empresa Municipal de Águas e Resíduos de Portimão Adriana João dedica a sua exposição de fotografia ao tema da água no seu todo, mostrando sensações, emoções e reacções humanas


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Cultura.Sul

Letras e leituras

O Pianista de Hotel, de Rodrigo Guedes de Carvalho roger serrasqueiro, garage films

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Rodrigo Guedes de Carvalho, nasci� do em 1963 no Porto, é uma presença assídua na vida ������������������������ de muitos portugue� ses, como apresentador do telejornal das 20 horas na SIC, mas é bom lem� brar que já escrevia antes de se tornar conhecido como pivô e nos entrar pela casa dentro. Escreveu ainda argu� mentos cinematográficos, como Coisa Ruim, filme realizado pelo irmão Tiago Guedes, e um guião para teatro. Perten� ceu à direcção de informação da SIC en� tre 2007 e 2016, interregno em que sus� pendeu a sua paixão pela escrita. Dez anos depois do seu anterior romance, Canário, Rodrigo Guedes de Carvalho regressa à ficção, com O Pianista de Hotel, o seu quinto romance, publicado em Maio de 2017 pela Dom Qixote, e que soma já várias edições. Apesar da frase colocada em epígrafe do livro, «Boy meets girl», apresentada como «Ideia de Hitchcok para um fil� me», nestas páginas não se toca nenhu� ma melodia de amor nem nenhum am� biente de fundo como música de hotel ou de elevador. A melancolia é aliás o tom dominante. Vivem ambos na mesma cidade, o que começa a aproximar-se mais das comédias românticas de Woody Allen, pois imagina o leitor uma série de pe� ripécias e encontros que os irão aproxi� mar. Mas o narrador vai apenas e suces� sivamente apontando as várias ocasiões em que se frustrou um encontro entre Maria Luísa e Luís Gustavo, os dois pro� tagonistas centrais da história, que aliás partilham um nome próprio comum: «Luís Gustavo ainda não sabe, mas irão jantar no restaurante onde Maria Luísa trabalha.» (p. 183). Mas nem essa afini� dade do nome os salva dos recorrentes desencontros. Os capítulos são normal� mente alternados, centrados em torno de cada uma destas personagens, e os episódios são muitas vezes apresenta� dos na sua simultaneidade, como se pode ler logo no segundo capítulo: «Sensivelmente à mesma hora, num outro ponto da cidade, mas afinal tão parecido.» (p. 25). Esta técnica narrati� va aproxima aliás a prosa do autor da escrita de argumento. Maria Luísa e Luís Gustavo partilham também a condição de orfandade, pois se ele foi abandonado pela mãe, logo após o parto, ela perdeu a mãe quando tinha dezasseis anos. Apesar da super� lativa beleza de Maria Luísa, que o nar� rador por pudor e respeito se esquiva a descrever com exactidão para não

O jornalista e romancista Rodrigo Guedes de Carvalho a surpreendermos à saída do duche, invejada pela mãe que se sente traída quando o seu parceiro tenta violar a fi� lha, embora possamos presenciar em vários momentos como outros se viram para olhar o corpo magnífico de Maria Luísa, apesar de até uma médica colocar em risco a sua carreira para poder che� gar a esta jovem empregada de mesa num restaurante, apesar do refrão que perpassa no romance «O nosso corpo chega sempre aos outros antes de nós», a solidão de Maria Luísa permanece e nada a parece resgatar da monotonia. Maria Luísa vê-se mesmo incapacitada de amar a cínica tia, o único familiar que lhe resta e que a nomeará sua her� deira. Podemos remeter-nos, uma vez mais, para as frases em epígrafe do ro� mance e que dão o tom da narrativa, neste caso um excerto da letra da músi� ca «Eleanor Rigby» dos The Beatles: «Ah, look at all the lonely people». À solidão junta-se um sentimento de frustração ou de insatisfação, pois todas as personagens se sentem aquém das suas possibilidades e desejos: Maria Luísa não pôde prosseguir os estudos, Luís Gustavo queria ser médico mas ficou-se pela profissão de enfermeiro,

o cirurgião Paulo Gouveia sente-se cansado da sua carreira, a mãe de Maria Luísa, «segunda secretária de um subsecretário» aspirava a mais mesmo que para isso usasse o corpo (ao contrário da filha, que nem se apercebe do corpo que tem), Saul Samuel que passou a vida como bailarino numa discoteca gay até que se cansa, mas sem saber o que fazer depois. A morte, que aparece transfigurada ou personifica� da logo no primeiro capítulo, quando Maria Luísa tem a visão do fantasma da mãe, é o desfecho que precipita uma série de desencontros afectivos, como se as personagens apenas se dispusessem a querer tocar os seus entes queridos quando confrontadas com a inevitável realidade da sua ausência, o que leva, por exemplo, Pedro Gouveia a transferir o seu amor pela filha para o enfermei� ro Luís Gustavo. Ou o acto falhado do amor que Saul Samuel alimenta por Rui Begonha, que ao deixar desabrochar a sua homossexualidade nos seus breves encontros com Saul Samuel acaba por depois se fixar num outro homem, ape� sar de ser Saul Samuel a vítima da fúria física dos filhos, quando descobrem da homossexualidade do pai. Ou a mãe de

Luís Gustavo que carrega o peso da culpa de ter abandonado o filho mas nem sabe o quão próximos estão nem o procura. Existem duas descrições de actos ou (des)encontros sexuais, mas estes são tão bruscos e violentos que parecem apenas corroborar a solidão como con� dição humana inviolável e o sexo como choque de corpos e vontades onde há pouco espaço para uma comunhão. A cena em que Rui Begonha tenta sexo anal com a mulher nada tem de dese� jo ou de paixão, pois é exclusivamente dominada pelo desespero, uma vez que ele é movido pela descoberta descon� certante de que se sente atraído por homens, enquanto ela se submete para tentar salvar o casamento. A outra cena entre Maria Luísa e Saul Samuel, dois melhores amigos, ou companheiros de jornada que tentam amenizar a solidão na companhia um do outro, acabam por se atirar um ao outro num impulso de fome de contacto físico, apesar de Maria Luísa estar perfeitamente ciente da homossexualidade de Saul Samuel. Uma escrita que respira vitalidade A escrita de Rodrigo Guedes de Car� valho respira vitalidade. O autor não teme inovar e verter a sua prosa narra� tiva segundo uma plasticidade muito própria, onde desconstrói convenções de pontuação ou de apresentação grá� fica. A linguagem no romance, muitas vezes crua e gráfica, pode chocar mas a verdade é que o autor procura retratar a realidade como ele a vê e como tantas vezes ele próprio no-la apresenta nesses estilhaços que enchem as telas dos nos� sos televisores. Por isso, se a linguagem muitas vezes gráfica é apenas espelho da realidade linguística, tentando apro� ximar-se do modo como as pessoas re� almente falam, se a prosa é crua e di� recta, a melancolia ou pessimismo que dominam o romance podem também ser um desassombro face à realidade.

