CULTURA.SUL 69 - 9 MAI 2014

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joão pedro marnoto

Espaço Cria: d.r.

Competitividade, território e proximidade

p. 2

Grande ecrã:

d.r.

Cinema e Arquitectura unidos em Faro

p. 3

O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N:

Entrevista:

Lídia Jorge à conversa sobre ‘Os Memoráveis’

d.r.

ps. 4 e 5

Atacar o Maio

d.r.

p. 10

Espaço património: d.r.

MAIO 2014 n.º 69

40 anos de restauro

Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO p. 9

8.271 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve

Uma arte da errância:

os poemas-canções de Jorge Palma ps. 8 e 9


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09.05.2014

Cultura.Sul

Editorial

Espaço CRIA

Dar vida ao património

Competitidade: mais território, maior próximidade

Ricardo Claro

Editor ricardoc.postal@gmail.com

Dinamizar o património é sempre um dos mais importantes desafios colocados à Direcção Regional de Cultura. Numa aposta clara de colocar a visita aos monumentos sob sua tutela na agenda, quer dos algarvios, quer dos visitantes que, aos milhões, escolhem anualmente o Algarve como destino, a Direcção Regional apresentou recentemente o programa DiVaM - Dinamizar, Valorizar os Monumentos. Para fazer face a este desafio, a Direcção Regional de Cultura, presidida por Alexandra Gonçalves, chamou todos os agentes culturais da região e estabeleceu parcerias, nomeadamente com as autarquias, para enquadrar as visitas ao património com uma oferta de eventos conexos capaz de potenciar a atractibilidade dos espaços patrimoniais. Assim, a música, o teatro, a intervenção teatral de rua e a dança, bem como, as perfomances e as recriações, vão invadir os sítios e monumentos que constituem o património da região, procurando criar diversidade na oferta cultural complementar dos monumentos regionais. O desiderato maior da Direcção Regional de Cultura do Algarve neste programa é o de levar os algarvios e os visitantes do património regional em geral a viverem e sentirem o património de uma forma única. As iniciativas vão ter lugar no Castelo de Aljezur, na Fortaleza de Sagres e na Ermida de Nossa Senhora de Guadalupe, mas também acontecerão nos Monumentos Megalíticos de Alcalar, na Villa da Abicada, nos Castelos de Paderne e de Loulé e nas Ruínas Romanas de Milreu. As datas dos eventos podem ser consultadas no sítio da Direcção Regional de Cultura na internet e convidam a conhecer o património da região num compromisso sempre desejado entre a visita ao edificado e a expressão cultural performativa.

Hugo Barros Coordenador do CRIA – Divisão de Empreendedorismo e Transferência de Tecnologia da Universidade do Algarve

Sem pretensão de inovação nas minhas palavras e dando seguimento aos múltiplos documentos elaborados, o aumento de competitividade do Algarve está hoje, pensa-se, associado à capacidade de uma especialização mais inteligente, capaz de valorizar as vantagens competitivas da região e a promoção de uma interação entre os diferentes setores económicos, tradicionalmente pouco habituados a uma colaboração intersectorial. Este é um desafio para o qual todos devemos estar disponíveis, públicos e privados, mas no qual a ciência e o conhecimento desempenham um papel fundamental. A capacidade de intermediação do conhecimento e ciência, a experiência dos agentes regionais em setores outrora consolidados, a capacidade de atuação sobre oportunidades em setores emergentes e um

novo período de financiamento comunitário, deverão permitir assegurar um território mais dinâmico, inteligente e competitivo. Mas importa atuar. Atuar, intermediando os agentes económicos, as políticas, os programas e a comunidade civil presente no território. Como terá sido percetível para os leitores mais atentos, através das redes

diferentes agentes económicos, aprofundando o conhecimento da região e identificando oportunidades de colaboração. Estas iniciativas, que poderão parecer rotineiras, pontuais, ou meramente institucionais, revelam uma reformulação na atuação dos agentes regionais, que considero fundamental. A Universidade do Algarve, os d.r.

sociais ou pela comunicação social mais tradicional, a Universidade do Algarve, instituição do Sistema Científico e Tecnológico por excelência na região, tem vindo a atuar de forma cada vez mais coordenada com os

municípios, as empresas e os demais agentes da sociedade civil, propõem-se identificar, visitar e atuar sobre aquilo que são as condições da região, naquilo que são as oportunidades e necessidades de quem deseja ino-

Ficha Técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural

var, crescer e alterar a aparente estagnação sobre a qual o país parece estar refém. Para além de identificar oportunidades e consolidar parcerias, a atuação nos concelhos e freguesias da região tem permitido identificar não alguns exemplos disruptivos de inovação, mas um conjunto de empresários e empreendedores regionais, que recorrendo às tradições do território, aos recursos endógenos da região, ao conhecimento da Universidade, e à experiência das suas gentes, tem conseguido inovar e diferenciar os seus produtos e serviços em mercados internacionais, criando empregos e riqueza, e contribuindo de forma significativa para a competitividade da região. Esta é uma realidade que importa realçar, atestando uma política de oportunidades que não se reduzem às limitações de financiamento, à morosidade dos processos de licenciamento ou à globalidade da concorrência, mas que as transpõem com sucesso. Para que estes casos de sucesso continuem a proliferar na região remeto-me para o título improvisado do presente texto, sugerindo que para MAIS COMPETITIDADE é imperativo MAIS TERRITÓRIO e MAIOR PROXIMIDADE. Cabe-nos criar as condições.

Juventude, artes e ideias

Futuro

Carlos Alves Estudante

O nosso país ao longo dos séculos evoluiu muitíssimo bem mas ao mesmo tempo regrediu em termos económicos e laborais. A situação em que nos encontramos neste momento é muito desfavorável, tanto para os adultos como para os jovens que estão a entrar ou já estão no mercado de trabalho. Se os responsáveis pelo desenvolvimento/crescimento do nos-

so país não conseguem ter ideias para ajudar a inovar a economia para a positiva terão de ser as mentes jovens a fazê-lo! Com ideias inovadoras tentarão dar o passo à frente para que a nossa política tenha um processo evolutivo e que a partir desse ponto comece a haver um crescimento favorável para o país, fazendo com que a próxima geração de jovens possa também ter mais possibilidade de concretizar mais objectivos a favor da evolução económica do país. Em poucas palavras posso dizer que se não lutarmos pelo pouco que já temos, o futuro do país poderá chegar a um ponto crítico em que nem os mais novos conseguirão resolver.

d.r.

Editor: Ricardo Claro Paginação: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço CRIA: Hugo Barros • Espaço Educação: Direcção Regional de Educação do Algarve • Espaço Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Momento: Vítor Correia • Panorâmica: Ricardo Claro • Património: Isabel Soares • Sala de leitura: Paulo Pires Colaboradores desta edição: Andreia Machado Carlos Alves Hugo Barros Laura Carlos Paulo Serra Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve, Direcção Regional de Educação do Algarve, Postal do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelagoncalves3@gmail.com

on-line em: www.issuu.com/postaldoalgarve

Tiragem: 8.271 exemplares

Por isso, temos que mostrar que não foi em vão a razão pela qual os nossos avós, tios e pais lutaram no 25 de Abril e que o sacrifício deles nunca será esquecido.

Em certa forma deveríamos apelar aos jovens que, à sua maneira, tentem honrar os seus antepassados e que recuperem a força para lutar por um país melhor.


