Cultura.Sul 99 20JAN2017

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO

JANEIRO 2017 | n.º 99 5.014 EXEMPLARES

www.issuu.com/postaldoalgarve D.R.

Letras e Leituras:

Tiago Pereira:

D.R.

A reutilização da tradição

Dennis Lehane

p. 6

p. 4

Missão Cultura: D.R.

DiVaM e o impacto na valorização dos monumentos p. 5

Artes visuais:

D.R.

D.R.

Festival de Música Al-Mutamid:

O lado espiritual e pacífico do Islão

Pode uma imagem visual sintetizar ideias complexas?

p. 3

p. 2

Espaço AGECAL: D.R.

A arte de programar cultura

p. 8


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Artes visuais

Pode uma imagem visual sintetizar ideias complexas? FOTOS: D.R.

Saul Neves de Jesus

Professor catedrático da UAlg; Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

Entendemos a arte visual como uma forma de comunica-

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ção, que tem a particularidade de, através da imagem, poder permitir sintetizar conceitos ou ideias e de salientar pormenores da realidade, sendo para isso utilizados diversos meios ou técnicas das artes visuais. Aliás, costuma dizer-se que “uma boa imagem vale mais do que 1000 palavras”, mostrando o poder que as imagens visuais podem ter. Como exemplo disso mesmo, Avanzini (1980) relata-nos a experiência em que foi apresentado a um grupo de adolescentes um filme que mostrava com grande ampliação os micróbios contidos na água de uma piscina, perante o que deixaram de tomar banho nela. No nosso percurso de produção artística temos procurado sistematizar ideias e conceitos, sintetizando-os através da criação de imagens visuais. Por exemplo, em termos de ficção, realizámos o trabalho “O império das formigas que aprenderam a falar chinês”. A ficção que procuramos desenvolver neste trabalho tem a ver com a possibilidade da espécie humana poder deixar de existir devido a uma guerra mundial, a questões ambientais ou a um vírus mortal que não se conseguiu controlar. A história da evolução do planeta terra mostra que tem havido espécies dominantes que depois se extinguem, por exemplo os dinossauros, sendo no presente os humanos a espécie dominante. Colocamos a hipótese das formigas poderem sofrer mutações e tornarem-se a espécie mais desenvolvida do plane-

ta. De salientar que, no presente, já foram identificadas mais de 12.500 espécies de formigas, encontrando-se distribuídas por todas as regiões do planeta, com exceção das regiões polares, e representando já cerca de 20% de toda a biomassa da vida na terra. Além disso, num estudo recentemente publicado na revista Science, descrevem-se os resultados de uma investigação que demonstra o grande potencial de mutação das formigas, pois através de tratamento hormonal conseguiram transformar as formigas da espécie “Pheidole” em “supersoldados”, quadriplicando o seu tamanho inicial (Rajakumar e col., 2012). As formigas formam níveis avançados de sociedade, designada eusocialidade, por apresentarem sobreposição de gerações no mesmo ninho, por terem cuidados cooperativos e por dividirem tarefas entre si. A ficção é que as formigas evoluiriam de forma a conseguirem articular linguagem, permitindo-lhes aprender, com base no património humano que iriam

ocupação social subjacente, que diz respeito ao predomínio crescente que a China tem vindo a ter a nível mundial. O facto de destacarmos as formigas como a espécie que poderia vir a ser predominante na terra, também diz respeito a algumas semelhanças entre o funcionamento das formigas e a forma de funcionamento da sociedade chinesa. Traduzimos a ideia atrás apresentada num trabalho em que aparece o planeta terra, com formigas com asas, designadas por agudias, coladas em várias zonas do planeta. De forma a salientar a ideia do predomínio das formigas, na ficção, e da China, na realidade, e aproveitando o estereótipo dos chineses como “amarelos”, no cimo do trabalho vem escrito a amarelo “Vencemos!” em mandarim: Também na vertente de crítica social, política e económica, destacaríamos o trabalho “O Império Alemão através do EURO - 2011”, em que procuramos evidenciar o poder que

Obra 'O império das formigas que aprenderam a falar chinês', de Saul de Jesus (2011) Alemão, do que propriamente a uma Comunidade Europeia. Desenhámos um mapa esti-

Obra 'O Império Alemão através do EURO-2011', de Saul de Jesus (2011) encontrar, aquela que teria sido a última língua predominante a ser falada pelo homem, o mandarim. Desta forma, apresentamos também uma pre-

a Alemanha tem na zona Euro, decidindo o destino dos restantes países, parecendo que os países que aderiram ao Euro pertencem mais a um Império

“MÚSICA NAS IGREJAS” 21 JAN | 18.00 | Igreja da Misericórdia - Tavira A soprano Isobel Reis (canto) e a pianista Raquel Correia (piano) apresentam-se em concerto no projecto ‘Música nas Igrejas’ promovido pela Academia de Música de Tavira.

lizado da Europa, em que pintámos a Alemanha de vermelho e os restantes dezasseis países que aderiram ao Euro até 2011 de amarelo, sendo os contornos

dos países a preto, pois as cores da bandeira alemã são o vermelho, o amarelo e o preto. Os países que aderiram ao Euro em 1999, para além da Alemanha, foram a Áustria, a Bélgica, a Finlândia, a França, a Irlanda, a Itália, o Luxemburgo, os Países Baixos, Portugal e a Espanha. A Grécia aderiu em 2001, a Eslovénia em 2007, Chipre e Malta em 2008, a Eslováquia em 2009 e a Estónia em 2011. Os restantes dez países que ainda não tinham aderido ao Euro em 2011, mas que integravam a Comunidade Europeia, formando a Europa dos 27, encontram-se pintados a azul, por ser a cor da bandeira europeia. São eles, Bulgária, Polónia, Letónia, República Checa, Hungria, Lituânia, Roménia, para além da Suécia, Dinamarca e Reino Unido, que nunca quiseram aderir ao Euro. Encontram-se ainda alguns países pintados de verde, sendo países europeus que ainda não integram a comunidade europeia. Todos os países que aderi-

ram ao Euro até 2011, isto é, pintados de amarelo, têm colada uma moeda de 1€, exceto a Alemanha que tem colada uma moeda de 2€ por esta ser de maior dimensão, o que traduz o poder deste país sobre os restantes. Todas as moedas apresentam a mesma face, isto é, não obstante a moeda de cada país ter a sua face específica, colámos uma moeda alemã de 1€ em todos os dezasseis países. As moedas alemãs de 2€ e de 1€, curiosamente tal como a moeda de 1 dólar nos EUA, apresentam como símbolo a águia. A águia tinha sido utilizada como símbolo pelo Império Romano e, em 1410, era o símbolo da bandeira do Sacro Império Romano-Germânico, vindo a ser utilizada por Hitler como símbolo do 3º Reich, neste caso uma águia com a cruz suástica entre as garras. Hitler havia tentado constituir um império alemão conquistando vários países através da guerra. Não conseguiu. Mas talvez estejamos agora a assistir à construção de um “Império Alemão através do Euro”, pelo que pintámos o cabelo e o bigode característicos de Hitler à volta da moeda colada na Alemanha, traduzindo que parece continuar, embora com outros contornos, a atitude prepotente da Alemanha em relação aos restantes países europeus. Com cada uma destas produções visuais mostradas e descritas procuramos sintetizar, numa única imagem, ideias ou conceitos que podem ser de abordagem complexa ou polémica, aproveitando a “força” da imagem visual e permitindo comunicar uma determinada perspetiva sobre o tema em causa.  Nota: Algumas das reflexões apresentadas neste artigo encontram-se no livro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus (snjesus@ualg.pt)

“OS 3 PORQUINHOS” 28 JAN | 21.30 | Auditório Municipal de Olhão Um espectáculo pleno de músicas alegres, com cenários e figurinos muito coloridos que farão as delícias dos mais pequenos


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Panorâmica

Festival Al-Mutamid regressa ao Algarve para dar a conhecer o lado pacífico do Islão FOTOS: D.R.

