A sociedade capitalista não é capaz de assegurar, por completo, os direitos humanos"

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Entrevista com Paulo Vanucchi

“A sociedade capitalista não é capaz de assegurar por completo os direitos humanos” Ao fazer um balanço dos dez anos do governo Lula e Dilma na área dos direitos humanos, o ex-ministro Paulo Vanucchi aponta os avanços e recuos deste setor no Brasil e ressalta que somente outro modelo de sociedade seria capaz de assegurar direitos humanos plenos Priscila Lobregatte* Priscila Lobregatte

O

jornalista Paulo Vanucchi, graduado em jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, com mestrado em ciência política também na USP, é referência na defesa dos direitos humanos. Ele teve participação efetiva nos movimentos de esquerda no período da ditadura e trabalhou na elaboração do livro “Brasil Nunca Mais”, coordenado por dom Paulo Evaristo Arns. Entre 2005 e 2010 ocupou o cargo de Ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e protagonizou momentos importantes de avanços na área durante o governo Lula, mas admite que muita coisa ficou aquém do esperado.

Ao receber a revista Princípios no Instituto Lula, em São Paulo, onde atualmente ocupa cargo de direção, Vanucchi falou sobre o trabalho realizado nessa última década e destacou que o acontecimento mais importante foi a mudança de eixo na condução da política nacional, que passou a encarar a fome como um grave problema de direitos humanos que precisava ser seriamente enfrentado. Sobre a Comissão da Verdade, destacou que pela primeira vez “o Brasil está começando a fazer um exame oficial sobre sua própria história”. E disse também que a sociedade capitalista não é capaz de responder por completo às necessidades do ser humano. Acompanhe a seguir os principais trechos da conversa.

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Contexto histórico dos direitos humanos

experiências da China e de Cuba houve momentos em que se abriu a possibilidade de haver propriedade privada sobre o que não fosse considerado estratégico. O Vaticano também não assinou por considerar que a fundamentação teológica era a única capaz de assegurar os direitos humanos. Hannah Arendt fez um grande achado ao dizer que em nenhum lugar do planeta as pessoas nascem livres e iguais. Elas nascem presas e desiguais devido às estruturas, aos costumes. A Declaração foi um momento em que a humanidade resolveu fazer um programa político propondo que fôssemos livres e iguais em dignidade – foi, portanto, um notável avanço. Assim chegou-se aos dois pactos, um tratando dos direitos civis e políticos e o outro dos direitos econômicos, teve como sociais e culturais. O Brasil é signamarco na tário de ambos.

Historicamente, os direitos humanos constituem a construção de um sistema de garantias do indivíduo frente ao Estado, ou seja, um Estado não poderia ter um ministério de direitos humanos. Instituí-lo, portanto, foi uma ruptura com essa tradição histórica. A construção histórica dos direitos humanos tem séculos de debates, mas um marco importante central foi a Revolução Francesa, que pregou liberdade, igualdade e fraternidade. A burguesia revolucionária empalmou essa construção histórica e a utilizou para derrubar a nobreza. Naquele processo de transição, a nova classe dominante rapidamente negou à “O Lula classe trabalhadora os mesmos digrande reitos que ela tinha exigido da nobreza feudal apeada do poder. área dos direitos A Declaração dos Direitos O século 19 foi de revoluções nas humanos em Humanos e a Comissão quais se verificou um confronto reda Verdade petido depois no século 20: a tríade seus oito anos de direitos pregados na Revolução de governo o A Declaração Universal dos DiFrancesa se resumiu à luta por lireitos Humanos coloca em seu preberdade e igualdade. Nas revoluções enfrentamento da âmbulo uma questão muito cara ao do século 19, a burguesia ficou com fome, tema nunca período Lula, ao seu mandato e ao os direitos liberais que ela associava Brasil de hoje e que dá sustentação à ao capitalismo enquanto o nascente tratado como Comissão da Verdade. Referindo-se movimento operário, socialista, lesendo de direitos ao nazismo, o documento considera vantou a questão da igualdade. “essencial que os direitos humanos No entanto, Hannah Arendt – humanos” sejam protegidos pelo Estado de Dique não era marxista – lembrou que reito, para que o homem não seja a liberdade é o fundamento mais compelido, como último recurso, à essencial de toda a teoria marxista. A teoria da revorebelião contra a tirania e a opressão”. lução em Marx começa como uma teoria da liberdaEste é o nosso tema para a Comissão da Verdade: de. E a realização plena dos indivíduos, que é o que quem se levantou e resistiu não cometeu crime, não Marx quer, precisa de igualdade econômica e social. violou direitos humanos. Primeiro porque a violação dos direitos humanos não é a violência praticada enOs horrores da guerra e a Declaração tre pessoas. Tecnicamente, é sempre a violência do de 1948 Estado contra as pessoas. Além disso, o direito à rebelião contra a tirania é algo que já estava colocado A Declaração Universal dos Direitos Humanos, até mesmo em John Locke, em São Tomas de Aquino de 1948, começou a ser trabalhada para criar algo etc. Valorizamos muitos estes aspectos nas discuscomo uma convenção, mas se resolveu constituir sões com os Bolsonaro da vida e outros órfãos da torum instrumento até mais forte: o pacto. Só que em tura. Dizemos: “nós éramos resistentes, estávamos 1966 a mesma Assembleia Geral da ONU aprovou usando o direito de rebelião contra uma ditadura dois pactos no mesmo dia porque o mundo não reilegítima que agia pela força, assim como o fizeram solvia a disjuntiva entre capitalismo e socialismo, e aqueles que lutaram contra o nazismo”. a URSS havia se recusado a assinar a Declaração de 1948 colocando-se contra o artigo que garantia às As históricas violações no Brasil pessoas o direito à propriedade, sozinha ou em parceria. Foi uma estupidez porque na história do sociaAo longo de mais de 500 anos, o Brasil foi um lismo e mesmo da constituição soviética sempre se vasto cemitério dos direitos humanos. É a história assegurou a ideia de propriedade cooperativa. Nas