O autor parece tomar posição contra o cor-de-rosa das histórias de amor e o tom delicodoce que invade as manhãs de televisão com programas genéricos que acompanham uma larga camada da população: «Vê por vezes, sobre� tudo em programas de televisão, que há nesta altura inúmeros especialistas em decifrar sentimentos e apontar so� luções, tão seguros e confiantes que a gente se sente logo segura e confiante ao ouvi-los.» (p. 105). O narrador adopta um tom muitas vezes crítico ou até mo� ralizador: «Imaginemos, os que de nós ainda conseguirem esse prodígio de me� mória, o que é crescer, num período que é só incertezas, com a certeza de que o mundo já nos tirou a fotografia.» (p. 38). Voltamos às epígrafes, desta vez uma citação de Shakespeare: «O homem que não é sensível à música,/Que não se co� move com a harmonia dos doces sons,/ Nasceu para as traições, os ardis, os rou� bos;/Os movimentos do seu espírito são surdos como a noite». Pode ler-se a certa altura que a televi� são «faz companhia às pessoas que vi� vem sozinhas» (p. 416). Mas só a música parece ter o condão de matar a solidão das pessoas, como acontece com o pia� nista de hotel ou o artista de rua que faz Maria Luísa parar e escutar. Porque «a música, a arte, é a única coisa do mun� do que pode ser bela sendo triste.» (p. 424). E apesar de o ruído e o som, pró� prios de uma grande cidade, estarem sempre presentes desde as primeiras linhas, é a música que surge como bál� samo, apesar de muitas vezes mal dar� mos por ela ou pelos artistas que no-la trazem, o que leva, por exemplo, a que Luís Gustavo e o médico Pedro Gouveia sejam tocados pelo pianista de hotel, e saberem ler os seus estados de alma pe� las músicas que toca, enquanto os ou� tros clientes do bar do hotel parecem nem dar por ele. A música assemelha� -se assim ao ritmo da nossa pulsação, ao tempo da nossa respiração, como algo que nos revela continuarmos vi� vos: «a sensação de conforto, digam o que disserem, está muito dependente do bater do coração» (p. 110). E mes� mo que esta seja uma “anti-história de amor”, apesar de se poder ler algures que «os escritores não têm de sentir nada, ou querer significar nada, têm é de escrever» (p. 391), Rodrigo Guedes de Carvalho deixa-nos uma intrigante e inquietante narrativa, mesmo que no «último capítulo», e note-se o fatalismo, se confirme o permanente desencontro do não-par amoroso, uma narrativa hí� brida como a melódica onde o pungen� te convive com o belo, e onde tal como o teclado do piano ou a melódica que requer sopro, o instrumento nunca toca sozinho, como uma obra que só ganha som quando lida. Mas se um artista de rua quando toca, toca para si mesmo, será que um escritor quando escreve, es� creve apenas para si? Ou pretende tocar outros, mesmo os mais desatentos e os mais embrutecidos? 


Cultura.Sul

17.11.2017

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Espaço AGECAL

2018 - Ano Europeu do Património Cultural: algumas reflexões

Jorge Queiroz Sociólogo – AGECAL

Por Decisão 2017/864 de 17 de maio do Parlamento Europeu e do Conselho, o próximo ano foi designado como Ano Europeu do Património Cultural - AEPC. É uma importante iniciativa pedagógica e uma oportunidade para os gestores culturais. Não podemos esquecer que a história da Europa foi, até 1945, um contínuo de confrontações entre impérios, conquistas de territórios e pilhagens que causaram milhões de mortos e enormes destruições. No ano de 2018 serão assinalados o 400.º aniversário do início da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e o 100.º aniversário do fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A Guerra dos Trinta Anos travada no século XVII entre diversas nações atingiu especialmente a Alemanha. Foi causada por lutas religiosas,

rivalidades entre católicos e protestantes, disputas territoriais e hostilidade contra os Habsburgo, também por razões comerciais. A guerra causou enormes perdas, económicas e humanas, terminando com a “Paz de Vestefália”, o mapa da Europa fragmentado e redesenhado. A Alemanha devastada perdeu metade da população só vindo a recuperar no século XIX. Três séculos depois a 1ª Guerra Mundial envolveu as potências imperiais da Europa que se organizaram em alianças antagónicas, Reino Unido, França e Império Russo e do lado oposto o Império Alemão, Austro-húngaro e Reino da Itália. Um novo mapa da Europa ressurge, tendo desaparecido o Imperio Alemão, o Austro-húngaro, o Otomano e o Russo e também as dinastias históricas. Registam-se oito milhões de soldados mortos e sete milhões de incapacitados, a Alemanha perdeu 15,1% da sua população masculina, a Áustria-Hungria 17,1% e a França 10,5%. Portugal entrou na 1ª Guerra Mundial ao lado dos “aliados” sobretudo pela necessidade de defesa das suas

d.r.

