Exercício Potosí Яeverso

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T A T I A N A E N G E L G E R H A R D T N A T Á L I A B R I S T O T M I G O N O R E V E R S O D E A L G U M A S R E F L E X Õ E S S O B R E A S P O T E N C I A L I D A D E S D A S I M A G E N S E D A S A R T E S E N Q U A N T O P R I N C Í P I O S D E S C O L O N I Z A D O R E S P A R A P E N S A R O C U I D A D O 2 0 2 0

Inspiração do exercício

Este capítulo está dividido em três partes, que devem ser lidas da seguinte forma: começamos pelo centro onde encontra-se o título, a autoria e a apresentação do conteúdo a ser abordado bem como da escolha metodológica e epistemológica. Logo seguimos para frente apresentando as atividades de pesquisa, ensino e extensão desenvolvidas com uso das imagens, e, na sequencia, formas de cuidado que se planeja co-construir pelas potencialidades das imagens enquanto práticas ético-pedagógica-políticas.

Finalmente se retorna para o centro, para então voltarmos para trás (que seria o início do capítulo se fosse lido de forma convencional), onde se apresentam os referenciais que sustentam nossas reflexões sobre a construção de formas descolonizadoras de pensar o cuidado, e a própria produção de conhecimento, enfatizando os desafios e benefícios que se pode alcançar commo giro linguístico e a opção epistemológica proposta pelas responsáveis por sua elaboração.

BARRIENDOS, Joaquín. La colonialidad del ver. Hacia un nuevo diálogo visual interepistémico. Nómadas (Col), núm. 35, octubre, 2011, pp. 13-29.

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SANTOS, Boaventura Sousa Conocer desde el Sur Para una cultura política emancipatoria. Primera edición. Lima, julio de 2006.

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R E F E R Ê N C I A S

Objeto de Aprendizagem Imagens para pensar o Outro https://lume-re-demonstracao.ufrgs.br/imagens-para-pensar-o-outro/

Curso On line Imagens para pensar o Outro https://lumina.ufrgs.br/course/view.php?id=66

Catálogo Exposição Fotográfica Resistências, (re)existências e (sobre)vivências em imagens para pensar o rural - Manifesto visual https://issuu.com/projetodeslocamentos/docs/cat logo exposi o fotogr fica

GARCIA , Diana Manrique. Miradas profundas: Rutas de cura en las comunidades próximas a la ribera alta del Río Iténez (Guaporé), Amazonia Boliviana. 2019. Tese (doutorado em Desenvolvimento Rural) – Faculdade de Ciências Economicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em:https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/201164/001104777.pdf?

sequence=1&isAllowed=y

GARCIA , Diana Manrique, GERHARDT, Tatiana Engel. Ensaio fotográfico: a memória do paladar na construção de narrativas decoloniais. Revista Wamon, v. 4, n. 1. 2019. p. 189202. Disponível em:https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/wamon/issue/view/317

SANTOS, Vilma Constância Fioravante. A saúde como direito: um manifesto visual da luta por reconhecimento. 2018. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/186177

A L G U M A S P R O D U Ç Õ E S L I G A D A S A O P R O J E T O D E S L O C A M E N T O S

A realização deste giro, convoca os leitores a reflexão sobre a construção do conhecimento e modos de cuidado, instigando-os a questionar a monocultura do saber, a hegemonia da linguagem escrita sobre outras linguagens e o silenciamento que esta provoca. Torna-se urgente olhar para ausências e emergências.

Reconhecer, tolerar e incorporar o diferente dentro da matriz colonial de poder racializada de estruturas existentes não é suficiente. Busca-se, ao contrário, pelas imagens e pelas diferenças, caminhar em direção a novas maneiras de atuação que, re-conceitualizar e re-fundar as estruturas sociais, epistêmicas e existenciais colocando em cena – e em relação equitativa – lógicas, práticas e modos diversos de pensar, atuar, cuidar e viver.

Tendo como princípio o centro (nesta proposta de leitura), nos permitimos deixar-se surpreender pelo olhar do outro. Também iniciando pelo centro (de cada ser), reconhecemos a contribuição de um cuidado sentipensante, intercultural. Com esta proposta, destaca-se o potencial das imagens na possibilidade de criar movimentos entre as formas de conhecermos e compreendermos o mundo em que vivemos e o lugar que nele ocupamos, estabelecendo pontes de ligação entre as diferentes formas de produção do conhecimento e de sua capacidade de comunicação. Se reconhece que as imagens sejam dispositivos capazes de produzir subjetividades nas relações de cuidado, de encontros pluriontológicos, pluriepistêmicos e de experimentação metodológica (engendrada nos interstícios de um ethos intelectual acadêmico outro – que promova sempre deslocamentos).

A construção de novas narrativas imagéticas sobre o Outro, pode promover o compartilhamento do sensível e o amor mundi, ou seja, o afeto e o amor em seu sentido coletivo, político, uma disposição para respeitar os estranhamentos e as diferenças no coletivo, essenciais no resgate da arte de cuidar. A ação constante da sociedade na constituição do imaginário social por meio das imagens nos dá a possibilidade de descolonizar o Outro e o cuidado que fazemos circular, reconfigurando nossas relações e reatualizando nossas próprias noções de cuidado, saúde e doença

É urgente a necessidade de superarmos o paradigma moderno e o privilégio epistêmico do modelo biomédico que mantém a colonialidade do corpo único e universal, reinterando os usos das imagens como possibilidade de produção de outros territórios de aprendizagem. Desejamos que este não seja um fim, mas sim uma possibilidade de recomeço para novas abordagens visando práticas indutoras da descolonização do cuidado.

