Afinal, o que é experiência emocional em psicanálise?

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Afinal, o que é experiência emocional em Psicanálise?

organização

Cecil José Rezze Evelise de Souza Marra Marta Petricciani



AFINAL, O QUE É EXPERIÊNCIA EMOCIONAL EM PSICANÁLISE?

Introdução Esta publicação, “Afinal, o que é experiência emocional em Psicanálise?”, segue-se a “Psicanálise: Bion-Transformações e Desdobramentos” e ”Psicanálise: Bion-Clínica ↔ Teoria”. Em todas elas os temas propostos foram desenvolvidos por um conjunto de psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), parte dos inúmeros estudiosos de Bion nas diversas Sociedades integrantes da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). No Brasil, as cidades de São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro e Porto Alegre congregam desenvolvimentos importantes nesse vértice. Talvez desperte estranheza a pergunta “Afinal, o que é experiência emocional em Psicanálise?” Estamos, com isto, denunciando não sabermos do que se trata? Afinal, “experimentar emoções” é uma invariante, ou uma peculiaridade do ser humano. Facilmente se atribui “emoção”, inclusive, a algumas espécies animais (os donos de gatos e cachorros que o digam!). E qualquer analista dirá que trabalha com as emoções, ou com experiências emocionais. 3


É claro que a noção de “experiência emocional” é uma invariante nas teorias psicanalíticas, mas em Bion é conceito central e organizador do desenvolvimento mental. Bion propõe que tal desenvolvimento se dá por meio do “aprender da experiência emocional” e recomenda que o trabalho do analista deva se centrar na “experiência emocional em curso na sessão”. Isto implica em prática presencial, isto é, na necessidade de dois (analista e analisando) presentes no encontro analítico. Ainda que com a consciência de que lidamos com o “inefável” da experiência, o “O”, em si desconhecido, “o vir a ser” em transformação constante, buscamos descrições e até interpretações para o vivido no encontro, mesmo experimentando com incômoda frequência a dificuldade em transformar isso em palavras. Temos também tentado consistentemente tornar mais precisos nossos conceitos e teorias de modo a alcançarmos uma linguagem eficaz para nos comunicarmos. Mas, onde está o nosso arcabouço ou patrimônio adquirido de “transformar o inconsciente em consciente”, “analisar as angústias e defesas”, “interpretar os sonhos” com seu umbigo edípico, “atentar por onde caminha a sexualidade”, “analisar a transferência e a contra transferência” e a remissão dos sintomas e a questão da psicossexualidade? Podemos dizer que tudo isto está amalgamado na tal da “experiência emocional”, pois Bion, que não pretendia criar novas teorias, a partir do “Aprender com a Experiência”, gradativamente com os desenvolvimentos posteriores (“Elementos de Psicanálise”, “Transformações”, “Atenção e Interpretação”, “Memória do 4


Futuro”) legou-nos não só uma Teoria de Observação em Psicanálise, mas, também, uma teoria de desenvolvimento e uso do Pensamento que vale também para as Emoções. Na prática clínica, suas proposições revolucionaram a concepção da posição do analista na relação rompendo com a ideia da neutralidade do mesmo. Enfim, a epistemologia foi alocada no centro do trabalho psicanalítico. Bion enfatizou em Psicanálise o Desconhecido, isto é, fazemos aproximações, propomos ideias, versões, nunca a verdade em si. Alerta continuamente para o Inefável da experiência, o trânsito, o movimento inerente ao que é vivo. Enfatizou a dimensão do Ser na sua relação com o Conhecer, isto é, o conhecimento ganha outra dimensão se realmente transforma o Ser, ou se transforma em Ser. Ainda que fortemente apoiado em Freud e Melanie Klein, claro que também evoluíram disjunções teóricas em relação às teorias centrais, enfim, quando falamos em “experiência emocional em curso na sessão” não se trata de um recorte ingênuo e sim de uma concepção que envolve um modelo e teoria do funcionamento mental. O fato é que, no final das contas, Psicanálise é uma experiência apoiada em grande parte em conversa, de preferência relacionada com a vida real, e inclui inevitavelmente (do nosso vértice teórico) o alucinado. Os assuntos propostos envolvem questões prosaicas ou grandiosas, desde o adolescente que gasta R$ 1.000,00 em celular e se encrenca com os pais, ou a menina que beijou X na balada e em seguida se desespera ao vê-lo com a amiga, até um casal que procura uma analista na segunda5


-feira e a pessoa que consegue verbalizar, comunica que no sábado anterior o filho havia caído da bicicleta e morrido antes de chegar ao hospital. A analista, ora sem palavras como nesta situação, ora se expressando coloquialmente, muitas vezes de forma próxima ao “senso comum” ou com as “teorias fracas” no dizer de Cecil José Rezze, fará sua parte com o recurso de suas elaborações no contato com teorias extremamente sofisticadas, o preparo emocional que pode desenvolver na sua própria análise pessoal, seu arsenal de experiências pessoais e uma ética que privilegia o atendimento ao cliente e não a si próprio. Levamos ao leitor uma amostra deste fluxo, que vai da “conversa“ na sala de análise às elaborações, por vezes expressas em termos coloquiais, outras vezes em termos bastante sofisticados, dos colegas que encararam a pergunta de o que, no vértice “bioniano”, é para cada um deles, experiência emocional no trabalho analítico. Esperamos que a experiência emocional do leitor com estes textos resulte em um aprender propício ao crescimento mental dos interessados em Psicanálise. Evelise de Souza Marra1

1 Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

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ÍNDICE

Afinal, o que É experiência emocional em Psicanálise? Evelise de Souza Marra .......................................................... 5 As Experiências Emocionais nas diferentes transformações e o contato com a realidade Alicia Beatriz Dorado de Lisondo ............................................

