BÍBLIA. Latim. Mogúncia. 1462. Trata-se da primeira obra impressa na qual aparecem data, lugar e nomes dos impressores, Fust e Schoeffer (ex-sócios de Gutenberg), no colofão. É o incunábulo mais antigo da Biblioteca Nacional. Impressa sobre pergaminho, sendo as iniciais dos capítulos feitas à mão com tinta azul e vermelha. Figura 1 - Encadernação da Bíblia da Mogúncia
Figura 2 - Bíblia da Mogúncia - página em pergaminho com a marca do impressor
Entre_na_roda_módulo Introdutori6 6
17/05/2007 11:01:35
De livros, leituras e leitores
A
té o século XVIII, o livro era feito
sível imaginar como seria a leitura – e o
artesanalmente – por isso cada
leitor – nas épocas precedentes, embora
exemplar tinha características próprias,
estudos feitos a partir de suportes, regis-
que manifestavam a criatividade e o es-
tros e obras que sobreviveram ao tempo
mero do artista que o produzia, sendo
nos permitam visualizar um pouco a tra-
apreciado não só pelo conteúdo, mas
jetória dessa relação sempre algo impre-
também por seus aspectos estéticos.
visível entre o homem e o texto escrito.
Enquanto obra de arte, seu preço era elevado e sua circulação, restrita.
Ainda que os sumérios, há 4 mil anos a.C., já utilizassem a escrita e, nas anti-
Nas sociedades modernas, a função da
gas Grécia e Roma, parte da população
escrita se modificou devido ao progresso
tivesse acesso a ela, todo o conhecimento
tecnológico, ao acúmulo de conhecimen-
acumulado até a Idade Média era basica-
tos e à necessidade de circulação de in-
mente transmitido de forma oral. Apesar
formações. O livro então passou de objeto
de pensadores como Sócrates, Platão e
de arte a produto de consumo e deixou de
Pitágoras valorizarem mais o pensamento
ser o principal suporte da escrita, pois esta
vivo e o diálogo com os pares e com os
passou a se valer de cartazes, jornais, fo-
discípulos como forma de transmissão e
lhetins, revistas, meio eletrônico e outros.
de construção do saber, parte desse co-
Da mesma forma, o leitor deixou de ser aquele que usufruía esteticamente do texto
nhecimento só chegou até nós porque foi registrado por escrito.
e do aspecto gráfico de uma obra, lendo-
Pode-se dizer que, na Antigüidade, o
a integralmente da primeira à última linha,
leitor, antes de tudo, era um ouvinte, já que
para tornar-se um leitor mais rápido e flexí-
a prática habitual eram as leituras públicas
vel, em face da diversidade de situações de
– realizadas ou pelo próprio autor, ou por
leitura ao mesmo tempo impostas e propor-
um profissional da leitura. Essa era a forma
cionadas a ele pela vida moderna.
pela qual leitores e não-leitores entravam
Dada a transformação profunda ocor-
em contato com as diferentes obras produ-
rida ao longo dos séculos, é quase impos-
zidas, em função das dificuldades e da pre-
Entre na roda - Introdução
Entre_na_roda_módulo Introdutori7 7
7
17/05/2007 11:01:42
cariedade das técnicas de registro manual.
mitia a escrita nos dois lados das folhas,
O escrito era visto como mero substituto do
que depois podiam ser dobradas e unidas
oral e, por isso, pouco valorizado.
em cadernos, constituindo um códice, o
No entanto, descontadas as dificulda-
primeiro livro portátil.
des de registro, a reprodução de obras co-
As invasões bárbaras, nos séculos V e
piadas dos originais fez aumentar o número
VI d.C., acabaram por destruir o Império
de bibliotecas, fossem elas particulares ou
Romano e, com ele, os grandes centros de
públicas. O exemplo mais significativo des-
formação e concentração da cultura antiga.
se processo foi a criação da Biblioteca de
O mundo ocidental mergulhou num período
Alexandria, no século III a.C., com um acer-
em que a cultura letrada praticamente desa-
vo de 500 mil obras da Antigüidade e a ins-
pareceu, restringindo-se aos monastérios.
crição na entrada: “Lugar de cura da alma”.
A censura exercida pela Igreja Católica
Inicialmente as obras eram registradas
ao longo da Idade Média, aliada ao mono-
sobre papiro (folha feita com fibras de uma
pólio que detinha sobre a escrita, fez com
planta originária do Egito) nos volumina
que o livro se sacralizasse.
