O mito de hermes na pos modernidade

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“De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da felicidade.” Epicuro

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ÍNDICE Apresentação ................................................................................................................ p. 04 As chaves mythodológicas dos jogos cooperativos: o dilaceramento de Dioniso e os vínculos hermesianos (re)envolvendo o sapiens .......................................................... p. 06 A dimensão hermesiana da cooperação ...................................................................... p. 08 Hermes e o ambientalismo ........................................................................................... p. 11 Fórum Mundial Social: evocando Hermes .................................................................... p. 15 O que é animação cultural? .......................................................................................... p. 17 Turismo fático: o prazer de estar junto ......................................................................... p. 19 O direito ao son(h)o: abraçando a cidadania neg-ativa ................................................ p. 25 Hermes e a participação mística da cooperação .......................................................... p. 28 O imaginário hermesiano da cooperação ..................................................................... p. 30 As sombras do trabalho voluntário ............................................................................... p. 33 A horizontalidade da cooperação ................................................................................. p. 37 Cooperando com Hermes: para além do patriarcado e do matriarcado ....................... p. 40 Tempo livre e imaginário: os mitos na formação de recursos humanos para o lazer ... p. 42 Ação cultural na terceira idade: introdução à sociagogia do (re)envolvimento ............. p. 47 Mapeando os novos templos de Hermes: .................................................................... p. 50 Mostra do redescobrimento: um passeio arquetípico ................................................... p. 52 Bibliografia básica ......................................................................................................... p. 56 O autor .......................................................................................................................... p. 58

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APRESENTAÇÃO

Este livro reúne uma série de artigos escritos entre os anos de 2001 e 2003. Alguns, nem sempre os melhores, foram publicados em revistas de circulação restrita e também no Jornal Primeira Página, de São Carlos. Outros alçaram vôos maiores e foram publicados em revistas de alcance nacional. E por fim, há artigos que ganharam um teor “acadêmico”, sendo apresentados em eventos científicos e publicados em anais. Porém, o que os une é o sentimento hermesiano. É o desejo de abandonar a luta prometéica pelo (des)envolvimento e pelo heroísmo sacrificante para abraçar uma outra causa: o (re)envolvimento humano e a cooperação. Em suma, Hermes não parece ser um mito que faz questão de "marcar posição", conquistar os territórios do "inimigo" ou assumir novas missões. Ao contrário, é um mito que serve incondicionalmente, que aceitou a de-missão ou a de-posição das armas para acolher o outro, o diferente e o estranho. Enfim, re-ligar o céu e a terra. Se Prometeu, o mito da modernidade estressada, representa o sacrifício egocêntrico, Hermes, o condutor das almas, representa o sacro-ofício da alteridade. Os artigos aqui publicados são como as hermas. Indicam caminhos. Mas não são caminhos de espinhos ou de pedras, ao contrário, são caminhos numinosos que nos levam suavemente para os castelos da anima-ação cultural, onde encontraremos os jardins do (re)envolvimento humano, em temas tão díspares como os Jogos Cooperativos, o Turismo, o Ócio, o Corpo, a Espiritualidade etc. Os mitos de Apolo e Prometeu reinaram praticamente durante toda a modernidade,

estimulando

nos

homens

a

necessidade

de

“progredir”,

de

se

“(des)envolver” de seus instintos básicos. Estes mitos, portanto, estimulam o desejo de lutar contra as forças da natureza e promovem nos homens uma visão belicosa do mundo. Curiosamente, no momento que tais mitos parecem entrar em crise na alma humana, sobretudo após duas guerras mundiais (cujo cenário foi o continente “civilizado”) e da tensão planetária promovida pela Guerra Fria entre os EUA e a ex-União Soviética, o Dioniso profano, junto a Narciso e Adonis, aproveitaram-se desta brecha para ocupar a alma dos mortais. Felizes, promovem o “irracionalismo” da mídia, expresso em nádegas

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flamejantes ou no prazer em consumir desenfreadamente. Encontram-se, ainda, instituindo a corpolatria nas academias de ginástica e são frementes no reino das drogas e da moda. Felizmente, estes não reinam sozinhos. De forma gradual, Hermes também se manifesta no mundo de hoje. Ele é o mito daquelas pessoas que valorizam a criação de vínculos e de (re)envolvimento com a natureza; está também nas organizações alternativas e nos cientistas que buscam criar tecnologias de baixo impacto, ou seja, menos agressivas à natureza e ao meio ambiente. Está também naqueles que redescobrem a espiritualidade ou o religare, pois Hermes é um deus psicopompo (condutor das almas). Assim é Hermes, um mito fraternal, brincalhão e meio infantil. Mas como já disse WINNICOTT (1975), o brincar não é uma “regressão defensiva” como pensava a psicanálise patriarcal e heróica, mas sim uma relação criativa e inventiva com o mundo criado por Deus. Portanto, Hermes não é autoritário e fascinado pelo poder como Apolo e Prometeu, nem belicoso ou determinado como Ares e Héracles, mas, nem por isso, adepto do “irracionalismo” narcisista. Hermes é o mito que nos acompanha nas páginas seguintes, mostrando-nos um terceiro caminho entre o oferecido pelos mitos heróicos (predominantes em quase todas as esferas da vida cotidiana) e aquele dos mitos irracionais e presenteístas. Hermes nos apresenta o caminho do relacionamento, do estar-junto, da confraternização. Em suma, o caminho da anima-ação cultural, ou seja, da ação cultural voltada para o aprimoramento da alma (anima) através dos pequenos gestos do dia-a-dia.

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As chaves mythodológicas dos Jogos Cooperativos: O dilaceramento de Dioniso e os vínculos hermesianos (re)envolvendo o sapiens1

Esta comunicação visa o estudo do movimento Jogos Cooperativos enquanto uma práxis sócio-educativa (sociagogia) que, para ser compreendida e praticada, necessita ser pensada a partir de uma nova bacia semântica. Os Jogos Cooperativos valorizam o envolvimento humano, em suma, as características da polaridade "yin" do imaginário, o "regime noturno de imagens" de Gilbert Durand. Ao contrário dos jogos competitivos que se estruturam a partir das raízes imaginárias e arquetípicas do imaginário diurno, portanto, que apontam para o (des)envolvimento humano, os jogos cooperativos se apresentam como uma nova forma de organizacionalidade dialógica e neg-entrópica na qual a disjunção e o isolamento fenômenos característicos do processo de (des)envolvimento - são substituídos pelo acolhimento do diferente e do "estranho" - em outras palavras, pela alteridade vivida no processo de (re)envolvimento humano. Esta sutura nos leva, no plano arquetipológico, para novos mythos diretores, entre eles Dioniso e Hermes. O arquétipo Dioniso, como sugeriu James Hillman (1997), corresponde à consciência arquetípica do corpo e do vivido - que só pode ocorrer quando a razão "solta as amarras". Em relação ao espaço, uma nova "consciência" se expande e aquele deixa de ser apenas o espaço organizado ou produzido racionalmente para se transformar em espaço vivido onde os contatos dos corpos, da sensibilidade, das contradições se manifestam. O dionisíaco costuma ser interpretado como algo inferior, efeminado, perigoso etc. Esta é uma explicação unilateral que ganhou destaque com a dicotomia proposta por Nietzsche entre as forças apolíneas e as dionisíacas. Porém, ela é a dimensão do estarjunto ou da espontaneidade vital, importante para se criar vínculos comunitários, cooperar e

porque

não,

iniciar

um

processo

de

(re)envolvimento,

após

séculos

de

(des)envolvimento e isolamento humano. 1

Comunicação apresentada no II Festival de Jogos Cooperativos (SESC Taubaté - 04 a 09 de

setembro/2001).

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Por sua vez, Hermes, o deus da Comunicação entre o Céu e a Terra, possui complexos atributos, entre eles o de facilitar as trocas e os relacionamentos. A vivência arquetípica de Hermes se dá quando aceitamos dividir nosso conhecimento com os demais, quando aprendemos a ouvir o que pensam os outros e, com eles, também aprender. A abertura ao outro é o que nos permite uma vivência dialógica capaz de resolver os constantes desentendimentos e contrariedades que enfrentamos na vida cotidiana. Não é à toa que o dialogar é uma arte. Assim, a vivência arquetípica de Hermes nos possibilita expandir nossa versatilidade e capacidade de adaptação ao mundo fenomênico com mais tolerância. Em outras palavras, ao incorporar as imagens noturnas hermesianas em nossas vidas, os nossos interesses sociais aumentam, assim como o desejo de encontrar pessoas e de participar do que ocorre no mundo. Estas são algumas das características desse mytho versátil, inteligente, polêmico e inquieto que, em suma, são valorizados quando jogamos cooperativamente. Assim, se Apolo, Hércules, Prometeu, entre outros mythos heróicos do regime diurno de imagens, são os responsáveis pelo (des)envolvimento e pela competição, a vivência da cooperação exige outros mythos, entre eles os de Hermes - que além de deus da comunicação, é um criador de "vínculos" - e também o de Dioniso, cuja expressão arquetípica é a descoberta do corpo e o dilaceramento do ego (individualismo) para a necessária integração da pessoa em um plano maior ou comunitário.

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A dimensão hermesiana da cooperação2

Ao falarmos em cooperação, pensamos logo nas cooperativas de trabalho. Os "progressistas" defendem as cooperativas como forma alternativa de gerar empregos ou produzir, enquanto os "conservadores" as defendem como um meio para fugir das leis e obrigações trabalhistas mais rígidas. Ambas as visões são compreensíveis, pois o trabalho domina nossas mentes e corações há séculos. Quem se lembra do radicalismo panfletário de Lafargue ao defender, no século XIX, o direito ao ócio, criticando os sindicatos trabalhistas que reivindicavam apenas o "direito ao trabalho"? Mas, antes mesmo de Lafargue, Goethe, em "os sofrimentos do jovem Werther" escrevia: "é uma coisa bastante uniforme a espécie humana. Boa parte dela passa seus dias trabalhando para viver, e o poucochinho de tempo livre que lhe resta pesa-lhe tanto que busca todos os meios possíveis para livrar-se dele." Um desses meios é, sem dúvida, o Lazer. O sociólogo Jofre Dumazedier chegou inclusive a escrever que o Lazer é uma forma de negar o Ócio. Portanto, dentro desse raciocínio, podemos concluir que o Lazer é um neg-ócio. E isso a indústria do entretenimento e do turismo soube e sabe muito bem como explorar para que possamos nos livrar do "tempo livre". Voltando, porém, ao tema da cooperação, podemos dizer que ela também possui uma dimensão mais suave que transcende os planos materiais, abarcando metas mais sublimes. A cooperação permite, por exemplo, o despertar de uma luz espiritual, ou seja, manifestar o numinoso que se revela aos homens como dádiva suprema, pois, quando alicerçada no mundo interior, a cooperação permite realinhar nossas vidas para metas mais profundas. Quando isso ocorre, a exterioridade da cooperação (sua manifestação fenomênica) passa a ser obra de uma força cósmica, sobretudo, devocional, que se manifesta na persistência e na tenacidade inerentes aos que trilham o caminho hermesiano entre o céu e a terra, sem exageros ou fanatismos. 2

Artigo inédito, escrito em São Carlos no dia 15 de setembro de 2002.

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A cooperação, quando transcende a ótica economicista e materialista, se faz perceptível através de uma vibração sagrada que permeia todo o nosso ser. E isso acontece porque além dos grupos externos e visíveis, passa a existir também os grupos invisíveis com os quais também cooperamos. Assim, quando a cooperação com o mundo invisível (numinoso) se torna a base de nossa existência, e uma vibração toma conta de nosso ser e se torna realidade em todas as dimensões possíveis, podemos sentir a presença de Hermes tornando-se efetiva/afetiva, irradiando-se de dentro de nós para o mundo exterior. A energia de Hermes se manifesta também através de um cultivo e de um desabrochar da disponibilidade de servir ao benefício de algo maior, um Todo que não conseguimos mensurar, mas que o sentimos presente. Mas esse servir corre um certo risco se não seguir uma outra lei: a do dar e receber, que falaremos mais adiante. Quando a cooperação se processa através dessa energia suprafísica, podemos perceber que nossas tarefas fluem com mais facilidade, como se tivéssemos adquirido mais habilidade e disposição. É como se todo o Universo conspirasse para se atingir um único objetivo. E, de certa forma, é o que ocorre. Não é ao acaso que cada planta ou mineral se encontra em um determinado lugar. Eles estão dispostos através de um arranjo cósmico que os faz irradiar uma vibração própria para o ambiente e deste recebem novos impulsos, ou seja, se estabelece uma interação onde todos transformam e são transformados. Quando o principal objetivo da cooperação deixa de ser a obtenção de bens materiais para se tornar o meio de contato com realidades mais profundas, a cooperação pode se tornar uma forma de acender a centelha do divino na vida cotidiana. Mas essa cooperação necessita de um tempo livre, especificamente de um ócio que permita a interiorização e o contato com os mundos mais profundos. Vou chamar esse ócio, provisoriamente, de sacerdÓcio. Esse ócio recolhedor que permite uma comunhão com a realidade inefável, com o sentimento do sagrado que se manifesta em nosso íntimo e que nos permite a harmonia que transcende aquela vivida apenas pela via do trabalho e do materialismo ativo. É a libertação pelo silêncio. Mas como o trabalho cooperativo pressupõe o grupo, temos que afirmar que este também possui uma fonte interior que o sustenta. E é através da dimensão hermesiana da cooperação que cada indivíduo (como elo importante, pois sem sua existência

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individual a corrente se parte) entrará em sintonia com o centro do grupo, despertando o sentido de unidade do grupo e a capacidade de inter-ação de seus membros. E aqui entra a lei do dar e receber que salientei anteriormente. O dar e o receber pressupõem a troca, um saudável intercâmbio de energia. Porém, alguém poderia perguntar: Hermes não é um mito servil? Sim. Ele é um mito que serve de forma desinteressada. Outra pergunta: mas se ele serve de forma desinteressada, onde está a troca? A resposta está na sublime frase da oração de São Francisco: “... é dando que se recebe”. A caridade, ou seja, o amor incondicional, é uma prática essencialmente hermesiana que não podemos compreender por uma ótica materialista. De um ponto de vista mais amplo, iremos nos aperceber que esse princípio numinoso possui uma ressonância no qual, o dar e o receber, formam um só corpo. Ao mesmo tempo em que estamos servindo de forma desinteressada, estamos recebendo algo em troca, muitas vezes em dobro e, sem o saber, encontramo-nos imersos na dimensão hermesiana da cooperação.

