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Novembro de 2013 Edição nº 1

Rezadores do Cariri

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Revista Caracteres


Carta ao Leitor

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Laboratório de Jornalismo Impresso lança o primeiro número de sua revista. A publicação foi amplamente discutida entre os estudantes – desde a escolha do nome, linha editorial, pautas, fontes, apuração, imagens e texto de revista. A denominação “Caracteres” - surgiu a partir do atual significado da palavra no domínio da tipografia e da informática – letras, tipos e sinais e, aos poucos, a revista foi se formatando, dentro dos gêneros discursivos do jornalismo – afirmativo, opinativo e interpretativo. O investimento, principalmente, na reportagem é um fator presente nessa primeira edição. Os estudantes, a partir dos acontecimentos selecionados, foram além da notícia – contextualização, interpretação e investigação. A arte da entrevista foi outro tema debatido. A revista é o espaço priviligiado para a publicação da entrevista – um texto jornalístico extenso, apresentado em sequência de perguntas e respostas, marcados pela ideia do diálogo. O principal traço desse primeiro número da “Caracteres” é a revelação da riqueza e da multiplicidade de personagens do Cariri. Fotos e textos narram diversas histórias, muitas delas singulares. A matéria de capa mostra os rezadores do Cariri. Uma prática antiga, ancestral, mas muito presente entre nós. A medicina popular, através de rezas e plantas medicinais, está inserida no imaginário de boa parte da população num misto de fé e cura do corpo e da alma. Um vendedor de suco com os mais exóticos sabores - macaúba, cerveja, chicletes - faz sucesso pelas principais ruas de Juazeiro do Norte, Barbalha e Crato. Com uma bicicleta adaptada, José Muniz do Nascimento, comercializa diariamente 44 li-

tros de sucos e cerca de cem lanches. A clientela é vasta e diferenciada. O negócio vai tão bem que o pequeno comerciante já pensa em abrir uma lanchonete. Jaime Rodrigues mantém uma fábrica de mosaicos e ladrilhos hidráulicos em Barbalha. Sua história se confunde com a originalidade das suas peças. Desde os 17 anos, seu Jaime trabalha em fábrica de ladrilhos. Hoje, aos 72, ele se orgulha da sua criação. As formas e cores das peças encantam em painéis de lojas, pisos de casas ou espalhadas no chão das cidades do Cariri. Em Santana encontramos a renda feita a partir de bilros. Um grupo de mulheres criam verdadeiras obras de arte por meio da renda - tradição secular que passa de geração a geração. Diferente das rendas confeccionadas nas regiões litorâneas do Nordeste, as artesãs santanenses produzem peças com linhas mais grossas, próprias para crochê. As produções realizadas pelas artesãs do Projeto Bilro são totalmente coletivas, já que a confecção das peças requer um processo demorado e minucioso. Francisco Silva, o Foguinho, tem uma história especial como narrador esportivo. Ele cobriu sete Copas do Mundo, quatro Mundiais de Clubes no Japão; 22 Copas América; 26 jogos eliminatórios da Copa do Mundo e 68 decisões de estaduais. Confira a história desse gigante do rádio caririense na entrevista dessa edição da Caracteres. São vários olhares sobre o Cariri e seus personagens. Modos de vida e de conhecimento que, apesar de tempos de globalização, somente uma região tão rica pode oferecer. Boa leitura. José Anderson Freire Sandes Professor Orientador


Expediente Textos Alana Soares Antônio Rodrigues Cícero Dantas Clara Karimai Hewerton Henrique Jessica Pinheiro Joelson Santos Marciano Palácio Raquel Alves

Ano 2 | Edição 1 Juazeiro do Norte, Novembro 2013

Revista experimental da disciplina de Laboratório de Jornalismo Impresso do Curso de Jornalismo Universidade Federal do Cariri - UFCA Professores Orientadores José Anderson Freire Sandes Juliana Lotif Projeto gráfico e diagramação Hanna França Menezes Revisão Priscila Luz Fotografia Rodrigo Carvalho


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06 Tecendo bilros: as rendeiras do Cariri 10 O homem que virou suco 14 Arte em papel 18 Foguinho: o cronista do futebol 24 Rezadores do Padre Cícero 30 O chão de Jaime 36 Quinze anos de lixão 42 Linhas, agulhas e botões: histórias de costureiras 48 Universo ufológico na série “Arquivo X”

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Tecendo bilros

AS RENDEIRAS DO CARIRI Texto e Fotos Cícero Dantas

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colorido das linhas aos poucos vai ganhando forma nas mãos ágeis de senhoras e jovens espalhadas pelo sertão nordestino, que continuam a criar verdadeiras obras de arte por meio da renda. Uma tradição secular que passou de geração em geração, permanecendo viva em Santana do Cariri, cidade localizada aos pés da Chapada do Araripe, no Cariri cearense, com pouco mais de 17 mil habitantes, a 550 km da capital, Fortaleza. A renda de bilro surgiu no século XV na Europa, principalmente na Bélgica, França e Itália. Na época, apenas a alta classe tinha o direito de adquirir as delicadas peças de renda. O bilro chegou em solo tupiniquim apenas no século XVIII por meio de imigrantes portugueses. Segundo historiadores, a arte era praticada pelas esposas dos portugueses que repassaram a técnica para as suas escravas. E foi por meio de imigrantes portugueses que a renda de bilro chegou a Santana do Cariri. A tradição começou pelas mãos da cearense Vicência Lacerda. Ela aprendeu a arte da tecelagem na Paraíba, na década de 1950, com os imigrantes. Levou a técnica para seu estado e ensinou sua filha Cesarina Lacerda, que futuramente seria uma das percursoras da renda de bilro em Santana do Cariri. A partir da década de 1970, Cesarina passou a ministrar um curso de renda, com o objetivo de difundir a arte na cidade. Entre os participantes do curso estava sua filha

Luíza Lacerda, hoje uma das coordenadoras da ação que mantém viva essa tradição, o Projeto Bilro. Atualmente, o projeto é composto por nove mulheres, todas naturais. As rendeiras do Projeto Bilro Agricultoras, donas de casa, estudantes, jovens e senhoras. Esse é o perfil das mulheres que integram o Projeto Bilro de Santana do Cariri. Teve início em junho de 2009, por iniciativa de Maria Eliane, secretária de Assistência Social do município na época, que incentivou a formação de um grupo de mulheres rendeiras que já trabalhavam com a renda desde 2006 sob a coordenação de Luíza Lacerda. “Esse artesanato estava adormecido na cidade, e o projeto veio dar vida novamente a essa arte”, comentou Luíza. Com o Bilro, o objetivo foi manter viva a arte de tecer na cidade e difundi-la pela região do Cariri. Enquanto as linhas ganhavam forma sobre as almofadas nas mãos ágeis das rendeiras, a história de cada uma foi sendo contada. Toilza Cardoso, uma das mais experientes do grupo, está na equipe desde sua formação em 2009. Dona de casa e trabalhadora rural, Toilza comenta que pratica a renda pelo prazer a arte. “Eu aprendi a amar esse trabalho. É um trabalho que tira o estresse, que faz esquecermos os problemas de fora”, avaliou. Seguindo os passos de Cesarina, Toilza incentivou familiares a praticar a tecelagem de renda. Seu esforço foi recompensando. Hoje, mãe

‘‘As produções realizadas

pelas artesãs do Projeto Bilro são totalmente coletivas, já que a confecção das peças requer um processo demorado e minucioso”


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Além da tradicional rede, as artesãs produzem peças como bolsas, toalhas, almofadas e cachecóis

e filha dividem o mesmo espaço e contribuem para manutenção dessa tradição. “Todas as minhas meninas sabem fazer. Até meu menino sabe! Sou feliz em saber que estou contribuindo de alguma forma para manter viva essa tradição”, afirmou Toilza. Keila, 18, estudante, filha da Toilza, trabalha com a renda desde os 11 anos. “Aprendi a fazer a renda de bilro com minha mãe. Fizemos um curso e o que não aprendi lá, minha mãe me ensinou”, revelou a jovem, enquanto tecia. Uma arte singular Hobby, distração, arte, trabalho e tradição são algumas das definições das próprias rendeiras para a renda de bilro. Mas todas têm em comum o mesmo objetivo: manter viva a tradição na cidade, tornando-se disseminadoras dessa arte. O esforço das artesãs deu resultado. Nilza, agente comunitária de saúde, aproveitou as férias do seu trabalho para aprender o ofício da tecelagem. “É um trabalho muito bonito e diferente do que temos na região, sempre tive a curiosidade de aprender, e agora, as meninas estão me ensinado”, comentou. Outra estreante é Cristina, com apenas dois meses no grupo, se encantou ao ver a renda pela primeira vez. “Sempre observei as garotas, me encantei pela arte e resolvi então praticar”, concluiu. Assim, com a constante relação entre passado e presente, o Projeto Bilro visa manter viva a arte di8

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fundida por Cesarina décadas atrás. “Quando fazemos um trabalho por amor ou porque gostamos, tudo fica mais fácil. É um prazer concluir um trabalho, mostrar nosso trabalho para outras pessoas. E quando vemos que outras pessoas gostaram do que fazemos aqui, nos sentimos realizadas”, conclui Toilza. Sentadas próximas às almofadas, preenchidas com palha de bananeira, movendo rapidamente as peças de bilro, transformando as linhas em peças desenháveis sob o papelão com seus inúmeros espinhos de mandacaru (que substituem o papel dos alfinetes), as rendeiras santanenses vão assim, tecendo mais uma de suas criações. É no manejar dos bilros que Toilza explica como é produzida a renda de Santana do Cariri. Diferente das confeccionadas nas regiões litorâneas do país, mais leves e maleáveis, as artesãs santanenses produzem suas rendas com linhas mais grossas, próprias para crochê, tornando-as mais pesadas. Outra diferença está no desenho impresso através do bordado. “A renda do litoral é desenhada, diferente da nossa renda, que é quadriculada ou retangular”, explica Toilza. Por não utilizar um papelão desenhado como as demais rendas, e sim um papelão quadricular, as rendeiras do Projeto Bilro não limitam o tamanho de suas peças. Permitindo assim, aproveitar o material utilizado em determinada peça para produção de outra. “Tudo é aproveitado!”, enfatizou Toilza.

O grupo vem buscando qualificar e aperfeiçoar seu artesanato. Hoje, além da tradicional rede, produzem peças como bolsas, toalhas, almofadas e até cachecóis, os últimos exportados para o sul do país. Um trabalho demorado e minucioso, produzido por mulheres que amam e sentem prazer no que fazem. “Eu amo fazer renda! Amo estar aqui com as meninas. Ao fazer a renda esqueço os problemas da vida. É prazeroso saber que estou dando continuidade a uma tradição que aprendi com a minha mãe anos atrás”, revelou Luíza. Trabalho Coletivo As produções realizadas pelas artesãs do Projeto Bilro são totalmente coletivas, já que a confecção das peças requer um processo demorado e minucioso. Uma rede toda feita de renda, por exemplo, leva cerca de quatro meses para ficar pronta. “Realizamos um trabalho de grupo. Enquanto estou fazendo as bordas da rede, outra está fazendo a varanda ou torcendo os cordões, outra fica responsável para comprar o material. Realizamos a divisão do trabalho para concluir a peça o mais rápido possível”, explica Toilza. Além da divisão do trabalho, o lucro das vendas também é dividido entre as produtoras da peça. “Dividimos o trabalho, dividimos o lucro”, conta Toilza. Apesar da cooperação entre as integrantes do Projeto, o retorno financeiro não é compensador. A peça mais cara confeccionada por


‘‘O grupo vem buscando

qualificar e aperfeiçoar seu artesanato. Hoje, além da tradicional rede, produze peças como bolsas, toalhas, almofadas e até cachecóis, os últimos exportados para o sul do país”

elas gira em torno de R$ 1000,00, valor referente à rede de linha. O valor da venda é dividido entre as rendeiras. Se levarmos em conta que três rendeiras participem da produção de uma peça no valor de mil reais, cada uma ganharia pouco mais de R$ 333,00, ou seja, menos da metade de um salário mínimo obtido em 4 meses de trabalho. Assim como o processo de confecção pode levar meses para ser finalizado, o lucro também demora a chegar. “As peças muitas vezes não são vendáveis por serem caras, não é algo acessível ao bolso de muitas pessoas”, relata Toilza. Apesar da dificuldade nas vendagens, o amor pela renda sempre fala mais alto. “Não trabalhamos pelo dinheiro e sim para manter a tradição”, finaliza. Apesar da importância e do reconhecimento da renda de bilro santanense em eventos nacionais e estaduais, como os realizados pelo Centro de Artesanato do Ceará (CEART), a arte não é valorizada pelo governo municipal. Inicialmente o projeto funcionava na Casa Grande – construída no século XIX. Era a casa do Coronel Felinto da Cruz, ex-prefeito de Santana, onde atualmente funciona a biblioteca municipal –, segundo as rendeiras, lá elas tinham mais visibilidade. “Quando estávamos na Casa Grande recebíamos muitos turistas. Era um ponto estratégico, o pessoal ia visitar o local e

Desde de 2009 no projeto, Toilza mostra o cachecol criado pelas rendeiras que será exportado para o Sul do país

acabava conhecendo o nosso artesanato também”, relata Luíza. Ao saírem da Casa Grande, o grupo pretendia se desfazer, no entanto, foi acolhido pela ONG Instituto Karius, que desde 2009 realiza projetos voltados para cultura, educação e meio ambiente. Atualmente o grupo está funcionando na sede do Instituto. “Agradecemos essa ajuda da instituição, porque se não fossem eles estaríamos em casa”, conta Luíza. Além de ceder o espaço, a ONG contribui também com a compra de materiais e com a divulgação do projeto, afirma Cristina Silva, conselheira fiscal do Instituto Karius. Para apoiar o trabalho das rendeiras santanenses, o projeto foi contemplado pela Rede Artesol, por meio do Projeto Empreendedorismo e Comércio Justo na Atividade Artesanal no Brasil, que objetiva contribuir para a melhoria das condições

de trabalho dos artesãos, bem como inserir seus produtos no mercado. Dessa forma, as rendas do Projeto Bilro serão vendidas pela internet por meio de leilões. “A expectativa é que a produção e o lucro das rendeiras santanenses possam aumentar”, relata Cristina. Já para Toilza, essa é uma oportunidade para que a tradição permaneça viva, “infelizmente a renda (bilro) não dá o sustento da nossa família, mas com essa ajuda, podemos continuar com os trabalhos, para não deixar que a renda de bilro morra. Não queremos isso!”, enfatizou.]