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A F I N A N D O

"Nosotros actuamos con el corazón, pero también empleamos la cabeza, y cuando combinamos las dos cosas así, somos sentipensantes”. Le dijo un pescador de San Benito Abab (Departamento de Sucre) al sociólogo Orlando Fals Borda

¿Para qué escribe uno si no es para juntar sus pedazos? Desde que entramos en la escuela o la iglesia, la educación nos descuartiza: nos enseña a divorciar el alma del cuerpo y la razón del corazón. Sabios doctores de Ética y Moral han de ser los pescadores de la costa colombiana, que inventaron la palabra sentipensante para definir el lenguaje que dice la verdad. Eduardo Galeano – Celebración de las bodas de la razón y el corazón

Um terceiro motivo, diretamente relacionado com o ponto anterior, é porque as imagens possibilitam encontros multiformes de desejos, de aproximações a outras formas de existir e onde a entrada está acompanhada de uma ética de cuidado, onde o respeito é a premissa básica e necessária de diálogo e escuta do Outro e de suas formas expressivas, onde fazer uso de uma câmera seja somente uma forma que permite consentir e construir com o Outro.

Não se pode desconsiderar que as imagens possuem ressonâncias distintas de acordo com quem a olha ou de quem a produz, mas é pertinente pensar que o registro visual, nesse sentido, fala de uma historia viva que constantemente se esforça para romper o jogo de forças, que atualiza e também nos conecta com culturas visuais como potências para desmistificar e contrapor as culturas letradas (CUSICANQUI, 2010).

O trabalho com o visual possui uma contribuição importante não só com a memória, pois elas nos lembram do que esquecemos, como também, como coloca Douglas Harper (2002) “as imagens evocam elementos profundos da consciência humana”, e também oferecem novas narrativas que desde os séculos pré-coloniais iluminam o contexto social e nos oferecem perspectivas críticas de compreensão das realidades (CUSICANQUI, 2010). Elas existem e fazem parte de um modo de existir no mundo, de um conhecimento que oferece uma possibilidade de escape dentro dos domínios coloniais, de outra ontologia, onde a ontologia política relacional realoca o mundo moderno em um mundo dentro de outros mundos, tarefa fundamental das academias e de alguns movimentos sociais (ESCOBAR, 2014). Por fim, as imagens permitem visualizar mundos silenciados, entrar nas profundezas ontológicas, força para mover a imaginação e mergulhar nos mundos e sua rede de inter-relações, desnaturalizar a banalidade do mal imagética. Sobre as contribuições de Cusicanque para pensar as imagens, as artes e as práticas decolonizadoras, a autora nos diz “a sociologia das imagens, se converteu para mim uma espécie de incubadora de experimentação pedagógica que me ajudou a desenvolver algumas das ricas experiências formativas do THOA (Taller de História Oral Andina), mas orientando seu uso para inquietudes mais diversas e marginais” (CUSICANQUI, 2015, p. 14).

Nesse sentido, a sustentação da construção de novas narrativas imagéticas se dá apoiada em uma forma de produção de conhecimento que deve se dar pela articulação entre os diversos saberes (ecologia de saberes), por meio de uma tradução intercultural das diferentes linguagens, mas também de experiências e de saberes construídos nas lutas políticas e nos movimentos sociais.

Segundo Silvia Rivera Cusicanqui (2015), as imagens possuem força para construir uma narrativa crítica que pode desmascarar as diferentes formas de colonialismo contemporâneo, argumentando que são as imagens mais do que as palavras que permitem captar e desconstruir os sentidos bloqueados pela língua oficial. A intenção não é idealizar a imagem como algo não colonizado, mas de pensá-la como um desafio criativo que transcende a fala.

Primeiro, porque na lógica descolonial a sensação de que a palavra está colonizada e possui um lugar privilegiado no sistema de conhecimento hierárquico ocidental, pela possibilidade de pensar além dos significados e como possibilidade criativa. Segundo, porque parte do mundo rural não possui acesso a palavra escrita e não tem o mesmo domínio da linguagem, portanto é uma oportunidade de construir uma linguagem para onde convergem heterogeneidades, onde a diferença pode ser uma vantagem.

Por outro lado, as proposições epistemológicas do referencial das Epistemologias do Sul permitem refletir sobre a descolonização do próprio conhecimento científico (hegemônico) e suas formas de relacionamento com outras formas produção de conhecimento, outros saberes, experiências que compõem distintos contextos emancipatórios da saúde e do cuidado. Tais proposições também permitem substituir as monoculturas por ecologias de saberes (SANTOS, 2007, 2010), que tem como premissa a ideia da diversidade epistemológica, reconhecendo a diversidade de formas de conhecer, de viver e de cuidar, para além do conhecimento científico biomédico, que coexistem e/ou se confrontam no mundo.

