Educação e Formação Humana

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Ailton Siqueira de Sousa Fonseca Helder Cavalcante Câmara Isabel Maria Freitas Valente (Organizadores)

Ailton Siqueira de Sousa Fonseca (UERN - Brasil) Alcides Leão dos Santos Junior (UERN - Brasil) Ana Alice Cavalcante Câmara (SEEC/RN - Brasil) Ana Campina (Escola Profissional - AVEIRO - Portugal) Ana Maria Reis Ferreira Ribeiro (Escola Profissional - AVEIRO e CIEDA - Portugal) Cleidson Dantas Balbino (UERN - Brasil) Eglê Betânia Portela Wanzeler (UEA - Brasil) Elane da Silva Barbosa (FVJ - Brasil) Fernanda de Oliveira Silva (UERN - Brasil) Geovânia da Silva Toscano (UFPB - Brasil) Helder Cavalcante Câmara (UERN - Brasil) Isabel Maria Freitas Valente (CEIS20-UC - Portugal) João Figueiredo (Universidade de Coimbra - Portugal) Jorge Manuel de Almeida Castro (AEVA/CIEDA - Portugal) José Cezinaldo Rocha Bessa (UERN - Brasil) Maria Aparecida Lopes Nogueira (UFPE - Brasil) Maria da Nazaré Mesquita Martins dos Santos Baptista (ISCE - Portugal) Maria Gorete Paulo Torres (SEEC/RN - Brasil) Maria Lúcia Pessoa Sampaio (UERN - Brasil) Maria Manuel Carvalho (Escola Profissional - AVEIRO - Portugal) Marlete Euná Brito de Melo (FIP e IESN - Brasil) Paula Sofia de Melo Tiago (Escola Profissional - AVEIRO - Portugal) Pedro Miguel Pala de Sá (Escola Profissional - AVEIRO - Portugal) Simone Martins Aquilino (UERN - Brasil) Suênia de Lima Duarte (UERN - Brasil)

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Reitor

Prof. Milton Marques de Medeiros Vice-reitor Prof. Aécio Cândido de Souza Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Pedro Fernandes Ribeiro Neto Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e Humanas Coordenador: Prof. Marcos de Carmargo Von Zuben Curso de Educação Física – CEF/CAMEAM/UERN Grupo de Pesquisa Educação Física, sociedade e saúde Coordenador do Curso: Prof. Francisco Gama da Silva Centros de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra - CEIS20 Coordenador Científico: António Pedro Pita Associação para a Educação e Valorização dos Recursos Humanos do Distrito de Aveiro - AEVA Presidente: Jorge Manuel de Almeida Castro Centro de Informação Europe Direct de Aveiro Diretora-Geral: Ana Maria Reis Ribeiro Escola Profissional – AVEIRO Presidente e Diretor Executivo: Jorge Manuel de Almeida Castro Comissão Editorial do Programa Edições UERN Comissão Editorial do Programa Edições UERN: Prof. Pedro Fernandes Ribeiro Neto Profa. Marcília Luzia Gomes da Costa (Editora Chefe) Prof. João de Deus Lima Prof. Eduardo José Guerra Seabra Prof. Humberto Jefferson de Medeiros Prof. Messias Holanda Died Prof. Sérgio Alexandre de Morais Braga Júnior Prof. José Roberto Alves Barbosa Assessoria Técnica: Daniel Abrantes Sales Fábio Bentes Tavares de Melo

Revisão e Editoração: Prof. Helder Cavalcante Câmara Capa: Prof. Helder Cavalcante Câmara Campus Universitário Central BR 110, Km 48, Rua Antônio Campos Costa e Silva – 59.610-090 – Mossoró-RN Telefone: (84) 3315-2181 – E-mail: edicoesuern@uern.br 3


Catalogação da Publicação na Fonte.

U58e Universidade do Estado do Rio Grande do Norte Educação e Formação Humana / Ailton Siqueira de Sousa Fonseca, Helder Cavalcante Câmara, Isabel Maria Freitas Valente (Orgs.). Mossoró: UERN, 2014 Edições UERN 214f. ISBN: 978-85-7621-083-2 1. Educação. 2. Direitos humanos. 3. Formação humana. I.Fonseca, Ailton Siqueira de Sousa. II. Câmara, Helder Cavalcante. III.Valente, Isabel Maria Freitas. IV. Título.

UERN/BC

CDD 370

Bibliotecário: Sebastião Lopes Galvão Neto CRB 15 / 486

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SUMÁRIO

Prefácio

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Nota Introdutória

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O método: uma experiência no doutorado de saúde coletiva Maria Aparecida Lopes Nogueira

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África, o sítio onde as utopias (educacionais) vão para morrer? João Figueiredo

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Autonomia na escola pública: breve estudo exploratório e de oportunidades Ana Maria Reis Ferreira Ribeiro

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Bullying em contexto escolar. Apostas preventivas .............................................................. 56 Maria da Nazaré Mesquita Martins dos Santos Baptista Educação para os direitos humanos: mulheres muçulmanas em Portugal: (dês)conhecimento e (in)visbilidade ...................................................................................... 65 Ana Campina Criar|envolver|orientar em T0: o ensino na diversidade Paula Sofia de Melo Tiago e Pedro Miguel Pala de Sá

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Abrem-se as cortinas! Desvendando o cenário educacional .............................................. 86 Cleidson D. Balbino, Fernanda de O. Silva, Simone M. Aquilino e Helder Cavalcante Câmara A literatura como estratégia para (re)pensar a formação em Educação Física Suênia de Lima Duarte, Elane da Silva Barbosa e Ailton Siqueira de Sousa Fonseca Formação humana e literária: o perfil de leitor literário de letrandos antes do ingresso no curso

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Maria Gorete Paulo Torres, José Cezinaldo Rocha Bessa e Maria Lúcia Pessoa Sampaio

Conhecer e praticar a extensão universitária como alternativa a formação

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Geovânia da Silva Toscano e Alcides Leão dos Santos Junior

Educação na sociedade atual: processos educativos necessários a formação do aluno Ana Alice Cavalcante Câmara e Helder Cavalcante Câmara A inclusão de crianças em um contexto de vulnerabilidade social Marlete Euná Brito de Melo O sexo dos anjos, ou os anjos sem sexo Maria Manuel Carvalho

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Jornadas míticas do tornar-se professor ................................................................................ Eglê Betânia Portela Wanzeler

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Prefácio

Educação e formação humana. - E se fosse bom fugir para a escola?

Só se foge para um lugar porque gostamos de lá estar. Ou porque nos sentimos lá bem. Ou porque encontramos lá o que não encontramos noutros lugares. Seja como for, o que nos importa sempre é saber o que distingue um lugar para que possamos optar por ele. Isso mesmo: queremo-nos sentir bem nos lugares onde estamos. E porque é que as escolas – os lugares de educação por excelência – não podem ser um dos melhores lugares do mundo para fugir para lá? Porque duvidam alguns (tantos) disso? Se calhar vale a pena pensar nisso. Hoje mais do que nunca. Neste tempo „sem pão em que todos ralham sem razão‟. A Escola, a do nosso tempo, porque um espaço de educação e formação humana, tem de servir bem quem dela se quer servir. E servir bem é servir para a vida de quem nela está de modo direto ou indireto: alunos, encarregados de educação (famílias ou outros), professores, técnicos, funcionários, fornecedores, empresas, instituições, etc. É servir bem o que muitos chamam de „comunidade educativa‟. É servir bem as pessoas. Pois é. Se as escolas não servirem para a vida das pessoas, elas estão a mais na vida das pessoas. E o que está a mais nas nossas vidas, mais tarde ou mais cedo chateia-nos e deitamos fora. Tal e qual. Mas a escola para servir para as nossas vidas tem de interpretar bem o que é hoje a nossa vida: como somos, do que precisamos, onde devemos chegar. E vemos que somos todos diferentes, todos diferentes. E que precisamos de ser competentes naquilo que o meio reconhece e valoriza como básico. E que devemos preparar-nos para chegar ao que hoje importa. Por isso, cada escola tem de repensar o que faz e como faz. E por isso se fala muito em „projetos educativos‟. E bem. Por mim, acredito num projeto de educação que não apoie a seleção. Acredito num projeto que, pela inclusão, interprete a diferença de cada um que está na escola e assim promova as suas competências únicas. E falo de todas as diferenças: das facilidades e dificuldades em aprender; das facilidades e dificuldades em

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compreender e aceitar; das facilidades e dificuldades em fazer. E falo das pessoas todas que estão na escola, não só dos alunos. Falo da „comunidade educativa‟. E para fazer bem as coisas (bons projetos de educação), há coisas que não se podem inventar. Há estabilidades que não podem ser ameaçadas. „Agrupar‟, „agregar‟ tem no seu significado principal o sinónimo „amontoar‟ – o que me traz à ideia os escombros, os estaleiros de uma qualquer obra de construção civil. Depois de um tempo de agrupamento de escolas que nunca foi concluído, porque nunca foi cumprido e avaliado nos objetivos, agregar escolas foi o caminho que, estamos a ver no seu início, parece vir a ser mais uma obra inacabada em educação e, porventura, de gravosas consequências para a história de Portugal. Sim: porque a história de Portugal fez-se e faz-se na escola. E vêm depois tantos falar de qualidade na escola, falando da diferença entre escolas públicas e escolas privadas. Coisa da treta! Como se algum dia a qualidade dependesse do rótulo da coisa pública ou da coisa privada. Nunca existiu essa diferença. O que existe é serviço público de qualidade; outro serviço „tipo tiririca: pior não fica‟; e outro serviço que não merecia existir. E é este quadro de honra e desonra que deve esclarecer as pessoas. E por ele devem ser esclarecidas as pessoas, com a verdade dos resultados efetivos que cada escola consegue e não com os chavões não testados de que certa escola é que é a referência. Afinal, todas as escolas podem ser „referências‟, basta que cumpram o que prometem fazer e que atinjam os resultados a que se propõem. Acredito que se não for bom fugir para uma certa escola, é porque essa escola tem certas razões para não existir. Porque não há escolas boas e escolas más. Há escolas que, pelo seu trabalho e resultados alcançados, merecem ser reforçadas e valorizadas. E há outras escolas que, pura e simplesmente, deveriam ser fechadas. Nesta „discriminação positiva‟ se joga o futuro coletivo e a verdadeira mudança de um país. Na escola. Na escola para onde deveria apetecer fugir. Pois bem, é neste conceito largo de escola distinta e para todos, para onde podem confluir diferentes ações, que foi impresso um conjunto de interpretações sobre o seu papel na educação e na formação que são humanas. Por isso somos convidados todos a observar em escritas distintas, ao longo das páginas que se seguem, catorze excelentes perspetivas que são outras tantas fugas para uma escola que se quer cada vez mais próxima dos cidadãos e da vida que eles querem experimentar viver bem. Numa organização de textos notável, em viagem pela diversidade de continentes, de saberes e intenções, somos colocados perante a necessidade hercúlea e tão atual de

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sermos capazes de pensar a educação e a formação – que só são humanas – para o bem humano que nos é comum.

Jorge Manuel de Almeida Castro Presidente AEVA/CIEDA

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Nota Introdutória

Não interessa construir homens, como pretendia a pedagogia mecanicista, mas descobrir homens Delfim Santos

Toda a vida de um indivíduo não é outra coisa senão o processo de dar à luz a si próprio Erich Fromm

O educador age não somente por aquilo que diz e faz, mas mais ainda por aquilo que é G. Mauco

Ensinar é amar Sebastião da Gama

O livro que aqui se apresenta ao leitor interessado na consolidação dos novos paradigmas epistemológicos educativos, das novas utopias educacionais reúne textos de autores brasileiros e portugueses que num profícuo diálogo científico procuram debater, analisar, problematizar, elaborar críticas e proposições em torno da questão educacional. Questões como a formação integral do Ser Humano, as utopias educacionais, a educação para os direitos humanos, a formação literária e cívica, a inclusão de crianças portadoras de deficiência em contexto escolar regular, a educação para a sexualidade de pessoas com deficiência e ou incapacidade (PCDI), entre muitas outras interrogações perpassam toda a obra. Apesar da diversidade das abordagens e dos objectos nele contidos, sobressai a ênfase questionadora, que fundamenta toda e qualquer actividade de carácter científico. Neste sentido, tanto quanto nos foi possível procedemos a uma ordenação lógica e temática dos artigos procurando sempre dar alguma coerência à obra. Julgámos que esta diversidade de autores provenientes de várias áreas, das duas margens do Atlântico, acabou por conferir uma unidade objectiva a este livro. Acreditamos que esta colectânea de artigos aqui reunida poderá, pelo menos é nosso desejo, contribuir para a reflexão e para o aprofundamento dos conhecimentos sobre o assunto e abrir novos caminhos, novas indagações sobre o tema – Educação e

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formação humana. No entanto, caberá ao leitor fazer as opções temáticas em função das diferentes abordagens do tema geral e dos seus próprios interesses Para a publicação desta obra contamos com a disponibilidade de um vasto conjunto de Autores a quem muito agradecemos os quais foram convidados para o efeito apenas com a preocupação de uma assumida interdisciplinaridade que permitisse um proficiente diálogo entre investigadores brasileiros e portugueses. Para finalizar devemos uma palavra de gratidão, à Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, e às instituições parceiras e apoiantes deste projecto (PPGCISH/UERN, CEF/CAMEAM/UERN, CEIS20, AEVA, EPA), pela confiança depositada no nosso trabalho.

Coimbra, 12 de abril de 2013 Isabel Maria Freitas Valente Investigadora Integrada do CEIS20-UC Membro do TEAM EUROPE da Comissão Europeia

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O MÉTODO: UMA EXPERIÊNCIA NO DOUTORADO DE SAÚDE COLETIVA Maria Aparecida Lopes Nogueira

Pus sempre nos meus escritos toda a minha vida e toda a minha pessoa [...] Ignoro o que possam ser problemas puramente intelectuais. Nietzsche

Acreditando que a construção de todo e qualquer conhecimento supõe novas experiências, aceitei o convite-desafio de trabalhar com Histórias de Vida nos Seminários Avançados de Pesquisa do Doutorado em Saúde Pública do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública – Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães / Fundação Oswaldo Cruz, em 2004. A ideia era trabalhar, a cada ano, com as histórias de vida de 4 pesquisadores do Aggeu Magalhães, tendo como suportes seus Currículos Lattes. A partir da formulação de Werner Heisenberg de que o método não pode separar-se do objeto, achei por bem construir junto com os alunos, ao longo dos anos 5 anos consecutivos que ministrei o módulo, algumas questões que serviram como operadores cognitivos do percurso: Que tipo de ciência é produzida na instituição?... Como os diversos modos de produção científica se expressam nas trajetórias dos seus pesquisadores, nas suas filiações epistemológicas, teóricas e metodológicas; nas suas visões de mundo; nos embates e relações internas; nas pesquisas?... Em consonância com o pressuposto de que nada se faz fora da vida, apostei na tessitura vida e ideias como possibilidade de viabilizar uma experiência acadêmica impregnada pelo desejo de desvendar as armadilhas do conhecimento e explicitar as incertezas próprias do fazer científico. O método proposto por mim foi formulado na premissa da religação ciência e vida, conforme os pressupostos do Pensamento Complexo. Segundo Edgar Morin, o método se opõe à concepção metodológica que se reduz a receitas técnicas. Ele é um princípio de conhecimento que respeita e busca revelar o mistério das coisas. Como princípio, o método – ou caminho – se faz no caminhar da investigação e expressa a convicção de que “o único conhecimento que vale é o que se nutre da incerteza e que o único pensamento que vive é o que se mantém à temperatura da sua

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própria destruição” (MORIN, s./d., p. 27). Portanto, fomos construindo o caminho no caminhar. No início de todos os Seminários enfatizei a importância das Histórias de Vida e da identificação dos Temas Recorrentes como estratégia de análise a ser adotada. Os Temas Recorrentes ou Recorrências Temáticas orientaram o foco da investigação para as ideias que se repetem, nos dados levantados pela pesquisa. São essas obsessões, presentes de forma objetiva e nos subtextos, que foram consideradas como fios condutores da análise. Ou seja, trabalhou-se de outro modo com os dados quantitativos. Com o roteiro das entrevistas pronto, dávamos início à experiência, que se repetiu nos anos seguintes. Cada turma foi, sistematicamente, dividida em 4 grupos; cada grupo ficou responsável pela entrevista de um pesquisador (Grupo I – Pesquisador I; e, assim, sucessivamente). As sessões eram filmadas; contavam com a participação de toda a turma e dos professores responsáveis pela disciplina: Lia Giraldo e Ricardo A. W. Tavares. Ao final das entrevistas eram realizadas mais cinco sessões, no intuito de identificar os temas recorrentes: 1. Em cada sessão, após assistirmos as exibições dos vídeos das entrevistas, discutíamos seus conteúdos. Estivemos pautados na ideia da unidualidade do sapiens demens, através de um conjunto heterodoxo de pensadores múltiplos como Edgar Morin, Gilbert Durand, Ilya Prigogine, Henri Atlan, Humberto Maturana, dentre outros. O que havia de comum nessa base epistemológica era a convicção da necessidade urgente de religar natureza, cultura e ciência. 2. Na quinta e última sessão, baseados nos Temas Recorrentes identificados nos depoimentos dos pesquisadores, chegava-se a um número final de quatro grandes Temas que deveriam ser analisados. O objetivo era situar os limites e horizontes mentais nos quais os alunos poderiam inscrever suas anotações, confrontar seus saberes e contextualizá-los numa problemática mais ampla. A ideia de um trabalho coletivo orientou a divisão das turma em quatro grupos. Cada qual ficou responsável pela análise de Temáticas, tais como: Paradoxo, Política, Formação e Técnica. É necessário ressaltar que, a cada ano, a princípio, os alunos reagiam timidamente à proposta, mas no transcorrer das sessões iam se animando e participando ativamente do processo através de debates. No final, redigiam suas análises - que se

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transformaram em textos -, sempre sintonizados com as informações recebidas; contribuindo assim para a construção da própria autonomia intelectual. Mais do que ensinar uma técnica – Histórias de Vida -, minha intenção foi “introduzir o aluno do doutorado no mundo da cognição do pensamento científico, [...] possibilitar espaços para criação e auxiliar o aluno na gestão do seu conhecimento”, em conformidade com a ementa da disciplina. Ou seja, contribuir para o reencantamento da ciência, segundo a formulação de Ilya Prigogine. Esse processo, que considero como investigação no sentido elementar e pleno do termo, efetuou-se no âmbito da interação professor-aluno reiterando a ideia de que é necessário recomeçar e repensar sempre o trabalho científico nos moldes propostos pelo Mito de Sísifo. Operou-se aceitando como virtudes os imprevistos e incertezas surgidos na trajetória, atitude imprescindível para quem se aventura pelos territórios da ciência. Considerando que o conceito de ciência não é absoluto nem eterno, é possível construir condições para a irrupção de um conhecimento transformador e gerador de novos sentidos para a vida no interior da própria instituição científica, no caso específico, o Instituto Aggeu Magalhães. Desse modo, dentre as finalidades educativas do processo empreendido, podemos citar: a) formar espíritos capazes de refletir criticamente e de organizar seus conhecimentos; b) contribuir para a construção do homo humanus, aquele que além de viver a vida também a conduz; c) ressaltar o impacto das incertezas e dos problemas da existência na produção da ciência; d) demonstrar a importância de contextualizar tal tipo de produção. Enfim, o método proposto e vivenciado nessa experiência situa-se no âmbito da ideia de Montaigne da cabeça-bem-feita, na medida que considera fundamental que o aluno organize seu próprio pensamento por meio, simultaneamente, da religação e da diferenciação. Trata-se de fomentar sua capacidade de relacionar cada dado obtido com o conjunto das informações, de estimulá-lo a “colocar a si mesmo os problemas fundamentais de sua própria condição e de seu tempo” (MORIN, 2001, p. 21). O quadro geral das temáticas identificadas durante o processo transversalizam a vida e as ideias dos pesquisadores convidados, na medida que favorece as religações que envolvem os saberes particulares e o conhecimento global. Para terminar, é necessário ressaltar que o método adotado – com seus desdobramentos em instrumentos, operadores cognitivos e conceitos – reitera a filiação 13


epistemológica da proposta com o Pensamento Complexo. De modo que é nessa esfera que situou-se o trabalho com Histórias de Vida desenvolvido nos Seminários Avançados, no âmbito do doutorado em Saúde Coletiva do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães. Creio que entre as principais contribuições, a mais importante foi permitir um debate fecundo sobre a FIOCRUZ de forma mais ampla, e - de modo mais específico sobre as controvérsias que envolvem um programa de pós-graduação em Saúde Coletiva, que tenta conciliar duas linhas de pesquisas / vertentes: uma de caráter mais social e outra voltada para o laboratório. A experiência realizada tentou fornecer elementos de informação e de reflexão para os alunos sobre a instituição, a pesquisa e o método. A apropriação se deu no próprio percurso das turmas: aulas teóricas; leituras em grupo; debates; oficinas, entre outras atividades. Mas como toda e qualquer produção de conhecimento, requer o porfazer. Apesar das insuficiências me parece que favoreceu a emergência de novas humanidades e o empenho em seguir um dos princípios básicos do Pensamento Complexo, ou seja, o conhecimento precisa do auto-conhecimento, pois é “tradução e reconstrução mentais” (MORIN, 1995, p. 11).

Referências Bibliográficas CARVALHO, E. de Assis, Polifônicas idéias – Antropologia e universalidade. São Paulo: Imaginário, 1997. MORIN, E., O método I – A natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, s./d. ______. Os meus demônios. Lisboa: Europa-América, 1995. ______. A Religação dos saberes – O desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

CREDENCIAIS DE AUTORIA Maria Aparecida Lopes Nogueira Possui graduação em Psicologia - Institutos Paraibanos de Educação Instituto de Psicologia (1979), mestrado em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (1994), doutorado em Ciências Sociais (área de concentração: Antropologia) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000) e pós-doutorado em Ciências Sociais (área de concentração: Antropologia) pela PUC/SP (2006). Atualmente é professora da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de Antropologia, atuando principalmente 14


nos seguintes temas: novas epistemologias na antropologia, imaginário, complexidade, antropologia das ciências e das técnicas, cultura, saberes e práticas da tradição e ariano suassuna. Contato: Email Acesso - Lattes: http://lattes.cnpq.br/9113655075370877

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ÁFRICA, O SÍTIO ONDE AS UTOPIAS (EDUCACIONAIS) VÃO PARA MORRER? João Figueiredo

De há dois séculos para cá, pelo menos, o continente africano vem consistentemente a afigurar-se à imaginação ocidental como um vasto cemitério de elefantes, em que, seguindo o mítico exemplo desses veneráveis paquidermes, as utopias ocidentais se deslocam uma a uma, em sucessivas vagas, para perecerem no confronto com uma realidade inóspita e implacável. Em si mesma um mito1, a imagem do “cemitério de elefantes” foi propagada ao longo do século XX por peças da cultura popular tão influentes como o primeiro filme não documental filmado em África (Trader Horn de 1931), a série de adaptações da personagem Tarzan ao cinema (desde 1932)2 e finalmente a animação da Walt Disney O Rei Leão (1994). A fixação ocidental com um tal local, tão funesto como a imagem negativa de África que se vai tornando hegemónica desde o século XIX, explica-se pela perpétua atração que a possibilidade de obter lucro fácil exerce sobre os homens: o marfim de centenas de velhos elefantes aguardaria o descobridor de uma tal fabulosa necrópole. Seguindo a analogia, se África passa então a ser entendida como o sítio em que as utopias vão para morrer, é também, curiosamente, ao mesmo tempo imaginada como o local onde o que delas é mais sublime sobra e espera, tal como o marfim dos finados elefantes, pronto a ser colhido pelos exploradores ocidentais. A esperança de África ser um cadinho, onde o mais verdadeiro das construções teóricas ocidentais a ferros se apura, para depois ser extraído e na sua forma depurada aplicado de novo, sem riscos, ao ocidente: tal é a razão de ser da resiliência com que consecutivamente novas utopias exógenas são forçadas ao continente, mesmo que os seus proponentes na sua concretização plena, desde o início, pouca fé tenham. Angola não se destaca desta tendência. Desde as reformas Pombalinas (SANTOS, 2005), passando pelas Liberais (MARQUES, 2006), a colonização “efetiva” e “científica” pós-Conferência de Berlim (SANTOS, 1998, pp. 498-499), até aos 1

Como Peter D. Ward explica em The Call of Distant Mammoths: Why The Ice Age Mammals Disappeared (WARD, 1997) os “cemitérios de elefantes” que de facto existem variam bastante da versão mítica. Estes são apenas locais em que se deu uma extinção em massa de elefantes, quer devido a secas e falta de alimento, quer à predação por animais ou pelo homem, sendo que apenas posteriormente os locais são entendidos como “cemitérios”, e apenas pelos observadores humanos. 2 Para mais informações sobre o impacto cultural destes filmes, consultar A Colony of the Imagination: Vicarious Spectatorship in MGM's Early Tarzan Talkies, de Brady Earnhart (EARNHART, 2007, pp. 341-352).

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projetos utópicos de Norton de Matos (DÁSKALOS, 2008) e às sucessivas utopias em conflito no contexto da Guerra-Fria - magistralmente descritas por Pepetela em A Geração da Utopia (PEPETELA, 1992) -, também este país, aos olhos primeiro das elites metropolitanas, depois internas, parece estar condenado não só a que as construções utópicas falhem, mas também a que continuem a ser sucessivamente, e com o mesmo despejo, empreendidas. Nem sempre, contudo, a atitude cínica descrita no final do parágrafo anterior guia a ação das elites idealistas, internas ou ocidentais. Estas guiam-se por vezes por uma crença aparentemente genuína na possibilidade real de porem em prática as suas construções mentais utópicas, sendo que geralmente quando assim acreditam, a África das suas ponderações se assemelha a uma tabula rasa. Este estatuto de folha de papel em branco, que concederia ao continente africano e seus habitantes uma natureza excecionalmente prometaica, moldável às mãos dos ocidentais, tem origem no Iluminismo Europeu. John Locke (1632-1704) é quem recupera o conceito clássico da tábua rasa (também trabalhado por autores medievais), tornando-o operacional na luta liberal contra os excessos absolutistas, tal como estes haviam sido teoricamente justificados por Thomas Hobbes (1588-1679). Posteriormente, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) critica esta noção de o homem nascer como uma folha em branco (considerando um tal estado como meramente hipotético), postulando, contrariamente a Hobbes, que as características inatas da espécie humana a existir, eram benignas. Os excessos jacobinos criam então as bases para a reação romântica aos princípios filosóficos adotados pela Revolução Francesa de 1789-1799, sendo que a posição de Rousseau passa a ser descartada como ingénua (Voltaire havia-a desde logo criticado, atribuindo a Rosseau a criação do conceito do bom selvagem). A crítica romântica aos excessos Iluministas vai então desaguando nas teorias hoje tidas como pseudocientíficas da poliginia do género humano (CATROGA, 1999), e posteriormente no racismo científico. A noção de Locke de que os indivíduos nascem como uma folha em branco, conjugada com a equação de inspiração hobbesiana dos africanos e demais “selvagens” pré-agrícolas com as crianças, mulheres e doentes-mentais europeus, influência finalmente a ideia de que diferentes raças de homens coexistem ocupando nichos diversos na cadeia da evolução histórica (coexistência temporal de fases assincrónicas do desenvolvimento da espécie

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humana) (CATROGA, 1999, p. 199). Aos africanos, neste esquema geral 3, caberia estarem mais próximos da origem primordial, sendo portanto os exemplares mais genuínos de seres humanos cuja parca profundidade ontológica se assemelha a uma tabula rasa, pronta a ser inscrita, estando todas as possibilidades, portanto, em aberto – e tal, do ponto de vista dos otimistas antropológicos. A par com esta forma de entender os africanos, avança uma conceção do território subsaariano como um vasto sertão desocupado, com uma densidade histórica e populacional equivalente à profundidade ontológica atribuída aos seus indígenas. Os caminhos tradicionais africanos vão sendo ignorados conforme uma rede artificial de administração colonial cria uma malha de ocupação paralela, ignorando as matrizes locais (SANTOS, 1998, p. 498-509). Por outro lado, conforme a Antropologia Social e Cultural se estabelece enquanto disciplina, a idealização da “aldeia africana” como locus privilegiado de trabalho de campo contribui para a consolidação (graças em larga medida a uma compreensão equivocada por parte do público ocidental do “presente etnográfico”4) da imagem de um continente preso no tempo, em que a unidade social escolhida e reificada por razões pragmáticas como objeto de estudo das ciências sociais (a aldeia) se passa a afigurar como a única unidade social existente em África desde tempos imemoriais. Qual é a ressonância que este mito da tabula rasa tem ainda hoje? Continua a África a ser um laboratório onde os projetos utópicos ocidentais são testados, mantendose o tropo do “cemitério de elefantes”? Para o perceber seria necessário atender a como novas utopias ocidentais estão sendo impingidas ao continente, analisando se a imagem de África enquanto folha de papel em branco continua a ser mobilizada na justificação desta imposição. Porém, numa contemporaneidade vazia de utopias políticas e sociais ocidentais de contornos definidos, caídas por desgaste, apenas parece hoje existir o 3

Oliveira Martins, em Elementos de Antropologia, classifica os Germânicos: Ítalo – Celtas como o último ramo da evolução humana, sendo que os indivíduos da “raça” Pápua, Hotentote, Cafre e Negra ocupariam os primeiros quatro ramos, respetivamente (CATROGA, 1999, p. 219). 4 O “presente etnográfico” é um recurso literário que consiste na apresentação dos dados recolhidos aquando o trabalho de campo antropológico numa monografia etnográfica escrita recorrendo principalmente a tempos verbais derivados do Presente. Pina-Cabral defende que esta herança metodológica do passado funcionalista da disciplina da Antropologia apesar de ser hoje muito atacada por pós-modernistas mantém a sua pertinência heurística (PINA-CABRAL, 2000). Segundo este mesmo autor, o recurso literário foi criado por autores que estavam cientes não só da agência histórica das comunidades africanas, como eram acérrimos opositores daqueles que a negavam (PINA-CABRAL, 2000). Pina-Cabral não nega, contudo, que o “presente etnográfico” foi abusivamente interpretado não como um recurso estilístico, mas sim como a prova da imobilidade africana. Tal, no entanto, não por parte dos antropólogos funcionalistas que fundaram as bases teóricas da disciplina antropológica, mas sim pelo público em geral e pelas elites políticas colonialistas (PINA-CABRAL, 2000).

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vácuo criado pela sua ausência. Como analisar, portanto, a sua transferência para África? Tal estudo é possível porque este vazio tende a ser rapidamente ocupado por sonhos tecnocráticos, em que a reforma politica e social estando presente se secundariza ou esconde por detrás do ímpeto para atingir metas e objetivos meramente técnicos. Nasce assim no Ocidente, da ocupação desta lacuna ideológica, uma difusa pseudoutopia tecnocrática, que se apresenta como meta-utopia, tal como esta foi definida por Robert Nozick nos anos setenta (NOZICK, 1974). Hoje em dia, portanto, apenas projetos de criação de meta-utopias parecem ser estendidos a África, tanto nos domínios políticos como educacionais, e é nestes que se deve centrar a análise. Antes de abordar esse tópico será contudo proveitoso analisar, ainda que brevemente, os pressupostos da atual mundivisão tecnocrática.

A(s) Utopia(s) tecnocráticas emergente(s) e sua extensão a África

Devido ao esboroamento das Utopias Ocidentais, a inovação tecnológica passa a configurar-se senão como um fim em si mesma, como meio de atingir uma nova ordem social e económica Utópica, cujos contornos não podem contudo ser ainda descortinados, nem pelos próprios obreiros e proponentes das novidades técnicas, tal devido ao seu suposto caráter emergente, no sentido forte do termo5. Uma vez que um novo sistema complexo esteja completamente operacional, esperam os tecnocratas, do seu funcionamento surgirá uma nova ordem, que se deseja que (este é o principal salto de fé hodierno) seja melhor que a atual. Se a crise das dívidas soberanas forçou os países da Europa do Sul a substituírem a retórica da modernização tecnológica pela do controlo do défice orçamental, tal alteração foi acima de tudo estética: utopias concretas continuam a não ser avançadas, residindo a fé das elites políticas na emergência de uma nova e melhor sociedade uma vez que o novo objetivo tecnocrático do controlo da despesa pública seja atingido. O controlo do défice público (como anteriormente a modernização de infraestruturas) é assim apresentado como uma verdadeira metautopia: é a condição que se entende essencial para que a aguardada emergência de novas ordens utópicas tenha lugar. 5

Em Filosofia existem duas perspetivas do conceito de emergência, uma que pressupõe a existência apenas de emergências fracas, outra de emergências fortes. O que distingue uma da outra é a possibilidade de deduzir as propriedades emergentes atendendo às premissas presentes nos sistemas de onde emergiram. Os defensores de que uma emergência forte é possível postulam que tal reducionismo por vezes é impraticável, sendo que quando os termos “emergentistas” ou “emergentismo” são utilizados, é aos que partilham de esta opinião que estes se referem.

