Cultura.Sul 144 6NOV2020

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NOVEMBRO 2020 n.º 144 www.issuu.com/postaldoalgarve

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MISSÃO CULTURA

Ao Fim e ao Cabo RUI PARREIRA

O Infante Dom Henrique estabeleceu-se em Sagres onde viria a falecer há 540 anos FOTO D.R.

Técnico superior da Direção Regional de Cultura do Algarve

S

agres - um cabo no fim do mundo. Uma das pontas terminais daquele triângulo em que, em todos os mapas do Mundo Antigo, se afunila o extremo sudoeste da velha Europa. Esquina naval de todas as rotas de navegação marítima entre o Mediterrâneo, a Europa Atlântica e a África Ocidental. Mar – tanto mar. Que une povos, mais do que os separa. Nesse vasto promontório triangular apontado ao Atlântico transbordam marcas milenares de humanização do território: lugares de residência sazonal, recintos e agrupamentos de menires pré-históricos, lembranças de sacralidade destas paragens – em que avulta a memória da Igreja do Corvo, o mais destacado lugar de peregrinação do mundo moçárabe. E, na extremidade do promontório, a par do Cabo de São Vicente, o cabo de Sagres – ponto de convergência de mareantes. Por mar, que em terra, até 1443, a ponta era um ermo desabitado e mal frequentado. A partir de então, com as estadas cada vez mais prolongadas do Infante Dom Henrique no Algarve, a ponta cobra outra vida. Interessado nas riquezas naturais da região, senhor do extremo Barlavento, fruidor exclusivo, por bula papal, da navegação a sul do Bojador, o neto do Justiceiro (o da formosa Inês) e terceiro filho legítimo do rei Dom João I, instala na ponta de o uma das suas residências e promove a fortificação do lugar, cortando-lhe o acesso com uma muralha que manda fabricar ao modo ziguezaguente que, então, parecia ser o mais eficaz para a defesa dos lugares – adaptado a armas de propulsão manual mas também às mais antigas bocas de fogo. Dono de um empório comercial que trafica com as riquezas da terra e do mar algarvios (cana de açúcar, pescarias, coral...) e com os rentáveis produtos que começam a afluir da costa ocidental africana (especiarias, gente escravizada...), o Infante estabelece-se em Sagres e escolhe este lugar para nele passar os seus últimos anos de vida, que aqui termina na noite de 13 de novembro de 1460 – faz agora exatamente 540 anos. O tempo e os homens fizeram o resto: a

memória de Dom Henrique, o homem que promovera inovadores modos de navegação e comércio por mar, que abrira a Europa a novos mundos, foi manipulada como estandarte de uma nação, como herói civil de uma época de pretéritas glórias (o outro, o herói militar, era Nun’Álvares, o santo condestável que defendera a independência do reino e a consolidara em Aljubarrota). A manipulação da memória do príncipe mitificou o lugar. E a ponta de Sagres passou a ser olhada com o sítio fulcral de uma refundação nacional de dimensão colonial. Ou, como se dizia numa enciclopédia para jovens dos anos 60, como um «lugar que todo o homem civilizado visita com respeito». Até hoje, o regime democrático tem mostrado uma certa incapacidade para reverter o mito e suscitar uma reflexão – sem falsas modéstias nem ufanias, e alicerçada em factos historicamente comprovados – acerca do significado deste lugar de memória. Comemore-se, pois, o Infante de Sagres, evoque-se o seu passamento

há 540 anos nesse lugar consagrado. Mas como personagem que incansavelmente perseguiu a inovação, que foi precursor de um mundo globalizado, que fez de Sagres aquilo que hoje é – um lugar de convergência e convivência de muitas e

variadas gentes e culturas. Se a Europa começa aqui (isso diz a distinção Marca do Património Europeu que Sagres ostenta) é na sua dimensão multicultural. E com mar – tanto mar – que continua a unir mais do que a separar os povos.

Ficha técnica Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Fios de História: Ramiro Santos • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • História da Fotografia no Algarve: Carlos Osório • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Àgua: Maria Luísa Francisco • Nascida no Monte: Teresa Lança Colaboradores desta edição: Rui Parreira Parceiro: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve


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NASCIDA NO MONTE

Outono TERESA LANÇA Educadora de Infância nascidanomonte@gmail.com

É

outono e a paz recomeça desde a Alma! Caminho ao lado desta cordilheira plantada ao rés da calçada, onde tudo começa a amarelecer. Quando vim parar aqui, e no primeiro instante... como sempre no primeiro instante, os carros rodopiavam sem sossego, o odor dos gases da cidade, o barulho infernal, cinzento, era tudo o que eu conseguia ver

e que camuflava o essencial. Acreditava que esta minha estadia, não seria mais que uma passagem obrigatória, de um destino qualquer do destino. A pouco e pouco, as folhas foram tapetando as calçadas de tons dourados, e o céu nem sempre se mostrava azul. Desejava descontroladamente o final das sextas-feiras, e rumava noite dentro, ao Alentejo. Era uma correria endoidecida entre um e outro lugar, que me anestesiava a vida e não me deixava cansar o corpo nem a Alma. Acordava cedo depois de uma noite no aconchego do meu ninho, e lá ia eu... As minhas companheiras de caminhada sempre se adiantavam

nos passos, enquanto eu me detinha em pormenores floridos em tempos de primavera, ou nos seus vultos envoltos em nevoeiro, trazido por qualquer outra estação, que em qualquer caso, eu ia registando em fotos. Foram muitas as vezes que também elas, envoltas em vidas e assuntos que eu desconhecia, se alhearam da minha presença do seu lado... e eu gostava! Sempre gostei desse anonimato, dessa ignorância confortável do mundo à minha volta, sobretudo do humano: dele de mim, de mim dele. Tinha chegado ali com a minha varinha de condão, e colorido um a um, os que ia conhecendo, com as

cores que a minha alma desejava que tivessem! Depois... depois outras estações foram chegando, e a luz dos verões incidindo e desbotando a quem pintei, e com o humano assim exposto, cinzento mas real, extinguiram-se não só as tintas da minha imaginação, mas os meus entusiasmos encantados que rodopiaram de novo, mais uma vez de novo, e se encaminharam para o “antes" de ter chegado ali. Por aqui, a realidade foi-me sempre menos sonhada, mais real. Eu sei que tudo continua como dantes... as chuvas chegam e diluem na mesma proporção, as cores e os cinzentos, e continuam a mos-

trar nas ruas molhadas o reflexo cintilante da cidade: a mesma que outrora, na minha juventude, descobri cintilando no rio, encantada... que desde lá não mais a tinha visto! E tudo recomeça! O Alentejo, o Sonho, mas também o ninho real dos meus eternos regressos, que sempre encontro intacto... e lá, outros que não pintei, nem se me mostraram com cores que não tinham, e que me ficaram para nunca mais partir: um presente de Deus, talvez! A cidade, com tanto para viver e descobrir! É outono, e eu com tanto para agradecer à vida.

MARCA D'ÁGUA

À memória dos que continuam a ser parte de nós MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

luisa.algarve@gmail.com

T

udo está em constante mudança e por estes dias em que houve restrições às visitas aos cemitérios fica o silêncio, o visitar interiormente essa força evocativa e simbólica que nos liga aos entes queridos. Os nossos mortos estão vivos nos nossos corações e não naqueles túmulos vazios, onde existe apenas pó. Em vez de ir ao cemitério costumo abraçar as árvores que o meu pai plantou e das quais se despediu antes de morrer. Continua a ser a minha inspiração, o tronco e eu apenas um ramo. Na página de agradecimentos da tese de mestrado escrevi: “Ao meu pai que nunca verá este trabalho, mas que me ensinou a ver a Serra com um olhar de contemplação e respeito. À minha irmã e à mãe pela dedicação e generosidade. À Cláudia Diogo pela colaboração e sugestões pertinentes.” Ainda não há um mês que a Cláudia partiu, tinha 53 anos e tanto para dar (vítima de doença oncológica como o meu pai). Demos aulas às mesmas turmas do curso de Sociologia no ISMAT em

Portimão, estávamos ambas a fazer a tese de mestrado em Lisboa. A Cláudia Diogo e eu tínhamos o gosto pela serra, pelas tradições, memórias e oralidade. Defendi a tese de mestrado em Ecologia Humana e Problemas Sociais Contemporâneos em 2002 e a Cláudia a tese de mestrado em História em 2003. Apoiamo-nos mutuamente, chegamos a andar pela Serra de Monchique a fazer recolha junto de pessoas idosas. A Cláudia referiu no livro que publicou em 2015, baseado na sua tese, e com apoio da Dir. Regional de Cultura do Algarve, algumas situações curiosas que passamos, para além de incluir a minha tese na bibliografia. Entretanto passei a dar aulas na Universidade do Algarve e só nos voltamos a encontrar anos depois na apresentação do livro em Faro. Reli a dedicatória que me escreveu e emocionei-me. A melhor homenagem que posso prestar à investigadora Cláudia Diogo é continuar o trabalho de recolha das tradições e preservação da memória, que comecei na Serra de Monchique e dei continuidade na Serra do Caldeirão até Alcoutim.