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do extermínio indígena de mais de cinco milhões de brasileiros que aqui estavam quando Cabral chegou; é a história de 330 anos de escravidão como um modo de produção do país. O país inteiro se formou, ao longo de três séculos, tendo a classe trabalhadora como escrava, uma mão de obra comprada às dúzias, como peças. E toda luta pela liberdade ou pela igualdade foi tratada no sabre: Cabanagem, Balaiada, Praieira, Confederação do Equador, Canudos, Chibata, Contestado etc. No século 20, tivemos duas ditaduras: a de Getúlio Vargas e a de 1964. Como colocou Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, a democracia no Brasil nunca passou de um lamentável mal entendido porque ela saía da boca dessa aristocracia da terra. Então, em 31 de março de 1964 foi instalado um golpe militar “em nome da democracia”, tendo sido a democracia apropriada pela antidemocracia – o oligarca, o aristocrata, o latifundiário. A primeira página de O Globo daqueles dias colocava: “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida. Empossado Mazzilli na Presidência”.

Projeto do Memorial da Anistia, em Belo Horizonte, que deve ser inaugurado em 2014

Anistia, construindo o Memorial da Anistia em Belo Horizonte, e com uma composição de gente séria vinculada à questão dos direitos humanos.

A Constituição de 1988

O grande marco do governo Lula

Considero 1988 o ano zero da construção da democracia institucional no Brasil porque a Constituição de 1946, embora tenha sido uma bela Carta, não conseguiu respirar. O Partido Comunista conseguiu 15% dos votos e um ano depois foi cassado pelo Supremo. A Constituição de 1988 foi absolutamente inédita; pela primeira vez o Brasil conviveu com uma coisa chamada democracia. Na esquerda existe a tradicional anteposição entre democracia substantiva e procedimental, como se aquela fosse a única que realmente importasse. Estamos aprendendo que não é assim. Temos de ter parlamento, temos de conviver mesmo quando há um Marco Feliciano. Depois, houve uma sucessão de governos nos quais alguns passos foram dados em relação aos direitos humanos. E reconhecemos com isenção o papel de Fernando Henrique Cardoso, que adotou vários instrumentos neste sentido, sobretudo no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), reconhecendo a importância do sistema interamericano, além de duas leis importantes de reparação. Uma delas foi a Lei 9.140/1995, que pela primeira vez reconhece a responsabilidade do Estado por 136 mortos, incluindo os guerrilheiros do Araguaia, e cria a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que examinou mais de 300 outros casos e aprovou mais de 200. Depois, a Lei 10.559/2002 criou a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que está trabalhando até hoje, fazendo as Caravanas da