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Hermes e o ambientalismo3

N a edição nº 72 de Ecologia e Desenvolvimento, publicou-se um instigante artigo, intitulado "Prometeu, um mito ecológico?", apresentando Prometeu como o mito dos ecologistas. Apesar de muito bem argumentado, o artigo de Jorge Ferreira vem de encontro às interpretações mitológicas dos mais representativos estudiosos do assunto, como Joseph Campbell, C.G. Jung, Gaston Bachelard, Karl Kerényi e Gilbert Durand, atualmente um dos mais respeitados estudiosos do imaginário e o criador da mitocrítica, um método para o estudo e levantamento de mitos pessoais que, juntamente com a mitanálise, um método para o estudo do mito de uma determinada sociedade, em um determinado contexto histórico, formam as principais ferramentas de sua abordagem mitodológica. Em linhas gerais, todos esses autores pensam Prometeu como uma figura mitológica que deve ser associada ao racionalismo exacerbado, ao gigantismo, à imposição de valores e normas (as verdades absolutas). É sim um mito laborioso, mas para explorar a natureza, para a criação de gigantescos complexos industriais etc. Nesse sentido, é correto relacioná-lo à Modernidade, ao Iluminismo e ao Positivismo. Podemos até identificá-lo em certas correntes marxistas, mas entre os ecologistas parece muito difícil. Nesse artigo, vou defender a idéia de que Hermes é quem mais se manifesta na alma dos ecologistas. Apesar de ser mais conhecido como o mensageiro de Zeus e deus dos ladrões e dos comerciantes, é um mito muito mais complexo e cheio de atributos, como demonstrou Kerényi em um de seus profundos estudos sobre o mito. Um dos atributos de Hermes e que para os ecologistas é fundamental, é o de criador de vínculos. Podemos dizer que Prometeu é um mito (des)envolvimentista, aqui no sentido literal da palavra, ou seja, que rompe, que separa ou dissocia o homem de tudo aquilo que o envolve: a natureza, as emoções, a família, em suma, os elementos que compõem a polaridade yin ou feminina da filosofia taoísta. Hermes, além de ser filho de Zeus, é o pai de Pã (o todo, ou o símbolo da natureza indomada e fértil, que costuma ser invocado pelos ecologistas quando dizem 3

Artigo publicado na revista Ecologia e Desenvolvimento, número 96.

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emocionadamente "é preciso pensar no todo, pensar holisticamente"). É curioso notar que ao mesmo tempo em que o cristianismo nascia na Judéia, Plutarco escrevia sobre a morte do grande Pã e, na modernidade, enquanto o pensamento analítico cartesiano (des)envolvia a ciência da religião e da filosofia, a obra de Plutarco era resgatada pela cultura humanista. Assim, não seria similar o movimento de contracultura da década de 1960, no qual o ambientalismo foi germinado? Não estaríamos diante do renascimento contemporâneo de Pã, o filho de Hermes? Em minha opinião, ao contrário de Prometeu, Hermes é um mito que envolve. Lembremos que os primeiros locais de culto ao deus da comunicação foram nas encruzilhadas onde eram colocadas as hermas, pilhas de pedras para indicar onde o viajante estava e saber qual o caminho a seguir. Em suma, Hermes é o criador de vínculos afetuais (ou religiosos, se pensarmos na expressão latina re-ligare) com os lugares. Ele estimula a afeição pelo espaço vivido, a topofilia da poética do espaço de Gaston Bachelard, aprofundada nos estudos fenomenológicos do geógrafo chinês Yi-Fu Tuan. É de Hermes também que vem a expressão hermenêutica, ou teoria da interpretação, que dá nome a uma das correntes filosóficas valorizadas por vários ecologistas para rebater a noção de verdade e os valores absolutos do Iluminismo. Outro atributo importante de Hermes nos vem da tradição alquímica. Na infância, dizem, Hermes teria reanimado um dragão morto e lhe dado asas. Se associarmos, na linha sugerida por James Hillman, o dragão como um importante símbolo da imaginação, podemos dizer que Hermes é o deus que dá asas à imaginação. Em relação à alquimia, podemos dizer também que é um tipo de conhecimento diferente do cartesiano: além de se colocar como um conhecimento de síntese, preocupa-se com a transformação integral, coincidindo com os ecologistas na concepção da educação ambiental. Mas é necessário não esquecer que um dos mais significativos "laboratórios" alquímicos contemporâneos é a cozinha, e não conheço um ecologista que não aprecie uma boa e saudável refeição, preparada a partir de legumes, ervas e outros produtos cultivados de forma "ecológica". Na mitologia, Hermes costumava preparar banquetes para os demais deuses. Essa aptidão para servir e recepcionar, relacionada ao elemento Terra de Empédocles, é um forte atributo hermesiano. E em relação à cor? É no mito de Hermes que iremos encontrar o predomínio da cor verde, normalmente associada ao equilíbrio, como na teoria dos chakras, uma vez

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que é a cor do chakra 4, ou o chakra do coração para os tibetanos e budistas. Para os adeptos da cromoterapia, o verde é uma cor relacionada à cura e não é por acaso que os médicos adotaram o caduceu de Hermes como emblema, apesar de o mito estar muito mais próximo das medicinas alternativas – ou complementares como se diz hoje em dia. Aliás, há quem diga que o mito pessoal de Jesus Cristo, Buda, São Francisco de Assis, entre outras figuras religiosas que mantiveram uma relação de equilíbrio com a natureza, com as plantas e os animais foi Hermes. Em suma, podemos dizer que o mensageiro de Zeus e amigo dos mortais é um mito fraternal, por isso preserva uma relação saudável com a natureza e com a diversidade cultural. Assim, não é um mito autoritário ou vingativo como Apolo, seu irmão. E também não é um mito apologista do progresso a qualquer custo como o titã Prometeu. Podemos dizer que Hermes é o mito daqueles que seguem a hermesiana frase de Schumacher: "small is beautiful", ou "o negócio é ser pequeno" como foi traduzido em português. Mas além do elemento Terra, Hermes está relacionado também ao elemento Ar, por isso ele voa levemente e assim podemos afirmar que é um mito inventivo também, e estará sempre se manifestando naqueles engenheiros que conseguem criar em escala humana, projetando equipamentos e tecnologias de baixo impacto ambiental, que consomem pouca energia, que utilizam material reciclável, que não poluem os rios etc. Mas alguém pode me questionar sobre a mentira e o roubo, pois Hermes também ficou conhecido como o deus dos mentirosos e dos ladrões. É verdade, mas essa é uma faceta do Hermes infantil ou pueril, que, se pensarmos em termos psicológicos e no processo de individuação junguiano, é algo que precisa realmente ser metamorfoseado para a pessoa se adaptar, ou melhor, na linguagem acadêmica contemporânea, ser incluída na sociedade; mas não precisa ser necessariamente superada, ela pode ser canalizada para a criação artística e literária, onde ser um grande "mentiroso" torna-se uma virtude. É por isso que normalmente as pessoas imaginativas em algum momento da vida foram também grandes mentirosas. Um escritor que não saiba mentir saberá criar narrativas e dramas maravilhosos? Para encerrar, acredito que Prometeu é um mito que se encontra na UTI depois de alimentar a imaginação do homem ocidental por tantos séculos, mas, no fundo, quem mais orienta os passos e o coração daqueles que se envolvem com os quatro elementos e com os segredos da natureza e da cultura, felizmente, é Hermes.

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Os atributos hermesianos podem ser encontrados em diferentes culturas, por exemplo, nas figuras mitológicas de Mercúrio entre os romanos; de Merlin, na mentalidade medieval; de Thot e de Osíris, entre os egípcios, e, por que não, em nosso brincalhão e fecundador Boto, já levado às telas de forma tão encantadora.

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Fórum Mundial Social: evocando Hermes4 Quando leio e ouço críticas ou apologias à globalização lembro-me imediatamente de Tifon, o monstro mitológico que tirava o sossego dos deuses. Tífon era poderoso, gigantesco e horrendo. Seus pés eram bem cravados na terra, dando-lhe sustentação. Ao mesmo tempo, seu corpo era tão grande que sua cabeça tocava o céu. Quando Tífon abria os braços, eles alcançavam os extremos Leste e Oeste da Terra. Assim, acredito que, arquetipicamente, quando procuramos analisar a Globalização, estamos também manifestando nosso pavor ou cultivo de Tífon em nossa alma. Neste artigo vou ficar ao lado do "Bem" e pensar Tífon como o "Mal" que deve ser combatido. Assim, nesse contexto, os adversários de Tífon, todos os deuses do Olimpo reunidos (já que Zeus não era capaz de enfrentá-lo sozinho) encarnam o "Bem". Existem várias versões do conflito, mas, em todas, as descrições são terríveis. Nestas narrativas a primeira batalha é apenas entre Tífon e Zeus, que, sozinho, tenta dominar o enorme monstro. Zeus é derrotado e o monstro corta-lhe os nervos dos braços e das pernas. Imobilizado e sem forças, Zeus é carregado para uma caverna. A conseqüência dessa derrota é a desordem completa em todo o universo. Porém, para resgatar Zeus e a ordem do Universo, alguns atributos foram essenciais: a astúcia, a artimanha, a mentira, o engodo e a inteligência. Esses atributos aparecem em vários deuses, mas, Hermes, o filho mais inventivo de Zeus e que este escolheu para ser o seu mensageiro junto aos mortais (justamente por ser o deus mais fratriarcal), é aquele que parece reuni-los contraditoriamente em si. E é justamente Hermes quem consegue iludir o monstro e salvar Zeus, recuperando os nervos do pai. Vernant

faz

uma

interessante

análise

política

dessa

narrativa

mítica,

demonstrando que a crise de uma soberania estabelecida pode ser superada quando "personagens secundários", aqueles que parecem não meter medo em ninguém, são justamente os que detém as chaves e as "armas" para recuperar o "trono" perdido. No Fórum Mundial Social, várias facetas do contraditório Hermes estavam manifestas e, de certa forma, integradas: a do transgressor, a do criador de vínculos, a do mentiroso e ladrão, a do comunicador, a do brincalhão, a do condutor das almas, a do embusteiro, a do esotérico etc. Todas essas facetas de Hermes se abraçavam em Porto 4

Texto inédito, escrito no encerramento do II Fórum Mundial Social, na cidade de Porto Alegre. 15


Alegre com um único objetivo: encontrar formas e caminhos diversificados, porém, entrecruzados, para ludibriar o monstro poderoso que se apoderou da Terra e re-construir a ordem, com mais solidariedade e cooperação.