Mónica Monteiro (com Henrique Dias Freire)

Jornalista monicam.postal@gmail.com

Quatro espectáculos divididos por sete cidades algarvias são a proposta da 17ª edição do Festival de Música Al-Mutamid, que passará por Lagoa, Vila Real de Santo António, Silves, Albufeira, Loulé e Lagos, nos dias 27 e 28 de Janeiro e 3, 4, 10, 11 e 18 de Fevereiro. O evento, que pretende dar a conhecer a música árabe-andalusí e oriental, é um dos três festivais de música mais antigos do Algarve, a realizar-se de forma ininterrupta, só sendo ultrapassado pela Mostra de Música Antiga de Loulé e pelo Festival de Jazz de Loulé.

Espectáculo do grupo El-Laff faz um percurso pelos principais ritmos da música e dança oriental.

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Muhsilwán é um trio de músicos muçulmanos de raiz afroárabe e com componentes naturais de Marrocos, do Sudão e da Guiné Conacri.

“O Festival de Música Al-Mutamid tem características únicas em Portugal. Não há nenhum outro exclusivamente dedicado à música árabe”, garante João Pedro Vieira, director artístico do evento. A iniciativa, que além de ter sido criada com o objectivo de resgatar e divulgar a música que durante séculos inundou bazares e palácios do Gharb al-Andalus e de pretender responder à escassez cultural existente no Algarve no início deste século, é uma homenagem ao rei poeta al-Mutamid, nascido em Beja, em 1040 e nomeado governador de Silves com apenas 12 anos. Em 1069 acedeu ao trono de Sevilha, o reino mais forte entre os que surgiram em al-Andalus após a queda do Califato de Córdoba. Em 1088 foi destronado pelos almorávides e recluído em Agmat, a sul de Marrakech, onde viria a falecer em 1095. Al-Mutamid foi, também, poeta. O seu túmulo, conservado até hoje, tornou-se símbolo dos mais belos tempos de Al-Andalus.

“ENTRE MIL ÁGUAS: VIDA LITERÁRIA DE CASIMIRO DE BRITO" Até 2 FEV | Arquivo Histórico de Albufeira Esta exposição itinerante pretende homenagear o poeta algarvio de 79 anos, que tem vindo a alcançar as mais elevadas distinções em Portugal e no estrangeiro

‘A música é um bom veículo para conhecermos o lado mais espiritual e pacífico do Islão’ Com a sua primeira edição no ano 2000, o festival vê hoje em dia a sua missão inicial estendida à desmistificação do estigma que tem sido criado à volta do Islão e dos islamistas. “O festival serve também para nos aproximarmos daquilo que são as coisas boas que vêm do Islão, que não é só aquilo que vemos nas televisões. É muito mais, é uma história riquíssima, é uma cultura riquíssima e é uma música fantástica, e eu acho que a música é um bom veículo para conhecermos o lado mais espiritual e pacífico do Islão”, considera o responsável pelo evento. “As sonoridades presentes nestes espectáculos, apesar de serem longínquas, estão no sangue dos algarvios pelas suas raízes passadas, e nós nunca devemos esquecer o passado, porque temos uma herança árabe, apesar de todos os problemas que estão hoje associados ao Islão”, acrescentou João Pedro Vieira.

Cidade de Lagoa é a primeira a receber o evento Nesta 17ª edição, o festival apresenta uma fusão entre músicos muçulmanos, de raiz afro-árabe, e com componentes naturais do continente africano, aos quais a organização dá destaque. “Sem menosprezar qualquer um dos outros espectáculos, o espectáculo "Al-Bashirah", de fusão síria e marroquina, conta com a participação de um bailarino sírio que interpreta magistralmente a dança espiritual sufi dervish e a dança tradicional do Egipto denominada Tanora. A espiritualidade que acompanha o grupo marcará, com certeza, o público presente”, salienta o responsável. Público esse que desde a primeira edição tem vindo a crescer, sobretudo a nível nacional, afirma João Pedro Vieira. “Inicialmente recebíamos sobretudo turistas, mas ao longo destes anos o público português tem vindo a aderir em massa, portanto neste momento diria que estamos com 50% de público estrangeiro e 50% de público nacional”, menciona o director artístico. Frisando ainda que “realizar este festival ano após ano só tem sido possível com o apoio do público que enche sempre as salas”. O primeiro espectáculo designado "Muhsilwan", com foco na música afro-árabe, acontece já no próximo dia 27 de Janeiro, no Convento de São José, em Lagoa, e no dia 28 no Centro Cultural António Aleixo, em Vila Real de Santo António. O evento musical segue em Fevereiro com o espectáculo "Al-Bashirah", centrado na música árabe-andalusí, giro sufi e dança tanora, no dia 3 no Teatro Mascarenhas Gregório, em Silves, e no dia 4 no Auditório Municipal de Albufeira. Dias 10 e 11 de Fevereiro o Cine-Teatro Louletano e o Centro Cultural de Lagos, respectivamente, recebem o espectáculo "El-Laff", dedicado à música árabe e à dança oriental. A série de demonstrações termina no dia 18 de Fevereiro no Auditório Municipal de Lagoa, em Lagoa, com o espectáculo "Nyftys Ensemble", composto por música e dança oriental. Todos os espectáculos têm hora marcada para as 21.30. Mais informações sobre bilhetes em http://m.facebook.com/fmalmutamid. 

“CAPICUA” 27 JAN | 21.30 | Auditório Municipal de Albufeira Rapper inaugura um ciclo de concertos em Albufeira, interpretando os temas que lançaram o grupo para a ribalta


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Letras e Leituras

Dennis Lehane: O preço de Viver na noite FOTOS: D.R.

Paulo Serra

Investigador da UAlg; Associado ao CLEPUL

Dennis Lehane é um autor norte-americano nascido e criado em Dorchester, Massachusetts. O sucesso dos seus romances, premiados e traduzidos em diversas línguas, transparece ainda no grande ecrã para o qual foram já adaptados romances como Mystic River (realizado por Clint Eastwood e reunindo um grande elenco), Shutter Island (realizado por Martin Scorsese, com Leonardo DiCaprio) e Gone, Baby, Gone (realizado por Ben Affleck e protagonizado pelo irmão Casey Affleck, um dos fortes candidatos ao Óscar deste ano com Manchester by the Sea). Em julho de 2016, a Sextante Editora publicou ainda Moonlight Mile, que retoma a intriga de Gone, Baby, Gone, quando o mesmo detective, doze anos depois, volta a procurar a dolescente Amanda, a criança antes desaparecida que uma vez encontrada foi entregue aos cuidados de uma mãe negligente e alcoólica. Chegou agora a vez de Viver na noite, publicado uma vez mais pela Sextante Editora em maio de 2013, chegar aos cinemas portugueses no passado dia 12 de janeiro, uma vez mais adaptado por Ben Affleck, que desta vez não só realiza como também interpreta o papel principal. Dennis Lehane é comummente considerado como um dos grandes nomes da literatura policial norte-americana mas os seus romances são normalmente livros complexos que lidam muito mais com as relações humanas e a natureza humana uma vez exposta a tragédias do que com o solucionar de um caso detectivesco (como é o caso da forma como a perda de uma filha em Mystic River faz ressurgir feridas e traumas antigos que afectam três famílias distintas que moram numa mesma rua). A intriga de Viver na noite, à semelhança de Shutter Island, remonta a um passado um pouco mais remoto, designadamente ao ano de 1926, em Boston, em plena época da Lei Seca, o que não impede que abunde a bebida e proliferem destilarias e bares clandestinos, o que leva ainda a lutas entre gangues que fazem correr outros rios e com a conivência de polícias corruptos. Joseph Coughlin é um desses gangsters que vive na noite do crime, movendo-se entre a clandestinidade de uma cidade que não