Não basta somente reunirmos todo o conhecimento científico produzido pela ciência moderna, mas é preciso construirmos um verdadeiro diálogo entre as vozes que emergem dos territórios e que nos trazem informações que não estão nas grandes bases de dados oficiais. Tudo isso trabalhado em conjunto com os grupos acadêmicos locais, engajados na realização de uma ciência capaz de valorizar essas experiências, construindo um conhecimento com grande potencial de transformar este mundo (SANTOS, 2010).

Assim, a ecologia de saberes é uma proposta de construção que permitem enfrentar os caminhos de transição entre um conhecimento científico produzido sobre a um conhecimento científico produzido com. São formas reflexivas que respondem a necessidade de valorização (sociologia das emergências) daquilo que foi intencionalmente invisibilizado e, portanto, não existe (sociologia das ausências).

A análise desses processos permite aprofundar a natureza do laço social, investigando as condições de possibilidade de certos grupos concretizarem suas reivindicações na arena da disputa política sobre o significado e a visibilidade das demandas sociais marginalizadas, pois as imagens contribuíram para construir o imaginário social a partir de uma visão eurocentrada, caracterizando o Outro como selvagem e inferior, se constituindo em uma “arma” potente de colonialidade do poder, do saber, da raça e do gênero, silenciando e invisibilizando o Outro. Estamos aqui no cerne do que propõe Boaventura de Souza Santos no programa de pesquisa Epistemologias do Sul, que tem contribuído, não só para identificar os silêncios, as invisibilizações, as supressões, as opressões em relação a diversidade de saberes e manifestações do viver e do cuidar (sociologia das ausências), mas também das diversas formas de experiências, saberes, conhecimentos e práticas de sobrevivência e cuidado com a saúde e a doença, que nascem da luta, da resistência contra o privilégio epistêmico do modelo biomédico e as formas de dominação e de opressão, sobretudo pela sinergia decorrente do colonialismo, do capitalismo e do patriarcado.

Assim, o exercício reflexivo realizado sobre a produção e os usos das Imagens para pensar o Outro, permitiu, à luz da sociologia das ausências (SANTOS, B S , 2000, 2006, 2007, 2015), compreender a estratégia de dominação que fabricava a alteridade do colonizado combinando as teorias raciais e as formas de exibição em espetáculos para as massas. Quem contou a História, contou a sua história!! As imagens, por mais sensíveis que sejam ou possam ser, narram também a história de quem a produz. E nesse caminho, muitas vozes ficaram silenciadas, não reveladas, não só pelos intelectuais, mas também pelos detentores de poder, pelos viajantes, pelos artistas.

O fim do colonialismo não significou o fim da colonialidade: a colonização do saber (monocultura do saber) e do ser, por parte da Europa, tem como um dos eixos fundamentais a ideia de raça como elemento de colonialidade no padrão de poder hoje hegemônico (QUIJANO, 2005, p. 107) e a imagem que vemos é necessariamente parcial e distorcida (QUIJANO, 2005, p. 118). Construção de um imaginário baseado em estruturas de poder modernas e coloniais onde o outro não europeu não é visto como sujeito, mas sim como objeto de fora da história cuja subjetividade e epistême é negada (MIGNOLO, 2005), corrobora com as análises sobre a invenção do Outro, do Selvagem, do primitivo, e com os epistemicídios que daí resultaram.

Joaquín Barriendos (2011) aborda a colonialidade do ver como constitutiva da modernidade, portanto, agindo como padrão heterárquico de dominação, decisivo para todas as instâncias da vida contemporânea. Ao analisar imagensarquivo, registros visuais etnográficos de colonização relacionadas com o canibal, o selvagem, o primitivo e o antropófago, o autor discuti os mecanismos e tecnologias visuais onde hoje atua a inferiorização, a objetualização e a racialização, e problematiza a relação entre produção visual da alteridade e do racismo epistemológico.

Utilizadas pelos colonizadores como forma de poder, as imagens podem ser ignoradas, esquecidas, alimentando o imaginário com a interiorização de preconceitos ou, ao contrário, pode-se utilizar do poder que a imagem tem para contestar, reativar, reconvocar a serem pensadas a partir de um outro lugar de enunciação, que permite ressignificar e utilizar as imagens como fonte de conhecimento do outro, onde novas demandas e identidades modificam seu significado original e se insere em um novo quadro de significados. O que Barriendos (2011) denomina de novo acordo visual transmoderno, ao qual se define com um diálogo visual interepistêmico.

Nesse mesmo período na Europa, parte da estratégia de dominação dos espaços colonizados recaia na afirmação de superioridade das nações imperialistas e de seus respectivos integrantes sobre os povos e territórios conquistados. Caracterizar o Outro como selvagem e inferior servia ao propósito de controlá-lo eficazmente nos domínios imperiais, e simultaneamente de construir uma justificativa legitimadora que caracterizava o empreendimento como missão civilizadora digna de apoio e aceitação nos centros metropolitanos.