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Experiência Emocional: um olhar diferente Cecil José Rezze ....................................................................... 39 Do Aprender com a Experiência ao Contato Psíquico Genuíno Celso Antonio Vieira de Camargo ........................................... 63 A Experiência Emocional: Uma Incógnita à procura de um sentido Darcy Antonio Portolese .......................................................... 83 A Tessitura de uma Experiêncua II. Pentimento. Deocleciano Bendocchi Alves ................................................... 105 Afinal, como apreendo o uso por Bion do conceito Experiência Emocional? João Carlos Braga ................................................................... 115

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Sobre a evolução: inocência → malícia → maldade ou altruísmo Luiz Carlos U. Junqueira Filho ............................................... 127 Dimensões díspares na experiência emocional: O que foi, hein? ↔ Eu me torno tu permanecendo eu Miguel Marques ..................................................................... 141 Experiência Emocional Paulo Cesar Sandler ................................................................ 159 Sonho sem sombras e sombrações não sonhadas: reflexões sobre experiência emocional Roosevelt M.S. Cassorla ......................................................... 195


AS EXPERIÊNCIAS EMOCIONAIS NAS DIFERENTES TRANSFORMAÇÕES E O CONTATO COM A REALIDADE Alicia Beatriz Dorado de Lisondo1 Etimologia Experiência deriva do latim experientia, derivado de experiri “tentar”, “ensaiar”, “experimentar”. É uma forma de conhecimento e uma sabedoria. Emoção provém do latim emotionem, “movimento, comoção, ato de mover”. A emoção em Bion Bion nos legou o valor das emoções como pedra fundamental da vida mental. Elas são as responsáveis pela gênese do sentido, da significação e do pensamento, mas também da loucura. De acordo com a etimologia, a emoção impõe um movimento à experiência, que pode estar dirigido ao crescimento e à sabedoria ou também ao deterioro da personalidade. A metateoria desse autor vai muito além das variações quantitativas do aparelho neurofisiológico e da pulsão, no modelo Freudiano, bem como da fantasia 35 Membro efetivo, analista didata e psicanalista de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. 9


inconsciente, em Melanie Klein. Seu modelo está fundado em uma concomitância de diferentes dimensões do sensorial e do conhecer: o reconhecimento das dimensões do alucinar, do ser, ou tornar-se a realidade, e dos pensamentos sem pensador (Braga, 2003). As emoções cumprem uma função similar aos sentidos na relação com os objetos no espaço e no tempo. A expansão da mente é uma conquista do vínculo de conhecimento K (knowledge) – emoção básica –, que pressupõe o vínculo L (love) e H (hate). Há uma articulação entre o sentir e o pensar. Também para Matte-Blanco (1975) a emoção é uma atividade cognitiva básica, uma forma elementar de classificação dos dados do mundo. A partir dela podem-se construir níveis de pensamento de complexidade crescente. Bion, ao colocar a emoção sempre de forma subjetiva, isto é, no centro da teoria e prática, também enfatiza que a psicanálise é uma ciência mística (Bianchedi, 1999). O misticismo, a experiência estética e as transformações em “O” por at-one-ment2 permitiriam uma aproximação à experiência de infinito. A intuição3 permite ao psicanalista uma revelação/descobrimento por meio de um ato de fé cientifico4. As emoções podem ter relevância e serem os fatos selecionados5 os que nomeiam a conjunção constante6. Entretanto, a capacidade negativa7 propicia nosso assombro e o reconhecimento da nossa ignorância frente à realidade última, infinita, porque nosso trabalho é finito e limitado. Para o mestre, a E.E. abarca todo vínculo humano. Nós somos movidos e comovidos pela emoção. Ela é o caldo de 10


cultivo, a matéria prima por meio da qual se desenvolvem as sementes das capacidades pensantes racionais e irracionais, poéticas e criativas, que nos permitem ou dificultam o contato com a realidade. Bion também considera as emoções negativas –L, –H e –K – os antivínculos – permeadas de voracidade e inveja, responsáveis pelos mal-entendidos. A emoção deve estar em processo de transformação contínuo (Martinez & Sor, 2004), pois quando permanece sem mudança, ela detém sua evolução e tende ao deterioro. Para Meltzer (1978, 1998), a E.E é um encontro com a beleza e o mistério do mundo. Ela desperta um conflito entre os vínculos de L, H e K e sua contraparte negativa. Sua significação sempre se refere às relações humanas íntimas. O autor faz uma discriminação entre as E.E. plenas de sentido e as de personalidade pensante, que encoraja a formação simbólica, o juízo, a decisão, a transformação em linguagem; também discrimina entre os comportamentos que representam manobras sociais de adaptação social ou instintivas, habituais, automáticas, não intencionais, e os estados de excitação pelo bombardeio de estímulo, ou seja, as diferentes formas de des-mentalização e de identificação primitiva como o imprinting, a identificação adesiva, o mimetismo, o condicionamento. As relações humanas íntimas são as E.E. que propiciam os elementos α8, aptos para o pensamento, o sonho, a memória, a simbolização, o aprendizado e a formação da barreira de contato. Esta membrana permeável e flexível que separa o consciente do inconsciente permite o contato com a realidade interna e externa. 11


A E.E. em K está na contramão das interações causais, que não implicam emoções. As relações contratuais impedem a resposta emocional espontânea, pois são uma armadura exterior de caráter social. Por exemplo, a sobre-adaptação9. A especificidade das Experiências Emocionais nas diferentes transformações A E.E está presente nas artes, na vida (Reze, 2006a), nas transformações em K e em “O”. A minha proposta é classificar as E.E em uma gradação. Seria possível contemplar as Es. Es. nas Transformações Projetivas, em alucinoses (-K) e nas Transformações Autistas (Korbivcher, 2010)? Mas se é na prática clínica que a E.E. é conclamada a discriminar entre os diferentes tipos de transformações presentes e os diferentes vínculos, as transformações projetivas em alucinoses e as transformações autistas estariam contempladas nas possíveis E.E., embora elas sejam bem diferentes. As invariantes de cada uma destas transformações são específicas e por isto a escolha de uma exclui as demais. Isto não anula, entretanto, a possibilidade de mudanças catastróficas, em uma mesma sessão, em relação ao crescimento ou do deterioro mental. 1. Transformações em K Bion revoluciona a compreensão da gênese do conhecimento humano. Ele o considera um vínculo indissociável dos vínculos de amor e ódio. 12