O Lula teve como grande marco na área dos direitos humanos em seus oito anos de governo o enfrentamento da fome, tema nunca tratado como sendo de direitos humanos. O Brasil tinha 50 milhões de pessoas sem comida e toda a democracia pós-1988, incluindo Fernando Henrique Cardoso, mal tratou disso, e quando tratou, o fez com ações como a Comunidade Solidária, que foi importante, meritória, mas a fome nunca foi um eixo. Com Lula, damos esse salto e o social passa a ser o eixo central das políticas públicas. Muitos questionaram que, para isso, teve de haver muita concessão, aliança com a direita etc. Não importa. Historicamente foi um momento em que a democracia brasileira finalmente deu esse passo que significou deixar claro que democracia não é só os direitos civis e políticos, também são os direitos econômicos, sociais e culturais. Dez anos depois, dando continuidade, Dilma Rousseff fala que o fim da miséria é apenas o começo para dizer como essa construção tem de ser projetada. Lula deu outro passo importante no âmbito institucional, respondendo a uma crítica tradicional antiesquerda na academia: a de que a esquerda só se preocupa com os temas econômicos e sociais e despreza a institucionalidade. Bobagem. Lula criou três ministérios de direitos humanos – Direitos Humanos, Mulher e Igualdade Racial –, orientou a interministerialidade, a horizontalidade nas políticas

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públicas e criou como rotina os processos de conferências e conselhos. Estes são passos quase irreversíveis, são conquistas civilizatórias. O governo que governa ouvindo a sociedade tem muito mais capacidade de acertar do que aquele que se fecha.

criança. No limite, quando a convivência com a mãe ou um parente representar um risco de vida, aí sim essa criança deve ser afastada e cuidada. A igualdade racial passou a ter um ministério próprio que trabalhou o seu Estatuto, a questão dos direitos, a população quilombola etc. Com a muAvanços nos direitos humanos lher foi a mesma coisa: avançamos, por exemplo, no combate à violência e aprovamos a Lei Maria da Com essa institucionalidade, o país começou a Penha. ter avanços que mantiveram aquelas conquistas de Também tivemos avanços nos direitos das pesFHC e começaram a potencializá-las. Nilmário Misoas com deficiência: de uma política quase inexisranda, primeiro ministro dos direitos humanos do tente e inteiramente focada na saúde ou na assisgoverno Lula, até meados de 2005 tência social, passamos a encarar plantou sementes importantes que esta questão como uma política de “Outro marco do já vinham sendo trabalhadas andireitos humanos e, por isso, criates e criou uma Comissão Nacional mos a Secretaria da Pessoa com governo Lula, e que para a Erradicação do Trabalho EsDeficiência. a presidenta Dilma cravo, ou seja, passou a haver uma No segmento LGBT (Lésbicas, política nacional de enfrentamento Gays, Bissexuais, Travestis, Tranprossegue, é o ciclo a este problema. Dez anos antes sesexuais e Transgêneros), até o Sudas conferências quer se falava nesse assunto. premo adotou uma jurisprudência Outro ponto importante foi a reconhecendo os direitos constitunacionais criação do Sistema Nacional de cionais da união civil estável contra (conferências Atendimento Socioeducativo (Sitoda a pregação reacionária. nase) – um novo caminho para se temáticas, cursos, criar um novo ECA [Estatuto da A realização das seminários etc.). Criança e do Adolescente] focado conferências no adolescente infrator. Ele estaForam feitas 74 belece que este jovem não pode Outro marco do governo Lula, no período Lula. ser tratado como bandido, de mae que a presidenta Dilma prosneira que não se fala em sentença, segue, é o ciclo das conferências A Conferência mas em medida socioeducativa nacionais. Foram feitas 74 no peNacional LGBT foi a ríodo Lula. A primeira, de Seguque pode ser em regime de internação, semiaberto e aberto. Se os rança Pública, mobilizou 500 mil única no mundo” jogarmos em instituições como a pessoas em ações à distância, em antiga Febem ou os tratarmos no conferências temáticas, conferênporrete e não pela reeducação, estaremos criando cias livres, cursos, seminários etc. – culminando escolas do crime. em Brasília com três dias de debates que reuniram Também fizemos o Plano Nacional de Convivênduas mil pessoas. cia Familiar e Comunitária, voltado para repensar A Conferência Nacional LGBT foi a única no todo o sistema de abrigos. Antes, quando se detectamundo. O Diário Oficial publicou uma portaria do va um grave problema na criação de uma criança, ela presidente da República convocando a primeira Conera apartada de sua mãe ou família e colocada num ferência Nacional dos direitos do segmento, inclusiabrigo para ser oferecida à adoção – o que também é ve com conferências estaduais – todos os governadoum direito importantíssimo. Era um plano dificílimo res convocaram em seus diários oficiais. de elaborar porque precisava ouvir o judiciário, ouvir Os avanços nos direitos humanos nos governos gente de direita e de esquerda para fazer uma comLula são notáveis em nível mundial porque peposição: “olha, tudo bem, vamos garantir a adoção, la primeira vez tais conquistas fundiram os temas mas em primeiro lugar vamos fazer um esforço para dos dois pactos internacionais da Organização das que a criança viva com a sua família biológica”. O Nações Unidas (ONU). Então, não somente o Fome Estado tem de oferecer os suplementos de renda, a Zero teve papel fundamental, mas também o ProUassistência social, psicológica e educacional para que ni, os programas que criaram mais alternativas de aquela família consiga se manter. E claro, o ECA diz ensino público, o Minha Casa, Minha Vida, os proque em todo tratamento a prioridade é o interesse da gramas de saúde etc.