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O mistério, num sentido quasi-religioso, que inspira esta nova mundividência é o da coexistência entre um conhecimento mais aprofundado das bases biológicas e químicas da existência humana e a evidência de uma consciência reflexiva, que não pode (ainda) ser explicada em termos puramente reducionistas6. Esta concomitância (entre sistemas materiais complexos explicáveis pela ciência reducionista e a consciência reflexiva) entroniza um salto qualitativo – similar àquele que os políticos esperam que se dê com o atingir de metas tecnocráticas – como a obsessão científica dominante dos nossos tempos. Por outras palavras, o problema que ficou conhecido como “o problema difícil da consciência”, e que pode ser formulado da seguinte maneira – Why should physical processing give rise to a rich inner life at all?7 – é a questão fundamental que atualmente mais frusta a comunidade científica (CHALMERS, 2010, p.3), sendo que a sua não resolução leva à admissão de que, inexplicavelmente, da interação de vários sistemas complexos uma diferenciada entidade ontológica pode emergir (a consciência), entidade cujas qualidades não podem (ainda) de todo ser previstas atentando meramente nos vários componentes originais desses sistemas complexos (reducionismo). A existência de um “problema difícil da consciência” 8 inspira assim a fé em que processos análogos possam estar em curso nas nossas sociedades complexas, sendo esperado a qualquer momento, portanto, um semelhante salto ontológico: da interação de vários sistemas sociais complexos resultará a emergência de uma nova utopia impossível de prever atendendo apenas a estes, tal como da totalidade física dos nossos corpos (para aqueles que negam o dualismo da matéria) surge uma consciência reflexiva. Assim, se por um lado somos constituídos por um genoma humano, já completamente descodificado, um “conectoma”9 em progressivo mapeamento e toda uma série de sistemas complexos estudados por campos da biologia terminados em oma

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Podendo portanto a emergência de uma consciência reflexiva ser ainda apontada como um exemplo de uma emergência forte. 7 Porque é que processos físicos dão origem a uma vida interior rica, de todo? (CHALMERS, 2010, p. 5). 8 O conceito de the Hard Problem of consciousness é de David Chalmers, que o cunhou para distinguir aqueles problemas cuja resolução se afigura como relativamente fácil (easy problems), do problema difícil citado na nota de rodapé anterior (CHALMERS, 2010, p.4). 9 O “conectoma” é o mapa compreensivo de todas as conceções neuronais de um sistema neuronal. Mais informações consultar: OPEN Connectome Project. 2012. Disponível em: <http://openconnecto.me/mission/> Acesso em: 6 jun. 2012.

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(Omics é o neologismo cunhado em Inglês para os agrupar 10), desde o “proteoma”11 ao “metaboloma”12, por outro, é autoevidente o fenómeno da consciência, que à interação do conjunto de todos eles ainda não foi cientificamente reduzido. O salto de um conjunto de sistemas complexos para uma diferenciada entidade ontológica serve então de grande modelo para os sonhos tecnocráticos que ocupam agora o nicho deixado vago pelas velhas utopias ocidentais. As elites políticas ocidentais podem assim procrastinar a postulação de condições políticas e sociais positivas como o objetivo a atingir, defendendo ao invés que, uma vez que, com a ajuda das novas tecnologias, redes suficientemente complexas estejam em uso, uma nova utopia (não uma distopia apenas por artigo de fé) irá emergir, tal como a consciência humana (ainda misteriosamente) o faz. Concluindo, central nesta weltanschauung é a noção de que um salto qualitativo metaforicamente equivalente ao que se dá entre os vários omas e o Eu reflexivo está prestes a ter lugar na esfera da política e da organização social. Esta nova mundividência, sendo hegemónica e constituindo um ruído de fundo transversal, e por vezes não explicitamente apercebido pelas elites políticas e intelectuais ocidentais, tem como resultado a exultação extática do papel dos inovadores e empreendedores, pelos indivíduos à direita no espectro político, e a fé na capacidade de as redes sociais digitais fomentarem e susterem revoluções, pelos esquerdistas. Contudo, esta divisão é tão óbvia como é ainda possível destrinçar ambos os campos políticos, tarefa que a ausência de utopias positivamente expressas em termos políticos e sociais torna cada vez mais árdua. Estas duas maneiras de articular a mundividência atual num discurso que passa por político, mas que é paradoxalmente vazio de conteúdo político utópico, encontram em África, mais uma vez, terreno fértil para buscar exemplos, inspiração e um locus privilegiado onde traçar em segurança planos de ação, que, falhando, poucas consequências diretas terão sobre a população ocidental. Começando pela crença quase religiosa no poder revolucionário das redes sociais digitais. A “Primavera Árabe”, a despeito do nome pelo qual ficaram conhecidos uma série de acontecimentos históricos do início da segunda década do século XXI, teve o seu início e os seus desenvolvimentos mais significativos em África. Com a imolação 10

Omics é também o título de uma publicação periódica dedicada à Biologia Integrativa, que conta já com 16 volumes e tem contribuído para a fixação do termo. OMICS: A Journal of Integrative Biology. Ann Liebert, Inc, 2012. Disponível em: <http://www.liebertpub.com/OMI> Acesso em: 6 jun. 2012. 11 O mapa compreensivo de todas as proteínas e suas modificações presentes num dado organismo. 12 O mapa compreensivo de todas as moléculas que resultam nos vários processos metabólicos que decorrem ao nível das células, tecidos, órgãos ou organismos.

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de um vendedor de rua tunisino a 17 de Dezembro de 2010, de nome Mohamed Bouazizi, inicia-se na Tunísia a onda de protestos que desencadearia uma série de revoluções, alcançando dois outros países africanos, a Líbia e o Egipto, e um da península arábica, o Iémen, bem como provocando reformas políticas no Reino africano de Marrocos e nos Estados árabes do Bahrain, Jordânia, Kuwait e Omã, manifestações políticas em grande escala na Argélia, Iraque, Líbano e Palestina, e uma guerra civil ainda em curso na Síria (BLIGHT, PULHAM e TORPEY, 2012). De todos estes eventos, seria a Revolução Egípcia de 2011, e a mediática ocupação da Praça Tahrir, que mais impressionaria o público ocidental. Uma frase divulgada no Twitter por um manifestante egípcio reverbera especialmente na comunicação mediática internacional: We use Facebook to schedule the protests, Twitter to coordinate, and YouTube to tell the world13. Rapidamente a Revolução Egípcia ficou conhecida como a “revolução do Facebook” (GICLIO, 2011) ou a “revolta do Twitter”, títulos que herdava dos protestos Moldavos de 2009, da contestação eleitoral Iraniana de 2009-2010, e da Revolução Tunisina de 2010-201114. Tal como nestes primeiros três casos, a identificação no ocidente de uma revolta como “do” Facebook ou “do” Twitter releva as dinâmicas históricas locais para um segundo plano, enfatizando ao invés o suposto papel que as redes sociais digitais de conceção e construção ocidental tiveram na mobilização e propagação dos protestos. O efeito imediato desta valorização do papel das redes sociais digitais é óbvio: as vitórias do povo tunisino, egípcio ou líbio são cooptadas simbolicamente pelos utilizadores ocidentais destas redes, sendo apresentadas em parte como um feito comum. O caminho para a utopia, que os media ocidentais apontaram como estando a ser percorrido nestes locais, passa assim a ter o cunho e a participação ainda que vicária do Ocidente (ao Ocidente devem os Egípcios agradecer a criação de uma meta-utopia). Ora, tal como foi acima descrito, pela natureza emergente da utopia que os tecnocratas ocidentais messianicamente aguardam, é impossível descrever os seus contornos a priori, como tal, estando o processo revolucionário “árabe” em curso, tudo o que restava ao Ocidente era esperar ansiosamente o florescimento da aguardada utopia, apenas reconhecível como tal ex post facto. E então as coisas começaram a correr mal. Das 13

Usamos o Facebook para agendar os protestos, o Twitter para os coordenar, e o YouTube para os mostrar ao mundo (HOWARD, 2011). 14 A Wikipedia mantém mesmo uma “página de desambiguação” dedicada a estas diferentes “revoltas do Twitter”. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Twitter_Revolution> Acesso em: 6 de jun. 2012.

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acusações de violações dos direitos humanos e flagrantes abusos sexuais em plena Praça Tahrir (BUTT, 2011) até aos massacres Líbios (FAHIM e NOSSITER, 2011), África surge mais uma vez aos olhos do Ocidente como o sítio onde as utopias vão para morrer. Claro que esta interpretação simplista apenas resulta, primeiro, da sobrevalorização do papel revolucionário das redes sociais digitais, segundo, do preconceituoso detrimento das dinâmicas históricas e sociais locais (a África é mais uma vez negada, ainda que inconscientemente, a profundidade história e a densidade social). Os movimentos que no Ocidente reclamaram do “povo árabe” a tocha da História, desde os Indignados espanhóis aos ocupantes de Wall Street (THAROOR, 2011), mantiveram a sua fé inabalável no poder revolucionário das redes sociais digitais, enquanto possível matriz complexa de uma utopia emergente, ao paço que com o azedar da situação africana e no médio-oriente as referências diretas a uma inspiração árabe, desde o início tornada explícita, foram sendo descartadas: a “Primavera Árabe”, desiludindo, dá lugar a uma difusa “Primavera Global” (TEIXEIRA, 2012) – apenas a referência à estação do ano, de fortes ressonâncias míticas, se mantém. Tal como quando, desde o Iluminismo, as utopias ocidentais falharam em florescer em África, também agora, o facto de as evidências empíricas que nos chegam desmentirem as bases teóricas das construções mentais que alicerçam as esperanças ocidentais não é entendido como prova de uma falha sistémica, dos paradigmas europeus ou americanos, mas sim como demonstração cabal de um excepcionalismo africano. Este excepcionalismo africano (“em África as coisas correm mal”) permite não só que a crença ocidental na capacidade revolucionária das redes sociais digitais se mantenha, mais ou menos intocada, como que sobre a Egípcia e demais revoluções teçam agora comentários e apurem lições tanto os académicos como as demais elites ocidentais: sim o elefante morreu, resta portanto recuperar as suas valiosas presas. Uma outra destilação da atual weltanschauung tecnocrática é a celebração apolónica da figura do empreendedor ou inovador, enquanto sujeito capaz de fazer emergir do caos dionisíaco da interação dos vários sistemas complexos que percebemos estarem em jogo nas nossas sociedades uma nova ordem, ou utopia, que os demais homens são incapazes ainda de vislumbrar. O que distingue a crença no poder revolucionário das redes sociais digitais, do uso das quais supostamente emergirá uma nova utopia, do culto do empreendedor, capaz de isoladamente ser o agente dessa emergência, parece ser um desacordo fundamental quanto à natureza da agência 23


histórica: a primeira convicção pressupõe que esta reside em coletivos, e portanto apela especialmente a um público de esquerda; a segunda admite que indivíduos a possam ter, sendo portanto atrativa àqueles que se situam mais à direita no espectro político. Claro que ambas as convicções não são mutuamente exclusivas. De facto, os deserdados do materialismo histórico parecem ter encontrado na exaltação do poder revolucionário das redes sociais digitais uma tábua de salvação que lhes permite manter a fé na agência histórica dos coletivos, ao mesmo tempo que os escusa de definir positivamente uma utopia a almejar15. Esta evolução tem no conceito de “rizoma”, avançado por Félix Guattari e Gilles Deleuze enquanto alternativa a um sistema hierárquico, as suas bases teóricas (uma suposta sociedade “rizomática” é contudo mais meta-utópica do que propriamente utópica) (GUATTARI e DELEUZE, 1980). Por outro lado, os liberais individualistas encontraram no culto da figura do empreendedor uma forma de reafirmarem a sua convicção de que os indivíduos conseguem enfrentar o caos primordial dos sistemas complexos que constituem a realidade social, e criar uma nova ordem apolónica, sendo portanto agentes históricos (EXPRESSO, 2012). No entanto, ambas as posições têm em comum o facto de não apontarem como objetivo uma visão concreta de futuro. Este não avanço de uma utopia palpável permite a promiscuidade entre crentes em ambas as convicções, esboroando ainda mais a progressivamente arcaica divisão entre a esquerda e a direita. Um bom exemplo de como este culto do empreendedor por vezes se entrelaça com a crença no poder revolucionário das redes sociais digitais, e de como ambas as convicções se relacionam com os mitos acerca de África que desde o Iluminismo se tornaram hegemónicos no Ocidente, pode ser observado atendendo ao discurso avançado pelas companhias que hoje se propõem criar uma matternet. O conceito de matternet é fácil de explicar: tal como a internet possibilita a troca em rede de dados digitais, a matternet seria uma rede de distribuição de bens físicos inspirada na primeira (BOYD, 2012). O primeiro empreendedor a se tornar famoso graças a uma proposta 15

O melhor exemplo desta postura é sem dúvida o expresso na proposta de uma sociologia das emergências por parte de Boaventura Sousa Santos, enquanto disciplina capaz de criar, em conjunto com o que o autor apelida uma sociologia da ausência as bases de uma meta-utopia (SOUSA SANTOS, 2002). Sousa Santos inspira-se numa obra de 1998 de Immanuel Wallerstein, em que o último propõe a disciplina de Utopistics, como base teórica da construção de futuras meta-utopias emergentistas (WALLERSTEIN, 1998). No seguinte trecho, Boaventura Sousa Santos equaciona o movimento dos indignados com a emergência de uma possível nova utopia, num contexto meta-utopico: SOUSA SANTOS, Boaventura. Boaventura Sousa Santos diz que o Movimento dos "Indignados" significa o aparecimento de um novo discurso político global. RTP Informação, 2011. Disponível em: <http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=489171&tm=9&layout=122&visual=61> Acesso em: 7 jun. 2012.

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concreta para a instalação de uma matternet, cunhando o termo que agora define o conceito, foi Andreas Raptopoulos (BOYD, 2012). Raptopoulos, então aluno da Singularity University, conjuntamente com o seu grupo de trabalho desenvolveu a sua ideia enquanto tentava conceptualizar uma solução para o problema da pobreza no terceiro mundo (BOYD, 2012). A Singularity University, criada pelo fundador da X Prize Foundation, Peter Diamandis, e o célebre inventor e trans-humanista Ray Kurzweil, promove precisamente este tipo de abordagem a problemas mundiais complexos, assumindo o ideal de que indivíduos empreendedores podem, avançando abordagens radicalmente inovadoras, de um só golpe os resolver (BOYD, 2012). A solução avançada por Andreas Raptopoulos para os problemas africanos, porque foi África que a sua equipa escolheu para lançar o projeto, é a criação de uma rede de pequenos helicópteros não tripulados e completamente automatizados, que recarregariam as suas baterias com energia solar fornecida em postos de lançamento situados a 10 km de distância entre si, sendo capazes, numa primeira fase, de carregar cerca de 2 kg de carga (MATTERNET, 2012). A ideia pode parecer excessivamente futurista, mas deste grupo que se reuniu na Singularity University16 já resultou a criação de duas empresas, a Matternet de Raptopoulos e uma concorrente denominada aria, que vêm obtendo não só a atenção dos meios de comunicação como de investidores de Silicon Valley (BOYD, 2012). No entanto, para além da estética futurista, e de um vago desejo de erradicar uma bastante idealizada “pobreza africana”, quais são as proposições utópicas deste projeto? Mint Wongviriyawong, um dos fundadores da empresa aria fornece uma possível resposta: Let the local people figure out how best to use it, instead of us delivering a solution to them17. Por outras palavras, os empreendedores que o Ocidente acredita serem capazes de resolver os problemas africanos apenas se propõem criar uma rede logística, dessa rede meta-utópica a utopia a seu tempo emergirá. Mas porquê a escolha de África? Atendendo quer ao vídeo promocional da companhia Matternet, quer à apresentação que Andreas Raptopoulos deu no popular ciclo de palestras solve for (x)18, depressa se percebe o motivo da escolha (MATTERNET, 2012). O continente africano é apresentado como parado no tempo, as suas estradas sendo arcaicas e em rápida degradação, desprovido de vias de comunicação e apartado do resto do mundo 16

O seu website pode ser encontrado aqui: http://singularityu.org/ Acesso em: 7 jun. 2012. Deixemos os locais descobrirem como melhor a usar, em vez de lhes entregarmos uma solução. (BOYD, 2012). 18 https://www.solveforx.com/ Acesso em: 7 jun. 2012. 17

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globalizado. A “aldeia africana”, enquanto idealização saída diretamente das etnografias coloniais, é tida como o modelo predominante de ocupação territorial. A esta tabula rasa logística é associado um vazio legal que cria as condições ideais para a ação dos empreendedores ocidentais (MATTERNET, 2012). Considerações acerca do tráfico de substâncias

ilegais,

armas,

contrabando,

fuga

aos

impostos,

violação

de

regulamentações de segurança e da soberania Estatal, bem como da destruição de inúmeros pequenos negócios locais que assentam no transporte, distribuição e revenda de bens - todas estas são minimizadas com o recurso a uma imagem preconceituosa do continente africano: este é tido como uma folha em branco. Por outro lado, uma história de sucesso leva a que o interesse de Silicon Valley se fixe em África: a adoção em massa de telefones móveis, quando o continente nunca chegou a ter uma rede significativa de telefones fixos proporcionou um “salto tecnológico” que é muito apetecível repetir (BOYD, 2012). O “conectivismo”, uma teoria emergentista da educação

A atual weltanschauung tecnocrática, como não poderia deixar de ser, tem vindo a ter um impacto profundo nas teorias da educação. Da interação das teorias pedagógicas construtivistas com esta mundivisão caracterizada pela fé no potencial revolucionário das redes sociais, e na capacidade apolónica dos empreendedores, resultou o paradigma “conectivista”, que se tem vindo a sedimentar ao longo da última década como superação do construtivismo (KOP e HILL, 2008). Stephen Downes começou por propor o “conectivismo” como uma teoria da educação em desenvolvimento19 (DOWNES, 2007). Ao contrário de uma teoria da educação já estabelecida, uma teoria em desenvolvimento não necessita de contar com bases empíricas sólidas (resultado de estudos científicos), nem de hipóteses formais com uma rígida lógica interna (KOP e HILL, 2008). O seu papel, nesta primeira fase, é o de laboratório de novas ideias, que se tornam necessárias face a mudanças abruptas no contexto educativo, neste caso proporcionadas pelos avanços recentes nas tecnologias da informação. George Siemens, por sua vez, vem avançando um programa “conectivista” mais robusto, lançando as bases para o teste empírico das premissas deste

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A distinção entre uma “teoria da educação” e uma “teoria da educação em desenvolvimento” é trabalhada por Kop e Hill com base na obra de Miller, Theories of developmental psychology (1993) (KOP e HILL, 2008, p. 3-4).

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paradigma, com a clara pretensão de proporcionar o seu amadurecimento numa teoria da educação (KOP e HILL, 2008; SIEMENS, 2006). Nesta fase delicada de validação paradigmática, o terceiro mundo, e África em particular, surge mais uma vez como um possível laboratório onde testar a nova teoria, de uma forma em que o possível impacto negativo de um seu fracasso seja mínimo para o Ocidente. No cerne teórico do “conectivismo” proposto por Downes está uma conceção “emergentista” do conhecimento (DOWNES, 2007). De acordo com esta teoria epistemológica, o saber trata-se de um padrão reconhecível que emerge da interação em rede de uma série de “nós” ou “nódulos” - eventos neuronais (do ponto de vista do sujeito), ou comportamentais (do ponto de vista de um observador) - sendo na sua essência o resultado de processos sub-simbólicos que se postula terem lugar no interior dos nossos cérebros (DOWNES, 2007; KOP e HILL, 2008). Seguindo estas premissas, resulta que o papel do ensino é estimular a criação e a maximização da eficácia destas redes, mas não só ao nível individual (DOWNES, 2007). De facto, adotando a máxima hermética de que o macrocosmos reflete o microcosmo, este micro-modelo “emergentista” serve de base para entender a forma como o conhecimento se transmite entre “nós” ou “nódulos” nas sociedades humanas (macro-modelo) (DOWNES, 2007). “Nós” estes que se admite serem dotados de agência, mas não necessariamente de natureza humana. O macro-modelo “emergentista” pressupõe portanto que o conhecimento a esta escala resulta da interação entre vários “nódulos” que funcionam como repositórios de informação: seres humanos (professores e alunos; especialistas e leigos; mas também uma massa não hierarquizada de indivíduos – os utilizadores da Wikipedia, por exemplo) ou objetos inanimados de cultura material (livros, discos rígidos de computadores, coleções de Museus), que são entendidos como dotados de agência, num sentido sociológico (KOP e HILL, 2008). A este nível macroscópico, o fim do ensino é apresentado como sendo o de dotar o individuo de redes eficazes de obtenção de informação, ao mesmo tempo que o seu papel de “nódulo” ativo é estimulado (deve não só “guardar” como produzir “nova” informação para alimentar o coletivo) (KOP e HILL, 2008). O postulado de que the capacity to know is more critical than what is actually known20 resume perfeitamente o paradigma conectivista, se for tido em conta que a aptidão aqui aludida não é uma característica inata, mas sim a capacidade de utilizar os

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A capacidade de saber é mais crítica do que saber de facto (SIEMENS, 2008 apud KOP e HILL, 2008)

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atuais meios informáticos para obter informação, que assim não tem de ser memorizada pelos indivíduos: the learning is the network21. A posição dos “conectivistas” não se trata portanto de um posicionamento na disputa do peso relativo do meio e da hereditariedade na determinação das capacidades cognitivas individuais dos seres humanos (o debate nature vs. nurture), mas sim de uma resposta pragmática a eventos recentes na esfera tecnológica: a net 2.0 com os seus fóruns, wikis e redes sociais digitais. Na tentativa de testar empiricamente os postulados teóricos do “conectivismo”, avançando-o de uma teoria em desenvolvimento para um paradigma bona fide, as propostas de George Siemens resultam no empreendimento de experiências concretas (KOP e HILL, 2008). Todas estas se centram, contudo, nos postulados pedagógicos do macro-modelo “emergentista”, uma vez que devido à barreira ainda intransponível do “problema difícil da consciência” as hipóteses avançadas pelo micro-modelo não podem ainda ser cientificamente testadas. Antes, porém, de analisar as propostas “conectivistas” para revolucionar o ensino em África, convém perceber como é que as utopias sugeridas pelo anterior modelo construtivista se deram, uma vez que as elites Ocidentais as tentaram implantar no continente. O exemplo mais mediático a ter em conta é sem dúvida o projeto de Nicholas Negroponte, One Laptop Per Child22 (OLPC). Com o anúncio em 2006, no Fórum Económico de Davos, de que as Nações Unidas se dispunham a apoiar esta iniciativa, o OLPC depressa ganhou reconhecimento internacional, criando grandes expectativas (ASSOCIATED PRESS, 2006). No cerne deste empreendimento social, estava a ideia de criar um portátil barato (o preço de 100 USD‟s era a meta apontada, contudo a barreira dos 200 USD‟s nunca foi ultrapassada), resistente, capaz de ser encomendado pelos diversos ministérios da educação do mundo, e depois distribuído gratuitamente às populações estudantis (SHAIKH, 2009). Faziam parte do conceito inicial metas técnicas bastante exigentes, como a de os portáteis serem recarregáveis através do esforço mecânico dos alunos, que entretanto foram sendo descartadas (WATTERS, 2012). Para além da distribuição de hardware, a acompanhar cada um dos portáteis estava software construtivista, que permitiria, segundo a visão de Negroponte, que os seus utilizadores sem a mediação de nenhum especialista adulto fossem por si, e em estreita colaboração com a máquina, construindo o seu próprio conhecimento. Apesar das críticas que desde logo se fizeram sentir (acima de tudo quanto à 21 22

A aprendizagem é a rede (DOWNES, 2007). Um portátil por criança.

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durabilidade/design do hardware e aos métodos de distribuição adotados) os computadores do OLPC foram distribuídos, por vezes maciçamente, em alguns países Africanos: 10.000 no Gana (2008), 5.000 na Serra Leoa (2009), 120.000 no Ruanda (2009), 5.000 na Etiópia (2009)23. Uma das críticas que desde o início foi feita ao OLPC foi a de que nenhuma formação era dada aos professores locais, sendo que estes eram, mais ou menos conspicuamente, completamente excluídos da utopia educacional que a organização de Negroponte estava a tentar implementar (VOTA, 2010; VENKATRAMAN, 2011). De facto, nas imagens de África mobilizadas para “vender” o projeto, é mais uma vez a “aldeia africana”, destituída de tudo, que é escolhida. A composição deste quadro negro, pintado aos dadores internacionais, passava pela afirmação da inexistência de professores com formação científica profissional, ou, num sentido mais lato, de tutores com conhecimentos ad hoc. Assim, quer a ideia do continente africano como uma tabula rasa, quer o desejo de proporcionar um “salto tecnológico” equivalente ao que se deu com a instalação de redes móveis de comunicação, entram em jogo na justificação e implementação do OLPC (WATTERS, 2012). Claro que o que de mais grave está em causa na base teórica deste projeto, mais do que a mobilização de estereótipos sobre África, é a equação entre professores humanos e uma máquina, tidos como equivalentes. Conforme a iniciativa de Negroponte foi ganhando destaque mediático, diversas outras iniciativas, com uma diferente base tecnológica, mas obedecendo às mesmas teorias educacionais, foram sendo lançadas, quer com base em Kindles, quer em tablets, ou em outros modelos de dispositivos informáticos (WATTERS, 2012). Em 2012, feitos os primeiros balanços conclusivos, os principais analistas parecem estar de acordo: o OLPC foi um fracasso completo, e embaraçante (SHAIKH, 2009; WATTERS, 2012). O coup de grace aos sonhos mais radicais dos construtivistas por detrás do projeto OLPC veio, no entanto, do Peru, nesse mesmo ano, forçando a organização sem fins lucrativos a conceder a derrota, invocando, contudo, salvaguardas: a culpa do falhanço da utopia ocidental em florescer era dos professores locais (PATZER, 2010). O Terceiro Mundo em geral, neste caso específico o Peru, tal como África, parece então mais uma vez estar sujeito a um excepcionalismo (é o sítio onde as coisas correm mal), que permite às teorias Ocidentais escaparem mais ou menos ilesas à

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Estes dados relativos ao projecto OLPC foram retirados da página da Wikipedia “One Laptop per Child”, disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/One_Laptop_per_Child#cite_note-3> Acesso em: 7 jun. 2012.

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sua falsificação por dados empíricos. Em África também este “elefante” morreu, mas qual foi o “marfim” que as elites ocidentais se apressaram a colher? A lição mais óbvia a apurar do fracasso deste empreendimento seria a de que a posição dos professores locais é central no processo de aprendizagem, e que sem a sua intervenção a transmissão de conhecimento não pode de forma efetiva ter lugar (WATTERS, 2012). Contudo, tal não foi o caso (PATZER, 2010, WATTERS, 2012). Dos erros técnicos apurados no teste do hardware e software das máquinas resultaram novas versões destas, tecnocraticamente apurou-se o que nas máquinas funcionava, e então, com a promessa de um novo paradigma (o “conectivismo”), prepara-se um novo ciclo de implementação de projetos utópicos, no continente africano, bem como no restante terceiro mundo. Se a um nível teórico são Stephen Downes e George Siemens que podem ser apontados como os gurus do “conectivismo”, é porém na obra de Sugata Mitra que residem atualmente as esperanças não só de superar o fiasco que foi o OLPC, como de comprovar a validade empírica do macro-modelo “conectivista” (VENKATRAMAN, 2011, WATTERS, 2012). Mitra tornou-se entretanto uma verdadeira estrela pop dos teóricos da educação quando um romance (Q & A, de 2005) inspirado no seu trabalho foi adotado para o cinema por Danny Boyle, tendo a película arrecadado oito prémios Oscar, inclusive o da categoria de melhor filme (REUTERS, 2009). Quem Quer Ser um Milionário? (2008), originalmente Slumdog Millionaire, popularizou assim as teorias pedagógicas de Sugata Mitra, tendo contribuído largamente para que os métodos resultantes do seu projeto Hole in the Wall se expandissem muito para além da India (REUTERS, 2009). Sugata, atualmente professor na Universidade de Newcastle, conta com um currículo que apela especialmente aos “conectivistas”: não só é especialista em tecnologias da informação e computação em rede, como tem um doutoramento em física, tendo para a sua obtenção trabalhado com semicondutores orgânicos, estabelecendo assim na sua carreira ligações entre a física de partículas, a neurologia e finalmente a educação24. Para os defensores de um novo paradigma na educação, em que o modelo em rede utilizado na cibernética fornece a ferramenta heurística não só para perceber o que se passa dentro dos nossos cérebros, como para entender como as sociedades educam os seus novos membros, uma figura como Sugata Mitra parece providencial.

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O seu currículo pode ser acedido em: <http://www.ncl.ac.uk/ecls/staff/profile/sugata.mitra> Acesso em: 7 jun. 2012.

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O projeto Hole in the Wall consistiu, numa fase piloto (1999), na instalação de um quiosque de acesso gratuito à internet numa zona pobre de Kalkaji, Deli (MITRA, 2010b). Segundo Sugata, alguns meses após a instalação deste primeiro quiosque os níveis de literacia informática, uso de inglês como segunda língua, matemática e uma série de outras competências haviam subido significativamente para as crianças que tinham acesso a este terminal (MITRA, 2010b). Esta constatação, de acordo com Sugata Mitra, deu origem ao seu método de Minimally invasive education25, segundo o próprio de aplicação universal, também conhecido como Method ELSE26, ou por extenso Methods for Emergent Learning Systems in Education27 (MITRA, 2010a). A inspiração do método ELSE foi derivada do princípio da auto-organização, que Sugata diz ter repescado da Física, sendo que por analogia o conhecimento é entendido como um padrão de comportamentos que é uma propriedade emergente da interação de vários sistemas complexos (MITRA, 2010a). Assim, a proposta de Sugata adequa-se perfeitamente à weltanschauung tecnocrática atual. Concretamente, o método ELSE pressupõe a instalação em locais públicos de salas de acesso a computadores ligados à internet, sendo que cada um destes deve ser utilizado por grupos de quatro a seis crianças, mediadas por um adulto sem formação, que apenas deve assegurar que conteúdo impróprio não é acedido (pornografia), ao mesmo tempo que distribui elogios a fim de motivar as crianças (MITRA, 2010a; 2010b). A presença de um professor não só é desencorajada, em detrimento da de um not knowledgeable mediator28 (que pode ser virtual), como quando tolerada se deve restringir à tomada de notas sobre o comportamento dos alunos, e nunca a um papel de intervenção direta na aprendizagem (MITRA, 2010a; 2010b). Aos professores caberia, segundo Sugata, fazerem perguntas ao início das sessões em que as crianças eram deixadas sozinhas perante as máquinas, ou traçar programas mínimos para a ocupação deste tempo, como estabelecer a obrigatoriedade de observar pelo menos um vídeo inspirador (as conferências TED são apontadas como exemplo) (MITRA, 2010a). O método ELSE cruza portanto o mito do potencial revolucionário das redes sociais digitais, com o mito do empreendedor (reforçado pelo culto da figura apolónica do protagonista de Slumdog Millionaire) que se autoeduca. A própria referência às conferências TED, nas quais o professor Sugata participou (MITRA, 2010b), confirma a 25

Educação minimamente invasiva. Método ELSE. 27 Métodos para a criação de sistemas de aprendizagem emergente em Educação. 28 Mediador não formado. 26

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tendência de louvar as figuras apolónicas que regularmente aí se apresentam como verdadeiros empreendedores da obtenção de saber, detentores de uma parcela do conhecimento que se torna fulanizado. Segundo a agência de notícias Reuters, em 2009 cerca de 300.000 crianças haviam já sido sido expostas ao método ELSE, sendo que nesse mesmo ano 200 novos postos de minimally invasive education estavam a ser projetados, alguns a serem instalados em países africanos (Uganda, Ruanda, Moçambique, Zâmbia, Swazilândia, Botswana e Nigéria) (REUTERS, 2009). Com base num caso anedótico (tornado famoso por Hollywood), e numa série de analogias que se fundamentam em última instância num pensamento mágico (o microcosmos estudado pela Física proporciona ferramentas heurísticas que podem ser utilizadas para entender o funcionamento cerebral, a emergência da consciência e a forma como a educação se processa, a um nível macroscópico) Africa vai ser mais uma vez exposta à tentativa de implementação de uma utopia exógena: desta feita a educação não invasiva. Devido às semelhanças entre ambos os projetos, é sem surpresa que se verifica que Nicholas Negroponte apoia publicamente a iniciativa de Sugata Mitra (VENKATRAMAN, 2011). De facto, a abordagem deste último apenas difere da do primeiro na enfâse posta na ligação do hardware distribuído à internet. A grande revolução “conectivista” passa portanto não por uma verdadeira mudança de paradigma, mas pela reciclagem dos métodos construtivistas: à distribuição de máquinas é somada apenas a possibilidade de estas se poderem ligar em rede. Qual é o resultado que se pode esperar desta nova vaga utópica? Apesar de estar aberto à possibilidade de surpresas positivas, a minha experiência enquanto observador do ensino superior angolano, numa altura em que computadores com ligação à internet já eram dispensados livremente pelas universidades aos alunos (ainda que em condições não ótimas), leva-me a ter bastantes reservas. Com base nesta experiência, contraargumentos à tese “conectivista” podem ser traçados, para além daqueles já apontados, que se basearam até aqui essencialmente na crítica às parcas bases teóricas do movimento. Tendo em conta quer a situação atual do ensino angolano e as aspirações autóctones de reforma, quer os problemas já levantados pela relativa democratização das tecnologias digitais (o acesso facilitado à internet), é possível apontar como a tecnologia tem falhado em melhorar a situação, questionando se uma aposta em força nos métodos pedagógicos do “conectivismo” será de todo sensata.