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O que é Animação cultural?5 para Wagner Luques de Oliveira

Entre os "fantasmas" estudados pelo psicanalista Eugène Enriquez, acho que me identifico mais o "transgressor". Talvez por isso, as regras - principalmente aquelas criadas por mim - são freqüentemente transgredidas. Digo isso porque eu havia prometido outros artigos na edição anterior da revista, mas resolvi de última hora mudar a minha pauta e escrever sobre um outro assunto: "o que é animação cultural?", questão de um email que recebi no último dia 21 de junho. Essa mudança de rumo, porém, tem uma forte "razão sensível" de ser. Ao ler a mensagem, lembrei-me que, dois meses antes, no dia 21 de abril, durante o enterro de meu pai no cemitério da Vila Alpina, em São Paulo, um primo que mora em Tupã/SP me fez a mesma pergunta. Eu acho que não nos víamos havia 4 anos pelo menos. Ao lhe dizer que estava lecionando no curso de "animação cultural" do Senac, ele quis logo saber o que era isso. Quando eu lhe falei que animador cultural é o nome que se dá para a pessoa que trabalha com grupos humanos, desde crianças a idosos, organizando atividades sócio-culturais, espetáculos de teatro, exposições, shows, gincanas e festas, entre outras, ele me disse com espanto: "então eu sou um animador cultural?" Ele está certíssimo. Desde que me conheço por gente, eu o via envolvido com seus amigos imaginários fazendo caricaturas e quadrinhos, montando exposições (de borboletas e outros bichos) dentro de sua casa; alguns anos depois, (des)envolvendo-se na escola oficial, ele ainda organizava suas mostras de quadrinhos, torneios e outros projetos que deixavam todos de cabelo em pé. Mais alguns anos se passaram e ele conseguiu

entrar

no

tão

esperado

e

competitivo

ensino

superior. Além dos

importantíssimos trabalhos escolares, ele organizava toda a programação cultural e recreativa de vários clubes na cidade, inclusive de clubes rivais. Como Hermes, o deus da comunicação, ele conseguia fazer no âmbito da cultura que houvesse diálogo entre os diferentes atores sociais. Atualmente ele continua fazendo mil coisas ao mesmo tempo. Como o mensageiro dos Deuses, dificilmente encontra-se parado: ou está voando no céu (imaginando sua próxima arte) ou correndo na terra 5

Artigo publicado originalmente na revista do Sarau, Julho de 2001. 17


(concretizando seus devaneios). Assim, cria, trabalha e se diverte ao mesmo tempo. Semelhante a um sábio zen, não sabe e não pretende distinguir Trabalho e Tempo Livre. Em suma, a sua vida é o alimento de seu daimon que está relacionado com a missão de fazer a comunicação e a cultura circularem aqui na terra. Voltando, porém, ao dia 21 de abril, ele ainda me disse: "...mas eu nunca precisei fazer um curso, eu sempre fui assim, você se lembra..." E se me lembro! Eu acho que ele estava com 10 anos de idade (e eu com 6 ou 7) na fase em que um não saía da casa do outro. Minha casa era como os jardins de Epicuro, abertos para o prazer e a amizade. Assim, quando ele passava alguns dias em casa, nós inventávamos jogos para lá de criativos. A sala de casa era uma bagunça tremenda. No quintal que meu pai tinha no fundo do terreno, fazíamos cabanas em cima de árvores ou armadilhas para gatos, entre outras maluquices que apenas as crianças são capazes de imaginar. Por isso, como não se lembrar... Mas como Cronos é impiedoso e os fios das Moiras foram tecidos para que nos (des)envolvessemos em cidades diferentes, os nossos laços só foram reatados em um momento de dor, em um momento que, por hábito, pede silêncio e introspecção. Mas assim é a vida... Acho que já falei demais e está na hora de responder a pergunta, não é mesmo? Em suma, minha amiga, há pessoas que já nascem com o Dom do envolvimento e já são, espontaneamente, animadoras culturais. É o chamado de seu daimon e não há como fugir. É claro que um curso pode ajudar, e muito, a dominar os meandros burocráticos, já que até o ócio hoje em dia é um campo para negócios, tanto que cresce assustadoramente o número de "produtores culturais" atrás de patrocínio. Para encerrar, vou dar uma dica para você que quer ser uma animadora cultural: em primeiro lugar, nunca perca a espontaneidade que já nasceu com você. Se isso um dia acontecer, o máximo que conseguirá ser é uma agenciadora de cultura e você ficará o dia inteiro, 40 horas por semana, atrás de uma mesa cheia de papeis, contratos e projetos ligando para grupos de teatro ou para produtores de shows musicais agendando data e horário para um espetáculo. Infelizmente, isso é muito pouco para quem pretende ser animador(a) cultural. Você não acha?

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Turismo Fático: o prazer de estar junto6

Esta comunicação relata o resultado de uma pesquisa que visou compreender a importância do "estar-junto" à toa (o fático) e o afetual na vivência do Tempo Livre, sobretudo nos chamados "passeios de um dia", uma modalidade de turismo social muito apreciada por pessoas idosas. A revelação do fenômeno da "desimportância" dos lugares no turismo fático surgiu a partir de uma entrevista com um idoso que freqüentava o Clube da Terceira Idade do SESC, em São José do Rio Preto. A partir da descoberta do fenômeno, procurei a partir da observação participante interpretar esta dimensão fática do Tempo Livre, acompanhando diversas "excursões" organizadas pelo SESC. É patente nesse tipo de passeio a importância que os grupos de amigos dão para o encontro em si, deixando o local a ser visitado em segundo plano. Tal constatação se assemelha às reuniões que os membros das tribos estudadas por Malinowski costumavam fazer. Segundo este antropólogo, o grupo se reunia sem que um compromisso pré-estabelecido ou uma missão importante fosse necessária. Era o estar-junto o que importava. Esse fenômeno foi denominado por ele como uma "comunhão fática". Fazendo

uma

pequena

homologia,

podemos

dizer

que

na

sociedade

contemporânea uma das formas desta comunhão se manifestar está no "Turismo Fático". Aqui, não são as atrações locais o que motiva o grupo, mas o simples prazer de estarjunto. Nesse sentido, o retorno a um determinado lugar depende, sobretudo, se a hospitalidade e o tratamento recebido criam laços de amizade. Normalmente, locais cujo tratamento é muito "frio" e "racional" não costumam agradar este tipo de turista. Em um depoimento, ouvi de um senhor que "já tinha perdido a conta de quantas vezes visitou a colônia de férias do SESC" que viajava não para "ver o que estava lá fora", mas para manter os "laços construídos lá com o decorrer dos anos." A noção de fático

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Comunicação apresentada no I Workshop de Turismo Urbano, no Departamento de Geografia da

USP, em maio de 2001.

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Para maior compreensão do que estou chamando de fático, vou apresentar duas pequenas histórias. A primeira eu a ouvi na década de 1980 e, desde então, eu não parei de reproduzi-la. A segunda foi fruto de uma conversa entre uma mãe e sua filha que eu tive a sorte de escutar e de me encantar. A primeira (que eu nunca tive o interesse em verificar se é verdadeira ou se é "folclórica", pois são as suas imagens que me interessa), diz mais ou menos o seguinte sobre uma eventual fábrica da Goodyear criada na região norte do país: quando a empresa foi produzir pneus na região amazônica havia uma grande preocupação para se empregar a mão-de-obra local. O primeiro mês de funcionamento da fábrica foi maravilhoso. Aliás, ela funcionou muito mais do que se esperava e, por isso, o gerente da unidade resolveu convocar todos os seus subordinados do setor administrativo para discutir uma premiação para os operários. Depois de várias horas de discussão optou-se em dar um aumento salarial para todos eles. Contas foram feitas e decidiu-se que seria um aumento de 100 % para os "peões". É claro que os trabalhadores festejaram e os diretores da empresa ficaram também satisfeitos. Mas o melhor da estória vem a seguir. No segundo mês de funcionamento, tudo correu maravilhosamente bem, dentro da rotina prevista, durante as duas primeiras semanas. Neste período, nenhum incidente aconteceu; nenhum funcionário faltou; todos estavam trabalhando satisfeitos e felizes. Porém, ao começar a segunda quinzena, tudo se transformou. Naquele fatídico dia nenhum funcionário apareceu para trabalhar, apenas o alto escalão da empresa, recrutado entre os mais cogitados executivos da região sudeste. Estes ficaram surpresos tentando compreender o que estava acontecendo. E logo alguém teve a idéia de convocar para uma reunião o líder que havia sido eleito pelos demais trabalhadores para representá-los. Na empresa criou-se um clima de curiosidade e indignação entre os executivos. Todos ansiosos para saber a razão daquela paralisação tão bem "organizada". Na hora marcada para a reunião, o líder dos trabalhadores chegou e, cordialmente, foi esclarecer o que estava acontecendo. Na reunião com os patrões, falou com a sua voz mansa e pausada: "sabe o que é que houve...vocês vieram até aqui,

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montaram essa fabricona, deram emprego para todos nós. Isso tudo foi muito bom, sabe. Depois vocês ainda deram um aumento de 100% para a peãozada e ficou melhor ainda porque o primeiro salário já era muito bom para a gente tocar a vida. Por isso, quando veio o aumento, nós pensamos o seguinte... veja bem... para ganhar o mesmo que antes, agora a gente só vai precisar trabalhar quinze dias no mês e vai sobrar tempo para a gente nadar, pescar, ficar com a família, brincar com os filhos ..." É preciso esclarecer que a pessoa que originalmente me contou esta estória tinha outro interesse, ou uma outra interpretação para a mesma. Ela queria demonstrar como o brasileiro era um tipo "preguiçoso", "desinteressado", "hedonista" etc. e que não adiantava investir no país porque com este tipo de gente nada "iria para frente". Eu, ao contrário, sempre que a narro é para valorizar essa alma meio dionisíaca e meio hermesiana brasileira, que não vive para o trabalho, ao contrário, trabalha para viver. E, aliás, que trabalha demais e ganha muito mal, conforme demonstram várias pesquisas. Um outra história muito elucidativa, e está é real, foi vivida por uma menina de sete anos, na cidade de São Paulo. Filha de uma família de classe média, a menina ia para a escola todas as manhãs e, no período da tarde, tinha a hora certa para a aula de inglês, para a natação, para o balé etc. Um dia ela se virou para a mãe e falou: "mãe! quando eu vou ter tempo para brincar?" Com esses dois exemplos eu gostaria de manifestar essa necessidade do sapiens para o estar-junto à toa, para a atividade "desinteressada". Ou seja, para a dimensão fática do Tempo Livre. Porém, o "fático" nem sempre foi pensado de forma positiva. O lingüista Roman Jakobson, por exemplo, denominava com um ar jocoso a conversa sobre banalidades que acontece, por exemplo, entre o motorista de taxi e o seu passageiro durante o percurso da corrida como um exemplo de "comunicação fática". Habermas, um dos pais da Teoria Crítica, escreveu um livro para discutir a necessidade de superação do fático para a construção de uma "consciência crítica". Nesta comunicação eu pretendo ressaltar a conotação não pejorativa do termo e que aparece na obra do antropólogo Malinowski. Como já foi salientado, este antropólogo classificava a reunião de membros de uma determinada tribo sem que um compromisso pré-estabelecido ou uma missão importante fosse necessária de "comunhão fática".

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Este último sentido aparece também na filosofia de Nietzsche e de Heidegger, como os encontros motivados pelo prazer de estar-junto. O fático, assim, caracteriza a reunião, o agrupamento que independe da necessidade de discutir um assunto prédeterminado ou sério, ou mesmo a necessidade de resolver um problema profissional e/ou escolar. Em suma, o fático representa os encontros livres da necessidade de produzir, de transformar, de lutar etc., pois, o que motiva o estar-junto à toa, é a amizade entre as pessoas. Ou seja, o afetual que cria o "cimento social" do grupo em questão. Dentro dessa perspectiva, é que vou pensar, então, o turismo fático. E sua vivência pode ser pensada em três dimensões singulares que podem ou não aparecer relacionadas durante um passeio turístico: a motivação, os locais freqüentados e a organização de alguns equipamentos para lazer. Vou me deter nesta comunicação em sua primeira dimensão (a motivação). Esta é facilmente percebida no âmbito do turismo social e na modalidade de viagens chamadas, atualmente, de "passeios de um dia". Tais passeios são organizados por empresas, clubes, associações de classe ou grupos religiosos. A maior parte destes passeios possui uma dimensão fática bem caracterizada, pois, normalmente, são grupos de amigos, particularmente de idosos, que viajam pelo prazer de estar-junto. É o grupo reunido no final de semana o que realmente importa. O resto será sempre lucro: visitar cavernas, centros históricos, áreas verdes, passear de "Maria Fumaça" etc. Até por esta dimensão fática ser importante, é comum em viagens de Turismo Social o grupo visitar freqüentemente os mesmos locais. Assim, a viagem pode ser para as "Serras Gaúchas", para a praia, para as "Cidades Históricas" ou para qualquer outro local escolhido pelo agente de viagens ou pelo animador cultural. Como já salientei, o que me despertou para este fenômeno da "desimportância" dos lugares no turismo fático foi a conversa que tive certa vez com um idoso que freqüentava um dos clubes da Terceira Idade do SESC, no estado de São Paulo. Eu fiquei curioso para saber porque ele não se cansava de ver sempre as mesmas coisas, a mesma cidade, as mesmas pessoas... mas, com a sua resposta, fui descobrindo que no turismo fático o mais importante não é o que está lá fora, mas o que está ali bem ao lado: os laços que o grupo constituiu com o passar dos anos.