É nesse contexto que surgem os zoológicos humanos, ou mais precisamente, uma série de práticas expositivas, orientadas pelas perspectivas científicas vigentes, associadas especialmente às exposições universais e congêneres, em que guerreiros Zulus, hindus encantadores de cordas, tuaregues em seus camelos, ou mesmo reconstituições de vilas coloniais inteiras eram apresentadas, encenando os comportamentos típicos dos grupos étnicos arregimentados (em geral de forma degradante) para o espetáculo, dando ao público um vislumbre de seus primitivos modos de viver. O corpo exótico foi construído como espetáculo da diferença a ser contemplado por todos, tanto como forma de lazer, quanto como objeto de investigação científica de prestigiados anatomistas europeus, desde o século XIX (BLANCHARD et al., 2011).

Epistemologias do Sul, imagens e descolonização do Outro e do cuidado

As reflexões trazidas até aqui partem do trabalho que viemos desenvolvendo sobre o entrelaçamento entre itinerários terapêuticos, cuidado, cultura e imagens. A partir da construção de um Objeto de Aprendizagem intitulado Imagens para pensar o Outro, que consiste em um dispositivo de descoberta de diferentes culturas e a serviço de uma melhor compreensão do Outro, buscamos afetar a compreensão do cuidado, entendido como multidimensional e multireferencial, por meio dessa ferramenta pedagógica de diálogo das culturas e de debate em torno da alteridade, da identidade individual e coletiva e das diferenças e diversidades humanas. Imagens para pensar o Outro permitiu pensar sobre a construção de imagens que formaram/formataram o olhar ocidental e influenciaram profundamente a maneira como o Outro é visto e apreendido há quase 5 séculos.

A tentativa é a de trazer elementos, à luz das Epistemologias do Sul (SANTOS, 2000, 2006, 2007, 2015), e da Sociologia da imagem (CUSICANQUI, 2010, 2015), enquanto proposta descolonizadora dos modos de pensar a supremacia imagética eurocentrada, para, em um primeiro momento, nos desafiarmos a pensar os usos da imagem na produção do conhecimento, não só científico, mas também do senso comum e de suas construções no imaginário social, se constituindo como instrumento de conhecimento ou de interiorização de preconceitos. Num segundo momento, trás a proposta de afetar as formas de pensar e agir em torno do cuidado através das imagens que retratam a diversidade humana e suas múltiplas referências, promovendo a descolonização do cuidado.

As imagens que documentam homens e mulheres em seu cotidiano, a cidade e o campo, a paisagem e os fatos gerados por ela, são hoje uma realidade corriqueira, que pode ser exercida por qualquer um, desde que se tenha uma objetiva na mão e observe o mundo ao seu redor. Nem sempre dispositivos como uma câmera digital, estiveram à disposição. Cabia no passado, aos desenhistas e pintores retratarem o cotidiano do mundo em que viviam, através de pinturas, desenhos, litografias que registravam o seu tempo e a sua época. Pintores e desenhistas das cenas brasileiras da primeira metade do século XIX, trouxeram a paisagem humana viva de uma colônia que elevada à categoria de reino unido, ainda não rompera com as amarras econômicas que se sustentava pela escravidão tanto dos negros africanos quanto dos indígenas nativos. Tudo foi retratado a partir do imaginário europeu, nutrido com dados científicos, relatados em cartas náuticas e experiências descritas em relatos de viagens. Imensa quantidade de gravuras e desenhos revela um outro ser humano, bem diferente do europeu, e que contribuíram para construir o imaginário sobre o Outro, se constituindo em "armas" potentes de colonialidade do poder, do saber, da raça e do gênero.

Exercitar o olhar, mirar a ação

Este texto é elaborado, sentido e apresentado, com o objetivo de fazer um convite ao leitor. Pretende-se que, juntos, demos início a realização de um giro, epistemológico, teórico, conceitual, e metodológico guiado/inspirado pelas imagens Esta iniciativa se fundamenta na compreensão do cuidado, entendido como relacional, intersubjetivo, multidimensional e multi referencial, e na possibilidade de promover a integralidade pela construção de espaços de cuidado, pluri ontológicos pluri e interepistêmicos. Promover espaços que convidem a aprender com o conhecimento e prática do outro, e possam afetar as formas de pensar e agir em torno do cuidado tendo as imagens que retratam a diversidade humana e suas múltiplas referências, como indutoras da descolonização do cuidado.

Silvia Cusicanqui, referência na área da sociologia das imagens, em sua obra Princípio Potosi Reverso, nos coloca diante de um livro, indicando que ao invés de começarmos pelo habitual início do texto, assumimos o centro como princípio. Deste, seguimos para a direita, em seguida retornamos ao centro, e deste partirmos para a esquerda. Somos desafiados e envolvidos a voltarmos nosso olhar para frente e para trás, para o futuro e para o passado, iniciando no presente, rompendo assim com a linearidade temporal da narrativa escrita e visual.

Inspirados em Cusicanqui optamos neste capítulo por seguir a proposta desalinhante. Assumimos que estamos agora no centro do texto. Aos que aceitaram nosso convite, recomendamos que a leitura siga para frente, onde encontram-se a sessão intitulada “Corpo-território em imagens: construindo movimentos para a descolonização do cuidado” seguida pela sessão “Por um cuidado sentipensante e intercultural”. Concluído estes trechos deve-se retornar ao centro, para que então possamos voltar o nosso olhar para trás, através da sessão de título “Epistemologias do Sul, imagens e descolonização do Outro e do cuidado” seguindo para as reflexões da sessão “Afinando”. Acreditamos que exercitando este giro, instigados pela construção teórica, possamos superar o paradigma moderno que, ao fragmentar a compreensão da realidade e do Outro, silencia e invisibiliza outras formas de pensar e de existir, permitindo assim a busca de novas construções de conhecimento.