Para que um fato possa vir a ser um acontecimento que nutra a alma é fundamental que ele possa se transformar em uma experiência emocional (E.E.) em K e/ ou em “O”. A E.E. implica um sistema transformacional: tomar consciência10, perceber, entrar em contato com a realidade externa. Preciosas funções são desenvolvidas, como a atenção, que permite a exploração do mundo e sua descoberta. Também há um registro, isto é, o juízo que permite a discriminação e uma memória dessas Es.Es. A ação pensada, capaz de alterar a realidade, é muito diferente da atuação quando a mente funciona como um músculo que se alivia diante do transbordamento de estímulos. A E.E. expande a realidade psíquica. Até o sistema dedutivo é abstraído de uma E.E. As Es.Es. em K e em “O” contemplam relações que podem ser compreendidas na área da aprendizagem e que implicam o desenvolvimento da teoria das funções, particularmente da função α, que transforma a E.E. em elementos α. A função α é a responsável pela mudança qualitativa dos fatos da experiência sensorial, nos acontecimentos da E.E. Esta função, fator da função consciência, também é a responsável por um complexo sistema metabólico que permite transformar as impressões sensoriais em dados sensoriais, os quais, por sua vez, em um novo ciclo transformacional, ganham o estatuto de dados psíquicos (GRÁFICO I). Estas complexas operações permitem a distinção entre as qualidades psíquicas e as sensoriais. Os elementos α11 apresentam a propriedade de altos níveis de combinações e recombinações entre si. Eles têm papel ativo na repressão, formam o material reprimido e a raiz geradora 13


Gráfico I

Impressão sensorial

Dado sensorial

Dado psíquico

Audição

Pá-pá (mãe chegando)

Gostoso

Visão

Rosto

Prazeroso

Paladar

Doce

Confortante

Tato

Macio/Quente

Estar mamando

Olfato

Cheiro conhecido/peculiar

“`a mamãe”

Sentido Cinestésico

Ser segurado/Holding

Com o olhar com o corpo

Consciência ampliada Emoção interpretada Sentimento

Emoção

Aparelho

Pensar pensamentos Sentir sentimentos Audição

Consensualidade

Visão Paladar Tato Olfato Sentido Sinestésico Seio estético, pensante, transformador...

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dos sonhos. Estas características permitem que eles sejam usados como instrumentos exploratórios tanto do mundo externo quanto do mundo interno. Eles se organizam em uma estrutura que forma a barreira de contato, membrana semipermeável, capaz de operar seletivamente. As atividades mentais do sonho, memória, pensamento e simbolização permitiriam o desenvolvimento das Es.Es. em K. Com elas, é possível aprender. Nelas, a dor é transformada em vez de ser evacuada. O contato com a realidade é enriquecido e tende à expansão. O pensamento inconsciente da vigília permite o uso de todas as funções do Aparelho Psíquico de Freud (1911). Nele domina o Princípio de Realidade: sensopercepção, consciência, memória atenção, indagação, ação e pensamento. Estas imagens estão contempladas na fileira C da grade, antes das pré-concepções, e permitem o contato com a realidade psíquica. Esta transformação do sensorial em formas – os pictogramas relacionados em uma narrativa –, permite que as experiências possam ser recordadas, esquecidas, reprimidas, conscientes ou inconscientes, em vez de inacessíveis, impensáveis e irrepresentáveis. Quando não há uma relação emocional intersubjetiva, matriz do pensamento, não se constitui o vínculo K, nem a gramática generativa de significação. A ênfase que Bion outorga ao vínculo K recai sobre a procura do desconhecido do infinito K↔O12. A personalidade é uma conquista do desenvolvimento em um percurso genético que se inicia na vida pré-natal. Ela nunca se finaliza porque é um sistema complexo e aberto, 15


sujeito a permanentes transformações, quando é possível aprender com a E.E. A teoria do pensamento de Bion é uma teoria integral da ontogenia e da filogenia. 2. Transformações em “O” As transformações em conhecimento podem evoluir para as sofisticadas Transformações em “O”: K↔O em contato com a verdade, que auguram o desenvolvimento e a maturidade do SER, bem como um conhecimento mais profundo da realidade psíquica. Não basta o conhecer. O sistema de transformação em K é um método de crescimento mental lineal. As transformações em “O”, o crescimento por at-one-moment13, são de maior hierarquia e amplitude que o anterior. Para que elas aconteçam é preciso tolerância à frustração, ausência de voracidade e inveja, capacidade para alojar a ideia nova. Este crescimento é o território dos elementos α. Estas transformações em “Ser” ou “Sendo”, “ser aquilo que se é”, são temidas, resistidas e provocam turbulência emocional (Rezze, 2006). Elas aludem à mudança, ao insight, ao SER. Quando as Es.Es. provocam uma mudança catastrófica e a cesura “quase desaparece” pelo mistério da comunicação em at-one-moment, se produz uma transformação em “O”. Estas transformações não podem ser conhecidas, elas são inefáveis pela natureza da verdade última, justamente o incognoscível.

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3. Transformações Projetivas Penso que há Es.Es. negativas: -Es.Es são aquelas que criam um contato distorcido, mentiroso, com a realidade (Bion, 1962, p.49). Não há aproximações à verdade e, portanto, atrofiam-se as possibilidades de desenvolvimento e de aprendizado. As transformações projetivas, nos estados psicóticos, apelam para as identificações projetivas excessivas, patológicas14, e para os mecanismos de clivagem. Neles, há aglomerações e compressão de elementos β15. Estes elementos, por não terem valências livres, não se acomodam e não podem se articular quando são reintrojetados. 4. Transformações em alucinose Nas transformações em alucinose, a experiência emocional vivenciada com o analista como objeto real é transformada, por inveja, rivalidade e roubo, junto a uma sensação de inocência, em outra figura, criada pelo analisando. Elas introduzem uma dimensão basal do funcionamento mental, sempre presente, mas revestido por outro fenômeno que o esconde. A identificação projetiva é usada como evacuação. A realidade é desconsiderada. Os incrementos de estímulos não processados pela mente são evacuados. As sendas preferidas para canalizar esse transbordamento são: alucinação, perturbações do psicossoma, linguagem ou ações sem sentido – tela β – e comportamento grupal.

