O direito à verdade: Cartas para uma criança (1º capítulo)

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Prêmio Jabuti 2003 de Educação e Psicologia



Este livro é o pagamento de uma antiga dívida. Dedico-o agradecido à minha esposa Susana e a meus filhos Luciana e Thiago, presenças permanentes em tudo o que é visível ou invisível neste livro e na vida.



Sumário As cartas e o Estatuto da Criança e do Adolescente À maneira de prólogo Estatuto do homem 1a carta – Para as crianças brasileiras 2a carta – Para uma criança cujos pais estão se separando 3a carta – Para uma criança adotada 4a carta – Para uma criança que será hospitalizada 5a carta – Para uma criança que perdeu um ser amado 6a carta – Para uma criança que começa a ir à escola 7a carta – Para uma criança que vai ganhar um irmão 8a carta – Para uma criança que “molha” a cama 9a carta – Para uma criança que não come 10a carta – Para uma criança que não dorme sozinha À maneira de epílogo O espírito das cartas Breve história da sabedoria em forma de história Direitos universais das crianças em escutar contos... e a conversa com um anjo Notas Sobre o autor

07 09 15 21 33 45 57 73 83 95 105 115 127 141 145 147 149 153 155



As cartas e o Estatuto da Criança e do Adolescente Caros leitores: Com o intuito de refrescar-Ihes a memória, lhes direi que minhas cartas têm muitos pontos de contato com as ideias contidas nesse Estatuto. Ele está aí, foi escrito. Os juristas afirmam que é de Primeiro Mundo! É doloroso que seja cotidianamente esquecido. Como exemplo, escolhi dois artigos do Livro 1 do referido Estatuto: Artigo 3 A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais, inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando a eles, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. Artigo 4 É dever da família, da comunidade [...] e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde [...], à

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educação, [...], à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária. Da mesma forma, nestas cartas defendo que as crianças sejam tratadas como realmente são – cidadãos dignos, inteligentes e sensíveis –, respeitando-se as diferenças individuais delas e o direito que têm à verdade.

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À maneira de prólogo Uma carta para pais e adultos que cuidam ou carregam dentro de si uma criança Tenho praticamente os mesmos anos de pai e de pediatra. São 28 anos observando, nas famílias que atendo, e muitas vezes sentindo na própria pele, a angústia e o medo que estão embutidos nas crises e nas urgentes demandas provocadas pelo processo de crescimento dos filhos. Uma das dificuldades que enfrentamos em nosso papel de pais é a necessidade de criar adequadamente os filhos para formar, assim, indivíduos-cidadãos que originarão uma sociedade justa, ética e solidária. É a família funcionando como “fábrica de gente”. A educação para a cidadania não é apenas o conhecimento, por parte das crianças, dos direitos mas também dos deveres. E, justamente por isso, elas necessitam de limites claros e coerentes, como de pais que os façam respeitar, que lhes facilitem o contato com doses toleráveis de frustração, não estimulem a filosofia barata e perigosa de “levar vantagem em tudo” e façam na prática o que propomos em nosso discurso. Devemos, fundamentalmente, tratá-Ias como indivíduos capazes, pensantes e inteligentes.

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Para cumprir essas premissas, temos de lhes dar sempre a informação correta, sem esconder a verdade, e permitir que sintam e manifestem a dor e a tristeza diante das perdas. Deixar que vivam intensamente a saudade, a frustração e que experimentem o enfrentamento com os momentos de crise. Todas essas são tarefas imprescindíveis, que não podem ser postergadas. As “crises do crescimento” podem ser previsíveis, como a adaptação escolar, ou imprevisíveis, como a morte de um familiar. São fases de transição nas quais antigas certezas implodem, sem que tenham sido substituídas por outras. Constituem um período decisivo na vida do ser humano, pois impulsionam o crescimento. Das crises podemos sair “engatinhando”, regredidos, fracos e titubeantes. Ou, ao contrário – e de preferência –, fortalecidos, amadurecidos, andando firmes e com segurança. Reconheço não ser essa uma tarefa fácil. É por essa razão que as cartas tratam sobre crises, frustrações, medos, sexualidade, nascimento, morte etc. Fundamentalmente, falam da importância da verdade, que permeia todas essas situações. Algumas implicam a elaboração de lutos, sendo esta uma situação contra a qual conspira a nossa educação, que muitas vezes impede ou aborta qualquer demonstração de tristeza. Não podemos simplesmente optar pela odiosa conduta evasiva, da negação ou da mentira, nem arrancar à força a saudade de dentro da gente. É imprescindível viver com plenitude nossas perdas, para poder valorizar o que possuímos. Comecemos a agir honesta e respeitosamente, pois, para as crianças, o futuro é hoje. Se não agirmos assim, poderemos nos transformar em mutiladores da inocência ou exploradores de sua credulidade, ou, em ambos, como Felipe Fernández-Armesto descreve em seu livro Verdade: Uma história.