Dennis Lehane é considerado um dos grandes nomes da literatura policial norte-americana deixa de encontrar escape para os seus vícios e necessidades, preferindo fazê-lo à noite, mais ou menos às claras. Mas Joe, como prefere ser chamado – e logo aqui se institui, de certa forma, essa sua outra identidade – não é o gangster típico, pois trata-se do filho mais novo de um capitão da polícia de Boston, irmão de outro polícia, mas que preferiu virar costas à sua educação e ao meio de onde provém para abraçar o submundo do crime. Além disso, Joe é um gangster instruído, em virtude dos dois anos que teve na prisão onde aproveitou para ler tudo o que agarrava na biblioteca, se bem que prefira antes definir-se como um «fora da lei», além de se vir a tornar num respeitável benemérito de Ybon, onde irá viver o apogeu da sua “carreira”. É aí que Joe percebe também que é impossível fugir à verdade de que ele é realmente um gangster e que esse estatuto se define pelo facto de ser responsável por um gangue, que é afinal a sua família. Mas viver na noite, mesmo

quando se é bem sucedido e se consegue viver mais do que uns anos estouvados, traz também um peso irreparável de consciência ou de remorso na alma: «– A noite – disse Joe. – Sabe demasiado bem. Se vivermos de dia, temos de obedecer às regras deles. Portanto, vivemos da noite e fa-

zemos as nossas regras. Mas, D.? Não temos assim tantas regras.» (pág. 375). Curiosamente, não só uma grande parte dos acontecimentos principais do livro parecem ocorrer ao abrigo da noite, como a escuridão é aliás um motivo que está presente em diversos momentos e de diversas formas no livro. A escrita de Dennis Lehane é fortemente trabalhada, mas num registo fluído, onde a intriga decorre como um rio sem quaisquer desvios ou superfluidades e há diversos episódios que são claramente visuais, em que as palavras pintam cerebral e automaticamente uma espécie de tela vívida. O autor tem ainda um grande cuidado no pormenor histórico, contextualizando os acontecimentos narrados na época em questão, e a sua escrita raia diversas vezes o lirismo, mesmo quando a descrição é crua como convém à violência dos acontecimentos narrados: «Ouviu uma goteira constante, semelhante a torneiras a pingar, e abriu os olhos para ver o seu próprio sangue a pingar no cimento, gotas do tamanho de moedas de cinco cêntimos, mas jorrando tão depressa que se

transformaram em amibas e as amibas em poças.» (pág. 78). E apesar de por vezes o autor adoptar um registo mais negro e dramático, não faltam os momentos de humor: «Vestia um fato de quatro botões champanhe, de riscas brancas como giz. A sua camisa lilás tinha um colarinho branco contrastante sobre uma gravata vermelha como o sangue de riscas negras. Os seus sapatos brancos e pretos tinham os atacadores apertados acima dos tornozelos. Se se pedisse a um velho que perdera a visão que identificasse o gangster na estação a cem metros de distância, ele apontaria um dedo trémulo a Dion.» (pág. 168). O romance encontra-se dividido em três partes: «Boston» (1926-1929); «Ybor» (1929-1933) e «Todos os filhos violentos» (1933-1935). Embora a intriga seja sempre linear e coesa acaba por nos levar por caminhos completamente novos de uma parte para outra. A própria narrativa arranca in media res, quando os pés de Joe são mergulhados numa banheira de cimento e o futuro se afigura muito risonho, mas no segundo parágrafo passamos de imediato ao início da história, onde se apresenta Joe nos seus primeiros momentos de delinquência juvenil quando assalta com os irmãos Bartolo um speakeasy (estabelecimentos ilícitos que vendiam ilegalmente bebidas alcoólicas) que pertencia a Albert White, um dos principais manda-chuvas de Boston. É aí que Joe se apaixona perdidamente por Emma, uma rapariga que trabalhava no speakeasy que ele assaltou e que apesar de estar a ser comandada por Joe, sendo depois algemada e amordaçada, mantém sempre a calma e comporta-se com uma certa frieza condizente com a sua aparência: «olhos de inverno e pele tão pálida que quase podia ver através dela o sangue e a carne por baixo» (pág. 15). Quando regressamos a esse momento fatídico da vida de Joe, estamos no fundo a preparar-nos para o início do fim da história. Após um volteface, a terceira e última parte do livro consiste num desenlace, resultando num desfecho rápido que retoma os eventos narrados no início da primeira parte que despoletaram a intriga, e encerra a moral de que por muito que nos afastemos no tempo e no espaço há sempre acontecimentos que voltam para nos perseguir e revelar o vazio ou a ilusão em que por vezes baseamos as nossas vidas na vã tentativa de fugir justamente a essa escuridão interior: «Sentado naquela cadeira ridícula olhando para as janelas amarelas inclinadas na água negra, ele soube. Quando se morre, não se vai para um lugar melhor; este era o lugar melhor porque não estávamos mortos. O céu não estava nas nuvens, era o ar nos nossos pulmões.» (pág. 198). 


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Missão Cultura

Editorial

DiVaM – Dinamização e Valorização dos Monumentos

Dos desejos do CULTURA.SUL

Direção Regional de Cultura do Algarve

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No início deste novo ano de 2017, importa reflectir sobre o impacto causado pelo DiVaM, programa cultural implementado desde 2014, pela Direção Regional de Cultura do Algarve. Este programa de dinamização cultural, criado com o objectivo de potenciar as vivências nos monumentos afetos a esta Direção Regional de Cultura, tem conseguido afirmar a sua presença no panorama cultural da região, e é notório o reconhecimento, por parte dos agentes culturais da região e do público participante, da existência de uma nova dinâmica enriquecedora e produtora de novas experiências culturais na região algarvia. Em 2016, o DiVaM apresentou-se com uma nova identidade visual e uma programação cultural estruturada em ciclos temáticos, alargando a sua programação a outras áreas, como a História e Literatura através de uma parceria com a Universidade do Algarve, com o ciclo de palestras “Amatores in Situ – o Mundo antigo visto por aquele que o amam”. O “espírito do lugar” foi o mote que orientou este programa e que apresentou algumas novidades como o projeto multidisciplinar “Noites Fantásticas” organizado pela Vicentina – Associação para o desenvolvimento do Sudoeste, para o Castelo de Aljezur e a Ermida de Nª Sra de Guadalupe (Raposeira /Vila do Bispo). Há ainda que destacar outros projetos site specific, como o percurso pedagógico “Inspiritum” concebido pelo Teatro Experimental de Lagos para os monumentos Fortaleza de Sagres e Ruínas Romanas de Milreu, ou ainda a apresentação teatral “Alice deste lado do espelho - O milagre da virgem negra”, um texto ori-

ginal de Ana Cristina Oliveira, uma produção da Associação Música XXI. DiVaM é um programa feito por pessoas e para as pessoas. Importa agora mais do que uma avaliação quantitativa (porque os números não dizem tudo), dar a conhecer o que aconteceu durante este último ano. E porque como alguém disse “uma imagem vale mais do que mil palavras” aqui vão algumas imagens das actividades, das pessoas e dos sorrisos que fizeram parte deste programa DiVaM. A Direção Regional de Cultura do Algarve vem desta forma agradecer a todos os envolvidos, sejam municípios algarvios, associações culturais, entidade parceiras, artistas e todos os que de uma forma ou outra estiveram envolvidos neste projecto cultu-

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FOTOS: D.R.

Henrique Dias Freire

Director Jornal Postal do Algarve

'Brasas vivas sobre Ramos', no Castelo de Loulé ral, que conta já com três anos de existência. A 4ª edição do DiVaM

está já a ser preparada, este ano com o lema “Lugares de Globalização”, estando a

decorrer a fase de receção de candidaturas que termina no próximo dia 20 de janeiro. 

'O Espírito do passado', no Castelo de Paderne

'Peregrinação, a partir dos painéis de São Vicente', na Fortaleza de Sagres

'Noites Fantásticas na Guadalupe', na Ermida de Nª Sra de Guadalupe

'Noite Fantásticas em Castelos Fantásticos', no Castelo de Aljezur

“MOSTRA DE ARTISTAS DO CONCELHO DE VILA DO BISPO” Até 26 MAR | Centro de Interpretação de Vila do Bispo

Oitenta e dois artistas do concelho apresentam trabalhos realizados em áreas como as artes decorativas, linhas e pontos tradicionais, pintura, escultura e fotografia

A próxima publicação do CULTURA.SUL sairá no mês de Fevereiro e será a centésima edição. Passaram oito anos desde o primeiro exemplar editado em Junho de 2008. A vontade e a persistência de alguns têm permitido a publicação regular do único caderno cultural algarvio e dos poucos da imprensa regional do país. Na sua génese está a concretização em dar aos seus leitores conteúdos originais desenvolvidos por um corpo de colaboradores regulares, abordando temas com maior profundidade do que na imprensa mais generalista. Sobre os conteúdos, o director do JORNAL DE LETRAS, José Carlos Vasconcelos, o jornalista mais premiado em Portugal, escreveu numa das suas crónicas ser o CULTURA.SUL um dos melhores cadernos culturais que conhece na imprensa regional portuguesa. Durante estes oito anos e meio de publicação, procurou-se dar conteúdos próprios e diferenciados para um público mais especializado mas que se quer maior, a bem de uma sociedade mais crítica e esclarecida. E tem sido procurar chegar a mais gente o nosso grande esforço. Assim, o CULTURA.SUL não só tem beneficiado da elevada tiragem do jornal POSTAL como da própria rede de distribuição nas bancas algarvias do jornal PÚBLICO. Também nas redes sociais passou a marcar presença crescente, sobretudo no último ano, com mais de 31 mil seguidores na sua página de Facebook, muitos dos quais das comunidades portuguesas e dos países de expressão portuguesa. No início deste Ano Novo, o que mais desejamos é poder continuar a crescer em leitores e em qualidade – assim queiram os algarvios e as entidades ligadas à cultura.