– rolos sobre os quais o texto era escrito em
Também a instrução passou para a tu-
estreitas colunas, sem espaço em branco
tela da Igreja. Dessa forma, o aprendizado
entre as palavras. A leitura era dificultada
da leitura, em latim, acabou se restringin-
pelo fato de que o leitor deveria segurar o vo-
do aos jovens destinados à vida religiosa.
lumen com as duas mãos, desenrolando-o
Aos sete anos, esses meninos iam para a
com uma delas e enrolando-o com a outra.
escola e recebiam ensinamentos, sobretu-
Esse processo não permitia que ele anteci-
do orais. Cabia à criança ouvir o mestre e
passe o que vinha pela frente ou retornasse
memorizar o que a ela era ensinado, pois
a trechos anteriores do texto como é possível
saber era “saber de cor”.
fazer hoje. A leitura completa de uma obra
Nos mosteiros, as obras aprovadas pela
era traduzida pela expressão latina “ad um-
Igreja para reprodução eram manuscritas,
bilicum adducere”, que significa “ir de fora
num trabalho longo e paciente, por monges
até o ‘umbigo’ (eixo/centro)” do volumen.
instalados no scriptorium, sala ampla e ilu-
Posteriormente, passou-se a utilizar
minada, com mesas sobre as quais ficavam
o pergaminho (pele de animal, macera-
todos os instrumentos necessários para có-
da em cal, raspada e polida com pedra-
pia e ilustração (iluminuras) dos textos.
pome), material mais flexível, menos raro
Nesse ambiente, pairava o murmúrio
e, portanto, mais barato. Além disso, per-
constante dos monges que necessitavam
8
Entre_na_roda_módulo Introdutori8 8
Entre na roda - Introdução
17/05/2007 11:01:44
Figura 3 - Livro de Horas em Latim, 1588. Em pergaminho, um valioso livro medieval iluminado. Cena Bíblica
Figura 4 - Bíblia em Latim, Veneza, 1480 - Capitular iluminada a ouro
Entre na roda - Introdução
Entre_na_roda_módulo Introdutori9 9
9
17/05/2007 11:01:45
ler em voz alta os textos que copiavam, já
econômicas e sociais, que conduziram a
que neles a escrita dirigia-se mais aos ou-
Europa de um sistema feudal para outro,
vidos que aos olhos: não havia separação
mercantilista. A Igreja foi perdendo sua su-
entre as palavras, e a pontuação e a or-
premacia espiritual e temporal; a educação
tografia ainda não estavam normatizadas.
ganhou um caráter laico; o ensino deixou
Portanto, só pela oralização o leitor podia
de ser exclusivamente oral para contar com
chegar ao significado do texto.
o apoio do livro como instrumento didático;
Era raro encontrar um leitor silencioso e,
e os intelectuais tornaram-se mais críticos e
em função disso, nos mosteiros havia ainda
contestadores, à medida que foram tendo
um aposento especial, destinado à leitura,
acesso a autores gregos e árabes.
para que o texto lido em voz alta não prejudi-
Cresceu a demanda por livros e, pa-
casse a paz e o recolhimento dos religiosos.
ralelamente, aumentou a produção editorial, os livros ficaram mais acessíveis,
Somente no século X, a leitura silen-
passaram a ter uma nova configuração,
ciosa passou a ser usual no Ocidente. Santo Agostinho relata, espantado, a maneira extraordinária como Santo Ambrósio lia: “Quando ele lia, seus
apresentando paginação, sumário e listagem de abreviaturas, que facilitavam seu manuseio e compreensão.
olhos perscrutavam a página e seu coração buscava o sentido, mas sua voz ficava em silêncio e sua língua quieta.” (MANGUEL, 1997)
Esse cenário favoreceu o surgimento da imprensa na Europa. Na década de 1440, Gutenberg inventou uma técnica de impres-
Todavia, aos poucos, alterações técni-
são com tipos móveis, utilizando-se de outras
cas na diagramação do texto manuscrito
recentes conquistas – a fundição do chum-
foram sendo conquistadas. A adoção de
bo, a criação de tintas mais aderentes, a xilo-
um novo tipo de letra (carolina), mais le-
gravura, a impressão em tecido e o papel de
gível que a gótica, a separação entre as
origem chinesa.
palavras, a pontuação e a normatização
Na verdade, Gutenberg não foi o pri-
da ortografia latina permitiram a criação
meiro a utilizar o tipo móvel para im-
de estratégias de leitura mais eficazes.
pressão. Esse processo já era conhecido na Ásia bem antes de sua descoberta
A leitura visual, silenciosa, primeiro difun-
no Ocidente. Desde o século XI, a China
dida nos mosteiros, foi ganhando as universi-
utilizava o tipo móvel em terracota. A
dades e finalmente alcançou a aristocracia. Essa irradiação de uma nova forma de ler demorou séculos para se efetivar e resultou
partir do século XIII, passou a utilizar caracteres de madeira, enquanto na Coréia os textos eram impressos com caracteres de metal.