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Os principais constrangimentos do ensino em Angola foram analisados em 2005 por um grupo de especialistas29 reunidos pela Secretaria de Estado do Ensino Superior, tendo sido produzido então um documento intitulado Linhas Mestras, que visava traçar uma estratégia não só para a reforma do Ensino Superior, como igualmente lidar com os problemas presentes nos níveis anteriores de ensino, para que estes deixassem de constituir um fator limitante quer ao acesso às Universidades, quer ao aproveitamento escolar dos seus alunos. Tendo já anteriormente analisado este documento, e a forma como as aspirações autóctones nele expressas chocam com as diretivas de ajuda externa dos países da União Europeia (FIGUEIREDO, 2010), resta apresentar um brevíssimo resumo das principais dificuldades Angolanas. A maior, sem dúvida, é a alta taxa de iliteracia entre a população (82 por cento no caso das mulheres, 54 por cento no caso dos homens), a que se soma a falta crónica de professores qualificados e a insuficiência de horas de aulas por aluno (250 anuais, 650 horas abaixo do benchmark europeu) (FIGUEIREDO, 2010). Face a esta realidade, o Grupo Técnico que traçou as Linhas Mestras apelava a que os países que disponibilizavam ajuda a Angola o fizessem de acordo com a visão Angolana expressa no documento, essencialmente através de apoios à formação de professores (FIGUEIREDO, 2010). A ajuda internacional na área do ensino não se pauta, porém, apenas pela resposta desinteressada às aspirações locais. Como fica claro ao longo deste ensaio, pelo contrário, os apoios internacionais são antes tidos como oportunidades de os Estados que os proporcionam testarem no terreno propostas utópicas exógenas a África, sendo que seguindo esta lógica são de momento as propostas “conectivistas” que se encontram na calha. Apesar, portanto, da subalternização do papel dos professores no ensino que é inerente aos projetos “conectivistas” como o de Sugata Mitra se encontrar nos antípodas dos ideais expressos nas Linhas Mestras, existe um sério risco de ser esta a abordagem financiada por dadores internacionais, como receita para tentar remediar as péssimas estatísticas angolanas (tal como os projetos construtivistas ao estilo do OLPC o foram anteriormente, noutros países da África subsaariana). Um primeiro problema que resulta do esboroamento da autoridade científica dos professores, bem como da sua marginalização no processo de transmissão de conhecimento, inerente aos projetos “conectivistas”, é o de que o espaço assim deixado 29

Grupo Técnico para a Implementação das Linhas Mestras Para a Melhoria da Gestão do Subsistema do Ensino Superior.

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vago tende a ser ocupado por organizações exteriores à escola, com uma agenda própria e incompatível com a do ensino sério. Um exemplo concreto pode ser apontado, como caso de estudo que ajuda a especular sobre como seria se Angola resolvesse os seus desafios educativos com a adoção oficial das propostas “conectivistas”. Uma dificuldade específica que observei existir no terreno, foi a seguinte: como argumentar contra o Criacionismo, se a teoria neodarwiniana da evolução é apresentada em inúmeros websites como apenas mais uma entre possíveis outras, sendo que várias modalidades do Criacionismo têm a “vantagem” de serem apregoadas por líderes religiosos influentes, que não se escusavam de usar e abusar dessa influência 30? Websites como a Wikipedia oferecem verdadeiros artigos sombra, em que posições pseudocientíficas conseguem sobreviver às edições frequentes que funcionam como garante da neutralidade das suas entradas enciclopédicas, sendo que a natureza não hierárquica do espaço (em rede) lhes proporciona o mesmo nível de valor epistemológico aos olhos de um público não educado. Assim, por exemplo, a par do artigo sobre criacionismo, pouco polémico na sua admissão das bases pseudocientíficas desta teoria, pode ser encontrado um intitulado Criacionismo científico, onde se podem ler as seguintes afirmações: Podemos ver um exemplo de proposição Criacionista científica, na qual o Criacionista Henry M. Morris estabelece o seguinte modelo de afirmações para a teoria Criacionista científica: 1.

O mundo, tal como ele existe agora, foi criado do nada por ação divina.

2.

Essa criação aconteceu menos de dez mil anos atrás.

3.

Os seres antigos eram superiores (a nível molecular) aos seres atuais.

4.

Não aconteceu qualquer desenvolvimento subseqüente, mas uma degradação

contínua. 5.

A teoria da evolução é falsa, porque a mutação e a seleção natural não podem

explicar o suposto desenvolvimento subseqüente de todos os seres vivos. 6.

Podem ocorrer modificações limitadas dentro de uma espécie, mas todas as

espécies (atuais e extintas) foram criadas por DEUS no início: não existe a suposta “especiação” afirmada pela teoria da evolução. 7.

Não existe “antepassado comum” compartilhado por espécies distintas (por ex.,

os seres humanos e outros primatas).

30

Não podendo contar com dados quantitativos, a dimensão do problema apenas se me revelou como preocupante após conversas informais com professores de Antropologia e Biologia, bem como com diversos alunos universitários.

34


8.

Os eventos catastróficos e não os alegados processos geomorfológicos da

“ciência” da Geologia, foram a causa das características geológicas da Terra. 9.

O evento geológico mais importante na história foi o grande dilúvio descrito no

Gênese, que explica, entre outras coisas, a presença de fósseis de espécies extintas em camadas geológicas distintas. Este tipo de Criacionismo pode ser chamado de ciência em decorrência de se formular sobre uma hipótese empírica e falsificável (WIKIPEDIA, 2012).

Ainda mais grave, na secção de discussão deste artigo, dois websites são apontados como exemplares: o da Sociedade Criacionista Brasileira31, e um intitulado Universo Criacionista32 (WIKIPEDIA, 2012). Este ensaio não é, contudo, uma análise dos deméritos relativos da Wikipedia, e o exemplo da dificuldade concreta de ensinar o neodarwinismo num ambiente “conectivista” apenas é apontado como exemplo, inúmeros outros o poderiam ser. A crítica que desta observação resulta aos paradigmas “conectivistas” é então a seguinte: contrariamente ao que Sugata Mitra prevê, a exposição à internet combinada com a subalternização do papel pedagógico e autoridade científica dos professores não resulta na emergência de um pensamento crítico apurado nos alunos, desenvolvido, pelo menos, até ao ponto de lhes permitir destrinçar a informação científica fidedigna da propaganda on-line. Tal, porque estes se encontram inseridos numa sociedade que não é uma tabula rasa. Se os professores não tomam uma posição de autoridade, outras figuras a tomam, porque contrariamente ao que o mito da “aldeia africana” pressupõe, tais figuras alternativas existem e abundam. A construção teórica de Sugata baseia-se numa idealização da figura do órfão de Nova Deli, um “bom selvagem” que estando “livre” da interação com outros adultos, e apenas inserido num grupo de pares igualmente prometaico, constituiria uma folha em branco, que o conhecimento extraído da internet pode aos poucos preencher. Este modelo pressupõe que estando os professores ausentes, a fim de não influenciarem tendenciosamente a aprendizagem das crianças, estas estão verdadeiramente sozinhas frente às máquinas, pesando pontual e neutralmente a validade de cada parcela do saber que delas absorvem. Ora, o que a minha experiência em Angola parece indicar é que tal visão é tragicamente ingénua. Não contando com a direção de professores nas suas explorações on-line, os alunos passam a valer-se da orientação prontamente oferecida 31 32

http://www.scb.org.br/ Acesso em: 7 jun. 2012. http://www.universocriacionista.com.br/ Acesso em: 7 jun. 2012.

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por líderes religiosos ou políticos, e visto que a internet é um vasto repositório de todo o tipo de pontos de vista, rapidamente são conduzidos para os recantos desta que confirmam a propaganda política e religiosa a que eram expostos off-line. Obviamente que o contraditório está sempre disponível on-line, mas não existindo uma figura que para ele aponte e cuja validade sublinhe, a simples curiosidade intelectual não basta para quebrar o ciclo vicioso que se estabelece. Assim, das práticas que os “conectivistas” enaltecem (o acesso livre a computadores e à internet) não parece dar-se a emergência de uma nova utopia, mas, contrariamente, a reemergência de estruturas subalternizantes anteriormente presentes na sociedade. A educação perde então o seu carácter liberal, emancipatório, funcionando antes como uma via para a ghettoização progressiva dos estudantes. Esta ghettoização é ainda mais acentuada quando algumas instituições passam a adotar uma lógica de mercado extrema, dispensando títulos académicos a alunos de acordo com o seu status económico (possibilidade de na verdade comprarem com dinheiro os seus diplomas), ou político e social (possibilidade de pagarem com influência os títulos académicos) - críticas bem presentes no documento Linhas Mestras (FIGUEIREDO, 2010). Esta última tendência não é diretamente promovida pela adoção empírica dos métodos “conectivistas”, mas é facilitada pelo clima de relativismo epistemológico extremo que daí resulta, sendo que a autoridade científica e pedagógica dos professores, uma vez posta em causa, deixa de poder constituir um travão a este tipo de práticas abusivas.

Conclusão Será a ghettoização um resultado lógico das premissas “conectivistas”? Tal questão merece, sem dúvida, uma reflexão mais aprofundada do que a que é possível neste ensaio. Com certeza, porém, pode-se constatar que programas de ajuda internacional baseados nas premissas construtivistas mais radicais, como o OLPC, ou nas ainda vagas propostas pedagógicas de inspiração “conectivista”, não são uma resposta direta às aspirações de países como Angola, tal como estas são articuladas em documentos oficiais de produção endógena. Assim, parece que mais uma vez, desta feita no âmbito educacional, utopias exógenas estão a ser testadas no continente. No processo da sua introdução, mitos sobre África são infelizmente propagados. O principal continua a ser o da tabula rasa. 36


No Ocidente seria impensável propor, para já, que máquinas substituíssem os professores, a custo formados e posteriormente avaliados por ministérios da educação públicos. Tal implicaria não só a destruição de postos de trabalho e a alienação de inúmeros profissionais que apostaram a sua vida numa carreira no ensino, como a destruição de um dos garantes da qualidade da educação nas democracias, a autonomia pedagógica dos docentes. De facto, a perceção é de que a Ocidente, se a tarefa de educar fosse abandonada às máquinas (através do recurso a software construtivista ou ao acesso à internet) valores como a capacidade de exercer pensamento crítico seriam irremediavelmente perdidos face ao assalto do corporate marketing. Porque é que então, iniciativas como a OLPC e as baseadas na Minimally invasive education de Sugata Mitra são entendidas como eticamente viáveis? Porque para as justificar África (e o terceiro mundo em geral) é apresentada como o sítio onde não existem professores, onde é quase impossível formá-los, e onde bons selvagens de profundidade ontológica reduzida se movem livremente, não constrangidos por complexas teias sociais (a “aldeia africana”). Onde se acredita que nada existe, tudo é tido como um acréscimo: esta é a justificação dada aquando do fracasso de inúmeros projetos de ajuda internacional bemintencionada. É interessante notar, porém, que a nova vaga de projetos utópicos que estão a ser testados em África são apresentados pelos seus autores como meta-utópicos. Da leitura das Linhas Mestras traçadas em Angola resulta a noção de que uma clara Utopia é almejada, no entanto parece que o Ocidente já não se encontra disponível para ajudar a promover o alcance de Utopias concretas. A atual weltanschauung tecnocrática favorece ao invés a procura de meta-Utopias, que se materializam na criação de sistemas complexos dos quais se aguardam a emergência de estados Utópicos apenas reconhecíveis ex post facto. O exemplo concreto escolhido para especular sobre os efeitos de uma adoção oficial em Angola das teorias “conectivistas” ilustra que do acesso livre à internet, muitas vezes apontado como metonímia da inserção de África num sistema complexo global, pode emergir não a consolidação de um conhecimento emancipatório, mas sim a perpetuação de teias de influência subalternizantes, que deveriam ser contrabalançadas pela Escola. Apenas a aceitação ingénua de que estas teias são previamente inexistentes (mito da tabula rasa), permite que a sua ressurgência num ambiente de relativismo cultural extremo como o proposto pelo “conectivismo” (organização em rede, sem a legitimação de hierarquias marcadas entre professores e alunos, e entre o saber 37


científico dos professores e o senso comum) seja uma surpresa. Um cínico poderia mesmo propor que nem os defensores das propostas “conectivistas” esperam um resultado que não este. África, de acordo com esta perspetiva, seria mais uma vez como que um “cemitério de elefantes”: tal como do fracasso do OLPC a empresa que produz os equipamentos obteve feedback para construir melhores máquinas, dos falhanço dos programas pedagógicos “conectivistas” apurar-se-ão melhores maneiras técnicas de partilhar lições via internet, ou criar software de aprendizagem em rede, para depois vender no Ocidente. Esta maneira de agir é, porém, eminentemente colonial.

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CREDENCIAIS DE AUTORIA João de Castro Maia Veiga Figueiredo é licenciado em Antropologia pela Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo atualmente Doutorando em Altos Estudos Contemporâneos pela Faculdade de Letras da mesma Universidade. Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia desde 2011, trabalhou anteriormente como consultor junto de uma Universidade privada em Luanda, vindo a publicar essêncialmente sobre o seu tema de investigação principal – a história do conceito de Feitiço em Angola – e o ensino superior nesse mesmo país. Contato: de.castro.maia@gmail.com

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AUTONOMIA NA ESCOLA PÚBLICA: BREVE ESTUDO EXPLORATÓRIO E DE OPORTUNIDADES Ana Maria Reis Ferreira Ribeiro I – Introdução A escola, como subsistema social, está sujeita a exigências constantes, a par de uma sociedade em permanente mudança. Por isso, são-lhe colocados grandes desafios. A escola é entendida como uma organização, como centro de investigação e experimentação e, também por isso, constituiu-se como um dos objetos de estudo das Ciências da Educação. Quando falamos de escola como organização, entendemo-la com uma especificidade própria relativamente a outras organizações e, quando comparamos escolas entre si, verificamos que são organizações em lógicas sistémicas diferentes. Cada uma tem as suas características muito próprias, que a torna única. A escola é, pois, um sistema complexo onde interagem diferentes atores (alunos, professores, pessoal não docente, pais/encarregados de educação, autoridades locais, empresas, entre outros), com dinâmicas diferenciadas e nem sempre com os mesmos objetivos. Como referem Formosinho e Machado (2000, p. 186), a escola “deixa de se circunscrever apenas à relação pedagógica professor-aluno e configura-se por uma fronteira social, determinada pelo sistema de interacção que estrutura a sua organização social, no qual os actores são todos os interessados e intervenientes no processo educativo”. Nesta diversidade de interesses e interações, o clima organizacional da escola e respetiva liderança podem influenciar a sua eficácia. O clima organizacional pode ser entendido como o ambiente escolar que é influenciado por inúmeros fatores e que, por sua vez, condiciona o comportamento dos seus membros e até mesmo os resultados da escola. Como refere Chiavenato (1983), é importante que o administrador conheça as necessidades humanas, para compreender o comportamento humano e assim poder utilizar a motivação para melhorar a qualidade de vida das organizações. É pois comummente aceite que todas as organizações necessitam de orientações, direções bem definidas, de modo a alcançar determinadas metas. Assim, a liderança tem vindo a ocupar um lugar de destaque na investigação e na reflexão que tem sido feita sobre as organizações. Estamos convictos de que a melhoria das organizações, incluindo as escolares, passa não só pelo grau de autonomia existente e exercido, mas também pela liderança e 42


pela forma de as administrar, assumindo a este nível um lugar importante a gestão participativa, associada aos movimentos de descentralização, de partilha de poder, de autonomia. E parece ser este o tipo de gestão que hoje se preconiza nas instituições escolares, públicas ou privadas, envolvendo professores, pessoal não docente, alunos, pais, autarquias e comunidade local. Facilmente nos apercebemos que a liderança, no âmbito da autonomia das escolas e da modernização da gestão escolar, é um fenómeno complexo e, como refere João Barroso (2000), as organizações assentes em redes colaborativas necessitam, sobretudo, de lideranças coletivas. Partindo do pressuposto que, para além das políticas educativas, a base dos níveis de autonomia na escola encontra-se sobretudo nas funções e nos poderes exercitados pelo diretor de escola, neste trabalho pretendemos, assim, fazer uma curta abordagem, de caráter exploratório e reflexivo, aos níveis de autonomia pensados e publicados para os diretores das escolas públicas. Neste sentido, a reflexão contida neste primeiro apontamento de trabalho recai essencialmente sobre a evolução dos documentos legais cujo enfoque se centra nas políticas e práticas de autonomia na escola, bem como no papel e funções exercidos pelo diretor de escola. Por isso revisitamos os decretos-lei nº 115-A/98, de 4 de Maio; e nº 75/2008, de 22 de Abril. Proceder-se-á à compreensão dos referidos decretos, contextualizando-os ao nível das políticas educativas, identificando, caracterizando e analisando de forma breve os discursos políticos sobre as funções e papel do diretor, da autonomia de escola, assim como a sua conceção. Por outro lado, analisa-se ainda, paralelamente e também de forma breve, as políticas educativas levadas acabo após 25 de Abril de 1974, pretendendo-se assim efetuar o enquadramento sociopolítico dos referidos decretos-lei e contribuir para uma reflexão sobre os processos de administração e gestão escolar no âmbito da autonomia na escola.

II - Breve análise da evolução das políticas educativas em Portugal após o 25 de Abril A administração da educação e da escola em Portugal assenta numa longa tradição política, administrativa e sociocultural. Na verdade, tem-se mantido fortemente dependente do poder central, seja ao nível político, seja ao nível administrativo (FORMOSINHO, FERREIRA, MACHADO, 2000). O “gigantismo” e a crescente 43


complexidade do sistema educativo, a que se assistiusobretudo após 25 de Abril de 1974,fizeram surgir novos problemas de governabilidade e colocaram a administração da educação em situação crítica, incapaz de manter as políticas centralistas. (BARROSO, 2003). No âmbito do nosso trabalho, parece-nos ainda útil recuar um pouco na história da educação em Portugal, para entendermos em que contextos surgem as novas políticas de administração das escolas e, também, o contexto particular das escolas profissionais. Ao nível das políticas educativas, podemos considerar diferentes tendências (BARROSO, 1995). Por um lado, as políticas centralistas (ou centralizadas), caracterizadas como políticas em que o Ministério da Educação detém o papel determinante e em que as decisões das políticas educativas são da responsabilidade das autoridades centrais33. Noutro sentido, nas políticas descentralizadas, os territórios locais dentro de um contexto político têm um papel preponderante. O modelo da administração descentralizada dispõe de estruturas ou órgãos regionais ou locais não dependentes hierarquicamente da administração central do Estado, com autonomia administrativa, financeira e competências próprias. De outra forma e em jeito de reflexão, podemos dizer que, do ponto de vista das políticas centralizadas, a desconcentração, quando acontece, transfere competências, ao nível da administração ou da coordenação e avaliação, mas não abdica da sua centralidade; a descentralização, por seu lado, implica o surgimento de novos centros, a nível periférico, regional ou local. Segundo João Barroso (1995), até 1974 Portugal era centralizado. Depois do 25 de Abril de 1974, evidenciaram-se três tendências ao nível das políticas educativas: uma primeira, a desconcentração dessincronizada, em que cada ministério desconcentrava segundo a sua lógica; uma segundatendência, a descentralização, protagonizada pelas autarquias locais; finalmente a terceira, a tendência de desenvolvimento local. Mais precisamente entre 1974 e 1976, verificou-se um período conturbado, de forte agitação social. A tomada de poder pelos estudantes e professores, associada ao saneamento dos reitores conduz a uma auto-organização das instituições públicas de educação, a que Lima (1992, p. 57) se refere como ensaios “ autogestionários”, 33

Tendo em consideração os modelos de administração, estes podem ainda ser modelos centralizados concentrados, em que não é só a decisão que é da responsabilidade central, mas também a coordenação e a avaliação; ou modelos centralizados desconcentrados em que a decisão é da responsabilidade da administração central, mas a coordenação e a avaliação são da responsabilidade de estruturas regionais ou locais, que dependem da estrutura central.

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entendido como um primeiro período de direção e gestão das escolas. Existia, à altura, um fraco controlo do sistema escolar por parte do Ministério da Educação (VENTURA et al, 2006, p. 128). Dadas as circunstâncias sociopolíticas, a normalização passou a ser uma preocupação da administração e, nesse contexto, o decreto-lei nº 375-A/74, de 21 de Dezembro, estabeleceu uma estrutura de gestão escolar baseada em comissões democraticamente eleitas nas escolas. Em 1976, a tendência de estabilização permitiu o surgimento do Decreto-lei 769-A/76, o qual introduziu algumas alterações ao decreto anterior. Estabelece, entre outros, uma divisão de funções entre o Conselho Diretivo, O conselho Pedagógico e o Conselho Administrativo. Observa-se aqui que qualquer professor podia ser eleito para presidente do conselho executivo, mesmo sem formação em administração educacional ou mesmo sem experiência profissional significativa em gestão ou em ensino, sendo a sua profissionalização o único requisito exigido (BARROSO, 2002. p. 92; COSTA, 2004, p. 15, VENTURA et al, 2006, p. 129). Percebe-se ainda que, no âmbito das funções que estavam atribuídas ao presidente do conselho diretivo, nomeadamente assinar o correio, presidir a reuniões, entre outras, este assumia um papel meramente representativo do poder central nas escolas. Apesar das alterações políticas que se sucederam, de acordo com diferentes autores (BARROSO, 2000, FORMOSINHO, 2005, LIMA, 2007) o Ministério da Educação nunca deixou de tentar manter o controlo do sistema educativo dentro de uma perspetiva centralista, vendo a “gestão democrática” como um perigo a evitar. Talvez devido à instabilidade governativa do período pós-revolução, esta política centralista resistiu até aos anos 80. As políticas seguidas na década de 80 assentavam em duas preocupações: uma prendia-se com a eficiência da administração escolar e outra com a necessidade de preservar a responsabilidade política dos gestores da escola perante o governo central (BARROSO, 2005). A existência, em 1987, de um governo com maioria legislativa, explica a capacidade do estado para reformar a educação e a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo em 1986. A proposta de um novo modelo de organização e administração escolar foi então concebido por uma equipa da Universidade do Minho, liderada por João Formosinho. Esta reforma implicava a descentralização real das

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decisões geralmente tomadas ao nível da burocracia do Ministério, transferindo-as para as escolas. Até 1998, em matéria de organização e administração escolar nada de substancial mudou. Os poderes atribuídos continuaram subjugados ao poder central, quer por via de normativos, quer através dos serviços descentralizados do Ministério, nomeadamente Centros de Áreas Educativas e Direções Regionais de Educação. As políticas centralistas continuaram a dominar o sistema apesar dos discursos políticos apontarem noutro sentido. Com a entrada em vigor do decreto-lei nº 115-A/98, de 4 de Maio, verifica-se, finalmente, uma experimentação de um certo nível de autonomia nas escolas públicas. odesignado conselho executivo vê reforçado os seus poderes, como é evidenciado no artigo 17º. É também evidente o reforço de poderes na figura do presidente do Conselho Executivo (artigo 18º), que, de algum modo, faz lembrar um visão colegial das instituições escolares, uma vez que os líderes se encontram próximos dos seus seguidores, provêm do mesmo contexto e são eleitos pelos seus pares (NETOMENDES, 2004, SANCHES, 2000, citado por VENTURA, CASTANHEIRA, COSTA, 2006, p. 132). Em resumo, as políticas educativas delineadas e seguidas após a revolução de 25 de Abril de 1974, na transição entre a ditadura e o regime democrático, não terão representado uma mudança drástica, pelo menos não tanto como foi observado em outros setores da sociedade portuguesa. Segundo João Formosinho (2000, p. 19-20), “nos anos 70 o debate centra-se nas ideias da democracia e participação e a política educativa guia-se pelo paradigma da normalização. O papel do Estado situa-se ao nível do desenvolvimento e democratização.[…] Nos anos 80 o debate foi-se deslocando para as concepções de democracia representativa ou participada, segundo um paradigma de descentralização, em que a retórica de descentralização foi abrindo portas para as práticas de políticas descentralizadas e desconcertadas, num clima de reforma global.[…] Nos anos 90 o debate vai para as ideias de autonomia e de contractualização, em que o paradigma da territorialização das políticas educativas serve a necessidade de redefinição do Estado na educação, entendido como devendo ser mais de regulação e de estruturação”. Portanto, apesar das inúmeras mudanças ocorridas na sociedade portuguesa ao longo dos últimos 37 anos, a instituição escolar, no que respeita à sua organização e administração, em afirmação da sua autonomia, manteve-se quase inalterada. A exceção 46


mais significativa que importa atentar é aquela que resulta do surgimento do Dec. Lei 75/2008, de 2 de Abril, e do qual daremos conta no ponto seguinte do nosso trabalho. III –Abordagem breve da legislação mais recente sobre autonomia na escola pública Como vimos anteriormente, a administração da educação e da escola em Portugal assenta numa longa tradição política, administrativa e sociocultural. Na verdade, tem-se mantido fortemente dependente do poder central, seja ao nível político, seja ao nível administrativo. Contudo, o “gigantismo” e a crescente complexidade do sistema educativo, a que se assistiu após o 25 de Abril (BARROSO, 2003), fizeram surgir novos problemas de governabilidade e colocaram a administração da educação em situação crítica, incapaz de manter as políticas centralistas. Daí a necessidade de mudança que se fez sentir. Em 1998, o decreto-lei nº 115-A de 4 de Maio – mais tarde revogado com o decreto-lei nº 75/2008, de 22 de Abril, sobre o qual nos vamos deter a seguir –, aprova o regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos de educação, integrando pela primeira vez o 1º ciclo do ensino básico e os jardins de infância nesta organização. Para muitos, a publicação deste decreto foi uma das principais medidas políticas do Ministério da Educação. Este novo regime assume, então, como objeto central, uma nova organização da administração da Educação, assente na descentralização e no desenvolvimento da autonomia das escolas, bem como na valorização da identidade da escola. Dez anos mais tarde, em 2008, portanto, este conceito de descentralização e autonomia de escola é particularmente realçado com o surgimento do decreto-lei nº 75/2008, de 22 de Abril.Com efeito, este documento destaca, entre outros, a participação das famílias e das comunidades na direção estratégica dos estabelecimentos de ensino, através da instituição de um órgão de direção estratégica em que têm representação o pessoal docente e não docente, os pais e encarregados de educação (e também os alunos, no caso dos adultos e ensino secundário), as autarquias e a comunidade local, nomeadamente representantes de instituições, organizações e atividades económicas, sociais, culturais e científicas. A este órgão, entre outras importantes funções, confia-se “a capacidade de eleger e destituir o diretor, que por conseguinte lhe tem de prestar contas”.

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Observa-se ainda neste decreto-lei o objetivo de reforço nas lideranças das escolas, favorecendo a existência de“um rosto”, um primeiro responsável, dotado da autoridade necessária para desenvolver o projeto educativo da escola e executar (interpretar) localmente as medidas de política educativa oriundas do poder central. A esse primeiro responsável poderão assim ser assacadas as responsabilidades pela prestação do serviço público de educação e pela gestão dos recursos públicos postos à sua disposição. É assim criado o cargo de diretor, coadjuvado por um subdiretor e um pequeno número de adjuntos, constituindo, porém, um órgão unipessoal e não um órgão colegial. É confiado ao diretor a gestão administrativa, financeira e pedagógica, assumindo, para o efeito, a presidência do conselho pedagógico, sendo da sua responsabilidade a designaçãodos responsáveis pelos departamentos curriculares. Ainda neste documento, e por fim, naquilo que nos importa aqui atender, percebe-se o reforço da autonomia das escolas que tem em vista obter aquilo que é designado de “melhoria do serviço público de educação”. Neste sentido, por um lado, é dada maior capacidade de intervenção ao diretor e, por outro, institui-se um regime de avaliação e de prestação de contas. Podemos assim sugerir que a promoção da autonomia da escola pública é uma iniciativa política do Estado que, na sua intenção legislativa, implica uma descentralização das competências e responsabilidades, isto é, desloca essas competências do poder central para as escolas. Na verdade, no referido diploma constata-se a intenção de dotar as escolas de margens de autonomia com o objetivo de que cada uma possa dar resposta às suas especificidades, tendo em conta naturalmente o seu contexto, mas sem prejuízo das regras fundamentais comuns a todas as instituições escolares.

IV - Oportunidades futuras de trabalho Nos pontos anteriores procurámos concretizar a intenção de perceber um pouco melhor o nível de autonomia na escola pública. A partir da visita histórica e da verificação documental que a legislação produzida, sobretudo a mais recente, nos permitiu, foi-nos possível compreender, por um lado, os fundamentos da autonomia na escola pública, os níveis de dependência e de compromisso e, por outro, alguns dos constrangimentos que, apesar das mudanças que foram ocorrendo, vão continuando a afirmar-se como desafios. 48


Neste sentido, reforçando a ideia de que cada escola é uma organização com uma entidade própria, com necessidades específicas, que serve uma determinada comunidade cada vez mais diversificada, posicionamo-nos reafirmando que, na sua ação, cada instituição de educação orienta-se pela sua especificidade, pela sua particularidade, exigindo assim, também por isso, uma liderança também ela específica e particular. Por isso, no compromisso de continuar a evoluir na leitura exploratória sobre o tema da autonomia nas escolas, não desprezando um olhar atento sobre as práticas com que nos vamos confrontando na nossa profissionalidade, não enjeitámos a possibilidade de, neste pequeno trabalho, apresentar sucintamente algumas oportunidades de estudo que, num futuro mais ou menos próximo, gostaríamos de explorar. Elencamos e fundamentamos de seguida essas oportunidades.

Oportunidade um – A inovação estratégica na escola No mercado competitivo atual, em que as escolas públicas oferecem diferentes oportunidades de educação e formação, parece-nos poder observar nestas organizações a possibilidade de recorrer àquilo que se designa por “estratégia”. De acordo com Strategor, referido por Estêvão (1998), deve-se ir no sentido de relacionar as oportunidades de investimento não com os custos mas com a diferenciação, ou seja, com a capacidade de a organização colocar à disposição do consumidor uma oferta cujo caráter único é reconhecido e valorizado por este. Por isso não será desajustado pensarmos que também as organizações escolares podem exercer uma “diferença estratégica”, ou seja, possam ser capazes de inovar. Tratar-se-á, no fundo, como já referia Canário (1992) de uma mudança de perceção da escola como espaço de repetição, para a noção da escola como lugar de produção e inovação. Aqui está uma oportunidade de estudo e de trabalho que nos parece interessante, sobretudo se pudermos explorar a dimensão prevista para o desenvolvimento do projeto educativo de escola.

Oportunidade dois – Os parceiros na escola A gestão escolar prevê o envolvimento de todos os interessados no processo educativo,

constituindo

o

seu

envolvimento 49

uma

forma

de

partilhar

as


responsabilidades. Liderança autónoma e gestão participativa não são expressões contraditórias, antes complementam-se, se orientadas para o mesmo objetivo: contribuir para o desenvolvimento eficaz do projeto educativo das escolas. No modelo atual, no âmbito de uma política de envolvimento dos diversos atores no processo educativo, a gestão participativa é realizada por alguns agentes da comunidade educativa, nomeadamente os encarregados de educação. Muitas vozes, nomeadamente vindas dos professores, afirmam serem aqueles parceiros, hoje, os verdadeiros “controladores” da atividade das escolas e, até, da própria função docente. Afirmam ainda que esta situação cria situações de conflitualidade entre a escola e a família, com consequências significativas quer ao nível da profissão docente quer ao nível do (bom) funcionamento das próprias escolas. Sabemos que mais autonomia e partenariado implicam, de todas as partes, mais responsabilidade e mais avaliação (MARQUES, 1993). A avaliação do desempenho das escolas deve por isso ter em conta os impactos da participação de todos e de cada um dos atores que nela estão implicados, nomeadamente e sobretudo aqueles a quem foi dado o direito e o dever de exercitar papéis de intervenção na vida escolar. Este é pois, também, um campo em que gostaríamos de poder desenvolver práticas de observação e avaliação.

Oportunidade três – O poder do líder escolar As organizações escolares públicas, apoiadas nas mudanças ao nível das políticas educativas e nos instrumentos legais, têm feito um grande esforço no sentido de se aproximar daquilo que deve ser considerado um serviço público de particular qualidade. Nesse esforço,e considerando que a escola não deixa de ter os constrangimentos (e características) que um sistema centralizado acaba por impor, o líder, o diretor de escola, terá uma intervenção ainda bastante condicionada, na medida em que a sua atuação se pautará por uma preocupação excessiva no cumprimento das normas superiormente emanadas, que não só influenciam o seu comportamento, como se podem constituir como limitação para o seu trabalho. No entanto, pensamos que poderão existir algumas áreas em que as escolas “gozam” de alguma autonomia, as quais o líder pode explorar, intervindo com mais liberdade e de acordo com as suas próprias convicções e escolhas pessoais, permitindo assim o verdadeiro exercício da liderança e de autonomia. Lembramo-nos neste 50


propósito na área técnico pedagógica, do desenvolvimento do currículo, da diferenciação pedagógica, da educação especial, das dificuldades de aprendizagem. Na área administrativo financeira, se assim quisermos considerar, estamos a pensar na elaboração de programas e de modelos de intervenção junto dos públicos que a escola também serve, nomeadamente as famílias e as empresas – uma responsabilidade social. Também nesta área de atuação, no prosseguimento das ações que se pretendem em melhoria contínua, um outro exemplo de exercício da autonomia é o desenvolvimento e a certificação de um sistema integrado de gestão da qualidade. Trata-se, pois, de um conjunto de atuações do líder escolar em que podemos observar e medir o seu poder. Seja portanto na observação do seu plano de trabalho, seja na medição dos resultados (nos impactos internos e externos). Estaremos despertos para esta possibilidade de trabalho.