Cultura.Sul

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Grande ecrã Cineclube de Faro

Programação: cineclubefaro.blogspot.pt facebook.com/direccao.cineclubefaro RESISTÊNCIA E RESILIÊNCIA IPJ | 21.30 HORAS 13 MAI | ATÉ AMANHÃ, CAMARADAS, Joaquim Leitão, Portugal, 2005, 192’ 20 MAI | TERRA DE NINGUÉM, Salomé Lamas, Portugal, 2012, 72’ 27 MAI | O CONGRESSO, Ari Folman, Israel/ Alemanha/França/Bélgica, 2013, 122’ FILME FRANCÊS DO MÊS BIBLIOTECA MUNICIPAL | 21.30 HORAS LE BAL DES ACTRICES, Maiwenn, França, 2009, 105’ CINEMA E ARQUITECTURA ÀS QUARTAS BIBLIOTECA MUNICIPAL | 21.30 HORAS

14 MAI | IN MEDIA RES, Luciana Fina, 72’, 2013, Portugal (Presença da realizadora Luciana Fina) 21 MAI | QUINTA DAS MURÇAS – O PROJECTO, Graça Castanheira, 40’, 2011, Portugal, e Alto Relevo – Canto ao Douro e ao Vinho, Graça Castanheira, 14’, 2011, Portugal 28 MAI | THE HUMAN SCALE, Andreas Dalsgaard, Dinamarca, 77’

Cinema e Arquitectura em Faro A actividade do Cineclube de Faro em Maio desenvolve-se em duas vertentes: a da programação própria e em torno de uma colaboração que muito nos orgulha e honra com a Delegação da Ordem dos Arquitectos de Faro. Comecemos por esta última: às quartas-feiras, no auditório da Biblioteca Municipal de Faro durante o mês de Maio e no Museu de Portimão durante o mês de Junho, terá lugar um ciclo de Cinema e Arquitectura. Uma oportunidade única para ver objectos fascinantes, como os filmes que resultam do projecto Ruptura Silenciosa, centrado nas relações entre o Cinema e a Arquitectura enquanto promotores da ruptura com os pergaminhos do Estado Novo ou o documentário sobre a visão e pensamento incontornáveis do arquitecto Manuel Tainha ou ainda… (a programação pode ser consultada em www.oasrs. org). Ainda na senda das colaborações, continua a iniciativa

Cineclube de Tavira

fotos: d.r.

Programação: www.cineclubetavira.com 281 971 546 | 965 209 198 | 934 485 440 cinetavira@gmail.com SESSÕES REGULARES Cine-Teatro António Pinheiro | 21.30 horas 15 MAI | KON-TIKI (KON-TIKI: A VIAGEM IMPOSSÍVEL) Joachim Rønning – RU/Nor/ Din/Al/Suécia 2012 (118’) M/12

Imagem do filme Human Scale Filme Francês do Mês, que traz “Le Bal des Actrices” na última sexta-feira de Maio. No que diz respeito à programação própria, esta decorre às 3ªs no auditório do IPDJ, 21.30, sob a égide da Resistência e Resiliência, reunindo quatro filmes em que estas são marcas estruturais na essência de cada um deles. Filmes como “Guerra ou Paz”, de Rui Simões, sobre

os cem mil desertores ou refractários da Guerra Colonial Portuguesa, ou “Até Amanhã Camaradas”, de Joaquim Leitão, baseado no romance homónimo de Álvaro Cunhal. Ainda o avassalador “Terra de Ninguém”, de Salomé Lamas, ou a belíssima fábula futurista que Ari Folman assina em “O Congresso” o seu segundo filme, depois de “Valsa com Bashir”.

22 MAI | J.A.C.E. Menelaos Karamaghiolis – Gr/PT/Tur/Hol/Mac 2011 (142’) M/16 29 MAI | TAKE THIS WALZ (NOTAS DE AMOR) Sarah Polley – Canadá/Espanha/ Japão 2011 (116’) M/16

Espaço AGECAL

O sentido da ‘defesa’ do património cultural

Rui Parreira Vogal da Direção da AGECAL

Uma das múltiplas frentes de confronto de ideias que Abril abriu foi a disputa de políticas do património cultural, um conceito que era então ainda estranho, porque arredado do discurso oficial dos «monumentos da nação», do «património artístico» e do «folclore»1. Por iniciativa dos cidadãos, desde 1974 e na década seguinte foram criadas inúmeras associações de defesa do património cultural e natural com o objetivo de preservar as marcas de identidade das comunidades e dos territórios2. Nas circunstâncias de então, e como bem constatou Marc Guillaume em 19803, o Estado foi «confrontado com um conjunto de reações que têm lugar no movimento e na sensibilidade ecológicas», e que se debatiam «frontalmente com a lógica económica e com inúmeros interesses particulares, eles próprios sujeitos a esta lógica» (p. 131 da tra-

dução portuguesa de 2003). Como consequência da atitude reivindicativa dos cidadãos em defesa das suas raízes culturais, a lei fundamental do regime acolheu, no seu artigo 9.º, como tarefa fundamental do Estado «proteger e valorizar o património cultural do povo português» e, no seu artigo 78.º, que «todos têm o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural», incumbindo «ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais […], promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum», e salvaguardando, no seu artigo 21.º, o direito de resistir e atuar em sua defesa «quando não seja possível recorrer à autoridade pública». Consequentemente, a Lei 107/2001, ao estabelecer as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, refere, ao longo do seu articulado, o direito e o dever de defesa dos bens culturais (materiais e imateriais). Estranho país este, porém, em que o Estado, em lugar de fomentar a conservação (desde logo preventiva) da herança cultural recebida das gerações anteriores e de favorecer ativamente a sua valorização

foto: p. barros

Descobertas arqueológicas no núcleo urbano antigo da cidade de Lagos e promoção, adota uma política de património defensiva. Casos como o do movimento de salvaguarda da arte rupestre de Foz Côa, ou a, dele decorrente, atitude cautelar dominante na conservação do património arqueológico, mostram que, em matéria de política do património, o poder do Estado exerce-se à defensiva. Talvez isso explique a insipiência das iniciativas de educação para o património cultural tomadas em

quatro décadas pelo Estado democrático, ou a frouxidão das políticas de salvaguarda, com uma elevada incidência de caducidade dos procedimentos de classificação legal de bens culturais imóveis (bastando para tal consultar o website da entidade de tutela4), ou a atitude defensiva dos próprios agentes do aparelho, pese embora o disposto no artigo 271.º da lei fundamental, demonstrando a sua desconfiança em quem se obriga,

por inerência do cargo que aceitou, a exercer o poder. Na democracia que temos (representativa), os cidadãos, e os próprios agentes do aparelho, desconfiam de quem representa o poder de Estado e de quem define os preceitos de preservação da «memória autorizada». E por isso têm de estar preparados, através das suas organizações associativas, com liberdade e sem a interferência das autoridades públicas, para aprofundar os combates pela herança cultural e subverter a política 1 Como recentemente bem notou Luís Raposo: O 25 de Abril e a (re) invenção do património cultural português. «Público», 24/04/2014: p. 47. 2 Veja-se, de J. C. Caninas, Associativismo e defesa do património (1980-2010), in «Portugal 19102010: 100 Anos de Património: memória e identidade», Lisboa: IGESPAR, 2010. 3 La Politique du Patrimoine. Paris: Galilée, 1980 (tradução portuguesa: A Política do Património. Porto: Campo das Letras, 2003). 4 Em http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/pesquisa/geral/ patrimonioimovel/


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Cultura.Sul

Panorâmica foto: d.r.

Lídia Jorge: entrevista à escritora algarvia a propósito do novo livro ‘Os Memoráveis’ É o mais importante rosto da literatura portuguesa actual nascido por terras algarvias e lançou recentemente Os Memoráveis, razão mais do que suficiente para uma entrevista com uma das mais proeminentes filhas de Boliqueime. A carreira literária iniciada com O Dia dos Prodígios, no ido ano de 1980, soma já 18 títulos entre Sente-se nesta última obra, de facto, um quase retorno ao “extra-ordinário” dos seus primeiros dois romances e um leitor pode mesmo sentir, ao chegar ao final, que não compreendeu tudo no âmago, pois o processo de leitura deste romance afigura-se ao «descascar de uma cebola». Talvez seja preciso uma releitura ou ouvir as suas próprias palavras para chegarmos «ao coração do coração da fábula». Cultura.Sul (CS) - Qual foi a imagem ou situação que inspirou este romance?