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Nas transformações projetivas e em alucinose o elemento β mantém a força para a expulsão e a evacuação violenta. Os elementos β, quando não são evacuados, ficam comprimidos e perdem vitalidade. Eles podem se degenerar e resultar nos elementos gama (ɣ)16. 5. Transformações autistas Para Bion (1962), a E.E. não pode ser concebida isolada de uma relação ou vínculo, e este pode ser com um objeto externo ou interno. Nos estados autistas, o contato com a realidade é inacessível pelo isolamento e os movimentos centrípetos na “concha protetora”17. Não há diferenciação entre sujeito e objeto. Os vínculos de L, H, e K são inexistentes devido ao “recolhimento emocional” no interior dessa concha, autoengendrada (Tustin, 1984; 1990). Não há oscilação Ps↔D18. Neles reina a paz dos sepulcros, pelas cisões amplas, silenciosas e estáticas, pela imobilidade e detenção das identificações projetivas realistas19. Com inspiração na etimologia, enfatizo que neles não há ensaio, nem prática, há repetição automática, estereotipada, que aborta a experiência. (GRÁFICO II) A colagem sensorial, nas identificações adesivas bidimensionais (Bick, 1986; Meltzer, 1975), não contempla uma relação. Elas são anteriores à posição esquizoparonoide (Klein; Ogden)20. Para Bick, existe uma primeira Posição Adesiva. A superficialidade é a marca registrada do mundo bidimensional no qual os fatos patinam. No palco 18


Gráfico II

PS

D

Não há conjunção

X amargo

Eventos pontuais

D

...

Seio ruim

Cc qualidade psíquica Significado

Amargo X gelado

X insegurança

PS

Gelado

Insegurança Não há significado

cristalizado e imóvel do mundo sensorial, a significação da linguagem pré-verbal e paralinguística não pode ser intuída. Quando a mente incipiente sofre anemia psíquica, em vez de experiências, há eventos. A mente desmantela-se, tal a genial contribuição de Meltzer (1975), diante da falta de atenção materna que não conclama à realização do mundo protomental do bebê. O equipamento inato, as preconcepções, assim como as estruturas cognitivas inatas de Money Kyrle murcham, atrofiam, e caem no vazio. 19


As equações simbólicas, consideradas como um passo evolutivo, e não só na vertente patológica do pensamento concreto, não se enlaçam, a analogia não se forma. As consequências são o analfabetismo emocional e a impossibilidade de simbolizar o buraco, ou esgarçamento, no tecido mental. As funções parentais ampliam a tolerância à dor mental ao dosar e modelar seu impacto no psiquismo incipiente. A falta de elementos α não permite a criação da barreira de contato, responsável pela modulação entre consciente e inconsciente. Ela protege o inconsciente dos excessos de estímulos provenientes da realidade externa. Este excesso de excitação pode danificar as matrizes da fantasia inconsciente, provocar seu tamponamento e impermeabilização, na fenomenologia de robotização (Sapienza, 1997). Nos estados autistas, há uma ruminação e estagnação do mundo sensorial, sem transformação. Ressalto a importância de distinguir os fenômenos psicóticos dos autistas. Nos estados autistas, proponho o paradoxo da não existência da E.E.: Neles, o desmantelamento, o isolamento e o splitting reduzem as vivências a eventos. Considero que a barreira autista está formada por elementos ɣ21 e não por objetos autistas (Korbivcher, 2010). Há uma impossibilidade de realização da preconcepção humana da personalidade. É um mundo robótico, quase inanimado. As defesas autistas protegem o self primordial dos estados intoleráveis de nãointegração (Tustin, 1986, Klein, 1981). Os tropismos (Bion, 1992), as matrizes da mente, murcham ao não encontrar o objeto compreensivo, e blindam o esboço incipiente da 20


mente rudimentar a um mundo autossensual, que congela os processos mentais de introjeção e projeção22. Nestes estados, quando abstrações são logradas, estas ficam no puro racionalismo, nuas, despojadas de vitalidade (Bion, 1962), isoladas da emoção23. O pensar precisa estar embebido emocionalmente para servir ao contato humano e ao contato com a realidade. Na esteira de Freud, no trabalho sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911), pode-se afirmar que neles a dor é evitada diante da intolerância não da frustração, mas da separação corporal que quebra o sentimento de continuidade do self. Korbivcher (2010, p.122) situa os tropismos, os fenômenos autistas, os estados de não-integração e as manifestações corporais em uma linha anterior a A – a destinada aos elementos β -AO, na fronteira entre o físico e o psíquico e na coluna 1, hipótese definitória24. Acho importante distinguir os fenômenos da linha AO. Os tropismos, os estados de não integração, e as manifestações corporais são proto E.E., na área da mente embrionária, do sistema protomental, sem distinção entre o psíquico e o físico. Uma evolução da mente rudimentar acontece ao encontrar o objeto capaz de rêverie, que encoraja o contato com a realidade e a capacidade de tolerar a frustração. Nos fenômenos autistas em sintonia com o aporte póstumo de Tustin (1994), não se trata de um momento evolutivo inicial na gênese do psiquismo25 e sim de deterioro. Por isto penso que pode ser útil classificar estes estados na linha AO da grade, em menos menos K, nos usos 21


autistas da coluna 7, para diferenciar os estados autistas dos fenômenos da psicose e do fanatismo26. Cortiñas (2007) posiciona o uso autista na linha 8 e o fanatismo na linha 7. Altero esta ordem porque penso que o uso autista antecede o uso fanático, de maior gravidade. Vinhetas Clínicas 1. “A Psicose no empresário escravo” Fênix chega falando ao celular. Joga-se na poltrona e continua falando ao telefone (TE) sobre a produtividade que precisa obter do novo aparelho adquirido. Eu não existo para ele. O paciente se negava veementemente a pagar pelas suas férias. “Dona, a senhora precisa entender, eu vivo pelo dinheiro. O mundo é assim. Eu não vou virar um monge budista. A senhora fica neste mundinho e não sabe do mundo lá fora. Eu comprei meus filhos, eu pago quando quero transar com mulher. Pelo telefone, eu ordeno a meu cafetão como tem que ser... Loira, morena, seios grandes...” {Sou atravessada pelos ataques persistentes. A imagem do monge budista é um avanço na conquista de pictogramas que podem evoluir até os ideogramas. Personagem místico, usado para ridicularizar qualquer possibilidade de mudança27.} A: “Eu acho que me aproximo desse seu mundo pobre, onde o senhor acha que só tem o dinheiro. Aqui o senhor