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É preciso aqui fazer um pequeno esclarecimento. Não é minha intenção defender que os profissionais do Turismo receptivo não devem se preocupar com o que vão oferecer aos turistas. É claro que mesmo aquele que faz um turismo fático está também disposto a observar os pássaros "mais bonitos do Brasil", passear nas "cavernas mais maravilhosas" do estado, visitar o museu "mais antigo do país", tomar o "melhor chopp da região", visitar e sentir a ambiência do local "onde a primeira missa foi rezada", entre as miríades de atrações e simulacros que podem ser descobertos, inventados e vendidos como "o acontecimento" que não pode deixar de ser visto em nossa curta existência e passagem por aquele local. O que apenas quero salientar é que nada disso substitui o valor da amizade para quem faz turismo fático. Conheço histórias de pessoas que viajaram para o exterior sozinhas e passaram praticamente toda a temporada de férias dentro do hotel onde se hospedaram, apesar de saberem que "lá fora havia lugares maravilhosos" para se conhecer. Mas faltava o essencial: o grupo de amigos capaz de motivar o passeio para fora do "refúgio" em que se transformava o hotel. Uma questão que me incomodava antes e que já me perguntaram diversas vezes quando apresento este tema é a seguinte: por que, então, viajar? O grupo não poderia se reunir ou se socializar em sua própria cidade? A resposta é óbvia também. É claro que sim, e normalmente estes grupos também se reúnem com freqüência na cidade onde residem. Mas, no caso particular de grupos de idosos, o Tempo Livre proporcionado pela aposentadoria, eventualmente viver uma situação sócio-econômica mais estável, entre outros fatores, permite ao grupo fazer estas pequenas viagens com poucos pernoites ou os "passeios de um dia". Uma outra questão que parece incomodar as pessoas é a seguinte: e por que visitar a mesma localidade várias vezes? Falta de opção? A resposta desta vez é não! E o segredo é o seguinte: como não são as atrações locais o que motiva o grupo, mas o prazer de estar-junto, passa a valer muito a hospitalidade, a forma como eles são tratados e recebidos na cidade. Ou seja, se no hotel ou pousada onde os turistas "fáticos" ficarão hospedados e se na cidade visitada houver uma ambiência afetual e fraterna, se eles forem tratados com respeito e dignidade, como amigos e não como potenciais consumidores de quinquilharias, com certeza aquele lugar ficará marcado no coração do grupo e novas viagens para lá eles farão. Caso o tratamento seja frio, racionalista e o grupo perceber que todos ali estão apenas querendo 23


sugar seus reais, então, podem esquecer. Não será lá que o grupo irá se reunir novamente para comemorar o aniversário de um dos membros, o casamento do outro, o namoro de "fulano" e "ciclana" e outros motivos, aparentemente banais, que escolhem para enriquecer a viagem e apertar os laços de amizade ou os vínculos dentro do grupo, sempre sob a benção de Hermes, o Deus amigo dos mortais.

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O direito ao son(h)o: abraçando a cidadania neg-ativa7 para Irene Cotrim, Fabio Brotto e Maria Angélica

Um poema asteco, cujo autor se desconhece, diz o seguinte: "que vimos a esta terra para viver é uma inverdade: nós vimos apenas para dormir, para sonhar..." Por sua vez, o respeitado mitólogo J. Campbell falava que "o sonho é uma pequena ponte escondida nos recantos mais íntimos e secretos da alma(...) toda consciência separa, mas, nos sonhos, assumimos a aparência daquele homem universal, mais verdadeiro e mais eterno, que vive na escuridão da noite primordial. Lá, ele ainda é o todo, e o todo está nele, indistinguível da natureza e despido de toda condição do ego". Porém, no mundo contemporâneo não temos mais o direito de sonhar. Vivemos apenas para a ditadura da vigília e do des-envolvimento e, em países como o Brasil, onde as necessidades ainda se encontram no "chakra básico", precisamos "lutar" por uma "cidadania ativa". Como bem nos lembra o saudoso Betinho: "cidadão é o indivíduo que tem consciência de seus direitos e deveres e participa ativamente de todas as questões da sociedade. Tudo o que acontece no mundo, acontece comigo. Então eu preciso participar das decisões que interferem na minha vida. Um cidadão com um sentimento ético forte e consciência da cidadania não deixa passar nada, não abre mão desse poder de participação. [...] A idéia de cidadania ativa é ser alguém que cobra, propõe e pressiona o tempo todo. O cidadão precisa ter consciência de seu poder." A "cidadania ativa" exaltada na frase acima e defendida prometeicamente com unhas e dentes por vários intelectuais, ONGs e por setores da mídia exige que o ser humano se transforme em um super-herói. Ele precisa estar em vigília absoluta e nunca pode relaxar, pois algo pode ser tramado em um momento de descuido. O cidadão ativo necessita estar em alerta 24 horas por dia e, de forma paranóica, deve passar o tempo procurando pêlo em ovo. E isso tem um preço: o cidadão ativo não pode sonhar, não pode se libertar da ditadura da vigília, seja ele de "direita" ou de "esquerda".

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Artigo divulgado em várias listas de discussão na internet em 2002. 25


Eu, particularmente, como apreciador da obra de Gaston Bachelard, acredito que a nossa duração (ou a nossa vida corporal, do nascimento à morte) não é feita apenas pela vigília. Em seu clássico estudo, "A dialética da duração", Bachelard tece com a sua elegância poética uma apologia do repouso e da descontinuidade (os momentos de vazios). Eu acrescentaria também o devaneio, o lazer desinteressado e o ócio como importantes em nossa vivência fenomênica e como direito do "cidadão", pois, para mim, cidadania é importante quando está relacionada com qualidade de vida e eu não consigo rimá-la com o estresse e com a paranóia. A cidadania ativa é adequada para discurso político ou acadêmico, ou melhor, para representações teatrais. Imaginem um espetáculo de teatro de rua, no centro da cidade de São Paulo, e um ator com uma voz potente e dramática reproduzindo a frase do Betinho. Deve ser emocionante ouvi-la. Mas é preciso conviver com a realidade, ou seja, esta frase não pode ser levada ao pé-da-letra na vida cotidiana, a não ser por poucos Hércules acostumados com a super-ação da condição humana. Assim, apesar do respeito pelo trabalho realizado por Betinho e pelas campanhas que organizou, gostaria de exercer o meu direito de discordar de sua noção de cidadania ativa e propor uma outra para o debate: a de cidadania neg-ativa (leia-se negueativa) que abraça o ócio, o sonho e a contemplação também como um direito essencial. E vou pensar essa questão a partir do mito de Prometeu. Quando Prometeu tentou enganar Zeus pela primeira vez, ardilosamente preparou dois pacotes: no primeiro, envolveu os ossos descarnados de um bovídeo com uma fina camada de gordura branca; no segundo, embrulhou as carnes no estômago do bicho, formando um pacote asqueroso. Zeus teve que escolher qual seria a parte destinada aos deuses e qual as partes destinadas aos homens (criados a partir do barro por Prometeu e animados por Atena). Sem saber o que continha os pacotes, Zeus escolheu o primeiro, ou seja, o mais bonito na aparência, mas que apenas continha ossos. Resumindo a história, a parte destinada aos homens passou a indicar que eles são mortais, que a sua vitalidade em suma, é diferente daquela dos deuses, é uma sub-vitalidade como afirmou Vernant, pois precisa sempre ser re-alimentada. Ao contrário dos ossos, que não se decompõem, a carne é putrescível e assim, o caráter do homem, após essa divisão, é o de ser mortal e de se esgotar após fazer esforços, sejam eles físicos ou mentais. A história de Prometeu, o previdente, é mais complexa, mas para a nossa discussão podemos parar por aqui.

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Felizmente ou infelizmente, não somos como os deuses e nem como os heróis, normalmente filhos de deuses com alguma mortal. Nós também não tomamos o leite de Hera, como Hércules. Assim, não nos resta outra opção a não ser aceitar o ócio, o repouso, e a desconcentração como fenômenos importantes e necessários para o homem poder viver. Se a escolha de Zeus fosse outra, talvez a história seria diferente e, aí sim, poderíamos mergulhar fundo na cidadania ativa. Em suma, a cidadania ativa é fruto do "regime diurno de imagens" e está relacionada com a mentalidade da luta, da transformação, do progresso, do futuro e, portanto, aos mitos heróicos como Prometeu, Apolo, Hércules, entre outros. Paul Diel já demostrou a importância e o caráter ético desses mitos, porém, em minha opinião, vividos de forma unilateral, sem integração com as imagens do regime noturno (apaziguamento, natureza, conforto etc.), ou seja, aos mitos de Dioniso, Hermes, Afrodite, Orfeu etc., não resta dúvida que a única porta que se abrirá é a da esquizofrenia e da paranóia, responsáveis, por exemplo, por criar tipos políticos como Hitler e Stalin, e também a megalomania dos norte-americanos ou a organização e execução do ato terrorista do último dia 11 de setembro de 2001, em Nova York. Por isso, sem a cidadania neg-ativa jamais permitiremos que os elementos essenciais que cultivam no sapiens o gosto pela festa, pela confraternização, pela brincadeira e pelo envolvimento venham à tona, ou seja, a alegria de viver e a aceitação incondicional do outro, com suas falhas e pré-conceitos, bem ao gosto de Hermes.

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“HERMES E A “PARTICIPAÇÃO MÍSTICA” DA COOPERAÇÃO8 Para Irene Cotrim e Suzana Menezes

"A sinfonia depois de explicada poderá ser uma sinfonia bem compreendida, mas de algum modo a música nunca mais parece a mesma." Peter Lemesurier

Uma das questões que intrigaram os antropólogos por muito tempo foi a adaptação das tribos primitivas às circunstâncias ambientais. Sem precisarem, por exemplo, de livros, autoridades universitárias, escolas burocratizadas ou alta tecnologia médica, os "primitivos" enfrentavam as doenças e a morte, encontravam alimentos, abrigos e sobreviveram por milhões de anos. E, pelo que tudo indica, a chave dessa habilidade para enfrentar a vida estava nos seus estranhos padrões de consciência que, para o homem moderno, são praticamente incompreensíveis. O filósofo e etnólogo Lévy-Bruhl conseguiu estabelecer algum parâmetro para compreendermos estes padrões quando elaborou a noção de "participação mística", ou seja, a forma de perceber a realidade sem divisões. Assim, começamos a compreender que, para os "primitivos", o que era válido para o mundo da natureza, era válido também para o mundo dos homens. Ou, então, que cada pessoa também trazia dentro de si seus irmãos e irmãs. A partir dessa concepção é fácil entendermos o porquê da união tribal ser a condição fundamental para a existência de cada um de seus membros. Esse "paradigma" primitivo, felizmente, nunca se perdeu. Pode ser que foi jogado para o fundo de algum baú pelo pensamento analítico ou pela progressão da consciência humana, que des-envolveu o mundo interior e o exterior. Porém, associações simbólicas que nos remetem ao mundo da participação mística podem ser encontradas no mundo contemporâneo. E a cooperação é justamente uma delas, talvez a principal. Assim, quando interiorizamos a cooperação como um sentimento, é como se juntássemos alguns dos destroços da psique comunal. A cooperação, dessa forma, é um símbolo da mente consciente que nos permite restaurar parte de nossa antiga unidade. 8

Artigo composto em 03 de março de 2002, na cidade de São Carlos/SP e difundido pela internet. 28


Ou seja, a cooperação é como uma sinfonia explicada que nos ajuda a compreendê-la, mas a música que dela resulta não é mais a música original. É por isso que ainda precisamos escrever, pensar e viver muito a cooperação, apesar de sabermos que toda tentativa de explicação destrói aquilo que se pretende explicar. Mas, no dia em que a cooperação se transformar em participação mística, teremos finalmente escrito um livro em branco, já que as palavras - incluindo a própria palavra cooperação - deixarão de ser importantes ou necessárias. A participação mística manifesta-se de forma espontânea e inconsciente, como se os sentidos e também os ruídos da razão fossem desligados. Da mesma forma que as doenças não passam de símbolos (a febre, por exemplo, comunica-nos que chegou a hora de descansar enquanto os distúrbios na garganta nos dizem que há algo que não conseguimos engolir), a cooperação nos comunica que o pensamento analítico apolíneo precisa ser refreado para que possamos reencontrar Hermes dentro de nós, ou seja, o nosso caminho para a participação mística.