Novo romance de Lídia Jorge tem como cenário o 25 de Abril de 1974

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“JÚLIO RESENDE”

31 MAI | 21.30 | Grande Auditório do TEMPO – Teatro Municipal de Portimão

Concerto de um dos grandes pianistas da actualidade, músico que pegou no repertório de Amália e fez um disco intenso, onde tentou transpor toda a carga emocional do fado para o piano

Lídia Jorge (LJ) - Foram várias as imagens que me conduziram até à escrita deste livro. A mais antiga tem 14 anos. Remonta ao ano 2000. Nesse ano, o Suplemento literário de O Público, que então se chamava Leituras, propunha a quatro jovens escritores portugueses, com menos de 35 anos, que escrevessem textos tendo por mote a revolução. Cada um a seu jeito, todos evitaram o assunto. A revolução de 1974 era-lhes alheia. Além disso, a imagem que ilustrava esse número, uma fotografia do checo Josepf Koudelka, “O olhar de Ulisses”, também me levou a pensar que um dia iria escre-

romances, onde sempre se destacou, ensaios, peças, livros infantis e contos. Incontornável no panorama literário português, eis a grande senhora da escrita numa conversa mantida com Paulo Serra, colaborador do Cultura.Sul, que percorre a obra da autora a partir de um foco centrado no seu último romance.

ver um livro sobre esse tema. Guardei esse número muito bem guardado. Catorze anos depois, escrevi Os Memoráveis. Os protagonistas são jovens que nasceram depois do 25 de Abril e os memoráveis vêm apeados, e envoltos em arames, como na fotografia de Koudelka. CS - Sente-se que fez uma pesquisa histórica e que, tal como Ana Maria e os colegas, entrevistou diversas pessoas. Houve, de facto, um processo de pesquisa para a escrita deste romance? LJ - Sim, houve um processo de pesquisa não sistemático. Ao longo dos anos fui acumulando dados. Livros, artigos, documentários, entrevistas. Não sabia bem se iria usar ou não. O assunto parecia-me inevitável, mas ao mesmo tempo ele já se tinha cristalizado e banalizado. Mais próximo, fiz várias entrevistas. O contacto com determinadas figuras confirmava a minha ideia. Era preciso escrever sobre o “Olhar de Ulisses” português. CS - Definiria este romance como um romance histórico ou historiográfico? LJ - Nem uma coisa nem outra. Este romance é um hí-

brido, eu sei, tem uma parte que toca no histórico, mas eu escrevi sobre o momento da História em que os dados reais se transfiguram em lenda. Trata-se de um livro sobre uma mitologia. Escrevi sobre factos irreais para tentar atingir a realidade. O romance histórico ou historiográfico procura revelar dados reais. Seja como for, a base dos factos, essa corresponde ao real. Procurei criar uma mitologia sem mentir. CS - No romance A Costa dos Murmúrios parte de um texto inicial, um relato oficial, que serve de chave ou puzzle a ser desconstruído ao longo do romance. Aqui parece seguir-se um processo inverso, em que se parte da história já conhecida ou mitificada para aquilo que é realmente lembrado, terminando com o argumento enquanto “registo factual”. Concorda? LJ - Concordo. É um processo inverso. Em Os Memoráveis, parte-se do mais claro para o obscuro que o mergulho na des-razão determina. Em A Costa dos Murmúrios, como diz, o processo é inverso. CS - Que memória tem do 25 de Abril? E dos tempos vividos antes da revolução?

“DO AR, DA TERRA E DO MAR…” Até 29 MAI | Edifício dos Paços do Concelho de Albufeira Júlio Antão, artista autodidacta, apaixonado pela fotografia na vertente animal e vegetal, aproveita os momentos que passa a fotografar para se inspirar, o que se reflecte nas várias áreas da arte a que se dedica


Cultura.Sul

LJ - É impossível responder a essa questão. Escrevi dois livros sobre o tema, este e O Dia dos Prodígios precisamente para dar eco dessa memória. O Antes e o depois. Talvez todos os meus livros sejam sobre esses dois tempos. Assumo-me como uma espécie de cronista do tempo que passa. E escrevo ficção porque não posso nem sei falar da realidade de forma direta. Toda a minha memória possível está nos livros que fui escrevendo.

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o país muito bem. Há um naipe de escritores jovens que estão a dar continuidade e a renovar a Literatura portuguesa. Assim estivessem as exportações e as cotas de mercado. CS - O facto de a protagonista ter estado ausente do país confere-lhe um olhar crítico mais objetivo?

romances, a uma jovem que vê o mundo com uma certa ingenuidade ou inocência, muitas vezes perdida no final. Ana Maria, a Machadinha, como o próprio nome indica, revela-se uma surpresa na sua galeria de personagens, pois é uma mulher aparentemente fria, calculista, que desde o início do romance indicia não

faz parte da minha própria dissensão. CS - Foi uma das escritoras escolhidas pelo «Magazine Littéraire» como uma das Dez Vozes mais Significativas da Literatura estrangeira. Como acolheu essa notícia? LJ - Foi surpreendente, mas não recebi esse destaque

sem grandes floreados e num registo muito próximo da oralidade, como se entrássemos na “corrente de consciência” da personagem. Foi intencional? LJ - Não foi intencional. Tinha pressa de escrever o que queria dizer. Esse ritmo de escrita é o ritmo da urgência em dizer o essencial. foto: joão pedro marnoto

CS - Até que ponto é que a Liberdade se reflete no seu trabalho? LJ - A Liberdade, a santa Liberdade como dizem alguns, levou-me a escrever. Não sei se teria publicado se não houvesse liberdade. Talvez escrevesse sempre, tal como os meus pais que sempre tomaram as suas notas pessoais, um e outro sempre fizeram diário. Mas a verdade é que escrever para publicar é diferente. Sou mais radical. Se não tivesse havido liberdade, se ela não tivesse chegado quando chegou, provavelmente não teria publicado nada, e talvez nem tivesse vivido para além dos trinta anos. É uma assunto crucial, vivencial, que determina a vida desde o quotidiano e o íntimo ao amplamente social e literário. CS - O desencanto que se sente nestes heróis, outrora memoráveis, é o reflexo do que sente em relação ao país de hoje? LJ - Estes heróis, chamemos-lhe assim, hoje ainda são memoráveis. Quanto mais o tempo passa mais memoráveis surgem. Eles enfrentaram um risco imenso. O seu desencanto coincide com o meu desencanto. Mas eles, como personagens, têm esperança. A sua esperança é a minha esperança. CS - E em termos literários como vê o país?

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LJ - Em termos literários, vejo

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vos foi precursora de várias outras mudanças, na Europa, na América Latina, e um pouco por toda a parte. O problema não foi a revolução que até terminou no momento exato em que poderia ter existido uma contra-revolução, alguma coisa que destrói a renovação das sociedades. Esse perigo também foi evitado. O problema foi a imperfeição da nossa democracia que foi branda e deixou criar uma crescente promiscuidade em vários sectores vitais da sociedade. A culpa não foi da Revolução. CS - Das memórias que ficaram da Revolução, a principal imagem ou sensação parece ser a de algo risível. Recordou-me aquela imagem de Milan Kundera, em O Livro do Riso e do Esquecimento, em que as personagens de tanto rir face à realidade que as rodeia levantam voo. Pode comentar?

Lídia Jorge foi eleita uma das dez grandes vozes da literatura estrangeira em França LJ - Sim, o facto de falar a partir de longe, e depois de ter feito experiências fundamentais na vida, como seja a participação enquanto repórter de guerra no Médio Oriente, leva-a a compreender melhor a situação portuguesa. Mas a sua perspetiva é ao mesmo tempo distanciada, o que lhe confere sentido crítico, e ao mesmo tempo enfática, já que tem um envolvimento emocional muito particular com o seu pai, bem como com todos os entrevistados. Esse olhar misto de frieza e exaltação torna-se fundamental para percorrer os vários degraus descendentes da fábula. CS - Habituou-nos, nos seus

revelar tudo o que sabe (parecendo deixar a inocência para Margarida Lota). Foi uma decisão consciente? LJ - Foi um processo consciente. Como disse atrás, essa figura ambígua fazia-me falta. Eu precisava de alguém que visse o que se passava de forma lúcida e ao mesmo tempo amasse profundamente o mundo que criara os elementos detestáveis. Essa ambivalência era-me fundamental. Ela surgia-me desde o início guardando esse segredo. A forma secreta como se desenrolava a sua paixão destroçada era-me muito importante. Não sei até que ponto essa dissensão interior

“II FADO FEST” 16 e 17 JUN | 21.30 | Centro Cultural de Lagos Nesta edição, o evento conta com a participação dos fadistas César Matoso (no dia 16) e Sara Gonçalves, vencedora do concurso “Nasci para o Fado”, de Filipe La Féria (no dia 17)

como uma responsabilidade. Eu deixo andar. O que for soará.