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Esse parece ser o sentimento experimentado pela maioria dos pais ocidentais quando, por exemplo, chega a época de enfrentar aquela singela pergunta sobre a existência do Papai Noel, pois, dependendo da resposta, sabemos (será que sabemos?) que podemos transformar nossos filhos eventualmente em céticos ou devotos. Quando e por que a sociedade moderna perdeu a fé na verdade, abandonando a procura desse antigo e sólido projeto da humanidade? Se acreditamos em tudo, acabamos não acreditando em nada... E assim chegamos a não pensar. Desse jeito, deixamos de tirar proveito da verdadeira educação, que consiste, além de pensar, em aprender a pensar sobre o que pensamos... Se a distinção entre verdadeiro e falso for abandonada, estaremos enfrentando um perigo muito sutil, mas nem por isso “menos perigoso”, pois os mentirosos não terão nada a provar e os defensores da verdade não terão, ao menos, uma causa para questioná-los. Qualquer crítica ou menosprezo à verdade é autocontraditória, pois, como diz Scruton, “O homem que lhes diz que a verdade não existe, está lhes pedindo que não acreditem nele... Logo, não acreditem!”. Existem quatro verdades: a que sentimos, a que nos é dita, a em que acreditamos e a que se percebe por meio dos sentidos. Podemos não dizer a verdade a uma criança, mas ela “capta-a no ar”, percebe-a, sente-a. Raramente se impõe um teste mais exigente para a verdade do que aquele que resulta nas reações emocionais das crianças diante da verdade ou da mentira. Da comunhão entre sentimento e verdade é que nasce a “verdade poética”, que não se exprime simplesmente com palavras, e sim com o puro e eloquente ritmo dos versos. Uma poesia carrega muito mais emoção e verdade que qualquer longa e erudita dissertação.

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Será esse o motivo pelo qual, sem nenhuma premeditação e de forma intuitiva, “impregnei” meus textos de muita poesia? Deste meu lugar de médico e aprendiz de escritor posso tentar entender, teorizar, ou melhor dizendo, “adivinhar” a respeito das experiências de outras pessoas; mas vivenciar por elas, isso eu não posso... Consigo ver a picada nos braços delas, mas não sentir a coceira que lhes provoca! Seguindo o conselho de Fernando Pessoa, que disse que “nenhum livro para crianças deve ser dirigido para as crianças”, pensei e enderecei as cartas para e por elas, mas na realidade as dirigi aos pais e a todo adulto que lide com elas. Em muitos momentos, as cartas me foram úteis, iluminando passagens escuras e tormentosas da minha viagem, como homem, pai e médico. Em outros, me aproximaram de pessoas que admiro muito e com as quais muito aprendi. As cartas são apenas pedras coloridas, verdes, azuis, vermelhas... Pedras que assinalam um local ou um caminho. O trabalho de garimpar o provável diamante escondido entre elas, no caso de ele existir, é tarefa de cada leitor. É uma obra gratificante poder ajudar famílias a se olharem melhor. Fico feliz por tentar fazê-lo, e como não podia ser de outra maneira, vou lhes contar uma história ouvida há muito tempo, que trata de como ajudar a olhar melhor:

Era uma vez um menino muito pobre, que morava num pequeno povoado na região da seca. Seu sonho mais dourado era um dia conhecer o mar. Sensível e respeitoso como costumam ser em geral as crianças humildes, e entendendo a difícil situação dos pais que trabalhavam de sol a sol para poder oferecer-lhe o mínimo sustento, não os forçava a realizarem seu sonho. Extasiado, todos os dias olhava uma bela imagem de praia, de uma velha e amassada revista que guardava como um precioso tesouro.

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O pai, tenro e perceptivo, sem fazer nenhum comentário, mas com o esforço de meses, conseguiu juntar o dinheiro que permitiria realizar “O sonho tão sonhado” de seu menino. Quanta emoção ao começar, pai e filho, a longa e cansativa viagem por estradas esburacadas e com muita poeira. Mas tudo valia a pena. E valeu mesmo! O menino, tremendo de emoção, pousou seu olhar nos coqueirais dançando ao vento, na espuma branca brincando com a areia fina e o mar sem fim e barulhento, com seus múltiplos tons de verdes e azuis. Acostumado à seca e à rachada e dolorida terra de seu vilarejo, o menino foi tomado pela emoção quando à beira-mar teve a maravilhosa sensação da água molhando seus pés. Sem pestanejar, mesmo com os olhos enormes marejados de lágrimas, ele apertou com força a mão calejada do pai e falou baixinho e de modo agradecido: “Oh! Meu pai, me ajude a olhar, é tanta coisa bonita que sozinho não consigo!”. Precisava acabar logo estes textos, porque lembrei-me do que disse Clarice Lispector ao terminar de escrever a última palavra de seu livro, que o “trancava” a sete chaves até o dia de entregá-Ia ao editor. Se assim não o fizesse, dizia que corria o risco de escrevê-Ia e reescrevê-Ia para sempre... Agora lhes convido a ler as minhas/suas cartas: É tudo.

Leonardo Posternak

P.S.: Sinto-me honrado por ser o poeta Thiago de Mello quem introduz a vocês a leitura destas cartas.

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