Oportunidade quatro – O estilo do líder escolar Na sequência da oportunidade referida anteriormente, estamos também motivados em perceber o que está para além do poder conferido ao líder, isto é, a capacidade deste se fazer dirigente e de interpretar o legado. Como refere Rui Moura (1999), a autonomia da escola pressupõe a autonomia dos seus atores, nomeadamente dos seus líderes. A escola é uma organização e, como tal, necessita de uma determinada liderança para atingir os objetivos a que se propõe. Como é comum dizer-se, não pode existir uma boa escola sem uma liderança eficaz, sendo certo que a melhoria das organizações escolares, públicas e privadas, passa pela liderança e pela forma de as administrar. Contudo, na escola, nomeadamente a pública, porque se trata de uma organização com especificidades muito próprias – com caraterísticas de autonomia mas sem serem organizações autónomas –, a liderança transforma-se num processo complexo e difícil. Nas organizações escolares, um estilo de liderança descentralizada, participativa e motivadora parece ser essencial como contributo para a melhoria da sua eficácia. Esta perspetiva de estilo de liderança implica, naturalmente, um determinado perfil que deverá ser escrutinado com precisão por parte dos diferentes parceiros de gestão da escola. E esta é uma área que merecerá, estamos certos, uma atenção especial em futuro mais ou menos próximo.

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Até pelo modo como estamos implicados profissionalmente, estaremos também particularmente concentrados nesta possibilidade de trabalho futuro.

Oportunidade final Em todo este contexto de oportunidades, notamos ainda a possibilidade de existirem diferentes níveis de autonomia quando estabelecemos comparação entre organizações escolares com estatuto diferente, colocando a hipótese de, nesta análise, fazermos diferenciar o que designamos de escolas públicas e de escolas privadas. Concretizando e porque, profissionalmente, em funções de liderança 34, podemos em grande medida percecionar “por dentro” estas funções, não deixaremos, se possível, de colocar a hipótese de desenvolver estudos futuros que permitam cruzar os resultados da aplicação de dois modelos de exercício de autonomia escolar: estabelecer comparação dos níveis de autonomia das escolas públicas ditas „regulares‟ e as escolas profissionais – estas pertencentes a um subsistema específico de ensino e formação. VI – Conclusão Ao longo dos pontos constituintes deste trabalho, pudemos constatar que o nível de autonomia da escola pública e dos seus diretores faz parte de um processo históricode descentralização que se foi construindo. No nosso humilde entendimento, a especificidade da escola pública parece tornar necessário, para uma devida concretização da autonomia na escola, algo mais do que uma simples política legislativa. Observamos, na prática, ainda, uma autonomia muito dependente quer dos serviços centrais do Ministério da Educação, quer também do poder local. As atribuições que o Estado assume e cuja responsabilidade lhe é exclusiva – e que nos parece ter de ser assim –, continuam a ser as questões de fundo da educação, as quais acabam por tornar mais difícil a almejada concretização da autonomia nas escolas. Destacamos, entre outros, a responsabilidade pelos currículos, pela rede escolar, pelos orçamentos, pelas carreiras, pela contratação de pessoal docente e não docente. A autonomia implica necessariamente um reforço de poderes ao nível das instituições escolares. No entanto, há que referir que se têm vindo a constatar mudanças ao nível das estruturas do Ministério da Educação, isto é, na reestruturação do Estado, 34

Desde 2005 que desempenhamos as funções de direção pedagógica de uma escola profissional, concretamente, na Escola Profissional de Aveiro.

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em que se destacam as políticas centralistas desconcentradas ou descentralizadas, sendo que estas mudanças ainda não terão tido impacto direto ao nível das escolas, nas suas dinâmicas intestinas. Parece-nos claro que a tendência das políticas educativas irá, cada vez mais, centrar-se nas escolas, as quais desenvolverão a sua autonomia, a partir do meio em que estão inseridas, de acordo com um projeto e programas de intervenção próprios, que vão de encontro às suas necessidades. A autonomia tem de partir da própria dinâmica da escola na construção da sua identidade e no papel fundamental do diretor. Assim, a conceção de autonomia de escola tem de ter em conta a diversidade, pois, conforme refere Barroso (2005), a transferência para as escolas não deve ser uniforme e decidida globalmente, mas deve ser adequada às diferentes situações existentes. As intenções da política do Ministério da Educação, patentes no decreto-lei nº 75/2008, de 22 de Abril, parecem assim fundadas: melhorar a eficácia e eficiência administrativa, promover a autonomia das escolas, reforçar a capacidade de resposta das escolas perante a comunidade educativa, alargar a participação a novos parceiros. Ainda assim, para reformar, não é suficiente decretar, haverá necessidade que equacionar como se vão implementando, nos diferentes terrenos, todas as intenções, assim como haverá a necessidade de monitorizar, avaliar as práticas que possam conduzir a melhorias continuadas. Por isso as interrogações que se colocam acerca da problemática geral que é a autonomia das escolas públicas. E também a possibilidade de podermos cruzar esta autonomia com aquela que é praticada noutros modelos ou sistemas de educação e formação, como é o caso das escolas profissionais. Iremos prosseguindo nas nossas intenções, permanentemente despertos para compreender melhor (fazer melhor) o que gostamos de fazer. Referências Bibliográficas BARROSO, J. Para o desenvolvimento de uma cultura de participação na escola. In: Cadernos de organização e gestão escolar, nº 1, Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1995. BARROSO, J. Relatório sobre autonomia e gestão das escolas. Lisboa: Ministério da Educação, 1997. BARROSO, J. Autonomia das escolas: da modernização da gestão ao aprofundamento da democracia. In: COSTA, J.A., NETO-MENDES, A. & VENTURA, A. (Org.). 53


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Legislação Decreto-lei 75/2008, de 22 de Abril Decreto-Lei nº 4/98, de 8 de Janeiro Decreto-lei nº 115-A/98, de 4 de Maio Despacho n.º 4463/2011 de 11 de Março Despacho 18064/2010, de 12 de Março Decreto-lei 224/2009, de 11 de Setembro Despacho 16551/2009, de 21 de Julho Despacho 9744-2009, de 8 de Abril Decreto regulamentar 1-B/2009, de 5 de Janeiro Portaria 604-2008, de 9 de Julho

CREDENCIAIS DE AUTORIA Ana Maria Reis Ferreira Ribeiro Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Variante Português-Inglês) pela Universidade do Porto (1985); licenciada em Ensino de Inglês e Português pela Universidade de Aveiro (2002). Atualmente é diretora pedagógica da Escola Profissional de Aveiro e Diretora do Centro de Informação Europe Direct de Aveiro. Mestranda em Administração Escolar. Contato: amr@epaveiro.edu.pt

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BULLYING EM CONTEXTO ESCOLAR. APOSTAS PREVENTIVAS Maria da Nazaré Mesquita Martins dos Santos Baptista

A escola, enquanto instituição social, assume a formação básica e específica dos indivíduos, permitindo-lhes adquirir um conjunto de competências que os auxiliem a enfrentar constrangimentos e desafios ao longo do seu percurso de vida e tornando-os cidadãos ativos e participativos. Na verdade, o desenvolvimento das sociedades assenta essencialmente na educação dos seus membros. A escola pode influenciar o “ processo de transformação social, cultural, económica e política, sobretudo se atender à função socializadora cada vez mais explícita que vem assumindo, devido (…) à crescente diminuição do peso institucional da família neste processo” (PARADA e COIMBRA, 1999, p. 97). Neste sentido, a escola apresenta-se como um espaço de transmissão de saberes, sendo igualmente um local privilegiado para a socialização e integração dos jovens. O desenvolvimento de uma personalidade harmoniosa e equilibrada, que se adapte à sociedade em que se integra, deve apoiar-se em múltiplas aprendizagens. A formação integral deve ser eclética, além de instruir deve favorecer a educação e desenvolvimento de atitudes, valores e comportamentos sociais ajustados. Os sistemas de ensino apresentam deficiências e falham na persecução dos objetivos que se propõem, sentindo a necessidade de encontrar culpados e transferir responsabilidades. A culpabilização transita entre os vários atores educativos, saltitando da família para a escola e vice-versa. Torna-se urgente fazer uma análise crítica onde todos os setores da sociedade estejam presentes, por forma a encontrar respostas adequadas que possam conduzir à mudança. Comportamentos de indisciplina, de violência, de agressividade e de consumo de substâncias lícitas e ilícitas têm vindo a aumentar em contexto escolar de forma preocupante. Esta situação resulta de um conjunto de fatores que encontram a sua causalidade

numa

sociedade

em

constante

mutação,

na

escola,

onde

a

multiculturalidade, embora seja uma realidade enriquecedora, também se apresenta como problemática e na família, muitas vezes desestruturada e indiferente às funções que lhe são inerentes. A escola surge assim, como um espaço onde, muitas vezes de forma gratuita, ocorrem comportamentos de violência e agressividade. A mediatização destas situações 56


problemáticas é divulgada frequentemente, fomentando nas populações a desconfiança face à instituição, às suas dinâmicas e às políticas organizativas. Face a esta situação e sempre que problemáticas gravosas acontecem, debate-se a educação, tendo em conta cada uma das suas dimensões e dando a palavra a todos os quadrantes da sociedade. Por outro lado, a mediatização excessiva e exaustiva dos episódios ocorridos pode servir de padrão e modelo a seguir por outros jovens que consideram heróis, os protagonistas destas ocorrências. Cada um destes casos, não pode ser visto como um caso isolado, descontextualizado tanto da história de vida destes jovens, como do contexto escolar onde se movimentam. Assim, fatores individuais, condições situacionais e ambientais, estando subjacentes, podem propiciar o seu desenvolvimento. As trajetórias escolares destes jovens são percorridas com insucesso, com dificuldades de integração e socialização e em períodos mais ou menos marcados pelo absentismo.

Bullying No contexto da prática diária de profissionais preocupados com as diferentes problemáticas, transparece das conversas formais e informais havidas com professores, um aumento da sua insatisfação face aos casos de indisciplina dos alunos, ao sistemático incumprimento de regras e normas, às dificuldades relacionais, à desmotivação e indiferença perante a escola e comunidade de pertença. O bullying, sendo um fenómeno que sempre tem estado presente em contexto escolar, só muito recentemente, é que foi considerado um problema social grave, na medida em que afeta o bem-estar dos jovens, as dinâmicas escolares e a comunidade. Os media relatam casos de jovens que não conseguem lidar no seu dia-a-dia com uma vitimização constante e optam por, de uma forma trágica, por termo à vida. Foi neste sentido que nos anos setenta, o conceito de bullying, associado à violência física, psicológica e verbal, surge e começa a ser questão de investigação. Segundo Olweus (1999), este comportamento verifica-se quando um aluno é exposto de forma repetida e durante um determinado período de tempo, a atos ou ações negativas por parte de um ou mais alunos. É um comportamento que se manifesta em contexto escolar e que se define como a violência mental ou física de um indivíduo ou grupo de indivíduos exercida sobre outro ou outros que não são capazes de se proteger. Carrilho (2008), Pereira (2008) referem-se ao bullying dizendo que existe uma intencionalidade de magoar alguém que é vítima e alvo do ato agressivo. Este tipo de 57


comportamento manifesta-se sob a forma de insultos, de ameaças, de intimidação psicológica e de agressões físicas. Estes agressores, também chamados de bullies, tendem a perpetuar estes comportamentos, sendo as vítimas indefesas. Este comportamento agressivo, intencional e prejudicial desenrola-se por um período de tempo que pode prolongar-se por semanas ou até anos. Olweus (1993) sublinha o seu caráter persistente, intencional e duradouro, manifestando-se em idades compreendidas entre os 7 e 14 anos. No Reino Unido, a legislação existente define o bullying como sendo uma forma de violência de longa duração, de caráter físico ou psicológico, perpetrada por um indivíduo ou grupo e dirigida a outrem, incapaz de se defender por si próprio, com a intenção consciente de o magoar, ameaçar, assustar ou pressionar. (LEONARDO, 2007). Farrington (2001) menciona a dificuldade na definição deste comportamento, visto que se torna complexo perceber as fronteiras que existem entre a provocação e o bullying e entre este e a violência. Esta dificuldade na definição do conceito tem dificultado as investigações, visto que estes comportamentos são difíceis de observar. Os agressores atuam em locais mais isolados onde seja difícil testemunhar as suas ações como no recreio, nos corredores e no trajeto para casa. Taki (2008), baseando-se em estudos comparativos entre países da Europa e Ásia, concetualiza o bullying, como uma forma de agressão que não tem visibilidade para uma terceira pessoa, mas que é tão grave ou mais, do que a agressão física. Chamalhe Ijime, agressão indireta. Esta agressão camuflada35, quase impercetível, é segundo este autor, muito difícil de prevenir. Se o outro tipo de comportamentos com caráter físico e verbal podem ser punidos e podem ser algo de campanhas preventivas dirigidas aos bullies, já esta agressão indireta, por ser difícil de identificar, só pode ser prevenida se dirigida a todos os alunos. O ciberbullying, outra tipologia de comportamento, tem vindo a aumentar e a ganhar visibilidade. Surge através de meios tecnológicos e as informações difamatórias relativas à vítima são difundidas pela internet, nas redes sociais e por SMS, mantendo o agressor, a maior parte das vezes, o anonimato. Um estudo feito em Portugal por Gonçalves e Matos (2007) conclui que os alunos que frequentam escolas que são consideradas inseguras ou que demonstram estar

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“Low risk and high return” (TAKI, 2008)

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insatisfeitos com o seu modo de vida, são mais propensos a desenvolver e a ser vítimas de bullying isto é, provocar e ser provocado. Revela ainda que as raparigas sofrem mais de bullying indireto, sendo vítimas de rumores e de exclusão e os rapazes de direto, ou seja, de agressões físicas como o pontapear, socar e bater. Assim sendo, os bullies ou indivíduos agressores são movidos por um abuso de poder e visam intimidar e dominar (CEREZO, 2001). Ainda no entender do mesmo autor, este fenómeno pode surgir de diferentes formas, como a agressão física, configurando-se no ataque, no roubo ou na destruição dos objectos pessoais da vítima; verbal como insultar, chamar nomes, interrogar em tom desafiante e ameaçador e finalmente, a agressão indireta que implica a exclusão social e a propagação de nomes pejorativos.

Perfil dos bullies e das vítimas De acordo com Cerezo (2001), os bullies evidenciam algumas caraterísticas que os distinguem dos restantes alunos com quem convivem. Assim sendo, estes jovens são, na sua grande maioria rapazes, têm repetências ao longo do seu percurso escolar, revelando insucesso e frequentam turmas com alunos de nível etário inferior. Fisicamente, são mais fortes e mais altos, sugerindo uma certa superioridade. Psicologicamente, são jovens com personalidades relevantes, apresentando-se com altos níveis de agressividade e de ansiedade. Demonstram ser assertivos e até desafiadores. Evidenciam elevados níveis de inteligência social e de compreensão das emoções e sentimentos dos outros, utilizando essas competências e habilidades sociais para obterem vantagens e benefícios pessoais. Segundo Pelligrini (2007), o que lhes falta é a capacidade de empatia, a capacidade de avaliar as emoções daqueles a quem agridem. Não sentem qualquer arrependimento relativamente ao ato perpetrado. Não necessitam surgir como “melhores” do que na realidade são. Em testes psicológicos têm altos níveis de psicotismo, emocionalidade, extroversão e neurotismo. Têm uma autoestima ligeiramente alta. Têm comportamentos agressivos, pouco auto controlo, teimosia e indisciplina. Olweus (1993) agrupa os agressores em três categorias: os agressivos, apresentando baixo controlo sobre a impulsividade, admitindo que o uso da violência é um fator positivo na convivência com o outro; os ansiosos que têm baixa autoestima, não têm amigos e são instáveis emocionalmente e finalmente, os passivos que se

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apresentam como empáticos e manipuladores, atuando de forma autoprotetora e sendo seguidores e apoiantes de outros agressores. Sabaté (2007) refere que os bullies têm necessidade de protagonismo, agindo com poder e manifestando a força de uma forma despótica. Têm uma grande falta de empatia para com a vítima. Sentem-se fortes e poderosos. Relativamente ao perfil escolar, estes jovens não gostam da escola e apresentam insucesso ao longo do seu percurso. O clima familiar, muitas vezes é conflituoso. São autónomos e pouco controlados. As vítimas são jovens com idade inferior à dos agressores. Na sua grande maioria são rapazes de aparência mais débil ou obesos, não têm amigos e são muito protegidos pelos pais (URRA, 2009). O rendimento escolar, apesar de ser superior ao do bully, é ainda médio-baixo. As caraterísticas da personalidade demonstram que são pouco assertivos, tímidos e ansiosos. Consideram-se pouco sinceros, são dissimulados e aparentam ter melhor desempenho do que na realidade têm. A sua autoestima é mais baixa do que a do agressor, mas têm mais autocontrolo. (CEREZO, 2001). Ainda no entender de Bjoerkqvist et al (1982) e Sabaté (2007), estes jovens sentem medo, têm depressão e neuroses, apresentam problemas de adaptação, transtornos da personalidade, ataques de pânico, baixa autoestima. Consideram-se pouco inteligentes e atrativas e têm deficit de habilidades sociais. Os bullies podem atuar solitariamente ou integrados num grupo, contudo tornase difícil para os adultos aperceberem-se do seu comportamento. Cerezo (2001) refere ainda as vítimas agressoras que descobrem que podem alcançar aquilo que pretendem, se adoptarem as atitudes daqueles que as vitimizam. Podemos concluir, baseando-nos em estudos desenvolvidos em vários países, que o bullying foi considerado como sendo, para além de um problema escolar, um grave problema social que afeta os jovens e respetivas famílias por vezes de uma forma bastante acentuada, tornando-se urgente desenvolver ações preventivas por forma a minimizar a situação (CARRILHO et al., 2010). A escola pode ter um papel relevante no desenvolvimento e na prevenção destes comportamentos, sendo para isso necessário que acredite na sua capacidade de definir e dinamizar um conjunto de medidas a implementar, juntamente com outros atores sociais, capazes de fazer face a estas problemáticas.

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Apostas preventivas em contexto escolar Algumas soluções têm vindo a ser construídas, objetivando a prevenção e minimização de comportamentos de bullying e de comportamentos e trajetórias de cariz desviante que desestabilizam a organização escolar. Neste sentido e relativamente a medidas a adotar para prevenir comportamentos de bullying, Olweus (1999) sublinha a importância do ambiente social e escolar em que o jovem se movimenta. Assim, é sublinhada a importância da motivação e do interesse dos alunos pela aprendizagem, a definição clara de regras e normas de conduta, não podendo ser tolerados comportamentos inaceitáveis e finalmente, menciona a necessidade de ser feita a monitorização e vigilância dos alunos nos diferentes espaços escolares. Para além dos fatores de proteção elencados, relativos ao aparecimento de situações gravosas de bullying, é essencial que o envolvimento parental no percurso escolar dos filhos seja uma realidade. Analogamente, o relacionamento afetivo e educacional desenvolvido entre os diferentes atores educativos constitui-se como basilar, devendo basear-se na dialogicidade, na aceitação do outro e nas boas práticas. Paralelamente a estas estratégias preventivas, essenciais para o funcionamento da escola, também se considera necessário o desenvolvimento de programas que abordem e reflitam sobre esta temática. Farrington (2001) refere que uma das mais importantes experiências preventivas em meio escolar, levada a cabo em Seattle, agregou a formação de professores, a formação dos pais e a aprendizagem de competências. Neste sentido, também Leandro (2007) se refere a abordagens preventivas que agreguem toda uma comunidade, o desenvolvimento de políticas antibullying e a garantia da implementação de estratégias convincentes abrangendo aspetos preventivos e interventivos. Albuquerque (2007) exemplifica, mencionando um programa antibullying, desenvolvido numa escola norueguesa. As medidas interventivas implementadas passaram pela distribuição de brochuras a toda escola, propondo modos de atuação; distribuição de uma pasta com material informativo para as famílias; disponibilização de uma cassete de vídeo com imagens de situações de bullying e finalmente a aplicação de um questionário anónimo aos alunos sobre delinquência autorevelada. Ainda no âmbito deste programa, os professores definiram regras claras sobre intimidações e apoiando-se em vídeos, refletiram em sala de aula. Posteriormente, motivaram os alunos 61


para exercícios de simulação. A avaliação feita à execução deste programa mostrou que houve uma redução de casos nesta escola em Bergen. Estamos convictos e de acordo com estudos desenvolvidos nos Estados Unidos da América, que outra das valências a implementar em contexto escolar que pode ajudar a minimizar estas problemáticas, é a figura do tutor e o exercício da sua ação tutorial 36. O tutor aparece como uma figura modelar, sendo para os alunos mais problemáticos, o rosto da escola, capaz de facilitar a criação de laços sociais e afetivos, para que esta se apresente como instituição, não de exclusão, mas sim de integração. Nos Estados Unidos da América, a avaliação dos programas preventivos desenhados no âmbito do trabalho de counseling desenvolvidos nas escolas e semelhantes ao exercício tutorial desenvolvido noutros países, apontam para algum sucesso. Objetivam o treino de competências sociais, a colaboração parental ativa, a implicação dos docentes e a reflexão e o estabelecimento de acordos com os alunos.

Concluindo O aumento de diferentes problemáticas em contexto escolar que emergem de uma sociedade complexa, onde a dimensão relacional e o suporte afetivo são muitas vezes frágeis ou até inexistentes, leva a organização escolar a procurar novas formas de intervenção, capazes de construir soluções preventivas que contribuam para a mudança. Neste sentido, referimos um conjunto de soluções, tendo em vista uma intervenção preventiva em comportamentos de bullying que vão desde o desenho e implementação de programas preventivos, até ao apoio, acompanhamento e orientação que o tutor pode dar, integrado em equipas multidisciplinares no sentido de minimizar e prevenir estas problemáticas. É fundamental que a escola e os docentes entendam que é necessário que algo urgente seja feito.

Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE, Catarina. Envolvimento de crianças em gangs juvenis. In: Infância e Juventude, 3. Revista da Direcção – Geral de Reinserção Social. Lisboa: Ministério da Justiça, 2007. CARRILHO, Luísa. Do bullying ao assédio moral. In: Jornal Expresso de 19 de Abril de 2008, 2008. 36

Programas preventivos dinamizados por counselors , implementados em escolas americanas .

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CARRILHO, Luísa, NOGUEIRA, Paulo; BACELAR, Teresa. Agressividade em contexto escolar. Porto: Edições Afrontamento, 2010.

Bullying

CEREZO, Fuensanta. Condutas agressivas na idade escolar. Portugal: Editora MacGraw Hill, 2001. FARRINGTON, David. Prevenção centrada no risco. In: Infância e Juventude 3, p.929, 2001. GONÇALVES, Sónia; MATOS, Margarida. Bullying in schools: predictors and profiles. In: International Journal on Violence and School, 4. Acedido de www.ijvs.org em 12 de abril de 2009. 2007. LEANDRO, José. Bullying escolar-abordagem descritiva de um fenómeno emergente. In: Infância e Juventude. Revista da Direção-Geral de Reinserção Social. Lisboa: Ministério da Justiça, 2007. OLWEUS, Dan. Bullying at school. What we know and what we can do. Oxford: Blackwell. 1993. OLWEUS, Dan. Violences entre eléves, harcelements et brutaliés. In: Collection pédagogies. Paris: ESF Editeur, 1999. PARADA, Fernanda; COIMBRA, Joaquim. O trabalho como dimensão da construção da cidadania. In: Inovação 12, p. 93-108. Instituto de Inovação Educacional: Editorial Ministério da Educação, 1999. PELLEGRINI, Anthony. The social contexts of bullying and victimization. In: Journal of Early Adolescence, vol.27, (2). Publicações Sage. Acedido de http://www.jea.sagepub.com, em 3 de março de 2009, 2007. PEREIRA, Beatriz. Para uma escola sem violência. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. SABATÉ, Jordi. La tutória y los casos de acoso. In: Riart, J. (coord.) .Manual de Tutoria Y Orientación en la Diversidad. Madrid: Ediciones Pirámide, 2007. TAKI, Mitsuru. A new definition and scales for indirect aggression in schools. In: International Journal of Violence and School, 2008. URRA, Javier. O pequeno ditador. (12ª ed.). Lisboa: Esfera dos Livros, 2009.

CREDENCIAIS DE AUTORIA Maria da Nazaré Mesquita Martins dos Santos Baptista. Doutora em Educação pela Universidade Lusófona de Humanidade e Tecnologias de Lisboa. Mestre em Administração e Planificação da Educação pela Universidade Portucalense Infante D. Henrique. Licenciada em Estudos Anglo-Americanos pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Bacharel em Germânicas pela mesma Universidade. Professora de Inglês. Colaboradora do Instituto Superior de Ciências Educativas (ISCE). Formadora de docentes no Centro de Formação de Professores da Pró- Ordem, nas áreas de Administração Educacional e Educação para a Cidadania. 63


Artigo publicado na revista brasileira Poiesis, em 2011 e autora de um livro publicado em 1995 na editora Texto sobre a temática “A importância da escola na prevenção da toxicodependência”. Contato: nazare_baptista@hotmail.com Acesso - Lattes: http://lattes.cnpq.br/5954010574215011

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EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS: MULHERES MUÇULMANAS EM PORTUGAL: (DES)CONHECIMENTO E (IN)VISBILIDADE Ana Campina

As estatísticas demonstram que a Europa comporta cerca de vinte milhões de muçulmanos, sendo que em Portugal a Comunidade Islâmica se apresenta com uma expressão minoritária. Num universo de aproximadamente onze milhões de cidadãos portugueses, os números oficiais afirmam que esta comunidade abarca cerca de 40.000 cidadãos muçulmanos, o que é manifestamente um grupo minoritário. Salvaguarde-se a margem de erro das estatísticas, sobretudo devido aos fluxos de imigração ilegal que são uma realidade muito significativa e representativa, o que dificulta a veracidade dos números. Muitos são os fatores que promovem o Estado português como destino, ou simplesmente passagem, de imigrantes, em particular a sua situação geopolítica do país, favorecendo um trânsito migratório muito elevado. O tráfego de seres humanos provenientes de diferentes partes do mundo é elevado, pelo que a ilegalidade se traduz numa realidade incontestável e crescente, o que é um fator de grande preocupação social e política. A imigração, como nova realidade que o novo milénio trouxe para a Europa, e para Portugal em particular, exigiu uma necessária (re)educação social e uma adaptação das mais diversas estruturas nacionais para acolher os imigrantes que escolheram este país para residir temporária ou definitivamente, o que tem representado um processo sociológico de evolução e crescimento que se foi desenhando. Este processo revelou-se manifestamente delicado, sobretudo no que concerne à convivência e aceitação do imigrante enquanto ser humano de pleno direito, e não como um “intruso”, numa sociedade que historicamente se mantinha relativamente “fechada”, na sua cultura, hábitos e costumes. Este é um processo que tem vindo a evoluir e que apesar de atualmente estar mais consolidado, certo é que há ainda muito trabalho a desenvolver nos mais diferentes domínios. Emerge assim a necessidade de desenvolver e aprimorar ações coordenadas, para que a integração ocorra da forma mais natural possível, responsabilizando todos os cidadãos num mesmo sentido, onde os valores e direitos de igualdade prevaleçam e os direitos fundamentais sejam protegidos e defendidos. Uma das questões que se tem revelado mais preocupante na sociedade portuguesa, e que deve exigir uma atenção especial, sendo de igual forma mais delicada, 65


reside na necessidade de uma informação concertada e acertada, promovendo um conhecimento mais abrangente e fundamentado. A sociedade, na diversidade que a caracteriza, deverá ter acesso a um conjunto de informações, objeto de uma (re)educação estruturada promotora de uma perceção e interpretação de uma mutação social que ocorre há já alguns anos e necessita de um acompanhamento específico, que não tem ocorrido, mas que exige um tratamento especial, visando colmatar lacunas que se apresentam como gravosas e que se refletem diretamente nos sérios problemas que se geram no seio social. É certo que muita informação, danificada ou em alguns casos degenerada em desinformação, é um sério problema que se vive diretamente transcrito no comportamento inadequado, desajustado ou mesmo inadmissível, gerando discriminação, racismo, ou mesmo uma convivência “apática” que passa por ignorar aqueles que necessitam de apoio, não permitindo uma integração de pleno direito, nem nas condições sociais que se entenderiam como justas e corretas. Há que reconhecer que no que respeita às instâncias sociais e políticas tem havido um esforço para evoluir, para promover uma integração mais abrangente dos imigrantes das mais distintas proveniências, raças, culturas e religiões, promovendo o acesso aos direitos dos cidadãos imigrantes, nas mais distintas vertentes. É importante ainda salientar que a sociedade também manifesta a necessidade de uma intervenção consciente, que proporcione uma ampliação de mecanismos sociais, económicos, políticos e culturais que promovam um urgente e necessário crescimento e uma evolução concertados. Assim, e como referido inicialmente, no que se refere à análise estatística, a representatividade numérica da comunidade muçulmana não se apresenta de grande dimensão, mas pela sua ação pública (individual e como grupo), posicionamento social e atividade nas mais diversas áreas, faz com que este seja um grupo visível que se faz “sentir”. Importa ainda evidenciar pela positiva o processo de integração, acolhimento e (con)vivência, de e para a comunidade, caracterizável como salutar mais diversos domínios. No plano religioso, que está sempre adjacente a condicionalismos e condicionantes da vida individual e social, em particular dos muçulmanos cujas normas são particulares, numa análise transversal relativamente à coexistência de diversas e diferentes confissões religiosas no espaço territorial português, assim como num paralelismo com a diversidade cultural, pode caracterizar-se como positiva e, em certa medida, exemplar. Por inerência à vida em sociedade, ocorrem focos de discórdia ideológica, cultural e de ação integrada, mas estes não se traduzem em conflito ou 66


tensão. Urge uma perceção da vida dos muçulmanos em Portugal per si, dada a fase e posicionamento social emergente e em expansão, estando a assistir-se pelo fenómeno da globalização e pela posição geopolítica de Portugal, a um crescimento da comunidade no que se refere ao número de indivíduos, mas em particular à ação interventiva e demarcação pela diferença ideológica e cultural com reflexo nas mais distintas áreas. Corroborando esta linha, a investigadora Nina Tiesler, “os muçulmanos em Portugal apresentam-se activos em questões sociais, culturais e religiosas, mas contrariamente à situação noutros países europeus, aqui a nova constelação sociocultural não deixa ver aquilo com que a investigação social tem que se defrontar: os campos nevrálgicos comuns nas seculares e cristãs sociedades capitalistas europeias. Em Portugal este encontro parece não só não ter suscitado tensões como não atraiu especial atenção.” Ou seja, a convivência com os muçulmanos em Portugal tem sido positiva, objetiva e notória, distinguindo-se peculiarmente dos restantes estados e sociedades europeus, assim como no resto do Mundo, onde os conflitos e os problemas sociais representam um grave problema cuja resolução se apresenta complexa. O diretor da Fundação do Legado Al-Andaluz disse em entrevista que “há um Portugal muçulmano impressionante que permanece praticamente desconhecido tanto dentro das fronteiras como no exterior, quando poderia servir como elemento unificador para o diálogo intercultural”. Neste sentido, refere-se objetivamente a dois fatores primordiais: o desconhecimento generalizado, numa marginalidade positiva; assim como a positividade que caracteriza o pacifismo relacional com a restante sociedade portuguesa. A maior comunidade muçulmana em Portugal reside na capital, na grande Lisboa, onde se tem concentrado e desenvolvido. Ainda que uma minoria, é representativa do maior grupo não católico a residir no país, com uma positiva coexistência social e religiosa com a restante sociedade. Denote-se que o maior e mais significativo grupo muçulmano imigrou para Portugal proveniente de Moçambique e da Guiné-Bissau, em especial no período pós-descolonização portuguesa, após 1974, aquando da queda do regime fascista – O Estado Novo – e a implantação de um regime democrático. Foram assim reunidas as condições favoráveis para a migração de povos, especialmente devido à facilidade da língua e em alguma medida, proximidade cultural, assim como pela abertura (implícita) da integração profissional. Numa primeira vaga, os PALOP (Países de Língua Oficial Portuguesa) foram a principal proveniência dos 67


imigrantes muçulmanos, o que atualmente já se modificou, chegando um pouco de todo o Islão. Refletir, estudar e interpretar a vida dos muçulmanos e das muçulmanas em Portugal, passando pela investigação e análise dos estudos que têm sido realizados sobre a presença islâmica e sobre a sua vida, permite entender que há muitas coisas e elementos por descobrir, sendo que a análise científica surge com grandes lacunas sobre distintas áreas de estudo, nomeadamente no que respeita às questões de género. Nesta conjuntura, é possível explicar-se uma marginalidade positiva se se entender que há um trabalho necessário para desenvolver, estudar, apoiar o conhecimento e reunir informação, dando uma importante e necessária visibilidade a esta comunidade. A sociedade portuguesa necessita deste trabalho de terreno no sentido de desenvolver um comportamento social promotor de apoio e efetiva integração, assim como a incontestável necessidade de conhecimento e estudo sobre um povo, de seres humanos que devem ser objeto de estudo para uma efetiva integração e proteção, no que se refere aos seus direitos fundamentais. O interesse deve ser interpretado como uma ação permissiva de evolução social, sendo que deverá ocorrer junto de todas as outras comunidades para aproximar todos os cidadãos, gerando condições para uma proximidade positiva, respeitadora das diferenças, conhecedora das suas características e com sentido de crescimento. É preciso quebrar visões limitadas ou ações redutoras que são frequentemente impeditivas e desencorajadoras de ações arrojadas para a defesa de todos os seres humanos para uma cidadania ativa em todas as dimensões. Há investigadores que opinam sobre o objeto de estudo considerando que se revela de certa forma escasso, apoiando-se nos números estatísticos, assim como nos “silêncios” e na pacificidade de relações e de vivência, opinando sobre a falta de preocupação ou dedicação devido à integração positiva e discrição. Porém, o estado da arte deste estudo não se apresenta tão linear como se faz sentir. É exatamente nestes aparentes silêncios ou apatia que deverá incidir a preocupação pela possibilidade de ocultar realidades não visíveis que necessitam ser conhecidas, apoiadas e trabalhadas, através de mecanismos especialmente adaptados às necessidades diagnosticadas. Vejamos, no que se refere aos direitos das mulheres e à invisibilidade que caracteriza a sua realidade no seio da comunidade muçulmana, importa refletir e investigar. Como disse Ana Vicente apresenta-se uma necessidade de “emergir como problema – tirando da sombra – aspetos do real até então sob silêncio ou na invisibilidade”. Desta forma ao papel e a vida da mulheres muçulmanas a viver em 68