LJ - Não sigo nenhum ritual. Neste caso, escrevi de manhã à noite. Até entorpecer. Quando acabou, fui olhar o mar. O Verão tinha passado, o Outono também e não o tinha visto.

CS - Na obra O Dia dos Prodígios, a ilusão ou o fantástico deturpam a realidade da revolução, sentida como um ato falhado que não chega às pessoas. Em Os Memoráveis, sente-se novamente uma certa aura quase mágica, aluada (no final do livro quando se encontram os poetas), onde tudo parece ser fruto do acaso. Reafirma-se essa mensagem de a revolução ter sido um ato falhado?

CS - Este romance tem uma leitura mais fluída, quase ininterrupta, onde a linguagem parece ser reduzida ao osso, ao essencial,

LJ - Não, a Revolução não foi um ato falhado. Foi um ato hiper-conseguido. Hoje, cada vez mais, se destaca como a Revolução dos Cra-

CS - Escreveu este romance em cerca de seis meses. Segue algum ritual ou horário de escrita?

LJ - Muito interessante essa associação. Kundera é um dos meus autores preferidos. Admiro imenso a capacidade que esse autor tem de transfigurar a realidade política em irrealidade ficcional. É um dos grandes criadores do século XX a quem ainda não foi feita a devida justiça. Não sei se as minhas personagens levantam voo. Não fui capaz de inventar uma metáfora tão forte. Mas em Argumento para Bob Peterson, e última parte do livro, o voo acontece a partir da supressão do negrume. O voo surge, se é que surge, secando todas as lágrimas, escondendo todos os defeitos, e entregando à posteridade apenas o feito feliz. O resto fica para trás, nos subterrâneos do passado, lá onde se foi até ao coração do coração da fábula e a realidade doeu a ponto de matar. Apesar de tudo, os poetas riem. Paulo Serra Investigador da UAlg associado ao CLEPUL

“ALGO PARA TODOS” Até 24 MAI | Galeria Municipal de Albufeira Brian Mehl possui formação e experiência profissional como Designer Gráfico há mais de 30 anos. Em 1996 veio para Portugal para pintar a tempo inteiro. Cada pintura parece ter um estilo diferente, mas depois de expostas denotam uma coesão total entre elas


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Momento

Páscoa púrpura Foto de Vítor Correia

Espaço ALFA

A Natureza chama a fotografia macro d.r.

José Simões

Membro da ALFA

Adoro fotografar a natureza e o tema que mais aprecio é a fotografia macro, onde eu tento mostrar através dos meus trabalhos a natureza que geralmente não se vê ou passa despercebida por tão pequena que é, embora também tenha trabalhos de outros temas. De mochila às costas, máquina na mão e sempre de olhos bem abertos, pois a cada passo que se dá lá está uma aranha, uma pequena flor com apenas milímetros de tamanho, uma abelha ou um escaravelho, bem como uma das tantas maravilhosas borboletas que por aí andam ao sabor dos ventos. Tudo isto é maravilhoso, mesmo que se passem horas por vezes em posições menos cómodas, deitado, de joelhos, ou até sentado num abrigo, no que diz respeito a fotografar aves, em silêncio e mesmo com os mais variados insectos a passearem por nós, e interrogando-se quem será este intruso todo artilhado

que está no nosso território? Para mim, ser fotógrafo de natureza e vida selvagem é respeitar toda a natureza sem danificar ou alterar o seu curso normal. Todas as minha fotografias são tiradas em ambiente selvagem e no seu habitat, tal onde se encontram, não tento remover ou mudar qualquer

insecto ou levar para estúdio. Por vezes, não consigo tirar aquela fotografia maravilhosa e apelativa com um fundo limpo, por motivo de ramos ou folhas, mas mesmo assim é muito bom apreciar as pequenas maravilhas, e ficar sempre com um pensamento para a próxima fica melhor. O segre-

do é nunca desistir, porque ao dobrar numa curva, num trilho ou caminho algo de novo acontece. Moro na maravilhosa cidade de Lagos, tenho por aqui bem perto locais maravilhosos para fotografia, como Pau de Lagos, Ria de Alvor ou Boca do Rio. Ponta da Piedade é um dos locais mais bonitos,

até os insectos gostam, pois há lá muitos, tal como répteis, peneireiros e abelharucos, que já começaram a chegar, embora também outras zonas como Lagoa dos Salgados, Ria Formosa e Castro Marim. Para terminar RESPEITEM A NATUREZA e apreciem as coisas maravilhosas que ela nos oferece.


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Na senda da Cultura

pub

‘Mal Nascer’: a nova obra de Carlos Campaniço d.r.

O escritor Carlos Campaniço

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Depois de Os Demónios de Álvaro Cobra, a obra com que nos prendou em 2013, é chegada a hora de descobrir Mal Nascer o novíssimo livro de Carlos Campaniço. Novamente nos escaparates, desta feita com chancela da Casa das Letras, o escritor alentejano que se fez algarvio pelo decurso da vida em terras do Reino dos Algarves, propõe-nos um médico como personagem fundamental. Fugido aos miguelistas, Bento retorna à terra natal para ali exercer a profissão e acaba por constatar que há muito que a terra que o viu nascer o tem por um homem que não aquele que era quando dali partiu. A infelicidade vivida ali caiu no esquecimento de todos menos do próprio médico, nascido Bento e feito Santiago Barcelos, e o regresso prepara-se para ser em tudo diferente do que o próprio imaginara. Os planos que desenhara para a sua reentré, não passam disso mesmo, planos, perante uma realidade pejada de gente que lhe quer bem e o quer por perto. Capaz de prender o leitor até ao fim, a obra mostra como ser médico, naquele espaço e tempo literário, é “ser antes de deus”, numa veneração que

ultrapassa mesmo a dedicada ao mais rico homem daquelas bandas e alvo da vontade de vingança de Santiago Barcelos, Albano Chagas. Tudo isto e muito mais numa obra que une romances cruzados a vinganças que se fazem reais por si próprias sem esforço de quem as deseja, num percurso assente na revelação da real identidade do personagem principal. O autor Carlos Campaniço nasceu em 1973, em Safara, no concelho de Moura, é fez-se algarvio de pleno direito com perto de duas décadas vividas em Faro. É licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, pela Universidade do Algarve, onde adquiriu também o grau de mestre em Culturas Árabe e Islâmica e o Mediterrâneo. ´ É actualmente director de Programação do Auditório Municipal de Olhão Com esta nova obra o escritor cumpre cinco obras editadas e, uma vez mais, se afirma como um autor de peso. Mal Nascer foi finalista do Prémio Leya e é, independentemente disso, imperdível. “ANTES QUE ACABEM” Até 5 de Julho | Centro Cultural de Lagos Uma abordagem ao 25 de Abril, aos artigos da constituição portuguesa e à declaração dos direitos humanos através da exposição de pintura e escultura de António Alonso e da poesia e vídeo de Vieira Calado

“GILDA DAS AMENDOEIRAS” 23 MAI | 21.30 | Grande Auditório do TEMPO A Academia de Música de Lagos apresenta, em estreia mundial, uma obra encomendada ao compositor Nuno Sequeira Rodrigues, contando com a participação de solistas da Orquestra Clássica da Academia e do Coro Cant’Arte, sob direcção musical de João Pedro Cunha


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Cultura.Sul

Na senda da Cultura

Museu do Trajo: muito mais do que um museu em São Brás de Alportel Há sítios que sempre que se revisitam se redescobrem e onde, sempre que regressamos, nos sentimos melhor. O Museu do Trajo é exactamente assim e o Cultura.Sul, numa visita proposta a jornalistas e operadores turísticos pela Região de Turismo do Algarve, regressou ao espaço museológico e deixa-vos uma proposta irrecusável, uma visita ao espaço de cinco mil metros quadrados que acolhe um dos mais convidativos museus algarvios. O Museu do Trajo de São Brás de Alportel é muito mais do que um museu e revela muito mais do que o trajo enquanto espaço museológico que lhe está especialmente dedicado.