O R E V E R S O D E A L G U M A S R E F L E X Õ E S S O B R E A S P O T E N C I A L I D A D E S D A S I M A G E N S E D A S A R T E S E N Q U A N T O P R I N C Í P I O S D E S C O L O N I Z A D O R E S P A R A P E N S A R O C U I D A D O
T A T I A N A E N G E L G E R H A R D T N A T Á L I A B R I S T O T M I G O N

Corpo-território em imagens: construindo movimentos para a descolonização do cuidado

Produzir novas narrativas imagéticas demanda mudanças que trazem consigo desafios teóricos importantes à crítica “universalizante” e que exigem considerar a importância da diversidade (de saberes) e da espacialidade (contexto) e também da tradução das ações coletivas, como aponta Boaventura em a Gramática do tempo. Acrescenta-se ainda a importância de se repensar e de se considerar o que circula nas relações sociais estabelecidas a partir do conhecimento produzido; a estratégia do espelho reverso e as reflexões que podemos fazer sobre o que e como produzimos conhecimento sobre o outro ou sobre o encontro com o outro, coloca em evidência as ideias fundantes das Epistemologias do Sul, que exigem nesse caso contextualização, luta, resistência. Quem fala, fala o quê? para quem? a partir de qual posição/contexto? Por outro lado, necessário também não cair em outro extremo essencializando outras posições etnocêntricas. O reconhecimento de múltiplas vozes e das possibilidades de construção de diálogos interculturais de ambos os lados, ou melhor, em todos os contextos de produção de saberes, é o desafio a ser transposto.

Foi nesse sentido que nos sentimos desafiadas a se apropriar da multiplicidade dos gêneros discursivos para produzir outros movimentos formativos, onde se articulam o campo científico e as experiências dos indivíduos no que diz respeito aos diversos modos entrelaçados de pensar e de lidar com a saúde, a doença, a vida e a morte, numa tentativa que de delinear caminhos de transformações de um pensar agindo reflexivamente sobre vida, ciência e cultura. Nessa perspectiva, alguns dispositivos pedagógicos foram construídos, como o projeto Deslocamentos, inspirado no projeto fotográfico Êxodos de Sebastião Salgado. Com inicio em 2017, o Deslocamentos é um projeto que integra atividades de ensino (Disciplina de Antropologia e imagem na pós-graduação, Objeto de Aprendizagem e MOOC Imagens para pensar o Outro – disponível na plataforma Lúmina da UFRGS), pesquisa (projeto (A)Diversidades no território rural e o cuidado em saúde: apreensões de itinerários terapêuticos em imagens) e extensão (Deslocamentos: a imagem como dispositivo para acessar as diversidades humanas e os usos do território).

Deslocamentos, palavra-chave deste projeto, propõe a produção de imagens por movimentos que não são somente geográficos, mas ético-políticoepistemológicos e estéticos frente às realidades humanas, em outros territórios de aprendizagem e no diálogo com outros campos do conhecimento.

Neste movimento várias foram as produções resultantes das atividades de ensino-pesquisa e extensão: vários exercícios de produção de narrativas visuais nas diferentes ofertas atividades do projeto, inúmeras discussões sobre a saúde, o cuidado, o sofrimento, o direito à saúde a partir das imagens.

A exposição fotográfica Resistências, (re)existências e (sobre)vivências em imagens para pensar o rural, é um dos produtos destas atividades e se configurou com um Manifesto visual. Sete narrativas visuais compuseram o manifesto produzido a partir de áreas rurais de diferentes regiões do país e da fronteira boliviana e que narram vivências de resistências e (re)existências de vidas rurais. As fotografias produzidas procuram dar visibilidade para o rural como um espaço de vida evocando paisagens e pessoas, que constituem esse espaço e são por ele constituídas. Os deslocamentos vivenciados na criação deste manifesto visual se revelam em imagens produzidas por movimentos não só geográficos, mas crítico-reflexivos e estéticos frente às realidades humanas, em territórios de aprendizagem diversos e no diálogo com diferentes epistemes. Olhares atentos captaram as sutilezas dos espaços de vida e contribuíram para uma escrita densa e sensível sobre as possibilidades da experiência humana. Buscaram constituir um manifesto visual de obstinação pela vida, onde flagrantes de força antropológica se opõem à banalização do mal, questionando constantemente o que nos separa e o que nos une, sobretudo a partir do atual desafio, extremamente complexo, de nos compreendermos enquanto sociedade.

Tocando no âmago de valores importantes, como igualdade e solidariedade, o debate sobre diversidade e pluralidade tensiona nossas concepções de laços sociais e nossa capacidade de conviver. Surge aí a necessidade urgente de reconhecer que as diferenças são construídas socioculturalmente sobre uma estrutura social de matriz colonial de poder racializada e hierarquizada. A partir da interculturalidade crítica, compreende-se que o encontro entre culturas é atravessado por relações que tentam minimizar as tensões e os conflitos, ocultando cenários de poder, dominação e colonialidade, silenciando o diverso sob parâmetros homogeneizantes que dizem reconhecer as diferenças. Não busca-se reconhecer, tolerar ou incorporar o diferente dentro da matriz e estruturas existentes. Busca-se, ao contrário, pelas imagens e pelas diferenças, reconceitualizar e re-fundar as estruturas sociais, epistêmicas e existenciais que colocam em cena – e em relação equitativa – lógicas, práticas e modos culturais diversos de pensar, atuar e viver.