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Capa Agência Brasil

A Comissão Nacional da Verdade foi instituída em 16 de maio de 2012. E tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988

Os presídios e a segurança pública O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura ainda está para ser aprovado pois o governo federal não pode visitar nenhum presídio porque segurança pública é atribuição do estado. Mas, vamos criar um mecanismo preventivo em nível nacional conforme a ONU exige de todos os países que aderiram à convenção contra a tortura, uma das primeiras que o Brasil assinou logo depois do regime militar. Quando tivermos isso, a tortura despencará, porque ela é um crime de oportunidade, é algo que existe porque o torturador sabe que ninguém vai fiscalizar. E quando os interrogatórios forem gravados, a tendência também é de que a tortura diminua consideravelmente. Se formos cercando o problema, minimizando as brechas para que se torture, podemos tornar essa triste prática algo residual.

A Comissão da Verdade Tudo somado, acredito que o marco mais nítido desses dez anos seja a conquista da Comissão Nacional da Verdade – hoje implantada e se multiplicando pelo país. Já temos dez estados com suas comissões e a sociedade civil também vai criando as suas. Isso significa que o Brasil desbloqueou esse tema. Se haverá punição ou não, é outra questão. Mas a certeza de impunidade já desapareceu.

A Comissão da Verdade tem justamente o objetivo de estabelecer um processo de justiça de transição. Fernando Henrique, com a Lei 9.140, já reconheceu a responsabilidade do Estado e já indenizou. A Comissão de Anistia também. As políticas de não repetição já existem: os direitos humanos são administrados rotineiramente nas academias de polícia etc., têm sido criadas ouvidorias, controladorias, entre outros órgãos dessa natureza. Agora, falta a investigação individualizada do que aconteceu e, sobretudo, a responsabilização. Em agosto de 2007, lançamos o livro Direito à Memória e à Verdade, que valeu como abertura-chave para o desbloqueio de um tema que não nasceu ali. Vamos reconhecer que o assunto vem de muitos anos antes, mas que estava marcado, sobretudo, por uma ação perseverante de familiares, de movimentos, advogados e ex-presos que nunca cederam. Mas é preciso reconhecer que no âmbito do Estado democrático de direito houve passos importantes dados por FHC, Lula e Dilma. A justiça de transição recomenda o reconhecimento da responsabilidade, a reparação administrativa, financeira e simbólica. Neste aspecto há as homenagens, a valorização, como estamos fazendo, transformando as vítimas em heróis. Pela primeira vez o Brasil começa a fazer um exame oficial sobre a sua própria história. Se tivesse feito isso com relação ao genocídio indígena ou à escravidão, estaríamos anos-luz à frente no respeito à diversidade racial. Ainda há um racismo forte no Brasil, porque tratamos a escravidão como um negócio e como se sua abolição tivesse sido apenas um ato da