Serviço Projeto Bilro: Rua Doutor José Augusto, S/N. Bairro: Centro, Santana do Cariri – CE Telefone: (88) 96090142 Novembro | 2013 9


O homem que

VIROU SUCO Texto Jessica Pinheiro

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ocê possivelmente já encontrou Muniz pelas ruas de Juazeiro do Norte, Crato ou Barbalha. O comerciante, sempre acompanhado de sua fiel bicicleta azul, percorre as ruas do triângulo CraJuBar vendendo lanches e o seu famoso Suco do Muniz. Por onde passa é cumprimentado por transeuntes ou recebe um alô. Sua simpatia e seus sucos de sabores diferentes conquistam a mais variada clientela. O vendedor faz, prepara, vende e comercializa cerca de cem lanches por dia. Vende cinquenta pela manhã e mais cinquenta à tarde. Ele também produz 24 litros de sucos para comercializar no período da manhã e mais 24 litros para vender à tarde. Muniz garante que vive muito bem com o lucro de suas vendas, chegando a arrecadar em média sete mil reais por mês. Para o futuro, ele faz planos de comprar um prédio no Bairro Universitário e montar um ponto comercial fixo. Muniz não pretende parar de vender os seus produtos: “Vai ser o bairro mais desenvolvido de Juazeiro do Norte e o Suco do Muniz vai estar lá”. Infância de muito trabalho José Muniz do Nascimento começou a manifestar seu espírito empreendedor ainda na infância, com apenas sete anos de idade. Nascido em Juazeiro do Norte, no Cariri cearense, o pequeno Muniz ganhava dez cruzeiros de seu pai e comprava quantas rapaduras pudesse. Então derretia o doce e o transformava em mel, dobrando a quantia inicial do seu investimento. Ele também vendia frutas: “Num instante eu transformava em dinheiro,” afirma orgulhoso. Com oito anos, ele começou a trabalhar em uma padaria, vendendo os pães nas ruas. Com doze anos, um tio lhe arranjou um emprego como gari da prefeitura. O adolescente Muniz passou

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dois anos limpando as ruas de Juazeiro do Norte, até ser demitido com a justificativa de que era demasiado novo para exercer aquela função. O início Sem desanimar, Muniz sentiu sua veia de empresário falar mais alto naquele momento: “Consegui juntar uma pequena quantia em dinheiro nessa época e comprei de pão, enchi algumas garrafas pet com suco e saí para vender”. Logo conseguiu comprar um refrigerador. No final da década de 1990, ele decidiu abrir sua própria empresa, o “Suco do Muniz”. O empreendimento é todo legalizado e possui CNPJ. Continuou investindo na expansão do seu negócio e hoje segue um padrão industrial para a produção do lanche. Negócio de sucesso Muniz fabrica sucos de sabores diferenciados. Ele conta que a vontade de vender a bebida começou ainda na infância, na época da escola: “Eu me lembro até hoje quando eu comia aquele mingau gostoso no colégio, com sabor de chiclete. E fiquei com aquilo na cabeça: quando eu crescer, se eu for vender comida, vou fazer um sabor parecido com esse mingau”. Hoje, o suco de chiclete é um dos carros-chefes da empresa. Outro suco que também é sucesso de vendas é o de cerveja. É feito a partir do abacaxi e ao contrário do que o nome sugere, não leva álcool na sua receita. Ele garante que não há adição de nenhuma outra substância: “Eu consigo manipular o abacaxi de forma a trazer o gosto da cerveja para o suco”. Muniz garante agradar o paladar dos clientes. Ele cita o exemplo de uma de suas freguesas, que jurava odiar o suco da goiaba, porém mudou de opinião depois de provar o Suco do Muniz: “Os sucos dos concorrentes é tudo uma coisa só, feito de um só jeito. o segredo é inovar”.

José Muniz serve sucos de sabores diferentes e co

Os clientes inspiram o empresário na criação de sucos. Muniz se aproveita das brincadeiras dos fregueses sobre sucos então ditos impossíveis de se fazer: “Tem suco de macaúba?” - os clientes brincavam. “Não tem ainda, mas esperem que terá.” Três anos depois o suco de macaúba estava nas ruas e rapidamente alcançou o sucesso. Para criar um novo sabor, muito estudo, tentativas e erros. Aperfeiçoar os sucos é uma tarefa que demanda tempo e paciência de Muniz. Ele conta com ajuda dos seus quatro irmãos. “A gente passa um bom tempo tomando o suco todo dia, experimentando e modificando até sair o produto perfeito”. Muniz dá aula de empreendedorismo a seus irmãos, tentando


“ Nunca irei abandonar o papercraft. Eu gosto muito do resultado que ele atinge”

onquista uma clientela cada vez mais fiel: “o segredo é inovar”

“Para criar um novo sabor, muito estudo, tentativas e erros. Aperfeiçoar os sucos é uma tarefa que demanda tempo e paciência de Muniz”

ensiná-los a andar com as próprias pernas e não depender de ninguém para o sustento. Ele faz de tudo para que entrem na universidade: “Se quiser dar um presente a uma pessoa, motive ela a estudar e expandir seus conhecimentos”. Estudos Diferentemente de muitos brasileiros sem oportunidades para crescer na vida, Muniz não desistiu dos estudos e reconhece a necessidade do conhecimento teórico para a prosperidade de seu negócio. Com muito empenho, ele consegue concluir o ensino médio em 2003, com vinte e três anos. Em 2007, o vendedor de sucos decide prestar vestibular na Universidade

Vale do Acaraú (UVA). O empresário conta que já apresentou seus sucos a um professor do CENTEC (Instituto Centro de Ensino Tecnológico) e foi convidado para ingressar na instituição como graduado, no curso de Tecnologia de Alimentos: “Ele disse que eu teria muita coisa para desenvolver lá dentro”. Em 2010 Muniz conclui o curso de Administração de Empresas. Hoje, aos trinta e três anos, ele acumula em seu currículo, além da formação superior, uma pós-graduação em Gestão Empresarial, e não pretende parar por aí. Em 2014 ele promete se inscrever para um iniciar um mestrado na Universidade Federal do Cariri (UFCA).]

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Arte em

PAPEL Texto Marciano Palácio

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esde muito cedo a paixão começara a aflorar. O gosto por desenhos animados apareceu quando ainda era criança. Não bastava apenas ter as miniaturas ou figuras de ação que faziam analogia aos personagens animados, era necessário também o processo de criação a partir de diferentes materiais. Forjar seus próprios métodos de representar seus heróis. À medida que crescia, João Eudes, estudante do curso de Artes Visuais da URCA, encontrou no papercraft uma alternativa para unir o seu gosto pessoal pelo universo geek e o método artístico da modelagem, com a utilização de um material ainda visto com descrédito por muitos: o papel. O papercraft ou pepakura é um método destinado à construção de objetos tridimensionais utilizando o papel, semelhante ao origami, que é a arte tradicional japonesa de dobrar o papel, criando representações de determinados seres ou objetos a partir de peças de papel, sem cortes ou colagem. No entanto, a distinção ocorre no processo. Enquanto o origami não permite alterações na peça de papel inicial, o papercraft é feito com vários pedaços de papel que são cortados com tesoura e fixados uns aos outros com cola, em vez de se suportarem individualmente. Com a crescente popularização da internet e a familiarização das pessoas com os computadores, o papercraft ganhou uma nova rou-

pagem, sendo possível encontrá-los facilmente no ambiente virtual. Existem vários sites que disponibilizam diferentes modelos para download gratuito com diversos personagens e ícones da cultura pop (www. nintendo-papercraft.com e www. cubee.com são exemplos), o que acaba fazendo com que a prática atinja um público amplo e diversificado. Alguns modelos podem ser facilmente impressos e montados, já outros requerem um pouco mais de dedicação e paciência para serem finalizados. João Eudes, também conhecido como Din, afirma que conheceu a definição do papercraft recentemente, mas que desde criança já realizava a prática, ainda que de forma bastante incipiente. “Fui pesquisar sobre isso e pensei: caramba! eu já fazia isso, sem saber! Quando eu era criança, vinham alguns modelos em revistas, eu recortava e montava. Foguetes, naves espaciais, eu sempre gostei muito disso”, afirma. Uma de suas pretensões é elevar o papercraft à categoria de arte, através da criação e divulgação de seus próprios modelos. “Atualmente, eu faço como hobby. Os que eu reproduzo são de outros autores. Mas eu ainda penso em utilizá-los como uma forma de arte a partir da construção dos meus modelos”, avalia. No início, ele não tinha muita noção de como dar um acabamento profissional ao trabalho que vinha desenvolvendo. O treino constante

“ É preciso se dedicar a uma coisa de cada vez. Eu penso sim em expandir a prática da modelagem para outros materiais, mas nunca irei abandonar o papercraft. Eu gosto muito do resultado que ele atinge”


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e o desenvolvimento de alternativas pessoais, como o uso de ferramentas específicas, para a montagem dos papercrafts auxiliaram no processo de amadurecimento da prática. “Com o tempo você vai se aperfeiçoando. Eu não gostei muito dos primeiros resultados, mas continuei praticando e desenvolvendo minhas próprias ferramentas para a montagem”, explica. O preconceito com a modalidade é evidente, muitas pessoas, inclusive alguns colecionadores, torcem o nariz por se tratar de figuras feitas de papel, no entanto, isso nunca foi problema para João Eudes. O jovem afirma que essa falsa ideia de que “por ser de papel, não é bom”, ainda é uma desvantagem. “Se você ver o resultado final que alguns podem atingir, você ficará surpreso com o que é possível criar com o papel. Muitas pessoas pensam que o papel é frágil , mas não tem nada disso. Se você tiver cuidados e souber zelar, ele vai durar para sempre. Se você coleciona quadrinhos é a mesma coisa, se você coleciona garage kit é a mesma coisa, existem diferentes alternativas para cuidar de cada coleção”, salienta. Preservando as peças Se isso fosse há algum tempo, provavelmente seria um pouco complicado cuidar e preservar itens de papel. No entanto, com o desenvolvimento de diferentes opções e produtos que auxiliam na manutenção da integridade da peça, fica muito mais fácil começar uma coleção de papercrafts. João Eudes afirma que alguns cuidados são imprescindíveis. “Não é bom deixar em locais com umidade ou sujeitos a receber poeira, pois as peças podem ser danificadas com mais facilidade”, explica. Além disso, existem produtos em circulação no mercado que protegem o papel contra algumas interferências externas, como o ver16

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niz fixador fosco, também utilizado em desenhos, que cria uma película impermeável sobre a peça evitando manchas e prolongando sua vida útil. Quanto aos meios de sustentação, ele afirma que recentemente pensou em adicionar resina no processo de montagem, na parte interna das peças, auxiliando na fixação. A resina cria uma camada sólida, semelhante a um plástico, o que facilita na manutenção dos papercrafts. “A resina deixa-os mais firmes. Só que eu não gosto de aplicá-la por fora porque eu acho que tira a essência da peça. Eu gosto de olhar e saber que aquilo é papel.” Criações Dentre seus papercrafts, existem aqueles que mais lhe causam orgulho e que levaram um bom tempo para serem concluídos, como o Robô Gundam, do anime Gundam Victory. João Eudes conta que a riqueza de detalhes do personagem, com mais de 400 peças e 30 cm de comprimento, foi o mais desafiador durante o processo de montagem. Durou cerca de seis meses para ser finalizado. Ao longo do processo, ele desenvolveu técnicas próprias para melhorar o acabamento do trabalho, com direito a uma base de sustentação para o personagem e uma redoma de vidro para preservá-lo. “Eu não trabalhava nele direto. Parava, depois voltava. Foi um processo demorado, até mesmo por conta de outras atividades”, justifica. Outro personagem que também fala com orgulho, foi uma réplica do Charizard, do anime Pokémon, que demorou cerca de três semanas para ficar pronto. “Foi o primeiro que eu fiz com o grau de dificuldade mais elevado, depois disso não quis mais parar”, revela orgulhoso. A fada Sininho, feita para presente, também foi uma peça importante no processo de criação de João Eudes. Antes, ele dobrava o papel de acordo com as instruções contidas na

figura, porém algumas não vinham com essas instruções, o que dificultava o processo. Ele decidiu arriscar e fazer sem dobrar o papel. A partir dela, ele conta que mudou a forma de montagem. “Eu passei a dobrar apenas as abas para colar as peças, mas o papel eu deixo como ele é. Passei a fazer todos assim”, acrescenta. A escolha do papel também é parte importante e significativa neste processo. João Eudes afirma que o papel utilizado precisa ser um pouco mais grosso do que o papel comum, pois o de gramatura fina pode não dar o acabamento desejado à figura. No entanto, esta regra não é aplicada sempre. Algumas vezes é necessário entender a composição da figura para saber a gramatura correta do papel a ser utilizado para atingir o acabamento desejado. Alguns modelos carregam indicações para facilitar o processo de montagem. É aí onde entra a importância do estudo e do treino constante. João Eudes explica que a prática é algo sério e que, como qualquer outra atividade, exige muita dedicação, técnica e paciência. “Nem todos conseguem ter o domínio total da técnica, mas existem modelos bem sim-

João Eudes: modelagem com arte


O paper craft é um método de composição de objetos tridimensionais utilizando o papel, semelhante ao origami

ples que são facilmente reproduzidos por qualquer um”, afirma. Para aqueles que se interessam pelo universo do papercraft, o jovem aconselha partir das figuras mais fáceis e treinar bastante. Para ele, os pokémons são uma boa pedida para quem quer começar suas próprias peças. Além de não serem difíceis de serem reproduzidos, são facilmente encontrados. “O que eu digo é que se pratique bastante. No entanto, você precisa gostar do que está fazendo. Seja como hobby, ou o que for, mas só faça se realmente lhe deixa bem. Se tá lhe estressando, é melhor você parar”, pontua. Possuir um programa no computador chamado pepakura, também é interessante para quem quer montar seus próprios personagens. Ele possibilita ao usuário ter uma visualização mais ampla do processo de criação da peça, oferecendo uma visualização em 3D de todo o desenvolvimento do papercraft. “O programa apresenta diferentes perspectivas, além de indicações mais específicas sobre como desenvolver a peça”, diz. As possibilidades de trabalhar com o papel são inúmeras. Mesmo afirmando que quer passar a produzir esculturas com outros materiais, revela que não quer se desvincular do papel. “Essa paixão pelo papercraft é consequência da minha paixão pela escultura. É preciso se dedicar a uma coisa de cada vez. Eu penso sim em

expandir a prática da modelagem para outros materiais, mas mesmo assim nunca irei abandonar o papercraft. Eu gosto muito do resultado que ele atinge”, assinala. Projetos João Eudes já ministrou oficinas de didática do ensino das artes I, onde escolheu trabalhar com o papel, utilizando o cubecraft, uma das modalidades oferecidas pelo papercraft, que consiste na montagem de personagens a partir do encaixe entre as peças. Atualmente, o estudante se dedica à criação de um piterossauro de três metros de comprimento, utilizando fibra de vidro. Para o ser pré-histórico, João Eudes criou um protótipo de 30 centímetros, que utiliza como referencial para o desenvolvimento do gigante. A partir daí, surgiu a ideia de desenvolver uma coleção de miniaturas de dinossauros em edição limitada que logo serão produzidos e postos à venda para outros colecionadores. Além disso, juntamente com o professor de tridimensionalidade do curso de artes, Francisco dos Santos, João Eudes pretende dedicar-se ao desenvolvimento de réplicas de personagens de filmes e animes para exposição e venda. “Ainda estamos

pesquisando qual o melhor material para os fins que queremos atingir, pesquisando o público. Tudo vai depender da demanda e da dificuldade das peças. Até mesmo pela valorização do trabalho”, salienta.]