Após décadas de paz e progresso a Europa vive um ambiente preocupante colónias em África. Após décadas de paz e progresso resultantes da construção da CEE e da União Europeia vivemos um ambiente preocupante. A emergência de nacionalismos e o descrédito no projecto europeu resulta de gravíssimos erros causados pela penetração da ideologia neoliberal nas estruturas dirigentes da UE logo após a queda do muro de Berlim, do abandono dos princípios de cooperação e solidariedade entre as nações e da supremacia do

sector financeiro sobre os valores da coesão. Porquê o Ano Europeu do Património Cultural? Obviamente é uma decisão política orientada pelo desejo de aproximar as nações europeias sublinhando o que lhes é comum. Contudo, a economia e a fiscalidade não podem desmentir a cultura, as políticas na UE têm de ser coerentes e não contraditórias. Em qualquer projecto a aceitação e sucesso partem de premissas correctas. Não

existe “cultura europeia” mas uma diversidade de culturas com influências que transcendem a UE e o próprio continente, mediterrânicas, anglo-saxónicas, eslavas, árabes, formas de estar, religiões, idiomas, práticas culturais e artísticas saudavelmente diferentes. Como compreender a cultura portuguesa sem a herança do al Andalus ou das viagens? Em nossa opinião, o AEPC deve centrar-se na riqueza da diversidade cultural

das nações que partilham o projecto europeu, no conhecimento das mesmas e respeito pelas diferenças, mas sobretudo na abertura a outros espaços geoculturais. De acordo com os promotores, os objetivos gerais do AEPC consistem “em incentivar e apoiar os esforços da União, dos Estados-Membros e das autoridades regionais e locais para, em cooperação com o setor do património cultural e da sociedade civil em geral, proteger, salvaguardar, reutilizar, valorizar e promover o património cultural da Europa… a apreciação do património cultural da Europa enquanto recurso partilhado, sensibilizar para a história e os valores comuns e reforçar o sentimento de pertença a um espaço europeu comum”. É meritório mas ainda autocentrado, aquém das necessidades de presença no mundo de uma UE defensora de valores humanistas, na linha da frente pelos direitos humanos e na regulação da globalização. Uma UE verdadeiramente comprometida com a paz, o ambiente e o desenvolvimento humano. Só assim fará sentido o projecto europeu. 

Na Senda da Cultura

Paulo Pires apresenta ‘Escrytos’ na Biblioteca Municipal de Silves d.r.

A Biblioteca Municipal de Silves vai ser palco da apresentação da obra “Escrytos – Crónicas e Ensaios sobre Cultura Contemporânea”, do programador cultural Paulo Pires. A sessão terá lugar este sábado, 18 de Novembro, pelas 16.30 horas. O autor reuniu nesta compilação, editada pela Arranha-Céus (Lisboa), crónicas e ensaios sobre cultura contemporânea publicados inicialmente em jornais, suplementos, revistas e sites de âmbito cultural entre Janeiro de 2013 e Abril de 2017. Entre os textos publicados, “Escrytos” inclui vários dos

pensamentos que a pena de Paulo Pires trouxe à forma escrita nas páginas do caderno cultural mensal do POSTAL, o Cultura.Sul. Os textos escolhidos abordam questões ligadas à gestão, programação e mediação culturais, artes performativas, estudos artísticos, literatura e leitura/bibliotecas, integrando, ainda, reflexões quer sobre alguns projectos específicos que o autor desenvolveu, a esses níveis, em contexto profissional, quer em torno de temáticas sociológicas e educacionais. São textos inacabados, abertos e de ques-

sociológicas e não poucas vezes temperados pelo sal da poesia. A apresentação do livro ficará a cargo da bibliotecária Maria José Mackaaij. Haverá, ainda, leituras de poesia por Sónia Pereira e António Baeta e alguns apontamentos musicais por Ricardo Martins (guitarra portuguesa). A iniciativa, promovida pela Câmara de Silves, é de entrada livre.

Paulo Pires, investigador e programador cultural tionamento crítico, que resultam de uma necessidade pessoal (e profissional) de

reflexão e de produzir pensamento, vários deles cruzando-se com perspectivas

Paulo Pires é programador em artes performativas Paulo Pires nasceu em Faro em 1977, mas as suas raízes

familiares e afectivas estão entre o barrocal e a serra, em São Brás de Alportel. Com formação superior nas áreas das Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses), Música e Arquivística, ao longo do seu percurso tem aprofundado, pela reflexão crítica e prática profissional, os campos dos Estudos Artísticos e Sociologia da Cultura. Paulo Pires foi programador da Biblioteca de Silves (20082014) e depois coordenador da programação cultural do Município de Silves até 2015. Actualmente é programador em artes performativas na Câmara de Loulé. 


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17.11.2017

Cultura.Sul

Panorâmica

Museu Municipal de Faro: um olhar sobre a evolução do urbanismo farense imperdível fotos: ricardo claro

O muito que fica por dizer daria certamente outra exposição

Ricardo Claro

Jornalista / Editor ricardoc.postal@gmail.com

Talvez fosse expectável que dedicasse o título destas linhas à exposição "Pinturas do Barroco em Sevilha e no Algarve", que está actualmente patente no Museu Municipal de Faro, e que sem dúvida o mereceria. Não obstante, o título reflecte neste caso o que desejo seja o tema central e nessa medida a exposição "Faro, Marcos de Urbanismo" ganha posição de destaque que reflecte tão só uma opção no que toca à importância relativa das várias exposições temporárias que actualmente ocupam o museu municipal da capital de distrito. Nota prévia para destacar a dinâmica que o museu mostra neste momento e para a diversidade do aqui ali se pode ver e apreciar. Mas passemos à mostra sobre os marcos - alguns - da evolução urbanística da cidade. Esta só peca por curta e pela vontade que fica sem resposta de conhecer mais sobre a evolução urbanística de Faro. Três salas marcando o compasso do discurso expositivo levam o visitante por um périplo por alguns dos edifícios, opções urbanísticas e planos, mais determinantes da forma como Faro se estendeu sobre a tábua rasa do terreno do mar em direcção à campina. O 'início' e o decurso até 1850

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À entrada, na primeira sala, um pórtico da antiga Ermida do Espírito Santo é o elemento central da viagem entre o século XV e a primeira metade dos anos 800 do milénio passado. A cerca seiscentista desenhada virada a dentro e que na sua forma semicircular desde cedo marcaria definitivamente, ou assim não impusesse o mar, a forma semicircular com que a cidade se desenvolve-

lhe conhecemos e é com este momento que a exposição nos convida a um fim carregado de curiosidade e de vontade de ver e saber mais.