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princesa Isabel que um dia assinou a Lei Áurea. Não se contam os horrores vividos pelos escravos, nem as lutas travadas pelos escravos por sua liberdade. O genocídio indígena e a ausência de uma discussão sobre isso deixaram que se desenvolvesse um forte sentimento anti-indígena no Brasil. Em cidadezinhas do Mato Grosso do Sul, por exemplo, percebemos o ódio que há com relação aos índios; dizem que eles são “bêbados, bandidos, vagabundos”. Imagina como seria dizer que eles são donos da terra?

posicionamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Eu preferiria que houvesse um pronunciamento dos três. E mais do que isso: eles terão não apenas de reconhecer a tortura, mas de reconhecer o erro de terem derrubado João Goulart. Isso hoje é praticamente impensável porque eles foram formados com outra concepção. Então, temos de mexer na educação militar porque se for adotada uma solução verticalista, do tipo “demite todo mundo”, não vai haver quem nomear. As Agulhas Negras ainda têm Garrastazu Médici como patrono. Não pode. É preciA falta de um reconhecimento nas so mostrar quem ele foi. Forças Armadas Minha impressão é de que algumas autoridades dos últimos governos não mudaram isso por temePensar no balanço de dez anos rem uma reação que, na realidade, de governo Lula não é só falar das não acredito que vá acontecer. Temos vitórias. Há temas que estacionauma transição de quase 30 anos e as “Vou ao limite de ram e outros que não avançaram novas safras já são bem conscientes dizer que, para mesmo no âmbito da Comissão da da disciplina constitucional. Então, Verdade, que foi uma conquista. se for tocado no tema da repressão mim, a ideia de Ainda não houve, por exemplo, nepolítica não haverá nenhum probleque tem de haver nhum pronunciamento das Forças ma de insubordinação em relação à Armadas, o que é indispensável. O presidência da República. O problepunição (para general Maynard Marques de Santa ma ficou localizado nesse sagrado, os torturadores Rosa [chefe do Departamento Geral falso, ideológico tabu que tem de de Pessoal do Exército] foi exoneraser quebrado. Por isso, acho muito da ditadura) é do por Nelson Jobim em 2010 porimportante que nosso discurso seja inegociável. No que disse que a Comissão da Verdadespido de qualquer matiz que possa de era uma “comissão da mentira”. parecer revanchista. entanto, punição Ele era chefe do departamento de não tem de ser ensino do Exército, ou seja, toda a Punição necessária formação passava por ele. cadeia” Conversei com Jobim o tempo Vou ao limite de dizer que, para todo sobre isso. Disse que se essa mim, a ideia de que tem de haver questão tivesse sido enfrentada em 1999, quando FHC punição é inegociável. No entanto, punição não criou o Ministério da Defesa, já estaríamos com uma tem de ser cadeia. O que foi feito na África do Sul? nova safra de alto oficialato. Então, vamos fazer agoQuem comparecesse à Comissão da Verdade e Rera e daqui a dez ou vinte anos, teremos fruto. É preconciliação, reconhecesse os seus crimes, detalhasciso introduzir o Direito Constitucional e os Direitos se de maneira convincente e se arrependesse, sairia Humanos em todas as etapas da formação militar das dali anistiado. E mais de mil foram processados três armas. Mas não digo que os militares não fizeram porque o depoimento não foi convincente. uma transição. Eles fizeram. E no contato que mantive No Brasil, acho preferível que o relator da Comiscom os três chefes das Forças Armadas, confesso que são da Verdade aponte na linha de que é preciso que fiquei com boa impressão. Eram pessoas com as quais o Judiciário examine, investigue e declare nominal eu conversava olhando nos olhos, não era gente com e formalmente a responsabilidade daquelas pessoas as mãos sujas de sangue. Mas, provavelmente eles tepelas torturas e os desaparecimentos. Claro, aí ennham sido alunos ou subordinados de alguns daqueles volve uma questão do Direito: se não houver evidênque nós apontamos como mandantes da tortura, cocias suficientes em relação a Fleury [Sérgio Paranhos mo responsáveis em última instância. Ou seja, criou-se Fleury] ou a Ustra [Carlos Alberto Brilhante Ustra], toda uma corporação, uma disciplina militar em que ainda assim não haverá dúvida sobre suas responhá uma espécie de mutismo, que o Chile, por exemplo, sabilidades. Mas haverá aqueles que serão mencioquebrou, mas o Brasil não. nados apenas duas e não 300 vezes. Então, seria A Comissão da Verdade deve preparar um relanecessária uma fórmula jurídica engenhosa que tório no final dos seus trabalhos no qual haja um possibilitasse fazer uma grave e sistêmica condena-

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Capa Capa do PNDH-3. Divulgação

Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), outra conquista importante do governo Lula

ção dizendo que, diante de evidências substantivas, esses torturadores devem ser declarados indignos do serviço militar, do serviço à pátria, por terem assassinado, torturado e violado os direitos humanos. Em seguida, viria uma lista com os nomes de todos eles.