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pensa que também pode me comprar e então eu teria que fazer TUDO como o senhor quer. Só que assim eu entraria na sua loucura. Se o senhor falta à sessão, o senhor precisa pagar por esse horário marcado, esse compromisso...”. “Dona, eu pago o que uso, o que recebo. Eu não pago por promessas. Na minha clínica, o pessoal desmarca na hora e eu não posso passar o cartão do convênio e cobrar. Essa é a lei do jogo.” A: “O senhor não entende diferenças, não discrimina. Seu trabalho é muito diferente do meu. O senhor quer impor suas regras!” “Bem eu quero lhe contar um sonho que me deixou muito assustado. Não quero continuar com discussões macroeconômicas. Eu não vou pagar sem estar convencido. X é chefe do serviço de imagens, no hospital Y... Ele é um bom profissional. Lá o lucro é significativo. Todo o mundo fala que ele é homo, passivo. Ele tem maneirismos discretos... Mora com outra médica, para mascarar a homo... Dona, no sono eu estava de costas deitado na minha cama, e ele em ereção se esfregava nas minhas costas, NO MEU TRASEIRO! Ele queria me jantar. Eu lá indefeso. Ele não conseguia porque o sonho acabou aí e eu acordei. Fiquei apavorado”. “Será que eu sou e não sei que sou?” A: O senhor faz e não sabe, talvez, o que faz. O senhor quer penetrar na cabeça dos outros em forma intrusiva, violenta, torta... Uma parte do senhor pode ser este X que ativamente quer submeter ao outro. Mas hoje, corajosamente, o senhor pode se animar a indagar de verdade quem o senhor é, que é o que o senhor faz com o senhor, comigo... 23


“A senhora tinha razão quando me mostrou o que acontecia comigo nos exames urológicos. Eu tinha prazer... Quanto mais medo o cara tinha, era melhor... Como empresário eu estou melhor, não quero contato com o paciente. Quero dinheiro, ter mais empresas, ganhar mais... Acabei de comprar outro super equipamento.” A: O senhor não entrava com seu know how para uma investigação sobre a próstata do paciente. Hoje não precisa mais continuar naquele jogo sujo, doentio. Hoje, talvez, queira ficar com meu dinheiro para se sentir preenchido, e não vazio após as férias. Na sessão seguinte, F., após se acomodar na poltrona, faz as contas, pede ajuda para verificar as datas e paga sua dívida. “Eu pensei. Não posso ser aqui um mentiroso. Claro que eu sabia do contrato. Só que eu não queria pagar, queria aprontar, pechinchar, tirar vantagem, negociar. Dona, fiquei assustado. Marquei um encontro com uma mulher e eu não consegui. Murchei. Tentei e tentei e nada. Que está acontecendo comigo?” A: “O senhor está mudando e isto é muito assustador. Pode perceber suas tramoias. Mas para o senhor pagar pode ser murchar, perder força – potência – vitalidade. Quando o senhor não consegue penetrar, uma parte do senhor está corajosamente trabalhando para parar com as mentiras. Essa parte lhe alerta, assim não funciona! Mesmo que outra parte sua esteja tentada a continuar na loucura”. Comentários Inveja, rivalidade, voracidade e estupidez explodem na primeira sessão. O splitting forçado28 reduz o mundo à crua 24


materialidade de um mundo de objetos parciais. Nele, o sentido é recusado. Tudo entra nas leis do mercado. Para F., o dinheiro é ideia única, dogma, prisão mental e couraça protetora diante de uma dor insuportável. Também é uma fonte de despótico poder. Hoje ele está viciado no lucro, como outrora estivesse nas drogas. Manipula esta arma para submeter o outro. No auge da onipotência, ele TUDO pode, porque acha que TUDO compra. No seu mundo narcísico, o outro não existe, nem diferenças podem ser concebidas. Vive de atuação em atuação, em um claustro mental. Nos seus vínculos, prevalecem a arrogância, a destrutividade e o sadismo, muito embora fiapos de amor e uma tímida curiosidade, vínculo K, nasçam. Ele diz que continua a análise para “manutenção” e não pifar de vez. Suas somatizações muito lhe assustam. Elas são as “aliadas” ao processo analítico porque são áreas fora de seu controle. Começa a perceber que não pode comprar saúde. Na sessão seguinte, percebe que também não pode comprar “relações sexuais”. A continência firme e flexível luta para acolher e criar a necessária assimetria e discriminação na relação. Após a interpretação sobre as nossas diferenças, e a reinstauração do limite no sentido metapsicológico do setting, o sonho aparece. Nele, outros vértices são revelados: fantasias homossexuais, vínculos perversos de submetimento e dominação, a mentira para disfarçar aquilo que se é, o desamparo e a onipotência. Um melhor juízo de realidade aparece com a indagação sobre seu ser. O vínculo K assoma, em vez das certezas absolutas em -K. 25


Na sessão seguinte, penso que há uma temida e turbulenta mudança catastrófica de K ↔ O. Ele reconhece suas mentiras quando pretendia ora me testar, ora impor suas “normas” e não pagar suas férias. O que não funciona, muito além da ereção, é seu sistema mentiroso na E.E. da análise, na vida. A impotência concreta é assustadora quando usa um corpo-coisa – mercancia – vagina – sinistro continente negro, prostituído. A crise é o portal das mudanças. Com F. desejo exemplificar, até o relato do sonho, as transformações projetivas e em alucinose, com identificações projetivas patológicas e excessivas, em -K, com emoções intensas. Sua prática como urologista me exasperava pela falta de ansiedade nos seus relatos perversos. Penso que estava diante de uma área mental governada pelo fanatismo, povoada de elementos ɣ, com dogmas e ideias máximas. Há uma transformação dos elementos gama ɣ ↔ elementos β e de β ↔ enfraquecidos e dispersos elementos α, quando indaga sobre seu SER. 2. Da concha sensorial à vivência da queda no buraco29 A família chega atrasada. O paciente está agarrado à mãe, com a chupeta na boca presa por uma fralda. A mãe tem outras chupetas penduradas em um bolso. P. entra sem dificuldades. Ele é muito miúdo, magro. Não me olha, nem parece me escutar. A: “Você é Pedro e eu sou Alicia. Quero te conhecer para te ajudar”. Abre a torneira da pia da sala. Olha o buraco da pia e a 26