Trezentos e sessenta e cinco dias por ano, sim, exactamente isso, 365 dias por ano, a casa senhorial com 130 anos de história espera os visitantes, de segunda a sexta-feira, entre as 10 e as 13 horas e das 14 às 17 horas; aos fins-de-semana e feriados entre as 14 e as 17 horas. “Aqui nunca fechamos”, refere Emanuel Sancho, o director do espaço, que mostra a exposição inaugurada no âmbito do programa Algarve - Do Reino à Região e dedicada aos trajos típicos do Algarve, que mostra vestes e formas de estar e de viver dos algarvios doutros tempos desde a roupa íntima, ao traje de trabalho, passando pelas vestes da gente mais abastada.

Nora com engenho, nos jardins do Museu

fotos: ricardo claro

Percorrida a exposição central do museu, espaço para aprender o muito que há para desvendar naquela que é uma das actividades mais típicas de São Brás de Alportel, a extracção e transformação da cortiça. Num espaço onde a museologia ganha um carácter vincadamente industrial, este é o espaço por excelência para conhecer a arte e o engenho que fazem da cortiça são-brasense um dos produtos de excelência da região. Um espaço de excelência Tempo para uma passagem pelos carros de atrelagem, dos coches aos carros de trabalho, antes de chegar ao coração deste museu. Nos jardins, amplos e arejados, da casa senhorial há um espaço que faz do Museu do Trajo um local único. Aqui se pode ler, estar, passear, visitar o interior de uma nora com engenho, passar em revista o carro do aguadeiro a relembrar outros tempos e deslumbrar-se com um ambiente digno de se respirar e perceber com tempo. O verde que recorta o sol, cria um jogo de sombras que convida a ficar, a deixar-se estar num mundo fora do tempo que corre para lá dos muros na vila de São Brás de Alportel. Apenas o chilrear dos pássaros corta o silêncio a pedir contemplação e a oferecer mi-

Um dos momentos expositivos dedicados aos trajes de outras épocas nutos preciosos de bem-estar. Aqui, ao sabor de um café ou de um refresco do bar, há um ar único e um compasso raro que nos embala. O espaço, que acolhe a variadíssima programação do museu, com música, arte, exposições, feiras e mostras, popula a todo o tempo com uma variedade de expressões

artísticas que pode ser seguida através da página do facebook do museu em www.facebook. com/museusbras ou a partir do sítio do museu na internet em www.museu-sbras.com. Há mais do que museu dentro deste museu e há muito mais vida neste canto do que os seus recantos podem à primeira vista revelar. Há alma,

dedicação, tradição e memória, acompanhadas de vida, contemporaneidade, saber acolher e espírito, por entre tudo o mais que um espaço de rara beleza pode reservar. Absolutamente imperdível, aqui mesmo a dois passos de distância, um museu raro em São Brás de Alportel. Ricardo Claro

Sala de leitura

Uma arte da errância: os poemas-canções Paulo Pires

Programador cultural no Município de Silves esteoficiodepoeta@gmail.com

“Levo as asas no bolso / e o coração a planar”, escreveu Jorge Palma [JP] na canção “Voo nocturno”, vinda a público no álbum homónimo de 2007. Porventura, poucos versos da sua produção poética (iniciada em finais da década de 60) ilustrarão tão bem a atitude e visão de um “mestre da fuga” que al-

meja ser “mais leve do que o ar”, sem saber muito bem onde vai acordar no dia seguinte. O filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662), num dos seus momentos mais sombrios, afirmou um dia que “notre nature est dan le mouvement… La seule chose que nous console de nos misères est le divertissement”. Para este singular pensador a infelicidade de qualquer homem tinha origem numa única coisa: a incapacidade de estar quieto num quarto. Talvez pela mesma razão, vários séculos antes, o infatigável viajante árabe Ibne Batuta (que

foi dar uma volta à China e voltou, só pelo prazer) tenha dito que “aquele que não viaja não conhece o valor dos homens”. Numa entrevista dada há alguns anos, e quando questionado sobre o enredo de um hipotético filme sobre a sua vida, JP confessava mesmo que na primeira cena imaginava-se a soltar as amarras de um barco que largava o cais em busca de outras paragens. Na canção “Tempo dos assassinos” JP já tinha escrito estes belíssimos versos: “Quero as vogais todas abertas / quero ver partir os barcos / prenhes de interrogações”.

Bob Dylan, a referência Bob Dylan, referência maior de JP, é ilustrativo nestas palavras intemporais: “a felicidade não está na estrada que leva a algum lugar; a felicidade é a própria estrada”. Se “um fato de marinheiro / não chega para se entender o mar”, como lembra JP no tema “Meu amor (não fiques para aí a dormir)”, é preciso navegar/caminhar e ousar a dança do desconhecido, sentindo a chuva sem ficar apenas, como alguns, molhado por ela (Dylan novamente). Como se constata exemplarmente em

dois outros poemas de JP, “lá fora há lugar à espera de mim” e “a erva é mais verde do outro lado da montanha”. JP recorda mesmo que foi pela mão de sua mãe – uma viajante inveterada que se orgulhava de ver o filho a evoluir talentosamente na aprendizagem do piano – que ele se inebriou pelos muitos lugares que ela lhe mostrou ainda nos tempos de meninice, o que iria marcar decisivamente a sua vida. São várias as letras de JP que estão impregnadas desse impulso da partida (do corpo e/ou do espírito), mas também das

tentações, contradições e vícios da estrada e dos seus desvios – feitos de viagens catárquicas (excitantes ou tranquilizantes) da música, da noite, do sexo, do líquido [des]equilíbrio e do fumo. “Há sempre qualquer coisa que está para acontecer” (José Mário Branco) na mente e bagagem deste cantautor-contador de histórias que se nutre da inquietação, do sobressalto, da intuição, do improviso e do(s) abismo(s). Enganar o tempo, trocar as voltas aos deuses, repreender os fantasmas, brincar com o fogo, perder o passaporte – é


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Espaço ao Património

40 anos de conservação andreia machado

Neste ambiente, a conservação e o restauro deixam de ser vistos como uma prática artística ligada a oficinas e ateliers de pintura para passarem a ser uma atividade enquadrada academicamente, assente em estudos científicos, estéticos e artísticos, baseando a sua ação nas recomendações ditadas pelos organismos, internacionais e nacionais, ligados ao património e à sua salvaguarda. O fenómeno de dinamização de projetos de conservação prossegue nos anos 90, um pouco por todo o País, com a criação de pólos museológicos e museus municipais.

Toda esta dinâmica é fomentada numa perspetiva de interesse científico mas, também, de rentabilização económica, cultural, social e educacional que o património foi assumindo. O início do novo milénio trouxe mudanças nas linhas orientadoras para a prática da conservação e do restauro, com os novos projetos a serem executados e monitorizados por quadros técnicos especializados nesta área, recorrendo-se à sua admissão para cargos de responsabilidade técnica e científica, tanto ao nível do estado central como das autarquias.

Na última década, tem-se verificado uma contração das ações de preservação do património, situação que corresponde ao período de crise verificado no nosso País. Contudo, a abordagem multidisciplinar e holística da conservação continuam a estar em destaque, com o desenvolvimento científico ligado a esta área a manifestar-se com a apresentação de investigações académicas, estudos e divulgação em vários formatos e plataformas. Como seria de esperar, os desenvolvimentos dos últimos quarenta anos tiveram consequências para a salvaguarda

do património cultural e, assim, da memória e identidade nacional. Porém, verifica-se que estas mudanças se fizeram a diferentes velocidades e graus de implementação, dependendo da capacidade política e económica de cada distrito. No caso específico do Algarve, observou-se que nas últimas duas décadas esta região soube acompanhar os fluxos ideológicos no que concerne à valorização e conservação. Por outro lado, soube tirar partido do património, encarando-o como um recurso económico, procurando através deste uma forma de financiamento e desenvolvimento local, baseado na sua promoção turística, disponibilizado através de equipamentos específicos, como o caso dos museus municipais integrados, ou não, na Rede Portuguesa de Museus. A conservação nos museus do Algarve tem sido um exemplo paradigmático de conjugação de fatores e de interesses científicos, com os respetivos elementos a trabalharem em estreita colaboração, fruto da dinâmica do grupo de Conservação afeto à Rede dos Museus do Algarve. Esta ligação promove um maior dinamismo da atividade profissional e, ao mesmo tempo, contribui para o fomento de estratégias capazes de promover o desenvolvimento cultural, mostrando mais uma vez a versatilidade e a transversalidade desta região.