Portugal deverá ser objeto de estudo para que haja trabalho específico de proteção e defesa dos seus direitos enquanto seres humanos, assim com diagnóstico de eventuais ações que violem os mesmos. Partindo de uma realidade que se reflete num quadro social minoritário, não se pode, nem deve, minorar as problemáticas que afetam estas mulheres, o que afastaria uma real e correta perceção. Consequentemente, um dos objetivos passa por colmatar a desinformação, desconhecimento e invisibilidade que afetam grupo social imiscuído e discreto no seu comportamento, nas suas problemáticas e por inerência na sua projeção e procura de eventual apoio. Numa análise sociológica, de educação social e de intervenção para a defesa e proteção de direitos dos indivíduos, estes fatores são frequentemente colocados num plano secundarizado, de não existência ou ainda de adulteração conceptual. Vejamos, no que se relaciona com a problemática que envolve e caracteriza as questões de género em Portugal, muitos e graves são os problemas que as mulheres portuguesas, ou a residir em Portugal, enfrentam nas mais diversas vertentes da sua vida. Desde logo, o peso histórico é ainda marcante, decorrente de um passado de opressão e repressão, o que se reflete numa invisibilidade e secundarização ao nível do diagnóstico e processo de intervenção para colmatar as falhas e procura de metodologias e instrumentos para resolução dos problemas. Há como que uma conivência ou mesmo apatia que perigosamente se instalou na sociedade em geral, apesar de nos últimos anos ter havido uma panóplia de ações de sensibilização, (re)educação social, intervenção junto das vítimas mais “visíveis”. No que se refere ao objeto de estudo do presente artigo importa afirmar que a questão das mulheres muçulmanas em Portugal não tem sido alvo de profundas preocupações, estudos ou intervenções, à semelhança dos restantes grupos de mulheres imigrantes no país, independentemente de serem uma minoria, ou não. Considere-se particularmente gravoso quando nos referimos às autoridades competentes que nem sempre cumprem com o papel que lhes é atribuído. Consequentemente, por desconhecimento, desinvestimento estratégico político e social, seja por qualquer outra motivação, os problemas que afetam estas mulheres imigrantes têm uma natural tendência para agudizar, evoluir negativamente e degenerar em situações mais complexas e de difícil resolução, não ocorrem o inquestionável dever de proteção dos direitos de género, numa e para um igualdade de direitos e oportunidades que lei impõe e que a sociedade não cumpre. 69


No plano cultural, conceptual e normativo, no Islão a mulher é indubitavelmente um dos elementos que gera mais controvérsias e divergências, sobretudo pelo papel que é obrigada a desempenhar, pela vida paralela que lhe é exigida pela religião muçulmana e pela comunidade islâmica. Enunciem-se alguns dos problemas que afetam as mulheres muçulmanas em Portugal e que revelam que a “aparente” pacificidade oculta: a discriminação de género que tem início na vida familiar e na frequente falta de liberdade de opção por uma vida profissional, cabendo a decisão final aos homens da família, sendo frequentemente impedida com base nas leis do Alcorão. Por outro lado, o facto de ser muçulmana é um outro fator promotor de discriminação social, sobretudo no que concerne à igualdade de oportunidades, num enquadramento legal e normativo islâmico (religioso) que é inquestionável, assim como pela conhecida “islamofobia” que surgiu principalmente com os Atentados de 11 de Setembro de 200 às Torres Gémeas em Nova Iorque. A Amnistia Internacional no que se refere à discriminação com base na religião ou crenças, refere objetivamente que “com a implementação da nova legislação para reforçar a segurança que restringiu seriamente a liberdade dos cidadãos e o respeito pelos direitos humanos.” Acompanhando a permanente mutação social que tem vindo a ocorrer, fruto da migração, foi de igual forma vivenciando grandes alterações na sua conjuntura, objetivos, ação, o que gerou uma reconstrução identitária localizada, na qual os regionalismos se revelam superiores ao universalismo defendido por muitos. Ou seja, as necessidades e as características locais apresentam-se e vivenciam-se como preponderantes à cultura globalizante, num binómio tradição-renovação, como elementos conjunturais e reais em qualquer sociedade. Importa referir que após o fim do regime fascista que vigorou 40 anos, durante o qual a religião católica não era uma opção, e as restantes confissões eram manifestamente minoritárias e pouco significantes na vida social do estado português, atualmente, decorrente da democracia que vivemos, da globalização e de uma irrefutável liberdade religiosa, ainda que seja maioritário, o catolicismo ainda que sendo maioritário, não se reflete como homogeneidade da religião no país. Esta diversidade e amplitude é também reflexo do fluxo de migração, em particular com a chegada e estabilização de imigrantes professantes de outros “credos”, não apenas do Islão mas também de outras orientações, como o paganismo ou protestantismo.

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Porém, a incultura e/ou educação social deficitária são questões que naturalmente geram conflitos ideológicos, comportamentos discriminatórios, racistas, em alguns momentos mesmo xenofobia. Se o desconhecimento provoca desconfiança, logo há um afastamento relacional no seio da sociedade, ainda que de forma discreta e sem gerar escalada de agressividade. E cabe aqui introduzir a necessidade de uma educação social cada vez mais objetiva e estruturante direcionada para o reconhecimento, promoção e proteção de valores fundamentais, no que respeita aos Direitos Humanos, e particularmente motivadora de um conhecimento e interpretação profunda sobre a diferença e a igualdade, de deveres e direitos. No que se refere aos direitos de género, ainda que lamentavelmente, foi uma questão descurada durante décadas, pelas mais diversas motivações, o que gera uma ação social ainda redutora e cuja eficácia é muito questionável. Neste processo de crescimento e evolução da consciência individual e social dos problemas de género, de forma global, que se impõe, é de salientar o papel que os meios de comunicação social desempenharam, denunciando casos que foram formando sobretudo sensibilização social, apesar das limitações e opiniões tendenciosas, que em alguns momentos se traduziu num sensacionalismo, sendo que o interesse das audiências prevaleceu ao ato de informar com a isenção devida e exigida. A opinião pública foi sendo objeto de importantes agitações e mutações, ainda que ténues. Refletindo sobre os problemas que mais afetam as mulheres muçulmanas em Portugal, e que violam os seus direitos fundamentais, encontra-se o cerne da questão nas mulheres casadas, que normalmente chegam inicialmente sozinhas. Aquando da chegada da sua família, em particular dos seus maridos, é-lhes conferida a sua posição social de inferioridade e sem possibilidade de opção. O mais normal e frequente é ficarem limitadas à vida doméstica sem acesso a um trabalho, com todas as limitações que tal implica. Sobretudo por motivação religiosa e cultural, as mulheres islâmicas vivem maioritariamente sob um rigoroso controlo familiar e rigoroso, onde o tradicionalismo, a fidelidade e o cumprimento rigoroso das leis do Alcorão prevalecem e são sobrepostas a qualquer outra realidade. O plano da igualdade de direitos, de oportunidades e de liberdade individual e social, é menosprezado, num estado onde a Constituição da República Portuguesa e a legislação preveem, assim como enquanto membro da União Europeia estas são leis incontestáveis para todos os cidadãos. Atualmente, ainda que provenientes de várias áreas geográficas do mundo, as mulheres imigrantes muçulmanas em Portugal são maioritariamente oriundas da Guiné 71


Bissau e da Índia, pelo que as tradições e as identidades populacionais se caracterizam pela diversidade que se apoia na etnia, assentando numa mesma cultura religiosa. É de salientar que em contexto migratório o desejo de libertação e autonomização das mulheres surge, muitas vezes, associado aos objetivos de reunificação familiar. Ou seja, prevalecem a educação e os valores da família evocados e exigidos socialmente, em particular pela lei islâmica. No que concerne à inserção profissional, que é um dos mais gravosos e complexos problemas que afetam estas mulheres, a vontade, capacidade, competência e direito individual e fundamental, é superado pelas regras e normas impostas de recado familiar e isolamento social que lhes é imposto. O conhecimento e a vontade de autodeterminação da mulher muçulmana para o mundo de trabalho surgem de forma mais incisiva aquando da migração. A inserção profissional pode então surgir como vontade própria, ou ainda, como necessidade de sobrevivência e/ou crescimento económico. Mas á semelhança da realidade noutros países, em Portugal, quando as mulheres são integradas profissionalmente surge a oportunidade de terem uma independência, de viver uma vida própria, ganhando uma autonomia e uma visão diferenciada da vida e do mundo, que não ocorreria se vivesse fechada no seio e para a família. Neste sentido, quando colocam os seus filhos no sistema de ensino, as famílias muçulmanas são obrigadas a adaptar-se à cultura educacional do país, sendo este o meio por excelência de transmissão de ordem pedagógica das normas, valores e leis da sociedade portuguesa. O sistema não pretende uma aculturação, apenas a integração assente na igualdade de direitos e deveres, onde a liberdade religiosa é um fator-chave. Esta é situação que nem sempre se apresenta como simples ou pacífica, ainda que se tenha desenvolvido um conjunto de mecanismos políticos, educacionais e sociais objetivando uma integração e inclusão destes seres humanos de pleno direito. Neste âmbito importa referir que situações de impedimento são geradas pelas condicionantes que a família impõe justificadas pelos dogmas religiosos, não permitindo a muitas crianças, em particular meninas, aceder à educação adequada à sua idade. Há uma clara tendência para que estes casos sejam cada vez mais minoritários, devido ao trabalho de associações e estruturas públicas e privadas, cujo objetivo é promover uma educação para todos. Efetivamente este é um problema que se apresenta na génese de muitos outros problemas que afetam a vida destes indivíduos ao longo do seu crescimento pessoal e acesso a uma profissão, e ainda de integração social.

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Ainda que não declarado ou assumido, toda esta complexa problemática exige uma atenção especial e estratégica por parte das estruturas políticas e sociais, no sentido de proteger e defender estes seres humanos de pleno direito. Ainda que a lei assim o declare, é indubitável que o problema persiste, sobretudo devido à falta de vigilância e controlo das autoridades e entidades com responsabilidade na matéria. Sendo a educação um direito fundamental, certo é que se desenvolvem situações de discriminação social, e tudo quanto está associado, facto que tem que ser necessariamente erradicado. Ainda que o islamismo preveja para a mulher o papel de “dona de casa”, certo é que as jovens muçulmanas em Portugal têm lutado por ultrapassar esta postura tradicional, buscando a sua independência através do ensino e, em particular através de trabalho. Especialmente as mulheres provenientes da Guiné têm optado por desenvolver trabalhos que exigem pouca qualificação, mas agarrando todas as oportunidades que lhes são permitidas. No entanto, este tipo de trabalhos tem uma baixa remuneração, condicionando consequentemente a independência que estas mulheres procuram, por não permitir condições suficientes para uma efectiva autodeterminação. Parafraseando Maria Abranches, “o acesso […] ao ensino adquire, assim, um papel fundamental por dois motivos. Por um lado, é ele próprio, muitas vezes, objecto de negociação entre as jovens e os seus pais, dada a tradição de que apenas os rapazes devem prosseguir os estudos, e, por outro lado, produz uma inevitável filtragem e atenuação das diferenciações religiosas e culturais, dado que o alargamento das redes de sociabilidade destas jovens acaba por interagir com a estrutura familiar e social de origem, tradicionalmente pouco permeável à mudança.” Sendo um direito, é irrefutável que o casamento se apresenta-se como uma complexa problemática, sobretudo se for interpretado e percecionado como uma efetiva limitação que gera à vida junto das mulheres muçulmanas, devido ao condicionamento da liberdade de escolha interpares. A imposição do casamento entre indivíduos da mesma religião não permite às mulheres a opção de uma vida aberta à sociedade em geral. Desta forma, o período do namoro é sempre uma aventura para os jovens pois há ainda muitos receios de represálias para os rapazes que namoram com as jovens muçulmanas. A razão prende-se com o facto do período de namoro, segundo a religião muçulmana não existir, ou seja, há uma tentativa de reconstrução das normas, porém ocultadas, sendo que as jovens vivem este período em segredo com medos

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fundamentados, pois se forem eventualmente descobertas são severa e deploravelmente castigadas. Mais uma situação diagnosticada que se caracteriza como preocupante. Acresce ainda o facto de para os muçulmanos a virgindade ser um elemento que está na base da estruturação e integração familiar, como valor fundamental incontestável. Nos nossos dias, ainda que estas mulheres vivam de forma controlada e vigiada, sem que este valor tenha perdido o seu peso no seio desta comunidade, reflexo da liberdade e vida igualitária, é uma realidade a vida sexual ativa das raparigas antes do casamento, o que se passa evidentemente numa tenebrosa penumbra. Porém, a mais séria preocupação reside nas punições e na discriminação que são exercidas nas raparigas, objeto de castigos severos por parte das próprias famílias. Digamos que há a busca de uma vida livre no que respeita à sexualidade, mas que este é um direito condicionado às normas religiosas, sendo que quando vivenciado é considerado uma grave violação dos ditames do Alcorão. No que concerne à poligamia, que não é permitida pela lei portuguesa, é uma realidade entre a comunidade muçulmana a residir em Portugal, pelo que nos com uma realidade social que se tem vindo a modificar, sobretudo nos grupos integrados na sociedade, ainda que com algumas questões dúbias. Ou seja, sendo a poligamia é permitida e promovida na religião muçulmana, mas nas segundas gerações migratórias tem havido uma positiva evolução estratégica no sentido de implementar a disseminação desta estrutura familiar, não aceitando uma coabitação com outras mulheres para um só homem. Este quadro poligâmico reflete-se na obrigação que assiste a estas mulheres e que as priva dos seus direitos fundamentais, sendo estes frequentemente violados, isto é, violando a sua liberdade individual (nas mais diversas vertentes) que é sobretudo ignorada. Apesar de uma afirmada e determinante coesão familiar, as mulheres mais jovens vivem uma permanente negociação com a matriarca da família – a mãe – no sentido de se adaptar as normas culturais à realidade social do país de acolhimento. “Os imigrantes, enquanto actores sociais, definem igualmente estratégias identitárias em diferentes contextos, mobilizando determinadas categorias para organizar as interacções e interpretar as diferentes situações”, afirma Maria Abranches. Sob o ponto de vista social e sob a diferenciação cultural, assuma-se que na comunidade islâmica imigrante em Portugal há uma homogeneidade interna, cujo percurso se apresenta como promotor do seguimento e do cumprimento das normas e dogmas religiosos. Porém, as falhas de comunicação que vão ocorrendo e prevalecendo 74


no tempo, sem que isto signifique ou justifique conflitos ou violência, geram uma invisibilidade e ocultação de questões que afetam os direitos das mulheres muçulmanas, não criando condições permissoras ou contextualizando positivamente o seu auxílio e proteção. Se a diversidade é uma riqueza humana, onde a identidade se pode construir pela diferença de valores e comportamentos sociais, é inquestionável que deverá prevalecer o respeito pelo ser humano no que se refere aos seus direitos fundamentais e valores. Porém, a inflexibilidade cultural e social, seja das comunidades imigrantes, neste caso islâmica, seja da sociedade recetora e acolhedora, neste caso a portuguesa, encerram em si um instrumento de discriminação e falta de comunicação que não promovem uma interação positiva num necessário crescimento e evolução individual e da sociedade. Daí decorre uma inerente consequência que tem sido visível na sociedade portuguesa, a exclusão social e a pobreza, nas quais as mulheres são alvo de maior vulnerabilidade pela fragilidade aos mais diversos níveis que (a)representam. Ainda assim, a comunidade islâmica tem sido resistente a este flagelo humano que decorre da situação económica e financeira, e ainda que tenha enfrentado sérias dificuldades, tem havido uma evolução positiva. Salvaguarde-se a crise económica que a europa em geral, e Portugal em particular, enfrentam, em particular o aumento da taxa de desemprego, assim como pelas motivações já enunciadas, as mulheres são as mais afetadas, havendo um maior risco de exclusão social e pobreza. Não menos importante, mas de grande e séria relevância, cumpre neste artigo abordar uma gravíssima situação, cuidadosa e perigosamente ocultada, que coloca em risco a vida de mulheres muçulmanas que não têm possibilidade de se defender: a Mutilação Genital Feminina que representa um crime grave, no plano dos direitos humanos fundamentais, cometido contra seres indefesos em nome de uma religião. A justificação deste ritual apresenta-se com um ato purificador, mas dada a violência cometida e as condições em que é praticada provoca mortes violentas, deixando problemas de saúde irreparáveis às mulheres, e representando uma gravíssima violação. Os problemas surgem nos mais diferentes níveis: físicos, psicológicos e sociais. Ainda que seja em África que esta prática seja mais frequente, certo é que, apesar de em número reduzido, há indícios que também em Portugal, no seio da comunidade islâmica, este ato desumano seja praticado. Porém, as entidades competentes não se apresentam muito preocupadas nem atuam de forma a averiguar e a disseminar esta violenta prática, sempre justificando com o eventual número reduzido e a dificuldade de 75


penetração na comunidade. Ainda que ética e legalmente a Mutilação Genital Feminina seja proibida, referenciada como uma prática “pouco provável”, devido à sua probabilidade minoritária, tem como reflexo um delicado menosprezado e secundarização. Este é um ritual tradicional que se realiza em diferentes sociedades cujas consequências são gravíssimas para a mulher vítima, sendo atualmente objeto de legislação específica, em diversos estados do mundo, porém, em Portugal a legislação não prevê estas situações, pelo que existem tantos e eficazes instrumentos e estruturas que prevejam a sua irradicação e a proteção das vítimas, ou das potenciais vítimas, para uma defesa e proteção destas mulheres. Sendo Portugal um Estado de Direito, com obrigatoriedade legal e missão fundamental e prioritária a proteção de todos os cidadãos que vivem no país, é possível afirmar que tem havido uma evolução, ainda que ténue, do cenário legal para proteção dos direitos das mulheres, defesa de vítimas de violações, assim como de punição latente e / ou efetiva dos prevaricadores. Há mais associações, há estruturas renovadas, há mais ações políticas e sociais com este objetivo, mas a sua eficácia está ainda distante das necessidades diagnosticadas, e o tempo de ação interventiva está muito aquém daquilo que seria necessário e esperado. Em suma, o Islão é frequentemente conotado como sinónimo de guerra, guerrilha, conflito e agressões aos direitos fundamentais de milhões de seres humanos. E se na sua génese está um significado que se traduz em conceitos tão objetivos como a paz, o entendimento entre os homens e o bem-estar material, não é questionável que muitos são os problemas cuja complexidade está inerente, exigindo uma perceção científica, política, social, mas em particular humana. Urge implementar mecanismos e estratégias diversificados, adaptados e adequados, promotores de uma aquisição de um conhecimento e uma perceção de quão valiosos são os instrumentos de evolução e crescimento da humanidade. É fundamental defender e proteger os direitos de seres humanos que são subjugados às normas religiosas, as quais exigem a violação de direitos fundamentais, o que deve ser trabalhado por todos os meios, exceto pela violência física, verbal ou bélica, usados à escala internacional com demasiada frequência e facilidade. Evidencie-se que a comunidade muçulmana em Portugal tem membros conscientes da violação de direitos humanos que é praticada no interior da mesma, fazendo questão de denunciar este grave problema, no sentido de desenvolver uma

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sensibilização para a consciência que deve existir. Faranaz Keshavjee afirmou num artigo de opinião que: “No que diz respeito à violação de direitos humanos, o que é absolutamente incoerente e inconsistente é a nossa falta de humildade em reconhecer que somos igualmente falhados nessa matéria. Pois, senão, não se aceitariam situações como a morte de muitas mulheres por agressão dentro das famílias, e sob a cumplicidade da própria sociedade. Os números assustadores que aparecem são apenas os das que aparecem! Outras haverá que nunca vêm a público, muitas vezes na cumplicidade de mais olhares e ouvidos. Como podemos julgar a morte de crianças noutras realidades se entre nós, onde preparámos especialistas e leis, e temos técnicas científicas para identificação de grupos, famílias ou indivíduos de risco, permitimos que casos como o do Baby P., em Inglaterra, ou a Joana portuguesa possam acontecer? Que valores poderemos fazer valer numa negociação quando somos nós mesmos incoerentes, inconsistentes e usando sistematicamente políticas bivalentes assentes em poderes corporativos? Estou convencida de que há muito a mudar no mundo, mas precisamos, primeiro, de ter a humildade de reconhecer as fendas dentro das nossas tendas e remendá-las e, só depois, ter a pretensão de ajudar os outros a remendar as deles!”

Ora intencional, ora ocasional, certo é que a violação dos direitos de género neste país é uma dramática realidade que merece uma atenção cuidada e séria, por parte da sociedade em geral, e em particular pelas instituições e organizações cuja competência e obrigação legal passa necessariamente pela defesa e proteção de seres humanos no que respeita aos seus direitos fundamentais. Conclui-se e reafirma-se que os mais graves problemas de violação dos direitos das mulheres em Portugal têm a sua génese no desconhecimento, na desinformação e na invisibilidade que resistem e persistem na sociedade portuguesa, sobretudo no que respeita às muçulmanas. A necessidade de crescimento, educação social e correta perceção revela-se crucial no trilho para colmatar este drama social.

Referências Bibliográficas BAGANHA, M. et all. Imigração e política – o caso português. Lisboa: Edição Fundação Luso-Americana, 2001. BASTOS, S. et all. Portugal multicultural: Situação e Estratégias Identitárias das Minorias Étnicas. Lisboa: Fim de Século Edições, 1999. Boletim Informativo do ACIME, n. 34, Novembro/Dezembro de 2005.

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Cristãos e Muçulmanos em Portugal. In: Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2009. [Consultado 2009-02-23]. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$cristaos-e-muculmanos-em-portugal>. FARIA, R. Participação marroquina na construção da comunidade muçulmana em Portugal. Madrid: Universidad Autónoma de Madrid, 2008. FRIAS, S. Contribuição para o estudo de processo de adaptação à mudança: O caso de duas mulheres da região de Lisboa. Lisboa: UA, 1995. KESHAVJEE, F. Como podemos julgar outros se, entre nós, permitimos que casos como o do Baby P. ou o de Joana possam acontecer? Lisboa: Jornal Público de 23.11.2008, 2008. MOUALH, D. Mujeres musulmanas: estereotipos occidentales versus realidad social. Barcelona: Universitat Autónoma de Barcelona, Departament d‟Antropologia Social i de Prehistória, 2000. RELATÓRIO da Comissão Europeia sobre a Igualdade entre Homens e Mulheres, 2007 RELATÓRIO da Amnistia Internacional Portugal sobre a Campanha “Acabar com a Violência Sobre as Mulheres”, 2006 SCHOUTEN, M. Modernidade e indumentária: As mulheres islâmicas. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2004. SOS RACISMO. A imigração em Portugal – Movimentos humanos e culturais em Portugal. Lisboa, 2002. VICENTE, A. Os poderes das mulheres, os poderes dos homens. Lisboa: Editora Gótica, 2002. CREDENCIAIS DE AUTORIA Ana Campina Natural e residente em Aveiro, Doutorada em Direitos Humanos pela Universidad de Salamanca (Espanha), DEA em História Contemporânea pela Universidad de Salamanca, Licenciada em Ciência Política, Especialização em Relações Internacionais pela Universidade Internacional (Portugal), Professora na Escola Profissional de Aveiro desde 2002 na área das Ciências Sociais. Palestrante em eventos (nomeadamente em Congressos) Internacionais sobre Direitos Humanos (Espanha, Brasil e Portugal), formação especializada e formadora na mesma área, nomeadamente de Formação de Formadores e Igualdade de Género. Publicações em Espanha e no Brasil sobre as questões direitos humanos, história de Portugal (salazarismo) e sobre os direitos de género. Formadora do Centro Jacques Delors para a área dos direitos humanos, nomeadamente a solidariedade, voluntariado e direitos humanos. Contato: ana.campina@gmail.com

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CRIAR|ENVOLVER|ORIENTAR EM T0: O ENSINO NA DIVERSIDADE. Paula Sofia de Melo Tiago Pedro Miguel Pala de Sá A escola deixará de ser talvez Tal como a compreendemos, Com estrados, bancos, carteiras: Será talvez um teatro, uma biblioteca, Um museu, uma conversa. Leon Tolstoi

A quem ainda duvide que a escola dos nossos dias está preparada para os alunos ditos normais, os acessos, as salas de aula, os equipamentos, as atividades pedagógicas, o “currículo uniforme pronto-a-vestir de tamanho único” (FORMOSINHO, 2008, p.7), as práticas letivas, o ensino TGV e os professores, ou profetas de autocarro, confirmamno. A escola ainda é pouco acolhedora, ainda tem dificuldades em gerir e valorizar a diferença como uma oportunidade educativa. Decorridos anos sobre a Declaração de Salamanca (1994) – o grande marco da educação inclusiva – assiste-se ainda a um quotidiano de práticas educacionais que variam entre a proximidade e o afastamento da inclusão (também há escolas especiais, professores especiais, com aulas especiais, onde as estratégias e práticas especiais conseguem, de facto, respeitar todas as diferenças, de todos os alunos, e mesmo assim conseguir – a árdua tarefa ou diga-se antes a proeza que muitos apregoam platónica – de que todos aprendam juntos e tenham sucesso na escola). Neste contexto, e numa reflexão sobre o funcionamento do sistema educativo no que respeita à educação especial importa pensar-se sobre aquilo que se faz na Escola de Hoje. É certo para todos que, em cada novo ano, aparecem na escola alunos com necessidades, às quais, normalmente, corresponde um fraco rendimento escolar. São muito diversos e de origem muito diferente, os problemas que afetam os alunos e que, pelas suas características especiais, podem levar a uma rejeição das atividades da aula e a um estado de angústia, porque não aprendem porque têm dificuldades, e rejeitam as aulas porque não aprendem. Estamos, então, perante questões em crianças e jovens em idade escolar, legalmente considerados, e que assim nos remetem para o conceito de “necessidades educativas especiais” – um termo hoje generalizado a quase todos os países 79


desenvolvidos que tomaram como causa a não discriminação das suas crianças e jovens em idade escolar. É por isso da máxima importância criar um ambiente educativo que se revele positivo para o processo de aprendizagem do aluno, no meio menos restritivo possível. Casos reais? Estratégias de intervenção? Curas? Não, não existem curas. Poções mágicas, truques de magia? Não, também não, seria fácil de mais e não se estariam a resolver os problemas mas apenas a fazê-los desaparecer. Aqui, entra a questão que divide governo, professores, pais e alunos: inclusão ou exclusão na escola? A palavra inclusão só existe porque se falou primeiro em exclusão. Durante anos, tentaram esconder-se, fazer desaparecer, como num truque de magia, as crianças especiais, as crianças que não aprendiam como as outras, não andavam como as outras, não comunicavam como as outras, mas que sorriam como tantas outras, choravam e sonhavam como tantas outras e desejavam ser vistas, ouvidas, sentidas, como iguais. O “novo” paradigma da educação aponta a inclusão como cura para todos os males, sem que primeiro tenha sido feita e testada uma vacina… é certo que é no convívio, no conhecimento e aceitação da diferença que caminhamos para uma sociedade inclusiva, uma comunidade com responsabilidade social, um mundo melhor, um mundo igual onde todos têm os mesmos direitos. Mas estarão as escolas, os professores e os alunos preparados? A nossa escola está! A Escola Profissional de Aveiro é uma escola acolhedora, respeitadora das (des)capacidades e (in)diferenças de todos os seus alunos. Importa aqui, e agora, esclarecer que a nossa escola é de Ensino Vocacional e Profissional promovendo, por isso, não só a instrução académica e curricular mas essencialmente a formação profissional – saber-fazer – isto é, a capacitação de todos os seus alunos, com ou sem NEE para o mercado de trabalho, desenvolvendo competências pessoais e socias do saber-ser e do saber-fazer. Isto significa compreender e aceitar que todos os alunos, com deficiência ou não podem ser excelentes profissionais e úteis para a sociedade. Sublinhe-se que este tipo de ensino, em Portugal, abraça todos os alunos, sem exceção, considerando-se per si só, inclusivo – a miscelânea, o tecido escolar, é formado por retalhos excluídos, que ninguém quer usar. São malhas soltas pelos mais distintos motivos: não se coadunam porque são diferentes, porque não se inserem nos estereótipos comportamentais e sociais, porque não estão motivados, porque provêm de múltiplas origens culturais, étnicas e socioeconómicas. Desta forma, espera-se que a Escola contribua para o acolhimento, orientação e envolvimento de todos os alunos ultrapassando barreiras e preconceitos. 80


Uma parte importante do sucesso desta escola deve-se aos órgãos de gestão que vão sabendo interpretar a diferença como emblema de construção de uma identidade, prestando um cuidado muito particular aos alunos com NEE, incluídos em pleno nas salas de aula. Para tal conta com uma vasta equipa de técnicos especializados – a verdadeira equipa multidisciplinar – e um grupo de professores que, atentos e sensíveis à diferença, encontram-se caminhando, desbravando terreno, para uma escola e sociedade de facto inclusivas. Assim, a Escola Profissional de Aveiro (EPA), tem considerado categorias diferentes e especificas de problemas que estes jovens possuem e que, deste modo, exigem naturalmente atividades, medidas de apoio e complementos educativos específicos. Na sua missão, de incluir educativa, social e profissionalmente e certa de que este é o caminho, equacionou a criação de um ambiente educativo positivo, inclusivo e envolvente em meio escolar. Assim, tem ao longo dos últimos anos trabalhado de forma a criar as melhores condições para a inclusão e formação desta população alvo. Na persecução desse objetivo tem apostado em estratégias e metodologias de trabalho aferidas às idiossincrasias dos(as) alunos(as), como a pedagogia diferenciada, currículo funcional natural adaptado às (des)capacidades e perfil de funcionalidade de cada um dos jovens ou adolescentes. Numa perspetiva de melhoria continua, apoiada no conhecimento e produção científica relativa à problemática em causa, tem, a EPA, delineado novas formas de intervenção e educação, nomeadamente a criação do CEO em T0, apartamento funcional adaptado, destinado ao treino e prática em contexto funcional e natural de tarefas e atividades da vida quotidiana. Bebemos aqui da opinião de LEBLANC (1992) Cit. In. Suplino (2005) no que se refere à nomenclatura de currículo funcional natural: O termo funcional refere-se à maneira como os objetivos educacionais são escolhidos para o aluno, enfatizando-se que aquilo que ele vai aprender tenha utilidade para sua vida no momento atual ou à médio prazo. O termo natural diz respeito aos procedimentos de ensino utilizados, colocando-se em relevo fazer o ambiente de ensino e os procedimentos o mais semelhantes possível ao que pode ocorrer no cotidiano.