Quando parece que tudo acaba é quando tudo começa Diariamente leio um trecho da Bíblia escolhido aleatoriamente, para além

do Evangelho do dia. Uma das frases da semana foi esta: “Vale mais o bom nome do que o melhor dos perfumes, vale mais o dia da morte do que o dia do nascimento”. Eclesiastes 7,1 Creio que a maioria das pessoas pensa mais em como será o dia da sua morte, do que em como foi o dia do seu nascimento. Aquele será o dia da grande passagem para o Infinito, depois de todas as vivências que fizeram a nossa história pessoal. Quando se está presente no último momento de alguém percebe-se que quando parece que tudo acaba é quando tudo começa… É um momento que, como cristã, vejo como júbilo porque é a grande passagem para o abraço de Deus, esse abraço que, imagino, nos acolherá com a ternura infinita de Pai. Daí ser tão importante a fé em algo superior a nós, seja qual for a religião ou filosofia de vida. E a poesia…essa companheira de vida permite-nos também outro entendimento… Como diz o poeta de língua alemã, Rainer Maria Rilke, “(…) somos apenas a casca e a folha. A grande morte, que cada um traz em si, é o fruto à volta do qual tudo gira.” Os livros fazem parte da vida e ajudam a ver a morte com um outro olhar. Os que estava a ler ao lado do meu pai na fase final da sua vida, juntamente com a fé, foram o apoio para ter mais coragem para enfrentar um momento tão único.

O telúrico abraço da Serra-Mãe no horizonte da memória e do sentir FOTO RUI ANDRÉ / D.R.

Sim, foi doloroso, mas a beleza e profundidade dos nossos diálogos e de termos pensado juntos como seria esse momento (embora nunca se esteja totalmente preparado) foi o mais triste e mais memorável que me aconteceu. Estar ao lado, ser presença total e dar o abraço final, depois de ter dado o sumo de laranja das nossas árvores, como se estas agradecessem à sua maneira os cuidados e dedicação do meu pai. Nesse golo derradeiro…o abraço apertado…e a morte a me pôr à prova…por instantes, também eu quis morrer envolta naquele abraço. A morte passou a fazer parte do meu itinerário pessoal. A morte tornou-se um tema de vida e de reflexão. Há um território interior feito de adiamentos e de silêncios que obriga a olhar mais profundamente para dentro e para o Alto.

Quem morre de doença oncológica por vezes tem uma lucidez que parece escolher o simbolismo do dia e da hora. Há momentos humana e espiritualmente tão marcantes que transformam a nossa caminhada. Essa proximidade com a morte deu-me força para enfrentar outras situações em que assisti a momentos finais. E fez-me perceber uma vocação espiritual e a missão de colocar a vida ao serviço dos outros, principalmente dos mais velhos e vulneráveis. Os poemas que escrevia iam sublimando a dor e das leituras dessa altura, em que permaneci ao lado do meu pai, partilho esta frase do teólogo e escritor Teilhard de Chardin: “Não somos seres humanos a viver uma experiência espiritual, somos seres espirituais a viver uma experiência humana”.


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ARTES VISUAIS

Como “aprender” e “mostrar” Artes Visuais em tempos de pandemia? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

A

proveitando as condições climatéricas do Algarve, com uma luz que permite uma cor e um brilho especiais, vários artistas, nomeadamente estrangeiros, têm vindo residir para o Algarve nos últimos anos. Mas são também artistas portugueses com percurso internacional que têm escolhido o Algarve para residir e desenvolver a sua atividade, como é o caso de Pedro Cabrita Reis. Desta forma, o Algarve tem sido, não apenas local de fruição, mas também espaço e tempo de produção artística no âmbito das Artes Visuais. Num projeto iniciado já no século XXI, no Algarve começou-se também a desenvolver o conhecimento e a investigação no domínio das Artes Visuais, tendo a Universidade do Algarve (UAlg) sido essencial para isso, com a abertura da licenciatura em Artes Visuais, permitindo a existência no Algarve dum ambiente formal para aprendizagem no âmbito das artes visuais. Com um corpo docente constituído sobretudo por artistas, os alunos têm tido oportunidade de vivenciar de perto o mundo da arte na sua complexidade e articulação entre a teoria e a prática. Além disso, beneficiam duma formação multidisciplinar, em que o desenho, a pintura, a escultura, a fotografia, a videoarte e a arte digital/multimédia se complementam na sua formação. A criação do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC) foi também essencial neste processo, sobretudo do ponto de vista da investigação em Artes Visuais, permitindo a construção do conhecimento neste domínio, mas estando este muito associado à própria formação dos alunos, sobretudo ao nível do mestrado e do doutoramento no âmbito das Artes Visuais, que abriram mais recentemente na UAlg. Assim, o centro de investigação e a formação em Artes Visuais interligam-se quase como um laboratório de criação e aprendizagem neste domínio científico/artístico, em que a arte e a ciência se entrecruzam, tornando-se a arte ciência e a ciência arte. Mesmo em tempos de pandemia, a formação no âmbito das artes visuais tem ocorrido dentro das possibilidades, graças à elevada motivação e empenho dos docentes e dos estudantes, num esforço constante de adaptação às contingências do período em que vivemos. A relação com a comunidade tem sido desde o início um dos aspetos muito valorizados pela equipa de docentes, sendo constantemente feitas mostras ou exposições do trabalho artístico produzido nas atividades letivas, em particular pelos próprios alunos. Muitas das atividades de mostra do trabalho produzido têm sido realizadas na Galeria Trem, em Faro, ou no Convento de Santo António, em Loulé, expressando o reconhecimento e o apoio que ambas as autarquias têm proporcionado às Artes Visuais na UAlg.

Fotos de alguns dos trabalhos da exposição “O Toque em tempos ilícitos” (2020) FOTOS D.R.

Recentemente foi inaugurada mais uma exposição de trabalhos dos finalistas da Licenciatura em Artes Visuais, desta vez no Convento de Santo António, a qual poderá ser visitada até ao próximo dia 15 de novembro. O título da exposição, “O Toque em tempos ilícitos”, pretende expressar a complexidade e o condicionamento deste ano letivo ocorrido durante a pandemia. Através da expressão artística, cada estudante procurou expressar um sentimento que é comum na atualidade: «Que tempos são estes? De que forma e quando, voltaremos a ser como antes?». Os trabalhos expostos são da autoria de De Borj@, Gonçalo, Joana Bento, Lorena, Manu, Margarida Lopes, Mariana Domingos, Miguel Costa e Sofia Cardoso, sendo a curadoria da responsabilidade dos docentes Bertílio Martins, Mirian Tavares, Pedro Cabral Santo, Rui Sanches, Susana de Medeiros, Tiago Batista e Xana. Os responsáveis pela exposição referem que “através do toque, trabalharam a matéria, os materiais, transformaram as ideias em obras e criaram a exposição possível nos tempos que correm. Esta exposição integra, na sua lógica interna, a arquitetura complexa do edifício, a sua história, as memórias, e procura ir ao encontro do espetador para o envolver e tocar de alguma forma, já que o toque, na era da pandemia, foi decretado «ilícito» (...) Completamos, com esta exposição, mais um ciclo de estudo no domínio das artes visuais e apresentamos mais um grupo de artistas promissores. Esperamos sempre que a comunidade os acolha e que perceba a importância das artes e da produção que é feita no Algarve, dentro da Universidade. Apesar de fisicamente distantes, continuamos a trabalhar, e os jovens artistas a produzir, pois se há algo que talvez nos possa salvar da incerteza e do distanciamento social, é a Arte que nos toca profundamente, mesmo em tempos ilícitos”. Vale a pena refletir sobre estas palavras e fruir da exposição... AF_CA_CampanhaB10_20_IMPRENSA_210x285mm_cv.indd 1