“DOCUMENTAR ALGARVE INTERIOR” ATÉ 31 JAN | Casa do Sal - Castro Marim Mostra reúne um conjunto de fotografias, da autoria de Eduardo Pinto, e uma sequência de filmes, legendados em inglês, que dão a conhecer as tradicionais artes e ofícios do interior algarvio


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Cultura.Sul

Sala de leitura

Não vos deixeis cair em tradição FOTOS: D.R.

Paulo Pires

Programador cultural na Câmara Municipal de Loulé http://escrytos.blogspot.pt

Não sei que vento o trouxe de terras estranhas. Sei que há muito aportou aqui e que, afortunadamente, criou raízes. Miguel Torga sobre Michel Giacometti (in Diário XIII, Albufeira, 14.8.1979)

Eu sou devedor à terra e pago à terra em vídeos. Tiago Pereira

Sobre Michel Giacometti, Carlos Maduro, seu colaborador de campo, dizia que “fazia parte dele fazer parte do drama das pessoas”. Munido de gravador, máquina fotográfica e caderno de apontamentos, esse homem alto, de cabelos brancos e barbas, com aspecto misterioso e intrigante, calcorreou o país por sendas, montes e vales em busca do pulsar musical de um colectivo que canta porque isso “alivia as penas e as mágoas ao coração”, como reza a sabedoria popular. Essa militância etnográfica, tantas vezes sob precárias condições (vigilâncias policiais, insuficiência de recursos materiais e económicos – passava horas a transcrever depoimentos para conseguir libertar fita para o dia seguinte –, condições climatéricas agrestes, saúde fragilizada pela tuberculose), conheceria momentos verdadeiramente enriquecedores e tocantes, “porque nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-énes e códigos genéticos, nem de carne e músculos e pele e cérebros. É de histórias.” (Afonso Cruz), como este episódio ocorrido entre Miranda e Bragança: Era Inverno, os caminhos cheios de neve, precisava de me deslocar a cerca de dez quilómetros, vi um casal com uma mula velha. Emprestaram-ma, mas a mula parava, coitada. Desci dela, comecei a empurrá-la. A certa altura a mula caiu na neve. Gosto muito de animais, pus a cabeça dela no meu colo, para lhe dar calor, ela estava a ficar fria. Fiquei sem transporte, no meio do caminho, frio e vento, uma fome desgraçada, e eu sem saber o que havia de dizer aos do-

Dar voz a um Portugal profundo nos. ‘Vou fugir?’, pensava. Voltei. ‘Olhem, aconteceu uma desgraça: a mula morreu.’ Estavam a fazer uma sopa de couves com batatas: ‘Deus leva o que lhe pertence.’ Comi em silêncio, era terrível para eles a falta da mula, propus-lhes: ‘Agora não tenho, mas quando chegar a Lisboa arranjo duzentos escudos. Quero compensar-vos.’ Não aceitaram. ‘Deus leva o que lhe pertence...’ Entre 1959 e os anos 90 Michel Giacometti editou com Fernando Lopes-Graça a Antologia da Música Regional Portuguesa (1963), contendo cinco discos de sarapilheira, apresentou a série televisiva “Povo que Canta” (1970 a 1972) com realização de Alfredo Tropa – que conheceu uma segunda edição posteriormente, pela mão de Ivan Dias e Manuel Rocha – e editou a obra Cancioneiro Popular Português (1981), também com Lopes-Graça, isto só para recordar os seus contributos mais significativos para a salvaguarda do património etnomusicológico nacional. Várias outras figuras dedicaram-se, ao longo do século XX, à recolha das tradições musicais, destacando-se Kurt Schindler, Virgílio Pereira, Artur Santos ou Ernesto Veiga de Oliveira, sem esquecer as pesquisas e estudos, de maior fôlego e consistência, que José Alberto Sardinha tem desenvolvido ao longo dos anos e que são hoje, inegavelmente, uma referência obrigatória nesta área. Antes ainda, em finais do século XIX já personalidades como

Almeida Garrett, Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso, Adolfo Coelho, José Leite de Vasconcelos, Estácio da Veiga ou Ataíde Oliveira (estes dois últimos com trabalhos de recolha de literatura oral tradicional precursores a nível do Algarve, o primeiro na área do romanceiro e o segundo no que toca às lendas das mouras encantadas e outros contos tradicionais, e também ao cancioneiro e romanceiro) tinham dado o impulso inicial à história da etnografia portuguesa a nível das tradições orais e não só, seguindo-se mais tarde nomes como Luís Chaves, Sebastião Pessanha, Pires de Lima, Cláudio Basto ou o etnólogo algarvio Manuel Viegas Guerreiro, entre outros. Contudo, o pioneirismo desta cruzada em torno das sonoridades tradicionais deve-se ao etnomusicólogo Armando Leça [1893-1977], a quem, em 19391940, a Comissão Executiva dos Centenários do regime salazarista encarregou de organizar e compilar um acervo de música popular com a colaboração de grupos regionais, tendo as recolhas sonoras sido realizadas em parceria com a Emissora Nacional. Desse levantamento sistemático resultou o Cancioneiro Músico-Popular – Relatório dos trabalhos de recolha para a organização de uma discoteca de música popular portuguesa, em 1940, e uma colecção de registos sonoros em sessenta e duas fitas de acetato intitulada Recolha Fol-

clórica (1939-1940), compilando cerca de quinhentas melodias, canções, cantigas e danças de todo o território português – arquivo documental que se reveste de particular interesse pelo facto de serem as primeiras colheitas sonoras de música de matriz rural em Portugal. No Algarve Leça fez gravações em Estômbar (cantos religiosos e canções de embalar), Alte (jogos/modas de roda e baile mandado), Portimão (o “Leva-leva”, canto de trabalho entoado pelos pescadores ao alar das redes) e Tavira (coros femininos a capella e romances). Do trabalho de Leça até agora apenas foram publicadas pela Tradisom as recolhas efectuadas no Alentejo, numa edição crítica da etnomusicóloga Maria do Rosário Pestana, que é acompanhada de três cd’s com os registos sonoros. Face a todo este manancial e contribuindo também para o enriquecimento do mesmo – e sem esquecer os inúmeros grupos de folclore e outros agrupamentos informais disseminados um pouco por todo o país –, surgem nas décadas de 70 e 80 do século passado vários projectos de recriação da música de raiz tradicional que constituem hoje referências incontornáveis a esse nível. Antes, em 1966, ainda no período pré-revolução dos cravos, já aparecera o GEFAC – Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra, que ainda hoje persiste na sua acção de recolha, tratamento e divulgação/ reinvenção do património imaterial português. A Banda do Casaco

em 1974 (o seu término deu-se em 1984) e a Brigada Victor Jara em 1975 (em actividade) são os dois exemplos ilustrativos, e fundadores, de grupos que, nessa primeira fase, conciliaram uma declarada vertente musical interventivo-ideológica com uma dimensão etnográfica. Se o primeiro cedo evoluiu para uma sonoridade mais urbana, progressista e experimental, num tom surrealista e de acentuado pendor satírico, a Brigada, que em 2015 completou 40 anos de carreira, manteve até aos nossos dias uma clara aposta na difusão do repertório tradicional (ainda que não descurando de todo a evocação da canção de intervenção em contextos específicos) e na sua reinvenção ao nível sobretudo dos arranjos instrumentais e vocais. Nesse último quartel de Novecentos figuram igualmente no panorama da música tradicional outros nomes fundamentais como Almanaque (projecto surgido em 1975 e de existência curta, onde participaram nomes como Vítor Reino e José Alberto Sardinha, entre outros), Terra a Terra (de 1977 a 1984, com Ana Faria e seus cúmplices), Vai de Roda (grupo/cooperativa étnico-cultural do Porto, liderado por Tentúgal, activo entre 1978 e 1986), Cramol (grupo coral polifónico, a capella, de Oeiras, que aparece em 1979 no seguimento de uma oficina de aprendizagem de canto tradicional para vozes femininas e que ainda hoje persiste), Raízes – Grupo de Acção