água escorregando pelo ralo. {Penso nos buracos da astronomia. Também em imagens da catástrofe no Rio em janeiro de 2011. As ladeiras das serras contornando abismos de horror30} Ele quase que acaricia a água, colocando sua mão sobre o jato. Ele fica absorto. Temo que fique assim o resto da hora. O tempo parece parar. Tenho sono. {Penso em Heráclito. Como encontrar brechas neste refúgio sensorial?} A água parece uma cortina transparente ininterrupta. Ocorre-me que ele não tenha nem inscrição, nem experiência de um esfíncter mental, nem de cortes, de assimetria. {Ele parece encantado.} A: “A gente pode fechar essa torneira e voltar a abri-la novamente”. Eu fecho a torneira e rapidamente a abro novamente. Assim que ele perde o contato com a água e o barulho, desorganiza-se desaba. Parece perder a coesão. Quer sair da sala. Ele está em pânico. Tenta abrir a porta a golpes. O desespero cresce. Chuta a porta e as paredes com raiva. A: “Nossa! O Pedro ficou desesperado sem a água.” Agora sinto muita pena dele. Parece querer entrar a golpes nas paredes, no objeto duro. Percebo um esboço de comunicação. Com sua agitação, P. derruba um boneco que estava sobre a mesa. Absorto, contempla o boneco caído a seus pés. A: “O boneco P. caiu. Vamos ver como ele está? Levanto-o. Atentamente o examino. Será que ele machucou a perna, o braço? Nossa, que susto essa queda!” 27


Ele arranca o boneco da minha mão com violência e assim lhe tira um braço. Fica perplexo com a mutilação e o buraco no corpo do brinquedo. A: “Nossa, o boneco P. foi arrancado de mim e ficou esburacado, sem o braço. Mas ele pode ser ajudado para suportar essa dor, esse susto”. Ele encontra o lápis e rabisca garatujas na folha, na mesa, na parede. Comentários Os pais não têm um bom espaço mental para P., que sofre traumas cumulativos. A vivência de desamparo é potencializada. Em vez do contato mental, a estimulação sensorial é privilegiada. O nascimento psíquico prematuro (Tustin, 1981), pela consciência da separação corporal brusca e traumática com a mãe, é de insuportável dor. Este bebê foi privado da necessária simbiose, raiz do vazio mental.. As somatizações podiam revelar os elementos β sediados no seu corpo, que sofrem uma degeneração. A doença podia ser o grito que conclamava pela preocupação materna. Ele chega preenchido com a chupeta na boca, objeto autista, que o acalma (Tustin, 1980; 1984). Não há experiência emocional: A mãe está preparada para várias substituições concretas. Será que ele pode ter a E.E. provocada pela perda da chupeta-seio-mamilo? A E.E. da boca vazia? P. não me olha. Tento me apresentar colocando a diferença pronominal na estrutura linguística: Você P., Eu X. 28


para construir a necessária separação e assimetria entre nós. O buraco da pia o fascina. Ele vive a separação como um desgarro. P. busca impressões sensoriais tácteis nas que se refugia diante das vivências de desagregação e vulnerabilidade intoleráveis, pelo trauma puro. P. não tem um endoesqueleto. Este manto hídrico parece uma superfície bidimensional na qual se agarra em uma equação adesiva. Vive a falta de vínculo comigo. O contato com a realidade é barrado. Não há experiência31, nem emoção, nem transformação32. A minha intervenção tenta interromper este padrão adesivo repetitivo. Ele me mostra como se desorganiza quando perde o objeto autossensual. Com a torneira fechada, tudo acaba. Ele desmorona. A hiperatividade é a procura de contenção em uma segunda pele muscular (Bick, 1968). É uma forma de evitar a vivência da queda no buraco negro (Grotstein, 1999), para tamponar o trauma. Não há tempo, nem espaço nem diferenciações33, por isto tanto os movimentos musculares quanto o grafismo se expandem indiscriminadamente no espaço do consultório. Não há registro da torneira aberta. Paulatinamente, os movimentos musculares parecem mudar de função. Sinto pena diante da tentativa de entrar a golpes na parede, no objeto34. O boneco caído lhe oferece a possibilidade de apresentar na cena analítica a queda no abismo35. Eu tento conclamar sua atenção e propiciar o contato com ele. Quando arranca o braço do boneco, ao separá-lo abruptamente de mim, expressa o trauma da separação traumática. 29


Com os rabiscos, ele tenta preencher superfícies vazias. No grafismo, o caos encontra figurabilidade. Uma forma caótica. O esboço de um pictograma. É preciso propiciar o nascimento psíquico de P. com um bom prognóstico. Palavras Finais Na sessão, o analista capaz de observação aguda registrará os movimentos e mudanças de qualidade da E.E. em curso. Elas não podem coexistir, mas podem sim se suceder tanto em relação ao crescimento quanto em relação ao deterioro, ampliando, distorcendo ou impossibilitando o contato com a realidade.