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Entrevista a Teresa Rita Lopes

Ainda há muito de Pessoa a dar a conhecer Texto RAMIRO SANTOS Fotos HENRIQUE DIAS FREIRE

Foi amor à primeira vista. Andava ainda no liceu em Faro, cidade onde nasceu e viveu até aos 17 anos, quando conheceu Fernando Pessoa. Depois, já na universidade, a paixão pelo poeta foi crescendo ao ponto de, no seu exílio em Paris, o ter abraçado num compromisso que dura já uma vida. Teresa Rita Lopes há muito que conquistou um lugar na história da literatura portuguesa, sendo considerada uma das maiores especialistas da vida e da obra poética de Fernando Pessoa. Hoje, reparte os seus dias entre Almada, onde reside, e o sul dos seus sonhos, num triângulo que inclui Faro, Alcoutim e Cacela. “Sou uma algarvia de gema”, afirma Teresa Rita Lopes, que nasceu numa casa térrea da rua de S. Luís, em Faro

A Teresa Rita Lopes é uma algarvia de gema. Nasceu em Faro, numa casa térrea da rua de S. Luís, mas não chegou a conhecer o seu pai, não é? RS

TL O meu pai morreu três meses antes de eu nascer. Nunca chegaram a saber do que é que ele tinha morrido, mas a minha avó de Alcoutim, mãe do meu pai, dizia que ele tinha nascido com “cabeça de água”, aquilo a que hoje chamam de hidrocefalia. A minha mãe só esteve 10 meses casada e dizia que o meu pai me tinha adivinhado quando aviltrava que havia de nascer uma menina. RS Imagino, portanto, que foi recebida e cuidada como uma menina mimada! TL A minha infância foi sempre rodeada de mil cuidados, com muito receio que eu herdasse a desconhecida doença de meu pai e, desde que me lembro das coisas, recordo-me de ser olhada como se eu tivesse qualquer coisa de sobrenatural. RS Os seus avós paternos eram de Alcoutim e do lado de sua mãe, a sua avó era de Cacela e o avô era de Messines... TL A minha avó de Cacela, que era muito santanária – como se diz no Algarve – uma vez chamou lá a casa um

homem que era sacristão e diziam vidente... Lembro-me ainda de ele olhar para mim e dizer: “ai esta menina tem um futuro muito importante à frente dela”. Juntava isto ao tratamento especial que recebia até aos oito anos, tanto mais que era filha única, sobrinha única apesar de haver quatro tios, e era também neta única. De maneira que eu podia ter saído uma criancinha insuportável, uma menina mimada, porque era mimada. Andava de casa em casa, e isso também me deu algumas vivências muito especiais.

dava-se qualquer coisa à vidente e, a minha tia, puxando de uma nota, disse assim: “Tome lá para o espírito comprar rebuçados”. De outra vez, a tia Emília pôs o menino Jesus de cabeça para baixo na retrete, de castigo, porque ele não atendeu o pedido que ela tinha feito ao colocar a cautela por baixo dele para lhe dar sorte. Como a cautela saiu branca, ela tratou de lhe dar o devido castigo como era hábito na época.

RS E isso vê-se na maneira viva como descreve esses quadros da sua meninice...

Alberto Caeiro e Ricardo Reis foram criados por Pessoa para o seu combate à “igreja de Roma

TL Sim, é talvez por isso que hoje falo tanto das pessoas da família: da mãe, dos avós, dos tios, das tias e guardo deles uma particular afeição e conhecimento de como eram. De todos, mesmo de todos, porque deles tenho memória fotográfica.

TL A tia Emília era professora primária, católica, mas acreditava em espiritismo. Lembro-me que uma vez, a minha tia organizou uma sessão mediúnica lá em casa mas eu percebi que ela não estava a levar o espírito a sério. No final, como era costume,

TL Tenho essa honra, sim e estou bem acompanhada por um poeta árabe e dois outros que cantaram Cacela, como a Sofia e o Eugénio de Andrade. Foi uma surpresa que me fizeram, gostei muito! RS E nas memórias que vai escrevendo foi recuperar as redacções da Teresinha... TL A Maria Teresinha, era o nome que me davam quando eu era menina. Comecei a fazer essas redacções num livro para todas as idades que se chama “Jogos, Versos e Redacções”, publicado quando os meus cinco netos eram muito novinhos. Um dia recomecei porque as pessoas gostaram e incentivaram-me a escrever mais. RS A Teresinha, pode dizer-se que é uma sua heterónima?

A sua infância e, digamos a sua vida, porque nunca se desligou do Algarve, repartiu-se por um triângulo formado por Faro, Alcoutim e Cacela, não foi? RS

RS A tia Emília, por exemplo, de que fala muito!...

E em Cacela tem a honra de lá ter o nome de uma rua..! RS

Sim eu digo isso no meu livro “O sul dos meus sonhos”, pois essas são as terras e os cenários, ainda hoje, dos meus sonhos. Ia mais a Faro e Cacela do que a Alcoutim. TL

TL De certo modo, mas não chega a ser heterónimo à maneira pessoana porque ela tem as mesmas atitudes do que eu, só que numa linguagem diferente.

E quando é que descobriu o Pessoa, qual foi o primeiro poema que leu dele? RS

TL Eu descobri Pessoa e Florbela Espanca ao mesmo tempo. Gostei logo


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ENTREVISTA

mente com ele que expôs o assunto ao irmão. O Hermano Saraiva mandou imediatamente arrolar o espólio, impedindo-o assim de sair do país. Ordenou ainda que uma equipa de bibliotecárias fosse para casa da irmã do Pessoa fazer a catalogação do material e um breve resumo de cada um dos papéis do poeta. RS E foi assim que chegou aos escritos do baú? TL Sim, por intervenção depois de Veiga Simão, o novo ministro da Educação, agora de Marcelo Caetano, contra a vontade dos burocratas do ministério. Comprei uma máquina de fotocopiar enorme, e lá fui para casa da mana do poeta. Fotocopiei o mais que pude com o argumento de que era para a minha tese que concluí com o título “Fernando Pessoa e o Drama Simbolista”. Estive lá durante muito tempo, fiz uma excelente relação de amizade com a irmã do Pessoa, e foi aí que eu me dei conta de que os livros que nós conhecíamos editados pela Ática, eram muito incompletos, e senti que tinha absolutamente de fazer novas edições.

E em 1990 publica então “Pessoa por conhecer”! RS

Exatamente, no ano do centenário do nascimento de Álvaro de Campos, 1990, eu quis mostrar, em dois grandes volumes, que as pessoas ainda não conheciam o Pessoa.

dizer parvoíces, classificando-o como um escravocrata. Isso é de uma burrice total! É preciso perceber uma coisa muito simples, da qual temos todos que partir sob pena de não entendermos nada do Pessoa: ele é o dramaturgo que toda a vida disse ser; muita gente põe na boca de Pessoa o que é dito, por exemplo, por António Mora, um indivíduo que ele colocou a viver nos tempos da Grécia e Roma antigas onde a escravatura era considerada uma coisa normal. Esclavagista era Antonio Mora e não o Fernando Pessoa. Um não tinha nada a ver com o outro. Aliás, muito antes dos direitos humanos começarem a andar na boca das pessoas, já o Pessoa era contra a homofobia e a pena de morte!