A utopia dos direitos humanos A minha formação é marxista-cristã, socialista, e para mim o socialismo sempre foi um objetivo muito mais distante do que os direitos humanos. Mas não é. Como utopia, os direitos humanos são muito mais ambiciosos porque haverá um mundo socialista em que ainda haverá preconceitos, violências entre pessoas. É comum a ideia de que é preciso extinguir a burguesia, o inimigo de classe – mas a experiência socialista já provou a insuficiência dessa leitura. Na discussão com Jobim, eu tentava exercitar o mecanismo de imaginar que a pessoa que defende uma oposição ao que defendo pode estar movida pela mesma convicção de verdade que eu. Mas se Ustra chegar na minha frente e disser “não houve tortura no DOI-CODI”, como ele fala, sei que não se trata de alguém que tem uma convicção de verdade. Ele é um canalha. Ele sabe que houve, porque ele participou. Nesse caso, então, é diferente.

O polêmico PNDH-3 O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3) foi outra conquista importante do gover-

no Lula. Nele, não havia nenhuma única palavra de conteúdo anticapitalista – cuidei disso pessoalmente porque sabia em qual governo eu estava. Mas havia, por exemplo, críticas ao agronegócio, às experiências que levaram às chacinas de Eldorado dos Carajás e Corumbiara, às mortes de Dorothy Stang e Chico Mendes. Foi uma proposta que gerou uma reação contaminada pela disputa eleitoral e que ocorreu pelo fato de Jobim ter aberto a dissidência oferecendo um prato cheio para essa discussão. Disseram então que havia ali “um ranço contra o agronegócio”. Ora, não tinha ranço nenhum. Na ocasião, afirmei que o PNDH-3 era resultado de um amplo processo democrático, cujo conteúdo estava fundamentalmente em consonância com o que todo mundo defende. Mas na vida democrática temos de estar abertos a críticas e ajustes. Então, promovemos negociações e houve alguns recuos, que pessoalmente fiz a contragosto. Um exemplo: o direito à interrupção da gravidez. Havia uma frase genérica a respeito. Eu sabia que não havia correlação de forças que permitisse garantir esse direito da mulher, mas a redação dava a entender claramente isso. Algo importante de se ressaltar no PNDH-3 é que ele, no fundo, é uma bela articulação do tema dos direitos humanos e que deixa ao leitor, de maneira implícita, com leveza, a pergunta: a sociedade capitalista é capaz de assegurar direitos humanos? Essa frase não está ali, mas como colocamos que direitos humanos são também ligados à taxa de juros, ao imposto sobre grandes fortunas, ao modelo de produção, seus impactos ambientais e o dia a dia das fábricas etc., houve uma reação do capitalismo forte porque ficou patente que aquela peça construiu uma consistente indagação sobre a sociedade capitalista. Eu não podia escrever, mas, pela minha opinião, a sociedade capitalista não é capaz de assegurar os direitos humanos. A verdadeira sociedade dos direitos humanos será uma sociedade não-capitalista.

A questão da mídia O ataque ao PNDH-3 ocorreu na virada dezembro de 2009 para janeiro de 2010, e no dia 13 de maio publicamos a segunda edição. Das dez alterações feitas, as mais injustas foram as relacionadas à mídia. Na mesa com Lula e outros ministros para acertar como íamos fazer as alterações de mídia, Lula ficou indignado porque mostrei que o PNDH-2, de FHC, falava de controle social da mídia e controle democrático da mídia e eu retirei isso da nossa versão porque já havia tido todo um atrito relacionado à Ancinav [Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual] etc.