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Notas 2 Significa estar em unicidade com. É o caminho para se chegar a um conhecimento profundo. É diferente da transformação em K, pois pode permitir uma aproximação a “O”: K ↔ O. Este conceito articula-se com as transformações em “O” (origem). Ele está relacionado com a técnica analítica. O analista precisa ser receptivo às evoluções de “O”. A unificação é o meio de contato com “O” nascente, que ainda não iniciou o caminho evolutivo. 3 Intuição deriva do latim intuito, que significa imagem, mirada, derivada de intueri, mirar, observar atentamente. Ela designa a visão ou compreensão direta e imediata de uma realidade ou verdade sem intermediários. A intuição é o sexto sentido. Ela permite a captação da E.E. Não é fácil encontrar palavras para expressar a E.E. A arte é a linguagem que melhor permite uma aproximação à E.E. Ela é uma forma primária de conhecimento. A psicanálise, na sua prática, é intuicionista, diz Bianchedi (1999). A E.E. é intuída no vínculo graças ao trabalho do sonho (α) do analista. Essa capacidade receptiva e onírica, análoga e diferente da rêverie materna, permite chegar a um conhecimento imediato e direto, correlacionado a um sentimento de verdade sobre o intuído. Um dos perigos é a pretensão de coisificar a E.E. (Sandler, 2005). Ela só pode ser apreendida, captada, intuída. Não se trabalha na E.E., nem com a E.E. Por meio destas expressões, poder-se-ia cair na tentação de objetivar e materializar, na tradição positivista, o objeto psicanalítico. 4 A fé científica significa confiança na investigação e no fato da existência de uma verdade inatingível e provisória. A fé religiosa é uma atitude de crença preestabelecida, de natureza absoluta, de certezas. A fé religiosa, ou mágica, é dogmática. 5 Fato Selecionado foi usado pelo matemático H. Poincaré. Ele oferece nome e coerência aos elementos dispersos. Exerce uma função de síntese. 6 Conjunção Constante é um conceito de David Hume tomado por Bion. Pattern é um termo que se aproxima à Conjunção Constante. Ela alude a uma experiência de aprendizado emocional que consiste em unir fatos dispersos e emoções conexas a eles por meio de um fato selecionado que dá nome a um conjunto. 7 A Capacidade Negativa foi definida em Atenção e Interpretação, com a citação do poeta Keats. Ela é a capacidade do homem existir entre incertezas, mistérios, dúvidas, sem pretender alcançar a razão ou os fatos. 8 Estes elementos são as partículas do pensamento e formam a mobília dos sonhos. São usados nos pensamentos oníricos e no pensamento inconsciente da vigília. Eles podem se articular e se desarticular. Eles são produzidos graças à transformação das impressões sensoriais em Es.Es. São os precursores da memória, dos sonhos e dos modelos.

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9 A sobreadaptação sufoca o verdadeiro self. Os ideais parentais impõem-se ao ser em formação que a eles se submete, mendigando amor para sobreviver. Surge nas patologias do Psicossoma. 10 Além das qualidades de prazer e desprazer, a consciência é capaz de registrar as qualidades sensoriais e psíquicas (Freud, 1911). 11 Seu caráter inespecífico permite que se possam formar ora os sonhos, ora a fantasia inconsciente, e, no outro extremo de complexidade, a anelada abstração. 12 Na Grade poderiam ocupar as categorias C ↔ D, E, F, G, H. A partir da linha C, marcada pela qualidade psíquica, é possível evoluir no aprender com a E.E. da preconcepção (D) ao conceito (E) e assim sucessivamente no sentido descendente da Grade, alcançando maiores níveis de complexidade. O amadurecimento da personalidade - responsabilidade pelo objeto e tolerância á frustração exige reiteradas Es.Es. O crescimento mental implica estar em trânsito, com a capacidade de atravessar cesuras, enfrentar a mudança catastrófica para renovar o assombro ante o novo e o insólito. 13 At-one-moment é utilizado em um contexto teológico como expiação, inclusive como equivalente ao Yom Kippur judeu; aqui o sentido mais literal é de unificação, de unicidade; um encontro misterioso, no qual o hiato da censura se estreita em uma experiência de comunhão. 14 Na identificação Projetiva patológica, a cisão fragmenta o objeto e partes do aparelho psíquico em múltiplos pequenos pedaços. Neles há excesso de onipotência, de violência e de distância, na qual se realiza a projeção. Não há discriminação entre a realidade interna e externa. Os objetos estão comprimidos e aglomerados, nunca integrados ou articulados. 15 Quando a expectativa não encontra os fatos, geram-se os elementos β. Eles estão aptos para a expulsão pela da Identificação Projetiva. Também eles são a matriz primitiva do pensamento. Os elementos β que não foram projetados formam a Tela β. Estes elementos se aglomeram, com enorme potencial de violência, e não formam uma Conjunção Constante porque não se articulam. 16 O elemento gama (ɣ) (Sor & Gazzano, 1992) é aquele que forma o fanatismo e o autismo. A origem é embrionária, por contágio viral, pela passagem de β → ɣ e pela inoculação na infância. Estes elementos não se transformam, não entram em conflito ou crise. 17 Freud (1911) oferece, como exemplo, o modelo autista para exemplificar o desligamento da realidade. Usa a bela metáfora do pintinho fechado dentro da casca do ovo. Hoje essa casca ganhou maior compreensão: concha, muralha, barreira autista, refúgio defensivo. 18 Esta oscilação se refere a estados de dispersão, ponto PS (esquizoparanoide) e de integração ou síntese em D (Posição Depressiva). As posições kleinianas são

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para Bion uma função mental. D é um ponto instável que dá lugar a uma nova dispersão. Nesta oscilação é possível construir a Conjunção Constante. É preciso suportar a dor pelas diferenças entre as expectativas das pré-concepções e as realizações no encontro com a realidade. 19 A Identificação Projetiva Realista desempenha uma função comunicativa. Os aspectos onipotentes são impregnados por um sentido de realidade rudimentar (Bion, 1962). 20 Para M. Klein, já se nasce com a diferenciação entre sujeito e objeto. A identificação projetiva exige um espaço tridimensional e a concepção de um S. e um O., porque o self cinde e expele as partes indesejáveis, colocando-as no interior do objeto. 21 A diferença entre o elemento ɣ e o objeto autista é epistemológica e de vértice. Os objetos autistas são “objetos” concretos com funções específicas. Eles são visíveis, tanto que Tustin fala de objetos duros. Neles, o sensorial prevalece. Os elementos gama são “elementos”, conceito não saturado, com alto nível de abstração. Os elementos se correspondem com a lógica das conjunções constantes. No autismo, a conjunção não se forma, não há vínculos nem contato com a realidade. Não há possibilidades de evolução. No universo mental apresentado por Bion, as transformações têm enorme importância como propulsoras do crescimento ou do deterioro mental. O elemento ɣ transcende a noção de objeto autista. Entre ambos os conceitos há convergências, qual seja a trava para as transformações. Estudar estas diferenças conceituais permite explorar novas dimensões na teoria e na técnica da clínica (conversa particular com Leandro Stitzman). 22 Quando a dor não é transformada, ela é evacuada ora no soma, ora nos rituais sensoriais autocalmantes, sem alcançar uma qualificação que permita a percepção, o registro e a discriminação dos estados emocionais. As manobras autistas buscam anular a realidade penosa, em vez de modificá-la. 23 A função α atua sobre as impressões sensoriais, quaisquer que elas sejam, da mesma forma que atua sobre as emoções que o paciente percebe, quaisquer que sejam. Quando a função α tem êxito, produzem-se elementos α susceptíveis de se armazenar e de corresponder aos requisitos dos pensamentos oníricos (Bion, 1962, 1963). Para aprender com a experiência, a função alfa deve atuar sobre a percepção da experiência emocional. As representações de palavra, no modelo de Freud, mesmo que sediadas em um pré-consciente sem espessura, dissociadas das representações de coisa, pressupõem a formação de um aparelho mental. Nos estados autistas não há distinção entre o sistema consciente e o inconsciente. Não há membrana de contato. Não há repressão primária. Por isto, não é possível falar em sintomas. Os Transtornos Globais no Desenvolvimento são anteriores à repressão primária. A palavra pode ser usada como objeto autista, um som autossensual para evitar a comunicação (Cortiñas, 2007), uma “musculatura verbal” (Barros, 2010). O papagaio não está apto a desenvolver a linguagem.