Imprimiu na sua tipografia Ibis o jornal “O Povo Algarvio”, de Loulé, que se assumiu na capa como republicano e anticlerical

TL

Falou em Álvaro de Campos. Alguma razão especial para Fernando Pessoa o ter colocado a nascer em Tavira? RS

do Álvaro de Campos e ainda hoje é aquele de que mais gosto. O Álvaro de Campos e a Florbela andavam sempre na minha pasta. Estou convencida de que a Florbela teve muita influência no Álvaro de Campos. Por isso é que ele é relativamente desbocado e desinibido: Pessoa era extraordinariamente inibido. Não me lembro qual foi o primeiro poema que conheci dele, mas li todo o Álvaro de Campos, da Ática, que é apenas um terço do Álvaro de Campos. Mas ainda assim, foi o suficiente para eu ficar completamente rendida.

uma bolsa à Gulbenkian. Ele escutou-o, distraídamente, e escreveu então a carta a declarar que aceitava ser o orientador da tese de J. A. Seabra sobre “quatro poetas portugueses”: É claro que ele não a enviou – e não obteve a bolsa!

Andam por aí a dizer parvoíces, classificando Pessoa como um escravocrata. Isso é de uma burrice total!

RS No seu exílio político em Paris, apercebeu-se de que, em meados dos anos sessenta, Pessoa era um desconhecido no mundo académico e intelectual dos franceses...!

E quando é que veio abrir o baú do poeta?

TL Sim, e quando decidi fazer a minha tese de doutoramento sobre o Fernando Pessoa, o meu “patron”, René Étiemble, “Papa” das literaturas comparadas, disse-me: “Olhe eu não conheço o seu autor mas vou aprender consigo”. Para ver o desconhecimento que existia, ainda lhe conto outra: o José Augusto Seabra, também exilado, abordou o Roland Barthes, para seu orientador de uma tese sobre Fernando Pessoa, e pediu-lhe uma carta de recomendação para se candidatar a

TL Só em 1969 fui a casa da irmã do poeta, Henriqueta Madalena, detentora do baú, que vivia na Avenida da República, em Lisboa. Meses antes tinha ido à biblioteca da Gulbenkian em Paris, e o seu director, o professor Veríssimo Serrão, disse-me que o espólio de Pessoa ia ser vendido para a Inglaterra. Fiquei em pânico! Era nessa altura ministro da Educação de Salazar, o professor José Hermano Saraiva, irmão do meu companheiro, António José Saraiva. Falei imediata-

RS

TL É importantíssima essa história de Tavira, porque Pessoa fez de Álvaro de Campos, um cristão novo, como todos os seus antepassados de nome Pessoa. No cemitério de Tavira está uma lápide na sepultura do seu tio avô, onde se lê “Jacques Pessoa livre pensador”, como se designavam os maçons. O que encarna precisamente a identidade de Pessoa, é o Álvaro de Campos. Só que é um Pessoa extrovertido… Daí Álvaro de Campos dizer que Pessoa “era um novelo enrolado para dentro”… O que ele fez, foi esse novelo desenrolar para fora. Álvaro de Campos é o que acompanha mais de perto Pessoa durante toda a sua vida. E não se pode nunca perder de vista, quando se está a ler qualquer texto, quem é que disse isto ou aquilo. Os heterónimos e personagens, criados pelo poeta, não emitem as opiniões do Pessoa, exprimem-se, contrariando-se uns aos outros, apoiam-se e desapoiam-se como numa peça de teatro. Escrevi desde sempre poesia e teatro, e creio que me interessei pelo Pessoa por ele ter essa dimensão dramática.

Por isso é que surgem as polémicas acerca do Pessoa esclavagista, por exemplo, não é? RS

TL Claro, as pessoas ainda não entenderam isso e andam por aí a

RS Mas, na nossa conversa, esquecemo-nos do Álvaro de Campos, em Tavira..! TL Espere, oiça isto que é indispensável para se perceber o poeta. Antes de inventar os heterónimos em 1914, o Pessoa já se tinha organizado para combater a igreja de Roma. E isto vem muito a propósito do Álvaro de Campos descender dos judeus de Tavira. Fernando Pessoa não se assumiu como um judeu, mas essa identidade era extraordinariamente importante para ele. Quando percebeu as suas raízes judaicas, levou toda a sua vida - não mudou rigorosamente nada - a combater a igreja católica. Metade desses textos estão inéditos e a primeira “militância” do Pessoa, digamos assim, foi contra a igreja de Roma. É neste quadro que ele inventou, antes dos seus heterónimos, o tal “esclavagista” António Mora, personagem da Grécia antiga que tinha por função a reconstrução do paganismo ou a criação do “novo paganismo português”. RS Portanto, Mora nasceu antes do Caeiro, Campos e Ricardo Reis..! TL Sim, Pessoa primeiro entreviu no António Mora e só depois o Alberto Caeiro e Ricardo Reis, que nasceram para sustentar esse combate religioso. As pessoas não sabem ler... o Caeiro era “o reconstrutor da sensibilidade pagã”, está escrito assim por Pessoa com todas as letras. Nasceu para isso! E o Ricardo Reis nasceu para “reconstrutor da estética pagã”. Portanto, estes dois heterónimos foram criados para esse seu combate à “Igreja de Roma”. Isto nunca foi dito.

Mas voltando a Tavira e ao Álvaro de Campos... RS

TL Ele teve um avô e um tio avô em Tavira. Eram liberais e estiveram os dois na guerra contra os absolutistas e o Pessoa visitava regularmente os seus parentes de Tavira. E conto-lhe mais: Pessoa, aos vinte e poucos anos, montou a tipografia Ibis com a herança que tinha recebido da avó paterna, tendo imprimido, entre 12 de Março e 12 de Junho de 1910, um jornal chamado “O Povo Algarvio”, de Loulé, que se assumia na capa como republicano e anticlerical, cujo director era Paulo Madeira, que terá sido procurado por indicação da sua familia do Algarve. Isto digo eu, porque como é que ele, em Lisboa, ia conhecer em Loulé, o director de um jornal que tal como a família de Tavira, era republicano e maçon? Foi certamente por indicação dos seus familiares “fidalgos e judeus” que se relacionavam com esse Paulo Madeira. Portanto, o Pessoa estava numa relação de militância republicana e numa cruzada de toda a sua vida contra o que ele chamava a “Igreja de Roma”.

Os heterónimos e personagens, não emitem as opiniões do Pessoa, exprimem-se, contrariando-se uns aos outros, apoiam-se e desapoiam-se como numa peça de teatro RS Eu sempre pensei que ele era monárquico... TL As pessoas também pensam isso erradamente. Na sua militância republicana, ele alinhou com os seus parentes de Tavira e, além da relação com o director do jornal de Loulé que o comprova, até deixou um manuscrito, militantemente republicano, chamado “O Fósforo” que nunca foi publicado. Portanto, começou por se assumir republicano e embora mais tarde se tivesse definido, interiormente, como monárquico, considerou sempre que isso era inviável em Portugal. Era, pois, ideologicamente uma personalidade dividida e aquilo que melhor o define, é a sua adesão ao sidonismo e ao conceito de um presidente-rei, que mais não é do que uma conciliação entre duas faces aparentemente contraditórias. RS Para final de conversa, quando é que temos o tal livro que disse estar a organizar sobre o “Pessoa Todo”? TL Ó homem! Se acredita e sabe rezar, faça-o para que eu ainda dure um certo tempo porque ainda há muito de Pessoa a dar a conhecer.