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O imaginário hermesiano da cooperação9 "um estado mental sempre precede a ação" R.C. Barker

O antropólogo francês Gilbert Durand, atualmente uma das principais referências quando o assunto é o "imaginário", identificou no sapiens três forças dinâmicas que formam as bases arquetípicas de todo o pensamento e de toda a ação no mundo fenomênico. Se isso já não fosse suficiente para o imaginário ganhar status acadêmico, Durand ressalta que é através do imaginário que o sapiens encontra uma equilibração antropológica para enfrentar ou diluir a angústia em relação ao tempo que passa e em relação à consciência da própria morte. Em suma, nossa forma de pensar, sentir e agir manifesta essencialmente nosso relacionamento com a lâmina da foice de Cronos que, mais cedo ou mais tarde, todos iremos sentir o sabor. Essas três bases arquetípicas, portanto, universais e encontradas em todos os povos ou culturas, receberam de Durand as seguintes denominações: estrutura heróica, estrutura mística e estrutura dramática. A estrutura heróica do imaginário é aquela que se caracteriza, sobretudo, pelo combate, pela dissociação, pelo enfrentamento. É a estrutura da discriminação, tanto positiva como negativa. Essa estrutura parece ser a predominante no mundo moderno e contemporâneo,

sobretudo

no

Ocidente,

influenciando

significativamente

nossa

linguagem, banal ou acadêmica. O conflito ou a separação aparece freqüentemente nas palavras-chave da modernidade (por exemplo, na expressão desenvolvimento que, ao pé da letra, significa “sem envolvimento”), e também nas expressões dos militantes políticos (lutar, combater etc.) ou dos esportistas (adversário, meta, defesa, ataque etc.). Não é à toa que a hipertrofia da estrutura heróica em nossa psique leva a uma militarização do mundo e, como apontam vários psicólogos de linha junguiana, para uma naturalização da esquizofrenia como norma de comportamento, uma vez que a dissociação é sua força motriz. Podemos encontrar também a estrutura heróica do imaginário manifestando-se fortemente através do chamado paradigma cartesiano, cuja

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Publicado originalmente na Revista Trans, editada pelo Departamento de Educação da UEBA em 2002 e, em seguida, no Jornal Primeira Página, de São Carlos/SP. 30


característica é a separação dos objetos em diferentes reinos ou dicotomias (corpo e mente, natureza e cultura, entre outras). O ativismo desenfreado e pouco imaginativo do Ocidente ou sua obsessão pela grandeza (vide o W.T.C.) é interpretado por James Hillman, um psicólogo norteamericano junguiano, como uma forma de enfrentamento e não aceitação da morte, das emoções e da natureza. Por outro lado, a estrutura mística do imaginário é aquela que se caracteriza pela união, pela mistura, pelo envolvimento. Não é à toa também que essa estrutura do imaginário predomina nas culturas orientais de onde surgem expressões como Yoga (palavra do idioma sanscrito que significa integração), Reiki (expressão japonesa que significa união da energia cósmica com a vital) e outras que procuram considerar não mais a existência de dicotomias, mas a de polaridades dentro de uma única realidade. Essa estrutura do imaginário também tende a predominar nas culturas não-modernas e foi fortemente presente nas sociedades matriarcais. No plano lingüístico encontramos, portanto, outras metáforas se manifestando: é o tecer, o abraçar, o envolver que costumam ser expressos com mais ênfase quando há o predomínio dessa estrutura. Segundo Yves Durand, psicólogo francês que criou um teste projetivo denominado AT-9, depois da meia idade a estrutura mística do imaginário começa a se manifestar com mais intensidade, tomando o lugar da estrutura heróica marcante na primeira parte de nossas vidas. Jung, por sua vez, já salientava que a segunda etapa do processo de individuação não deixa de ser uma preparação para a morte. Essa mudança de sensibilidade foi denominada com o nome de metanóia. Experiências de quase morte, segundo alguns pesquisadores, também costumam provocar uma metanóia. Quando isso ocorre, a natureza, a fragilidade humana, entre outros assuntos, passam a ser aceitos e vividos pela pessoa que, com a mudança de sensibilidade, passa a cultivar uma relação mais compreensiva com o outro e também com o sagrado. No plano científico, essa estrutura do imaginário se manifesta com mais profundidade naqueles que evocam o chamado paradigma holístico. E a estrutura dramática? Esta, segundo Durand, é a mais difícil de ser observada, pois não seria uma simples síntese das duas anteriores, mas a estrutura que possibilitaria re-ligar as duas descritas anteriormente. Este re-ligamento, no plano científico, já havia

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sido assinalado por Edgar Morin e outros pensadores aos discutirem o chamado paradigma holonômico, no qual a Parte é revalorizada por também conter o Todo. Uma metáfora que poderia ilustrar a diferença entre essas três estruturas é a da relação entre as árvores e a floresta. A estrutura heróica, que fundamenta nossa visão militarista, ativa, desenvolvimentista, cartesiana etc., é aquela que, quando polarizada, nos faz enxergar apenas as árvores isoladamente. Por sua vez, a estrutura mística do imaginário, fundamentando uma mentalidade holística, quando polarizada nos leva a ver a floresta ou as relações entre as árvores, porém, desaparecendo com toda a singularidade de cada espécie. É o que Morin chamou de "redução pelo Todo". Por fim, a estrutura dramática, uma estrutura "hermesiana" por excelência ou contraditória (oximorônica segundo os pré-socráticos), é aquela que nos permite valorizar, simultaneamente, as árvores e a floresta. Dito isso, podemos pensar qual é a estrutura do imaginário que estimula a cooperação e, de forma recursiva, compreender qual a estrutura do imaginário que é valorizada ou expandida quando cooperamos. Em minha opinião a cooperação está relacionada diretamente com a estrutura dramática do imaginário. É fácil identificar, através da apresentação resumida acima, que a competição é uma manifestação fenomênica essencialmente "heróica", pois valoriza a luta, a destruição ou a derrota do concorrente, do adversário etc. Mas qual seria a manifestação da outra polaridade, cultivada a partir da estrutura mística do imaginário? A cooperação? Não acredito, pois, se assim fosse, seria necessário uma não aceitação da individualidade como acontece nas sociedades tradicionais e estaríamos diante de uma outra forma de reducionismo, a da redução pelo Todo, como já salientamos. É claro que é possível notar aqui uma espécie de solidariedade, de vivência comunitária, mas que parece funcionar muito mais na base da "cooptação" do indivíduo pelo sistema instituído do que pela cooperação voluntária e involuntária pelo bem comum. Assim, a cooperação, como um sentimento interiorizado e não apenas como estratégia econômica, parece ser uma forma de expressão criativa da estrutura dramática do imaginário e, portanto, uma forma hermesiana de ver, sentir e agir no mundo capaz de cultivar uma formosa e densa floresta onde se é possível também se deslumbrar com a beleza singular de cada árvore envolvida em sua trama. .

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As sombras do trabalho voluntário10

Estamos terminando o Ano Internacional do Voluntariado e todos os meios de comunicação demonstram que o mesmo foi um sucesso. Nunca se viu tantas pessoas se solidarizando e ajudando o próximo. Isso me deixa mais tranqüilo para expor as idéias que defendo nesse artigo, sem me sentir "culpado" ou um cruel e insensível crítico da “solidariedade” que tomou conta do país. O desejo de escrever esse artigo surgiu após participar de um evento acadêmico em uma das mais importantes escolas particulares da cidade de São Paulo, em setembro de 2001, mas, somente hoje, encontrei a "inspiração" necessária para tecê-lo. Naquele evento acadêmico, enquanto aguardava para apresentar a minha comunicação, fiquei interessado por um dos painéis que apresentava o trabalho voluntário que os professores e alunos da escola sede do evento realizavam em uma favela do bairro do Morumbi. O trabalho consistia em doar roupas, brinquedos e alimentos para os favelados. Em um primeiro momento, imaginei que aquilo era uma forma tradicional de assistencialismo e também de evitar problemas futuros (assaltos, seqüestros etc.). Porém, o que me chamou a atenção foi uma frase utilizada pela responsável do projeto, ao encerrar sua fala: "solidariedade é terapia." E apresentava um neologismo: a “volunterapia”. Nesse momento, percebi que havia uma dimensão mais profunda por trás daquele projeto.

A impressão que ficou em mim após ler o painel era de que a noção de

volunterapia não seria muito saudável, nem para quem se solidariza, nem para quem recebe a ajuda. Como eu não tinha mais dados para continuar minhas reflexões, resolvi deixar o tema de lado até que, hoje, dia 25 de dezembro, deparei-me novamente com este assunto na matéria "Trabalho Voluntário cresce em Ribeirão", publicada no jornal A Folha de São Paulo, em seu caderno regional distribuído na região de Ribeirão Preto.

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Texto inédito, escrito no dia 25 de dezembro de 2001 (revisado em 3 de fevereiro de 2002).

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Após ler a matéria, ficou evidente para mim que, em alguns casos, há muitas sombras no trabalho voluntário. Vejamos alguns trechos que ilustram o que quero dizer: "A maioria dos voluntários, que de alguma forma ajudam as entidades, dizem acreditar que na maioria das vezes quem acaba sendo ajudado são eles e não as pessoas atendidas pelos programas assistenciais." "O maior retorno é o olhar de agradecimento das pessoas atendidas e a oportunidade de estar mais tempo com a filha." "A maioria dos voluntários entrevistados pela FOLHA começou a se dedicar ao trabalho de apoio ao próximo depois de ter vivido dramas pessoais". "A dificuldade de aceitar a trágica perda do filho e, posteriormente, a morte do marido, a impulsionaram a realizar o trabalho voluntário". "Ela diz acreditar que o retorno do trabalho na entidade serve como conforto". "Acredito que o retorno que recebo pelo trabalho é maior do que a minha dedicação."

Essas frases pinceladas no artigo trazem novas pistas para entendermos o que significa a expressão volunterapia, praticada atualmente, e como ela não tem conexão com a prática da caridade em seu sentido mais profundo e cristão. Vamos procurar compreender essas duas práticas através de seus componentes míticos. A volunterapia possui, nitidamente, um atributo prometéico. Ela é egoísta, ou melhor, reforça o ego. Não há aqui sinal de ajuda desinteressada. Não é a benevolência, a indulgência ou o perdão que motiva o ato, mas aliviar o próprio sofrimento. No trabalho realizado pela escola particular paulistana, está patente a necessidade de exercitar o poder e de manter um controle sobre o outro (os favelados), mantendo-o longe e pacificado. Nas entrelinhas do projeto nota-se o desejo de “doar coisas” ou “favorecer pessoas” materialmente com o objetivo de proporcionar ao doador, temporariamente, uma sensação de bem-estar, de poder ou até de vaidade pessoal. A pessoa que criou o termo volunterapia foi muito feliz. Pois o que descrevemos acima não pode ser considerado caridade (amor incondicional ou Ágape, entre os gregos). A caridade não consiste, em

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primeiro lugar, em assumir e comandar sentimentos, decisões, bem-estar, problemas e destino das pessoas. Apesar de sua formação positivista, o sociólogo E. Durkheim formulou duas noções que me parecem importantes para se pensar o que acontece no meio do trabalho voluntário: a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. A volunterapia, no sentido apresentado acima, demonstra que a abertura ao outro está ainda muito presa à dimensão do ego e à necessidade de encontrar "conforto" ou de se curar de alguma dor, sobretudo emocional. Essa volunterapia vem de encontro com a filosofia de algumas escolas orientais na qual a abertura e doação ao outro devem ser realizadas somente quando a pessoa está se sentindo bem. E, ao contrário de esperar um agradecimento, essas filosofias de vida defendem o contrário: é aquele que faz a doação quem deve agradecer pelo outro se mostrar receptivo à sua ajuda, feita de forma desinteressada. Em minha concepção, isso seria caritas. Eu tenho a impressão que na volunterapia a abertura para o outro só ocorre quando a pessoa se encontra em uma situação de vazio existencial e que, por isso, ou precisa ser reconhecida ou necessita de algum retorno afetivo. Isso me faz crer que, a solidariedade orgânica que Durkheim enxergava nas sociedades não-modernas e que me parece mais saudável, é uma espécie de “trabalho involuntário”, uma vez que a cooperação entre os seus membros acontece de forma desinteressada e sem alarde. A lógica não é mais egocêntrica e, sim, ecocêntrica. Por ser involuntária, ela também pode se manifestar de forma inconsciente, pois o sentimento de respeito e amor ao outro está tão interiorizado dentro da pessoa que, ajudar um outro membro da comunidade, é uma atitude natural e típica de pessoas saudáveis, portanto, sem a necessidade de se exigir algo em troca, a não ser o bem-estar de todo o grupo. Em suma, uma percepção sócio-espiritual muito mais próxima das filosofias orientais que refletem, no plano arquetipológico, o mito de Hermes. Enfim, se atualmente a solidariedade mecânica ou terapêutica é mais comum que a solidariedade orgânica, isso deve ser um indício de que a modernidade como um todo está doente, pois sua obsessão em des-envolver as pessoas, ou seja, em separá-las, hierarquizá-las, oprimi-las faz com que a cura para a solidão moderna seja, de fato, através do trabalho voluntário.

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É claro que é melhor essa forma de solidariedade mecânica do que nada, mas não é possível deixar de enxergar que ela contém um lado de sombra que precisa ser "iluminado" por outros meios se quisermos, num futuro breve, viver relações de solidariedade saudáveis, orgânicas e involuntárias, similares ao processo de respiração e de funcionamento de nossos corações.