mas antes ensinou-me / a não esquecer que o meu amor existe”. No bairro do amor, nesse carrossel marginal feito de ternura, JP retrata poeticamente as nossas “nódoas negras sentimentais”, mostrando-nos que elas resistem ao tempo e são transversais a várias gerações; e na terra dos sonhos recorda-nos o poder e a responsabilidade que advêm da liberdade e da tolerância: “tens de olhar pra fora sem esquecer que dentro é que é o teu lugar”. Os seus poemas reflectem ainda outras dualidades existenciais e filosóficas, que se es-

tendem a questões como a desconstrução da razão, cuja voz JP quer dilacerar (tema “Poema Flipão”) e relativizar (bebendo em Hamlet, de Shakespeare): “Ser ou não ser é a questão / Ter ou não ter razão / E não temer”; e “Os dois podemos ter razão”. O incansável vagabundo de passo inseguro, que procura o grito na rua, não é indiferente à actualidade social e – como que lembrando versos de Alexandre O’Neill: “Neste país em diminutivo, / respeitinho é que é preciso” – denuncia ainda ironicamente, “com todo o respeito”, parques automóveis

que cortam a respiração e estão muito acima da nossa realidade; mas também um Portugal que teima em esperar por algo ou alguém (desde a segunda dinastia?) e que (ainda) tem “um pé numa galera / e outro no fundo do mar”. Um dia perguntaram a JP se ele mudaria algo na sua vida. Ele respondeu com o título de um filme realizado por D. A. Pennebaker em 1967, sobre uma tournée de Dylan em Inglaterra: Don’t look back. Mas também poderia ter citado um verso seu: “O que lá vai já deu o que tinha a dar”. JP acres-

centou ainda que fez sempre aquilo em que acreditou, mesmo que sem rede, mesmo escolhendo – como Jeremias (o fora-da-lei) – o lado de fora, ou mesmo estando com as duas almas em guerra, sem que nenhuma ganhasse. JP é o eterno “chevalier de la fortune”, fã de si próprio pela franqueza, talento e imaginação (como ele próprio assume), pois “enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar”. Resta a dúvida inquietante (e necessária): “Será que ainda cá estamos no fim do Verão?”.

Andreia Machado

Técnica Superior de Conservação e Restauro no Museu de Portimão Investigadora do CIDMar, Centro de Estudos do Mar da Universidade Autónoma de Lisboa

Numa altura em que se comemoram os 40 anos do 25 de Abril, muitas são as avaliações que se fazem, pelo que não podia deixar passar a oportunidade de apresentar um breve apanhado do que foi a conservação do património cultural ao longo destes 40 anos de transformações políticas, económicas e sociais. Os ecos da Carta de Veneza (1964) e a projeção da Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural (1972) ainda se faziam sentir no nosso País quando se deu a Revolução de 1974. Foi neste misto de abertura e mudança que surgiu um novo sentir e usufruir do património cultural, culminando com a referência da sua preservação, defesa e valorização na Constituição da República Portuguesa. Numa manifestação de dinamismo cultural proliferaram as Associações de Defesa do Património que se distinguiam, sobretudo, pela vigilância contra as destruições dos valores culturais,

Pormenor da imagem de Santo António após conservação, no Museu da Cidade de Olhão pressionando o Estado e a Sociedade para a necessidade de salvaguardar os vestígios patrimoniais. O início dos anos 80 marca a criação dos preceitos legais na organização dos serviços ligados ao património cultural, na descentralização e decisão para salvaguarda e valorização da memória nacional. Para além deste envolvimento do estado central nos projetos de conservação, restauro e musealização destaca-se, igualmente, o papel das autarquias, as quais atuaram como agentes impulsionadores da preservação do património.

de Jorge Palma nesta mundividência, assente no risco, na imprevisibilidade, num certo “feeling” e na subversão, que JP se sente em casa. A forma como ele sente e “ataca”, em palco, quer as palavras, quer as notas (do piano e da guitarra) das suas canções vive muito desse devaneio e incerteza/oscilação que, no fundo, podem ser plenos de criatividade, encantamento e identidade musical sempre que os desejos que Palma tem de se dar/(re)encontrar/erguer e de se perder/fugir/cair conseguem encontrar um ponto-lugar de (precária e frágil) convivência.

Um escritor de canções como poucos Para além da sua vertente interpretativa, JP é um escritor de canções como poucos em Portugal, cuja obra poética assenta muito nesse cativante pêndulo que ora aborda a compulsão da partida, ora valoriza um sítio onde pendurar o chapéu, que nem ave migratória tomada pelo instinto de retorno ao lar, ou que nem coração apaixonado, sempre sem obrigação: “o meu amor ensinou-me a chegar”; “o meu amor ensinou-me a partir / nalguma noite triste /


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Cultura.Sul

O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Maio

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

Cantar o Maio fotos: d.r.

Agosto de 1978, teria forçosamente que nomear o mais marcante, e então recente facto, da história. Faz-se assim alusão à revolução dos cravos: «não sabe ainda que em Lisboa os soldados fizeram uma revolução para melhorarem a vida de toda aquela gente (…) afirmam a pés juntos que só há música, flores e abraços. Dizem.»; e também à guerra colonial: «Guerra, que guerra? Oh gente ignorante, será preciso ter um filho, ou um afilhado no serviço, para se poder falar nessas coisas sem dar explicações». Há coisas e lugares sobre os quais não se pode escrever, sem as termos vivido, vivenciado, observado, visitado ou lá ter estado. O barrocal algarvio tal como outros lugares encravados no tempo é um deles. ‘O Dia dos Prodígios’, de Lídia Jorge, é a sua caracterização por excelência, ainda mais porque a acção está ali naqueles importantes anos antes da revolução de Abril em 1974. Isso é o suficiente para que nenhum algarvio deixe de ler esta obra ímpar. Ao mesmo tempo que continua a ser um dos mais importantes livros da literatura portuguesa contemporânea, do qual ficou célebre a seguinte passagem: «Ninguém se liberta se não quiser libertar-se. (…) Como ninguém sabe ler os sinais, ficam todos pelos lamentos das coisas.»… tão local como universal, tão antiga como actual. Quarenta anos depois.

Faro se anima Atacar o Maio é querer que tudo (re)comece. É o tempo de olhar de novo os horizontes azuis da orla costeira. À medida que crescem os dias no seu percurso de atingir o solstício decrescem as noites, como gosto delas. Breves, temperadas, mas imaginativas e intensas. À medida que se entra pela estação do império do sol.

muito teatro, claro. A associação ArQuente, que recebeu em Março e Abril o festival Poesia & Companhia - um diálogo com a poesia que foi uma verdadeira pedrada na ria, continuará a receber novas conversas à volta da palavra. O Palácio do Tenente continua com as suas multifacetadas actividades na rua conselheiro Bívar. Entre elas houve uma animada noite de ‘Poesia & Vinhos’ que juntou pessoas que gostam de escrever e ler poesia e que foram surpreendidas com leituras inesperadas... letras, frases, poemas, palavras soltas, poemas trocados, poetas mistério! Com alma e paixão, ali se brindou à voz e à Poesia! Na Biblioteca Municipal António Ramos Rosa decorre, até 24, uma Mostra Bibliográfica de Autores do Algarve - uma parceria BMF / Sulscrito - Círculo Literário do Algarve, com os autores: Carlos Campaniço, Fernando Esteves Pinto, Fernando Pessanha, Manuel Madeira, Miguel Godinho, Pedro Jubilot, Vítor Cardeira. Foi inaugurada no dia 2 com uma tertúlia literária conduzida pela Prof. Drª Adriana Freire Nogueira da FCHS da Universidade do Algarve. O Cineclube de Faro exibe durante este mês um ciclo de cinema dedicado aos filmes de resistência, muitos deles falados em português. A Sociedade Recreativa Artística Farense – Os Artistas, continua viva e com concertos e outras propostas alternativas de qualidade. Esqueçam o velho comentário ‘em Faro não acontece nada’. A cidade está viva. Há muito por onde escolher e há a net, o facebook, os jornais, os flyers e os amigos... depois não digam que não sabiam.

blico em geral – que serão acolhidos pela música à guitarra de José Francisco e José Alegre, e leitura de poemas do engenheiro de Tavira. O novo espaço situado na Calçada da Galeria, nº 9-C (antigo posto de turismo da cidade) terá uma programação cultural e estará aberto com cafetaria, venda de objectos de arte e materiais de papelaria alusivos ao poeta, uma sala/jardim de leitura e exposições. Também haverá uma livraria que privilegiará a obra pessoana. As edições das editoras locais: GenteSingularEditora, 4Águas, Edições Cativa e a da nova CanalSonora estarão ali disponíveis.