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

Périplo de um Café Filosófico MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

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ntegrado na Festa dos Anos de Álvaro de Campos, que se continuará a celebrar até dia 30 de Novembro, o Café Filosófico de Outubro foi o primeiro presencial desde o início da pandemia. Um Café Filosófico não é uma palestra, é um encontro de saberes e reflexões, vive sobretudo das intervenções de quem nele participa. Tendo sido este um encontro tão rico, venho hoje aqui dar conta do que nele se conversou. Foram lidos alguns excertos da obra de Pessoa onde claramente aparecem posicionamentos racistas, e lançada a dúvida de saber se esses textos seriam ou não atribuíveis ao poeta, ele próprio, ou ao quase heterónimo António Mora. Alguns especialistas afirmam que assim é e consideram-no uma antítese de Pessoa num exacerbado exercício de retórica. Encurtando razões, deixámos esse deslinde para os investigadores de pleno direito e passámos a ocupar-nos do problema em si mesmo: tentar perceber como é que pensamentos ou ideias de cariz racista podem surgir na nossa mente. “Raça é um não conceito!”, exclamou um dos participantes. De facto, trata-se de um construto social. A humanidade é uma apenas... Lançou-se então o repto de tentarmos perceber se e como é que a ideia de racismo poderia estar na base do sentimento de nação. Apontou-se para o universalismo da humanidade que se opõe aos particularismos da nossa condição e nos tornam sexistas, nacionalistas, etc... “Nós para sermos Portugueses temos de não ser tudo o resto!” Ficou claro para todos que só tomando a nossa portugalidade como o topo daquilo a que se pode aspirar na condição humana, podemos considerar que temos não apenas o direito mas até o dever de nos expandirmos, de “civilizar" outros povos e de os “aportuguesar”. Em catadupa foram surgindo da boca dos vários participantes exemplos de movimentos expansionistas deste género: a reconquista cristã; o nazismo alemão; todos os colonialismos; a revolução francesa... a lista não parava de aumentar! Um dos participantes de nacionalidade francesa, questionou-se sobre como foi possível que o seu povo, em prol dos ideais tão nobres como a liberdade, a igualdade e a fraternidade andasse a decapitar cabeças e a invadir outros povos! De onde surgiria este pensamento “civilizacional-expansionista” tão

amplamente arreigado no nosso mundo ocidental? Sugeri que olhássemos para a obra de Aristóteles - filósofo grego do sec. IV a.C., que foi aluno de Platão e preceptor de Carlos Magno. De facto, falar do pensamento do estagirita é, em grande medida, falar do nosso próprio pensamento. A linguagem científica actual e muitas das expressões da linguagem comum são, sem que nos apercebamos disso, decalcadas dos esquemas conceptuais elaborados por Aristóteles para dar forma às suas ideias. Mergulhámos então no Livro I da Política onde o filósofo claramente defende a escravatura. Começa por estabelecer que dos instrumentos que temos disponíveis uns são inanimados e outros animados. Por exemplo, para um comandante de navio o leme é inanimado e o vigia é um instrumento animado. Daqui para a afirmação de que “o escravo é uma posse animada” foi apenas um pequeno passo. Aristóteles define-o como aquele que sendo homem “não se pertence por natureza a si mesmo, senão a outro (...), sendo homem é posse de outrem”. O filósofo vai ainda mais longe afirmando que a escravatura é um direito natural pois, “por natureza, alguns estão destinados a obedecer e outros a mandar. De acordo como seu raciocínio, uns nascem livres e outros não e, para estes últimos, “ser escravo é conveniente e justo”. A questão racial acaba por ser também aflorada ao afirmar que “a natureza quer inclusivamente fazer diferentes os corpos dos livres e dos escravos: uns fortes para os trabalhos necessários; outros, erguidos e inúteis para tais necessidades, mas úteis para a vida política”. Contudo, o próprio filósofo reconhece que, muitas vezes, sucede o contrario: “há escravos que têm corpos de homens livres, e outros, almas”. Por último, Aristóteles defende que a arte da guerra “deve utilizar-se contra os animais selvagens e contra aqueles homens que, havendo nascido para obedecer, se negam a isso”. Sendo que este tipo de guerra se considera “justa por natureza”. Uma das participantes recordou-nos então a Controvérsia de Valladolid (1550-51) na qual se pretendeu apurar se os índios americanos tinham alma ou se eram selvagens susceptíveis de serem domesticados. Na esteira aristotélica, Guinés de Sepúlveda foi partidário da “guerra justa” contra os indígenas, devido à sua inferioridade, defendendo a sua subjugação. Bartolomé de las Casas foi o grande defensor deste povo procurando demonstrar a sua racionalidade. Um dos participantes sugeriu que os ameríndios

Controvérsia de Valladolid - Pretendia apurar-se se os ameríndios tinham alma FOTOS D.R.

Manifestação anti-racismo Lisboa 2020

também eram aristotélicos sem o saber! Pois pegavam nos espanhóis e metiam-nos debaixo de água. Se eles morressem não eram veneráveis... Chegámos à conclusão de que as sociedades humanas parecem estruturar-se com base nessa ideia de supremacia própria, da que decorrem desejos expansionistas supostamente civilizadores. Em todas as culturas parecem ter havido variações deste modo de pensar. - Qual a ideia que lhe subjaz? Descobrimos tratar-se da ideia do Outro como total e radicalmente diferente de mim! O Outro aparece como aquele que é perigoso, atentatório dos nossos princípios, diferente e, portanto, rejeitável. Verificámos que as sociedades se constroem precisamente com base nesta rejeição. Ficou claro que a ideia de que o nosso espaço comunitário é uma identidade que nos protege é for-

tíssima. Legitima rejeitar o outro, matá-lo inclusivamente, destruí-lo nas suas características culturais, políticas ou idiosincrásicas. Vivemos em sociedades que são profundamente racistas pela sua forma de organização e que rejeitam o outro por dever de nacionalismo ou auto-preservação. Como é que podemos abandonar este modo de pensar? Trouxe então à colação um excerto do livro Para una História de la Piedad da filósofa María Zambrano: “A ideia de que o homem é, acima de tudo, consciência e razão levou a que o homem só se considere semelhante a outro homem. Mas o processo não acaba aí, pois, como as diferenças entre os homens subsistem, há raças, nacionalidades, culturas, classes sociais e diferenças económicas, chegamos ao espectáculo bem visível da sociedade actual. Apenas

sabemos lidar com aqueles que são praticamente uma reprodução de nós próprios. O homem moderno, ao assomar-se ao mundo, vai à procura de um espelho que lhe devolva a sua imagem, e, quando não a encontra, é um desconcerto! Frequentemente, quer partir o espelho! Tornamo-nos terrivelmente incapazes de suportar que existam homem diferentes de nós. Inventou-se, para encher esse vazio, a tolerância, palavra favorita do léxico do homem moderno. Mas a “tolerância” não é compreensão nem trato adequado, é simplesmente manter a distância respeitosamente, isso sim, com aquilo com o qual não se sabe tratar.” (pp. 18 e 19) Já não chegam os caracteres para dar conta das reflexões que a partir daqui surgiram... Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com


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FIOS DE HISTÓRIA Remexido:

A história esquecida de um padre soldado! RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com Foi padre e soldado. Juiz e julgado. Herói e vilão! Ficou na história e na lenda como Remexido, nome de guerra de José Joaquim de Sousa Reis. Morreu de pé, fiel às suas convicções e ao seu rei. Hoje, é completamente desconhecido do algarvios

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asceu em Estômbar, em 1796, mas foi em S. Bartolomeu de Messines onde se estabeleceu, casou e traçou o seu destino. Ainda menino, foi estudar para o seminário de Faro. Aí tomou as ordens menores mas, dado o seu talento para a oratória, cedo despertou a admiração do bispo que o autorizou a subir ao púlpito e falar ao povo. Acabaria, contudo, por abandonar a promissora carreira eclesiástica e a batina, para casar com Maria Clara Machado de Bastos, filha de uma “mui distinta família” local. Precisou, ainda assim, de muita persistência e fazer uso de toda a retórica e do seu latim, para vencer a relutância do tio da moça, homem abastado e dono de terras nas cercanias de S. Bartolomeu de Messines e S. Marcos da Serra. Dessa sua insistência, viria a receber de Maria Clara, a alcunha de Remexido que lhe ficou, para sempre, colada à pele e ao nome. Jovem letrado, bem falante e alinhado com o regime absolutista da época, depressa ganhou posição social de relevo e reconhecimento público. Conseguiu benfeitorias para a aldeia. Uma escola pública de primeiras letras, um