Planta da primeira circunvalação, José Fernandes Ruivo, 1889 ria até hoje; o génios e o programa iluminista de D. Francisco Gomes do Avelar e a mestria de Francesco Fabri que traçou muito do que hoje temos de mais marcante do ponto de vista monumental; passando pelo Bairro Ribeirinho, são os destaques deste primeiro momento expositivo. A modernidade imposta pelo século XIX Na segunda sala mostra-nos a estrada de ferro, que ainda hoje tanta polémica traz aos mais variados fóruns de debate e pensamento sobre a cidade de Faro, e a forma como qual bordado se implanta na orla ribeirinha. É aqui que se pode descobrir um pouco mais sobre a ponte ferroviária que limita a doca e que hoje imóvel faz esquecer outros tempos em que girando sobre um eixo marcava a modernidade nas infra-estruturas da cidade. É o tempo da primeira circunvalação da cidade iniciada em 1887 e que marcava a ligação moderna entre Barlavento e Sotavento na cidade que domina o Cabo de Santa Maria. Também é neste momento da exposição que pode ver o projecto da Praça Dom Francisco Gomes - frente à doca - com Frederico de Vasconcelos a de-

senhar um espaço em tudo diverso do que hoje podemos ver com o Jardim Manuel Bívar. Tempo ainda nesta sala para ver nascer a Avenida de Santo António do Alto, a actual 5 de Outubro, e a Estrada da Atalaia, bem como o Bairro da Carreira. 1945, o Ante-plano Geral de Urbanização O último momento expositivo

“CONCERTO PELO QUARTETO CONCORDIS” 18 NOV | 21.30 | Teatro Mascarenhas Gregório – Silves Grupo é formado por músicos de personalidades e influências várias, submergindo como tónica a beleza tímbrica e sonora que as quatro guitarras podem proporcionar em conjunto

mostra alguns dos edifícios e das opões de plano que conhecemos hoje na cidade, muitos deles frutos da índole construtiva do Estado Novo e do trabalho monumental que Duarte Pacheco espalhou por todo o país durante o seu consulado enquanto ministro das Obras Públicas de Salazar. É já a cidade com as radiais que hoje percorremos que se mostra em formação, é o gizar das novas circulares que darão à cidade o perfil que

Planta do Ante-plano Geral de Urbanização

Há muito que fica por dizer nesta mostra de urbanismo, do que se fez e como se fez e do que caiu por terra ou se empoeirou em gavetas, muitas deixadas levar pelo bafio do tempo. É essa a "curtez" da exposição que sem a empobrecer nos deixa como que dependurados na curiosidade. Fica também por descobrir e perceber o muito que haveria para conhecer sobre os erros, as enormidades e os atentados que ao longo do século XX se foram praticando contra o urbanismo e contra a herança arquitectónica e patrimonial da cidade. Certamente daria outra exposição, que, face a esta manifestamente imperdível, seria também ela imprescindível na compreensão da evolução da urbe que os farenses habitam. Certo é que esta exposição é fundamental, pedagógica como poucas e absolutamente incontornável para quem deseja conhecer e perceber melhor a cidade e os contornos da sua implantação no terreno. Como saber mais do que a exposição nos conta: as visitas guiadas Está de parabéns o Museu Municipal de Faro e os responsáveis pela exposição igualmente o estão e tanto mais o estão quanto há a possibilidade de visitar a mostra com o apoio de guia. As visitas guiadas decorrem às sextas-feiras a partir das 15 horas, sujeitas a inscrição de pelo menos seis e no máximo 15 pessoas em museu. municipal@cm-faro.pt ou pelo telefone 289 870 827/9. A inscrição deve ser feita com uma semana de antecedência. O Museu de Faro pode ser visitado de terça a sexta-feira entre as 10 e as 18 horas; e ao fim-de-semana entre as 10.30 e 17 horas. 

“O CONTINERALISMO POÉTICO” Até 30 DEZ | Centro Cultural de Lagos Timo Dillner pretende com este projecto dar a conhecer, através do vídeo/instalação da pintura e da escultura, a sua perspectiva das viagens a lugares desconhecidos do Infante D. Henrique


Cultura.Sul

17.11.2017

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Letras e leituras

Regresso a Kingsbridge: Uma Coluna de Fogo, de Ken Follett

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Ken Follett nasceu em 1949 e estreou-se aos 27 anos na ficção com O Buraco da Agulha. Desde então, o autor britânico tem alternado entre os romances de espionagem e o romance histórico. O seu último sucesso foi a trilogia O Século, que narra a saga de cinco famílias, de nacionalidades distintas (americana, russa, inglesa, alemã, escocesa), ao longo de várias gerações, de modo a contar em três volumes (A Queda dos Gigantes, O Inverno do Mundo, No Limiar da Eternidade) a história das duas Guerras Mundiais e do período subsequente de Guerra Fria. O autor é ainda sobejamente conhecido pelos seus outros romances históricos de fôlego: Os Pilares da Terra (1989) e Um Mundo Sem Fim (2007), que foram também adaptados a mini-séries. Uma Coluna de Fogo foi publicado em Setembro, num lançamento simultâneo com a edição original inglesa. Não seria de esperar outra iniciativa da parte da Editorial Presença, uma vez que Ken Follett é o que se pode entender como um autor bestseller com mais de 150 milhões de exemplares vendidos, em mais de 80 países e 33 línguas. Uma década depois, o autor regressa à saga de Kingsbridge, e mais uma vez com um salto temporal, pois estamos em 1558. As personagens dos romances anteriores ganham agora o estatuto de lendas ou símbolos, como o prior Phillip, o monge encarregado da construção da catedral quatrocentos anos antes, que está agora encerrado num túmulo volumoso do cemitério de Kingsbridge, ou Caris, que fundou o hospital e ainda é recordada como a freira que salvou a cidade durante a peste negra. Como observa Ned ao sair da barcaça, «a cidade não parecia ter mudado muito num ano. Locais como Kingsbridge apenas mudavam lentamente, segundo Ned cria: as catedrais, as pontes

e os hospitais eram construídos para perdurar.» (p. 23). E é isso que Ken Follett parece fazer com mestria, focar-se nas grandes construções humanas e fazer delas as verdadeiras personagens dos seus romances. O priorado de Kingsbridge está agora em ruínas, desde que Henrique VIII declara o protestantismo e dissolve os mosteiros, mas a catedral ainda se mantém «alta e forte como sempre, o símbolo de pedra da cidade dos vivos» (p. 24). A história da construção de uma catedral ou de uma ponte parecem ser o verdadeiro motivo dos romances do autor, estatuídas como personagens ou entidades que assinalam a passagem do homem e que perduram como testemunho da sua capacidade inventiva e ambição: «Ned contemplou as nervuras da abóbada, quais braços de uma multidão que se erguiam ao céu. Sempre que entrava naquele local pensava nos homens e nas mulheres que o haviam construído. Muitos deles eram celebrados no Livro de Timothy, uma história do priorado que era estudada na escola: os pedreiros Tom e o seu enteado Jack; o prior Philip; Merthin Fitzgerald, que erguera não só a ponte como a torre central; e todos os operários das pedreiras, os carpinteiros e os vidra-

d.r.