de um grande processo de transformações
10
Entre_na_roda_módulo Introdutori10 10
Entre na roda - Introdução
17/05/2007 11:01:52
Figura 5 - Mesa de trabalho do gravador – Oficina da Casa Literária do Arco do Cego – depois denominada Tipografia Calcográfica e Literária do Arco do Cego, criada em 1799 por D. Rodrigo Souza Coutinho com o objetivo de difundir as Luzes da Ciência e da Ilustração portuguesas. A tipografia publicou 83 títulos. A Oficina aglutinava várias funções ligadas às artes gráficas, tipografia, calcografia, com corpo próprio de gravadores.
A partir da Bíblia de Gutenberg, a
Mesmo depois da invenção de Guten-
Igreja perdeu a função de intermediá-
berg, as cópias manuscritas continua-
ria da palavra sagrada, já que se tornou
ram tendo importância na circulação de vários gêneros, como panfletos po-
possível ter acesso diretamente à palavra
líticos e informativos, trabalhos proibi-
de Deus por meio da página impressa.
dos, composições poéticas e trabalhos
Lutero e a Reforma Protestante surgiram
eruditos, cujo acesso deveria ficar restrito a um número limitado de leitores.
no bojo dessa situação e apontaram para a necessidade de escolarização, que permitisse a todos ler a Bíblia.
Entre na roda - Introdução
Entre_na_roda_módulo Introdutori11 11
11
17/05/2007 11:01:52
Cresceu então o entusiasmo pela
partir da invenção da imprensa, as técnicas
aprendizagem da leitura e, em alguns
de reprodução gráfica se desenvolveram ra-
países, para superar a falta de escolas,
pidamente, tornando possível publicar obras
aqueles que sabiam ler ensinavam aos
dos mais diferentes gêneros, escritas por au-
que não sabiam.
tores de todos os segmentos sociais. Houve,
A partir do século XVII, a relação
também, uma disseminação da habilidade
do leitor com o livro, antes centrada na
de ler, graças à ampliação da escolaridade
Bíblia e em outras obras sacras, alterou-
para uma faixa maior da população.
se profundamente com a publicação de
Até a metade do século XVIII, as publi-
grande quantidade de obras profanas.
cações de caráter romanesco, que mais
Almanaques, calendários e contos popu-
circulavam socialmente, não costumavam
lares e amorosos faziam grande sucesso
trazer o nome dos autores estampado na
entre os mais pobres.
página de rosto. Isso se devia em parte
Segundo José Juvêncio Barbosa (1990),
à má fama dos romances – vistos como
nessa sociedade em mudança coexistiam
uma forma inferior de literatura e como
dois tipos de leitores, que representavam
capazes de corromper moralmente, so-
duas concepções de leitura. Havia o leitor
bretudo as leitoras –, em parte ao caráter
ainda preso à tradição oral, para quem o li-
passageiro da maioria dessas obras.
vro e a leitura eram instrumentos para man-
Os escritores viviam sob a proteção de
ter unida a família em torno de mensagens
um aristocrata ou acabavam se envolven-
religiosas e moralizantes. A essa leitura oral
do em atividades ilegais, como o contra-
e coletiva contrapunha-se a do leitor solitário
bando de livros. Não existia, portanto, a
e silencioso, que lia todo e qualquer texto, e
“profissão” de escritor. Esses costumavam
tratava a escrita como uma linguagem para
vender seus originais a um editor, que
os olhos, apreendendo de forma mais efi-
muitas vezes lhes pagava parte em dinhei-
ciente porções maiores de texto.
ro, parte em livros, que os autores podiam
O século XVIII representou um salto na di-
comercializar por conta própria. Não havia
reção da formação de um público leitor. A re-
“direitos autorais” – os lucros ficavam com
volução econômica, política e cultural da épo-
o editor. Só mais tarde, em 21 de julho de
ca, promovida pelo avanço tecnológico e pelo
1793, a França revolucionária promulgaria
pensamento crítico e racional de filósofos do
uma lei que reconhecia a noção de pro-
Iluminismo, resultou numa crescente amplia-
priedade literária, conferindo certidão de
ção das oportunidades de acesso ao saber. A
batismo ao autor moderno.