forno comunitário e uma feira franca em honra de Nª Sra da Saúde, que ainda hoje se realiza. Já depois da primeira revolução liberal de 1820, foi eleito juiz de vintena, passando, simultaneamente, a administrar os bens do tio de sua mulher. Nessa função ia, pessoalmente, fazer as cobranças dos dízimos das terras de S. Bartolomeu e S. Marcos da Serra. Anos mais tarde, na pólvora dos dias, enquanto guerrilheiro, na serra do caldeirão que conhecia como os seus próprios passos, tornou-se uma dor de cabeça para as tropas liberais fiéis a D. Pedro, na guerra civil que o opôs aos absolutistas de seu irmão D. Miguel. Assinada a paz na Convenção de Évoramonte, esperava-se um regresso à normalidade. Contudo, a prisão de sua mulher e de um filho, bem como as represálias e perseguições políticas exercidas pelos liberais, vencedores da guerra fratricida, levaram o guerrilheiro a prosseguir a sua campanha militar com acções de violência, um pouco por todo o algarve e baixo alentejo. A tomada de Albufeira, ao tempo uma praça liberal, é um exemplo sagrento da chacina e pilhagem perpretadas pelas hostes miguelistas, provocando cerca de sete dezenas de vítimas. E se os excessos de guerra se podem apontar sempre a um e outro lado da contenda, na narrativa construída ao longo do tempo, os liberais fizeram, do Remexido, um sanguinário e “façanhudo guerrilheiro”. Um homem - diziam - que desenvolveu particular ferocidade, “apunhalando os prisioneiros, queimando-os vivos e arrastando-os a todos à cauda do seu próprio cavalo.” E para compôr a lenda, o Remexido teve mesmo honras de figurar numa coleção de romances de cordel, onde a história e a ficção andam de mãos dadas. Como em todas os casos, há porém quem

guarde dele a imagem diferente de um herói romântico e idealista, que se sacrificou pela causa que lhe pareceu mais justa, ainda que contra os ventos dominantes das ideias liberais republicanas que chegavam da revolução francesa. Dele, escreveu Camilo Castelo Branco: “O Remexido surge imbuído de fortes laivos românticos, acabando por trocar uma pacata vida de lavrador, pelos apuros de uma luta sem quartel que lhe valeu e à família, as mais duras perseguições, contra as quais se rebelou.” E o historiador algarvio, Alberto Iria, exalta o Remexido apresentando-o como “uma pessoa inteligente, dotada de uma alma boa e generosa, com dignidade e grandeza ao serviço dos seus ideiais.” Feito prisioneiro em 1838, foi julgado em tribunal de guerra no salão da Misericórdia de Faro e condenado à pena capital. Nas alegações finais, em sua defesa, disse: “o único crime que cometi foi o crime de desobediência”, em obediência a um ideal e a uma causa em que acreditava. Sem possibilidade de recurso, foi executado por fusilamento, a 2 de agosto do mesmo ano, pelas 18 horas, no campo da Trindade, onde hoje é a Alameda João de Deus, em Faro, e enterrado no cemitério da Misericórdia. Duzentos anos volvidos, e independentemente da imagem e do juízo que hoje se possam fazer do Remexido – do homem, do político e do guerrilheiro – fica a ideia de que o Algarve nunca chegou, verdadeiramente, a conhecê-lo, deixando cair sobre ele e as suas razões, o manto escuro do esquecimento e do silêncio. Como quase sempre acontece, também neste caso acabou por prevalecer a versão da história escrita pelos vencedores. E ele esteve do lado errado da barricada! Vae victis! Ai dos vencidos!

Em cima Remexido foi um guerrilheiro algarvio que lutou pelos absolutistas de D. Miguel na guerra civil que o opôs aos liberais de seu irmão D. Pedro Em baixo Campo da Ermida de Santana, palco de um dos confrontos mais sangrentos entre as tropas de Sá da Bandeira (liberais) e Tomás Cabreira (absolutistas) FOTOS D.R.

Fontes: “A guerrilha do Remexido”, de António Monteiro Cardoso e António do Canto Machado” (edições Europa América) e “O Remechido, glória e morte de um mito”, de J. C. Vilhena Mesquita (edição C.M.de Loulé); outras.

ESPAÇO AGECAL

Programar – o quê e para quem? JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

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sociologia da cultura e das artes permitiria realizar diagnósticos das dinâmicas culturais em Portugal, caracterizar as formas organizativas e actividades dos profissionais das áreas culturais. No âmbito da economia da cultura verifica-se uma enorme carência de estudos fundamentados sobre a realidade nacional e regional, também sobre o tecido socioprofissional. Entre as dezenas de profissões existentes na área de cultura (escritores, actores, cantores, artistas visuais, bibliotecários, editores, técnicos de conservação e restauro, cineastas, arqueólogos, documentalistas,…) surgiu nas últimas décadas do século XX em Portugal, sobretudo nos anos 90, consequência

da construção de infraestruturas culturais e de um conjunto de iniciativas de grande projecção, a actividade de “programador”. Sobre a programação artística ocorreu no final do último milénio uma tentativa de reflexão e questionamento da profissão envolvendo muitas dezenas de profissionais do sector público, privado e associativo ligados às artes do espectáculo (teatro, dança, música, festivais,..), dos quais muitos eram também directores ou responsáveis por estruturas artísticas profissionais. Era desígnio do movimento a criação de uma Associação Portuguesa de Programadores, iniciativa vista com interesse pelo Ministério da Cultura / Instituto Português das Artes do Espectáculo - IPAE que esteve presente nas reuniões gerais realizadas em Montemor-o-Novo, Guimarães e Lisboa. A figura do programador institucional sur-

giu por necessidade conjuntural, através de convite a especialistas e decisão da administração. A existência formal ou legal da profissão, permitiria estabelecer as condições de acesso, académicas, de formação profissional ou de experiências, sobretudo para as actividades regulares. Nas estruturas actuais, salvo raras excepções, são estruturalmente reduzidas na sua composição, a mesma pessoa desenvolve várias funções, incluindo a de programador. É frequente nas pequenas estruturas, que são a maioria, que directores sejam também programadores, encenadores e até actores. No mundo das artes existem genericamente dois grandes grupos profissionais: os criadores e os mediadores (curadores/comissários, directores, galeristas, programadores de teatros e centros culturais, …). Outras profissões técnicas participam no processo

ligadas à realização, produtores, divulgadores, técnicos de som e luzes, vídeoplastas, cenógrafos, monitores de serviço educativo, assistentes de sala… A mediação ocorre numa primeira fase entre o(s) programador(es) que propõem, com critérios e razões que deverão ser explicitadas, e a administração que decide sobre a sua realização, orçamentos e meios a envolver. A mediação do programa dirige-se a cidadãos/públicos, com objectivos diferenciados consoante se trate de áreas geridas com recursos públicos, que neste caso se deverão centrar prioritariamente na democratização do acesso, no desenvolvimento educativo e cultural, ou de iniciativa das indústrias culturais privadas ligadas aos mercados, à promoção dos produtos culturais com retorno nos sistemas de venda e bilheteiras. Estes dois sistemas mediadores podem e devem articular-se sem adulterar a natureza de cada um. Como em todas as actividades a programação não é neutra, pela análise atenta

apercebemo-nos dos objectivos, das prioridades sociais, da coerência das linhas programáticas, dos meios envolvidos. A avaliação dos objectivos propostos e das actividades concretizadas são elementos insubstituíveis, introduzem a monitorização de resultados e eventuais desvios, de ponderação para melhoria ou substituição. O que se programa? Para quem? À volta destas questões encontra-se o fundamento e equilíbrio da programação, a sociedade é heterogénea na sua composição etária, género, escolaridade, residência, emprego, interesses culturais e educativos… Não há “o público” mas públicos diversos. No Algarve, “Faro-2005 Capital Nacional da Cultura” foi uma experiência importante, provavelmente única na região, porque se constituiu uma equipa de programação, com especialistas para as artes visuais, dança e novo circo, teatro, música, cinema e literatura, que se reuniam e trabalharam conjuntamente na permuta de informações e colaborações.


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HISTÓRIA DA FOTOGRAFIA NO ALGARVE

Os Ateliers photographicos Silva Nogueira & Irmão no Algarve CARLOS ALBERTO OSÓRIO Docente do Ensino Secundário Mestre em Produção, Edição e Comunicação de Conteúdos

Manuel António da Silva Nogueira (1863-?)