João Eudes cria suas personagens com riqueza de detalhes

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Foguinho

O CRONISTA DO FUTEBOL Reportagem Antônio Rodrigues

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odo final da tarde, na calçada da Rua 22 de Julho, no bairro Franciscanos, Francisco Silva, o Foguinho, senta-se na calçada para escutar seu velho rádio. A frequência mais ouvida é a AM. A mesma que o consagrou nos melhores momentos de sua vida. Dos seus 67 anos, 55 foram dedicados ao rádio e 51 ao rádio esportivo. Foi no rádio que ele aprendeu a ler e a escrever, enquanto trabalhava como contínuo na Rádio Iracema de Juazeiro do Norte. Durante o trabalho de contínuo, Foguinho imitava outro locutor da época, Dalton Medeiros. Dalton trocou o rádio para seguir a carreira de bancário. Foguinho foi chamado para substituí-lo. Depois de alguns anos, sua carreira decolou, chegando a trabalhar em grandes centros do rádio como Petrolina e Salvador. Retornou a Juazeiro do Norte devido a problemas familiares. Mesmo morando no interior do Ceará, Foguinho conseguiu alçar maiores voos como narrador esportivo. Através de parcerias com outras rádios, cobriu sete Copas do Mundo; quatro Mundiais de Clubes no Japão; 22 Copas América; 26 jogos eliminatórios da copa do mundo e 68 decisões de estaduais. Tudo isso lhe rendeu o reconhecimento da ABRACE (Associação Brasileira de Cronistas Esportivos) como o narrador de maior currículo ainda em atividade. Além disso, se tornou o primeiro narrador do Norte-Nordeste a fazer uma transmissão esportiva do Japão através de um celular.

Foguinho não fica em cima do muro, revela ser apaixonado pelo Flamengo. Porém, hoje sua torcida maior é pelos times da região do Cariri, principalmente, Icasa e Guarani de Juazeiro. Apesar de ter narrado grandes jogos da seleção brasileira, nenhuma emoção foi maior, segundo ele, do que narrar os antigos jogos da seleção local de Juazeiro. Hoje, Foguinho trabalha na Rádio Verde Vale, de Juazeiro. A rotina de narração de dois jogos por semana foi interrompida após Foguinho sofrer três acidentes vasculares cerebrais. Caracteres: Qual o momento mais marcante da sua carreira? Foguinho: É difícil você falar do momento mais marcante. Na verdade, tudo começou, quando eu fui convidado no dia 8 de novembro de 1959 para ser contínuo na Rádio Iracema. Fui levado por um cidadão chamado Geraldo Pereira. Então, nunca esqueci essa data porque sete dias depois, 15 de novembro, a Rádio Iracema comemora seu aniversário. Eu trabalhei do dia 8 ao dia 15. Numa manhã de sábado, o diretor da rádio, Vicente Alves dos Santos Coelho, descobriu que eu era analfabeto e nunca tinha frequentado uma escola. Então, ele chamou uma secretária de nome Maria Irene Monteiro e disse para ela pagar os oito dias que trabalhei e procurasse um contínuo que soubesse, pelo menos, assinar o nome. Eu fiquei frustrado com aquilo, porque eu já estava me ligando ao rádio. É como se eu tivesse nascido para o rá-


dio ou o rádio tivesse sido criado para mim. Só que na segunda-feira veio a grande surpresa: ao invés de me pagar os oito dias que trabalhei, como determinou o diretor, ela trouxe uma carta de ABC, uma tabuada, caderno, lápis e borracha e me perguntou se eu tinha feito todo meu trabalho (lavar, espanar, varrer). Foi quando ela disse: “Senta aqui. A partir de hoje, você só será liberado para o almoço e jantar, depois de eu dar a lição.” Em 90 dias aprendi a carta de ABC. Noventa dias depois ela me levou à escola do Comércio, que tinha como diretora, dona Susana Sobreira, que fez um teste comigo para ver que ano eu acompanharia. Ela disse: “Olha Irene, o menino é muito evoluído, dá para ele seguir o primeiro ano.” Nós já saímos da escola, direto para o comércio, quando ela comprou o livro que a escola adotava. Comprou também um caderno de caligrafia. Eu estudei três anos e depois me mudei para o tradicional Colégio Salesianos e lá, praticamente, conclui o segundo grau. Aí foi quando veio a primeira proposta para eu me transferir para Petrolina, abrir e administrar um departamento esportivo. Como você se tornou narrador esportivo? Um ano depois de chegar ao rádio, eu já estava sendo controlista. O controlista era quem bota o disco, abre microfone para o locutor, essa coisa toda. Só que eu chegava à rádio imitando o locutor que nós tínhamos, chamado Dalton Medeiros, narrador esportivo. Era como se eu tivesse desejo de ingressar naquela função. Só que Dalton fez o concurso do Banco do Brasil, acabou conseguindo o primeiro lugar e foi de imediato chamado para o Banco do Brasil do Crato. Começaram a botar na minha cabeça que eu era a pessoa indicada para substituí-lo. Então, eu e um companheiro chamado Luiz Carlos de Lima Cruz, que hoje é professor, começamos (a narrar). Eu narrava um tempo, ele narrava outro. Foi aí que 20

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veio o convite para eu ir a Petrolina. Como foi sua carreira depois que saiu de Juazeiro? Eu abri um departamento esportivo em Petrolina. Fiquei sete anos em Petrolina. Acabei fazendo carreira. Comecei a ser admirado, a ponto de receber o título de cidadão petrolinense. Aí veio o convite para trabalhar na Rádio Cultura, da Bahia. Quer dizer, foi como se eu estivesse saindo daqui, de uma escola primária e indo depois para escola de segundo grau, no caso Petrolina. Depois, saindo de uma escola de segundo grau e ingressando numa faculdade. Porque o rádio da Bahia era o rádio mais concorrido e o mais prestigiado da época. Aí eu fiquei seis anos em Salvador, na Rádio Cultura. E dei muita sorte porque na Rádio Cultura, tinham três narrado-

“Narrar um jogo dos intermunicipais foi mais importante pra mim do que fazer primeira Copa do Mundo”

res: José de Ataíde Costa, que era o chefe, mas não entrava em avião, nem mesmo com ele parado; Fernando José, que só fazia jogos ali próximos de Salvador, porque era diretor de uma agência do Banco da Bahia. Então, eu era o caxeiro viajante. Cheguei a passar 26 dias no mês fora de Salvador, porque a rádio, para economizar, mandava fazer um giro. Para você ter uma ideia, nos seis anos que passei na Bahia, eu acumulei mais de 3.000 horas de voos. Aí por um problema familiar, acabei retornando a Juazeiro. Como foi seu retorno a Juazeiro? Foi como se eu tivesse saído de uma faculdade e voltado para uma escola primária. Entrei em depressão com

aquela mudança radical. Saí de um nível altíssimo, que era o rádio baiano, para Juazeiro do Norte, mesmo sendo minha terra, mas para quem queria subir na vida... Aí foi aí que parei, meditei e decidi o seguinte: só há uma maneira de superar essa mudança brusca. Se começar a ousar. Aí o que eu fiz? Bolei a cobertura de uma Copa América na Argentina, em parceria com a Rádio Uirapuru de Fortaleza. A Uirapuru entrou com o Wilton Bezerra, como comentarista e eu como narrador e fizemos a Copa América. No ano seguinte, narrei todas as Eliminatórias, dentro e fora do Brasil para Copa do Mundo de 1982, na Espanha. Depois dei sequência e não parei mais. Foi a maneira que eu achei de me sentir como eu me sentia no rádio baiano. Graças a Deus, só foi sucesso, toquei o barco para frente. Qual o jogo mais importante que você narrou? Fica difícil, porque se eu disser a você hoje que narrar um jogo dos intermunicipais foi mais importante para mim do que fazer o primeiro jogo ou a primeira Copa do Mundo, você não vai entender. Mas é uma verdade. Sempre foi mais importante para mim cobrir um jogo do Icasa, do Guarani ou um Icasa x Guarani, que é o nosso clássico maior, do que mesmo as Copas do Mundo que fiz ou os mundiais de clubes. Nem isso superou, com toda certeza, eventos que fiz, envolvendo o futebol de Juazeiro, porque são as raízes, é aquilo que a gente faz. Mas não teve um jogo que você tenha uma lembrança marcante? Ver o Brasil perder aquela Copa de 82 (eliminado pela Itália) foi para não sair nunca mais da mente. Quanto mais você tenta esquecer, mais você lembra. Primeiro, foi minha primeira copa. Segundo, foi em minha opinião, a melhor seleção que o Brasil já fez até hoje. Nem a de 70, nem a de 62. Seleção nenhuma foi melhor do que aquela de 82. E nós perdemos a Copa num detalhe.


Ver o Brasil perder a copa de 82 para a Itália foi para não sair nunca mais da mente

Um passe errado do Toninho Cerezo, numa recuperação do jogador da seleção italiana e o terceiro gol que tirou do Brasil o título daquele ano. Você falou da Seleção Brasileira de 82, mas tem algum clube especial que você gostou de ver ou até mesmo de narrar? Olha, veja bem, quando eu voltei de Salvador eu resolvi ousar na tentativa de superar as dificuldades daquela época que eram muitas, dentre elas, a de se deslocar. Mas eu superei tudo isso e acabei me programando e fui para o Rio de Janeiro. Esse dia ficou na minha mente para eu levar para minha última morada porque ver o Maracanã com 162 mil pessoas, que foi o público dessa decisão (Flamengo x Fluminense, Campeonato Carioca de 1963), foi uma coisa apoteótica. No jogo, o Flamengo empatou de 0 a 0 e ganhou o título porque jogava pelo empate. Depois da decisão da Copa do Mundo de 50, foi o maior público do Maracanã. Esse clube especial foi o Flamengo? A partir desse jogo, eu comecei a torcer pelo Flamengo. Era daqueles que quando o Flamengo perdia à tarde, não

jantava. Quando perdia à noite, eu não dormia. Mas aí, vi as coisas acontecendo diferente. Os cidadãos entrando no futebol para se beneficiar, a corrupção num dos esportes mais importantes do globo.Tudo isso me deixou menos contente e hoje me importa mais um jogo do Icasa, que um do Flamengo. Mas você não deixa de torcer jamais. Tem algum gol que você gostaria de ter narrado e não pôde? Houve um gol que gostaria de ter narrado, mas o gol não saiu que foi neste mesmo Fla-Flu. Foi uma bola em que o jogador chamado Durval, dominou, entrou na área e chutou para fora. Como foi para você, um narrador do interior do Ceará, conviver com pessoas de diversas culturas e línguas? Não houve tantas dificuldades, porque durante dois anos eu estudei espanhol. Agora quando cheguei ao Japão, se tivesse um avião no mesmo dia eu teria voltado. Eu não entendia nada, ninguém entendia nada. Era um mundo completamente diferente, mas há um ditado popular de que “quem tem boca vai a Roma”. Uma hora depois já es-

tava enturmado com um grupo de torcedores do Grêmio e tudo ficou mais fácil. Eu sempre tive essa facilidade de tornar o difícil em fácil. Há uma coisa que se diga, não encontrei um hotel ou agência de viagem, em que uma pessoa não falasse espanhol. Foi aí que entendi que a língua universal não é o inglês, e sim o espanhol. A primeira vez que fui ao Japão foi por minha conta, mas foi tão difícil. Na segunda, terceira e na quarta eu já fui por uma agência de viagens. Elas mandam sempre alguém que traduz. Aí a coisa foi bem mais fácil. Você teve três acidentes vasculares cerebrais (AVCs). Em algum momento você pensou em parar? Eu tive três AVC num período de 11 meses. Isso num intervalo de menos de quatro meses de um para o outro. Eu fiquei muito debilitado no começo, mas eu pensei que se parasse (de narrar) eu morreria. Quando você se vê incapaz de fazer aquilo que você gosta, a sua vontade, realmente é de ir embora. Eu tive o primeiro, me recuperei. Tive o segundo, me recuperei. Tive o terceiro, aí o médico chegou e disse que eu tinha que reconhecer, de que no meu estado, Novembro | 2013 21


Foguinho e seu inseparável radinho de pilha: “acho que a tecnologia facilitou a interação maior com o ouvinte

não tinha mais condições. Eu estava muito debilitado. Então, um dia acordei, tomei café da manhã, fui escovar os dentes e me olhei no espelho e disse para mim mesmo que deveria voltar ao trabalho, não me entregar. Voltei, dei um soco na mesa e a mulher perguntou: “O que é isso?”. Eu disse: “Você logo saberá o que é”. Fui ao quarto, troquei de roupa e disse que ia para rádio. Ela me perguntou se eu tinha falado com o médico. Eu disse que não. Ela queria ir comigo, mas eu disse que iria só. Você não teve medo? Não. E fui de ônibus. Quando meus colegas me viram foi uma alegria tão grande “Olha quem tá aqui. Tu é louco?”. Isso foi numa segunda-feira, e no domingo jogaram Icasa x Guarani, abrindo o campeonato cearense (2006). Aí Demontieux (diretor da rádio Verde Vale) disse ao controlista: “Ediglê, bora fazer logo a chamada do jogo de domingo, que é a abertura”. Ediglê perguntou: “Quem eu boto pra narrar?”. “Bota o menino de Barbalha”, Demontieux respondeu. Então eu disse: “Pode me escalar”. “Rapaz, tu é louco?” “Me escale, num tô mandando?”. Aí botaram a chamada no ar. Meu telefone não parou mais de tocar. Isso foi até positivo. Aí ligavam pra rádio “É verdade que o baixinho vai voltar?”. Eu passei a semana pedindo a Deus que me ajudasse. Resultado: 22