Trata-se, portanto, de desnaturalizar estes processos e produzir conhecimento em construção permanente de relação e de negociação entre, buscando condições de respeito, legitimidade e simetria. Nossas reflexões partem do compromisso de que não se faz ciência apenas no universo acadêmico, mas também – e principalmente – com a sociedade, sem a qual o fazer científico perderia seu sentido e essência.

Assim, criamos movimentos em busca de formas diversas de conhecer e compreender o mundo, estabelecendo pontes entre diferentes possibilidades de produção e comunicação do conhecimento. Ao ampliar linguagens nas práticas de pesquisa, traçamos caminhos para a devolução da produção científica à sociedade. É sobre essas vivências que propomos esse manifesto visual para pensar o rural. Os temas disparadores falam de resistências, (re)existências e (sobre)vivências e as fotografias são fragmentos que falam de pessoas que não somente existem em seus territórios, mas (re)criam cotidianamente suas existências. Frente ao projeto moderno colonial que destrói alteridades e insiste em silenciar e invisibilizar suas vidas, estes povos resistem e forjam permanentemente novas formas de relacionarse em coletividade.

Foi sobre essas vivências e a construção dessa experiência que o manifesto visual foi proposto para pensar o rural, a vida e o cuidado.

Ao mesmo tempo sempre fica a questão, a preocupação, a vigilância em não cair nas armadilhas das implicações da própria resistência, ou seja, não transformar conhecimento em informação, mas transformar em transformação; a cada momento reconstruir, repensar, recriar metodologias, conceitos, teorias, que sejam capazes de resistir ao colocado por epistemologias homogeneizantes, universais.

A partir disso, se colocam desafios do ponto de vista metodológico, partindo da ideia de que a metodologia é uma construção, não há uma receita, coloca a resistência como dimensão importante para a permanente construção do conhecimento, para a co-construção, para a produção de conhecimento compartilhada, co-autoral. Isso nos coloca imediatamente na relação entre pessoas que irão co-produzir, compartilhar conhecimentos, o que nos faz pensar na noção de alteridade e na noção de descolonizar os sentidos.

É nesse sentido que as imagens, ao partirem de uma perspectiva intersubjetiva, se constituem como uma perspectiva metodológica para as narrativas visuais (DIAS, J.E., 2019). Jaqueline Evangelista Dias, realiza seu exercício metodológico, denominado Corpo-Território Mulher Kalunga, se desafiando a estabelecer aproximações criativas, por meio da fotografia, com os processos vividos nos territórios. Assim, a fotografia é produzida mediada pela intersubjetividade entre a mulher Kalunga, o seu território e a pesquisadora.

É por meio de uma narrativa visual do Corpo-Território Mulher Kalunga que a autora propõe imagens que constroem a possibilidade de ‘ver’ o corpo como extensão (uma dobra) do território. A trajetória desse pensamento visual coloca em questão o entrelaçamento: o que é o corpo e o que é o território no corpo.

Assim, num primeiro momento, a narrativa visual se constitui pela luz relacional que incide no território, quando a pesquisadora se encontra com a paisagem e a mulher kalunga; no momento seguinte, busca-se a perspectiva do modo de vida da mulher kalunga a partir dos movimentos de seu corpo e do seu corpo em movimento pelo território (práticas e conhecimentos); no terceiro momento, as imagens captadas são colocadas umas em relação às outras, num processo de montagem, trazendo a imagem-presença em movimento (afetos ao corpo); e, por último, o olhar do leitor/observador absorve o deslocamento da imagem (objetividade) e participa de um possível movimento de recorporeidade de gestos à vida do corpo da mulher kalunga (DIAS, 2019, p. 88).

O uso da imagem cria movimentos entre formas de conhecer e compreender o mundo e o lugar que nele ocupamos, pelo potencial pedagógico de criar pontes entre as diferentes formas de produção do conhecimento, de encontros com diferenças e diversidade, de transformar o pensar reflexivo sobre vida, ciência e cultura

Por um cuidado sentipensante e intercultural

Entre os desafios apresentados à atualidade, emerge a necessidade de resgatar a arte de cuidar É necessário ir além da capacidade de cuidar, trata-se de considerar o cultivo ao cuidado, o qual nos obriga a imaginar, sondar, zelar pelas conexões entre o que costumeiramente analisamos separadamente, precisamos resistir à tentação de julgar (STENGERS, 2015). Em um mundo enriquecido pela multiplicidade e diversidade, Boaventura de Souza Santos recomenda que seja aceito o convite para sermos surpreendidos, para que consideremos a possibilidade e o convite de aprender com o conhecimento e prática do outro.