Ken Follett já vendeu mais de 150 milhões de livros em todo o mundo norte de França, então sob administração inglesa. Margery Fitzgerald vai ser forçada a casar com Bart Shiring, que pode um dia vir a ser conde de Shiring. Isabel Tudor parece preparar-se para subir ao trono. O autor entrelaça uma vez mais o destino de pessoas comuns com o de figuras históri-

um período de tempo mas toda uma época que corresponde à ascensão ao trono de Isabel Tudor. Em Uma Coluna de Fogo, sente-se, aliás, como a acção se distancia mais e mais de Kingsbridge para se dispersar pelo mundo, de lugares tão díspares como as Caraíbas, Sevilha ou Antuérpia. Os eventos são perspectiva-

Ken Follett autor de best-sellers como os Pilares da Terra, que marcaram de forma indelével o universo das adaptações para séries televisivas, mostra nesta obra inegáveis detalhe e rigor históricos

ceiros, gente vulgar que tinha feito uma coisa extraordinária, se tinha erguido acima das circunstâncias humildes em que havia nascido e criado algo de eternamente belo.» (p. 25). Muda o tempo, mudam as personagens, saltam-se gerações nas famílias, mas mantém-se o cenário e o espírito dos outros dois livros. Ned Willard regressa a Kingsbridge ansioso por rever Margery, depois de ter vivido um ano em Calais, o porto da costa

cas para construir um romance de grande porte e ambição. O autor decide repartir o protagonismo por um vasto elenco de personagens, pois além de Ned Willard e Margery Fitzgerald, temos ainda o irmão de Ned, o aventureiro Barney Willard, ou o oportunista e arrivista Pierre. A narrativa está dividida em cinco partes, compreendidas entre 1558 e 1620, havendo saltos temporais de alguns anos de uma parte para outra, como forma de retratar não apenas

dos a partir do ponto de vista das próprias personagens, o que leva a que o leitor por vezes quase sinta simpatia por personagens tão execráveis como Pierre Aumande, o jovem ambicioso, que não se detém perante nada nem ninguém para atingir aquilo que mais almeja: a ascensão social que lhe permita obnubilar aquilo que a tanto custo quer esquecer, o ser filho bastardo de um padre e da sua governanta. A conclusão a que se chega é que a ideia do livro é retra-

tar o reinado de Isabel Tudor, na sua ascensão ao trono e na emergência de Inglaterra como uma grande potência. A nação britânica é vista como pobre e atrasada, em comparação, por exemplo, com o luxo e opulência de França. A rainha Isabel parece aliás ser permanentemente apontada por estar sempre a contar os seus tostões... Há pormenores históricos e culturais que vão também pontuando e enriquecendo a narrativa, como o facto de as pessoas apenas tomarem banho duas vezes por ano, na Primavera e no Outono, ou o choque provocado quando Maria Stuart se decide casar de branco, uma vez que essa é a cor do luto. Um dos pontos altos do romance é certamente o casamento da princesa Margot, a «libertina irmã do rei», com o «despreocupado Henrique de Bourbon, o rei protestante de Navarra» (p. 463), que pretendia simbolizar uma aliança entre católicos e protestantes e que resulta na Noite de São Bartolomeu: «Morreram três mil pessoas em Paris, e mais uns milhares em massacres similares noutros locais. Todavia, os huguenotes deram luta. Cidades em que eram a maioria receberam numerosos refugiados e fecharam as portas aos representantes do rei. Os membros da família Guise, enquanto católicos poderosos leais ao monarca, foram mais

uma vez recebidos no círculo real, enquanto a guerra civil voltava a deflagrar.» (p. 539). Depois de Os Pilares da Terra e Um Mundo Sem Fim se terem centrado na construção de grandes obras arquitectónicas, Uma Coluna de Fogo é essencialmente uma obra sobre a liberdade de religião e onde se respira já os valores do renascimento. Veja-se como Carlos manda pintar um retrato que quando é mostrado pela primeira vez causa algum espanto: «O pintor retratara o casamento a ter lugar numa grande casa que podia pertencer a um banqueiro de Antuérpia. Jesus estava sentado à cabeceira da mesa com um manto azul. A seu lado, o anfitrião da festa era um homem de ombros largos com uma barba preta cerrada, muito parecido com Carlos; ao lado deste sentava-se uma mulher loura e sorridente, que poderia ter sido Imke.» (p. 395). Este é um romance de fôlego que tanto pode ser lido pausadamente como de uma só vez. Não nos perdemos na acção e a leitura nunca se torna cansativa, talvez daí a opção do autor pelos saltos temporais de modo a captar os momentos cruciais da acção que é, afinal, um retrato de uma época, mais do que as aventuras e desventuras das personagens. Existem alguns lugares comuns que parecem difíceis de evitar, como a jovem obrigada a casar pelos pais para que a sua família, pertencente à classe da burguesia, possa ascender socialmente, mas há uma atenção inegável ao detalhe e ao rigor histórico, bem como a capacidade de contar uma boa história e de passar informação de forma acessível. Existe, todavia, um cuidado de facilitar a leitura ao leitor que resulta, por vezes, em alguma redundância, como, por exemplo, quando se refere a Navarra sente a necessidade de reiterar que é um pequeno reino entre Espanha e França. Uma nota especial para a edição. A Presença opta por lançar a obra num só volume, o que parece preferível, e é algo que poucas editoras fazem. Resulta num livro maior, com 768 páginas, mas a qualidade do papel tornam-no leve e facilmente manuseável que dá gosto ler e transportar. 


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17.11.2017

Cultura.Sul

Espaço ao património

Ficha técnica:

Património Histórico e Cultural: O dilema da preservação

Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro d.r.

Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus

Ana Olímpio

• Da minha biblioteca: Adriana Nogueira

Arquitecta

Nos dias de hoje discute-se muito a necessidade de preservação do património cultural, valorização do passado e memória colectiva das cidades. Esta necessidade do ser humano em preservar o seu passado aplica-se não só ao acervo arquitetónico, mas a todas as formas de manifestações culturais de uma sociedade. Por trás das formas construídas pelo homem, podem-se distinguir uma série de normas subjacentes, implícitas e geralmente inconscientes na mente colectiva que determinam os valores e as categorias do que é bom ou mau, correcto ou incorrecto, belo ou feio, na produção de artefactos ou objectos culturais. Património e o crescimento das cidades: a importância de uma reflexão constante O património arquitetónico representa uma produção simbólica e material, carregada de diferentes valores e capaz de expressar as experiências sociais de uma sociedade. Mas devido ao rápido e desordenado crescimento das cidades contemporâneas, com uma progressiva perda e descaracterização do património histórico, traz à tona uma importante reflexão acerca da constante necessidade de transformação dos espaços urbanos, juntamente com implicações referentes à qualidade ambiental e preservação do património construído. As cidades não são apenas lugares onde se ganha dinheiro, não servem apenas de dormitório ou de local de trabalho para os seus habitantes. Nelas vivem seres humanos que possuem memória e são parte integrante da história. Por isso, não passa despercebido pela população das cidades a destruição da casa de seus antepassados, de antigos cafés, cinemas, teatros e outros edifícios históricos ou de valor significante. Toda essa destruição de bens culturais para dar lugar ao automóvel, aos gigantes de vidro e betão, tornam as cidades sem identidade, poluídas, sem emoção e os seus habitantes perdem a identificação com o local onde vivem. A falta de valorização do património cultural, causada pela realidade económica, social e política põe em risco

Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve

• Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra

A memória colectiva das cidades está nos seus edifícios antigos não apenas a memória colectiva, mas também o poder de realização e de expressão verdadeiramente cultural da comunidade. Nas propostas de demolição de edifícios em zonas históricas ou inventariados não se trata de opinar se a nova obra será de valor arquitetónico significativo mas antes questionar a perda de um bem cultural de

aos proprietários de imóveis inventariados e aos em risco de ruína ou já em ruína. O muito que perdemos quando mutilamos, demolimos ou descaracterizamos o nosso paterimónio Perdemos muito cada vez que o

Uma cidade sem os seus velhos edifícios é como um homem sem memória grande valor e da perda de uma memória colectiva para a sociedade. A demolição deverá ser prevista apenas em casos extremos, por exemplo, a existência de uma estrutura comprometida e risco de desmoronamento. Na grande maioria dos casos, uma renovação ou restauro, mantendo-se as características originais do projeto, ou até mesmo uma reabilitação para um novo uso, pode impedir a demolição e evitar o abandono destes edifícios. Para além de leis e regulamentos, torna-se cada vez mais importante as iniciativas do poder local no que diz respeito à educação patrimonial e os incentivos fiscais

nosso património é demolido, descaracterizado ou mutilado. Ao permitirmos a destruição do nosso património estamos não apenas perdendo qualidade de vida, mas também perdendo cidadania e do senso de pertença aos locais e aos grupos comunitários. O património histórico, visto como um conjunto de bens e valores que representam uma nação, deve ser entendido como a herança de um povo, na busca de uma valorização do passado e uma melhor compreensão do presente. O ser humano sempre necessitou do passado, seja nas lembranças de fotografias, nas ruas de uma cidade, nas lembranças de uma

residência, de uma praça, de um café de bairro, de um teatro, de um cinema. Essas lembranças têm o poder de nos reconfortar e trazem sinais de proximidade, de um passado artístico. Os monumentos históricos funcionam como ícones desse passado atemporal, são a criação artística de tempos idos e a simbólica no presente. E a nossa memória, constituída de impressões e de experiências, é o que nós retemos e que nos dá a dimensão do que percebemos e sentimos através do nosso lugar no mundo. A arquitetura e os lugares da cidade constituem o cenário onde as nossas lembranças se situam e, na medida em que essa arquitetura e esse lugar fazem alusão a significados simbólicos, evocam narrativas relacionadas com a nossa vida. A memória colectiva das cidades está nos seus edifícios antigos. Eles são o testemunho mudo, porém valioso, de um passado distante e servem não só para transmitir às gerações posteriores os episódios históricos que neles tiveram lugar mas também como referência urbana e arquitectónica para o nosso momento actual. Preservá-los não só para os turistas tirarem fotos ou para mostrar aos nossos filhos e netos, mas para que as gerações futuras possam sentir in loco a visão de uma cidade humana e como se viveu/vive nela. Uma cidade sem os seus velhos edifícios é como um homem sem memória. 

• Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Panorâmica: Ricardo Claro • Quotidianos poéticos Pedro Jubilot Colaboradores desta edição: Ana Olímpio Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 5.391 exemplares


Cultura.Sul

17.11.2017

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Da minha biblioteca

Passar em revista: «Garanta», «Cadernos de Poesia a Sul» e «LÓGOS. Biblioteca do Tempo» fotos: d.r.

Adriana Nogueira

Classicista; Professora da Univ. do Algarve

Que têm estes três nomes em comum? São os títulos, apresentados por ordem cronológica, de três novas publicações periódicas, em papel, editadas no Algarve, com o seu primeiro número em 2017. Garanta

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Da primeira, «Garanta, Revista de Letras, Artes e Cultura», saiu o número 0 (zero, do qual foram feitos 80 exemplares) no passado mês de maio. Sobre o nome dado à publicação, um dos seus mentores, Paulo Correia, explicou-me, quando lhe perguntei: «Garanta de garantismo, numa era em que nada se garante, estamos em última hipótese a tentar garantir a literatura, a palavra escrita». Na apresentação (p.7), em forma de manifesto de intenções, este mesmo autor explica que um dos propósitos da revista é traduzir «uma certa ideia de colectivo num período de profundo individualismo, do qual a violência instalada é apenas um sinal da intolerância individual. Escrevemos livremente, contra todo o tipo de intolerância». E continua, afirmando que é «de celebração da palavra escrita que se trata, aliando a palavra a outras manifestações artísticas». Pretendendo que o facto de ser uma revista produzida no barlavento algarvio (está datada de Portimão e com Lagos como local de impressão) não faça dela uma publicação local, explica que «é o primeiro ensaio de uma revista radica-