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fiz o jogo. Ao fim do primeiro tempo, a primeira pessoa que eu vi foi o Dr. Eduardo Gouveia com quem eu vinha me tratando. Ele abriu os braços, contestando porque eu estava ali. Aí ele subiu na cabine e disse: “Pois faça o seguinte, já que você fez o primeiro tempo, arranje uma pessoa pra fazer o segundo”. “Não doutor, eu vou terminar”. Daí não parei mais. Quer dizer, foi tudo força de vontade. Você tem alguma técnica para narração, algum tipo de preparação? A princípio, eu achava que narrar futebol era um dom, mas quando eu ingressei no rádio vi que é mais força de vontade. Muitas vezes você entra naquela de se espelhar em quem era bom. Hoje eu chego no Romeirão e muitas pessoas dizem “esse foi meu professor”. Eu digo: “você é que foi um bom aluno, se você não tivesse se esforçado, não teria conseguido”. Agora, o essencial é fazer aquilo que você gosta. Só que eu tinha um lema: se eu fosse trabalhar no domingo eu não tomaria um copo de cerveja no sábado. Eu não tomava um copo de cerveja nas 24 horas antes do jogo. Pouca gente sabe, mas só um copo de cerveja tira a noção e o condicionamento. Agora no rádio é o seguinte: você tem que saber dosar a voz. Num lance, você tem que ir lá em cima,

depois retomar o fôlego e recomeça de novo. Isso é importante. Eu tinha um professor chamado Assis Furtado, que disse uma vez o seguinte: “O que eu mais te admiro é que você termina um jogo do jeito que começou. Os últimos cinco minutos são iguais aos cinco primeiros.”. Tem locutor que a partir dos últimos 30 minutos, já tá pedindo pra faltar energia, pra dar um terremoto, aconteça alguma coisa e acabe o jogo. Eu não, porque aprendi a dosar. O que mudou do rádio do seu tempo para o de hoje? A grande mudança que ocorreu no rádio foi a tecnologia. As pessoas (ouvintes) ficaram muito exigentes. Eu sou de uma época que mal dava para ouvir as transmissões e hoje qualquer chiado o ouvinte tá reclamando. O rádio mudou em função das transformações tecnológicas. A relação com o ouvinte, você acha que mudou alguma coisa? Acho que a tecnologia facilitou a interação maior com o ouvinte, já que antes era tudo por carta. A televisão nunca conseguiu bater o rádio e nunca vai bater. Teve uma pesquisa recente que diz que a cada 10 telespectadores, oito ligam o rádio durante os jogos. Eles ficam acompanhando só as imagens e ouvindo o som do rádio. A televisão só


indica onde a bola está. O rádio não, ele passa a emoção ao ouvinte. Faz o ouvinte imaginar. Muitos torcedores que vão ao estádio estão acompanhados do rádio. Há certos momentos em que os narradores incentivam os torcedores a apoiarem o time. Isso funciona? Funciona, no momento em que seu time tá perdendo e falta aquela vibração. Você chama o torcedor e geralmente ele atende. Isso acaba sendo gratificante para o narrador. Ali é uma maneira de você sentir que o torcedor está ligado no teu trabalho. Agora tem atitudes condenáveis, que é aquele narrador que incentiva para violência. Ele deveria ser banido do rádio. Eu conheço cidades por aí que a paixão é tão grande que o locutor chama o torcedor pra hostilizar o adversário, o árbitro, e isso não é maneira de torcer. Narrar um gol do Fortaleza, é diferente de narrar um gol do Icasa? Mesmo que você não queira há uma diferença, é claro que você narrar um gol do seu time não é a mesma coisa de narrar um gol do time adversário. Agora o que eu nunca aceitei é o bairrismo. Eu tenho um colega de Fortaleza. Uma vez aconteceu do time do Fortaleza fazer um gol impedido. Nos comentários, ele falou que se o Fortaleza fizesse vinte gols impedido, ele falaria que foi jogada normal. Isso já não é mais profissionalismo, ai já é paixão. A função do rádio é narrar, independente do coração. O Icasa esteve brigando para subir para Série A em 2013. Você poderia imaginar isso há 20 ou 30 anos? Eu vejo o Icasa como a minha trajetória. Conheci o Icasa nos bandeirantes na LDJ, fundado em 1963. Meu pai se aposentou na Icasa, que na época era uma indústria de algodão. Então meu pai se tornou torcedor do Icasa. Eu dei-

xe de ser torcedor quando ingressei no rádio. Passei a ser torcedor do futebol do Cariri, principalmente de Juazeiro. Eu pensava comigo “será que eu ainda vejo esse Icasa jogando o Campeonato Cearense?” Chegou. “Será que o Icasa disputará um dia a Copa do Brasil?”. Disputou três vezes. Eu acho que depois do Padre Cícero, quem mais divulgou a cidade de Juazeiro foi o Icasa. Você acha que isso se deve a um crescimento do futebol no interior ou o Icasa é apenas uma exceção? O futebol hoje está todo interiorizado. O Icasa pra mim não é uma exceção, ele é uma grata surpresa. Lamentavelmente, o Icasa hoje está numa posição privilegiadíssima que é a segunda divisão, mas não possui ainda seus alicerces. Condições de chegar à primeira divisão e se manter. Isso porque a mentalidade administrativa ainda é retrógrada a ponto de deixarmos empresários de fora (do Ceará) administrar os clubes daqui. Mas se já é ruim com eles, pior sem eles. Portanto nesse tocante, nós temos que amadurecer um pouco. Quais as transformações que você enxerga no futebol? Como ele era no início da sua carreira como locutor e como é hoje? O futebol sofreu mudanças profundas nesses 50 anos, em todos os sentidos. Tanto na administração, quanto nas técnicas. Na metade do século passado, o futebol tinha posições definidas. Ainda me lembro quando as mudanças começaram. Os treinadores chamados Osvaldo Brandão e Dedé Moreira, da seleção brasileira e do Corinthians, começaram a criar as formações. 4-42, 4-3-3. Zagueiro recuado, volante adiantado. Até me lembro de uma piada do inesquecível Praxédes (Ferreira, ex-treinador do Icasa), que certa vez, perguntaram a ele: “Praxédes, os treinadores estão mudando aí para 4-4-2, 4-3-3. Você já tem o esquema da sele-

ção de Juazeiro?”. Ele disse: “Tenho”. “E qual é?” “Três mais três igual a seis, com mais cinco igual a onze. E três de fora” (risos). Esse era o esquema dele. Todo mundo riu, e isso ficou marcado. Então depois vieram outras mudanças. Que mudanças? O atravessador, que é o empresário. O que de pior que poderia acontecer ao futebol brasileiro foi o diabo do ‘atravessador’. Porque ele contrata e exige que aquele jogador contratado jogue. Ele tá expondo uma mercadoria. Quais são seus objetivos ainda na carreira? Fui convidado para narrar a Copa de 2014 aqui no Brasil. Terminado o último jogo desta Copa, farei um pacto comigo: não falarei mais no microfone. A não ser numa solenidade ou alguma outra coisa assim. Eu acho que tudo na vida tem um começo e tem um fim. Eu paro e penso “Eu não tenho o que fazer mais no rádio”. O que todo profissional do rádio esportivo deseja fazer eu já fiz. Então, eu não quero mais compromisso. Quero apenas cuidar de minha saúde. Uma pergunta que eu não posso deixar de fazer: Por que você é chamado de Foguinho? Na época em que nasci, o Ceará era um dos estados com maior índice de mortalidade infantil. Eram cerca de 52 mortes para cada 100 nascidos. Eu não fui um destes, mas tive uma doença em que meu cabelo caiu todo e depois nasceu avermelhado. Meu primeiro apelido era cabelo de fogo. Na Rádio Iracema, o diretor disse: “Ele é tão baixinho, tão magrinho e, com esse cabelo avermelhado, por que não é foguinho?”. Então foi aí que nasceu esse pseudônimo, e eu me identifico muito com esse apelido. É pelo qual sou reconhecido pelas pessoas. É muito gratificante esse carinho.]

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Rezadores do

PADRE CĂ?CERO Texto Joelson Santos 24

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um misto de fé, prática cultural e medicina popular, as rezadeiras mantêm viva a esperança de cura do corpo e da alma. Não importa se o problema é mau-olhado, espinhela caída, briga de marido e mulher ou quebranto: as rezadeiras conhecem remédio e tratamento para tudo. O ritual se reveste de mistérios. Símbolos sagrados, rezas, rosários, sal, água benta, cordão e nomes de santos envolvem o solo sagrado da casa das rezadeiras. Remete às divindades protetoras de origem africana, indígena e européia. Imagens de santos espalhadas pelas paredes demonstram o sincretismo religioso. A atividade é realizada geralmente por mulheres, que não cobram pela reza. Os gestos nunca são ensinados ou aprendidos, mas sim revelados, segundo elas, pelo “Divino”. O estudioso das religiões, escritor Giorgino Paleari, em seu livro “Religiões do Povo”, define as múltiplas funções das rezadeiras na vasta e rica Cultura Popular: — Dependendo de cada situação social ou histórica, a religião assentada numa cultura popular pode ser fator de identidade popular, de resistência diante da cultura dominante ou oficial. Portanto, o ofício das rezadeiras é a resistência diante desta cultura dominante dos meios de comunicação e das religiões oficiais que as discriminam. Na vila bom Jesus, uma comunidade próximo ao Horto, em Juazeiro do Norte, encontramos duas histórias de vida intrigantes de rezadores. A primeira é a de dona Enôi Vieira. Uma mulher simples, 62 anos, que usa um enorme terço em seu pescoço e um pano amarrado na cabeça. Ela tem uma história singular. Mora na Vila Bom Jesus há quarenta anos. Aparentemente é uma figura normal, mas com o lenço ganha algo mítico. Rezadeira profissional nunca cobrou um tostão dos pacientes.

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Ela tira o sustento da agricultura, da roça de milho. Quando não está na roça, nem rezando, arruma a casa. O tempo de Dona Enôi é bastante corrido. Enôi Vieira é uma alegre e feliz rezadeira. Tem uma característica intrigante de alegria, sorrisos, gargalhadas repentinas. Nasceu em Juazeiro do Norte e atende seus pacientes geralmente em casa. Se descobiu rezadeira por volta dos dez anos de idade. Ela conta o começo da sua vida de rezadeira. — Eu nem sabia, mas descobri que eu tinha o dom de rezar, sabe por quê? Porque eu trabalhava na roça, né? Aí tinha dia que minha irmã Ciça dizia assim: ‘Enôis eu estou com dor de cabeça’. Aí eu dizia assim: ‘vou rezar na sua cabeça’. Ela dizia assim: ‘Como tu vai rezar na minha cabeça?’ Aí eu dizia: ‘Vou rezar de dor de cabeça’. Eu mandei ela parar e me levantei, peguei um galho de pé de pau bem verdinho, tirei quatro raminhos, e dizia assim: ‘sustente isso aqui, para o mal que está em sua cabeça ir para esse raminho aqui. Vou rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria e uma Salve Rainha em você e sua cabeça. Se você tiver fé, vai ficar boa, Ciça’. Aí eu sentava ela numa pedrinha e começava a rezar um Pai de Nosso. Depois de um Pai de Nosso, eu rezava uma Salve Rainha. A língua das rezadeiras Enôi explicou que a sua força e determinação em rezar partiu de sua mãe, Maria. Ela conta que a mãe reunia todos os irmãos para rezar. Pressentindo que sua filha (Enôi) seria uma rezadeira no futuro, tratou de avisar a todos que ela era “curada”, que significa abençoada na língua dos rezadores. Dona Enôi diz que as crianças são seu principal alvo de cura, não que os adultos sejam descartados. Mas ela tem um motivo para isso: — As crianças não possuem

uma carga tão pesada quanto a dos adultos. Os velhos são muito carregados pra mim, tenho que me prevenir para poder rezar, né? ” E completa assinalando que, apesar de não saber ler, buscou um meio de ter sua assinatura registrada. — Hoje sou rezadeira, sou parteira, só não tenho as luvas, e nem sei ler, mas aprendi a escrever meu nome para me aposentar. Quando eu ia fazer 55 anos, entrei na escola para fazer meu nome, com dois meses já estava assinando. Dona Enôi além de rezadeira, parteira e dona de casa, busca sempre


Dona Enôi exibe rosário que utiliza durante seus rituais de cura

um tempo para ir à Igreja. Isso “para satisfazer a Deus e aos Padres, que ficam muito felizes”. — Naquele momento a gente aprende a ser mais rezadeira. E quando a gente vai pra igreja, assim pra missa, o padre fica muito satisfeito em saber que, naquela cidade tem uma rezadeira, e é assim que eu me sinto, eu me sinto muito feliz, quando eu vou assim pros cantos, e o padre diz: Rezadeiras, parteiras levantem as mãos. É com muita alegria! ( Risos). Como não podia deixar de lado, ela falou sobre Padre Cícero. A figura do padre é uma referência para os re-

zadores. Ela carrega em seu pescoço um terço com a imagem de Padre Cícero, com muita devoção e fé. — Ao pedir ajuda a Padre Cícero qualquer pessoa já é atendida na hora. Ela relata um fato em que a fé ao Padre Cícero a salvou: uma camionete enguiçou na ladeira do Horto e seus passageiros, alguns parentes dela, quase sofreram um acidente. Todos temiam pelo pior. Enôi intercedeu e rogou pelo Padre Cícero. A caminhonete voltou a funcionar. Caso sobrenatural? Pode ser que sim, mas para Enôi a fé “é algo que, independente de dinheiro

ou estudo, é essencial. — Com fé em meu Padrinho Ciço nós fomos simbora pra casa. Se você tem dinheiro, tem estudo e não tem fé em Padre Cicero, não adianta nada”. Manoel, o rezador pop Um pouco abaixo da casa de Dona Enôi encontramos uma outra figura de tanta relevância quanto ela na profissão. Manoel Joaquim de Oliveira, 79 anos, atrai público de todos os lugares do País. Na sua casa, sobressai-se um altar com várias imagens de sanNovembro | 2013 27


O rezador Manoel Oliveira diante do seu altar repleto de santos

tos. Imagens e objetos santificados que invadem outros cômodos da sua humilde residência e que transforma o lugar em algo místico, religioso e também intrigante. A casa de Manoel não chama somente a atenção pelo altar repleto de imagens de santos bem organizada, mas também por quadros espalhados pelas paredes que mostram o quanto sua reputação de rezador é grande. Certificados de rezador e agradecimentos por sua participação em cursos e cultos estão pregados na parede da casa. Manoel é pop. E atrai um grande público de todo o país. Com 45 anos como rezador, Manoel é o mais reservado possível. Fala pouco, mas suas palavras são sempre diretas e claras. Ele reserva alguns cômodos localizados no fundo da casa para a reza. Um local místico e confortável. Seus devotos ouvem seus con28

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selhos, recebem suas curas e também observam sua enigmática forma de conversar ou adivinhar os diversos contextos envolvidos por seus pacientes. Assim como Enôi, Manoel também descobriu o “dom” da reza ainda pequeno. Atende as pessoas com os mais diversos problemas de saúde pela manhã e à tarde. Não trabalha durante a noite e aos fins de semana, momento que descansa, recobra suas forças espirituais a fim de partir para uma nova labuta na semana seguinte. O público de Manoel é bastante diferenciado. Pobres e ricos, pessoas vindas de várias partes do País – Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo. Sua fama extrapolou há muito o Cariri. Seus pacientes buscam a cura, a paz e as soluções para os mais diversos problemas.