Os processos de autonomia, inclusão escolar e social, efetivam-se como núcleos centrais na promoção de percursos adaptativos, na necessária e desejada adaptação ao meio e no ajustamento, presente e futuro, aos diversos papéis que os jovens com NEE terão de desempenhar ao longo do seu percurso de vida. Partindo destes pressupostos e 81


com o intuito de possibilitar a melhor formação e educação aos nossos alunos e à comunidade em geral, na escassez de respostas sociais para a população-alvo, a Escola Profissional de Aveiro criou em janeiro de 2012 um projeto que consideramos inovador, capaz e indispensável na missão que nos move, educar, cuidar e formar. Daqui emerge o projeto CEO (Cuidar, Envolver e Orientar), do mesmo são parte integrante três espaços distintos: CEO em T0, destinado à realização de atividades de promoção de autonomia de vida. Este espaço privilegia a autonomização e inclusão de alunos com NEE na escola e sociedade. Assim, e à semelhança de um apartamento T0 real, o espaço é composto por cozinha, sala de estar, sala de jantar, quartos de banho (com sinalética para os géneros) e quarto de dormir, devidamente equipados. Concomitantemente, recurso de terreno comunitário – concretizado numa horta pedagógica, para a promoção de atividades educativas, lúdicas e pedagógicas potenciadoras de conhecimentos. Assim, os alunos poderão explorar in loco o contacto com a terra, experienciar os elementos naturais e espécies vegetais, durante todas as estações do ano. Deste modo, procura-se potenciar o contato com o mundo rural (plantar, manter e colher), aspeto quase

inexistente

na

sociedade

atual,

promovendo

a

responsabilidade,

o

desenvolvimento de experiências sensoriais e o contacto direto com o crescimento de um ser vivo. Atendendo à especificidade deste espaço educativo e formativo, que nos propomos realizar o currículo inclui disciplinas funcionais como economia doméstica (gestão de finanças); manutenção doméstica (organização de despensa, conservação de bens alimentares, manuseamento seguro de produtos tóxicos) e limpeza doméstica (limpar o pó, aspirar, lavar, passar a ferro, fazer a cama, enfim, cuidar da casa). A título de exemplo a transversalidade de espaços de aprendizagem, concretizase em: “Uma experiência na cozinha do CEO” – a aula de física e química pode, com certeza, ser lecionada na cozinha; “O texto instrucional – uma receita culinária” – as competências de leitura, funcional, são trabalhadas, com sentido, na confeção de uma refeição; “Pesos e medidas na cozinha.” – a matemática ensina-se fazendo e experimentando. Nas atividades culinárias práticas, realizadas em ambiente seguro e supervisionado, os alunos familiarizam-se com os alimentos, confecionando receitas simples e saudáveis. Concomitantemente realizam-se visitas a mercados e outros estabelecimentos com o objetivo de incrementar as suas capacidades de tomada de decisão relativamente à escolha de produtos atendendo às noções de caro-barato, verde82


maduro, entre outras. Privilegiam-se, também, o contato com a moeda, a utilização do multibanco, realização pagamentos e o conferir de trocos. Desta forma, procura-se ativar o raciocínio lógico-dedutivo funcional, a independência e autonomia. Potencia-se,

também,

o

desenvolvimento

da

área

comunicacional,

o

relacionamento interpessoal, a capacidade de resolução de problemas bem como a efetivação/perceção de que é possível vingar na vida pese embora as suas (des)capacidades. A Oficina Criativa é mais um espaço pedagógico que promove atividades de desenvolvimento da personalidade do aluno(a), a autoeducação, desenvolvimento da expressão, da criação e da imaginação e o desenvolvimento da autoconfiança. Temos, para nós, a convicção de que a intervenção psicopedagógica em alunos com Necessidades Educativas Especiais, graves e permanentes, necessita, forçosamente, de atividades que favoreçam e potenciem a consciência sobre o próprio corpo partindo do maior número de experiências distintas assim, o campus da EPA, dispõe ainda do Parque dos Talentos – quatro salas de aula funcionais e adaptadas às especificidades que se pretendem incrementar: a sala Forma para desenvolvimento da personalidade do aluno(a), através da expressão dramática e psicodrama; a sala movimento – dança e expressão corporal - trabalho de coordenação motora, sensibilidade auditiva, gestão de tempo, dimensão de espaço, harmonia, equilíbrio e flexibilidade; a sala Infinito – expressão musical e relaxamento - sensibilização para a música, sentido rítmico e auditivo, capacidade de improvisar, espontaneidade,

atenção e memória, relação

música-linguagem-movimento, discriminação de sons e exploração de diferentes instrumentos musicais; sala cor – expressão plástica - desenvolvimento da imaginação, criatividade, noção espacial, psicomotricidade e personalidade. É desta forma possível prevenir, atenuar ou tratar problemáticas, promover momentos de prazer, desenvolver a atenção, comunicação, perceção e socialização. Este é um espaço de liberdade e criatividade espontânea. Devemos destacar, também, o trabalho realizado em/com os encarregados de educação que, devido a dificuldades inerentes à educação e formação dos seus filhos com Necessidades Educativas Especiais, se caracterizam pela reivindicação constante de atenção, integração e inclusão dos seus educandos. Esta característica possibilita uma proximidade enorme à escola e aos técnicos que diariamente trabalham com os seus filhos. Dessa forma, a continuidade do trabalho iniciado na escola, na autonomia dos filhos, por exemplo, será mais eficaz e efetivar-se-á mais positivamente do que em 83


outras situações em que os encarregados de educação, por diferentes razões, se encontram distantes, por vezes demasiado distantes da escola. O trabalho de sensibilização, de definição de metas e expetativas realistas para o futuro dos alunos e o trabalho conjunto, são mais uma variável importantíssima no trabalho desenvolvido. As ações de formação, os workshops, a participação em atividades conjuntas (escola encarregados de educação – alunos – sociedade), a partilha de experiências e informação possibilitam, também, a implicação e o sentimento de pertença à comunidade escolar. Acreditamos que o projeto apresentado e todo o trabalho que dele emergirá será de suma importância e efetivar-se-á como exemplo de boas práticas para os jovens com Necessidades Educativas Especiais e para outros estabelecimentos de ensino, possibilitando a sua reprodução e migração de know-how técnico. Parece-nos, ainda, que o trabalho de ligação entre a emergência do projeto, os objetivos delineados e estratégias para os atingir são exequíveis e, com certeza, se distinguem pelo seu caráter original, único, versátil, robusto e imprescindível. Certos de que ainda há um longo caminho a percorrer, a Escola Profissional de Aveiro encontra-se caminhando, num passo seguro rumo à inclusão e formação biopsicossocial de todos os seus alunos.

Aqueles que não podem, não sabem ou não querem aprender como nós os ensinamos, esperam que nós aprendamos a ensiná-los como eles aprendem” Professor Celso Oliveira EPA, 28 de março de 2012 (Sessão Inaugural do Espaço CEO)

Referências Bibliográficas FORMOSINHO, J. e MACHADO, J. Currículo e organização das equipas educativas como modelo de organização pedagógica. In: Currículo sem Fronteiras, v.8, n.1, Jan/Jun 2008 ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org5. SUPLINO, M.H.F. Curriculo funcional natural: guia prático para a educação na área do autismo e deficiência mental. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência; Maceió: ASSISTA, 2005. UNESCO (1994) Conferencia mundial sobre necesidades educativas especiales: Acceso y Calidad. UNESCO y Ministerio de Educación y Ciencia, Espana.

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CREDENCIAIS DE AUTORIA Paula Sofia de Melo Tiago Mestre em Ciências da Educação - Educação Especial; Especialização em Educação Especial – Domínio Cognitivo e Motor; Professora de Ensino Especial na Escola Profissional de Aveiro. Contato: stiago@epaveiro.edu.pt

Pedro Miguel Pala de Sá Psicólogo Clinico e Psicodramatista; Psicólogo na Escola Profissional de Aveiro; Mestrando em Educação Especial. Contato: psa@epaveiro.edu.pt

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ABREM-SE AS CORTINAS! DESVENDANDO O CENÁRIO EDUCACIONAL Cleidson Dantas Balbino Fernanda de Oliveira Silva Simone Martins Aquilino Helder Cavalcante Câmara

Considerações Iniciais Quando nos tornamos conhecedores de determinados saberes, atitudes e opiniões, parece que a realidade que nos rodeia começa a fazer sentido ou a ser percebida num sentido diferente do que nos era “pintado”. Pintura essa que nada mais é do que a maneira com que a percebemos, a qual pode se dar de maneira mais sutil ou aprofundada. Assim, a forma de perceber a realidade pode nos mergulhar num “mar de incertezas”, de conformismo ingênuo, que contribuirá sobremaneira para existência de uma sociedade cada vez mais alienada. Se pararmos para observar ao nosso redor, de modo mais detalhado e crítico, na família, na escola, na sociedade em geral, o que se percebe com mais frequência é que, nesses ambientes e a todo momento, ocorrem intensos embates que envolvem relações de poder, hegemonia e ideologia, que, consequentemente, contribuem para a formação de certos tipos de sujeitos e, frequentemente, tendem a fortalecer ainda mais a organização social que “dirige” a sociedade, que é pautada no modelo econômico capitalista, ou seja, formam-se identidades cada vez mais forjadas e competitivas. Isto porque estes embates normalmente “terminam” com a imposição de uma identidade ou de identidades hegemônicas que se sobrepõe a outras, as identidades dominadas. É nessa conjuntura que a Escola se constitui. Assim, na presença da diversidade e das diferenças, inerentes aos grupos sociais e aos diferentes contextos e momentos, que compõem os sujeitos que dela fazem parte e a própria escola, são fornecidos elementos às construções humanas, que se diferenciam em espaços e tempos distintos. O campo da escola é então ambiente “formador” de identidades, pois estas se constituem na identificação e na diferença, conforme Morin (2007, p. 122), “a identidade do sujeito se constitui por distinção, diferenciação e reunificação entre o exterior e o interior e ou entre o subjetivo e o objetivo, envolvendo os princípios da inclusão/exclusão”, delimitando-se novas fronteiras que variam de indivíduo para indivíduo e que constituem um amplo e vasto território a ser desvendado. 86


De maneira geral, é importante destacar que a escola não é um espaço neutro, mas um espaço de produção de conhecimento, de exercício da cidadania, de constituição/afirmação e produção de identidades. Nesta perspectiva, o currículo escolar se constitui num efetivo instrumento utilizado por diferentes sociedades, tanto para desenvolver os processos de conservação, quanto os de reconstrução, bem como a renovação dos conhecimentos acumulados historicamente segundo valores tidos como aceitáveis. O currículo se constitui assim como uma gama de conhecimentos eleitos como essenciais para a formação dos alunos, seleção essa que nem sempre condiz com as necessidades urgentes do homem, mas sim a partir dos interesses hegemônicos que se materializam na sociedade. Considerando os aspectos ora apresentados, o presente estudo busca discutir a contribuição da escola enquanto elemento a serviço da reprodução, construção ou transformação da organização social, com ênfase no currículo escolar e a relação deste com a formação de identidades. Enfatizamos também que a escola é o espaço de encontro de múltiplas relações sociais, de “novas e antigas” experiências, de “novos e antigos” conhecimentos, de reflexão, de ressignificação, ou seja, de produção de saberes. Essa percepção sobre o espaço escolar conduz a necessidade de uma análise crítica sobre a escola: reprodutora ou produtora de saberes. Com isso, torna-se evidente a necessidade de uma reflexão e uma ressignificação do currículo escolar, de forma que leve em consideração a função social da escola e sobre os múltiplos aspectos a ela inerentes. Refletir sobre a educação, mais especificamente sobre o pluralismo cultural, as relações de gênero, as ideologias, o poder, configura-se em uma diferente maneira de pensá-la, permitindo assim, a ampliação da visão sobre o processo educacional e sobre todos aqueles que estão direta ou indiretamente nele envolvidos.

Escola: um começo... Uma das mais importantes instituições sociais construídas pelo homem ao longo da história é a escola. Para tal instituição delimitam-se funções de total importância na vida de um indivíduo. Dentre as muitas funções que tem, destaca-se como uma das mais relevantes para o processo de formação social, a qual visa a preparação dos indivíduos para viver em sociedade, a fim de que possam exercer sua cidadania, interferindo na vida pública, mantendo um equilíbrio com as demais instituições e respeitando as normas de convivências. 87


Dessa maneira, a formação fornecida pela escola apresenta uma dimensão bem mais ampla, não se limitando a transmissão de conhecimento ou a instrumentalização para o trabalho, pois, por meio dela, se transmitem também os valores culturais, morais e sociais que são essenciais para toda e qualquer organização social. Vale destacar que, mesmo não sendo a única instância nesse processo formativo, tem importância ímpar. Nessa linha de raciocínio, Libâneo (2002) acredita “que o papel de desenvolver ou transformar a sociedade não se restringe a escola mais as esferas da sociedade, onde a escola é apenas parte constituinte desta esfera, não se pondo como foco central do processo.” Mas também, de acordo com o mesmo autor: A escola tem, pois, o compromisso de reduzir a distância entre a ciência cada vez mais complexa e a cultura d e b a s e p r o d u z i d a no co t i d i a no , e a p r o vi d a p e l a e s c o l a r i z a ç ã o . J un t o a i s s o t em , também, o compromisso de ajudar os alunos a tomarem-se sujeitos pensantes, capazes de construir elementos categoriais de compreensão e apropriação crítica da realidade. (idem, ibidem, p.04).

Outro aspecto a considerar é que a escola não participa tão somente do processo de transformação. Ela é também reprodutora, pois é uma instituição social formadora de cidadãos para desempenhar o “importante papel”, no que se refere preparação de mão de obra para compor o mercado de trabalho (economia capitalista). De acordo com Libâneo (ibidem), “quando se trata de uma preparação para uma nova sociedade moderna, pós-industrial de caráter capitalista a escola tem papel fundamental nesse processo de formação”. Deve-se considerar também que, com os avanços da tecnologia e as exigências do mercado de trabalho, atribui-se a escola grande parte desta responsabilidade de preparação para uma vida adulta economicamente ativa. O que se percebe nessa assertiva é que a sociedade e as instituições que a compõem não são estanques, mas vão se adequando as diferentes necessidades e realidades que a vivência social “impõe”. Sendo assim, como tudo está em constante mudança, a escola também está. Ela, ao longo do seu desenvolvimento na sociedade, passou por inúmeras modificações adequando-se aos textos e contextos históricos que a delinearam. Um ponto crucial que a educação sofreu ao longo de sua história foi a sua democratização, pois antes era privilégio somente das elites. Contudo, cabe destacar que essa democratização foi produto de um contexto econômico pelo qual a sociedade passou, o processo de industrialização. Com a implantação das indústrias era necessário que houvesse trabalhadores qualificados para atuação nesses locais. A solução 88


encontrada para propiciar essa formação de maneira adequada foi a escola. Dessa maneira, se estabelecia na escola uma relação estreita com a economia, pois aquela (a escola) deveria garantir o desenvolvimento desta (a economia). A educação, nesse sentido, consistia em instrumentalizar, não sendo necessária a existência de outras aprendizagens que não tivessem esse foco. Noutra visão, à instituição escolar seria atribuída à missão de zelar pelo processo de desenvolvimento da sociedade, atribuindo valores aos seus sujeitos, sendo esta ação transmitida por profissionais que compõem o corpo escolar e realizada por indivíduos que tenham passado pela mesma e que sejam capazes de inventar, criar, transformar, inovar e agirem criticamente diante de situações da realidade, ações essas desnecessárias e até perigosas para os que defendiam a educação enquanto instrumentalização de indivíduos. Analisando

a

educação

em

sentido

mais

amplo,

o

processo

de

ensino/aprendizagem na escola tem se reduzido apenas ao ato de ensinar, mas feito tão somente por meio da transmissão de conhecimentos do professor, dono do saber, para o aluno, “ignorante”. Assim sendo, na maioria das vezes o professor atua diretivamente, em que só ele fala e ao aluno cabe tão somente absorver esses conhecimentos ouvidos e entendidos como verdades. Outro aspecto a considerar é que, tais conhecimentos, estão quase sempre ligados a uma cultura dominante; a um “capital cultural” hegemônico (APPLE, 2006). Dessa maneira, na maioria das vezes, a própria realidade dos alunos é negligenciada e seu capital cultural é desconsiderado. Neste processo, os alunos não são vistos como seres dotados de experiências, mas se constituem em indivíduos passivos, não ocorrendo à troca de experiências entre estes com os professores. A escola além dos conhecimentos transmitidos através dos conteúdos, também promove nos alunos a apreensão de valores, os quais para Ferreira, (2000, p.701) “são qualidades que faz estimável alguém ou algo; valia”. Dessa forma, os valores podem estar relacionados com domínios de grupos ou classes sociais através da expansão destes valores que teriam uma finalidade de estabelecer, por exemplo, um padrão de comportamentos em determinado grupo social. Quando tratamos da formação de valores, o processo de ensino aprendizagem é uma das formas mais nítidas da transmissão destes. Confirmando essa ideia, Teixeira (2007, p.61) aponta que

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A escola, enquanto esfera pública, construída para desenvolver uma função social fundamental na transmissão de elementos pertencentes á cultura, deve oferecer as novas gerações produção cultural mais significativa da humanidade. Entretanto, deve permitir, também, que a cultura seja reelaborada de acordo com as necessidades e os valores atuais, redefinindo os critérios que selecionam os aspectos das diferentes culturas que devem fazer parte do currículo, motivando, dessa forma, mudanças nessas seleções. (TEIXEIRA, 2007. P. 61)

Dada a importância do processo de ensino aprendizagem para a propagação de valores nos indivíduos, faz-se necessário que se estabeleçam múltiplas relações entre o currículo da escola e a realidade em que os alunos estão inseridos. Mas, nem sempre é isso que acontece. Os currículos escolares na maioria das vezes estão constituídos a partir de saberes considerados essenciais, mas escolhidos a partir de um olhar específico, o dominante. As disciplinas que são ministradas de forma tradicional 37 fazem com que o aluno seja apenas um agente receptor de informações. Dessa forma, Teixeira, (ibidem, p.01), afirma: As propostas curriculares, de maneira explícita ou implícita, consideram alguns conhecimentos superiores a outros, uma cultua melhor do que a outra. De certo modo, categorizam saberes que subordinam os educando, no processo de ensino aprendizagem, a uma amostra cultural única, valorizando sua assimilação na transmissão dos conteúdos e dando preferência aos conhecimentos herdados por uma determinada cultura e excluindo todas as demais.

Esse cenário, fortemente marcado por uma ideologia dominante, acaba por gerar um impasse para a formação social e plena da criança, assim como na aquisição de outros valores tais como respeito, cooperação, solidariedade entre outros, isto porque, o que tem predominado, é a disseminação de valores pautados na cultura hegemônica e o ensino balizado nessa perspectiva, conduzindo o aluno a uma atuação passiva, sobrando pouco espaço para reflexão. Assim, para se “encaixar” na sociedade, ancorada no capitalismo, o aluno passa a vivenciar aquilo que nesse sistema é valorizado e, como tudo isso é dado como natural, nada resta a não ser a adequação, de tal forma que, a medida que vivencia tudo isto, se torna o que é. Assim o que sou já não é “Eu mesmo”, mas aquilo que me tornaram. Como consequência desse processo, vão se reforçando posicionamentos que levam os sujeitos a adotarem uma postura submissa e acrítica

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O professor é o centro do processo ensino aprendizagem a quem cabe transmitir os conhecimentos enquanto verdades, de maneira diretiva, cabendo ao aluno tão somente absorver tais conhecimentos. “Os conteúdos têm de ser adquiridos, os modelos imitados.” (MIZUKAMI, 1986, p. 13)

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perante a sociedade, o que interfere diretamente nas relações sociais dos alunos e, consequentemente, na formação de identidades. É importante ressaltar que atualmente, a perspectiva tradicional de ensino, na qual o professor é visto como único detentor do conhecimento e o aluno é um ser passivo no processo de ensino aprendizagem, tem perdido espaço nas teorias da educação, para uma postura de ensino mais centrada no aluno, todavia, esta mudança pouco tem se refletido na prática docente. De acordo com Rogers (1971) existe uma diferença significativa entre o ensinar e o educar. Ambas as ações podem estar presentes no processo ensino aprendizagem, com maior ou menor, ênfase, mas estas bem distintas e tem objetivos diferentes as serem alcançados. Nessa distinção, “o ensinar limita-se a uma linguagem técnica de instruir, reproduzir o conhecimento, enquanto que o educar vai além desta ideia, possibilitando ao sujeito liberdade de criar e recriar, de pensar”. (idem, ibidem, p. 103) Dadas essas discussões iniciais, percebemos a escola como instituição contraditória, no sentido de que, pode ser utilizada tanto para reprodução como para transformação social, à medida que possibilita a formação de certos tipos de sujeitos e de identidades, as quais podem estar a serviço da manutenção ou da superação de uma ordem social.

Currículo: conservador da hegemonia ou transformador social? No capítulo anterior pontuamos em alguns momentos o termo currículo enquanto elemento inserido no processo ensino aprendizagem e que tem interferência efetiva na formação do aluno. Considerando estes aspectos, procuraremos nas linhas que se seguem discutir de forma mais aprofundada. O currículo foi construído historicamente em contextos sociais e culturais bastante distintos. Os primeiros nomes que se destacaram nessa área foram Franklin Bobbit, Charters, Thorndike, Ross L. Finney, Charles C. Peters e David Snedden. Em vez de se preocuparem em delimitar o papel social básico que o currículo escolar deveria desempenhar, voltaram-se para a industrialização e sua concomitante divisão do trabalho (APPLE, 2006). Esta divisão do trabalho “havia substituído a mão-de-obra artesanal pelo trabalhador especializado” (BOBBITT apud APPLE, 2006, p.108). Desta forma o trabalhador especializado passava a ser responsável por uma determinada tarefa da produção, em vez de produzi-la num todo. 91


Bobbit (apud APPLE, 2006) propunha que a escola funcionasse da mesma forma que qualquer empresa comercial ou industrial, por conseguinte, teriam escolas que formavam alunos para esta sociedade que se movia em direção e a partir dos aspectos econômicos. Porém, para Dewey a construção da democracia era mais importante que o funcionamento da economia. Para o autor, a escola deveria levar em consideração, no planejamento curricular, os interesses e as experiências das crianças e jovens (SILVA, 2005, p.23). Contudo, o que se percebeu é que a proposta de Bobbit era a mais atraente naquele contexto espaço-tempo, pois parecia permitir que a educação tornar-se-ia científica (idem, ibidem). O modelo de Bobbit é reforçado por Tyler, ao afirmar que: A organização e o desenvolvimento do currículo deve buscar responder quatro questões básicas: 1. que objetivos educacionais deve a escola procurar atingir?; 2. que experiências educacionais podem ser oferecidas que tenham probabilidade de alcançar esses propósitos?; 3. como organizar eficientemente essas experiências educacionais?; 4. como podemos ter certeza de que esses objetivos estão sendo alcançados? (TYLER apud SILVA, 2005, p.25).

Observamos que os questionamentos de Tyler estão voltados para os aspectos bem tradicionais, como o ensino, aprendizagem, avaliação, organização, planejamento, eficiência e finalidades. No entanto, este autor amplia a concepção de Bobbit, ao introduzir em seu modelo a psicologia da aprendizagem. Percebe-se claramente que os modelos tradicionais, citados acima, não estavam preocupados em analisar o currículo, pois este era compreendido como verdade, portanto inquestionável e entendido como saber necessário para apreensão pelos alunos. Nesse sentido, “ao tomar o status quo como referência desejável, as teorias tradicionais se concentravam, pois, nas formas de organização e elaboração do currículo. Os modelos tradicionais de currículo restringiam-se à atividade técnica de como fazer o currículo.” (SILVA, 2005, p.30) Diferentemente deste ponto de vista, em que se busca manter a hegemonia do conhecimento dominante, as teorias críticas desconfiam do status quo e o tem como responsável pelas desigualdades e injustiças sociais. Para as teorias críticas, “o importante não é desenvolver técnicas de como fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender o que o currículo faz” (SILVA, 2005, p.30), dessa maneira, questionar a escola, a sua organização estrutural e curricular são 92


elementos essenciais nesta proposição, pois as respostas aos questionamentos permite uma desnaturalização das coisas. Se antes eram dadas como certas, agora a dúvida é suscitada constantemente. As teorias críticas denunciam que o currículo da escola capitalista sugerido por Bobbit e Tyler serve para manter a desigualdade entre as classes sociais e propagar a dominância de uma classe, a dominante, sobre as demais. Estes críticos dizem que no momento da escolha dos conteúdos, subtende-se a formação do homem e da sociedade que se pretende formar. Assim, não existe currículo neutro, mas aquele que privilegia um determinado modelo de sociedade e classe dominante (GEREZ & DAVID, 2009). As características ora pontuadas estão “estampadas” na teoria tradicional do currículo, visto que este consiste em apresentar um saber pronto e acabado, carregado de realidades totalmente estranhas ou desconhecidas àqueles a quem se está direcionado. Sendo assim, determinados currículos trazem verdades e contextos, em específicos casos, totalmente inversos aos do local em que estes serão aplicados, consequentemente, há uma desvalorização e uma indiferença absurda em relação ao contexto econômico, social e cultural desta mesma comunidade. Assim sendo, nossos espaços escolares poderiam ser muito bem classificados como espaços extras terrestres, como se tivéssemos realizando uma viagem para um lugar, para muitos, desconhecido, e quase impossível de ser apreendido. Enquanto a teoria tradicional do currículo se constitui numa forma, a nosso ver, de alienação, a teoria crítica defende o currículo como um instrumento de transformação social, que pode favorecer a diminuição das desigualdades sociais, “[...], a função da educação, por meio da escolha de um currículo em favor das classes populares, é auxiliar o desvelamento da ideologia dominante imposta, [...]”. (GEREZ & DAVID, 2009, p. 76-77) É importante destacar que, segundo Silva (2005), há uma relação entre o currículo e a formação de identidades, pois o currículo para o autor é espaço, trajetória, autobiografia, texto discurso, relação de poder. No currículo se forja a identidade. De forma mais pontual, a escolha do currículo a ser desenvolvido na escola tem interferência significativa na formação da identidade. Assim, o enfoque numa perspectiva crítica e tradicional de currículo é decisivo no processo formativo do homem, pois a escolha de um currículo parte primordialmente da escolha do tipo de homem que se quer formar.

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É bastante esclarecedoras as questões apresentadas por Silva (2005), indicando que tipo de indivíduo é visualizada nas teorias do currículo. Qual o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Será a pessoa racional e ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizada e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? Será a pessoa ajustada aos ideais de cidadania do moderno estado-nação? Será a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes preconizada pelas teorias críticas? A cada um desses “modelos” corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo. (idem, ibiden, p. 15)

Assim Silva (ibidem) estabelece uma relação entre as teorias do currículo, a identidade, concebendo, contudo que esta relação se dá por meio da luta pela imposição de saberes. Currículo, identidade e poder são dessa maneira aspectos individuais, mas inseparáveis, ao mesmo tempo. Para Silva (ibidem, p. 15-16), “o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade. Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, (...) é também uma questão de identidade”. A reflexão que se estabelece entre as relações existentes entre identidade, currículo e poder é uma discussão que merece bastante atenção para todos aqueles envolvidos no processo educativo, pois o saber é condição para capacitação para mudança, na busca do estabelecimento de possibilidades para intervir na construção de uma identidade ou de identidades que sejam capazes de tornar os alunos sujeitos de si e não meros instrumentos a serviço de uma hegemonia dominante, numa perspectiva semelhante ao pontuado por Silva (ibidem, p. 54-55), ao discutir o currículo como política cultural de Giroux, quando argumenta que, para Giroux, “A escola e o currículo devem ser locais onde os estudantes tenham a oportunidade de exercer as habilidades democráticas de discussão e da participação, de questionamento dos pressupostos do senso comum da vida social.” Neste sentido, é imprescindível que todo educador tenha claro que identidades pretende formar no processo educativo e que direcione suas ações, na constituição de um currículo e na organização da prática pedagógica, com o fim da formação de sujeitos ativos, reflexivos, críticos e participativos, ou seja, sujeitos com a capacidade de atuar na transformação da realidade.

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Um caminho para a constituição de Sujeitos: a formação de identidades A relação existente entre a constituição dos sujeitos e a formação de identidades, se configura em um cenário marcado pela atuação intensa de ideologias e pelo embate entre poderes. Cientes disso, outro aspecto merece ser tratado, no estabelecimento dessas relações: a diferença. Contudo, as discussões sobre a diferença serão constituídas à medida que abordaremos a identidade, pois são elementos necessários para que possam existir. Silva (2008) é direto ao afirmar que identidade é simplesmente aquilo que se é: “sou brasileiro”, “sou negro”, “sou heterossexual”, “sou jovem”, “sou homem”. Dessa forma, a diferença seria, então, o oposto: “aquilo que o outro é: „ela é italiana‟, „ela é branca‟, „ela é homossexual‟, „ela é velha‟, „ela é mulher‟” (idem, ibidem). Para Hall (apud NUNES e RUBIO, 2008, p. 56), “a identidade é um processo discursivo. Ela é formada culturalmente mediante circunstancias históricas e experiências pessoais que levam o sujeito a assumir determinadas posições de sujeitos temporárias”. Recorrendo a esses conceitos, podemos definir identidade como um conjunto de características favoráveis a determinados indivíduos, e que são adquiridas e influenciadas pelo contexto cultural em que estão inseridos, através da observação e do convívio com determinados grupos sociais, étnicos e raciais, derivando assim, de uma interação de elementos biológicos e sócio-culturais. Nesse sentido, é importante ressaltar que as “identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social.” (WOODWARD, 2008, p. 39). Traçando essa paisagem, identidade e diferença, surgem como elementos que podem ser fortalecidos, enfraquecidos, reforçados ou esquecidos. A ênfase ou discriminação faz com que alguns grupos sejam evidenciados em detrimento de outros. Nesse embate, os grupos fortalecidos se tornam a norma e, como consequência disso, outros se tornam a diferença. Cabe destacar que para que a supremacia de um grupo sobre outro como norma, é necessário que ocorra um processo chamado de sistemas classificatórios. Os sistemas classificatórios organizam as sociedades em classes sociais a partir das relações de poder envolvidas nesse processo. Woodward (2008, p.40) explica que “um sistema classificatório aplica o princípio da diferença a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la em ao menos dois grupos opostos – nós/eles ou

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eu/outro”. Dessa forma, “dividir o mundo social entre nós e eles significa classificar”. (SILVA, 2008, p.82). De acordo com Silva (ibidem, p.78), “a identidade tal como a diferença é uma relação social”. Elas interagem em um contexto em que predominam fortemente às relações de poder. Confirmando isso, o mesmo autor explica que “a definição de identidade e diferença está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas”. (idem, ibidem, p. 81) Tal condição vem descaracterizando o homem ao lhe “impor” a formação de identidades, de certa forma, alheias a ele, mas necessárias para manutenção de uma hierarquia dominante. Sendo assim, é quase evidente a ideia de que a sociedade direciona sobremaneira a formação de sujeitos reprodutores do sistema, acríticos e submissos. Dessa forma, o homem passa a configurar-se como indivíduo fragmentado, no sentido dual de corpo e mente, e manipulado por fatores externos e existentes em diversas instituições sociais como a família, a igreja, a escola, dentre outros, se materializando, dessa forma, a partir das relações de poder envolvidas na própria vivência social que o “constitui”. Dentre os diversos agentes influenciadores da formação da identidade, a escola apresenta importância ímpar, pois a mesma acaba se configurando como uma das primeiras instituições sociais, depois da família, que tem contato direto com as crianças no seu processo formativo. É nela que a criança é inserida de forma mais efetiva ao contato com outras culturas, com outros saberes, com outras identidades e com outras diferenças. Talvez por isso, Nunes (apud NEIRA et. al., 2008, p. 153) afirme que “a escola tem sido considerada uma das instituições mais importantes e responsáveis pela construção e representação do que somos.” Destarte “o ambiente escolar apresenta-se como um potencial produtor e reforçador de identidades, já que nele temos o encontro de diferenças, sejam elas sociais, étnicas, econômicas, etc.” (MELLO, 2010). No tocante ao espaço escolar no que se refere à formação de identidades e a marcação de diferenças, Silva (2008, p. 97) explica: A questão da identidade, da diferença e do outro é um problema social, ao mesmo tempo, que é um problema pedagógico e curricular. É um problema social, por que, em um mundo heterogêneo, o encontro com o outro, com o estranho, com o diferente, é inevitável. É um problema pedagógico e curricular não apenas porque as crianças e os jovens, em uma sociedade atravessada pela diferença, forçosamente 96


interagem com o outro no próprio espaço da escola, mas também porque a questão do outro e da diferença não pode deixar de ser matéria de preocupação pedagógica e curricular.

Sendo assim, torna-se nítido o fato de que a formação da identidade do sujeito depende de uma série de fatores que desencadeiam um determinado resultado. Tais fatores estão presentes na família, na escola, nas interações sociais, na mídia, nos encontros com culturas distintas, entre outros. A formação concebida por esses fatores deveria ser uma formação humana integral, principalmente partindo da família e da escola, constituindo sujeitos em sua totalidade, que visasse despertar no ser humano o desejo de tecer uma nova realidade, sendo capazes de criar novos significados para a vida e para as relações com o seu meio. Mas a realidade em que nos encontramos é outra, a qual, geralmente, relacionase com a formação de sujeitos altamente competitivos e capitalistas, e construídos num discurso de democracia, o que gera certa contradição. Contradição entre o que é pregado pelas e escolas e pelo currículo e as identidades realmente constituídas. Neste sentido, a escola desconfigura seu papel no que se refere à formação de sujeitos críticos para atuar em sociedade, e, muitas vezes, passa a ser meio de alienação e submissão a uma cultura dominante, imposto por relações de poder que se estabelecem dentro desta instituição social. Dessa forma, torna-se reprodutora de ideologias, implicando na formação de certos tipos de identidades, as quais Mello (2010) irá chamar de identidades hegemônicas. Sendo assim, é no espaço escolar que os alunos, com diferentes heranças culturais, entram em confronto com outros tipos de culturas, de classes sociais, de hábitos, de costumes, de valores. Nesta perspectiva, de acordo com Mello (2010) “fica clara a necessidade de reorganização da escola e de seus componentes pedagógicos em favor da apreciação do conhecimento e da formação de indivíduos críticos, conscientes de sua realidade, das contradições existentes na sociedade e com poder de transformação”.