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A horizontalidade da cooperação11

Boa parte dos meus artigos nasce dos insights que tenho na hora de responder aos e-mails que recebo. Acho que isso é o que Buber chamou de vida dialógica, esse confronto estimulante preferível ao silêncio reconfortante do monólogo. A idéia que vou discutir nesse artigo surgiu a partir da troca de e-mails com uma pessoa especializada em Jogos Cooperativos que, coincidentemente, também é graduada em Geografia. Convivemos durante três anos na mesma faculdade (1990/1992), mas, como os cursos da USP são muito des-envolvidos, fomos nos conhecer - virtualmente - apenas agora, na segunda quinzena do mês de setembro de 2001. Eu vou procurar aprofundar a minha noção de cooperação com base nessa troca dialógica virtual. Quando eu fiz uma crítica à solidariedade (vide artigo anterior nesse livro) eu não estava a descartando totalmente, mas tentando demonstrar que ela apresentava uma face negativa e uma positiva. A primeira é sua relação com a "caridade", uma forma de ajudar que pode ser resumida no famoso pensamento taoista: "dar o peixe ao invés de ensinar a pescar". Muitas vezes o que se chama de solidariedade são práticas que podem gerar, em alguns casos, dependência entre as partes, não se estimulando a autonomia daquele que recebe a ajuda. É claro que também não a descarto totalmente, pois há inúmeros casos de pessoas que realmente não conseguiriam viver se não fosse através dessa forma de ajuda e colaboração. Mas, na maioria das vezes, o que se percebe é o conformismo predominando. Para exemplificar meu ponto de vista, lembro-me da época em que lecionava em uma Faculdade particular em S.J. Rio Preto e orientava o trabalho de duas alunas que queriam estudar como os moradores de uma favela imaginavam um projeto de desfavelamento proposto pela prefeitura local. E elas conseguiram depoimentos interessantes sobre a estigmatização vivida pelos moradores da favela, mas, em outros depoimentos, ficava patente o desejo de continuar naquela situação para que a ajuda que recebiam de diversas igrejas e de outros moradores não terminasse.

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Artigo escrito no dia 29 de setembro de 2001 e enviado para a lista de discussão Jogos Cooperativos.

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Quem conhece meus artigos sabe que não sou a favor da máxima cristã "comer o pão com o suor do trabalho". Não é isso o que defendo. Eu acredito que já seria possível cada cidadão receber uma renda mínima, independentemente de trabalhar ou não, e gastar seu dinheiro da forma que bem entender. Nossos antepassados (ou melhor, nós mesmos, se pensarmos em termos de reencarnação) já trabalharam bastante por nós. Por isso, o que estou criticando é a situação de dependência que esse tipo de “caridade” é capaz de gerar. Por sua vez, em um mundo tão des-envolvido como é o nosso, é claro que é positivo acolher o outro e dar, mesmo por alguns instantes, algum conforto, ajuda material, emocional, espiritual etc. para alguém que sofre e precisa de calor humano. Por isso, eu coloquei, em outro artigo, que a cooperação incorpora a solidariedade, mas vai além. A cooperação, em minha opinião, pressupõe um componente político de transformação social, não necessariamente via partidos políticos ou através da luta armada, mas essa dimensão não pode ser esquecida. Sua utopia é a auto-gestão de todas as esferas de poder, do micro-cosmos ao macro-cosmos, do corpo à gestão do planeta. Porém, houve um importante ponto de acordo entre nós: a horizontalidade que caracteriza a cooperação. O que isso quer dizer? Na solidariedade ou no trabalho voluntário, predomina uma relação vertical entre o que "dá" a ajuda e o que a "recebe". O primeiro está sempre em uma posição superior, seja ela econômica, espiritual ou uma outra qualquer. E esta ajuda pode ser legitimada através da busca da redenção com Deus após a morte (faz-se caridade na terra hoje para se conseguir um bom lugar no paraíso no futuro) ou para demonstrar que sua condição sócio-econômica é privilegiada etc. Não importa qual seja a forma de legitimação, ela será sempre verticalizada. Por outro lado, a cooperação, dentro de uma ótica libertária, será sempre horizontal. Ambos ajudam e são ajudados. Ambos ensinam e aprendem. É claro que essa troca não precisa ser necessariamente igual, mas a relação é sempre dialógica e desinter-essada, na linha sugerida por Levinas. Mas este processo só é interiorizado na prática, no contato com o outro, descobrindo suas riquezas ocultas. Este meu amigo virtual já cursou duas graduações e trabalhou com lixeiros em Praia Grande sem que, em nenhum momento, precisasse se colocar acima destes ou assumir egocentricamente que tinha uma "missão" a cumprir 38


como se fosse um super-herói que vai emancipar os pobres "alienados" e "sofredores". Para se cooperar não é necessário estar "iluminado", "armado" ou "lutar", mas agir desinter-essadamente.

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Cooperando com Hermes: para além do patriarcado e do matriarcado12

O insight para este artigo surgiu aqui, em Taubaté, no momento em que me apercebi que ainda trago dentro de mim a velha polaridade Competição/Cooperação como se a primeira representasse o nosso lado "yang" e, a segunda, a "yin". Participando de diferentes dinâmicas, discutindo em grupos etc. comecei a me dar conta de que a cooperação é, em suma, o "terceiro excluído" ou a síntese dinâmica entre a polaridade yang e a yin. Ou, usando os termos do analista junguiano Carlos Byington, entre o ciclo arquetípico patriarcal e o matriarcal. Em minha opinião a visão de mundo patriarcal é, realmente, a grande propulsora da competição. A vontade de impor a verdade para os demais, definir o que cada um deve fazer e quando, estimular a competição para que vença o melhor e que apenas os eleitos consigam superar os limites etc., são atributos típicos da mentalidade patriarcal. Porém, notei que por cooperação muitas vezes eu estava entendendo a total renúncia do eu para se dedicar exclusivamente ao outro, ou então, cooperar passava a ser sinônimo de proteger o outro, sobretudo os mais indefesos. Essa visão realmente se parece com o mito da grande mãe que protege seus filhotes. Ou seja, achando que estes serão sempre frágeis e indefesos, ela se coloca no papel de protegê-los e assim faz tudo por eles, tornando-os mimados e, de fato, dependentes. É o famoso não "sair da saia da mãe". Esta é uma leitura muito comum em setores da "esquerda" que resolvem fazer tudo para salvar os oprimidos (atualmente, os excluídos), esquecendo-se muitas vezes de perguntar aos "oprimidos" e "excluídos" se é realmente isso o que eles querem. Um caso curioso aconteceu recentemente em uma cidade do interior do estado administrada por um partido de esquerda onde a prefeitura fez um bonito projeto de transporte para portadores de deficiência física sem consultar os maiores interessados. Como resultado, no dia da entrega do serviço, os "deficientes" fizeram um protesto, pois o que a prefeitura havia feito com tanta boa intenção, não interessava e não servia para eles. Voltando ao festival, penso que a cooperação deve estar relacionada muito mais a uma espécie de vivência andrógina para além do patriarcado e do matriarcado. Assim como é o mito de Hermes. Foi interessante fazer essa discussão em um grupo que estava 12

Artigo escrito durante o II festival de Jogos Cooperativos, no SESC Taubaté, no ano de 2001. 40


sentido o mesmo incomodo com a predominante visão matriarcal presente em diferentes falas durante o evento. Hoje eu penso que a cooperação se realiza no âmbito do "fratriarcal" e pressupõe trocar, aprender com o outro. A cooperação deixa de existir quando os indivíduos se anulam ou se tornam dependentes. E, dentro dessa perspectiva, ao cooperarmos, estaríamos valorizando e ajudando a ser cultivado em nossa psique aquilo que Gilbert Durand chamou de "imaginário dramático" e vivendo, arquetipicamente, o seu principal mito diretor: Hermes, o mensageiro dos deuses e o re-ligador do Céu e da Terra.

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Tempo Livre e imaginário: os mitos na formação de recursos humanos para o lazer13

Este painel apresenta os principais resultados de uma pesquisa realizada com o objetivo de levantar as imagens simbólicas e arquetípicas manifestas nas "diretrizes para a definição dos objetivos e missão do curso de Turismo", de várias faculdades e centros universitários que oferecem este curso na região dos Grandes Lagos, no interior do estado de São Paulo. Para a realização deste levantamento mitográfico, as bases teórica e metodológica foram as contribuições antropológicas formuladas pela "Escola de Grenoble", utilizando como principal heurística a mitocrítica proposta por Gilbert Durand, a partir do levantamento e interpretação dos mitemas e dos ideologemas presentes nestes documentos pretensamente racionais. Até três ou quatro décadas atrás era uma grande heresia falar em ócio ou em tempo livre. Os integrados e os apocalípticos, conforme definiu Umberto Eco (1998), só conseguiam enxergar no trabalho a “esfera produtiva” e/ou a dimensão histórica importante para a “emancipação da humanidade”. E nem é necessário citarmos a Bíblia, muitas vezes utilizada para classificar o ócio e a preguiça como pecados no mundo ocidental. Porém, como em um passe de mágica, a sociedade pós-industrial descobriu que o ócio poderia, na verdade, ser um grande negócio. Ou seja, uma importante fonte para acumulação de renda, criando, assim, a indústria do entretenimento. Dessa forma vão surgindo, ano após ano, parques temáticos, resorts, clusters e outras alternativas de “enriquecimento” do tempo livre da maioria e, simultaneamente, do bolso da minoria. Este processo, porém, ajuda a inverter o significado mito-simbólico do tempo livre e do ócio. Ou seja, o ócio sempre foi o território onde reinavam absolutos Dioniso, Hermes e Orfeu, entre outros deuses menores. Era o êxtase do deus do vinho que arregimentava multidões para festivais religiosos e/ou artísticos, para a vivência “libertária” de praças, parques, montanhas e mares não civilizados; ou então, tínhamos o deus da comunicação (e que também dá asas ao dragão da imaginação) “encarnando” a alma dos organizadores de festivais de teatro amador, de música e eventos ecológicos voltados para a criação de vínculos comunitários e, enfim, Orfeu, capaz de sensibilizar até os animais extremamente ferozes, intumescia seus dedos em sua cítara e trazia um 13

Painel apresentado na UNICAMP, durante o simpósio Políticas Publicas de Lazer, em 2001. 42


novo brilho à alma dos “animadores culturais” espontâneos que, no meio da massa urbana, nos bairros, nos centros comunitários, nas igrejas, procuravam (en)cantar a vida cotidiana local. Hoje, porém, o ócio virou negócio, e não há mais espaço para amadores - ou seja, para quem faz com amor. Até a “animação cultural” que até recentemente era muito mais um “estado de espírito”, uma vivência, uma militância que emergia a partir da alma, hoje se tornou área apenas para o especialista em entretenimento. Dessa forma, a espontaneidade de Hermes, Orfeu e Dioniso tende a ser substituída pela aura iluminada, porém burocrática, vingativa e autoritária do deus-solar Apolo. Lembremos que na mitologia grega, todas as ilhas temiam que fosse sobre elas que sua mãe Leto viesse a dar à luz o novo deus. Foi preciso muito esforço para convencer a pobre ilha de Delfos que Apolo não a destruiria e que, ao contrário, iria enchê-la de riquezas assim que nascesse. A ilha aceitou, mas sem muita convicção. Outra narrativa nos conta que, no mesmo dia em que nasceu, Apolo matou a serpentedragão Píton (símbolo da imaginação, do inconsciente, do irracionalismo). Para adentrar no domínio arquetípico das políticas de recursos humanos para o lazer, enfatizando no momento os cursos superiores de Turismo, procurei fazer um levantamento preliminar de quais seriam os mitos diretores manifestados em diferentes documentos, sobretudo nas “diretrizes para a definição dos objetivos e missão do curso de turismo”, elaborados por diferentes faculdades e centros universitários no interior do estado de São Paulo, a partir das teorias antropológicas do imaginário formuladas pela “escola de Grenoble” e utilizando como heurística a mitocrítica durandiana. A mitocrítica, de forma bastante resumida, consiste em identificar e interpretar os mitemas (ou seja, a menor unidade significante em um discurso narrativo ou ponto forte e repetitivo do mesmo) e os ideologemas (unidades significativas mobilizadoras de energias semânticas em textos “racionais” e que podem ser interpretadas em seus traços míticos). Neste sentido, procurei realizar uma leitura mitocrítica destes documentos pretensamente racionais, escavando sua dimensão simbólica, e a conclusão que se pode chegar é que a sociedade pós-industrial além de sua capacidade em transformar o ócio – um fenômeno “improdutivo” e execrado por todos os lados – em um grande negócio, possui novos mitos diretores. Ouso afirmar que a mitologia, felizmente, nunca é superada. O que normalmente se verifica no mundo da racionalidade é a formalização do discurso mítico em um discurso lógico, mas todos os ingredientes (os atributos mythicos) permanecem e traem este

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discurso. Dentro dessa perspectiva, podemos notar que a preocupação contemporânea em formar “recursos humanos” para o lazer não deixa de manifestar o desejo heróico de super-ação contra o caráter dionisíaco e órfico que sempre permeou o ócio. Em suma, os planos dos cursos superiores de Turismo foram pensados com o objetivo de destronar Dioniso e Orfeu, para que Apolo e Hércules possam, respectivamente organizar o caos e transformar em competidores os novos súditos do Tempo Livre, gerando não mais uma “anima-ação cultural” (a ação cultural fruto da alma sensível), mas uma nova modalidade: a “animus-ação cultural” (a ação cultural realizada sobretudo com a vontade e o pensamento heróicos). Domenico de Masi e seus colaboradores no célebre estudo “A sociedade pósindustrial”, apresentam diferentes leituras sobre a sociedade contemporânea, porém, alguns atributos dela são quase consenso entre os pesquisadores: ela exerce um poder tutelar “absoluto”, “minucioso”, “metódico” e “previdente”. Em suma, podemos dizer que estes quatro atributos da sociedade pós-industrial também são todos atributos do deussolar Apolo. Portanto, estamos vivendo ou caminhando (no caso dos países em “desenvolvimento”) para uma sociedade cuja organização é tipicamente apolínea. E estes autores vão além. Esta sociedade, como afirmam, estimula nos indivíduos o “instinto de combatividade” e a “competição”. Ou seja, também atributos apolíneos, mas que também podem ser encontrados em Ares (o deus da guerra) e em Hércules, o herói determinado. Hércules é famoso por vencer na base da força e da coragem os enormes desafios propostos por Euristeus, mas, por ser pouco sensível e atordoado por sua descomunal força, mata sem querer um grande amigo e fere com uma flecha envenenada o seu pedagogo Quíron. E, em um acesso de loucura, mata também seus filhos. È importante lembrarmos também que Hércules, em um momento crucial de sua “individuação” precisou optar entre ouvir a voz de Hedoné e a de Areté, ou seja, entre o prazer e a virtude. Hércules, como os “heróis”, escolheu o caminho da virtude. Não estaria nesse caminho de mão única, ou unilateral o seu problema? E o que isto tem a ver com o nosso assunto. Em primeiro lugar, com a sensibilização órfica e o ócio extático de Dioniso (comum na alma dos animadores culturais formados espontaneamente e que não passaram por cursos de especialização) desaparecendo na medida em que a instrumentalização racionalizante do Tempo Livre se expande a passos largos e o “perfil desejado do profissional do turismo e do lazer” assemelha-se aos atributos de Apolo – o deus solar – e de Hércules – o herói determinado, o prazer e o fático deixam de ser as chaves da animação cultural.