Cultural (de Vila Verde, Braga, nascido em 1980, liderado por Chico Malheiro e ainda em actividade) ou Ronda dos Quatro Caminhos (surgida em 1983 e com um trajecto de grande vitalidade e ousadia até aos nossos dias). A par destes precursores, têm surgido desde os anos 80/90 uma série de novos projectos e artistas que, bebendo na música e imaginário tradicionais, os recriam e fundem, com maior ou menor arrojo, com outros estilos e texturas. Numa realidade global dominada por processos/fenómenos de homogeneização, massificação e nivelamento a vários níveis, inclusive na área cultural, estas múltiplas práticas de representação da cultura popular introduzem, em contra-corrente, um movimento de aprofundamento da esfera do particular/ individual e de valorização de identidades histórico-culturais plurissecularmente sedimentadas. Ao mesmo tempo, essa revisitação das tradições populares (musicais e não só) tem vindo a ser acompanhada não poucas vezes por um processo de questionamento e reinterpretação contemporâneos que conhece várias camadas, matizes, diálogos e linguagens dependendo dos seus protagonistas e das suas respectivas formações e trajectos. E aqui chegamos a Tiago Pereira, à A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (AMPAGDP) e aos Sampladélicos. Somos feitos de histórias (voltando a Afonso Cruz) e por isso Consuelo foi a velhinha que mudou a sua vida ao lembrar-lhe um dia, em voz alta, no lar onde estava com a avó de Tiago, que todas as aldeias têm a sua igreja com um sino que serve para avisar quando são horas de almoçar, jantar, rezar, e que naquele lar não se ouvia um sino que fosse. Num outro dia, Tiago filmava na sala do lar e a mesma Consuelo, depois de estar ao telefone, muito pausadamente disse, como se fosse teatro: “Esta é a sobrinha mais querida que tenho, era com ela que eu contava para me fechar os olhos.” e passou a mão pelas pálpebras, “mas afinal é ela que está sozinha”. Estes dois episódios fizeram-no parar para algo falar mais alto, como uma epifania: a importância do som e das paisagens sonoras; e uma dimensão humana, emocional, que pode ser gravada. Anos mais tarde, em Odeceixe, no Algarve, seria um homem que trauteava, em tom plangente, imitando o som dos acordeões no meio de


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casas caiadas que confirmaria a ideia de que “há homens com quem se pode aprender a ver aquilo que dentro de nós existe e não sabíamos” (Al Berto): Tiago queria filmar pessoas, documentar ambientes, captar com urgência o singular, o rico, o frágil. A deambular pelo país de lés a lés, incluindo ilhas, ao longo dos últimos anos, o trabalho de alfabetização da memória – como o mesmo lhe chama – desenvolvido por Tiago Pereira concretiza-se nos mais de 2500 vídeos inseridos no canal MPAGDP da plataforma digital vimeo. Ou no programa “O Povo que ainda canta” que mantém na Antena 1 desde 2014, ou na série televisiva com o mesmo nome, que iniciou na RTP2 em 2015 com um total de 26 episódios (em que as recolhas já são acompanhadas de entrevistas), a qual, em 2016, foi transposta para livro pela editora Tradisom, numa publicação de referência que inclui ainda 8 dvd’s, um cancioneiro musical com imagens que não constaram da série televisiva e o roteiro de viagens do realizador. Aproxima-o de Giacometti – do qual provocatoriamente se “demarca” amiúde, como no filme Porque não sou o Giacometti do século XXI, que lançou em 2015 no programa “Heart Beat” do DocLisboa – o fascínio pelos labirintos criativos da memória de velhos e velhas que sabem de cor centenas de músicas (porque recorrem a mnemónicas) e que detêm ainda a memória física pois trabalharam e cantaram no campo, mas também a inegável vertente etnográfica (na medida em que pretende recolher e construir um banco de dados), a abrangência territorial e a regularidade/continuidade temporal das gravações/vídeos, e a intenção fundamental de criar uma consciencialização colectiva em torno do património oral e de democratizar o acesso à cultura popular, mediatizando aquilo que na maioria das vezes não chega ao grande público. Um parênteses aqui sobre a memória e a sua transmissão, em torno da qual orbita todo o trabalho de Tiago. Para a filosofia e estética antigas, a memória era a mãe das musas. Saber “de cor” implica a apropriação de qualquer coisa e o ser possuído pelo conteúdo do saber em causa. Quando a escrita se impôs, bem como a educação formal moderna, um dos reversos foi a emergência de uma espécie de amnésia institucionalizada, substituindo-se “o saber de cor, que é também um saber do cor(ação), pelo caleidoscópio transitório dos saberes efémeros”, como observa George Steiner. No fundo, pode afirmar-se até, com alguma provocação

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Tiago Pereira e Adélia Garcia, uma das suas velhinhas e porventura radicalismo, que tudo o que não aprendemos e não sabemos de cor – isto dentro dos limites das faculdades humanas sempre imprecisas – é aquilo de que verdadeiramente não gostámos, pois “saber de cor é entrar em estreita e activa relação com a essência daquilo que somos” (Steiner novamente). É dessa memória ancestral dos sons e das palavras gravados num corpo, feita de associações (isto faz-me lembrar aquilo, que por sua vez tem a ver com aqueloutro) e jogos de sentido, que vive o imaginário popular que Tiago Pereira persegue. Por outro lado (e distanciando-se aqui claramente de Giacometti), Tiago assume-se à partida como videomúsico e não como etnógrafo, recolhendo não apenas o cancioneiro tradicional do qual se desconhece a origem como também repertório de autor, música independente, criações dos anónimos da sociedade – no fundo, toda uma plêiade de manifestações sonoras e melódicas que, num critério de selecção necessariamente pessoal e subjectivo, associa às ideias de originalidade, genuinidade, raridade e diversidade (e não tanto de qualidade musical ou “artística”, como frisa amiúde). Nessa linha, a sua objectiva incide também sobre contextos urbanos e práticas musicais contemporâneas, alargando-se ainda, complementarmente, à gastronomia e dança. Em qualquer dos casos, a Tiago Pereira interessa-lhe a surpresa da descoberta no outro de um jeito peculiar de agarrar/ interiorizar um som ou canção e de expressá-lo, de um modo idiossincrático de interpretar e transmitir que está colado à pele, a uma forma de estar na vida, a uma personalidade. É uma busca apaixonante de velhos e novos inventores de estéticas popula-

res, de artistas espontâneos cujos estilos sintetizam singularmente um “arranjo pessoal” e a tradição ou a modernidade. Neste cinema também, a cada momento, de luta contra o tempo, Tiago Pereira tem procurado, dentro e fora das filmagens, afirmar o seu trabalho enquanto autor/criador contemporâneo que agita, provoca, busca sentidos, questiona e instaura interrogações, que lança/revela paradoxos, dualidades. Daí que se assuma como um colector de tradições que não anda, que nem arqueólogo nostálgico, à procura de um passado em vias de extinção; mas também como um apaixonado pelo legado dos mais velhos que considera que o deslumbramento urbano com o exótico rural é um sinal de estagnação e parolice; ou ainda como um documentarista cujo trabalho acaba por resultar, na sua visão, num grande caldeirão de falsidades e encenações. E para que não se caia em tradição, ou para que esta se projecte no futuro e não permaneça num certo gueto isolado e sufocante (suportado por vezes por alguns dos que dizem ser seus defensores), e ganhe novos públicos, cruzando gostos e sensibilidades, Tiago Pereira apresenta no mesmo espaço pop e velhinhas, rock e experimental, propondo ainda caminhos desviantes e alternativos à forma tradicional de tratar a memória colectiva. Por isso, parte apreciável do seu trabalho incide na questão da reutilização da tradição, patente no projecto “Sampladélicos” em parceria com o músico Sílvio Rosado, do qual já resultou um álbum lançado em 2016 pela NOS Discos e bem recebido pela crítica e pelo público: “Não nos deixeis cair em tradição”. Uma abordagem que, no fundo, vem na senda das estéticas,