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A reação às propostas foi igual: disseram que era Barbosa acaba de dar uma entrevista dizendo que bolchevismo, chavismo etc., como eles [os represense tivesse votado na questão da Lei de Anistia, ele tantes dos meios de comunicação] sempre fazem em teria votado diferente e admitiu que o Supremo pode relação a tudo que possa significar alguma regulação. rever essa decisão. Então, quase não conseguimos avançar. Chegamos a Outro ponto: discordei da apresentação da pensar em criar um ranking dos programas que deADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito fendem os direitos humanos e dos que promovem Fundamental] pela OAB (Ordem dos Advogados ou estimulam violações, mas nem isso foi possível. do Brasil) sobre a Lei da Anistia naquele momento. Avalio que os direitos humanos no âmbito da comuDevíamos ter feito um movimento primeiro. Estava nicação foram o território em não errado provocar o Supremo como avançamos em praticamente nada, início de uma operação que tinha um grande déficit ao avanço dede começar com o Ministério Púmocrático. A Globo não pode ter o blico, com as ações das famílias, monopólio; o desenho democrático com as caravanas, os monumenque está esboçado na Constituição é tos sendo anunciados, com um lio dos três terços: privado, público vro sendo lançado etc. Se a ADPF e social. fosse hoje, o clima seria outro, Fui à instalação do Conselho completamente diferente, afinal da cidade de São Paulo, do qual de lá para cá aconteceram dois fa“Existe receio sou membro, e falei para o prefeitos muito relevantes: a decisão da dos governos de to Fernando Haddad: “olha, dentro Corte da OEA sobre o Araguaia – dessas 100 metas estratégicas não que o Supremo não vai convalidar, enfrentar a grande tem nenhuma de comunicação de mas dificilmente vai arrostar – e a mídia, claro, afinal massas”. Não dá para fazer o goverextradição de dois torturadores arno que Haddad quer se não intergentinos, que passou por maioria sem enfrentar já é viermos nesse tema. Inclusive pela dos votos com base na ideia de que esse linchamento” nova lei da tevê digital, a prefeitua Lei da Anistia não cobre os cara tem direito a um canal. Então, sos de desaparecimento porque o monta o canal. Não estamos fazendesaparecimento é contínuo. Um do essa disputa. dos ministros – não me recordo se Marco Aurélio Existe receio dos governos de enfrentar a grande ou Gilmar Mendes, que foi voto vencido – disse que mídia, claro, afinal sem enfrentar já é esse linchacom aquela decisão estava se abrindo um precedenmento. Temos de enfrentar isso não com o viés de te para a Lei de Anistia no Brasil. Isso consta em controlar o noticiário. Deixe-os falar o que quiserem, ata. Então, o MP entrou com novas ações com essa mas com aberto ao uso social, as centrais sindicais, fundamentação jurídica. o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra), Sobre a Lei de Anistia de 1979, eu não proporia movimentos comunitários, terão seu espaço e, ensua revogação porque isso permitiria a revisão de tão, teremos diversidade. Assim teremos democraqualquer coisa. O que dá para fazer é derrubar a cia porque haverá várias opiniões e não uma opinião interpretação do Supremo de que aquela lei protege única, a tal “opinião pública” que não é pública, é o torturador. Porque ela não protege. O problema publicada. é a palavra “conexo”. Quem colocou “crime conexo” foi ao Salão Azul e disse: “olha, esse conexo Decisão do STF sobre a Lei da Anistia aqui quer dizer que os torturadores também serão anistiados”. Se fosse para proteger os torturadores, Quem acredita que a consolidação democrática teriam que ter dito. Não disseram porque, segundo passa pelas instituições tem que entender que se traeles, não havia tortura, não havia nem preso pota de trabalhar para que o Supremo corrija a decisão lítico. Isso acabou: houve tortura, houve prisões e de 2010. Eu sustento que fatalmente vai corrigir. A desaparecimentos. É preciso promover um reexame dúvida é se corrige em um ou em dez anos. para reinterpretar a lei e afirmar que aqueles são Nós erramos ao não provocar o Supremo a fazer crimes que não estão protegidos. um ato de reconhecimento do seu erro na cassação do Partido Comunista em 1947 e na deportação de *Priscila Lobregatte entrevistou o ex-ministro Paulo Olga Benário – dois episódios gravíssimos em que Vanucchi na sede do Instituto Lula, em São Paulo, no o Supremo foi consultado e convalidou. Joaquim dia 29 de março de 2013

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