— Não ando de porta em porta, quem quiser que me procure, e estou pronto para representar. Se o doente não pode vir manda uma foto, que vejo a doença, vejo o modo. Se der para rezar bem, se não der eu curo de casa, através da foto. Ele usa um longo cordão quando reza nos seus pacientes. Se revela ao longo da observação um homem diferente. Talvez por utilizar de outros meios mais ocultos das práticas de reza. Isso intriga, abre a curiosidade e alimenta a fé daquelas pessoas. Ritual de Cura Para cada tipo de doença, uma planta diferente. Segundo ele, os objetos simbolizam algo a mais na hora do ritual da cura, “algo místico e de sentido para quem estar exercendo as curas”. De acordo com ele, não é todo o tipo de doença que é curada através


de” “remédio do mato” . Para muitas enfermidades, é necessário o uso da medicina tradicional e seus remédios. Mas em meio as suas práticas de rezador, e mesmo atraindo essa imensidão de féis e devotos, há ainda quem duvide de sua prática. De pessoas assim seu Manoel quer manter distância e não discute. De acordo com ele, essas pessoas deveriam se apegar à fé e em Deus. “Quem é ateu, maçom não acredita em reza. Quem é protestante, esses aí não discuto, não tenho nem assunto. E nunca elogio eles. O camarada deixar o caminho de Deus Pai para andar numa coisa errada”, diz, sério e convicto. Rosário de doenças E sobre as doenças? Algumas delas são bastante conhecidas no mundo dos rezadores. “São vários os males lançados no Mar sagrado, local que não mais voltará.”. “Mau olhado (ou quebranto) é a doença causada pela energia negativa do olhar de pessoas invejosas ou maldosas. Muitas vezes não é intencional, mas sua força pode esmorecer o doente, causando sintomas de depressão, como angústia, pessimismo, nervosismo exagerado e até insônia. Espinhela caída é o nome popular de uma doença chamada Lumbago. Causa dor no estômago, costas, pernas e cansaço físico anormal. Espinhela é um osso pequeno que fica no meio do peito, entre o coração e o estomago, que pode envergar para dentro. A benzedeira tira a medida do dedo mínimo ao cotovelo e depois, de um ombro a outro, se as medidas não coincidirem, é detectada a doença. Ele ainda explica outra doenças. “Vento (ou Ventre) Virado é mais acometido em crianças, geralmente quando se brinca de jogá-las para o alto. Basicamente é a sujeição a uma força maior do que se está acostumado. Causa mal estar, vômito e diar-

Terços e água benta são símbolos que compõem o ritual dos rezadores populares

reia. As benzedeiras viram a criança de cabeça para baixo e batem seus pés na folha de uma porta. Fogo selvagem é uma doença de pele, cientificamente conhecida como Pênfigo. Nascem bolhas no couro cabeludo, peito e costas e podem se espalhar pelo corpo todo – até internamente, quando mais grave. Não se sabe o que causa, mas o remédio é uma benzeção. Erisipela é uma infecção de

pele causada por bactérias e pode ser acompanhada de febre. Invade a gordura e se espalha pelos vasos linfáticos. Geralmente ataca as pernas, principalmente de mulheres. A princípio, aparecem manchas vermelhas, depois incham e surgem bolhas. Também é conhecida por Vermelhão e Gota”. São muitas as doenças tratadas pelos rezadores e rezadeiras do Cariri.]

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O chão de

JAIME Texto Alana Soares

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o sul do Ceará, ainda resiste a arte de compor mosaicos com ladrilhos hidráulicos, alternativa na arquitetura e no design de interiores. As formas e cores das peças encantam em painéis de lojas, pisos de casas ou espalhadas pelo chão. Na cidade de Barbalha, Jaime Rodrigues trabalha desde os 17 em fábricas de ladrilhos. Hoje, com 72 anos, mantém a única loja do tipo no Cariri. Todas as manhãs, de segunda a sexta, das 5h30min até o sol baixar, seu Jaime trabalha “comendo cimento”. Acorda, toma banho e se veste, procura o pão e o café, e depois de alguns passos está na sua fábrica de mosaicos. A fábrica e a casa são quase uma coisa só. Comprou o terreno há 15 anos, levantou paredes, forrou telhado, comprou móveis e chamou de lar a casa que construiu com esforço e suor do seu trabalho de fazer ladrilho hidráulico. Desde os 17 anos, Jaime mexe com cimento, tinta, força e precisão para fabricar ladrilhos que há tempos enfeitam as ruas e casas da região do Cariri. E essas pedras já foram e, ainda vão, para mais longe: dão cor ao Piauí, ao Maranhão e a Belém, no Pará. Do cimento enquadrado e formas jorradas em pingos de tinta, a pressão da força faz tudo se transformar em uma pedra impressionante, uma peça que pode se combinar

como um mosaico de cores e formas a embelezar a parede ou o chão. É isso o que Jaime faz, todos os dias, há 53 anos: criar incríveis peças de um novo jogo de mosaico. O homem que come cimento Antes dos ladrilhos, trabalhava como agricultor. Morava com os pais, também agricultores, na zona rural de Barbalha, no Ceará, no terreno de um senhor de Engenho. Com a tarefa da roça, Jaime nunca realizou sua vontade de estudar e morar na cidade grande. “Eu sempre falava que quando completasse 18 anos, ia tirar a carteira – porque você sabe, naquela época não era RG, era reservista! – e ir embora para São Paulo!”, diz sorrindo. Embora nunca tenha ido à São Paulo, como desejava, quando estava perto de completar 18 anos, em 1960, foi avisado por um amigo, que queriam levá-lo para trabalhar de servente na Fábrica de Mosaicos Inca. No outro dia já estava trabalhando. Logo aprendeu o serviço, tantos quilos de cimento branco aqui, outros tantos de comum ali, mistura para fazer a tinta, a força vai na prensa, tantas horas debaixo d’água e a peça do ladrilho fica pronta – por isso é dito hidráulico, porque no lugar do fogo, é usado água para fixar, descansar e endurecer. Trabalho pesado, que exige delicadeza e força bruta ao mesmo tempo. O resultado é uma beleza. Encantou-se tanto com aquelas peças que, sem alongar a conversa,


diz: “só sei que, pra encurtar a história, desde então até hoje não parei de comer cimento”. “Comer cimento” é como Jaime chama seu ofício. Do trabalho de fazer ladrilho, produzir os mosaicos, o ingrediente principal das peças é o cimento. Usa para misturar, para endurecer a peça, para chupar a água que sobra da tinta. O contato com ele é continuo e torna quase insalubre o ar da fábrica. As condições são artesanais para a fabricação do ladrilho. De um a um, no processo manual, contato direto, sem roupas especiais ou proteção, mesmo se a produção for em larga escala, faz com que os quatro homens que trabalham com Jaime convivam com a terra, a poeira e o cimento a todo momento. Jaime ainda brinca. Diz que depois de tantos anos trabalhando com o cimento tem receio de tomar banho e acabar por virar pedra. E mesmo tão ríspido, o ofício de “comer cimento” pede atenção, tato e suavidade. Desde o preparo das tintas, que levam em média cinco materiais cada cor, até a precisão de despejá-las nos moldes, como um tiro certeiro. Formas em trânsito Os dois tipos de ladrilho mais produzidos são para uso externo, como calçadas e praças; e para uso interno, o ladrilho decorado, que dá vida aos locais onde são dispostos. Ao todo, a fábrica conta com 215 modelos de mosaico. “Eles estão todos aqui, mas eu não ‘amostro’ para o pessoal, porque tem uns que são muito delicados, pequenos e a gente não faz mais”. Hoje ainda são produzidos em torno de 50 modelos de ladrilho. Em 1957, conta Jaime, o ladrilho hidráulico era sucesso no Nordeste. Em toda esquina haviam ladrilhos. “Naquele tempo a moda era o mosaico”, lembra. E bem sabe que o mosaico, de tradição europeia, veio tomando popularidade no lugar do 32

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mármore, demasiado caro, e mais bonito que a cerâmica. Nem precisa de fogo no seu processo. “Os portugueses e os espanhóis foram os primeiros ‘inventadores’ de mosaico, sabe?”. Seu Jaime diz que muitos viajantes vinham de São Paulo até Barbalha para trazer desenhos de mosaicos e vender aos donos das fábricas. E conta mais, diz que os modelos eram tão perfeitos que não se chegava a ver as soldas. “Hoje ninguém faz mais [...] Esses, que vieram de São Paulo, a gente tem o maior cuidado para não quebrar.” Jaime sabe que o melhor resultado se tem quando as ferramentas e

o operário estão na sua melhor condição. Das formas que variam, das cores que se mesclam no quadro das combinações aleatórias ou intencionais, o mosaico toma forma, se transforma na arte que Jaime ajuda a criar. E criou muito. “Nós rodamos levando mosaico para todo canto. A gente fazia para Mauriti, Brejo Santo, Serra Talhada, Salgueiro... Temos mosaicos de Alagoas a Belém, do Pará”. Lembra saudoso que carregava dois carros Chevrolett cheios de mosaico e despachava por esse Brasil. Em Crato e Barbalha, elaborou muito mosaico para compor o desenho das casas. “Tem muita casa do


surgir praças para calçar, “os homens vieram atrás”. Naquele tempo, quem mais procurava a fábrica de mosaicos eram os donos de prédios comerciais e residenciais. O Crato sempre foi o que mais fazia pedidos, hoje Juazeiro ocupa esse lugar. De 1990 pra cá, todo dia aparece serviço. “O povo tomou conhecimento que a cerâmica não dava muito futuro. A ‘bicha’ não aguentava a força do mosaico” foi assim, ele disse.

Na oficina de Jaime são expostas várias fôrmas de ladrilhos

centro até o bairro do Granjeiro (no Crato) com mosaico meu”, diz feliz. Jaime vende um metro de ladrilho por R$ 47,00 (25 peças), o que torna cada peça R$1,88. “Mas eu nunca vendo pedra solta, eu faço logo é dizer para levarem. Digo, tenho tantas aqui, uma a mais ou a menos, não vou fazer questão”. A melhor época de vendas foi de 1963 à 1979, depois disso a cerâmica ganhou popularidade, tanto por ser mais barata, como por ser mais fácil de limpar. Embate: cerâmica e ladrilho No começo dos anos 1980, todas as lojas de mosaico começaram a fe-

char. Nesse tempo ainda trabalhava para a Fábrica de Mosaicos Incas. Depois que a fábrica faliu, Jaime herdou e guardou as duas prensas, ferramentas e moldes de lá. Aos poucos foram surgindo mosaicos para remendar, um aqui outro acolá, de repente foi ali que viu a oportunidade de recomeçar com ladrilhos. Com a fábrica fechada e sem emprego, Jaime passou a vender roupas, objetos de casa, de porta-em-porta no crediário. Juntou dinheiro e reergueu a fábrica. No começo foi fraco, pouco movimento, “passava dias sem receber um pedido”, declara. De repente, em 1985, começou a

Bonito de se ver Apesar de não ser mais comumente usado como piso, por causa da cerâmica, o ladrilho é uma alternativa na composição da arquitetura e do design de interior. Figura como elemento decorativo, suas infinitas possibilidades de combinação dá um toque a mais de criatividade ao ambiente, tanto entre paredes como na rua. Nas calçadas, o ladrilho tem a capacidade de dar um novo brilho e dimensão de estilo à cidade. A combinação aleatória encanta o passante com formas e cores registradas no chão em que pisam. Jaime sabe bem disso. “O pessoal hoje quer mais mosaico, porque o cimento sozinho não tem vida”. O chão que guarda e conta histórias como as de Seu Jaime, que, com muita dedicação, e ajuda dos filhos, preserva a tradição dos mosaicos, das cores e das formas, essas tão cheias de vida para maravilharem o olhar atento de quem passa, ou do distraído que por acaso sabe ouvir. Ele conta que em 1963 foi chamado para calçar uma praça e parte de um hospital. “Tem 50 anos que a gente fez aquele calçado e todo dia eu passo por cima dele”. “Ah, eu fico satisfeito”. Seu Jaime, na sua singela gentileza e no seu sorriso frouxo, carrega a história de muitos chãos, que muitos passam, de muitas paredes que tantos outros admiram, de pedras coloridas que dão vida e brilho de uma forma encantaNovembro | 2013 33


dora aos lugares por onde estão. Do suor e da força de um ex-agricultor, peças que trabalham tantas combinações possíveis de uma tela – ou de um chão. E Jaime fica satisfeito. “Ajudamos a fazer e dar vida aquilo ali, eu fico feliz com isso”. Sempre que é convidado para a inauguração do local onde colocou mosaicos, ele recusa. “Eu digo que não vou, porque fico emocionado, sabe?”, explicou sorrindo com os olhos. Jaime é grato a Deus, a quem é fiel religiosamente, pelas graças da vida. “Sou católico. Quando era pequeno, minha vó me trazia para ver as novenas, aí ‘me aviciei’”, diz rindo. E também ao Seu João Gonçalves, o dono da Fábrica de Mosaicos Inca, que deixou prensas e ferramentas para Jaime continuar o serviço. “Devo tudo o que tenho a ele”, suspira como um sopro de gratidão.

O ladrilho resistente Faz quatro anos que Jaime se aposentou. Hoje, na fábrica, cumpre a tarefa de fazer a mistura das cores e administrar os pedidos. A memória já não é tão acertada, e anota tudo no caderninho que leva aonde vai. “É muito difícil, tem que ter tudo bem anotado e ficar pegando a receita de imediato pra olhar. E não guardo na cabeça, sabe?”. Sabe misturar, despejar e prensar ladrilho como ninguém! A qualidade de seu mosaico é conhecida em todo o Nordeste. Pela região, já decorou piso de casa, parede de loja, grandes painéis, calçadas e praças inteiras. Seu Jaime Rodrigues tem 72 anos, desses 53 foram dedicados ao ladrilhos, a compor mosaicos. Passou por altos e baixos. Teve raivas, se desesperou com o mercado que não vingava. Mas sempre confiou no seu

gatilho e continua forte, com a única fábrica de mosaicos da região. Ele é um dos responsáveis pelo ladrilho hidráulico fazer parte do cotidiano de todos nós, apesar de muitos não terem notado ainda. O olhar curioso logo acha, ali entre uma pedra e outra da calçada, formas coloridas e elegantes, apontando outra direção, a da resistência ao tempo. Hoje Jaime conta com a ajuda do filho para levar adiante a tradição da fábrica. Mas foram as filhas, em um ato libertário, que o convenceram a se voltar contra seus ladrilhos e trocar o piso da própria casa. O que antes eram belos ladrilhos se misturando em tela se transformou em cerâmica cozida. A ironia tem uma boa razão: facilita o trabalho de limpeza da casa, evitando excesso de trabalho para a mãe.]

Seu Jaime, no portão da sua fábrica: ladrilhos que resistem ao tempo e dão formas coloridas e elegantes 34

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Jaime, mesmo aposentado, participa de todas as etapas de confecção da cerâmica

Processo de fabricação da cerâmica: cimento, tinta, força e precisão Novembro | 2013 35


Quinze anos de

LIXÃO Texto Hewerton Henrique

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ada de prédios, escolas, hospitais, urbanização. Cícero Leonardo, 42 anos, mora, há três anos, em um lixão a céu aberto. Localizado na Vila Lagoinha, em Crato, o lugar abriga em torno de 80 pessoas, entre elas crianças e adolescentes que dependem do lixo para sobreviver. O trabalho é duro, o mau cheiro incomoda, o calor é desgastante. Mesmo assim, Leonardo mostra que dá para viver. Ele prefere este a outros estilos de vida: “Só saio daqui se for o jeito”. Quando chegou ao lixão, Leonardo pensava somente em trabalhar, somente em sobreviver. Deixou o sítio em que morava depois de uma crise financeira em 1999 e, sem oportunidade de empregos no Crato, se juntou com alguns amigos e tentou a vida no lixão. Sua mãe e três irmãos não o acompanharam. Dona Maria Barbosa, não concordou com a opção do filho, e ainda hoje, aos 66 anos, tenta convencê-lo a voltar para a cidade. Mas ele nunca escutou os apelos da mãe. Ele é um homem calejado e sabe o que quer. Há quinze anos, quando chegou ao lixão, se deparou com dificuldades. Ele lembra que, nos primeiros meses, tinha receio de buscar o que era útil no lixo, pois não sabia o que encontraria. Por vezes, encontrava animais mortos e lixo hospitalar. Voltava para casa à noite, no bairro Batateiras, com uma sensação de cansaço físico e mental. Ainda não morava no lixão.