Pensar a nossa relação com o Outro, a partir de hibridismos culturais, (relacionais, conceituais, metodológicos), ou seja, não em elementos estanques que se opõem, mas em elementos que não são inteiramente diversos e apartados, talvez seja também uma possibilidade para enfrentarmos a perspectiva essencialista. Desde que também pensar nesse hibridismo não nos coloque em outra posição, a de paralisia. Precisamos enfrentar essas questões para não nos paralisarmos na produção do conhecimento e na ação pública, política, precisamos de um debate que nos impulsione para também enfrentar, para sair dos embates e não ficar preso a dicotomias para pensar aspectos práticos. O conceito de interculturalidade crítica para pensar esses hibridismos que ocorrem no espaço

intersticial das culturas, das suas temporalidades, dos seus lugares é uma opção que provoca deslocamentos e resistências ético-políticas.

Ver o outro significa reconhecer a sua existência e sua diferença. Como reconhecer algo com o qual não me identifico? Necessário se abrir para uma identidade outra, reconhecer que pertence ao que não me pertence... a ideia de pertencimento a uma identidade de “misturas identitárias”, uma “identidade das diferenças” A ecologia dos saberes (SANTOS, 2007) certamente, partindo do reconhecimento da diversidade e das diferenças de saberes, de vozes, pode ajudar a adotar a visibilidade social, o reconhecimento recíproco, a ética, como epistemologia do reconhecimento

Neste cenário, assume-se que o território e as subjetividades constituem eixos fundamentais na constituição de mundos. Mundos estes que podem ser não apenas racionalizados/pensados, mas também sentidos Arturo Escobar (2014) retoma o conceito de sentipensar, proposto por Orlando Fals Borda e sublinha que a razão e a ciência não são exclusivas na construção dos mundos, nem da interpretação dos mesmo, já que isso se faz também a partir dos sentidos, desde o “coração”; “é uma síntese que condensa muito bem nosso caráter estético primordial, já que o sentimento é de tal ordem: colocado antes de qualquer exercício de pensamento, seja ele cognitivo, ético, político ou científico” (RESTREPO, 2016, p. 212), alias ser racional seria uma decisão emocional. Ainda, é um conceito pensado a partir do território, este como produtor da vida e como eixo fundamental na constituição de mundos A partir de vários movimentos, o território é concebido como projeto de vida no qual se conjuga o projeto sociopolítico, a autonomia e as perspectivas de futuro (ESCOBAR, 2014).

A partir dos conceitos apresentados, torna-se evidente a necessidade de práticas diferentes, que viabilizem o diálogo horizontal e supere as assimetrias e as hierarquias. Com a intenção de aproximar os pressupostos teóricos à realidade prática apresentamos o Projeto Plantando ideias, cultivando saúde e colhendo solidariedade, no qual a utilização das imagens, tendo como tema o uso de plantas medicinais, apresentou-se como potente ferramenta de diálogo e cocontrução, co-autoria, co-produção, co-geração de conhecimento

As atividades foram desenvolvidas em 2018 e 2019, nas Unidades de Estratégia de Saúde da Família e no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município de Veranópolis-RS. As ações foram financiadas por recursos estaduais, conforme resolução CIB/RS 210/13, a qual autoriza o repasse financeiro do Fundo Estadual de Saúde aos Fundos Municipais de Saúde para o custeio de Oficinas Terapêuticas na Atenção Básica.

O objetivo principal das atividades foi elaborar aspectos relacionados à saúde, no âmbito individual, coletivo e ambiental, através da abordagem de plantas medicinais. A partir de ideias, assumidas como sementes, foram semeadas algumas intenções: além das informações técnicas, foram oportunizados momentos onde o saber popular/tradicional foi resgatado, visibilizado e reconhecido.

Entrelaçadas as informações de cada planta, além de informações sobre a utilização cotidiana, emergem assuntos como a sazonalidade do plantio e colheita, uso de agrotóxicos, relevância de polinizadores e vetores de enfermidades.

Nos primeiros encontros, compareceram participantes com idade à cima de 60 anos, e compunham em sua maioria, a raiz da sociedade veranense, tendo residido na área rural em alguma fase de desenvolvimento. Na maioria eram mulheres, com a intenção de aprimorar o auto cuidado e zelo pelos familiares, além de experienciarem momentos de interação Algumas pessoas com deficiências e outras dificuldades também puderam ser identificadas, por exemplo, comdificuldade auditiva, visual, locomotora, não alfabetização e dificuldades para memorização Considerando-se que há de se ter dedicação e respeito para que as sementes pudessem germinar, refletiu-se sobre o solo, as condições adequadas para que as ideias pudessem ser apropriadas pela comunidade Nesse sentido a metodologia e as dinâmicas dos encontros foram alvo de atenção. Assume-se como relevante o uso de imagens e artes, abordagem esta que proporcionou a consideração de subjetividades e o estimulo ao diálogo a partir de diferentes formas de ver, sentir, transmitir e construir

“As vezes eu saia de casa assim...envenenada sabe? E aí, eu chegava aqui e (suspiro) passava...”