Considerações Finais Todo e qualquer assunto que esteja relacionado com a temática escola, vivências escolares, e em como se dá o processo de formação está cercado de determinadas verdades, mitos e contradições, e nos revela, numa análise mais acurada, bem diferentes daquilo que dito e ou esperaríamos do ambiente escolar. Mas, verdadeiramente, o que esperamos de fato das nossas escolas? Nem precisaríamos de muitos aportes teóricos para responder a tal questionamento, nossa visão crítica de mundo, visão esta 97


fundamentada na justiça, nos bastaria para nos posicionarmos com relação as nossas expectativas em torno da escola, porque esta deveria ser o espaço no qual se pudesse construir e edificar a igualdade entre todos e não deveria se tornar constituidora ou ratificadora de diferenças. Todavia, sabemos que pensar a escola dessa maneira, crítica dos arranjos sociais e formadora de identidades emancipadas, ainda parece uma utopia em nossa realidade, isto porque ainda percebemos no âmbito escolar a influência de uma minoria que se volta apenas aos seus interesses próprios, e assim continua-se perpetuando a centralização do capital, a má distribuição de renda e, por conseguinte, desencadeando vários outros problemas sociais. A escola precisa funcionar a serviço deste grupo dominante, portanto ela teria que funcionar sob forma de “estado mínimo”, garantindo assim, tão somente a reprodução das estruturas sociais dos sujeitos necessários a esta estrutura. A escola, naturalmente “pintada” de instituição importante para transformação social acaba, sutil e tacitamente, apenas reproduzindo. Dadas as considerações urge e é necessário tornar a escola efetiva na formação de identidades emancipadas, as quais possibilitem o indivíduo ser sujeito de si e não subordinado as estruturas que lhes impõe uma forma de ser. Para alcançar essa meta, alguns procedimentos parecem ser essenciais. Para Morin (2007) é necessário a reforma do pensamento, pois o pensamento atual é fragmentado, multidimensional, pautado numa falsa racionalidade e, portanto, atrofia a compreensão, a reflexão, a visão do todo. Nessa perspectiva, Câmara, Santos e Ataíde (2011, p. 369) enfatizam que a escola é um espaço em que deve “possibilitar a constituição da identidade, de maneira que estabeleça relação com a objetividade do mundo, a partir de sua subjetividade, mas considerando que esta relação não se dê na alienação, mas no espaço de liberdade, de autonomia, de vivência da corporeidade, de reflexão sobre si e sobre o mundo”. Nas duas assertivas, parece claro a necessidade de que haja uma atuação autônoma e reflexiva no espaço escolar, mas considerando estas, inseridas em texto e contextos e compreendidas na totalidade. Nessa perspectiva, Morin (2007, p. 31) afirma que “Devemos compreender que, na busca da verdade, as atividades auto-obervadoras devem ser inseparáveis das atividades observadoras, as autocriticas, inseparáveis das críticas, os processos reflexivos, inseparáveis dos processos de objetivação”. Para finalizar, acreditamos que a escola pode e é espaço para transformação do mundo e para tanto precisamos participar da formação dos indivíduos; de duas 98


identidades para que possam controlar a si próprios e, como sujeitos de si, possam interferir de forma efetiva na transformação da realidade. Concordamos com Morin (ibidem, p. 29) quando afirma que As sociedades domesticam os indivíduos por meio de ideias, que, por sua vez, domesticam as sociedades e dos indivíduos, mas os indivíduos poderiam, reciprocamente, domesticar as ideias, ao mesmo tempo que poderiam controlar a sociedade que os controla.

A nosso ver essa mudança precisa ser conquistada; passo a passo; momento a momento. Temos consciência dessa necessidade e cabe sim, a nós educadoras e educadores, abraçar esta causa, nos propondo a sermos conduto para a construção de novas identidades para construção de uma realidade mais justa do que esse que ora se apresenta. Essa é nossa utopia.

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CREDENCIAIS E AUTORIA Cleidson Dantas Balbino Graduando em Educação Física. Atualmente é discente do Curso de Educação Física, do Campus Avançado “Prof.ª Maria Elisa de Albuquerque Maia”, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – CEF/CAMEAM/UERN. É aluno pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisa Educação Física, sociedade e saúde, onde é membro do Projeto Educação Física e a constituição da identidade nas aulas de Educação Física. Contato: cleidsondantas888@hotmail.com Acesso - Lattes: http://lattes.cnpq.br/0851830494100957 Fernanda de Oliveira Silva Graduanda em Educação Física. Atualmente é discente do Curso de Educação Física, do Campus Avançado “Prof.ª Maria Elisa de Albuquerque Maia”, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – CEF/CAMEAM/UERN. É aluna pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa Educação Física, sociedade e saúde, onde é membro do Projeto Educação Física e a constituição da identidade nas aulas de Educação Física. É aluna bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência – PIBID/CEF/CAMEAM/UERN. Contato: nandamadrid5@hotmail.com Acesso – Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4336302H5

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Simone Martins Aquilino Possui graduação em Educação Física pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2009). Especialista em Educação Física Escolar pela Faculdades Integradas de Patos (2010). Foi Professora Auxiliar na Universidade Estadual do Rio Grande do Norte/UERN (2012/2013). Atualmente é professora na Rede Estadual de Ensino do RN e na Rede Municipal de Ensino em Extremoz, RN. É pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa: Núcleo de Estudos em Educaçao (NEEd) e membro do Projeto de Pesquisa DIÁLOGO ENTRE COTIDIANO FAMILIAR E ESCOLAR NAS SERRAS DO ALTO-OESTE POTIGUAR: EXPERIÊNCIAS FORMADORAS DE EDUCADORES/AS DO CAMPO SOBRE RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE. Participa também como membro do Projeto de Extensão "DIÁLOGOS AUTOBIOGRÁFICOS: TRILHAS DA FORMAÇÃO DOS/AS EDUCADORES/AS SERRANOS/AS". Contato: simone_pdf@hotmail.com Acesso - Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4250835U7 Helder Cavalcante Câmara Graduado em Educação Física (UERN, 1995), Especialista em Informática em Educação (UFLA, 2001) e em Educação Física escolar (UFMT, 2003). Atualmente é professor do Curso de Educação Física, do Campus Avançado “Prof.ª Maria Elisa de Albuquerque Maia”, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – CEF/CAMEAM/UERN. É pesquisado vinculado ao Grupo de Pesquisa Educação Física, sociedade e saúde, onde coordena o Projeto Educação Física e a constituição da identidade dos discentes e Membro do Projeto de pesquisa A questão cultural e a atividade física em espaços de educação não formal. Membro do Grupo de Pesquisa da Complexidade - GECOM Mestrando em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN) Contato: redlehcc@gmail.com Acesso - Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=E9278574

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A LITERATURA COMO ESTRATÉGIA PARA (RE)PENSAR A FORMAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA Suênia de Lima Duarte Elane da Silva Barbosa Ailton Siqueira de Sousa Fonseca

O desejo de semear... Plantar não é tão simples como pensamos. Plantar não é apenas escavar um buraco no solo, jogar uma semente, cobrir com terra, regar e depois colher os frutos. Há algo que antecede todas essas etapas. Aliás, não só antecede como está presente em todos os momentos. É o desejo. Desejo vem da essência humana. Desejo nunca vem de fora para dentro. Ele vem de dentro para fora. Ele vem como uma necessidade de tornar concreto no mundo dos outros aquilo que, antes, só estava concreto no nosso mundo. Desejo é a expressão daquilo que nos falta. Desejo é a busca pela completude. Desejo é falta e completude. Desejo humano move alma e corpo, razão e emoção, real e imaginário. Desejo é, portanto, a aspiração do humano em busca da sua identidade humana. Edgar Morin em A cabeça bem feita diz que, no universo acadêmico, os sujeitos constroem saberes especializados, isolados, fragmentados. Desenvolvem um olhar cada vez mais específico para a parte. Não se recordam que a parte está no todo e o todo está na parte. Sentem dificuldade de experienciar um conhecimento pertinente, isto é, inserir o conhecimento no contexto no qual está sendo produzido (MORIN, 2003). Garantir a inserção no mercado de trabalho: esse tem sido o principal objetivo da formação universitária. Em nome dessa formação profissional, a condição humana tem sido expulsa das salas de aula. Prevalecem os conhecimentos científicos, a profissionalização do ser humano e a tecnização do profissional. Como nos alertam Fonseca e Enéas (2011): sem percebermos, essa formação excessivamente profissional tem gerado seres humanos cada vez mais estranhos em relação à sua condição humana. Vivemos grandes paradoxos no universo acadêmico. O estudante que constrói saberes específicos é o mesmo que precisa ter um “perfil generalista”, isto é, ter conhecimentos diversos que o permitam transitar por diferentes campos de atuação dentro da sua profissão. O mesmo sujeito que, na universidade, domina todas as técnicas, sabe as mais modernas teorias científicas e publica trabalhos divulgando suas descobertas científicas, é o mesmo sujeito que não consegue dominar seus próprios 102


demônios: suas idéias obsessivas,

seus medos paralisantes, suas angústias

desestabilizadoras. É o mesmo sujeito que não consegue teorizar sobre si mesmo. Desconhece seus sentimentos. Nega suas emoções. É o mesmo sujeito que nunca se aventurou na descoberta de si mesmo, incapaz de publicar uma linha sobre sua história humana, suas loucuras, seus devaneios, seus sonhos. Desejo quando é desejo toma posse de nós mesmos e se torna irresistível. Este texto é um desejo despertado durante a disciplina Educação e Literatura ministrada no Mestrado em Educação do Programa de Pós-graduação em Educação – POSEDUC da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Desejo de semear uma formação humana. Desejo de pensar estratégias de superação das dicotomias, das fragmentações, dos isolamentos existentes entre os saberes na universidade. Desejo de (re)pensar a educação a partir da literatura.

Selecionando as sementes e preparando o solo... Há uma diversidade de sementes. Umas geram lindas flores. Algumas originam saborosos frutos. Outras guardam dentro de si a possibilidade de gerar frondosas árvores. Existem vários tipos de solo: pedregoso, arenoso, úmido, seco, o qual, dependendo do tipo, precisa ser preparado para receber a semente. Precisa descansar. Precisa de adubos. Precisa ser irrigado. O solo e a semente vão determinar as ferramentas utilizadas no plantio: enxada, machado, foice. Um bom semeador sabe da necessidade de selecionar a semente e preparar o solo. Um agricultor experiente sabe que algumas sementes germinam melhor em determinados solos. Reconhece ainda que, em alguns casos, mesmo tendo escolhido a semente, preparado a terra e utilizado as ferramentas apropriadas, a planta não vinga. Isso porque há uma relação dialógica entre solo e semente. O solo escolhe a semente. A semente escolhe o solo. Solo e semente se escolhem. Só existe germinação quando semente e solo se desejam. Apropriando-nos dessa sabedoria dos agricultores, entendemos que, para disseminar o sonho de uma formação humana, precisamos preparar o solo e escolher as sementes. Consideramos ser impossível plantar numa grande área de terra, diante do cuidado que a semente e o solo necessitam. Resolvemos eleger uma parte dessa extensão territorial para cultivar. Optamos por trabalhar com a formação do curso de licenciatura em Educação Física do campus avançado professora Maria Elisa de

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Albuquerque Maia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, em Pau dos Ferros. Ao selecionar o solo e a semente, nós nos reportamos para as ferramentas a serem utilizadas em nossa plantação. Decidimos trabalhar com o Projeto Pedagógico do curso de Educação Física modalidade licenciatura, voltando-nos mais detalhadamente para a ementa das disciplinas. O currículo do curso de licenciatura em Educação Física está dividido em duas áreas temáticas: Formação ampliada e Formação específica. Escolhemos duas disciplinas da Formação ampliada: Anatomia Humana e Fisiologia Humana aplicada à Educação Física. A Formação Ampliada despertou nossa atenção porque visa compreender o estudo da relação do ser humano, em todos os ciclos vitais, como a sociedade, a natureza, a cultura e o trabalho. Deverá possibilitar uma formação cultural abrangente para a competência acadêmico-profissional de um trabalho com seres humanos em contextos histórico-sociais específicos, promovendo um contínuo diálogo entre as áreas de conhecimento científico afins e a especificidade da Educação Física, abrangendo as áreas de conhecimento da cultura geral e profissional, Conhecimento sobre crianças, adolescentes, jovens e adultos, conhecimento sobre a dimensão cultural, social e política da educação (UERN, 2009, p. 30).

Projetar é construir o futuro no presente. Projetar é planejar. Projetar é orientar as nossas ações a partir de determinados referencias de idéias, de sonhos, de vida. Toda escola em nível técnico, fundamental, médio ou superior tem seu Projeto Político Pedagógico - PPP. Segundo Baffi (2002), o PPP não é apenas um documento. Ele materializa em palavras qual tipo de formação a escola deseja ofertar aos sujeitos. No universo acadêmico, existem as disciplinas, as quais possuem uma ementa. Se nos voltarmos para a etimologia dessa palavra, veremos que ementa nos remete a apontamentos, lembranças, resumo. Ementa é a síntese daquilo que deve ser abordado durante uma disciplina. Serve para recordar ao professor os conteúdos a serem trabalhados. Se fôssemos utilizar uma metáfora, poderíamos pensar que o projeto pedagógico é o caminho que o sujeito deve percorrer durante a formação. Ao trilhar um caminho, nós nos deparamos com várias paisagens. É como se as disciplinas nos orientassem, ou melhor, delimitassem as paisagens para as quais devêssemos prestar atenção. Não percebemos que, enquanto seres humanos, nem sempre nos agrada fazer o mesmo caminho. Sempre igual. Do mesmo jeito. Às vezes pegamos um atalho. Em 104


outras ocasiões nos perdemos, o que, em determinados momentos, é essencial para nos (re)encontrarmos. Ao caminhar, nem sempre as paisagens que chamaram atenção para os nossos companheiros de viagem despertam o nosso interesse. Por isso escolhemos trabalhar com o projeto pedagógico e a ementa das disciplinas, já que analisá-los vai nos permitir conhecer melhor a formação ofertada pelo curso de licenciatura em Educação Física. Ao eleger essas duas ferramentas para a nossa semeadura, também temos a intenção de estimular a reflexão se o projeto pedagógico e as disciplinas estão sendo bússolas que orientam a caminhada ou estão sendo cadeias que aprisionam e fragmentam a visão que os sujeitos têm sobre si mesmo. Como semente a ser cultivada na formação do professor de Educação Física, selecionamos a literatura. Morin (2003) diz que a literatura, juntamente com a música, o cinema e o teatro, devem ser considerados grandes escolas da vida, isto é, espaços nos quais aprendemos mais sobre nós mesmos. “Trata-se, enfim, de demonstrar que, em toda grande obra de literatura, de cinema, de poesia, de música, de poesia, de escultura, há um profundo pensamento sobre a condição humana” (MORIN, 2003, p. 45). Brayner (2005) afirma que, na última década, vem crescendo a produção de artigos que se dedicam a estabelecer vínculos entre literatura e educação. Esses estudos não se preocupam, como acontecia antigamente, em descobrir textos que possam ser relacionados com alguma temática abordada em sala de aula. As pesquisas procuram, agora, textos literários que suscitem reflexões na formação dos professores ou levem os sujeitos a estabelecerem um diálogo com e sobre si mesmo, reconhecendo a sua singularidade e pluralidade humana. Como diria Morin (2003, p. 49): “É, pois, na literatura que o ensino sobre a condição humana pode adquirir forma vivida e ativa, para esclarecer cada um sobre sua própria vida”. Edgar Morin em Amor, poesia e sabedoria fala que o ser humano produz duas linguagens: uma se caracteriza pela praticidade, pelo racionalismo, pela utilidade, estabelecendo conceitos, definições, conduzindo a um estado prosaico. A outra é simbólica, mística, mágica, encantada, conotativa, metafórica, conduzindo ao amor, ao êxtase, ao deslumbramento diante do nosso ser, do ser do outro, da vida. Chama-se de estado poético. Na maior parte do tempo, encontramo-nos na linguagem prosaica. O estado poético é vivenciado através das festas, das cerimônias, da dança, do canto, da literatura e da poesia (MORIN, 2008). Morin (2008) ainda chama atenção para o fato de que, ao longo do tempo, prosa e poesia foram se distanciando até que se divorciaram. Um dos motivos para que isso 105


ocorresse foi a separação estabelecida entre a cultura científica e técnica e a cultura humanística e literária. Nesse sentido, acreditamos ser importante resgatar a dimensão poética da nossa vida, particularmente na formação universitária. É preciso restabelecer os vínculos entre os saberes técnico-científicos e o humanismo. Reatar o casamento entre prosa e poesia. A literatura pode ser como uma lente de aumento que ajudará a ampliar a nossa visão sensível, para que possamos perceber que aquilo que há de mais prosaico, de mais racional, de mais repetitivo está permeado de poeticidade, de afetividade, de beleza, de encantamento. É preciso (re)descobrir “o prazer do extraordinário que era tão simples de encontrar nas coisas comuns” (LISPECTOR, 1998, p. 67).

A hora de plantar... O desejo nos levou a preparar o solo, selecionar a semente e encontrar as ferramentas necessárias. O desejo, agora, nos leva ao momento de cavar o solo, jogar a semente, colocar terra, regar e cuidar. Cuidar para que a semente germine nas suas possibilidades. A ementa da disciplina Anatomia Humana refere-se ao Estudo dos aspectos anatômicos básicos sobre osteologia, artrologia, miologia, sistema nervoso, sistema circulatório e sistema respiratório, que compõem a mecânica do movimento do corpo humano e sua aplicação no campo da educação física e do desporto (UERN, 2009, p. 46).

A ementa da disciplina Fisiologia Humana propõe-se a abordar a Fisiologia da contração do músculo esquelético e mecanismo da contração cardíaca associada ao sistema cárdio - respiratório. Funcionamento do sistema sensório-motor e neuro-vegetativo. Regulação do metabolismo energético e controle da temperatura corporal. Noções básicas sobre o aparelho digestivo e aparelho reprodutor (UERN, 2009, p. 50).

As ementas das disciplinas trazem os conteúdos de forma fragmentada. Nossa intenção, aqui, não é julgar. Sabemos que o docente nas aulas pode estabelecer diálogos entre os conteúdos que ministra. Acreditamos, no entanto, que é importante que isso venha explícito também na ementa, já que ela sintetiza os conteúdos a serem abordados. Entendemos que essa fragmentação se constitui uma característica da disciplina. Como diz Morin (2003, p. 105): “A disciplina é uma categoria organizadora dentro do

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conhecimento científico; ela institui a divisão e a especialização do trabalho e responde à diversidade das áreas que as ciências abrangem”. Esse estudo fragmentado do corpo humano é algo bastante comum nos cursos da área da saúde. Terezinha Petrúcia da Nóbrega em Corporeidade e Educação Física do corpo-objeto ao corpo-sujeito estimula-nos a refletir que isso se trata de uma das heranças do pensamento cartesiano, o qual influenciou o desenvolvimento da ciência e da educação, por meio do dualismo entre saber lógico e saber sensível. René Descartes, pensador francês, tentou unificar todos os conhecimentos humanos, a partir de certezas racionais, particularmente as advindas da Matemática (NÓBREGA, 2000). Fiódor Dostoiévski (2004) em Memórias do subsolo critica esse pensamento positivista e racionalista que leva o ser humano a um distanciamento da sua condição humana ao tentar explicar tudo objetivamente, negando a subjetividade. Em vários trechos essa crítica fica explícita, por exemplo: - Eh, senhores, como é que se pode ter, no caso, sua própria vontade, quando se trata da tabela e da aritmética quando se está em movimento apenas dois e dois são quatro? Dois e dois são quatro mesmo sem a minha vontade. Acontece porventura uma vontade própria deste tipo? (DOSTOIÉVSKI, 2004, p. 45).

Não queremos negar a importância da razão em nossa vida. Como nos narra o próprio homem do subsolo: Permiti-me fantasiar um pouco. Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda, isto é, de toda a vida humana, com a razão e com todo o coçar-se. E, embora a nossa vida, nessa manifestação, resulte muitas vezes em algo ignóbil, é sempre a vida, e não apenas a extração de uma raiz quadrada (DOSTOIÉVSKI, 2004, p.41).

Sem dar atenção ao que fala Dostoiévski (2004), continuamos separando razão de emoção, afastando subjetividade de objetividade, dissociando a prosa e a poesia na nossa vida. Dividimos o ser humano em pedacinhos e cada disciplina fica responsável por estudar um deles. Acreditamos que a razão é o suficiente para entendermos o nosso corpo. Vivemos a ilusão de que a ciência tem todas as respostas para os nossos questionamentos, porém como diz Manoel de Barros no Livro sobre nada:

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A ciência pode classificar e nomear os orgãos de um sabiá Mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá (BARROS, 1996, p.53).

O poema O estudante empírico de Cecília Meireles também nos ajuda a pensar sobre essas questões: Eu, estudante empírico, fecho o livro e contemplo. Eis o globo, o planisfério terrestre, o planisfério celeste, o redondo horizonte, a ilusão dos firmamentos. E a nossa existência. Eis o compasso, o esquadro, a balança, a pirâmide, o cone, o cilindro, o cubo, o peso, a forma, a proporção, as equivalências. E o nosso itinerário. Saem das suas caixas os mistérios: desenrola-se o mapa dos ossos, com seus nomes; o sangue desenha sua floresta azul; cada órgão cumpre um trabalho enigmático: estamos repletos de esfinges certeiras. E o nosso corpo. [...] (MEIRELES,1997, p. 180).

Nos primeiro versos, o eu lírico da poesia fecha o livro, simbolizando a atitude de se afastar dos conhecimentos científicos. Ao se afastar dos conhecimentos, parece que ele fica mais próximo deles, já que se propõe a contemplá-los para entendê-los. Na terceira estrofe, o estudante cita objetos que nos remetem ao mundo da matemática: “Eis o compasso, o esquadro, a balança, a pirâmide, o cone, o cilindro, o cubo, o peso, a forma, a proporção, as equivalências”. Isso nos reporta ao modelo de produção de conhecimento que ainda está muito presente na nossa vida, no qual predomina o racionalismo, a lógica, o mecanicismo, por isso a estrofe termina com o verso: “E o nosso itinerário”. Interessante que, em seguida, vem uma estrofe falando sobre o corpo humano. O eu lírico do poema diz: “Saem das suas caixas os mistérios”. Isso nos reporta ao estudo fragmentado do corpo. Cada “caixa”, ou melhor, cada disciplina responsabiliza-se pelo 108


estudo de um mistério: “desenrola-se o mapa dos ossos, com seus nomes; o sangue desenha sua floresta azul” (MEIRELES, 1997, p. 180). As ementas das disciplinas que analisamos exemplificam muito bem essa situação: cada uma trata de um determinado aspecto do corpo biológico. A anatomia estuda como se estrutura o corpo, nomeando cada parte, dando sua função: “desenrola-se o mapa dos ossos, com seus nomes”. A fisiologia dedica-se ao estudo do funcionamento do nosso corpo: “o sangue desenha sua floresta azul”. É importante observar que o estudante fala em mistério, e não em conhecimento, levando-nos a pensar que nunca seremos capazes de entender completamente a nós mesmos: “cada órgão cumpre um trabalho enigmático: estamos repletos de esfinges certeiras” (MEIRELES,

1997, p. 180). Haverá sempre algo a entender. Haverá

sempre algo a buscar. Haverá sempre algo a conhecer. Somos seres incompletos, inconclusos, inacabados. Por sermos incapazes de assumir que jamais decifraremos o mistério de ser ser humano na sua completude, por insistirmos em separar sensibilidade de razão, estamos sendo devorados pelas esfinges. Esfinges que nos tornam seres inumanos. Como diria Morin (2007), todo ser humano tem a humanidade e a desumanidade em sua essência; tornamo-nos inumanos quando passamos a tratar os seres humanos como objetos. Essas esfinges inumanas estão devorando, preferencialmente, os nossos sentidos. Estamos ficando cegos em relação à nossa essência humana. Surdos para ouvir o grito de dor do outro. Dor da falta de carinho, de afeto, de ternura. Incapazes de saborear os relacionamentos humanos como se fossem um alimento, com todos os seus sabores e dissabores: amargo, doce, azedo. Inábeis para tocarmos o outro e nos deixarmos tocar pelo outro. Com base nos conhecimentos da Medicina, Descartes estabeleceu uma concepção de corpo-máquina, movido pela eficiência, utilidade e, a partir da Moral, racionalização das paixões, ou seja, uma submissão das emoções e dos sentimentos à razão. O funcionamento do corpo é comparado com uma máquina hidráulica. Nessa compreensão mecanicista do corpo, o movimento se fundamenta nas leis da natureza e da matemática (NÓBREGA, 2000). Sob essa perspectiva, é compreensível que as ementas das disciplinas analisadas utilizem expressões do tipo: “mecânica do movimento”, “mecanismo”, “sistema” e “aparelho” que nos remetem à idéia de máquina. O corpo humano como uma máquina.

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Um dos focos do curso de Educação Física é o estudo do movimento humano. Isso fica explícito inclusive nas ementas das disciplinas, como a de Anatomia Humana: “Estudo dos aspectos anatômicos básicos [...] que compõem a mecânica do movimento do corpo humano e sua aplicação no campo da educação física e do desporto” (UERN, 2009, p. 46) (GRIFO NOSSO). Edgar Morin pode ajudar a área da Educação Física a (re)pensar o movimento humano. (Re)pensar aquilo que move os nossos orgãos. (Re)pensar a anatomia e a fisiologia quando se voltam para o estudo do movimento humano. Para Morin (2003), o ser humano é, ao mesmo tempo, biológico e cultural. Entendemos, portanto, que o movimento humano, enquanto uma das expressões do ser humano, é também biológico e cultural. [...] O que há de mais biológico – o sexo, o nascimento, a morte – é, também, o que há de mais impregnado de cultura. Nossas atividades biológicas mais elementares – comer, beber, defecar – estão estritamente ligadas a normas, proibições, valores, símbolos, mitos, ritos, ou seja, ao que há de mais especificamente cultural; nossas atividades mais culturais – falar, cantar, dançar, amar, meditar – põem em movimento nossos corpos, nossos orgãos; portanto, o cérebro (MORIN, 2003, p. 40).

Para Nóbrega (2000), a Educação Física deve superar a visão mecanicista que lhe orientou ao longo da história. É necessário resgatar uma linguagem sensível capaz de (re)ligar o corpo e o movimento do corpo. (Re)ligar o corpo nas suas partes e no todo. (Re)ligar as partes no todo e o todo nas partes. (Re)ligar o corpo com si mesmo e em si mesmo. É preciso superar a lógica fragmentadora e isoladora das disciplinas, religando os saberes, o que Morin (2003) chama de transdisciplinaridade. Ver além de um campo delimitado. Criar esquemas de produção do conhecimento que ultrapassam as disciplinas. (Re)criar os laços que unem os diversos saberes. A poesia Mapa de anatomia: o olho de Cecília Meireles ajuda-nos a pensar sobre essas questões. O Olho é uma espécie de globo, é um pequeno planeta com pinturas do lado de fora. Muitas pinturas: azuis, verdes, amarelas. É um globo brilhante: parece cristal, 110


é como um aquário com plantas finamente desenhadas: algas, sargaços, miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro. Mas por dentro há outras pinturas, que não se vêem: umas são imagens do mundo, outras são inventadas (MEIRELES, 2012).

Imaginemos estudar, como nos instiga o poema, o olho na perspectiva da transdisciplinaridade. O globo ocular nos seus aspectos anatômicos: os tecidos que o constituem, os nervos, os vasos sanguíneos que os irrigam, os músculos responsáveis pelos movimentos de abrir e fechar as pálpebras. Entender como a imagem é captada pelo olho e transmitida até o cérebro, onde vai estimular pensamentos. Compreender que o olho transmite sentimentos e emoções. Um olhar, em determinados casos, fala mais do que palavras. O olho também consegue captar sentimentos e emoções emitidos quando o corpo está em silêncio. Quando o corpo fala pelos gestos: uma expressão facial, um sorriso, um cruzar de braços, os pés que ficam balançando, agitada e nervosamente, durante uma conversa. Gestos que, muitas vezes, contradizem o que foi dito pelas palavras. Tudo isso move o movimento do olho: os músculos, os nervos, a conexão com o cérebro, os sentimentos, as emoções, a imaginação.

A colheita: o novo plantio! Depois de plantar e cuidar da semente chega a hora da colheita. Momento da materialização do desejo de semear em frutos. Melhor do que colher é semear em outras pessoas o desejo de plantar. A plantação, para colher bons frutos, precisa que o agricultor esteja consciente do que está sendo plantado, pois, caso contrário, na hora da colheita, os frutos poderão estar sem sabor e sem vida e as sementes serão de fertilização comprometida. A formação do discente de Educação Física que vise à condição humana deve ser compreendida enquanto pressuposto e estratégia de adequação à vivencia de práticas sensíveis, levando a uma reflexão que ultrapasse uma visão fragmentada e dicotomizada do homem. Uma visão que ultrapasse as barreiras de apenas cuidar por cuidar, sem saber por que cuidar. Uma visão que não vislumbre os sujeitos apenas num aspecto biológico, e sim os veja de forma indissociável e unificada, expressando sua forma de ser, de viver e de existir no mundo. 111


Cabe ao educador oportunizar uma formação voltada para a condição humana, mas, para isso, esse deve estar consciente de sua condição de ser-no-mundor, pois só assim poderá oportunizar uma prática humanizadora que permita ao humano descobrir sua humanidade. De acordo com Fonseca (2010), Clarice Lispector vê o problema do humano não apenas sob a perspectiva do conhecimento do mundo exterior, mas de autoconhecimento, enraizamento e destino, origem e humanidade. O educador deve oportunizar uma longa viagem ao mais profundo do educando e que este chegue à consciência total do ser. Só assim haverá uma descoberta de si. O que acontece muitas vezes é que o educador não tem o (re)conhecimento de si, o que torna a educação voltada para a condição humana praticamente inviável. Krishnamurti (1994) refere-se, em sua obra A Educação e o significado da vida, ao termo “educação correta”, a qual designa uma educação que mira a liberdade individual, já que somente esta pode promover a verdadeira cooperação com o todo, com a coletividade. A liberdade proposta aqui vem junto com o autoconhecimento o qual leva a mente a se elevar acima dos empecilhos que criou para si própria ao ansiar por segurança. É função da educação ajudar cada indivíduo a descobrir os empecilhos psicológicos: os medos, as angústias, as aflições que o impedem de viver, e não somente impor-lhes novos modos de pensar voltados para a profissionalização. Esses empecilhos só serão descobertos quando compreendermos o profundo significado da vida humana e, então, haverá uma educação voltada para a descoberta de si. E nós, será que nós já nos questionamos sobre o verdadeiro sentido da vida? A educação voltada para condição humana deve oportunizar uma descoberta de si mesmo. O habito de pensar mecanicamente, em conformidade com um padrão não ajudará o estudante a se tornar um ser humano integral. Para que a educação esteja voltada para a condição humana, enquanto educadores, devemos estar muito cônscios de nós mesmos. Freud apud Todorov (1996) identifica dois grandes grupos de pulsões que orientam nossas atividades: as pulsões de autoconservação, que são voltadas para o eu e as pulsões sexuais, que são voltadas para o outro. Os caminhos da docência deveriam ser pautados por essas pulsões: voltar-se para si e voltar-se para o outro. A educação deve ser um processo de reciprocidade e de amor, pois sem amor nada se concretiza na e para a vida inteira. O ensino sem amor se converte apenas num processo mecânico que não contribuirá em nada para uma descoberta de si. O princípio e o fim da educação deveriam ser o amor. Amor por si 112


mesmo. Amor pelo outro. Amor pela vida. Amor pelo ensinar ao aprender. Amor pelo aprender ao ensinar. A solução da educação é o amor. “O principal é – ame aos outros como a si mesmo, eis o principal, só isso, não é preciso nem mais nem menos: imediatamente você vai descobrir o modo de se acertar” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p. 123). Muitas vezes o que está sendo realizado dentro do agir pedagógico é uma reprodução de conhecimento, o qual não tenta estabelecer relações com a vida dos envolvidos no processo. Principalmente nas disciplinas que estão sendo abordadas neste texto, voltadas para uma normatização dos conhecimentos e sua reprodução. “A reprodução do idêntico é igualmente contrária a vida sendo esse retorno imutável dos mesmos fatos e mesmas situações, parece ser o que mais seguramente refreia as pulsões dos homens” (TODOROV, 1996, p.65). O homem, como afirma Fonseca (2010), precisa inaugurar a odisséia de si mesmo no mundo, para que isso ocorra deve haver uma educação voltada para a conscientização de e sobre si mesmo. O educador deve estar educado para oportunizar essa educação. De acordo com Krishnamurti (1994), a verdadeira educação se inicia com o educador, que deve estar livre dos padrões convencionais de pensamento. É um grande desafio educar o educador. Educar o educador é fazê-lo compreender a si mesmo, tarefa bastante árdua, pois os mesmo se apresentam cristalizados num sistema de pensamento ou seguindo um padrão de pensamento e ação, estando integres inteiramente a alguma ideologia. Se ensinar é nossa verdadeira vocação, podemos sentir, ainda que temporariamente, que nossa vocação está sendo abortada. Morrendo antes de nascer. Não estamos encontrando uma saída para o presente caos em que se acha a educação. Discutimos teorias. Fazemos planos. Estabelecemos metas. Nada parece ser capaz de acender a luz no fim do túnel que nos salvará. Estamos esquecendo de perceber e de reconhecer que, quando (re)descobrirmos uma educação voltada para a condição humana, voltaremos a ter o incentivo e o entusiasmo necessário para a nossa prática pedagógica. E, então, como num encantamento: a luz no fim do túnel se acenderá. Se queremos realizar a liberdade e a integração humana dos nossos educandos, precisamos operar uma transformação fundamental em nosso modo de sentir e viver a educação. Não é questão de vontade ou resolução. É questão de reconhecer e compreender que existem outros olhares para a educação, os quais poderão promover 113


uma educação mais humana, gerando uma nova reflexão sobre o “humano do humano”, inaugurando uma nova maneira do humano viver sua condição humana. Não estamos aqui querendo apontar uma forma de ensino e nem criticar como este ensino está sendo desenvolvido, mas sim possibilitar uma reflexão sobre a educação. Sendo a função da educação educar, este texto vem com esse propósito de educar, ou seja, ajudar a (re)descobrir o que mais nos interessa, nos motiva, nos orienta enquanto educadores. Não descobrir nossa verdadeira vocação é sinônimo de frustração. Sem vocação, toda a nossa vida parecerá perdida. Sem sentido. Vazia. Sem valor. É preciso semear uma nova maneira de viver e de educar. De viver ao educar. De educar ao viver. De colocar a vida na educação e a educação na vida. Afinal de contas, “[...] a vida quando se recolhe aos livros é para voltar mais vida” (ANDRADE, 1987, p. 82). A formação humana só será semeada quando os docentes aceitarem o desafio de selecionarem as sementes, prepararem o solo, plantarem e cuidarem da nova plantinha que germina. Este é o nosso desejo: transformar este texto, a nossa colheita, num novo plantio não apenas para nós mesmos, mas para todos aqueles que acreditam num mundo mais humano. Num humano cada vez mais humano, com todas as dores e prazeres, alegrias e tristezas, sanidades e loucuras que isso nos implica. Bom plantio para todos...