O tempo foi passando, Leonardo enfrentava dificuldades, mas não queria voltar a tentar a sorte na cidade. Em 2010, ele tomou a decisão de morar definitivamente no lixão. Juntou-se a quase uma centena de pessoas, - em sua maioria de Juazeiro do Norte, - e, como elas, levantou a sua moradia. Sua casa, um pequeno barraco, serve basicamente para dormir e guardar as poucas coisas que tem. Sua cama é um amontoado de colchões velhos e ocupa quase todo o espaço do barraco. No restante colocou alguns objetos como bolsas, roupas e revistas. Ao redor da morada fica o lixo que recolhe. São garrafas pets, pneus, cadeiras quebradas e tudo que pode ser utilizado e vendido. Ele comercializa com Dona Aldenir, uma espécie de intermediária.

“Ao acordar tenho muito trabalho. Além dos sacos de lixo cuido dos animais: duas cabras, algumas galinhas, um burro e dois cachorros”


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Roberto Ericlesson reclama da mistura do lixo hospitalar com o reciclável

Vida Difícil O trabalho no lixão não é só catar objetos, existem algumas divisões. Atravessadores com transportes mais potentes compram cobres, plásticos, ferros e demais elementos que são vendidos por preços mais altos para as empresas de reciclagem. Os catadores, como Leonardo, têm um lucro menor, pois não têm condições de transportar os objetos diretamente às empresas. Leonardo revela que seu ganho geralmente é de 40 reais por semana. Além deles, existe a categoria que Dona Adelnir se enquadra: a de negociadora. Ela vende o lixo para os atravessadores, tirando sua parte e pagando outra para os que catam. Ela não mora lá, mas possui uma barraca para guardar mercadorias. Com o dinheiro do lixão, Dona Adelnir conseguiu criar seus oito filhos. Um deles é Roberto Ericlesson, de 17 anos. Ele conduziu a re38

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portagem enquanto Leonardo saía por alguns minutos para trabalhar. Ericlesson vai ao lugar aos sábados para ajudar sua mãe. Mesmo passando apenas um dia da semana, ele mostra o quanto é duro trabalhar no lixo: ‘‘Vocês querem ver o que é realmente isso aqui (lixão)?’’, pergunta. Depois, mostra no local uma placa com os dizeres:‘‘área destinada para lixo hospitalar.’’ Ali desabafa: ‘‘Aqui é onde eles (caminhões da prefeitura) jogam os lixos dos hospitais e os animais mortos. Essas coisas eram para ser enterradas, mas eles deixam o buraco aberto, trazendo um mau cheiro insuportável’’. Ele fala apontando um buraco com seringas, remédios vencidos e carcaças de animais. O jovem acha um descaso deixar esse lixo tão perto de onde eles procuram o reaproveitável, ainda mais em um lugar exposto, aberto. Ericlesson conclui: ’’Dá nojo e a gente pode pegar doenças’’.

Roberto ainda apresenta um instrumento importante para o trabalho que realizam: uma balança. O preço do lixo é baseado no quilo. Um quilo de ferro, por exemplo, é vendido por 10 centavos, o do cobre vale mais, sete reais. O ferro é mais fácil de encontrar, são recolhidas nove toneladas a cada 15 dias. Leonardo volta, após despejar em frente a seu barraco uma grande quantidade de lixo. Em uma rede atada em um tronco, ele começa a conversar. “Olha! Está vendo esta árvore? Ela foi benta por alemães”, aponta para o tronco que sustenta a rede. Ele se refere ao fato de padres alemães já terem visitado o local e terem benzido a árvore. Nela existe ainda um retrato do Padre Cícero Romão Batista, que também dá nome a uma vila próxima em que boa parte dos moradores do lixão mora. Deitado, ele fala um pouco mais de sua vida, no lixão e fora dele.


Tem três filhos que não vê faz um tempo. “Não consigo nem me sustentar direito, eu vou encontrar meus filhos para quê?”, lamenta. Sua vida hoje se resume cada vez mais ao lixão. É onde ele trabalha, mora e se diverte. Os momentos de descontração acontecem geralmente à noite. É quando ele se junta a Gorete e a Antônio, um casal vizinho, e conversam em torno de uma fogueira feita com pneus queimados. Ele conta que às vezes eles também bebem cachaça e assam, em um fogão improvisado, alguma carne que compram. Quando está sozinho, Leonardo costuma ouvir rádio para passar o tempo. Gosta das músicas que escuta. “A música faz a gente se entreter até dormir”, fala. Já televisão, ele

só assiste quando vai à casa da mãe, muito dificilmente. Ele dorme cedo, por volta de 19h, e acorda logo que o sol nasce, por volta de 6 horas. Sem relógio, o rádio também o ajuda a ter uma noção de tempo. Ao acordar, ele tem muito trabalho a fazer. Além dos sacos de lixo que recolhe, ele divide seu tempo cuidando de alguns animais. São duas cabras, algumas galinhas, um burro e dois cachorros, que também dividem com ele o espaço do lixão. Leonardo tem uma relação próxima com os bichos, lhes dando, quando pode, água e comida. O burro o ajuda no transporte de lixo e os cachorros lhe fazem companhia. “Com eles não me sinto só”, fala. Catar lixo nem de longe é uma

tarefa fácil. É dificultada mais ainda por causa da falta de organização. Desde 2006, o lixão a céu aberto do Crato se transformou, teoricamente, em um ‘‘aterro controlado’’. Como o nome sugere, alguns tipos de lixos seriam aterrados e outros seriam apanhados, tudo fiscalizado pela prefeitura. Mas o que se vê na prática é diferente. Alguns tipos de lixo são jogados separadamente, mas não são aterrados. Chance de mudança Em 2010 foi sancionada uma lei que pode mudar um pouco esse cenário: a Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Uma de suas premissas é a da responsabilidade compartilhada, ou seja, quem

Cícero Leonardo trabalha e mora no lixão catando materiais que podem ser utilizados ou vendidos Novembro | 2013 39


Objetos como a balança, o improvisado fogão e uma cama retratam a dura realidade do lixão

produz certo produto é responsável pelo descarte dele. A lei foi pensada para tentar resolver a problemática da reciclagem do lixo. Com ela, a tendência é que lixões a céu aberto sejam extintos, mas ela também propõe uma integração dos catadores nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada. Com isso, diversas ações deverão ser tomadas tanto para organizar a destinação de resíduos sólidos quanto para não deixar os catadores desamparados. Uma ação desenvolvida para uma melhor destinação do lixo é o Aterro Regional- Aterro Consorciado do Cariri, que será construído em Caririaçu. A obra, com previsão de conclusão para agosto de 2014, fará com que o lixo de 10 cidades do Cariri, 40

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entre elas o Crato, seja enviado para lá. Assim, o lixo será dividido e uma parte será reciclada e outra aterrada. Os catadores como Leonardo poderão continuar trabalhando e, com melhores condições, se associando a empresas de reciclagem. Uma Associação está ajudando para que eles não fiquem desamparados, já que provavelmente no segundo semestre de 2014, o lixão a céu aberto do Crato será extinto. A Associação dos Agentes Recicladores (AARC) cuida, entre outras coisas, da continuidade do trabalho de Leonardo e dos outros. Mas Leonardo não gosta da ideia. Trabalhar para empresas, tendo jornadas de trabalho e morar na cidade, não lhe agrada. Ele gosta mesmo de sossego, de paz. O lixão

lhe transmite aquilo. Ao ser perguntado sobre os motivos de ter ido parar no lixão, ele é objetivo: “As dificuldades da vida na cidade’’. Ele não quis explicitar quais dificuldades seriam essas, mas deixa clara sua predileção pela vida no lixão, em uma frase que sai de sua boca naturalmente...“Dois mil e quatorze que não chegue logo!” Fala referindo-se ao provável ano de extinção do “aterro controlado”.]


DIAP

Divisão de Informação, Atendimento e Protocolo

Discentes - Emissão de declaração de matrícula, atestado de matrícula, histórico escolar, ementa de disciplinas, declaração de colação de grau; - Abertura de processos de aproveitamento de disciplinas, expedição de diplomas, trancamento parcial e total, reabertura de matrícula, cancelamento de matrícula, correção de dados cadastrais/histórico, etc.; - Recebimento de solicitações de segunda chamada; - Informações em geral.

Docentes e Servidores - Atendimento primário de abertura de processos relacionados com a PROGEP; Empréstimo de datashows e notebooks; - Reserva de salas; - Outros atendimentos.

Comunidade externa - Informações em geral (Quais os cursos da UFCA, forma de ingresso na UFCA, horários dos cursos, eventos realizados pela UFCA, etc.)

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HISTĂ“R 42

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Linhas, agulhas e bot천es

RIAS DE COSTUREIRAS

Texto Clara Karimai

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osturar vai além do simples cortar e alinhavar. Costurar é conhecer, ter tato e olhar preciso. Calcular as medidas certas que se encaixam perfei­tamente numa silhueta. É o mesmo processo criativo de produzir uma obra de arte. A partir da matéria prima, sem forma, sem vida, se vai cortando, emendando, colando um botão, um babado: eis que surge o produto final. A arte de manejar uma máquina de costura normalmente é passada de geração em geração. São horas debruçadas na máquina, de noites em claro. Tudo para realizar o desejo de outras pessoas. Porém, quem escolheu essa profissão garante que o melhor pagamento está exa­tamente na satisfação dos clientes. Teresinha da Silva, dona de casa que se tornou costureira, fala de sua profissão de for­ma carinhosa. Conta que aprendeu a costurar com a mãe, uma professora que, de vez em quando, fazia algumas peças de roupas para o seu próprio consumo. Começou a carreira de forma despretensiosa, quando adolescente,

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ao passar em frente a uma boutique muita famosa de Juazeiro, no início dos anos 1970. Teresinha se encantou por um vestido que estava na vitrine e não tinha dinheiro para comprá-lo. Deu seu jeito. Memorizou o modelo, comprou um tecido e criou sua primeira peça de roupa. “Comprei um tecido sim­ples, mais barato. Não sabia que tinha que dobrar o vestido para sair as duas partes iguais e ficou uma pelo avesso. Como era um tecido brilhoso em ambas as partes, ninguém percebeu. À noite fui a uma festa e lá, as minhas amigas não acreditaram que eu tinha feito aquele vestido. Pensavam que eu havia comprado o vestido que estava na boutique’’, conta orgulhosa. Foi através da propaganda das amigas que o trabalho de dona Teresinha ficou conhecido. Ela não parou mais. E para quem já costurava tão bem e já havia confeccionado tantas peças diferentes, ela ainda tinha um desafio. Certo dia, uma amiga do salão de beleza em que frequentava, pediu que fizesse o seu ves­tido de noiva. Terezinha, de início, achou

um grande desafio. Pensou em rejeitar, mas reconsiderou a proposta. “Ora, se eu faço um vestido longo, todo trabalhado, não vai ser muito diferente fazer um vestido de noi­va. É que não sei dizer não para ninguém. Então, pedi para ela trazer o modelo. Fiz, e ela adorou”. O vestido deu o que falar. A notícia se espalhou. Mais vestidos de noivas foram aparecendo. A costureira conta que mesmo depois de tanto tempo ainda se emociona quan­do vê o vestido pronto no corpo da noiva. Às ve­zes nem precisa estar terminado para saber que a noiva gostará. Esquece ocasionalmente até de cobrar pela peça. A filha, Erica Joana, reclama, diz que é preciso cobrar mais caro, já que as peças dão tanto trabalho. Terezinha admite não ter muito jeito quando o assunto é dinheiro. Até hoje quando escolhida para produzir uma roupa, sente-se honrada. “Às vezes a noi­va vem de longe, escolhe um tecido, pensa no vestido e se lembra de mim. O que pos­so fazer? Se a estrela maior da


Dona Terezinha se especializou em criar vestidos de noiva. São 35 anos entre agulhas, linhas e tesouras

“Às vezes a noiva vem de longe, escolhe um tecido, pensa no vestido e lembra de mim pra fazer”

festa confiou em mim para criar o vestido. Te­nho mais é que corresponder ao sonho dela.” Já são trinta e cinco anos entre agulhas e li­ nhas e dona Teresinha não pensa em se aposentar de uma vez. Os filhos reclamam, as costas doem, ela não sabe se vai conseguir parar um dia, são muitas clientes, o convívio tornaram-nas amigas, confidentes, mas ela sabe que é necessário diminuir o ritmo. “Um dia, quem sabe, vai ser difícil, vou diminuir porque já estou cansada, mas parar ainda não. Tenho saúde e olha só o tanto de sonhos para realizar”, diz, apontando para as rendas empilhadas ao lado da máquina de costura. Entre rezas, cafés e costuras Não foi necessário ajuste no

conjuntinho que a primeira cliente veio provar, numa manhã quente de quinta-feira. Cicinha dispõe de um olho treinado e raramente erra as medidas de uma silhueta. A casa está um pouco abafada, algumas janelas ainda se encontram fechadas, um descuido da costureira que esqueceu de abri-las logo cedo. Mas o café já está feito, quente. Serve-se uma boa xícara. É o seu desjejum. De volta à labuta. Há seis anos, essa é a rotina de Cícera Maria de Melo Carneiro da Ro­cha, depois que deixou o cargo de funcionária pública para tratar de um carcinoma agressivo, mais conhecido como câncer de mama. Costureira há mais de trinta anos, sempre conciliou as duas profissões. Entre o tratamento e a cura, dedicou-se somente à costura para ajudar nas despesas de casa. Foi um período difícil para toda a família, mas Cicinha sabe que foi algo que a ajudou a crescer como ser humano. A resignação vem da sua fé, espírita kardecista. Ela encontrou na religião forças e coragem para superar e enfren­tar dois anos de quimioterapia, uma cirurgia delica­ da para a retirada do tumor e mais um ano de tratamento. “Foi barra pesada, mas fiz direitinho o trata-

mento é uma coisa que abala, mas eu sem­pre tive muito apoio e muita fé, graças a Deus.” Cicinha rezava todos os dias, sofria com a agressividade dos efeitos colaterais, causados pela forte medicação, mas não se deu por vencida. Entre um mal estar e outro, tomava um cafezinho e mergulhava no trabalho com as agulhas, tesoura e linhas. Quando anunciou a suas clientes que teria que dar um tempo nas costuras, recebeu muito apoio. “Todas diziam que estavam rezando por mim, coloca­vam meu nome na missa, em cultos. Meu nome foi parar até num centro de candomblé, no Rio de Janeiro.” Hoje, já curada, entre as ativida­ des domésticas e as aulas de hidroginástica, que quase nunca falta, costura o dia todo. Ela confecciona em mé­dia quatro peças por dia. O médico havia acon­selhado apenas uma ou duas, mas Cicinha acaba extrapolando esse limite. “Já teve vezes da cliente sair daqui meia noite, principalmente em época de festas.” Apesar de ter uma mãe costureira, foi com a madrinha que aprendeu a fazer roupas. “Ela me entregava uma tesoura, agulha e li­nha desde os meus quatro anos. Aí com o tempo, eu aprendi a fazer as roupas para as minhas bone­ Novembro | 2013 45