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Felizmente a resistência a este imaginário excessivamente luminoso ainda existe e deve ser valorizado em minha opinião, pois foi o que me levou a fazer este estudo mitocrítico. Não são poucos os professores que transformam os alunos em bodes expiatórios, os culpados pelo fracasso dos cursos. Ouvindo suas angústias, eu me perguntava: isso é uma ação ou uma reação? Por que eles (os alunos) se comportam dessa forma? Não vou nem entrar no mérito da didática do ensino superior, pois os projetos pedagógicos e as “diretrizes para os objetivos e missão” dos cursos de Turismo já são mais do que suficientes para obter as respostas que necessitamos. Vejamos um pouco da dimensão mito-simbólica destes documentos. Em primeiro lugar é o “imaginário da ordem” e os mitos racionalistas e determinados que são valorizados.

Os objetivos normalmente estão direcionados apenas para a “dimensão

cognitiva” dos alunos. Estes documentos são recheados por imagens diurnas do imaginário tais como: “capacidade de pensar”, “expressar-se claramente”, “resolver problemas”, “tomar decisões” etc. São objetivos dignos, se não fossem impostos a pessoas que na maioria das vezes ainda nem completaram 17 ou 18 anos de idade. Nestes documentos não se nota uma abertura à dimensão afetiva ou à sensibilidade. Enfatiza-se sempre e de forma angustiada uma preparação para a competição e à vida excessivamente vigilante, justamente o oposto do que as pessoas normais pretendem fazer no Tempo Livre. Em minha opinião, o comportamento inadequado dos alunos não deixa de representar também uma resposta com forte carga simbólica e afetiva a este imaginário solar que nem nos chamados cursos tradicionais é aceito integralmente. O aluno que procura um curso de Turismo, normalmente é alguém com um intenso espírito de aventura e envolvimento, que dão valor ao estar-junto e ao prazer hedonista, que mantém ainda vivos em si as chamas da alma dionisíaca e órfica que aludimos anteriormente. Como dizem alguns professores, pejorativamente, “o aluno de Turismo vem para a faculdade para fazer Turismo”. Isso é verdade e é esta a chama que não pode ser apagada nunca para que, no final do curso, ele possa ser um profissional-amador, ou seja, alguém que faz Turismo com competência (Apolo), mas também com prazer (Dioniso). Vejamos agora o perfil desejado do profissional do turismo que estes documentos pretendem formar. Podemos observar que são apenas os atributos heróicos de Apolo e de Hércules que são importantes: “competência”, “eficiência”, “iniciativa”, “determinação”, “liderança” e “persistência”.

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Em nenhum momento temos uma preocupação com a alteridade, com a compreensão e respeito à diversidade cultural. Nestes documentos não há espaço para o uso da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do próprio corpo para a aquisição de conhecimento; não se estimula a tolerância, a cooperação e a solidariedade. Não seria talvez isso o que os alunos reivindicam com sua transgressão em sala de aula? O sociólogo do lazer e do turismo, Jost Krippendorf, aponta outros valores nos jovens típicos da sociedade pós-industrial. Como diz, estes se orientam para o “tempo livre, para a “experiência”, para o “prazer”, para o “presente”, para a “natureza e meio ambiente”. Em suma, desejam uma “vida em que se tenha tempo de viver e também uma vida mais humana”. Outros atributos que o autor apresenta em sua esperançosa crença na juventude são: “criatividade”, “espontaneidade”, “fantasia e desabrochar pessoal”, “espírito aberto ao imprevisto e à novidade”, “contatos humanos e espírito comunitário”, “relações intensas com a família, amigos e conhecidos”, “experiência de grupos”, “descontração e bem-estar”, “liberação de todas as coerções, capacidade de ficar despreocupado”, “prazer e gozo em vida em vez de tédio e coerção da produção” etc. Em suma, todos atributos que podemos associar a Dioniso, a Hermes e a Orfeu. Este último, apenas por curiosidade, também seguiu os argonautas, mas para encantar e tornar menos penosa aquela missão heróica, nunca para lutar. A impressão que eu tenho ao interpretar estes planos é que se busca formar jovens executivos e carreiristas ambiciosos para explorar o Tempo Livre, ou seja, enriquecer no campo do ócio como negócio. É claro que existem muitos jovens com tal mentalidade, mas não parece ser a da maioria que se inscreve nestes cursos.

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Ação cultural na terceira idade: Introdução à sociagogia do (re)envolvimento14

Este relato de experiência contextualiza um projeto de ação cultural realizado na cidade de São José do Rio Preto, no ano de 1997, com o grupo da Terceira Idade do SESC Rio Preto. O projeto teve por objetivo permitir ao grupo a manifestação do sentimento topofílico (afeição pelo local) em relação ao município, construído através das dores e sabores provenientes da experiência de vida. Reservando parte do Tempo Livre proporcionado pela aposentadoria, o grupo reuniu-se durante 5 meses e, no final do período, montou uma exposição fotográfica contrastando imagens da cidade em 1927 e em 1997 que ficou a disposição do público durante 30 dias, nas dependências do SESC Rio Preto. Este projeto se transformou entre os anos de 1999 e 2003 em uma Tese de doutorado, defendida junto à Faculdade de Educação da USP, em que, além da descrição do projeto, foi realizada uma interpretação mitográfica das imagens expostas, buscando, assim, a compreensão da dimensão arquetípica e simbólica que permeou o processo de criação, a seleção de imagens e a montagem final da exposição. A base teórica para a realização do trabalho e sua interpretação partiu da abordagem estética de Kant, passando pelos pensadores neo-kanteanos como E. Cassirer e M. Eliade, por “pósmodernos” como J. F. Lyotard e, também, por pensadores da Escola de Grenoble, sobretudo, G. Durand e M. Maffesoli. Sobre a exposição montada pelos idosos, tivemos, de um lado, fotografias realizadas em 1927, publicadas no livro “Álbum Ilustrado da Comarca de Rio Preto e região” e, de outro, fotografias realizadas pelo fotógrafo rio-pretense Paulo Berton, em 1997. O grupo de idoso foi formado por pessoas que iam ao SESC para preencher o "tempo livre" de uma forma criativa, lúdica e alegre. Mas uma coisa era patente no grupo: ninguém aceitava ser rejeitado, parcial ou totalmente. O grupo, apesar de heterogêneo do ponto de vista sócio-cultural, com pessoas que apenas haviam feito o primário e outros com curso superior, era muito coeso.

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Comunicação apresentada no simpósio de educação de adultos. UFSCAR, novembro/2003. 47


Confesso que, de certa forma, isso foi uma agradável surpresa para mim. Eu imaginava encontrar pessoas mórbidas, pessimistas, fragilizadas e que passariam boa parte do tempo narrando os acontecimentos trágicos de suas vidas. Possivelmente, o trabalho social que o SESC realiza com os idosos (viagens, interação social e cultural, participação em atividades esportivas e recreativas) ajuda, e muito, a criar o perfil de idoso que encontrei em Rio Preto. Nos meses em que trabalhei com o grupo, foi possível se aperceber das relações de poder e de decisão nas resoluções internas para a montagem da exposição. Notei que nunca houve a necessidade de se estabelecer um poder hierarquizado. As relações foram sempre horizontais e interpessoais e o prazer em conviver de uma forma criativa e interativa parecia ser mais importante do que as decisões que dali sairiam. Em suma, poderia se dizer que tal processo de criação, colorido e sensual, em outras palavras, capaz de permitir uma ludicidade espontânea ou fática, permitiu, através da alegria e do prazer de compartilhar, uma verdadeira e real sensação de estar vivo e de participar de um "grupo". O projeto conseguiu fazer com que todos os participantes aumentassem sua capacidade de vazão e criação de novos rios de idéias e sentimentos, os escoadouros do verdadeiro poder criativo e do imaginário. Na tentativa de interpretar as imagens escolhidas pelo grupo para fazer parte da exposição (foram escolhidas 24 fotos entre as centenas publicadas no livro), acredito ter chegado à figura mítica de Hermes, uma vez que, este Deus, representa: As trocas nas relações; a troca de conhecimento; a nossa capacidade de ouvir o que pensam os outros e, com eles, aprender um pouco mais etc. Em suma, Hermes simboliza o diálogo, o instrumento capaz de por fim aos desentendimentos e contrariedades. Hermes nos lembra que falar e escutar são uma arte e que a versatilidade e a capacidade de adaptação nos tornam mais leves e tolerantes. Com Hermes aprendemos a multiplicar nossos interesses, criando uma série de oportunidades na vida, encontrando pessoas, participando do que ocorre no mundo. Este Deus nos possibilita integrar a luz e a sombra. E dessa polaridade surgem imagens que surpreendem e encantam. Viver o mito de Hermes nos torna mais versáteis, polêmicos e inquietos. De certa forma, o convívio com o grupo ajudou-me na expansão do Hermes que se escondia dentro de mim, sobretudo, pelo caráter "irresponsável" do mesmo, mais interessado em jogar e brincar com a vida.

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Trabalhar com a Terceira Idade exige uma mentalidade não-cartesiana, não apolínea por parte do animador/agente cultural. Hoje compreendo que o grupo, ao fazer de cada encontro semanal uma vivência extremamente lúdica, afetiva e criativa, ajudou a dissolver a mente lúcida, efetiva e crítica deste que agora escreve.