Foram realizadas atividades principalmente em grupos, com assuntos abordados, por exemplo, através de observação de exemplares vegetais, fotografias, desenhos, sensações de sabor, odor e textura, notícias veiculadas por jornais e rádio, poesias, crônicas, músicas, vídeos, técnicas de artesanato, jogos (dominó, memória, palavras cruzadas)

Assim como as flores atraem nossos olhares, a sabedoria construída pelos grupos provocou encantamento. Neste trabalho destacamos a melhoria da percepção quanto a localização de órgãos do corpo humano e noções básicas de metabolismo, propiciando aos participantes aumento da consciência sobre seu bem estar ou desconfortos, além de reflexões sobre interações entre compostos de origem vegetal e medicamentos alopáticos Maior segurança no uso de espécies vegetais também foi relatada, veiculada à observação e fixação de características relevantes para identificação das plantas. Alguns depoimentos nos auxiliaram na percepção da construção dos conhecimentos

“Eu não sou bem de memória querida, quando eu vou fazer o chá eu olho aquele bilhetinho que tu ensinou a fazer na aula”

“Na última consulta eu contei pro doutor que eu tomei alcachofra e me baixou a pressão, agora quando eu tomo chá eu anoto no papelzinho da pressão”

“Aprendi que tem algumas plantas bem boas para usar que eu achei que eram inso, peste E me lembrei de outras que usavam bastante antigamente também”.

“Eu fiz aquele banho, com a folha de goiaba e a folha de pitanga, e a ferida do pé do meu tio secou rapidinho. Olha como dá para ver nas fotos”.

Algumas ações nos fazem acreditar que frutos estão sendo dispersados, contendo no seu interior sementes, com potencial de propagação das ideias construídas nos encontros. Os grupos motivaram-se para realizar trocas espontâneas, compartilhando exemplares vegetais e informações com vizinhos e familiares Um livro contendo ilustrações e anotações sobre as espécies vegetais abordadas, elaborado pela(o)s participantes foi disponibilizado em cada uma das unidades de saúde.

Uma planta com raízes fortes mira o céu. Algumas conquistas dos grupos não estavam previstas no semear das sementes, mas merecem um olhar curioso. Uma das participantes, que assinava seu nome, mas, não sabia ler, pode ter aprimorado sua afinidade com os símbolos. Durante o jogo do dominó (adaptado), timidamente ela perguntou se na peça que estava em suas mãos constava a palavra sálvia. A abordagem também contribuiu para a inserção dos pacientes do CAPS no convívio familiar e social. Os espaços dos corredores e recepção alcançando até mesmo as ruas da cidade transformaram-se em locais de diálogos dos participantes com médicos, dentistas, recepcionistas, motoristas, psicólogos, secretaria da saúde, vereadores e demais comunitários, os quais compartilhavam questões ou lembranças relacionadas as plantas. Estes encontros e elaborações merecem destaque na construção do cuidado; e, reconhecimento quanto aos direitos e possibilidades disponibilizados pelo SUS. Tem-se novas sementes agora, a vida em sua diversidade é respeitada, nutrida e propagada.

“Eu sabia a prática, agora eu sei a teoria também”

O uso das imagens como outra forma de produção de conhecimento trás consigo a ideia de resistência as formas hegemônicas e permite aos grupos sociais imaginar que podem resistir e quem sabe até vencer. E o que também é importante no uso das imagens como resistência, é a ideia de que todo conhecimento é incompleto, é provisório, e necessita, portanto, de outros conhecimentos, pois nossas ações na vida cotidiana não são dependentes de uma única forma de conhecimento, e muito menos do conhecimento científico. E mesmo dentro da produção de conhecimento científica hegemônica, as imagens fazem parte do que Santos (2000, 2006), denomina “epistemologia contra-hegemônica”, sintetizam a postura ontológica das epistemologia do sul, partindo do compromisso de que não se faz ciência apenas com nossos pares na Academia, mas também, e principalmente, com a sociedade sem a qual a ciência perderia seu sentido e essência. Assim, as imagens permitem criar movimentos entre as formas de conhecermos e compreendermos o mundo em que vivemos e o lugar que nele ocupamos, estabelecendo pontes de ligação entre as diferentes formas de produção do conhecimento e de sua capacidade de comunicação.

Ainda, ao articularmos a sociologia das imagens com a proposta da sociologia das ausências, temos a possibilidade de identificação da monocultura do cuidado e do privilégio epistêmico do modelo biomédico, o que nos auxilia a identificar os embates ontológicos e epistemológicos que estão na base da produção de conhecimento científico, dos que olham o mundo de forma dicotômica e o olham de forma complexa, dos que geram mais oposições do que aproximações, entre as distintas visões de mundo. A própria formação de profissionais na área da saúde e o seu distanciamento do territórioreproduzem corpo universal, o usuário universal, e não identificam e compreendem as especificidades relacionadas aos modos de andar a vida, produzindo silenciamentos e epistemicídios que por sua vez impactam em corpos biológicos, biomédicos.

Para isso, é necessário que o Outro e a construção de sua narrativa imagética, seja aquilo que ele gostaria de dar visibilidade, e de que forma, como se sentiria reconhecido e o que seria reconhecimento para ele. Pensamos que somente desta forma poderíamos, em parceria e compartilhadamente, explorar as múltiplas formas de produção de conhecimento, desde os movimentos de luta até aqueles produzidos pelas sociedades como um todo, valorizando a diversidade de linguagens e saberes que compõem os entendimentos da vida. Escuta, diálogo e compartilhamento horizontal dos múltiplos saberes são potentes para transformar ausências em presenças.

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