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om cerca de 23 anos de idade, M. A. Silva Nogueira, nome pelo qual ficará conhecido enquanto fotógrafo de estúdio, e o seu irmão mais novo, Joaquim da Silva Nogueira, vão iniciar-se na fotografia na Travessa dos Sete Cantos, em Santarém, e abrir ateliers noutras cidades, tais como Nazaré, Caldas da Rainha e Faro, no Largo da Conceição, n.º 6. Estes estúdios com maior atividade nas épocas estivais, também permitem que, sobretudo no Algarve, os dois irmãos sejam fotógrafos excursionistas, deslocando-se sazonalmente por curtos períodos a Lagos, Vila Nova de Portimão, Silves, Loulé, Tavira, Olhão e Vila Real de St. António para realizar o seu trabalho fotográfico, instalando-se, com estúdios improvisados, em pequenos hotéis, quartéis e outros espaços arrendados para o efeito. Nos vários anúncios que faz publicar nos jornais da época, destaca a utilização de máquinas que pertenceram ao famoso fotógrafo da Golegã, Carlos Relvas, e no verso dos cartões de visita, imprime a distinção de ser fotógrafo de “Suas Majestades”. Num interessante artigo de Francisco Serra publicado na Revista O Occidente, em 1904, podemos claramente perceber o gosto que Silva Nogueira tinha pelo Algarve e a admiração que os algarvios tinham pelo seu trabalho: “Ainda hoje, apesar do seu atelier em Lisboa lhe tomar grande parte do tempo, nas suas curtas visitas áquella província, onde é sempre anciosamente esperado, se vê quanto

o estimam e apreciam. E por tal forma o fazem, e tão radicado o seu nome está nesta província, que nem o Algarve o esquece, nem o habilíssimo artista esquecerá o Algarve. Assim o cremos, porque nem outra coisa é de esperar dos que, como elle sabem ser gratos”, lê-se no artigo. É igualmente conhecida a amizade existente entre ele e José Maria dos Santos, o proprietário da Tipografia Burocrática de Tavira.

anuncia mais uma excursão artística pelo Algarve, iniciando-se por Vila Real de Santo António. “Apresentará as maiores novidades e difficuldades dest' arte com as quaes grande parte dos seus collegas não poderão competir”. Explica nos anúncios que “Os trabalhos com que for honrado irá concluí-los ao seu atelier de Santarém enviando-os pelo correio”. Nos jornais destaca os “retratos a Crayon”, dizendo ser o artista que mais se tem salientado no género e garantindo a mais completa semelhança.”. Em Abril de 1900, José Maria dos Santos, o editor do Jornal de Anúncios, publica uma notícia na qual nos elucida sobre o seu auxílio a este fotógrafo, tornado entretanto seu amigo, no modo de proceder itinerante: “As famílias que desejarem utilizar-se dos seus trabalhos photographicos, podem fazer a competente indicação no nosso estabelecimento, na Praça N° 10, afim de lhe fazermos o competente aviso da chegada e local que nos encarregamos de lhe arranjar”. Na semana seguinte, uma segunda notícia refere a grande afluência registada: “Apraz nos saber isto, porque assim a nossa elite lhe provará, que não tem tido razão, em ter operado em todas as principais terras do Algarve, menos em Tavira”.

Joaquim António da Silva Nogueira (1865-?) Sabemos que Manuel António da Silva Nogueira e o seu irmão Joaquim António da Silva Nogueira se instalam em Faro, a partir de 1893. Em 27 de Abril desse ano, no Jornal de Anúncios (Tavira) de José Maria dos Santos, anuncia que será visita recorrente por longos anos no Algarve, incluindo a cidade de Tavira, onde abre uma sucursal do seu atelier denominado Sociedade Photographica no Quintal do Theatro (antigo Teatro Tavirense). Naquele periódico anuncia que se executam “todos os trabalhos por mais difficeis que sejam e em todos os formatos desde miniatura a natural, por preços relativamente baratos”. Ao percorrermos os anúncios que vai publicando ao longo dos anos, percebemos a verdadeira ascensão do seu negócio fotográfico. Em 1895, M. A. Silva Nogueira, já se denominando “conhecido photographo de Santarém”,

As notícias sobre M. A. Silva Nogueira continuam na primeira semana de Maio, desta vez sobre fotografias sobre vistas da cidade: “(...) Em consequência do mau tempo, não operou numas vistas que desejava tirar de diferentes pontos da cidade, e por isso volta domingo a ver se consegue os seus desejos.” Tudo leva a crer que os postais com vistas de Tavira vendidos posteriormente na Tabacaria Santos e anunciados no próprio jornal de José Maria dos Santos, serão da sua autoria.

Uma foto de republicanos em Loulé, em 1910 No periódico O Povo Algarvio, de junho de 1910, um artigo descreve o momento que sucedeu à brilhante actuação

em tribunal do prestigiado advogado Alexandre Braga (1871-1921), na defesa do seu correlegionário, Paulo Madeira, então diretor daquele jornal, acusado de se ter envolvido numa quezília com um sacerdote. Informa o artigo que: "Terminada a improvisada oração seguiu S. Ex.ª sempre acompanhado pela multidão para o atelier photographico do nosso amigo Silva Nogueira, que lhe tirou uma photographia em grupo com alguns correligionários d'aqui.” Esta fotografia, datada de 6 de junho de 1910, para além de ilustrar a vinda do ilustre causídico a Loulé, constitui um admirável documento sobre as figuras proeminentes da causa republicana em Loulé. De notar que no cartão que suporta a fotografia surge o nome Joaquim Nogueira, o que nos leva a considerar não poder ter sido o seu irmão, Manuel António da Silva Nogueira, a fotografar. Em 1906, venceu o 5.º Prémio com o retrato de uma “montanheira dos arredores de Loulé”, promovido pela Ilustração Portuguesa. É muito provável que Joaquim Nogueira se tenha mantido mais tempo no Algarve que o seu irmão, embora não tenha encontrado evidências consistentes. Da união de Manuel António da Silva Nogueira com Maria da Piedade Rel-

vas, nasceu em 1892, no dia 2 de janeiro, Joaquim da Silva Nogueira, vindo a falecer em Lisboa, no dia 25 de março de 1959. Casou primeiro com Severina Quintãs da Silva Nogueira e dois anos antes, em 1957, com Maria Helena Bastos de Jesus. No seu longo percurso profissional de cerca de 50 anos, torna-se o fotógrafo preferido das vedetas de teatro e cinema e é proprietário desde 1920 da Fotografia Brasil, situada na rua da Escola Politécnica, número 14, em Lisboa. Este importante fotógrafo é muitas vezes confundido com o seu tio e padrinho, na medida em que tem o mesmo nome, com o seu pai, pela igualdade dos dois apelidos e, por último, pela comum atividade artística e profissional, que todos apaixonadamente desenvolveram. Entre 1928 e 1935 foi colaborador assíduo com retratos de artistas do semanário O Notícias Ilustrado. Foi igualmente colaborador artístico da revista Teatro Magazine, Ilustração Portuguesa, ABC e De Teatro, Revista de Teatro e Música, nos anos 20 e 30. São conhecidas os retratos que fez de Oliveira Salazar, tendo um deles lugar de culto nas salas de aulas da escolas primárias do país, bem como as célebres fotografias de estúdio que fez da fadista Amália Rodrigues e da cantora silvense Corina Freira.