Cicinha confecciona em média quatro peças por dia. A renda da família quase sempre é complementada pelo dinheiro das costuras

cas. Após ter o meu primeiro filho, comecei a costurar para as minhas irmãs e amigas. Também fazia roupas para mim, mas até então nunca havia pensado em me profissionalizar.” Casada há 36 anos, tem em seu marido, segundo ela, o seu maior incentivo. Ali­ás, seu Airton, aposentado, é o maior crítico e é o primeiro a apontar as falhas. É o que mais enten­de quando se trata dos acabamentos das costuras. Já é famoso entre as clientes, é muito sincero, “às vezes até demais” comenta Adriana, amiga e cliente de Cicinha. Seu Airton fala o que cai bem em cada uma, afiado nos palpites. É porque ele já trabalhou com tecidos, em uma loja da cidade, ven­dendo para a maioria das costureiras de Juazeiro. Entre um café e outro – já que o café não pode faltar em sua casa - Cicinha sempre acolhedora, sorridente, adora um bom papo. Mas confessa que, apesar do seu jeito calmo, já brigou feio com algumas clientes. “Quando trabalhava para uma loja aqui da cidade, fazendo alguns reparos, como ajustes, me enviaram uma 46

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roupa de uma dondoca, esposa de um médico famoso, mas eu já estava com duas clientes em casa esperando terminar suas roupas. Aí ela queria que eu deixasse de fa­zer o que estava fazendo para ajustar um vestido para ela. Disse que o marido a esperava e que não podia demorar. Com aquele ar de arrogância, sabe?” Cicinha sempre muito calma e paciente, conta que con­tinuou o que estava fazendo. “Aí eu disse que podia estar até o papa esperando por ela, que só quando terminasse aquela costu­ra, podia atendê-la, daí ela saiu cantando pneu no carro. Depois o pessoal da loja me ligou, pedindo para agilizar o dela, eu disse que até faria o ajuste, mas ela que não pisasse na minha casa, porque eu a colocava para correr”, conta Cicinha aos risos. Ela diz que pretende continuar como costu­reira, pois, acha uma profissão bonita, “agradeço a Deus por saber costurar, pois muitas vezes a renda da família depende somente do dinhei­ro das costuras.” Cicinha tem em muitas clien­tes, amizades duradouras e verdadeiras. Muitas contam

seus problemas, suas frustrações, e ela, apesar de muitas vezes cansada, sempre as es­ cuta com paciência e uma boa xícara de café. Sonhos, insônias e trabalho A poucos metros da sua mesa de costura, a foto de um rapaz sorrindo com o diploma na mão deixa dona Maria de Lourdes Pereira orgulhosa. Ela se lembra de um período de muito esforço e sacri­fícios. Compondo roupas e sustentando vidas. Ela formou o caçula dos seus três filhos em me­dicina apenas com o dinheiro de suas costuras. Autodidata, fazia uma costura vez ou outra. Não tinha tantas clientes. Não trabalhava para manter a família, apesar de suas costuras ajudarem no orçamento. Quando os dois filhos mais velhos casaram e for­maram suas famílias, a situação financeira na casa de Maria de Lourdes entrou em crise. Agora cada um tinha a sua própria família para sustentar. Além disso, nesse mesmo período, o seu marido adoeceu e precisou parar de trabalhar


e o filho mais novo, Daniel, tentava entrar para a faculdade de medicina. Dona Maria de Lourdes era o único suporte da família e trabalhava o dia todo e, muitas vezes, a noite toda também .“Meu marido muitas vezes disse para o Daniel pro­curar um emprego, mas eu di­zia que enquanto pudesse dar um prato de comida e um lugar pra dormir, ele iria continuar tentando medicina”. A doença do esposo de Maria piorou. Passou oito dias em coma. Foi necessário um tratamento intensivo e agressivo nos rins, cheio de incertezas quanto a sua recuperação. Com o tempo, nem a hemodiálise, nem os remédios foram suficientes. A única chance era realizar um transplante. Um momento decisivo. Daniel queria ser o doador. “Para ele, era um dever, como filho e como futuro médico”, diz a costureira. A cirurgia deu certo. Mas ainda tinha muito o que fazer. Com esposo e filho se recu­perando, ela dobrou as horas de trabalho, ba­talhou por sua família e pelo sonho de seu filho. Foram três anos de tentativas, Daniel, com mui­to esforço, conseguiu entrar na Faculda­de de Medicina. Apesar da vitória, as dificuldades não acabaram. Com a vida acadêmica, vieram novas despesas, às vezes o dinheiro da cos­tura era só para tirar as cópias dos livros para ele estudar, já que eram muito caros. Mesmo com a ajuda de custo de R$ 250,00 que Daniel recebia de uma bolsa de estu­do, o dinheiro não era o suficiente para cobrir as despesas de aluguel, água, luz e, ainda por cima, os remédios que seu esposo precisava tomar. Maria de Lourdes ainda recebia ajuda dos outros filhos. “A minha filha, Denise, e o meu filho mais ve­lho, Denis, me ajudavam sempre, mas a gente tinha que entender que eles possuíam as suas famílias para cuidar.” Maria de Lourdes via o esforço do seu filho, e, muitas vezes, viravam a noite juntos, ele estudando;

Maria de Lourdes se orgulha de ter formado seu filho em medicina com o trabalho de costureira

ela costurando. “Isso me fazia continuar. Sabia que era por um bom motivo” , afirma. Depois de longos e difíceis anos, Daniel conseguiu o esperado diploma de médico. Fez um empréstimo no banco para pagar o baile de formatura - “meu sonho era que ele tivesse esse baile, quase não deu para fazer e isso me angus­ tiou muito.” Mas uma vez, eles conseguiram. Foi uma grande celebração, com familiares e amigos que fizeram parte dessa conquista, e que torce­ram pelo sonho do filho de Maria de Lourdes. Ela diz que faria tudo de novo, se preciso.]

Serviço Teresinha da Silva - Rua César Barbosa, 10, Timbaúbas, Juazeiro do Norte - CE Tefone: (88) 97122050 Cicera Maria - Rua Santa Isabel, 1978, São Miguel, Juazeiro do Norte - CE Telefone: (88) 88016430 Maria de Lourdes - Rua do cruzeiro, 1030, São Miguel, Juazeiro do Norte - CE Telefone: (88) 92459918 Novembro | 2013 47



O universo ufológico

NA SÉRIE “ARQUIVO X” Ensaio Raquel Alves

T

he X–Files ou “Arquivo X” (no Brasil) é uma famosa série americana dos anos 1990, criada por Chris Carter e produzida pelo estúdio Fox. Foram nove temporadas (totalizando 202 episódios), originando também dois spin-off (uma sérire derivada de outra): The Lone Gunmen (Os Pistoleiros Solitários), em 2001, e Millennium em 1996; 18 novelizações (episódios da TV adaptados para livros); e quatro filmes: The X-Files: Fight the Future (Arquivo X, O Filme), em 1998, Nothing Important Happened Today (Nada importante aconteceu hoje), em 2001, The Truth (A Verdade), em 2002, e I want to believe (Eu quero acreditar), em 2008. “Arquivo X” alcançou uma dimensão de público inimaginável, recebendo premiações diversas e acumulando um legado de fãs conhecidos como “eXcers”. O seriado foi exibido em mais de 30 países e , no Brasil, ficou no ar de setembro de 1993 a maio de 2002, transmitido pela Rede Record. A série televisiva e os filmes mostram o universo da ufologia (o estudo dos fenômenos/casos ligados direta ou indiretamente aos objetos voadores não identificados- OVNIS). A partir dos estudos da ufologia, formulam–se hipóteses voltadas a seres oriundos de outros planetas, ou seja, o EBE (Entidade Biológica Extraterrestre) ou popularmente conhecido como “extraterrestre”. O ufólogo

é o nome dado ao pesquisador dos assuntos inerentes a essa área do conhecimento, ainda considerada uma pseudociência (estudos derivados de informações científicas, mas que não há aplicação de métodos científicos em formulações de hipóteses apresentadas). Dois estudiosos e pesquisadores da ufologia ressaltam os aspectos positivos e negativos da série “Arquivo X”. Eduardo Della Santa, proprietário do site “UFOTVonline”, define o seriado como percursor das questões ufológicas: “A série levantou a lebre sobre o fato da existência de extraterrestres, tramas e manipulação governamentais. Boa parte das pessoas abriram sua mente para essas verdades.” Já Renato A. Azevedo, consultor da “Revista UFO” e autor dos livros “De Roswell a Varginha” e “Filhas das Estrelas” opina que o lado negativo da série foi o fato do “aumento desproporcional de pessoas se dizendo abduzidas ou contatadas, nos anos 1990, época em que a série estava no auge”. Contudo, Renato considera que “a influência positiva superou amplamente a negativa, deixando claro que, mesmo sendo uma ficção científica, havia na realidade muita coisa estranha ainda hoje sendo mantida oculta da população. Arquivo-X misturou fatos reais com a ficção, e o exemplo mais claro é o famoso Caso Roswell, ocorrido em julho de 1947”.

A primeira ocorrência ufológicoa no mundo, considerada como oficial, foi o caso Roswell, no Novo México, ocorrida em 8 de julho de 1947, fato este que mudou a vida de uma pacata cidade americana, tornando-a um dos maiores pontos turísticos quando o assunto é disco voador. Antonio Raphael Queiroz Alves Rocha, pesquisador em ufologia e fundador do primeiro site e loja virtual caririense de ufologia (UfoBrasil e UfoBrasil Web Store), enfatiza que “segundo moradores e autoridades que participaram da captura e busca dos destroços que caíram em Roswell, não se tratava apenas de um balão, como afirmou o Governo, mas de uma nave alienígena que havia se acidentado. A ufologia foi abordada em diversos livros e inspirou a criação de muitas séries, filmes e desenhos sobre uma questão emblemática: realmente estamos sozinhos em meio a esse universo gigantesco ou existem diferentes formas de vida além de nós? Independente da resposta, somos susceptíveis a acreditar que deva existir alguma espécie de vida em outro planeta. Nosso imaginário já provou isso. Um bom exemplo são os seres que denominamos de “heróis” a maior parte deles são extraterrestres ou mutantes, dotados de poderes que vão além de nossa compreensão. Bernadino Sánchez Bueno, engenherio eletroeletrônico, investigador dos fenômenos ufológicos e autor do


livro “Os óvnis e a vida do universo” assinala que a “idade da Terra é de 4 bilhões de anos”. O que chamamos de “vida” realmente veio existir há 500 milhões de anos e “o homem apareceu somente no último milhão.” Olhando para a extensão infinita e observável do universo, não temos a dimensão de que ali abrigam aproximadamente 1 trilhão de galáxias. Segundo Sánchez, há cálculos que apontam para “4 quatrilhões de planetas e aproximadamente 12 quatrilhões de satélites.” O fato é que em todo o mundo, pessoas de diferentes países, etnias, classes sociais e escolaridades contam terem testemunhado ou sofrido experiências de abduções - quando a pessoa afirma que foi sequestrada por uma nave extraterrestre - ou que tiveram contatos imediatos com entidades desconhecidas. Sensacionalismo Entretanto, o misticismo e o charlatanismo fazem com que dúvidas pairem acerca dos estudos e discussões da ufologia. Existem pessoas sérias, que lutam para que a verdade venha à tona, sofrendo inclusive perseguições e atentados contra a própria vida; há também aqueles que se aproveitam da ufologia, manipulam as pessoas sem tanto conhecimento nessa área, levando-as ao fanatismo e não se preocupam com outros meios/justificativas/crenças para certos fatos apresentados pela nossa realidade. Não podemos esquecer também da relação entre a mídia e os assuntos que norteiam o universo ufológico. Eduardo Della Santa narra uma experiência própria que nos permite ter uma idéia do tipo de sensacionalismo que é realizado nos veículos comunicativos: “Ainda destaco que a mídia se faz de juiz e controla as informações, determina a verdade, mesmo ela sendo montada e manipulada. Posso dizer que já senti na 50

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pele a manipulação da mídia, quando emissoras de longo alcance manipularam imagens com sensacionalismo e deboche.” Segundo Eduardo, ‘‘no momento em que a população tiver a comprovação da existência de extraterrestres dois pilares, bases da sociedade da Terra, vão ser rachados: a religião e a ciência. A religião por colocar medo e culpa em nome de Deus e manipular as verdades do passado; e a ciência, por manter em segredo os fatos que ocorreram no passado e ocorrem até hoje e que não são teorias malucas, e sim fatos comprovando que sempre existiu o intercâmbio de ‘raças’ na Terra.” A maneira como a série “Arquivo X” retrata o universo ufológico foi inovador, no que diz respeito a temas que se aproximasse mais de nossa realidade, e não tão “futurista” como Star Wars, por exemplo. Fatos ou acontecimentos vivenciados em nossa realidade servem de referência para o enredo da série, que, a princípio, podem parecer uma mera ficção científica, mas deixam aquela famosa “pulga atrás da orelha” sobre os questionamentos por trás da temática de vida em outros planetas e entidades superiores aos seres humanos convivendo em nosso planeta. A série “Arquivo X” também explora o mistério, o romance, a paranormalidade, o sobrenatural, a mitologia, a bruxaria, o ocultismo e o paganismo; lendas urbanas, literatura e espiritualidade. São temas que se apresentam mesclados nos episódios da série, paralelos aos casos e discussões ligados as casuísticas ufológicas (conspirações governamentais, experiências de engenharia reversa, metáforas e parábolas de salvadores da humanidade, presságios de “fim do mundo” etc). A trama A história do seriado televisivo é sobre a incansável busca do agen-

te especial do FBI, Fox Mulder (interpretado por David Duchovny) da verdade por trás da abdução de sua irmã Samantha, fato este que lhe deixara obcecado e que sempre o assombrou durante sua vida. Aquela terrível experiência lhe deixara traumas profundos, ao mesmo tempo, alimentava a luta de Mulder por descobrir o paradeiro de sua irmã. Apesar de suas qualidades como agente, Mulder é sempre motivo de piadas por parte dos seus colegas do FBI, por causas de suas crenças em extraterrestres e teorias de conspirações. Além disso, ele assume um setor do FBI chamado “X Files”, local onde são arquivados documentos de casos diversos e “estranhos”, muitas vezes sem solução concreta ou baseados nos parâmetros da anormalidade. Sua nova parceira de trabalho, Dana Scully, (interpretada por Gillian Anderson), foi encarregada de vigiar o trabalho de Mulder. Ao longo das temporadas, mentiras e verdades duelam mortalmente, e os personagens viram marionetes que lutam para se libertar daqueles que tentam manipulá-los. Suas concepções sobre crenças e verdades se alteram no rumo da história. Mulder conta com amigos como Longly (interpretado por Dean Haglund), Byers (interpretado por Bruce Harwood) e Frohike (interpretado por Tom Braidwood) que são membros do grupo “Pistoleiros Solitários,” com habilidades inclinadas ao ramo da informática e da ciência. Eles produzem também um jornal independente chamado “A Bala Mágica”, que relata bastidores dos segredos governamentais. Walter Skinner (interpretado por Mitch Pileggi) é o supervisor de Mulder e Scully. É um homem que acredita no governo e na justiça, até que começa a ser vítima das perseguições do sistema. Ele é envolvido em teias de mentiras e enganos, que o fazem acreditar no que, até então, eram


O universo ufológico envolve o imaginário de pessoas em todo o mundo : verdade ou mentira?