da no sul de Portugal (no Algarve), mas que não pretende limitar-se a fronteiras territoriais, pois onde existir um leitor esse será o nosso território». Este número é composto por 35 páginas, nas quais podemos encontrar prosa, poesia (e prosa poética) e ilustração (uma delas com a técnica de colagem), sempre a preto e branco. Graficamente, «Garanta» optou por estilo retro, com um tipo de letra «de máquina de escrever» que faz recordar aquelas fanzines dos anos 80 do século passado, memória reforçada pelo tamanho (que corresponde a uma folha A4). Gostei do estilo provocatório e, como se reclama semestral, aguardo, para breve, o número 1. Cadernos de Poesia a Sul Em julho, no primeiro dia da FLO (Feira do Livro de Olhão), o poeta Fernando Cabrita apresentou o 1º número destes cadernos de que é coordenador, cujo nº 2 saiu em novembro, durante o «III Encontro Internacional de Poesia a Sul», que decorreu em Olhão, de 3 a 12 deste mês. Os «Cadernos Poesia a Sul» são de distribuição gratuita, inteiramente patrocinados pela Câmara Municipal daquela cidade, que se tem mostrado especialmente favorável à ideia de pôr Olhão no mapa de um certo turismo cultural, como o demonstram todo o incentivo (e financiamento) dado quer a estes encontros, quer à FLO, quer ao percurso das lendas (pontificado pela estátua da Floripes, a mais famosa moura local) ou aos novos graffiti que contam “CONCERTO PELA ORQUESTRA CLÁSSICA DO SUL” 18 NOV | 21.30 | Cineteatro São Brás Momento especial de música clássica dedicado a Mozart e Beethoven, que conta com a participação de 26 músicos dirigidos pelo maestro associado José Colomé

Ilustração de Paulo Constâncio na Garanta parte da história da cidade. Pretende-se que esta publicação seja trimestral ou quadrimestral. Em cada número, há um poeta homenageado, numa rubrica intitulada «In Memoriam», com que termina cada volume: o nº 1 foi dedicado ao poeta João Lúcio (Olhão, 1880- Olhão, 1918) e o nº 2 a Rafael Cansinos Assens (Sevilha, 1882 – Madrid, 1964). A intenção transnacional, de «fraternidade da escrita poética», está patente no slogan (explicado na contracapa) dos «Cadernos»: «Publicam-se em Olhão, fazem-se no mundo, lêem-se em toda a parte». Os «Cadernos Poesia a Sul» são constituídos exclusivamente por poesia: para cada poeta representado há uma pequena biobibliografia, mas o que se destaca são os poemas, na sua maioria originais.

Multilingue (alguns traduzidos em outras línguas, podendo alguns poemas serem lidos em quatro idiomas diferentes, como os de Uberto Stabile, pp.67-73), reflete a variedade de participantes nos encontros, mas não se limita a estes. Uma boa oportunidade para se poder ler alguma da poesia contemporânea que se faz por este mundo fora. LÓGOS. Biblioteca do Tempo A mais recente destas edições é a revista «LÓGOS. Biblioteca do Tempo», publicada em setembro. Iniciou-se como um projeto online, no Facebook, num blogue e depois na versão em papel, percebendo-se que todos estes meios confluem para o mesmo fim: a divulgação de um projeto com propósitos muito específicos, como afirmam os seus editores (Adília César e Fernando Esteves Pinto, com assistência

de Adão Contreiras), que são o «dissolver a espuma de futilidade que teima em acumular-se no tempo presente». A revista (do projeto homónimo) reflete também, «regularmente sobre algumas questões na procura de um entendimento relativo ao meio cultural e literário. (…) pretende dar voz ao pensamento crítico no âmbito da literatura, filosofia e psicologia, tendo como linha condutora a nossa percepção de qualidade, de acordo com critérios de liberdade de expressão, criação artística e estética, e procura de conhecimento. (…) é independente em relação a quaisquer orientações políticas, religiosas e ideológicas ou escolas teóricas; divulga textos literários (ficção, poesia, recensão crítica, artigos de opinião, ensaios) e ilustrações de autor» (pp.3-4). O nº 1 da LÓGOS foi ilustrado por Reinaldo Barros. As rubricas (Ensaio, Entrevista, Literatura e Poesia), pelo que percebi quando conversei com os editores, poderão variar de número para número, assim como o artista plástico convidado. A maioria do que ali se publica é tendencialmente original, havendo, inclusive, uma estreia da escritora Cristina Carvalho (filha de dois outros escritores: Rómulo de Carvalho/ António Gedeão, e Natália Nunes), autora solidamente representada no Plano Nacional de Leitura. Na entrevista que lhe é feita (pp. 45-53), afirma: «Eu escrevo poesia desde sempre. Não. Não publico. Sou muito difícil, relativamente a esse género de literatura. Continuo cheia de dúvidas». Mas entre a saída da entrevista na Internet e a publicação da revista (felizmente), reconsiderou e, por isso, nas pp. 95-99 podem ler-se alguns dos seus poemas (até agora) inéditos. Toda esta dinâmica editorial de revistas contribui para a divulgação da reflexão e da produção artístico-literária que se faz atualmente. 

“OLÍVIA & EUGÉNIO” 18 NOV | 21.30 | Auditório Municipal de Albufeira Nesta peça teatral mãe e filho enfrentam uma situação extrema onde se questionam os valores que surgem em tempo de crise


Última Quotidianos poéticos

Marco Mackaaij d.r.

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

Marco Mackaaij nasceu nos Países Baixos em 1970 e vive em Portugal desde 1995. É professor de Matemática na Universidade do Algarve e caloiro de poesia fora da academia. Alguns poemas seus estão publicados em revistas literárias e antologias. Em Março de 2015, a editora CanalSonora (Tavira) publicou o seu primeiro livro de poesia E se não for?. Recentemente também publicou uma pequena mostra de poemas novos, a plaqueta Perdidos e Achados (Nov. 2017). Como surge a poesia em ti, nos teus dias, como se mistura com o teu dia a dia; onde, como, quando, escreves. Tens vícios, manias de escrita…. Não costumo ter ataques de poesia nos sítios apropriados: em frente ao mar (almejando lá voltar depois das marés da morte), em cima de cordilheiras líricas (para ser mais alto), em camas ofegantes de cortesãs com línguas de mel e corações de pedra, em gaiolas intelectuais para rouxinóis urbano-depressivos, ou em becos malditos, mal iluminados e altamente recomendáveis para jovens poetas de boas famílias em decadência. As ideias menos banais assaltam-me na cozinha, a descascar batatas ou a arrumar loiça, ou algures num sítio surpreendente entre o leite do dia e as pizzas congeladas do Continente. Tudo muito pouco adequado, mesmo para a carreira de um poeta menor, sem tempo para grandes epifanias. Enfim, as ideias que sobrevivem até ao silêncio crítico da madrugada seguinte, sozinhas e abandonadas, sem pingo de poesia, no subconsciente reservado para o efeito, entrego-as aos dedos e à sabedoria do teclado. Aí sim, convém surgir algo, sabe-se lá o quê, de onde, quando e porquê. Simplesmente: Algo. Como sabem os que já o procuraram pela própria mão e fracassaram melhor ou pior, este algo é raro. Tão raro que por vezes me pergunto se existe mesmo (ai memória!, porque é que nunca me ofereces referências exactas, apenas