12
Entre_na_roda_módulo Introdutori12 12
Entre na roda - Introdução
17/05/2007 11:01:56
Em 1761, Rousseau lançava Julie ou
Outro tipo de obra que também fez su-
La nouvelle Héloïse, o grande best-seller
cesso nesse período foi a literatura peda-
do século. Pelo sucesso alcançado pelo
gógica e infantil, voltada para a formação
romance, pode-se atribuir a seu autor o
moral e a educação das crianças. Essas
surgimento do culto ao escritor.
obras, carregadas das idéias de Rousseau – de que o homem é naturalmente bom e
Esse romance, que já antecipava o
a sociedade é que o corrompe –, preocu-
Romantismo, foi responsável por uma enxurrada de lágrimas, desmaios e suicídios entre os(as) leitores(as) da época. Nele, Rousseau retoma a situação vivi-
pavam-se em orientar os pais para educar a mente e o coração dos pequenos, tendo em vista torná-los cidadãos úteis e felizes.
da por Abelardo e Heloísa, um casal de amantes da Idade Média que teve seu amor violentamente combatido pelo tio da moça e pelos preconceitos da época,
Ainda no século XVIII, consolidou-se em alguns países da Europa uma nova forma de circulação de textos, que atendia a duas ne-
para construir personagens porta-vo-
cessidades básicas: oferecer conteúdos mais
zes de suas idéias. Escrito na forma de cartas – 163 ao todo –, o romance conta a história de
leves, menos eruditos, e propiciar informações sobre os acontecimentos cotidianos. Os jornais
uma jovem nobre, Julie d’Étanges, que se enamora de seu preceptor, o jovem e pobre Saint-Preux. A diferença social é o grande obstáculo ao amor dos dois,
ganharam espaço enquanto suporte de diferentes gêneros discursivos: notícias, anúncios publicitários, curiosidades, fofocas etc.
mas, mesmo separados, o sentimento entre eles se mantém. O sucesso de La nouvelle Héloïse foi tão grande que a quantidade de livros impressos não foi suficiente para atender à demanda de tantos leitores interessados. Isso fez com que os livreiros passassem a alugar os livros por dia e até por hora.
O primeiro “jornal” de que se tem notícia – a Acta diurna – surgiu em Roma, em 59 a.C., por inspiração de Júlio César. Desejando tornar públicos os mais importantes eventos e acontecimentos sociais e políticos, César ordenou que esses fatos fossem divulgados nas principais cidades por meio das Acta. Escritas sobre placas brancas colocadas em lugares públicos, como as termas, as Acta informavam os cidadãos sobre campanhas militares, escândalos no governo, julgamentos e execuções, casamentos, óbitos e nascimentos. As informações que constavam das Acta eram colhidas por “repórteres” nomeados pelo Estado, chamados de “actuarii”.
Entre na roda - Introdução
Entre_na_roda_módulo Introdutori13 13
13
17/05/2007 11:02:07
A palavra escrita se popularizou cada
Do século XVIII, palco de tantas trans-
vez mais e acabou se tornando um meio co-
formações, até nossos dias, a função da
mum de comunicação a distância entre as
escrita na sociedade se alterou profunda-
pessoas. O modo como se lia também mu-
mente e, em conseqüência disso, o ato
dou. Se até a metade do século XVIII a lei-
de ler assumiu novas dimensões. O novo
tura era mais intensiva – poucos textos lidos
leitor lê apenas pequenas porções de tex-
repetidas vezes, com profundidade, e parti-
tos que lhe são ofertados. Como aponta
lhados em família e em reuniões sociais –, a
BARBOSA (1990, p. 109), “grande parte
partir de 1750 ela se tornou mais extensiva,
da leitura diária das pessoas é constituída
resultando no ato de ler voltado para grande
de atos exploratórios onde o leitor desta-
quantidade de matéria impressa – fato que
ca os segmentos relevantes para obter a
elegeu os romances e jornais como mate-
informação que deseja”. Trata-se, nesse
riais privilegiados e mais consumidos. Dessa
caso, de uma leitura seletiva.
Figura 6 - Tradução guarani, feita no século XVIII, da 1ª catequese dos índios selvagens pelos padres da Companhia de Jesus, 1733
forma, os textos passaram a ser lidos uma única vez, com o objetivo de obter entretenimento e informação. O Romantismo, movimento literário do século XIX, ao afirmar o texto literário como algo original, resultado da criatividade e da expressão íntima de um indivíduo, difundiu definitivamente a idéia de autoria. Assim, rompeuse com a visão da tradição medieval e clássica, que via os atos de escrita – literários ou não – como reescrita pela retomada ou imitação de textos já consagrados.
14
Entre_na_roda_módulo Introdutori14 14
Entre na roda - Introdução
17/05/2007 11:02:13