então inovadoras no panorama nacional, propostas pela já aludida Banda do Casaco e sobretudo, nos anos 90, pelo saudoso João Aguardela no seu projecto “Megafone” (1997-2005, com quatro discos editados), em que, partindo das recolhas de música tradicional de Giacometti e José Alberto Sardinha, se opera uma arrojada desconstrução através de sonoridades electrónicas com tanto de laboratorial como de lúdico. Os Sampladélicos introduzem aqui como novidade a vertente visual, unindo imagens sincronizadas com ficheiros de som (loops e compostos), num trabalho de filtragem e decantação dos vídeos e áudios de Tiago Pereira, propondo-se assim uma viagem audiovisual pelo país através de samplers que podem ser reconhecidos visualmente, a que não é alheia uma vincada componente de improvisação. É uma deambulação sonora de matriz electrónica, sem rótulos, que se concretiza em performances ao vivo que adoptam sets variados, numa versatilidade que pode ir de referências mais acústicas até uma vertente de drum & bass. Enquanto criador contemporâneo Tiago Pereira tem vindo igualmente a desenvolver uma reflexão meta-cinemática que, na linha de um Bruce Conner ou de um Jean-Luc Godard, questiona os (a)fundamentos e implicações do seu trabalho de bastidores enquanto visualista/realizador. Diversos filmes que tem produzido em torno da sua actividade, bem como entrevistas, palestras e depoimentos nas redes sociais, acabam por relançar a questão quente e actualíssima, mais abrangente, das fronteiras entre o olhar “puramente” documental, o ensaio audiovisual e a criação ficcional (o contar uma história) ao nível da sétima arte

produzida nas últimas décadas e do que significa hoje construir uma visão cinematográfica. Para Tiago este tema coloca-se com particular acuidade quando, por exemplo, filma idosos que, perante e por causa de uma câmara, relembram/encenam canções, orações ou outros conteúdos orais que na verdade, em muitos casos, deixaram já de fazer parte do seu quotidiano, na medida em que já não os praticam espontaneamente nem os transmitem a outrém no seu dia-a-dia. Last but not least, a derradeira paradoxalidade (ou não): a Tiago Pereira interessa-lhe menos a música e os repertórios do que as pessoas. Enquanto documentarista de vocação antropológica, relembra-nos os benefícios do trabalho de campo na sua vertente humana: o respeito que nasce de uma efectiva compreensão do que é realmente viver num outro contexto e ritmo/tempo; o aumento da auto-estima dos informantes; o estímulo da sua memória e capacidades cognitivas; ou a criação de espaços de encontro e partilha. Amado por uns, criticado por outros, considera-se um “átomo dinamizador de velhinhas”, “um dos melhores assistentes sociais que pode haver”. Per si isso já seria muito, mas em tempos de hiperindividualismo e numa civilização dominada pela leveza no seu sentido pejorativo (Lipovetsky), protagonistas inquietos e provocadores [que são também] solidários e afectivos como Tiago Pereira (e outros) fazem-nos acreditar que a arte contemporânea, a autoralidade e a criatividade ainda podem revestir-se de uma dimensão humanizante. Numa sociedade que metaforicamente pode assemelhar-se a um grande aeroporto onde toda a gente se movimenta e cruza rotineira e freneticamente sem se ver (ou ouvir), duas atitudes afiguram-se (cada vez mais) vitais: escutar e interrogar. Goethe sabia do que falava quando disse que falar é uma necessidade mas escutar é uma arte. E interrogar não é tão fácil como parece. É preciso ter aprendido muitas coisas para saber perguntar o que não se sabe. E as viagens exploratórias e apaixonadas de Tiago Pereira ao coração da tradição e memória colectivas dão-lhe/nos esse duplo privilégio. E que siga a roda, vá adiante, pois quem canta seus males espanta.  No dia 28 de Janeiro, pelas 16h00, no Museu do Traje em S. Brás de Alportel, Tiago Pereira apresenta, em estreia absoluta no Algarve, o livro com a série documental “O Povo que Ainda Canta” e o novo site d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria.

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Ficha Técnica: Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Ricardo Claro Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saul de Jesus • Da minha biblioteca: Adriana Nogueira • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Grande ecrã: Cineclube de Faro Cineclube de Tavira • Juventude, artes e ideias: Jady Batista • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direcção Regional de Cultura do Algarve • O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot • Panorâmica: Ricardo Claro • Sala de leitura: Paulo Pires • Um olhar sobre o património: Alexandre Ferreira Colaboradores desta edição: Paula Magalhães Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com on-line em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul Tiragem: 5.014 exemplares


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Espaço AGECAL

Programação cultural: o elogio do diálogo

Paula Magalhães Gestora Cultural - Sócia AGECAL

O tecido cultural criativo de uma cidade (e suas periferias) vive da iniciativa e cumplicidades dos seus agentes culturais locais, que desempenham um papel fundamental na interacção entre as diversas linguagens artísticas e a Comunidade – a que chamamos audiência. Abrir à cidade uma programação artística e cultural que envolva a população local e a própria dinâmica da cidade - incluindo os artistas e agentes culturais a par dos próprios interesses dos cidadãos - leva a que se crie uma programação com uma identidade própria, transformando-a em factor de desenvolvimento pessoal e instrumento de participação social. A cada processo

criativo deve juntar-se o valor da comunidade e este encontro deverá ser facilitado pelos gestores culturais, bem como todos aqueles que lidam directamente com a programação cultural, criando um trânsito fluente entre as diversas expressões artísticas e persuadindo a comunidade, ao mesmo tempo, a desenvolver uma cultura participativa de forma a espelhar a identidade cultural da própria região. Programar numa era planetária onde todos estamos ‘conectados’ por sistemas de comunicação impensáveis há 40 anos atrás leva-nos a questionar como pensam os gestores culturais os públicos nos seus processos de programação. Que recursos humanos e espaços físicos disponíveis são articulados de forma a despertar uma reflexão a várias vozes sobre o “objecto artístico”. Um processo criativo, partilhado, inclusivo e colectivo traz novas propostas de reflexão à programação - explorando o potencial criativo da região e

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acrescentando novos ingredientes como o acolhimento de espaços alternativos (que vão para lá do espaço - centro cultural, galeria, museu, teatro ou sala de cinema) e intensificando novas conexões onde a multidisciplinariedade e a interdisciplinaridade surgem como impulso de novos

processos de criação e experimentação. Estamos hoje em dia definitivamente na era da “partilha”, com a ampla disseminação das redes sociais, as plataformas digitais, as apps que baixamos no telemóvel a cada instante, e que nos permitem em qualquer momento

ou lugar, integrar, participar e partilhar. Tudo está à distância de um clique. Facilmente (…) diversas comunidades se agrupam, trocam ideias, criam espaços de diálogo, muitas vezes dando voz àqueles que tradicionalmente não a têm. Contudo, já não se trata de comunidades que se definem por uma

proximidade geográfica específica, mas comunidades virtuais que ultrapassam barreiras temporais e geográficas, que partilham interesses comuns em termos sociais, culturais ou profissionais, integrando uma diversidade sócio-cultural ampla (i.e. género, idade, classe social, nação, pessoas com deficiência). Perante este cenário é fundamental e indispensável o desempenho do gestor cultural público, despertando assim uma nova reflexão no desenho de cada programação cultural que colmate a fragilidade e o carácter passageiro destas relações virtuais (agregação e dispersão rápida), ou seja, a necessidade de criação de pontos de encontro reais (espaços informais, festivais, encontros), onde o “gosto”, “comentário” e a “partilha” inspirem a capacidade de experimentação, a vontade de questionar, ou o próprio exercício do olhar de cada indivíduo, levando-o a um diálogo livre entre a arte contemporânea e a sua cultura regional e/ou local. 