“maluquices” supostamente frutos da imaginação de Mulder. Fatos que passam a ser uma perspectiva de uma realidade aceitável para Skinner. Canceroso ou Smoking Man (interpretado por William B. Davis) é um homem sem escrúpulos que persegue Mulder e quem ousar se intrometer em seu caminho e em seus planos. Sob ele, há um mister de intrigas, segredos, mistérios e mortes. Ele é também um dos membros de um grupo conspiratório de humanos que têm o conhecimento de atividades extraterrestres no planeta e são subjugados por uma raça superior alienígena, que deseja povoar a Terra. O vilão da série (um dos mais importantes e carrascos) fora amigo do pai de Mulder e “escondeu” Samantha, que foi abduzida ainda quando tinha apenas oito anos de idade, e logo depois de ser usada como cobaia em experiências alienígenas, ficou aos “cuidados” de Canceroso, que fez de tudo para mantê-la afastada de Mulder. Na sétima temporada, no episódio intitulado “Closure” (no Brasil, Libertação), enquanto investigava

um misterioso caso, Mulder se depara com os espíritos de várias crianças mortas, e eis que ele encontra Samantha, que morrera em 1978. Contudo, uma parte dele se nega a acreditar que ela está morta. Os alienígenas não confiavam nos humanos e, como prova, exigiram que cada membro da sociedade de conspiradores “entregasse” um familiar como garantia. O pai de Mulder escolheu Samantha. Ela foi levada pelos alienígenas em sua nave e submetida a experiências de clonagem feita em parceria com os conspiradores humanos. Dana Scully passa a se tornar uma pessoa importante na vida de Mulder ao longo do tempo e acaba se convertendo em uma vítima das armações do governo, sendo abduzida. Depois de ser submetida a testes, ela é devolvida, sem saber que em seu ventre está o fruto de um programa do governo e de um raça alienígena, que tenta criar o ser híbrido perfeito, fundindo pois, os dois tipos de DNA. Posteriormente, Scully dá a luz ao bebê e para proteger o seu filho, entrega-o para a adoção, com o objetivo de

que o menino tenha uma vida normal, longe de perigos constantes, devido a luta insistente do casal pela verdade. Com o desaparecimento de Mulder, novos personagens se inserem na série. John Doggett (interpretado por Robert Patrick), um ex-fuzileiro que agora é designado a ficar à frente do Arquivo X. É um homem cético e atormentado pelo desaparecimento do seu filho, um caso também sem solução. Monica Reyes (interpretada por Annabeth Gish) é a dupla de Doggett. Ela é especialista em crimes ritualistas. Mentiras ou verdades The Truth is out there (A verdade está lá fora), Trust no one (Não confie em ninguém) e I want to believe (Eu quero acreditar) são os principais slogans da série Arquivo X. De cara, percebe–se a grande problemática (senão central) do seriado, que é bastante enfatizada e discutida neste texto: a busca da verdade sobre a ufologia. O filme “The truth” (A Verdade), lançado em 2001 é o resumo de todos os questionamentos da série e encerra (ou tenta) a história das nove temNovembro | 2013 51


Dana Scully (Gillian Anderson) e Fox Mulder (David Duchovny) são os protagonista da série “Arquivo X”

poradas. O filme começa no Complexo de Mount Weather em Bluemont, Virgínia, onde Fox Mulder reaparece pela primeira vez depois de um determinado tempo ausente de suas atividades no FBI. Neste local, os militares escondem um segredo, que a princípio, é uma das tantas verdades que Mulder procurou (senão a mais importante): o segredo remete ao dia 22 de dezembro de 2012, tido como o “fim do jogo”. Mulder é preso e julgado pela “morte” do “super soldado” (é um projeto genético dos militares que funde DNA humano e DNA alienígena na concepção ou fabricação de um “híbrido” com grande capacidade de força, habilidade e inteligência), o ex-fuzileiro da marinha Knowle Rohrer (interpretado por Adam Baldwin). Os militares/governo/poderosos estão desejosos por silenciar a voz do único homem que foi até as últimas consequências para provar que “a verdade está lá fora” e que eles tentam de todas as formas ocultá-la da sociedade. Ao longo do filme Mulder conta com a ajuda de espíritos 52

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de amigos e inimigos, para ajudá-lo nessa batalha pela verdade. Mas o que vem a ser essa verdade que tanto se discute? O conceito de verdade atribuído ao filósofo alemão Martin Heidegger é que ela é a resposta das indagações humanas ou “a revelação da própria existência”. Para o filósofo francês Michel Foucault, em seu livro “A microfísica do poder”, a verdade é “identificada no poder a uma lei que diz não”, bem como “ela é produzida e transmitida sob controle, não exclusiva, mas dominante”. No fim, a verdade é regulamentada pelo poder. Cada sociedade “tem seu regime de verdade”, ou seja, tem “discursos, mecanismos, instâncias e procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade”. A concepção de verdade para Mulder está na busca por questionamentos inerentes em sua própria crença em entidades oriundas de outros planetas. Intercalando isso à nossa realidade, diversos pesquisadores atribuem a vida humana aos extraterrestres: associam a história da evolução da humanidade com intervenções

de “raças alienígenas superiores” que aqui mantiveram contato com povos/ civilizações antigas. Guy Tarade, romancista, ufólogo francês e autor do livro “Ovnis e as civilizações extraterrestres” diz que a “história da humanidade prova que o homem sempre encontrou mais do que procurava”. A chave para descobrir alguns dos mistérios da humanidade está na própria história, religião e arqueologia, segundo o autor. No fundo dos mitos, lendas, tradições e culturas há resquícios que os pesquisadores apontam como prova do contato entre humanos e extraterrestres. Erich von Däniken, escritor suíço e autor do livro “De voltas às estrelas: argumentos para o impossível” e do livro “Eram os deuses astronautas” acredita numa idéia em que “um deus poderia ter criado o homem segundo sua própria imagem, mediante mutação artificial.” Esse “cosmonauta” (um ser vindo do espaço) teria participação direta na evolução do homo sapiens. Erich von Däniken vai mais longe em suas postulações: acredita que deva ter existido na antiguidade


um ser híbrido cuja literatura, arte e pinturas rupestres sempre retrataram. Essas “figuras” que habitam o imaginário do homem que a representa de alguma forma, segundo o escritor, seriam seres do espaço que vieram visitar nosso planeta desde os primórdios, instigando a curiosidade dos povos. No livro “De voltas às estrelas: argumentos para o impossível”, o escritor suíço pesquisa a origem de alguns povos antigos. Os indígenas acreditam serem “filhos do céu”. Os Incas se assumem como “filhos do sol”. Os Maias como “filhos da constelação das Plêiades”. Os germânicos atribuem serem ancestrais dos “Wanen”, deuses nórdicos. Os hindus, descendentes de Indra, Gurkha ou Bhima. O que essas narrativas têm em comum para Erich é “que os deuses vieram e selecionaram um grupo, que fecundaram e segregaram dos impuros. Equiparam-nos com conhecimentos ultramodernos, para, em seguida, desaparecer temporária ou eternamente.” Alguns livros sagrados apresentam narrativas, citações e metáforas que podem ser interpretadas como aparições, contatos com extraterrestres e visualizações de ovnis (objetos voadores não identificados). Juan José Benítez (ou J. J Benítez), jornalista, escritor espanhol e autor do livro “Óvnis: S.O.S. à humanidade” diz que os “caldeus, egípcios, gregos, romanos, hebreus” já tinham notado no céu tais “ovnis”. Podemos citar também a história do personagem bíblico Enoque (pai de Matusalém). Em uma narrativa na qual ele “viaja pelos céus” e têm visões proféticas, alguns estudiosos interpretam essa história como um contato com seres angelicais de luz, que mais parecem extraterrestres. E o que dizer da história do personagem bíblico, o profeta Elias? “Metáforas de carruagens celestes de fogo”

ou “máquinas de transporte de seres espaciais” podem ser analisadas como óvnis. Um exemplo bíblico tido como frutos de “cruzamento” de raças “diferentes” ou extraterrestres, são os gigantes, nefilins e elioud. Ainda segundo Juan José Benítez, nos séculos XVII, XVIII e XIX, há relatos de “bolas ou esferas de fogo, objetos flamejantes, globos enormes”, ou seja, ovnis. A freqüência de relatos de óvnis se deu no final da Segunda Guerra Mundial, onde se soube que os aviões eram frequentemente seguidos por bolas luminosas e discos prateados, que foram chamados de foo-fighters. Na série Arquivo X, muitas aparições de Ovnis e casos de abduções são relatodos e exemplificam todas as discussões acima mencionadas. Em se tratando da descoberta que Mulder fizera no Complexo de Maunt Weather em Bluemont, esta causa-lhe um impacto, medo e sensação de fracasso. No dia 22 de dezembro de 2012, ou o “fim do jogo”, é a data da invasão final dos alienígenas. A série usou de profecias atribuídas aos Maias, com gancho que justificasse todas as tramas da série ao longo dos anos. Mais especificamente sobre os Maias, segundo o ufólogo francês Guy Tarade, em seu calendário, em um dado momento, os sábios Maias descobriram que “certas conjunções de astros eram mortais para a natureza e para o homem.” Os sacerdotes que assim profetizaram, consideravam tal época “perigosa”. A história de diversas religiões e mitologias apresentam narrativas que justificam o surgimento de todo o universo e profetizam o fim de tudo, ou simplesmente o início de um novo ciclo ou uma nova era, quando se almeja uma elevação espiritual com a finalidade de gerar consciência de nossas ações,

que refletem todos os problemas existentes no mundo. Ou seja, às mudanças de eras, dizem respeito a consciência e a atitude humana necessária para alterarmos a nossa realidade que ruma a uma destruição eminente. Há livros que vão além e que afirmam missões extraterrestres a fim de salvar a humanidade do “apocalipse”. O escritor espanhol J. J. Benítez conviveu um tempo com membros do Instituto Peruano de Relações Interplanetárias (IPRI), cujos membros afirmam manterem contato com seres extraterrestres de diversos mundos. Ao longo do livro, o pesquisador e jornalista destaca a “Missão Rama”, na qual o propósito é evitar o processo repetitivo de autodestruição do planeta Terra, em um dado momento no tempo: “Há milhões de anos, as civilizações atingiram metas tecnológicas muito elevadas. No entanto, em todos esses processos, o nível espiritual não avançou juntamente com o desenvolvimento técnico. E todas essas civilizações, uma após outra, autodestruíram-se.” Em se tratando da conspiração do silêncio, medo e poder, os governos de certos países detêm o co-

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O mito da ufologia é conduzido também por questões religiosas em “Arquivo X”

nhecimento desses contatos de extraterrestres e humanos, bem como armazenam artefatos oriundos de naves alienígenas. Mas desmentir, ridicularizar e silenciar é melhor do que encarar a verdade dos fatos. Durante o filme da série Arquivo X, o discurso do agente Mulder é magnífico, logo quando é condenado à morte por injeção letal, porque este discurso, na frente dos seus acusadores, sintetiza todo o triângulo que abrange a verdade, poder e medo. Já a verdade para a agente Dana Scully, a princípio, se baseia na ciência, na explicação racional dos fatos, (inclinado-se também na fé cristã, em situações em que teve que deixar de lado qualquer preconceito, e vê naquele evento “um milagre divino”). Guy Tarade fala que a verdade científica – que não é perfeita –, pode ser posta em dúvida, e é na evolução do homem que está a “revolução do espírito humano”. (p. 167) Em uma certa parte do filme, a personagem Monica Reys, chamada a depor no julgamento de Mulder, enfatiza o questionamento de que a verdade é poder, conforme já dizia o filósofo francês Francis Bacon. 54

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Enquanto Mulder esperava pelo seu fim na cela da prisão, eis que Scully, Doggett, Monica, Skinner e Kersh ajudam Mulder a fugir. Scully decide acompanhá-lo e não entende o porquê de Mulder decidir ir à Aldeia de Índios Anasazi, abandonados há quase dois mil anos, local onde está o misterioso “Guardião da Verdade” que enviara a Mulder a chave para que ele se infiltrasse no Complexo Militar, no início do filme. Os Anasazi foram antigos povos indígenas dos EUA, cuja civilização existiu por volta de 1200 a.C, e desapareceu de maneira misteriosa. Alguns vestígios encontrados por arqueólogos permitem aos historiadores construírem a história, cultura, religião e a vida desse povo, que provavelmente ocupou quatro estados americanos: Utah, Colorado, Arizona e Novo México. O que chega a ser irônico no filme é que este “Guardião da Verdade” é Canceroso, o homem mais hábil em mentiras e manipulações. E é no ápice deste filme, que encontramos os diálogos reveladores da “verdade”: A verdade pode ser vista neste diálogo como algo que não estamos prontos para aceitá-la e que prova-

velmente vamos morrer e não achá-la. Vivemos com medo de descobri-la e quando temos indícios de que ela existe, de fato, temerosos, nos negamos a aceitá-la. Mas será que Mulder teve medo da verdade? O fato é que Mulder parece frustrado por saber que existe uma data para o “fim do jogo” e que se encontra impotente diante dessa situação. A verdade é um conceito que passa por reformulações adaptáveis a nossa vivência e à crença, mas apenas apresento uma perspectiva a ser questionada em relação a veracidade de um campo de estudo complexo e intrigante que é a ufologia, rodeada por véus de misticismo, realidade, fantasia, ou seja, busca constantemente comprovar suas “verdades” por meio de fatos mitológicos, história, religião, ciência, etc. No final do filme, Mulder – um homem que tinha suas dúvidas quanto Deus ou deuses, que não acredita cem por cento, mas não nega – toca no crucifixo que está no pescoço de Scully, símbolo de toda a devoção (fé) da agente, encerrando o seu discurso com a frase: “Talvez haja esperança!”]


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