Postais da Costa Sul

Casa Álvaro de Campos – Tavira

Lídia Jorge

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Nasceu em Boliqueime, em 1946. Em 1980 lançou o seu primeiro livro ‘O Dia dos Prodígios’. Este romance terminado pela autora em

Maio começa com um sol brutal e Faro anima-se culturalmente como nunca. Vários locais da cidade apresentam programações culturais. O Teatro Lethes traz ao seu palco a ‘Ode Marítima’ de Álvaro de Campos, o mais recente espectáculo de Diogo Infante com música original de João Gil. E ainda jazz, blues, stand-up comedy, exposições, dança, a segunda edição do FOMe (festival de objectos e marionetas), e

“PINTURA DE TARAS PANOVYK” Até 27 MAI | Galeria de Arte Pintor Samora Barros - Albufeira Trata-se de um artista ucraniano que apresenta telas pintadas em diversos estilos, algumas incorporando uma mistura de técnicas

Dá a conhecer a sua nova sede a 17 de Maio -18h, sendo a entrada aberta a sócios e ao pú-

~ o dia mais quente, do que o ano já leva, convida a passeios mais prolongados. o perfume que exala das flores campestres aromatiza o caminho. sento-me sem tempo como as pedras junto ao canavial. do silêncio possível destes dias ouvem-se as passagens de vento. a água do pego em serena queda nem pressente donde vem. se um dia acautelar que ela já não corre entre os seixos, far-te-ei saber que me fui deste outrora lugar de segredos a que estranhamente deram o nome de inferno ~

“CON L DE LOLA” Até 28 MAI | Casa dos Condes - Alcoutim Exposição de joalharia de Maria Dolores Montes (Lola Montes). A sua paixão pela arte leva-a a experimentar diversas áreas, chegando ao desenho de jóias como uma consequência natural desse percurso


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Cultura.Sul

Da minha biblioteca

«A beleza é o grau mais elevado da verdade», Os Memoráveis, de Lídia Jorge d.r.

Adriana Nogueira

Classicista Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

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Foi um prazer ler o último romance de Lídia Jorge, editado em março último, pela Dom Quixote. E as razões foram muitas. Porque fala de um dia da nossa história que me diz bastante: o 25 de abril de 1974. Apesar de ter dele apenas uma vaga ideia, foi sendo sempre falado na minha família e faz parte do meu presente. Porque reconheço grande parte da história ali contada, fazendo-me sentir cúmplice, quer do texto, quer dos acontecimentos. Porque o romance é um género que faz falta para contar a História. É um modo de chegar a muito mais gente que, depois de o ler (ou enquanto o vai lendo), vai ter vontade de ir procurar os outros livros – os de História não romanceada – para aprender sobre as horas daquela noite de 24 para 25 e sobre os seus protagonistas. Apesar da «transfiguração literária», como se lê na nota de edição, quem sabe se não os reconhecerá? E saltando muitas outras razões, porque é um livro muito bem escrito. As pontas que vão sendo soltas ao longo da narrativa juntam-se em outros momentos, completando quadros de sentido. Ana Maria Machada, a narradora, como participante da história, sabe tanto como nós sobre o que pensam as outras personagens, mas sabe um bocadinho mais do que, em

faz, porque se recusa a uma (re)aproximação: não pergunta nada, para que ele não lhe pergunte; sem sua autorização, retira uma fotografia antiga do escritório do pai, para sugerir memórias nos entrevistados (que conheceu em criança, mas junto de quem não se identifica). No final, tal como ela terá de o fazer em relação ao seu próprio passado – e ao seu presente, compreendido no «Argumento» –, também nós somos confrontados com a necessidade de reavaliarmos os julgamentos que fizemos de Ana Maria. Quanto às personagens, de quem nos recordaremos? Memoráveis no Memories

A escritora algarvia Lídia Jorge e a capa da sua última obra, ‘Os Memoráveis’

certos momentos, conta. Por exemplo, quando a equipa de reportagem entrevista a viúva de um dos capitães de Abril (que percebemos ser Salgueiro Maia, apesar de apenas ser referido pela sua «alcunha doméstica», isto é, pelo nome que a mãe de Ana Maria lhe dera: Charlie 8) e tenta conseguir que esta diga quem queria mal ao marido, perante a relutância em acusar alguém, a «Machadinha» afirma «Nós sabíamos, mas não tão bem como ela, que as vinganças de que foram vítimas ele e os outros como ele, tinham tido autores concre-

tos, nomeáveis, intérpretes e responsáveis, colocados no topo das estruturas criadas num país onde passara a haver liberdade para legitimar tudo e o seu contrário» (p. 249). «A beleza é o grau mais elevado da verdade. Não se esqueça» Estas palavras, nas últimas linhas da primeira parte do livro (da pp. 11-43, que se passa nos E.U.A., em 2003), intitulada «A Fábula», vão fazer todo o sentido com a última parte, o «Argumento» (pp. 331-342, datado de 2010). Este é um momento introdutório que nos ajuda a criar um retrato da per-

“CHAMINÉS ALGARVIAS” Até 11 MAI | Museu Municipal de Arqueologia de Albufeira Exposição fotográfica da autoria de Abel da Silva que contempla imagens de chaminés típicas da região recolhidas de casas em ruínas ou abandonadas por todo o concelho de Albufeira

sonagem principal, o «ela» que se torna um «eu». Mas um «eu» que, por vezes, não o quer ser: há uma recusa da narradora em contar a história, em querer fazer parte da história, em falar da sua história. Esta é uma narrativa muito inteligente, por não nos contar tudo de uma vez, por nos obrigar, tal como acontece às personagens, a rever as nossas opiniões e os nossos sentimentos. A recusa de Ana Maria não é simples (e só a compreenderemos no fim) e desenvolve-se a vários níveis: ainda na América, não quer recordar a língua portuguesa nem aceitar o trabalho para a CBS, de fazer uma reportagem sobre «alguma coisa boa, alguma coisa limpa, uma narrativa luminosa na qual uma pessoa se reveja. Eles andam por aí a dizer o contrário, mas olhe

que mais importante do que a verdade é a beleza, a beleza é o grau mais elevado da verdade. Não se esqueça» (p. 43). A necessidade deste desafio do ex-embaixador em Lisboa (que podemos identificar com Frank Carlucci) foi explicada por ele da seguinte forma: «a entidade luminosa [referida nesta parte do texto como «anjo da alegria», «o anjo amigo da humanidade» ou «o anjo da paz»] raramente sobrevoa a Terra e mal acontece logo desaparece deixando o mundo às escuras, fazendo nós mesmos parte dessa escuridão. Juro-lhe, nós mais não somos do que um desenho que se move na escuridão» (p. 24). A imagem que vamos construindo de Ana Maria não é a mais simpática: uma pessoa um pouco distante, um pouco fria, um pouco calculista. Não percebemos, por exemplo, das primeiras vezes que refere Rosie Honoré, companheira do pai, que esta é a sua mãe. Já em Lisboa, Ana Maria recusa-se a dizer ao pai o que

Memoráveis, porque dignos de memória. Foi também este o nome por que os escritos de Xenofonte (escritor grego do século V-IV a.C.) sobre os feitos de Sócrates, ficaram conhecidos. Memoráveis, aqueles que estavam na fotografia tirada no restaurante alcunhado como Memories? Memoráveis, porque as suas memórias, por vezes precisas e exatas, nos fazem falta? Memoráveis os feitos? Memoráveis os homens? Da «Viagem ao coração da fábula» (pp. 45-329) fica a necessidade da triagem: de quem vale a pena recordar e o quê: se as palavras, se os gestos, se a imagem. De alguns, nada, quer porque nem os querem ouvir, quer porque demonstraram um egoísmo insuportável (como os poetas); do que se quer herói, «advogo que o mito não diga palavras (…). Quando se está assinalado pela história, falar é um risco dispensável» (p. 337). A escolha do argumento para o episódio da CBS é também uma escolha para Portugal: escolher a beleza, porque a verdade é demasiado feia e triste; escolher a beleza, porque traz esperança de que os milagres, na expressão de um agnóstico, são possíveis.