Joaquim Silva Nogueira (1892-1959)


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LETRAS & LEITURAS

Quartos de Final e Outras Histórias, de Cláudia Andrade assim, o frémito indomável de se replicar, sempre pronta na Universidade do Algarve a «fazer um outro morto para Investigador do CLEPUL nascer dali a nove meses, com um crédito de mil anos para se desiludir com a existência» (p. 50). Mas, um pouco ao jeito do realismo mágico e de um certo láudia Andrade, autora pós-expressionismo pictórico, publicada pela Elsinore – o mundo, como a vida que nele editora que discretamente pulula, pode também revelartem vindo a apostar em -se um prodígio, onde até os autores inéditos, novas objectos quotidianos podem vozes literárias no panorama liteperder a sua domesticidade, rário português numa prosa singular «removida a patina de quoticom assinatura de estilo –, venceu redianidade», ganhando vida centemente o Prémio Autores 2020 própria e «interesse novo ao da Sociedade Portuguesa de Autores olhar» (p. 117). Até a vida pode na categoria de Melhor Livro de Ficção ganhar ambiência fantasmátiNarrativa, com o seu Quartos de Final ca, como acontece no funeral e Outras Histórias. Já aqui se escreveu de «As Mãos»: «A natureza a propósito do seu primeiro romance, esmerava-se em participar no Caronte à Espera, recenseado no Cultura. “Quartos de Final e Outras Histórias”, de Cláudia espírito da coisa: o dia estava frio, Sul de Julho deste ano. Mas compete-nos Andrade, venceu o Prémio Autores 2020 para pálido e pétreo. Assim que o coragora traçar o furor causado pelo seu li- Melhor Livro de Ficção Narrativa FOTOS D.R. tejo começou, uma névoa leitosa vro de contos, publicado em Setembro de começou por mover-se rente ao 2019, considerado um dos melhores livros do dor de viúvas e que depois de ter provado chão, apagando as pernas e dando a todos ano pela crítica. um menino por acidente, decide agarrar a impressão de que flutuavam. A certa alO romance Caronte à Espera é capaz de um anjo; um poeta que leva uma vida sem tura, a névoa subiu, esfumando as arestas deixar o leitor tão agarrado quanto descon- máculas nem pecados e por isso decide rees- das coisas, depois adensou-se e submergiu certado, mas convém esclarecer que o livro crever com algum acto incauto a sua futura tudo.» (p. 94) de contos Quartos de Final e Outras Histó- biografia, para que não seja demasiado sen- Pode ler-se em «O Exilado» como «o escririas é-lhe superior, ainda que os una essa saborona. Estas personagens e situações tor» «pegava nessa coisa insossa e informe mesma prosa burilada cujas frases se dis- têm, entre si, muito pouco em comum, mas que era a vida e a decantava no laboratório tendem e emaranham, ao jeito das acções compõem indubitavelmente um universo da memória, do raciocínio e da boa vontadas próprias personagens, tão complexas e tão insólito quanto fracturante numa ficção de poética, para conseguir sentir um amor enigmáticas quanto marginalmente desam- que rasga o véu da vida, essa «marcha ridi- às coisas que seria impossível enquanto paradas. Estas 18 histórias distendem-se ora culamente longa» (p. 108), e abala qualquer confrontado com elas, para delas consenum sopro de 3 páginas, ora em 20 páginas, desejo de conforto num leitor que procure guir espremer então qualquer coisa sobre como é o caso de «O Exilado», o conto mais nestes contos uma prosa fácil, delico-doce, a qual valesse a pena escrever» (p. 113). extenso desta colectânea. O primeiro conto, que embeleze a vida, nalgum compasso de São particularmente curiosos os contos que dá nome ao livro, conta-nos a história de espero de fuga ao mundo. A escrita desta desta compilação que mais se debruçam uma noiva desesperada, no dia do casamen- autora coloca o dedo na ferida, num mundo sobre a arte da escrita, em que pode o leitor to, por chamar a atenção do seu noivo, mais muito pouco tranquilizador, descrito, a dada querer deslindar uma explicação possível preocupado com ver os quartos de final do altura, como um «grotesco circo» (p. 61), para o espírito que anima estas páginas, campeonato de futebol, até que decide en- capaz de suscitar revolta «contra a natureza como em «Requerimento» onde se pode trar numa das casas-de-banho com um dos das coisas. Não há nada de claro ou justifi- ler como o autor dessa carta «inadvertida e empregados. Sabemos que a noiva traz con- cado nesta trapalhice universal, nenhuma compulsivamente» levou a tarefa de pensar sigo uma lâmina com a qual se corta, mas coordenada» (p. 62), sendo «aquele outro «demasiado a sério e, à custa de observar, não nos é inteiramente revelado como no inferno, tão redundante em relação a este» ponderar e coleccionar tanto e tão cirdesfecho dessa história o casamento acaba (p. 64). E nesse inferno que é o quotidiano, cunstanciado absurdo, matéria-prima do em sangue. E assim, logo na primeira his- o insólito anda a par e passo do absurdo da mundo, tomei amor ao desalento e arruinei tória deste livro, o leitor é deixado no fio da existência humana, entre homens que esfa- a minha alegria para sempre» (p. 60). Ponavalha, enquanto nele se sucedem momen- celam anjos e viúvas que ocupam as mãos díamos até rematar que a prosa de Cláudia tos de vida de protagonistas tão díspares para evitar serem visitadas pelo fantasma Andrade entra no panteão dos «escritores quanto excluídos. A existência murcha do marido. merecedores desse epíteto» que «deambuladestas personagens apenas parece palpitar ram por ruelas escuras em sofrimento pelas fugazmente com vida quando dilaceradas suas obras, esfolaram os narizes contra as A prosa de por certas pulsões, viscerais como o sexo, paredes da labiríntica e incerta intuição liCláudia Andrade intensas como a paixão, capazes de toldar terária. Era uma obra sólida, a sua, densa e entra no panteão de vermelho «o seu interior» (p. 119), num trapalhona como a vida» (p. 117). dos «escritores mosaico de histórias quase sempre desconCláudia Andrade nasceu em Lisboa. Aumerecedores certantes: uma prostituta que recebe num tora ainda do livro de contos Elogio da desse epíteto» sofá na berma de uma estrada e se liberta Infertilidade, vencedor do Prémio Ferreira ao salvar uma cadela abandonada; uma mode Castro 2017 (sob o pseudónimo que lhe ribunda que da cama, no prenúncio do seu A existência, para a qual somos catapulta- era habitual de Vitória F., entretanto abanestertor final, lança diatribes reveladoras dos, arrancados «a um muito confortável donado), considera-se sobretudo contista, dos mais infames segredos das mulheres nada», é, afinal, uma «camarazinha de embora esteja a trabalhar num segundo que em seu redor oram por ela; um viola- horrores» (p. 129), onde a vida tem, ainda romance.

Mumtazz, de Alexandra Lucas Coelho

PAULO SERRA Doutorado em Literatura

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O novo romance de Alexandra Lucas Coelho eterniza a artista plástica portuguesa Mumtazz, que morreu em junho do ano passado FOTOS D.R. Mumtazz, de Alexandra Lucas Coelho (agraciada com o Grande Prémio de Literatura de Viagens da APE por Cinco Voltas na Bahia e um Beijo para Caetano Veloso), foi publicado pela Caminho. A autora-jornalista-repórter-editora-cronista é convidada por Mumtazz a ver «a sua primeira grande exposição, talvez escrever sobre ela». Ficou para «outra vez» que não chegou em vida... Mumtazz morrerá pouco depois, aos 49, com um cancro no colo do útero, e é cremada em Lisboa, «coberta de flores, entre próximos e poemas». A primeira versão do texto deste livro será escrito para um «encontro-performance», a convite do curador da exposição, num tributo a Mumtazz, mulher com nome de lenda e vida de estória que «escolheu ser quem queria». Ambas nasceram em Dezembro com 3 anos de diferença. Conheciam-se há mais de 20 anos. E da mesma forma que o Taj Mahal é o túmulo da Mumtaz Mahal persa, este livro-tributo eterniza Mumtazz, artista portuguesa «quase secreta», «grande construtora de chapéus» que, ao jeito pós-moderno, começa a

sua arte recriando-se a si mesma, como quando muda de nome: «Como as colagens, essa espécie de cinema, montagem, edição: magia a operar, surf num material passado». Este livro, na senda da homenageada Mumtazz, é «arte do movimento, desenho-escrita-mão», como acontece com um itinerário num mapa que, esbatendo fronteiras e continentes, se torna uma linha traçada a vermelho (que figurará na capa): «E no branco que tudo recomeça, onde terras e mares já são só a memória de um vinco no papel, galoparíamos enfim, livres.» Essa Rota da Seda, hoje cheia de senhores da guerra, de «desertos milenares metidos em sacos» para proteger milhares de militares americanos. Território que a América pretende dominar, apesar de o Afeganistão a anteceder em 5 séculos. Porque este é também um livro sobre doenças globais, como a poluição que ameaça as fundações do Taj Mahal e o mármore que escurece das chuvas ácidas. Sobre as mil e uma noites da «violência de género contínua», onde as raparigas engravidam mal saem da infância.


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