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Mapeando os novos templos de Hermes: Um estudo Mythodológico do Lazer15 Esta comunicação é fruto de um projeto de pesquisa e extensão realizado na cidade de São José do Rio Preto (entre os anos de 1999 e 2000) e em São Carlos(2001), que visava mapear bares e espaços culturais alternativos que apresentassem características que remetessem aos atributos de Hermes, o deus da comunicação. O objetivo era encontrar lugares que fugissem do padrão fast food, com refeições pasteurizadas e ambientes artificiais. Para a sua realização, procuramos inspiração na mithodologia de Gilbert Durand e na psicologia arquetípica de James Hillman e a heurística utilizada foi a observação participante. O trabalho realizado em Rio Preto envolveu alguns alunos de Graduação dos cursos de Arquitetura e de Turismo da UNIRP (Centro Universitário de Rio Preto). Em nosso levantamento constatou-se que a maior parte dos proprietários dos estabelecimentos hermesianos não fez curso superior ou qualquer curso técnico de gastronomia e/ou marketing. Tal constatação é um ponto importante para a discussão, pois, possivelmente, é essa “carência” na formação de seus proprietários que permitiu que tais estabelecimentos adquirissem características singulares, pois a intuição e a imaginação de seus proprietários aparecem como as maiores aliadas e não a racionalidade técnica dominante nos fast food, por exemplo. Outra característica desses locais é a vontade de atender o “cliente” como um amigo ou como “alguém da família” e, normalmente, essa foi uma das razões da criação do estabelecimento. Como exemplo, citarei dois bares com tais características na cidade: o “Bar do Gordo” e o “Bar do Aquiles”. Ambos possuem uma organização nada ortodoxa e servem pratos característicos inventados por seus proprietários. O primeiro, localiza-se no bairro Bela Vista, um dos mais tradicionais da cidade e foi criado por uma pessoa que estudou até o segundo grau. Neste estabelecimento o cliente não pede bebida. Ele se dirige até o fundo do bar onde encontra as geladeiras com cervejas, sucos e refrigerantes – as únicas bebidas servidas no local. O cliente pega o que deseja, abre e a leva até sua mesa. No final diz o que consumiu, paga e vai embora. Há uma relação de confiança

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Comunicação apresentada no I Workshop de Turismo urbano organizado pelo Departamento de Geografia da USP, em 2001. 50


mútua entre proprietário e clientes que desestimula qualquer tentativa de transgressão de suas regras básicas. Um outro local com características fáticas e hermesianas foi criado por um aposentado, fã de pescaria, na garagem de sua casa. Seu Aquiles, o dono do estabelecimento, tinha por hobby pescar nos finais de semana e preparar os seus peixes para a família. Após se aposentar resolveu investir em sua paixão e montou o seu bar. Na cidade de São Carlos, no interior de uma fazenda, existe um restaurante bem hermesiano. O proprietário costuma ser visto preparando a carne em uma gigantesca churrasqueira ou andando pelas mesas com seu famoso livro de "enigmas". Ele adora fazer apostas com os clientes. Estes escolhem um tipo de assunto (geografia, história, literatura etc.) e respondem algumas das quase 1200 questões de seu caderno. O cliente quase sempre ganha, no final, uma garrafa de pinga fabricada no local. Os estabelecimentos hermesianos exalam uma ambiência fratriarcal e, ao contrário da alma apolínea que normalmente os cursos superiores de turismo e hotelaria pretendem formar, favorecem a alma “renunciadora”. Ou seja, se associarmos a nomenclatura do antropólogo Roberto DaMatta para os seus “tipos sociais”: o Caxias, o Malandro e o Renunciador, com alguns atributos mitológicos podemos dizer que, o primeiro (o Caxias) representa os adeptos da lei e da ordem, da organização burocrática, do sacrifício pelo trabalho etc. (ou seja, um legítimo representante do mito de Apolo); o segundo (o Malandro) é o oposto, ou seja, aquela pessoa que não quer “saber de nada”, a não ser um bom futebol, cerveja, carnaval e folia (uma encarnação de Dioniso?) e, finalmente, o terceiro (o Renunciador), que não se encaixa em nenhum dos extremos, sendo um tipo social híbrido ou paradoxal, que não cultua a ordem estabelecida, mas cria suas próprias regras, que gosta de viver bem, mas não nega o trabalho etc. (ou seja, encarna um mito hermesiano). Assim, temos em Hermes também um híbrido entre o “trabalhador” e o “aventureiro” que Sérgio Buarque de Holanda apresentou em seu livro clássico “Raízes do Brasil”. Esta alma hermesiana presente nos três proprietários apresentados acima pode ser percebida a partir dos seguintes traços que apresentam fortes indícios de serem atributos de Hermes:

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forte disposição para aceitar e introduzir mudanças, desde que a rotina de tranqüilidade e apaziguamento não seja destruída ou alterada;

manifestam em seus estabelecimentos, simples e nada sofisticados, um culto às raízes e muita afeição pelo lugar onde se encontram (lembremos das Hermas, os primeiros locais de culto ao deus da comunicação e que serviam para criar vínculos);

a valorização dos laços de amizade, um dos maiores atributos de Hermes.

É importante salientar que as pessoas que freqüentam tais “templos” hermesianos em pouco tempo respiram esta ambiência e se encantam. Assim, dificilmente estão lá para cultuar Apolo, ou melhor, demonstrar que possuem poder - seja ele político, econômico ou jurídico; também não vão para cultuar Dioniso ou Narciso. Vão em busca, justamente, desta ambiência fratriarcal e fática. Por isso é interessante notar a presença de famílias inteiras e de pessoas que buscam espaços “alternativos”. Assim, não são locais para se discutir assuntos importantes e nem para “galeras” que vão se exibir, mas para se (re)envolver e se misturar. É interessante notar que entre os atributos de Hermes esta a sua fama de organizador de banquetes para os demais deuses. E esse atributo hermesiano também pode ser notado nestes estabelecimentos, pois servir de forma afetual e sagrada é como uma missão para quem possui Hermes como mito diretor. Outra questão curiosa é a paixão de Hermes pela alquimia. E o que há de mais alquímico no mundo de hoje senão o prazer em preparar e servir saborosos pratos? A seleção do melhor tempero, o cuidado em escolher e cortar a carne e legumes, entre outros rituais realizados sem a pressa e a correria dos fast food são as marcas de quem possui uma alma hermesiana. Nos dois estabelecimentos que citei acima, o cliente não pode ter pressa, pois a comida demora muito para ser servida. A refeição é preparada lentamente, o dono (que é também o cozinheiro) conversa com os clientes, conta estórias etc. Abrir um estabelecimento com tais características exige um Dom que parece nascer com a pessoa, e isto não se aprende em nenhum curso superior de turismo ou hotelaria.

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Mostra do Redescobrimento: Um passeio arquetípico16 Na exposição sobre o Barroco da Mostra do Redescobrimento, uma exposição que conseguiu mexer profundamente com a alma dos visitantes e que levou os críticos de arte a discuti-la por várias semanas sem chegar a um acordo, podemos perceber que foi uma das poucas exposições que conseguiu escavar nossa superfície e atingir nossos padrões arquetípicos e nossos schèmes. Assim, para aqueles (público em geral e críticos de arte) cujos schèmes de “ascensão” e de “separação” predominam na alma, em suma, as características simbólicas do elemento Ar e Fogo, a exposição foi um horror. Porém, para quem os schèmes da “descida” e da “mistura” são os predominantes, ou seja, que correspondem à simbologia do elemento Terra e da Água, a exposição foi fruída com êxtase. Vou comentar alguns aspectos que me chamaram a atenção no dia em que fui exatamente com o objetivo de observar e analisar o comportamento do público. Notei que várias pessoas assim que chegavam na entrada da exposição e percebiam que teriam que descer uma rampa em uma forte penumbra e rodeada por flores roxas, logo diziam: “eu não vou entrar aí não!”. Nas palavras em itálico temos vários elementos tipicamente noturnos: a descida, a penumbra e a cor roxa, considerada a cor do luto e também da alma. Outras enfrentavam o desafio da descida, mas lá no meio da exposição chegavam a desmaiar e eram retiradas pelos seguranças locais. Em excursões escolares, vários alunos depois de um tempo de visitação falavam: “quero sair daqui, não sei porquê, mas não agüento mais ficar aqui dentro”. O contrário também pode ser observado. Pessoas que assim que viam a exposição “mergulhavam fundo” em seu interior. Ficavam encantadas com as “descidas” e “misturas”. O que estava acontecendo? Por que reações tão díspares? A primeira vez que fui visitar a exposição tive nitidamente a impressão de que estava entrando em um “labirinto” ou em um grande “intestino”. Sobre a simbologia do labirinto, CHEVALIER (1997) nos diz que representa um entrecruzamento de caminhos, muitos sem saída. Sua essência está em retardar o viajante para que não chegue tão rápido ao seu destino (ao centro que

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Artigo publicado no site sombras inefáveis, em 2001. 53


deseja atingir). Penetrá-lo é como percorrer uma viagem iniciática, daí sua relação também com a mandala. Em algumas doutrinas místicas o labirinto tem a função de fazer com que o iniciado concentre-se em si mesmo, em meio aos rumos das sensações, das emoções e das idéias para voltar à luz sem se prender nos desvios das veredas. Ir e voltar do labirinto simbolizaria a morte e a ressurreição espiritual. A simbologia do intestino é similar. CHEVALIER (op. cit.) nos lembra que no antigo Egito, nas cerimônias de embalsamento, as vísceras eram retiradas cuidadosamente e encerradas em uma urna, enquanto os demônios e monstros tentavam se apoderar da urna e dos poderes mágicos nela encerrada: os excrementos (ou a potência biológica sagrada que residiria no homem e que mesmo depois de evacuada, poderia ser aproveitada). Este valor paradoxal do excremento, ou seja, de algo que pela aparência é desvalorizado, mas que encerra muito valor, está presente na simbologia do intestino, que tudo mistura produzindo a partir do excremento uma síntese daquele que come e daquilo que é por ele comido. Em suma, contém e é contido pelas forças profundas e ocultas do universo. Percebe-se na simbologia do labirinto e do intestino e conseqüentemente também na dos excrementos, uma valorização das imagens noturnas ou, em outras palavras, dos schèmes da “descida” e da “mistura”, na linguagem de DURAND (1997), ou seja, da força energética dos elementos Água e Terra. É bem provável que as pessoas que viveram um certo sentimento de harmonia e encantamento diante das imagens vividas no interior da exposição expandiram muito mais suas essências noturnas. E o contrário também pode ser dito em relação às pessoas que sentiram asco e vertigem. Para exemplificar a presença dessas forças energéticas na produção intelectual, podemos citar, em relação ao tema dessa Tese, duas passagens reproduzidas do livro “O futuro do trabalho”, de Domenico de MASI, nas quais os schèmes da separação e o da mistura definem duas posições antagônicas em relação ao trabalho e o tempo livre. A primeira citação, de cunho estritamente heróico e no qual o schème da separação é nítido, é do empresário H. FORD:

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Quando trabalhamos, devemos trabalhar. Quando nos divertimos, devemos nos divertir. De nada serve procurar misturar as duas coisas. O único objetivo deve ser aquele de executar o trabalho e ser pago por tê-lo executado. Quando o trabalho termina, então pode vir a diversão, não antes.

A segunda citação é de um pensamento Zen. Neste, o schème da mistura é valorizado:

Quem é mestre na arte de viver distingue pouco entre o trabalho e o seu tempo livre, entre a sua mente e o seu corpo, a sua educação e a sua recreação, o seu amor e a sua religião. Dificilmente sabe o que cada coisa vem a ser. Persegue simplesmente a sua visão de excelência em qualquer coisa que faça, deixando aos outros decidir se está trabalhando ou se divertindo. Ele pensa sempre em fazer ambas as coisas juntas.

A força e o papel dos schèmes (os elementos energéticos) em nossa psique, além de unirem as dominantes reflexas às imagens (DURAND, 1997), por serem universais se tornarão mais robustos e imponentes conforme os rumos de nossa bio-história, valores culturais da sociedade onde nascemos e até, porque não, de influências cósmicas relacionadas ao nosso mapa astral, já que temos os signos ativos (ou yang) e signos passivos (ou yin), relacionados aos elementos Ar, Fogo, Terra e Água (os dois primeiros como elementos simbólicos diurnos e, os dois últimos, noturnos).

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Bibliografia básica:

BACHELARD, Gaston. Dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988. BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis, Vozes, 2000. (v. 1 e 2) BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1977. CASSIRER, Ernst. Linguagem, mito e religião. Porto: rés editora, s/d. CAMPBELL, J. O poder do mito. SP, Palas Athena, 1998. ___________. O herói de mil faces. São Paulo, Cultrix/Pensamento, s/d. ___________. A imagem mítica. Campinas: Papirus: 1994. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus: 1995. DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Rio de Janeiro: José Olympio e Brasília: Ed. da UNB, 1999. _____________. Desenvolvimento sem trabalho. São Paulo: Esfera, 1999. _____________. (org) A sociedade pós-industrial. São Paulo: SENAC, 2000 DURAND, GILBERT. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _______________. Mito e sociedade. A mitanálise e a sociologia das profundezas. Lisboa: A regra do jogo, 1983. ______________. A Imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988. ______________. Campos do Imaginário. Porto: Instituto Piaget, 1996. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1998. HILLMAN, James. Cidade e Alma. São Paulo: Nobel, 1993. ______________. Psicologia arquetípica. SP, Pensamento, s/d. ______________. O código do ser. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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O autor:

Adilson Marques nasceu em São Paulo, capital, em maio de 1966. Taurino (terra) com ascendência no signo de Aquário (ar), parece viver imerso nas relações antagônicas, concorrenciais e complementares entre os enigmas do céu e as provações da terra. Espiritualista, acredita na necessidade de buscar, diariamente, se aprimorar moralmente, mas sem o sacrifício do corpo físico. Nesse sentido, sente-se mais à vontade diante da religiosidade oriental do que das tradições religiosas do ocidente, no qual o corpo físico é sinônimo de pecado e corrupção da alma. Formado em Geografia pela USP, fez seu mestrado e doutorado em Educação, pela mesma Universidade, especializando-se em Antropologia das Organizações e do Imaginário. Trabalhou no SESC, em várias unidades da capital e do interior, além de ter prestado assessoria para algumas entidades do terceiro setor na área da educação comunitária e popular. Lecionou em faculdades particulares do interior. Foi professor da disciplina Lazer e Território, no curso de pós-graduação em Lazer e Animação sóciocultural, no SENAC. No momento é professor da UATI, Universidade Aberta da Terceira Idade, na cidade de São Carlos, foi um dos sócios-fundadores da ONG Círculo de São Francisco – Instituto de Animagogia, organização voltada para o estudo, pesquisa e prestação de serviços sociais e terapêuticos, a partir de um enfoque transpessoal e holístico.

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