Perdidos e Achados é a mais recente mostra da obra poética de Marco Mackaaij farrapos de citações?). Poderão ser poucos, os meus poemas que revelam a possibilidade dessa existência, mas não desisto da procura. Procuro sempre. Sempre algures entre a térrea realidade das batatas, o materno leite do dia e o rigor mortis das pizzas, com uma pequena paragem em frente aos líricos lombos de bacalhau da Pescanova, para ver se estão com desconto. E quanto a autores que lês, ou leste, que te possam ter inspirado, e os que admiras… Sou mais um glutão de amuses-bouche do que um rapa-tachos de obras completas. E o que já está feito magistralmente, é melhor não imitar demasiado: epígonos não costumam ser tidos em boa conta. Contactei primeiro com as poesias holandesa, greco-latina e anglo-saxónica. Metade da poesia que leio hoje em dia continua a ser holandesa, mas vou restringir-me aqui à poesia de língua portuguesa. Li primeiro Camões, cantigas disto e daquilo e deste e daquele do Cancioneiro Geral, Florbela Espanca, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Mais tarde, mergulhei no Cancioneiro Actual, i.e. uns poucos poetas do século dezanove (a partir de Cesário Verde) e, principalmente, um número razoável de poetas do século vinte (um Século de Ouro, segundo o título de uma antologia). Desde que comecei a escrever po-

esia, um desvario muito mais recente, comecei a ler e a estudar

A DILATAÇÃO DO TEMPO para a Zé Acumulamos aniversários comemorando o progresso do passado, mas como medir o amor? Reza a Lei da Relatividade que astronautas em viagem a Vénus se manteriam jovens do ponto de vista de um observador que envelhecesse com os pés inertes na Terra. Para eles a diferença é nula: estria por estria, ruga por ruga (qual Lei de Talião) afeiam juntos entre corpos celestes. Mas quando a base os chama (e chama sempre enquanto durar) parece que enganam bem o terráqueo tempo. Que mais podem desejar?

mais especificamente poetas com que sinto alguma afinidade escritora (em vez de apenas afinidade leitora, que é sempre mais abrangente, julgo eu): Adília Lopes, António Manuel Pires Cabral, Jorge Sousa Braga, João Luís Barreto Guimarães, José Miguel Silva e Bénédicte Houart, para mencionar apenas alguns poetas vivos de quem li mais do que um livro. Em geral procuro ritmo, musicalidade, imagens surpreendentes, uma luz nova sobre um tema conhecido, os pés firmes na realidade (em todas as suas facetas, sem tabus nem hierarquias), com pitadas de humor/ ironia/cinismo e/ou absurdismo/surrealismo, e algumas palavras, ou versos inteiros de preferência, a brilhar como estrelas ou como facas e cutelos. Fujo de versos maquilhados de verdadeira Poesia como quem foge do verdadeiro Amor de uma velha prostituta. Sou tão metafísico como um cão a cagar (fazendo minhas as palavras do poeta neerlandês Gerrit Kouwenaar), embora por vezes goste de tomar Tolentino Mendonça com café no domingo de manhã. Odeio quando o nariz de Poenóquio cresce demasiado: poesia sobre poesia sobre poesia sobre poesia etc., ad nauseam. De resto, estou aberto a todo o tipo de poemas, desde que me causem uma impressão minimamente duradoura. Adoro poetas menores nos seus poemas mais inspirados, os incontornáveis, contorno sem escrú-

pulos quando me aborrecem. Que livros estás a ler? Poesia ou outros géneros? Queres comentar sobre eles? Nos últimos tempos: Keeping an eye open de Julian Barnes, uma compilação de ensaios sobre arte (principalmente pintura). Gosto muito de ver obras de arte e ler sobre arte (i.e. artes plásticas). Sofia queria voltar, depois da morte, para que lhe fossem devolvidos os anos que não viveu junto ao mar. Eu gostaria de voltar para que me fossem devolvidos estes anos que vivo longe de museus de arte. The dream of enlightenment de Anthony Gottlieb. O subtítulo diz tudo: The rise of modern philosophy. Como matemático tenho uma dose saudável de cepticismo relativamente à filosofia: falta o rigor clínico e factual nos conceitos e nos argumentos que hoje em dia são a norma na ciência e na matemática. Por outro lado, a filosofia moderna (junto com a ciência, obviamente), digamos desde Descartes, teve uma influência tremenda na maneira como vemos actualmente o mundo, o universo e o nosso lugar nele como seres humanos. Enfim, leitura obrigatória para qualquer intelectual, mesmo que seja um simples matemático. Toen met een lijst van nu de Thomas Eyskens. Comecei a ler ontem no avião. Trata-se de uma biografia do jornalista, ensaísta e poeta flamengo Herman de Coninck, que morreu de uma paragem cardíaca em Lisboa em 1997, quando ia a caminho da Gulbenkian para participar num encontro de escritores portugueses e neerlandeses. De Coninck era um poeta autobiográfico. Sabemos que, em troca de mais autenticidade, mais vida, menos literatura sobre literatura, menos arte por arte etc., a carga autobiográfica pode limitar a universalidade de uma obra. Ou não: quando li os seus poemas, nunca senti falta de mais informação biográfica. Pareceram-me sempre claros, lindos e bastante universais para homens neerlandeses (e flamengos, pelos vistos) da segunda metade do século vinte. Veremos se continuo da mesma opinião depois de ler esta biografia. Poesia: Manual de Prestidigitação de Mário Cesariny, Mike Tyson para Principiantes de Rui Costa, Nadar na Piscina dos Pequenos de Golgona Anghel, New and Selected Poems de Charles Simic e alguns livros de poesia neerlandesa. 


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