“OS IDIOTAS” 24 MAI | 21.30 | Auditório Municipal de Olhão No mundo d’Os Idiotas, o facebook deixou de ser virtual e as pessoas, mesmo as ‘supostamente normais’, trocaram as gargalhadas por uma dúzia de LOLs. Aldo Lima, José Pedro Gomes, Jorge Mourato e Ricardo Peres dão vida aos ‘idiotas’


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Cultura.Sul

Festa da Pinha: património cultural imaterial do Algarve

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eduardo pinto

laura carlos

pantes vai trajada a rigor, saindo da aldeia logo pela manhã, em

Laura Carlos Licenciada em Design e mestre em Gestão Cultural pela UAlg, pós-graduada em Webdesign pela Boston University

A FESTA da PINHA é a festa mais tradicional e caraterística de Estoi, uma aldeia rural com raizes medievais, no concelho de Faro. A sua comunidade tenta manter vivas as suas tradições mais antigas, a par de uma vida cultural e associativa bastante ativa, sendo esta Festa, de tradição multissecular, a sua maior expressão de património cultural imaterial. Dedicada a ‘Nossa Senhora do Pé da Cruz’, padroeira dos almocreves, a Festa tem lugar a cada dia 2 de maio. Entre as suas denominações populares constam “Festa da Pinha”, “Festa da Nossa Senhora do Pé da Cruz” e “Festa dos Almocreves”. Trata-se de uma celebração em honra dos antepassados, os almocreves que faziam o percurso entre Algarve e Baixo-Alentejo para trocas comerciais e que, aquando do seu regresso, agradeciam à padroeira a jornada segura e o sucesso dos negócios efetuados. A Festa é composta por uma romaria, almoço de confraternização, desfile de regresso à aldeia e encerramento com baile popular. Atualmente a romaria inicia-se com a reunião dos participantes no picadeiro da aldeia, onde é ministrada a bênção pelo pároco, ato que precede o desfile dos cavaleiros, carroças, tratores agrícolas e demais veículos, enfeitados com flores e ramagens naturais. A maioria dos partici-

Esta Festa, de essência cultural popular, quer pela sua simplicidade genuína, quer pelas suas características singulares, cativa a atenção e o olhar de quem a ela assiste. Os pormenores, fruto da criatividade individual e coletiva, dão um aspeto único e peculiar a esta manifestação. Conseguimos ter uma noção de como é na realidade a Festa quando a tudo isto se alia o som de incessantes aclamações a pleno pulmão de ‘Viva a Pinha!’ ‘Viva Estoi!’ ‘Viva os Almocreves!’. Quando o cortejo passa ninguém fica indiferente, pois o espírito da Festa a todos contagia com a sua alegria. O sentido mais profundo da manifestação caracteriza-se pelo ato de veneração e um sentimento de gratidão a algo maior que o Homem, em comunhão com a natureza, que se traduz no agradecimento dos almocreves à sua padroeira direção ao pinhal do Ludo (na Reserva Natural da Ria Formosa). Aqui realizam um almoço convívio com uma componente de entretenimento, animação musical e jogos. A marcha de regresso começa ao fim da tarde, realizando-se a entrada na aldeia ao cair da noite com um

cortejo iluminado por archotes e anunciado com foguetes, que culmina com uma grande fogueira de alecrim e outras verduras usadas na decoração das viaturas, frente ao templo da padroeira. A Festa segue durante a noite com arraial e baile no Jardim do Largo Ossónoba. No dia seguinte realiza-se a missa de encerramento das festividades, na ermida da padroeira Nossa Senhora do Pé da Cruz.. A manifestação cultural FESTA da PINHA é nosso objeto de estudo desde 2011, tendo sido tema da nossa dissertação de Mestrado intitulada “Manifestação Cultural – Alterações ao longo do tempo, Estudo de Caso – Festa da Pinha”. Presentemente continuamos a investigação enquanto aluna do Curso de Inventário do Património Cultural Imaterial, organizado pela Direção Geral do Património Cultural e Universidade Aberta, com vista à formalização do pedido de inscrição da FESTA da PINHA como Manifestação do Património Cultural Imaterial no INPCI / Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial. A FESTA da PINHA acontece ao ar livre, é da comunidade da aldeia de Estoi e os vários lugares, enquanto espaços exteriores, são o palco natural da Festa. Assim, desenvolvemos um projeto para uma primeira exposição, que aconteceu no Largo da Igreja Matriz durante a Festa, procurando ir ao encontro da comunidade. A exposição resultou essencialmente da vontade de partilhar alguns dos suportes visuais, fotografia (da autoria de Pedro Barros) e vídeo (da autoria de Eduardo Pinto, com a nossa colaboração), que utilizámos como apoio na dissertação, e, atualmente, no processo de inventariação da Manifestação no INPCI.

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visite-nos em Tiragem desta edição:

8.271 exemplares

www.postal.pt

O POSTAL regressa no dia 23 de Maio

última

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Urgências básicas em ruptura Falta de profissionais dita a situação, denuncia Sindicato dos Enfermeiros Portugueses d.r.

O SINDICATO DOS ENFERMEIROS PORTUGUESES (SEP) rei-

terou, na passada segunda-feira, que se mantém uma situação de ruptura nos Serviços de Urgência Básica (SUB) de Vila Real de Santo António, Albufeira e Loulé. Em comunicado, os enfermeiros dizem que a situação mais grave é vivida em Loulé, onde “a dificuldade em fazer as escalas de enfermeiros tem vindo a agravar-se de mês para mês” e que nos dias 1 e 2 de Maio não houve médico na SUB de Loulé. A direcção regional do SEP explica que “os mapas de pessoal dos SUB prevêem 16 enfermeiros cada. Nenhum tem os 16! Em Loulé, em 2009, trabalhavam 14 e actualmente estão apenas nove”. “Os ritmos de trabalho agravado pela falta dos restantes profissionais põem em risco a saúde dos enfermeiros e dos doentes”, alerta o SEP, cujos representantes se reuniram na passada terça-feira com o Ministério da Saúde e na quinta-feira (após o fecho desta edição do POSTAL) com a Administração Regional de Saúde (ARS) do Algarve.

NINGUÉM ASSUME RESPONSABILIDADES Na base do problema

está um desentendimento entre a ARS Algarve e o Centro Hospitalar Algarvio (CHA) sobre a responsabilidade da gestão das SUB. À Lusa, o presidente do Conselho de Administração do CHA, Pedro Nunes, contou que durante a fusão dos hospitais de Faro e do Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, o CHA ficou responsável pela SUB de Lagos, mas que as restantes SUB continuaram a ser geridas pela ARS Algarve. Pedro Nunes disse que a anterior direcção da ARS Algarve demonstrou vontade que aqueles serviços fossem assumidos pelo CHA e que o conselho de administração daquele centro hospitalar está disponível desde que à

ÔÔ Profissionais e doentes em risco transferência de responsabilidade corresponda também a respectiva transferência orçamental. Segundo aquele responsável, há quase dois anos, o CHA assinou um protocolo de seis meses com a ARS Algarve, que não foi renovado, em que se comprometia a ajudar na gestão das SUB de Vila Real de Santo António, Loulé e Albufeira até que fosse encontrada solução para a transferência. “Nós começámos a ajudar a ARSA a encontrar quadros médicos para os SUB, mas ajudar é uma coisa, responsabilizar-se é outra”, prosseguiu, adiantando que na próxima semana se irá reunir com a ARS Algarve para discutir este assunto. Há cerca de dois meses, um despacho da Secretaria de Estado autorizou “os médicos cubanos que estão a trabalhar no Algarve a não fazerem o serviço de urgência”, contou Pedro Nunes, que na altura terá avisado a ARS Algarve que sem esses médicos para assegurar os turnos durante o dia, seria necessário recorrer aos médicos de família porque através dos médicos do CHA “não seria possível garantir todos os turnos”. Contactada pela Lusa, a ARS Algarve remeteu para o comunicado emitido na passada semana onde informava que foram tomadas diligências para colmatar as faltas de profissionais identificadas. Lusa

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