Filosofia dia-a-dia

Finitude

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

Toda a gente diz que tem consciência de que não vai durar para sempre. Toda a gente sabe que a única certeza que temos na vida é a de que um dia deixaremos de cá estar. A toda a gente já lhe faleceu alguém. No entanto a morte apanha-nos sempre de surpresa. Por que será? Na verdade, como dizia o meu professor de Ontologia, nenhum de nós tem um relógio cujo ponteiro dos segundos repita a cada instante: sou finito, sou finito, sou finito, sou finito. A consciência da nossa finitude é uma pseudo-compreensão. Sabemos que somos finitos mas a incerteza de quando a morte ocorrerá faz-nos viver como se ela não existisse. Comportamo-

Nunca podemos estar suficientemente surpreendidos de que toda a gente viva como se ninguém “soubesse” que vai morrer cedo ou tarde. Albert Camus (1913-1960)

-nos como se, de facto, dispusemos de todo o tempo do mundo. Procrastinamos. Pensamos que adiamos as coisas mas, na verdade, adiamo-nos a nós próprios. Viver como se não houvesse morte é uma possibilidade.

Deus está morto.

Friedrich Nietzsche (1844-1900)

Quando a fé no mundo que há-de vir escasseia, quando se acredita que a única vida de que se dispõe é esta de agora, torna-se imperioso viver imediatamente tudo o que não se viveu antes. Com a chamada “crise da meia idade” o tempo começa a fugir (-nos). Há quem compre uma mota de corridas, como se a sensação de velocidade conferisse, numa proporção directa, vitalidade. Há quem comece a viajar. Há quem desate a comer alarvemente. Há quem arranje amantes. De repente a morte corre atrás de nós de foice em punho. Nesse estado limite tudo é válido. Não importam os

compromissos assumidos, nem aqueles que dependem de nós, sejam eles filhos, pais ou animais de estimação. A ética é uma palavra que desapareceu do vocabulário; já não há espaço para ela. A vida é vista por um funil e, de repente, nada mais importa senão nós próprios. Tudo está cheio de mim. Ou melhor, está tudo cheio da urgência de mim. Viver como se não houvesse amanhã é outra possibilidade.

Quero que a morte me encontre a tratar das minhas plantas, sem me preocupar com elas nem com o jardim inacabado.

Michel de Montaigne (1533-1592) Com algum humor, Montaigne sugere que se a morte fosse um inimigo que pudesse ser evitado ele seria o primeiro a recomendar a cobardia como estratégia para lidar com ela. A morte, contudo, com um sentido de equanimidade difícil de superar, tanto ceifa um cobarde

como um corajoso, não distingue a criança do ancião ou o saudável do doente. Todos estamos igualmente aptos para morrer. Montaigne propõe então que lhe retiremos o seu trunfo: a estranheza. Familiarizemo-nos com a morte. Visitemo-la muitas vezes até nos habituarmos a ela, ocupemos frequentemente as nossas mentes pensando nela. Sempre que algo inesperado acontecer, um objecto que cai ao chão, uma travagem brusca de um carro, um tropeço, pensemos: “e se a morte chegasse agora?!” Há que fazer um esforço, mesmo no meio da maior diversão, para ter presente a nossa condição humana. Nunca permitir que o prazer nos distraia e nos faça esquecer as muitas maneiras pelas quais a nossa alegria está sujeita à morte, e as diversas formas pelas quais a morte ameaça arrebatá-la. Praticar a consciência da morte é praticar a liberdade. Uma pessoa que aprendeu a morrer deixou de ser escrava.

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Como não sabemos quando é que a morte espera por nós, esperemos nós por ela, propõe Montaigne. Esta seria uma terceira possibilidade. Não basta preparar-se para lidar com a própria morte, há ainda que tomar consciência

da perenidade de tudo o que nos rodeia: familiares, amigos, desconhecidos, animais, plantas, continentes, astros. Tudo, absolutamente tudo, sucumbirá um dia à inexorável lei da impermanência. Sabendo-o, como viver sem des-viver-se? 


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Da minha biblioteca

Romances epistolares – da carta ao correio eletrónico . FOTOS: D.R

Adriana Nogueira

Classicista; Professora da Univ. do Algarve adriana.nogueira.cultura.sul@gmail.com

Talvez por ter muitos livros (se bem que nunca os considere suficientes), raramente os recebo de presente. Foi, pois, com muita alegria, que este Natal a biblioteca cá de casa foi enriquecida com dois exemplares – muito diferentes, é certo, mas com a coincidência de recorrerem ambos ao estilo epistolar e em ambos o final ser surpreendente. Desconhecido nesta morada, de Kathrine Kressmann Taylor (Gótica, 2009)

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O título Desconhecido nesta morada remete para as palavras que se costumavam escrever nos envelopes quando estes eram devolvidos ao remetente, por as cartas não terem podido ser entregues, antecipando ligeiramente alguns acontecimentos descritos no livro. Publicada em 1938, numa revista norte-americana, e em 1939, em livro, naquele mesmo país, a ficção situa-se entre 1932 e 1934, apresentando as cartas trocadas entre dois amigos alemães, Martin e Max. Com o decorrer da correspondência, vamos percebendo quem são eles: Max Eisenstein é judeu, vive em São Francisco, Califórnia (E.U.A.), e é sócio do seu amigo Martin Schulse numa galeria de arte que tem o nome de ambos, a SchulseEisenstein Galleries. Com o regresso de Martin à Alemanha, coincidente com a ascensão de Hitler a chanceler, há um crescente afastamento de Martin

(ariano): os cabeçalhos das suas cartas passam de «Max, velho compincha» ou «Meu velho Max» para «Heil Hitler!», passando as despedidas de «Com toda a minha afeição» ou «Com lembranças afetuosas» para ausências de respostas e despedidas como «Tenho de insistir para que não me voltes a escrever. Como deves ter compreendido, não temos já muito a ver um com o outro» ou «Está a forjar-se uma nova Alemanha aqui. Em breve mostraremos grandes coisas ao mundo sob a direcção do nosso Glorioso Chefe». No centro, está o drama da irmã de Max, Griselle, atriz, que se arriscou a levar a sua peça de teatro a Berlim. Com a ausência de notícias da jovem e tendo recebido as cartas que lhe escrevera com Adressat unbekannt (literalmente endereço desconhecido) marcado, Eisenstein pede ajuda a Martin: «O que aquelas letras do carimbo

me dizem é que sabem o que lhe aconteceu, mas que eu não o saberei». Tentando não revelar o que acontece, adianto apenas que Max, não saindo dos Estados Unidos da América, faz Martin pagar pelas suas ações e opções. Poderia ainda dizer que o aforismo com que Max construiu, de forma irónica, uma moral para a história foi «amor com amor se paga». O Escritor-fantasma, de Zoran Živković (Cavalo de Ferro, 2012) Com um tema bem mais ligeiro e em estilo humorístico, este livro também se estrutura de uma forma epistolar, mas enquanto o Desconhecido nesta morada contém apenas cartas trocadas ao longo de 2 anos, neste romance temos um narrador: um escritor que descreve a relação que tem

“DIETA MEDITERRÂNICA” Até 26 MAR | Museu Municipal de Arqueologia de Silves Mostra integra vídeos da candidatura aprovada, jogos interactivos e um painel de aromas, e tem como principal objectivo a promoção e a divulgação da Dieta Mediterrânica, nas suas diferentes vertentes

com os seus correspondentes eletrónicos e o correio que recebe e envia numa única e estranha manhã, em que não estava a conseguir trabalhar («não estava exatamente a atravessar um dilúvio», p.9). Intercalando o texto dos e-mails com as peripécias de Félix, o seu gato de estimação, o escritor revela a sua surpresa por estar a receber mensagens de 5 pessoas que, aparentemente, não se conhecem, em que todas elas acabam por dizer coisas semelhantes: que escreva, lhes escreva ou co-escreva um romance novo e que assine com um pseudónimo, sugerindo-lhe que seja o nome do gato. O romance parece um jogo de enganos surreal, em que, exceto os animais, ninguém tem nome verdadeiro (incluindo o narrador, que assina a correspondência como Félix) e as suas descrições e motivações parecem as de personagens de banda-desenhada: um admirador misterioso, que quer contratar o escritor como seu escritor-fantasma (os ghostwriters estão na moda); um escritor conhecido (que assina como MarAlto) que desdenha todos os outros e lhe sugere que escreva com um pseudónimo; um aspirante a escritor, que assina P-0, que faz pastiches dos romances do escritor e quer que este faça um pastiche dos seus pastiches; uma aspirante a escritora (que assina Banana) que quer que ele lhe termine um romance que ela foi construindo ao longo de mais de um ano em que apontou os seus sonhos, e que é descrita de uma forma grotesca («Parecia-me que um transatlântico extravagantemente decorado deslizava na minha direção. (…) A sua testa parecia-se com a de um bolo acabado de fazer, polvilhado com açúcar em pó prateado. (…) O resto da sua pele esta-