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24 A fileira 1 representa uma formulação como significante, sem significado. É uma área a investigar. As características da hipótese definidora podem ser rudimentares ou complexas (A1 ou F1). 25 Rêverie é um canal que permite o trânsito das protoemoções do infans até a mãe e dela até o filho. Esta misteriosa função permite, facilita e propicia que a experiência sensorial do bebê, constituída pelos elementos β, seja acolhida, sonhada, compreendida, significada e transformada pela mãe pensante em estado de devaneio. Há uma passagem do processo primário, regido pelo princípio do prazer, à formação das imagens oníricas e os pictogramas, graças à função α materna que ensina lidar com a frustração. O bebê identifica-se com o “seio pensante”. A função materna identifica-se com as protoemoções e a consciência rudimentária. Ela é uma parteira semântica ao dar à luz à mente. A mãe é poliglota, capaz de uma complexa comunicação nos diversos dialetos, da linguagem pré-verbal até dar sentido às identificações projetivas realistas do bebê, rêverie mediante (Lisondo, 2010). Nesse vínculo, a dor mental, modulada e qualificada, enraíza os fundamentos para o desenvolvimento do psiquismo, o contato com a realidade interna e as articulações com o mundo externo, simbolização mediante. A função materna é a responsável por processar as expressões sensoriais para formar as Es.Es., alicerces das futuras representações simbólicas (Delouya, 2007), a serem usadas posteriormente nos sonhos, pensamento, memória, juízo, decisão e ação. Este vínculo fundamental (mãe-bebê) pode ser atacado, intoxicado ou alucinado. Como a rêverie é um canal de comunicação, existe a possibilidade de a mãe intoxicar ou atacar a protomente do filho, hostilmente, com dogmas, ideias máximas, -L, -H, -K. Nestes casos, forma-se a tela β ora com os elementos β aglomerados, que não encontram a oportunidade de serem desintoxicados pela função materna, ora nos estados autistas, em que a barreira autista é cimentada com os elementos ɣ quando a protoconsciência do bebê é danificada, não podendo mais se comunicar ou exercer correlações. 26 Na área de -K há identificações projetivas patológicas e excessivas, e objetos bizarros. 27 Percebo que há uma continuidade espacial e temporal entre o exterior e o interior. Ele não percebe diferenças. Há um splitting entre o mundo da análise e o mundo real, entre a vida material e a vida espiritual, entre a sexualidade vulgar, promíscua, e a santidade. 28 Na grade, situo a primeira parte da sessão, anterior ao sonho, na fileira A (elementos β) coluna 2, pelo uso mentiroso de sua verborragia, que se opõe à mudança catastrófica. Há uma evolução em complexidade crescente no eixo genético C (sonhos) e nas colunas dos usos 3, 4 e 5 referidas à notação, atenção com uma abertura para a indagação. No desfiladeiro do eixo horizontal de 3 a 5 há uma curiosidade presente. O início da sessão seguinte a classificaria na linha D (preconcepção) e no eixo horizontal, também nas fileiras 3,4, 5, e consiste na separação da realidade material da realidade psíquica. O bebê, por ódio, inveja, medos violentos, destrói sua capacidade de contato com sentimentos em geral 34


e com a realidade psíquica, em última instância. Neste sentido, o bebê consegue aproveitar o leite recebido para sua sobrevivência física, mas, nesta experiência, nega a parte que sofreu o splitting e que se refere às emoções presentes, incluindo o amor da mãe. 29 Os pais de P., 4 anos, marcam a consulta porque, após longa peregrinação com vários profissionais, P. não fala, apresenta hiperatividade e insônia, está atrasado no Jardim, enfurece diante da falta de certos objetos. Os pais engravidaram antes do casamento e da qualificação das teses de doutorado. Enfrentam uma imigração muito dolorosa. A nova vida exige muito deles com um “bebê possuído pelos demônios”. P. frequentou a creche a partir dos dois meses em período integral, quando foi desmamado abruptamente. Para poder escrever a dissertação da tese, a mãe o colocava ao lado do computador, com a TV ligada e alternava chupetas, passadas no mel. Ficou sempre muito doente. 30 Penso na urgência para agir e evitar novas catástrofes! 31 Por isto não há conhecimento, nem aprendizado possível. Sem quase emoção, sem movimentação mental (apelo à etimologia), sem a constituição do objeto interno, nem externo, não há sujeito, nem vínculo, tampouco experiências Es.Es: 32 Classifico na Grade este trecho da sessão na linha AO, fileira 8, em menos menos K, pelo uso autista. 33 Não há diferenciação entre sujeito e objeto, exterior e interior, dentro e fora. 34 Classificaria na linha AO, coluna 1, esta comunicação corporal incipiente: tropismos à procura do objeto compreensivo que pode ou não evoluir. Tento precisar a distinção e a localização, na Grade, entre os estados autistas, a partir da contribuição de Korbivcher (2010) e as comunicações dos estados mentais primitivos (EMP), estados ligados à embriologia, vestígios embrionários da mente arcaica (Bion, 1997, 1979, 1983). 35 O boneco no chão me lembra os cadáveres ao pé dos morros no Rio pela tragédia das inundações em janeiro de 2011. Como se a mesa fosse a parte superior e a distância entre a mesa e o piso, o espaço do abismo.

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