va coberto por uma camada de maquilhagem, tão espessa como manteiga espalhada numa torrada», pp.28-29); e uma velhinha (uma antiga professora de música, que assina como Pandora, moradora no mesmo prédio e que tem um cão moribundo que adora a escrita do escritor) que lhe pede que escreva sobre o seu pastor alemão. O absurdo da situação é tal que o narrador também se espanta com tantas coincidências e antecipa o nosso descrédito: «Mas o que que é que se estava a passar naquele dia? Era como se tivessem todos conspirado para me pedir favores impossíveis. Pronto, nem todos, MarAlto era uma excepção, mas também se estava a comportar de um modo bastante estranho. Da maneira como as coisas estavam a correr, dentro em breve ele podia juntar-se aos outros e era bem

capaz de se lembrar de algo verdadeiramente retorcido. Se aquilo não me estivesse a acontecer na realidade, e em vez disso estivesse a ler em algum livro, eu iria criticar o escritor por ter ido demasiado longe. Até mesmo dois pedidos no mesmo dia seria pouco convincente, quanto mais cinco, que era o número que podiam atingir no final. Mas a realidade não segue as regras da ficção» (pp.54-55). Um livro divertido e leve, com uma estrutura tão bem arquitetada, que parece simples e que faz com que não nos percamos na confusão de mensagens que são trocadas. E ainda faz um breve retrato da vida de alguém que se quer dedicar à escrita. Não conhecia este autor sérvio, mas andei à procura e já encontrei mais cinco livros seus traduzidos em português. Vou lê-los. 

“CORES E FORMAS EM HARMONIA” Até 10 FEV | Empresa Municipal de Águas e Resíduos de Portimão Na exposição de Laurentino Cabaço, a luminosidade e intensidade do jogo de cores cria uma visualização repousante e contemplativa


Última O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Janeiro FOTOS: D.R.

AVE

Pedro Jubilot

pedromalves2014@hotmail.com canalsonora.blogs.sapo.pt

«Entusiasmos» Na Casa Álvaro de Campos, em Tavira, logo à esquerda de quem sobe a Rua da Galeria, mesmo antes da Igreja da Misericórdia, está patente até 10 de Abril a exposição de trapologia contemporânea da artista Teresa Patrício. Uma forma de expressão artística, que conjuga de forma surpreendente um método tradicional de composição com a dinâmica da arte moderna.

Eufeme

28 de janeiro, no Mercado Municipal de Silves, entre as 9h00 e 12h30. Este evento, que decorrerá ao longo do ano de 2017, no 4º sábado de cada mês, tem já previstas datas e locais para sua realização nos Mercados Municipais de SB Messines, S. Marcos da Serra; Tunes; Algoz; Alcantarilha; Pêra, e Armação de Pêra. Assim, nesses mercados haverá uma banca dedicada à venda de livros de poesia, que irá contar com livros de pequenas e grandes editoras, algarvias e nacionais, bem como terá representados poetas de diferentes gerações e correntes de escrita. «A poesia é para comer», dizia a poetisa Natália Correia e, por isso, os livros de poesia serão trazidos para junto da população, das bancas de venda de produtos alimentares e do movimento peculiar dos mercados. O evento contará, ainda, com pequenas performances, leituras, oficinas de escrita e outras manifestações de carácter cultural.

… rara, ou actividade algo fora do comum, é o que está a acontecer n’ A VENDA - Tasca, Mercearia e Boa Cª. As sessões experimentais de música (e palavra) e gastronomia vão já no nº 14. A VENDA experimenta!! Live, com entrada livre, contou este mês, 18 de janeiro, com o projecto “Caldo Vertov”, uma performance para 2 computadores, web e 2 projectores! Os interessados fiquem atentos…

ça da Republica em Loulé. Estando integrado na “Rota dos Cafés de Portugal com História”. Segundo se lê no site do concelho pretende-se que o espaço, para além do serviço de cafetaria, sirva também alguma programação de âmbito cultural. Quando ali aparecia, devia parecer estranho aos seus contemporâneos e conterrâneos ver um homem pobre e com um trabalho, ainda que precário, a debitar quadras soltas de versos irreverentes sobre o comportamento de homens de diversas classes sociais, um pouco à semelhança do que fazem hoje das rimas os jovens poetas orais urbanos. Soa forçado dizer, mas ele era já quase como que um rapper, muito antes do tempo da comunicação livre: «Uma mosca sem valor/Poisa c’o a mesma alegria/na careca de um doutor/como em qualquer porcaria».

Velocity

Café Calcinha

7 Pedras 7 Palavras Depois das participações de Adília César e Marco Mackaaij, no nº 1 da revista «Eufeme», Pedro Jubilot é o mais recente autor com residência algarvia a publicar (nº 2 - Janeiro-Março) neste magazine de poesia com edição de Sérgio Ninguém, desde Matosinhos. Aqui um excerto de um dos poemas: (…) sophia, no mesmíssimo dia, na primavera já inteira e limpa de lagos e apenas munida de lápis, escreveu-as, palavras livres eternizadas na substância do tempo da voz do mar irrompia o marulho da esperança enquanto esperava em silêncio a madrugada azul junto à janela da liberdade, o início… já todos lemos o nome das coisas ?

Poesia n’a Praça A poesia e a literatura chegarão, em 2017, aos mercados e praças do concelho de Silves, através de uma iniciativa da Casa-Museu João de Deus – o “Poesia n’a Praça - Mercado de poesia / Poetry book market” -, que se iniciará no dia

A tertúlia da Biblioteca do 7 - regressa já no próximo dia 29 de janeiro, às 22 horas. Para esta sessão, destaque para uma conversa com Fernando Pessanha, historiador, escritor, músico e compositor. Como sempre intervenções/performances de Pedro Monteiro, Luís Ene e Rogério Cão, desta vez respetivamente com primeiros desvendares de “Poezia Bruxa”, “Quem quer ser português” e “A gaveta da Pedra”. A participação é livre e espontânea, mas podem sempre inscrever-se (evento no facebook) para contar uma história, ler ou dizer poemas… entre o vinho e os livros neste bar, na travessa dos Arcos, nº 11, em Faro.

Descendo a Avenida José Costa Mealha, pelo passeio esquerdo não se ignoram o cinema e o mercado municipal, até que uma estátua de bronze, obra de Lagoa Henriques, o mesmo que colocou Fernando Pessoa no Chiado, frente à Brasileira – ali se nos pranta ao caminho na calçada portuguesa. É o poeta António Aleixo (Vila Real de Santo António, 18 de fevereiro de 1899 — Loulé, 16 de novembro de 1949) que guarda a esplanada, junto à mesa onde se inscreveu: «Os meus versos, o que são? / Devem ser, se os não confundo / pedaços do coração / que deixo cá neste mundo. Foi anunciada pela autarquia a reabertura para o início de 2017 do Café Calcinha na Pra-

Apreciada a zona ribeirinha sentado no jardim Visconde Bivar, passa-se automaticamente para a praça Manuel Teixeira Gomes, o mais autêntico dos presidentes da república portuguesa. Ali onde a Casa Inglesa ajudou a fazer a história da cidade, instalada desde 1922 no prédio Viscondessa de Alvor. Doces regionais feitos de supostos produtos ainda regionais, agora orientados ao gosto do cliente global ,enchem as prateleiras do estabelecimento. Daí facilmente nos ligamos à Rua Santa Isabel, uma das artérias com ligação à praça. E desde logo ao nº 5 nos deparamos com o Velocity Café, bar & restaurante de tapas, artes e entretenimento, que costuma receber apresentações de livros, como aconteceu no final do ano passado, com a mais recente obra da autora de Gabriela Rocha Martins, na editora Lua de Marfim. Desse «crispação de um toque a-fora o Ser (i ensaio derivante)» se lêem a páginas tantas os versos: tão enigmático o encontro com as cerejas o doce o amargo o tríplice a síntese metamorfose evanescente além da casa no silêncio-onde 


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