Referências Bibliográficas ANDRADE, Carlos Drummond de. Amar se aprende amando. Rio de Janeiro: Record, 1987. BAFFI, Maria Adelia Teixeira. Projeto Pedagógico: um estudo introdutório. Pedagogia em Foco, Petrópolis, 2002. Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/gppp03.htm>. Acesso em: 07 de janeiro de 2012. BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 3 edição. Rio de Janeiro: Record, 1996. BRAYER, Flávio Henrique Albert. Como salvar a educação (e o sujeito) pela literatura: sobre Philippe Meirieu e Jorge Larrosa. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 29, p. 63-73, 2005. Disponível em: <http:// www.scielo.br/pdf/rbedu/n29/n29a06.pdf/>. Acesso em: 07 de janeiro de 2012. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2004. ______. Duas narrativas fantásticas: a dócil e o sonho de um homem ridículo. São Paulo: Ed. 34, 2009. FONSECA, Ailton Siqueira de Sousa. A reconstrução do homem em Clarice Lispector. Revista Babilonia, Lisboa/Portugal, n. 8-9, p. 117-129, 2010. Disponível em: <http:// revistas.ulusofona.pt/index.php/babilonia/article/view/1907/>. Acesso em: 06 de janeiro de 2012. 114


______; ENÉAS, Luzia Ferreira Pereira. Por um reencantamento da educação. In: ANDRADE, Francisco Ari de; SANTOS, Jean Mac Cole Tavares (Orgs.). Formação de professores e pesquisas em educação: Teorias, metodologias, práticas e experiências docentes. Fortaleza: Edições UFC, 2011. KRISHNAMURTI, Jiddu. A Educação e o significado da vida. São Paulo: Cultrix, 1994. LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MEIRELES, Cecília. Mapa de anatomia: o olho. Disponível em: <http:// www.casadobruxo.com.br/poesia/c/mapa.htm/>. Acesso em: 07 de janeiro de 2012. ______. Poesia completa. Volume 4. São Paulo: Nova Fronteira, 1997. MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8 edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. ______. O método 5: A humanidade da humanidade: a identidade humana. 4 edição. Porto Alegre: Sulina, 2007. ______. Amor, poesia, sabedoria. 8 edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. NÓBREGA, Terezinha Petrúcia da. Corporeidade e educação física do corpo-objeto ao corpo-sujeito. Natal: EDUFRN, 2008. TODOROV, Tzevan. Ser, viver, existir. In: A vida em comum: ensaio de antropologia. São Paulo: Papirus, 1996. UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. Campus avançado professora Maria Elisa de Albuquerque Maia. Projeto pedagógico do curso de educação física modalidade licenciatura. Pau dos Ferros, 2009. CREDENCIAIS DE AUTORIA Suênia de Lima Duarte Possui graduação em Educação Física na Universidade do Estado do Rio Grande do NorteUERN (2005). Possui Especialização em Desenvolvimento Infantil pela UERN (2008). Atualmente é aluna do Mestrado em Educação da UERN/POSEDUC atuando na linha de Formação humana e desenvolvimento profissional docente. É professora Auxiliar III do Curso de Educação Física da UERN/CAMEAM. Membro dos Grupos de Pesquisa: Educação Física, Sociedade e Saúde/GPEFSS do curso de Educação Física e do Ateliê Sociológico, Educação e Cultura do Curso de Educação ambos os grupos da UERN. Contato: limaduarte-uern@hotmail.com Acesso - Lattes: http://lattes.cnpq.br/1492270470821656 Elane da Silva Barbosa Graduada no Curso de Bacharelado e Licenciatura em Enfermagem pela Faculdade de Enfermagem - FAEN da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN (2011). Especialista em Enfermagem do Trabalho pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá - FIJ (2012). Aluna do Mestrado em Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação POSEDUC da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN, na condição de bolsista da CAPES/FAPERN, atuando na linha de Formação humana e desenvolvimento 115


profissional docente. Membro do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo GECOM/UERN. Docente da Faculdade do Vale do Jaguaribe – FVJ. Contato: elanesilvabarbosa@hotmail.com Acesso - Lattes: http://lattes.cnpq.br/7040140253391382 Ailton Siqueira de Sousa Fonseca Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), prof. adjunto do Departamento de Ciências Sociais e Política da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Vice-diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais nessa universidade, coordenador do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (GECOM/UERN), prof. do Mestrado em Educaçao (POSEDUC/UERN) e do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN), tutor do Programa de Educação Tutoria (PET). Principais temas de interesse e pesquisa: Antropologia da Comunicação Urbana. Antropologia e Complexidade. Educação, Interdisciplinaridade, Transdisciplinaridade e Complexidade. Cultura e linguagem. Cotidiano e afetividade. Literatura, ciência e imaginário. Contato: ailtonsiqueira@uol.com.br Acesso - Lattes: http://lattes.cnpq.br/4878147595860938

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FORMAÇÃO HUMANA E LITERÁRIA: O PERFIL DE LEITOR LITERÁRIO DE LETRANDOS ANTES DO INGRESSO NO CURSO Maria Gorete Paulo Torres José Cezinaldo Rocha Bessa Maria Lúcia Pessoa Sampaio

Introdução O ensino da leitura literária em sala de aula, em especial na educação básica, tem sido desde longa data objeto de muitas reflexões de estudiosos da literatura, dentre os quais podemos destacar aqueles estudos voltados para a leitura, o ensino e a sua relação com uma formação humana mais ampla que tem a leitura literária como aspecto preponderante (VILLARDI, 1999; RÖSING, 1988; ZILBERMAN, 1988; VIEIRA, 1990; BORDINI, AGUIAR, 1993; MURRIE, 1994; PINHEIRO, 2001; COLOMER, 2003; MARTINS, 2006; COSSON, 2009). Um dos grandes desafios dessas reflexões é, segundo Martins (2006), favorecer subsídios teóricos, ainda muito carentes na área, e suportes metodológicos que possam auxiliar a prática pedagógica, o que poderia contribuir para a desconstrução da ideia já bastante sedimentada no aluno de ser a literatura um “objeto artístico de difícil compreensão” (p. 83). Se, por um lado, há uma preocupação de estudiosos com relação aos procedimentos de ensino do texto literário, por outro lado, na prática de sala se aula, a literatura tem sido, de acordo com Martins (2006), reduzida a uma espécie de recurso de planejamentos didáticos por meio dos quais alguns educadores tentam introduzir nos estudantes a descoberta do prazer de ler. Contudo, usam-na muito mais como pretexto para estudo e análise de conteúdos gramaticais ou conferem ênfase à historiografia de períodos literários, o que descaracteriza o trabalho com a literatura, já que se relegam a um plano secundário a organização estética do texto literário, o seu caráter plurissignificativo, as relações intertextuais que nele se operam, entre muitos outros aspectos. Isso evidencia uma das faces problemáticas do ensino de literatura na escola, ainda mais quando se entende que as possibilidades de a leitura literária ser presente na vida e nas práticas sociais do indivíduo são não somente desejáveis, mas necessárias, considerando-se que ela pode “ser pensada como um grande agenciador do amadurecimento sensível do aluno, proporcionando-lhe um convívio com um domínio cuja principal característica é o exercício da liberdade. Daí favorecer-lhe o 117


desenvolvimento de um comportamento mais crítico e menos preconceituoso diante do mundo” (OSAKABE, 2004, p. 59). Nesse sentido, a prática constante da leitura literária em sala de aula (e fora dela) pode permitir que os sujeitos estejam mais capacitados para enfrentar e superar os obstáculos impostos por essa sociedade competitiva e seletiva na qual vivem. Além de entendermos que a leitura literária se apresenta com uma das formas de o sujeito concretizar a superação dos obstáculos da sociedade vigente, por meio de uma atitude crítica que lhe promova liberdade, assumimos a compreensão de que ela é, também, um dos caminhos mais adequados para que o indivíduo obtenha conhecimento e prazer, razões pelas quais acreditamos que a mesma deve fazer parte da vida de todo e qualquer ser humano, sobretudo no processo de formação de profissionais da área do ensino, especialmente daqueles da área de Letras. Considerando o exposto, visamos com este trabalho investigar as experiências de leitura literária realizadas por estudantes de Letras/Português antes do ingresso destes no Curso, numa perspectiva de conhecer o perfil do leitor literário que ingressa no curso. O presente estudo se caracteriza como uma pesquisa de campo, de natureza descritiva, orientada por uma abordagem qualitativa e quantitativa. Para sua execução, utilizamos como instrumental questionários, com questões abertas, fechadas e mistas, aplicados a estudantes do Curso de Letras/Português de uma instituição pública do estado do Rio Grande do Norte, constituindo um corpus de 11 (onze) questionários respondidos. Como respaldo teórico, este estudo se ancora nos postulados de Antunes (2009), Colomer (2003), Martins (2006), Machado (2002), Cosson (2009), entre outros, sobre o ensino de literatura e de leitura literária.

1 A literatura e formação humana na Escola: o ensino como objeto de discussão Culturalmente, a sociedade atribui exclusivamente à escola o papel de desenvolver competências leitoras. Entretanto, é notório que, nos dias atuais, não somente a escola deve assumir esse papel, mas também é reconhecidamente uma tarefa que pode ser estimulada e mediada por outras instituições, entre as quais podemos citar a família, a igreja, o sindicato. Antunes (2009) defende a crença de atribuirmos à escola a função de formar leitores como ingênua e afirma que, antes de freqüentar os bancos escolares, a criança vivencia situações de convívio com a escrita, as quais tanto são vividas no ambiente familiar como no social em que ela está inserida. Segundo a autora, é no convívio 118


humano e familiar que todo o processo de formação leitora se inicia, sendo aperfeiçoado posteriormente nas relações mantidas pela criança com o outro em várias instituições sociais. Apesar de não excluir a intervenção de outras instituições sociais na formação de leitores, Antunes (2009) entende que a maior responsável por essa formação é a escola. De acordo com a autora, “a escola é especificamente, a instituição social encarregada de promover, aprofundar e sistematizar a formação instrucional e a educação da comunidade.” (ANTUNES, 2009, p. 189). Martins (2006), compreendendo as limitações do ensino de literatura na escola, na medida em que este se centraliza fundamentalmente em ensinar a história da literatura, propõe um novo olhar sobre esse ensino, quando assim se posiciona: É preciso que a escola amplie mais suas atividades, visando à leitura da literatura como uma atividade lúdica de construção e reconstrução de sentidos. [...] Tanto a leitura da literatura, quanto o ensino da literatura deveriam estar presentes no contexto escolar, de modo articulado, pois são os dois níveis dialogicamente relacionados. (p. 85)

Sugere, então, a autora que, para além do ensino da literatura, seja indispensável que o professor de literatura abra espaço para leituras literárias em suas aulas, possibilitando que o estudante possa apreciar o texto literário, explorando-o em sua riqueza estética, lúdica, criativa. É indispensável também porque, conforme defende Candido (2000), a leitura literária faz o homem viver seus problemas de forma dialética, tornando-se, assim, fator indispensável de humanização, além de confirmar o homem na sua humanidade, tendo em vista que a mesma atua tanto no consciente como no subconsciente. Então, assim encarada, a leitura literária precisa ser estimulada, para que se possa alargar a visão de mundo dos estudantes, não se limitando a ler por ler, pois a literatura vai além de uma simples leitura, até porque, segundo Colomer (2003), através dela verticalizamos a nossa visão de mundo cultural e histórico-social, dada a sua capacidade política e reveladora das condições e dos conflitos da realidade. Sob essa perspectiva, fica claro que o papel do professor de literatura é muito mais do que o de despertar o gosto do aluno pela leitura literária, mas é principalmente de formar leitores conscientes e aptos a entenderem a sociedade na qual estão inseridos, 119


pois, como nos esclarece Colomer (2003), a literatura promove em nossas mentes uma grande abertura para a multiplicidade de diálogos existentes na sociedade, levando-nos a compreender o modo de vida exigido pela contemporaneidade. Na contramão do que se espera do professor de literatura, o que vem acontecendo no Brasil é uma prática de ensino de texto literário na qual, de acordo Martins (2006), predomina o desconhecimento do sentido da literatura e de suas implicações, o que revela a necessidade de reavaliação das metodologias utilizadas neste ensino, já que os problemas, na maioria das vezes, não estão, segundo a autora, direcionados somente aos conteúdos selecionados, mas também ao modo como eles são abordados em sala de aula, o que se deve à ausência de uma discussão metodológica que possa auxiliar a prática docente. Por conseguinte, ainda de acordo com Martins (2006), as aulas de literatura são realizadas de forma fragmentada, sem a preocupação de levar o estudante ao conhecimento da obra, nem do autor, e, quando abordada para análise e /ou interpretação, tendem a supervalorizar a intenção do autor, como se toda a significação do texto recaísse sobre seu produtor, o que torna a literatura um objeto impenetrável, que não é decifrável. Sendo assim, para a autora, o estudante-leitor não é considerado em sua capacidade de formação de sentido, nem muito menos passa a ser visto como um co-enunciador do texto, já que sua interpretação não está sendo valorizada e privilegiada. Isso implica assumir, portanto, que o ensino de literatura na escola está sendo praticado quase sempre de maneira equivocada, já que a literatura é vista, segundo Cosson (2009), somente como uma disciplina que preconiza a história da literatura, sempre presa aos programas curriculares, esquecendo-se de permitir que “a leitura literária seja exercida sem o abandono do prazer, mas com o compromisso de conhecimento que todo saber exige” (p. 23). Para esse estudioso, a superação da realidade atual do ensino de literatura passa necessariamente pelo entendimento de que a literatura precisa ser colocada como prática indispensável na escola, colocando o letramento literário como objetivo desse ensino. Na perspectiva defendida por Cosson (2009), o processo de letramento literário deve partir do pressuposto de que a literatura, no ambiente escolar, proporciona muito mais de que uma simples leitura, ao contrário, ela se torna “um lócus de conhecimento e, para que funcione como tal, convém ser explorada de maneira adequada” (p. 26). É necessário, então, de acordo com o autor, que a escola crie meios para que o estudante 120


faça essa exploração, deixando de lado a idéia de que a leitura é uma atividade solitária e que realizá-la na escola seria o mesmo que estar desperdiçando o tempo que seria utilizado nas atividades para aprender.

2 Formação do leitor e escolhas de textos literários De acordo com Machado (2002), uma questão bastante polêmica quando se discute ensino de literatura se trata do tema “escolhas” escolares dos textos para leitura. É polêmica porque, como se sabe, estamos cercados de uma diversidade de outros gêneros textuais que mantêm certa disputa com os textos literários, ocorrendo que, geralmente, os literários fiquem em desvantagem, haja vista que, em alguns espaços, que não o escolar, o acesso a esses textos se torna mais restrito. Apesar de o indivíduo em sua convivência familiar, religiosa e social necessitar de tantos outros gêneros textuais para atender as suas necessidades comunicativas diárias, Machado (2002) pontua que ele não deverá restringir-se somente à leitura destes e esquecer as leituras literárias, pois estas representam sua realidade, levando-os a refletir sobre sua condição de vida e de sua existência social. Ainda segundo Machado (2002), a questão da escolha do texto para leitura é alvo de muitas discussões no espaço escolar, já que alguns defendem que o estudante deve ter total liberdade para escolha, enquanto outros acreditam que a prescrição é a melhor conduta a ser tomada, pois só sendo determinado o que o aluno deverá ler é que o mesmo conseguirá legitimar a cultura letrada. Essa questão, na verdade, não se esgota em quem deve escolher o texto literário a ser lido. A ela estão intimamente ligadas as condições de acesso. De nada adiantará a escolha realizada pelo professor se o texto não estiver disponível aos seus estudantes na biblioteca. Isso implica, portanto, que as escolas disponibilizem uma biblioteca equipada a fim de que tanto estudantes como professores tenham opção, liberdade de escolha. Essa condição é necessária para que o estudante tenha um vasto leque de possibilidades de leituras. Necessário se faz ainda que o trabalho do professor como mediador nesse processo de formação de leitores garanta a formação de promotores de leitura, uma vez que somente o contato com os livros não é suficiente para que o estudante goste de ler e se torne leitor ativo e participativo. (MACHADO, 2002) Convém destacar, por fim, que tanto as escolhas realizadas pelo estudante, como as indicações do professor são importantes e têm destaque na formação do aluno como 121


leitor, conforme destaca Machado (2002), partindo da compreensão de que “no processo de aprendizagem muito escapa ao estritamente pedagógico, há muito que o desenvolvimento e inserção dos sujeitos no mundo letrado não têm como centro exclusivo a escola” (MACHADO, 2002, p. 72). Embora se reconheça que a escola pode e deva oferecer condições e um leque de possibilidades voltadas para a formação do leitor literário, é plenamente compreensível que não se atribua a missão de esta ser o único espaço de mediação da leitura literária. É necessário encarar que nem sempre a escola reúne as condições ideais para que o projeto de concretização da formação do leitor literário se realize, considerando que, em muitos casos, a escola não apresenta um acervo completo na biblioteca, e que falta a alguns professores um pouco mais de leitura, algo que, certamente, ajudaria na indicação, acompanhamento e exploração de leituras literárias no espaço de sala de aula. Com base nas discussões tecidas acerca do ensino de literatura, da formação de leitores e escolhas de textos literários, fundamentamos a análise do perfil do leitor literário do estudante que ingressa no curso de Letras/Português, que se segue. 3 O perfil de leitor literário do estudante de Letras/Português antes do ingresso no Curso Considerando a grande importância que a leitura literária exerce na vida de todo e qualquer indivíduo, e seu papel decisivo na formação humana e literária de estudantes universitários de cursos de Licenciaturas como Letras já que estes têm compromisso maior com a mediação de leituras, é que decidimos investigar as experiências de leitura de textos literários realizadas por estudantes de Letras/Português antes do ingresso destes no curso. Dessa forma, procuramos conhecer o perfil de leitor literário do estudante que ingressa no curso de Letras, focalizando questões como: (i) você gostava de ler?; (ii) com que freqüência você lia textos literários antes do ingresso no curso de Letras?; (iii) naquele contexto, quantos livros literários lia em média durante o ano?; (iv) que textos literários lia?; (v) com quem iniciou a experiência de leitura de textos literários? Uma primeira constatação da pesquisa foi sobre o gosto dos estudantes pela leitura. Do universo pesquisado, 100% dos estudantes declararam gostar de ler. Esse dado é bastante positivo, até porque entendemos que a leitura deve ser uma atividade prazerosa, baseada sempre no desejo e na descoberta. Uma decorrência natural disso é a constatação de que o texto literário ocupa um lugar privilegiado entre as opções de 122


leitura desses estudantes, tendo em vista os romances, as poesias e os contos serem citados como os mais lidos, ficando atrás apenas dos gêneros da esfera jornalística. Essa preferência pelos textos literários vai ao encontro do posicionamento de Machado (2002), para quem os estudantes não devem deixar de lado a leitura dos textos literários, em detrimento de outros textos. Embora todos tenham afirmado gostar de ler, a freqüência com que os estudantes liam textos literários antes de ingressar no curso de Letras é uma questão que ainda se revela aquém da expectativa de formação de leitor literário, conforme indicam os dados do gráfico a seguir:

55%

60%

As vezes

50% 40%

Frequentemente

27% 18%

Raramente

30% 0%

20%

Nunca

10% 0%

Gráfico 01: Freqüência de leitura de textos literários antes do ingresso no curso de Letras

Como podemos observar no gráfico, a maioria dos estudantes (55%) afirma que lia textos literários somente às vezes. A opção raramente foi citada por 27% dos estudantes, enquanto apenas 18% dos estudantes pesquisados afirmaram realizar leitura dos textos literários com frequência. Como se pode perceber, menos de um terço desses estudantes assume ser leitor com frequência, o que indica que o estudante que ingressa no Curso de Letras não é, de fato, um leitor assíduo, com inclinação para a leitura literária. Isso se confirma quando questionamos a média de livros literários que eles liam anualmente antes de ingressarem no curso, cujos dados apresentamos no gráfico que se segue:

123


64%

70%

01 Livro

60% De 02 a 04 livros

50% 40%

18%

18%

30%

0%

De 05 a 09 livros Mais de 10 livros

20% 10% 0%

Gráfico 02: Média de livros literários lidos, por ano, antes de ingressarem no curso

Os dados deste gráfico mostram que a maioria dos estudantes afirma que lia até quatro livros literários por ano, sendo que 18% afirmam que liam apenas um livro e, 64%, de 02 a 04 livros. Apenas 18% se revelam serem leitores mais assíduos, posto que realizavam a leitura de mais de 10 livros literários por ano, o que denota a existência de um leitor literário em formação. Uma outra constatação do estudo foi sobre que textos literários esses estudantes liam antes de ingressarem no curso de Letras. Os dados do gráfico, a seguir, nos permitem observar uma variedade de opções de textos literários lidos.

Literatura Ficcional Romances da Literatura Nacional Clássicos da Literatura Universal Contos

23%

25% 20% 14% 15% 10% 5%

9%

11% 11%

Poesias

11% 9% 6%

Romances da Literatura Portuguesa Literatura Infantil

6% 0%

0%

Literatura de Cordel Crônicas Romance da Literatura Potiguar

Gráfico 03: Textos literários lidos antes de ingressarem no curso.

124


Os textos literários lidos pelos estudantes antes de ingressarem no curso de Letras são bem diversificados, compreendendo, por ordem de freqüência: romances da literatura nacional (23%), literatura ficcional (14%), literatura de cordel (11%), poesia (11%), contos (11%), clássicos da literatura universal (9%), literatura infantil (9%), romances da literatura portuguesa e crônicas (6%). Como se pode ver, esses estudantes revelam um repertório bem variado e rico de leitura de textos literários, tendo em vista que afirmam terem lido textos que não são tão costumeiramente explorados em sala de aula no ensino médio, como é o caso dos clássicos da literatura universal e da literatura de cordel. Nesses dados, se, por um lado, não surpreende a preferência pela leitura de romances da literatura nacional – fato que pode ser explicado pela difusão dos livros didáticos nas escolas, que, como se sabe, determina, em grande medida, os conteúdos programáticos do ensino de língua materna –; surpreende, por outro, a significativa preferência pela leitura da literatura de cordel – o que se acredita dever-se ao fato de a mesma ser bastante produzida e conhecida na região e o acesso a ela ser considerado fácil. Chama atenção nesses dados também a constatação de que os textos da literatura infantil não são tão freqüentes entre os textos lidos pelos estudantes que ingressam no Curso de Letras. Supomos que isso pode estar atrelado ao fato de que o início das experiências de leitura de textos literários de grande parte dos estudantes, conforme indicam dados da pesquisa, deu-se a partir do ensino médio (27%) e do ensino superior (27%), o que sugere que a esse estudante faltou um contato mais intenso com a literatura infantil quando de seu processo de formação de leitor na educação infantil e no ensino fundamental. Como o foco de nosso estudo compreende as experiências de leituras literárias, entendemos ser necessário saber com quem os estudantes iniciaram a experiência de leitura de textos literários. Com os dados desse questionamento podemos conhecer melhor o papel desempenhado tanto pela família como pela escola na formação do leitor literário.

125


55% Professores

60%

36%

Amigos

40% Iniciativa própria

9% 20%

0%

Com os pais

0%

Gráfico 04: Com quem iniciou a experiência de leitura de textos literários

Conforme mostra o gráfico, 9% dos estudantes afirmam ter iniciado a experiência de leitura de textos literários por intermédio dos amigos, e 36% deles, por iniciativa própria. Para a maioria dos estudantes (55%), o início da experiência se deu por influência dos professores. Nenhum estudante mencionou o fato de ter iniciado essa experiência com os pais. Desses números, merece destaque a maioria ter afirmado começar a experiência de leitura do texto literário com o professor, o que reforça o papel fundamental que esse profissional tem na formação de leitores literários e o compromisso que a escola deve ter com a promoção do letramento literário, conforme sugerem Machado (2002) e Cosson (2009). Merece destaque também o dado de que nenhum estudante ter mencionado que começou a experiência de leitura do texto literário com os pais. Isso é digno de nota, porque se entende que se trata de um aspecto bastante negativo, considerando-se que, segundo Cosson (2009), é na família que começa o processo de letramento literário. De modo geral, os resultados apontam que se, por um lado, esses estudantes revelam gostar de ler e se consideram leitores literários, conforme atesta a maioria (73%), os dados de como se deu a experiência desses estudantes com a leitura de textos literários aponta na direção de um leitor literário em constituição. É um leitor literário em constituição, porque se, por um lado, a frequência e a quantidade de obras literárias lidas apontam para uma falta de assiduidade na leitura dos textos literários, por outro lado, o repertório de leitura desses textos – embora haja uma predominância do gênero romance – se revela rico e bem diversificado, de tal modo que se desenha uma inclinação desses estudantes para a leitura literária, apesar de a família ainda não ser mencionada como influenciadora do gosto de leitura.

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Conclusão Os resultados aqui apresentados põem em evidência que as experiências de leituras dos estudantes de Letras antes do ingresso no curso, apesar de sinalizarem para uma diversidade de textos literários lidos, não atingem as condições desejáveis para a formação de um leitor literário. Os dados revelam, portanto, um comportamento restrito acerca da leitura de textos literários por parte desses estudantes, dado o fato de a leitura desses textos não se constituir uma prática constante na vida da maioria deles. Por conseguinte, o perfil de leitor literário desses estudantes é de um leitor em processo de constituição, muito embora acreditemos que esse perfil se revele distante ainda do esperado para o nível de ensino em que esses estudantes se encontram. Isso, contudo, parece plenamente aceitável, quando se leva em consideração questões como má formação do professor e as deficientes condições de acesso ao texto literário, proporcionadas durante o processo de formação desses estudantes na educação básica. Por fim, isso mostra que os estudantes que ingressam no Curso de Letras/Português ainda precisam de um trabalho sistemático de mediação para poder se tornarem leitores literários assíduos. Como conseqüência, resta à universidade o trabalho de iniciação de um processo de letramento literário, como proposto por Cosson (2009), que deveria ter sido realizado pelas instituições da educação básica, quando lhe caberia a tarefa de aprimorar e intensificar esse letramento.

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CREDENCIAIS DE AUTORIA Maria Gorete Paulo Torres Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Especialista em Gestão Escolar pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2008). Especialista em Educação pela Universidade Potiguar (2003). Graduada em Letras/Português pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2010). Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (1998). Atualmente é professora da Educação Básica, da Secretaria Municipal de Educação de Frutuoso Gomes, exercendo a função de Coordenadora de Projetos Educacionais, professora da Educação Básica, da Secretaria Estadual de Educação e Cultura e coordenadora do Programa BALE/NAESU (Biblioteca Ambulante e Literatura nas Escolas). Desenvolve estudos na área de literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: leituras literárias, formação do leitor, ensino de literatura, gestão escolar e educação. Contato: goretetorres@hotmail.com

Acesso - Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4404964T6 José Cezinaldo Rocha Bessa Possui graduação em Letras/Língua Portuguesa e respectivas literaturas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2005) e mestrado em Estudos da Linguagem, na área de concentração em Linguística Aplicada, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2007). Doutorando em Linguística e Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de Araraquara. Atualmente é Professor Assistente III da 128


Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/Campus de Pau dos Ferros. É membro como discente do grupo de pesquisa SLOVO (UNESP/FCLar) e como pesquisador do Grupo de Pesquisa em Produção e Ensino do Texto (UERN/DL/CAMEAM) e do Grupo de Estudos Discursivos (UNESP/Assis) e participa do Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso (GEGe/UFSCAR). É membro do corpo editorial das revistas Diálogo & Interação e Ícone Revista de Letras e atua como parecerista ad hoc da revista Revelli. Foi o idealizador, o primeiro editor-chefe e organizador do primeiro número da revista Diálogo das Letras, da qual é membro da Equipe Editorial. Concentra interesse pelos estudos na área de Letras, com ênfase em Linguística, em Linguística Aplicada e em Língua Portuguesa, dedicando-se especialmente a estudos informados pelas seguintes temáticas: gêneros do discurso, produção textual, ensino de língua materna, dialogismo, discurso citado, escrita acadêmica e comunicação científica. Contato: cezinaldo_bessa@yahoo.com.br

Acesso - Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4756806Y4 Maria Lúcia Pessoa Sampaio Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (1992), com Especialização, Mestrado e Doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1999-2005). Pós-Doutoramento no Laboratoire d'Etudes Romanes, na Équipe de Linguistique des Langues Romanes na Université Paris 8, France (2010-2011). Professora adjunto IV do Departamento de Educação e Bolsista de Produtividade da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, desde 2007. Atuou como líder-fundadora do Núcleo de Estudos em Educação - NEEd (2000-2004) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Planejamento do Processo Ensino-aprendizagem - GEPPE (2005). Atua em área multidisciplinar - Educação e Letras - sendo docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), docente e coordenadora do PROFLETRAS, desenvolve pesquisas articuladas à extensão, via Programa BALE - Biblioteca Ambulante e Literatura nas Escolas. Coordena pesquisa vinculada ao PROCAD/CAPES, em parceria com a UFMA, USP e UERN, voltada para o ensino-aprendizagem da leitura/literatura, na área de Língua Portuguesa. Foi Presidente-Fundadora da Associação Internacional de Pesquisa na Graduação em Pedagogia (AINPGP), entidade promotora dos Fóruns Internacionais de Pedagogia (FIPEDs), por duas gestões consecutivas (2008 a 2012). Contato: malupsampaio@hotmail.com

Acesso - Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4708021Y2

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CONHECER E PRATICAR A EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA COMO ALTERNATIVA A FORMAÇÃO Geovânia da Silva Toscano Alcides Leão Santos Junior

Introdução O debate brasileiro no inicio do século XXI, sobre a necessidade de conhecer e praticar extensão universitária, especialmente nas Universidades Públicas, tornou-se emergente dada à carência de docentes e discentes compreenderem com clareza e propriedade o que significa extensão universitária e como através desta pode-se pensar numa perspectiva de estabelecer vínculos entre academia e outros setores da sociedade na construção de conhecimentos visando à formação universitária. Santos (2004a) em sua obra “A universidade no século XXI”, defende que um dos desafios para as instituições superiores públicas é a conquista da legitimidade que passa pela questão do acesso, da ecologia dos saberes, pela aproximação com as instituições de ensino básico, e também pela extensão universitária. Para que a extensão universitária tenha uma maior visibilidade na Universidade, é emergente que, o grupo presente na gestão universitária (reitor, pró-reitores, chefes de departamentos, coordenadores de cursos), bem como professores, alunos e funcionários acreditem na prática extensionista para diminuir o distanciamento desta instituição dos outros grupos existentes na sociedade para dar um sentido à construção de um conhecimento prudente para uma vida decente como defende Santos (2004b). Destacamos que, a ideia de conhecimento prudente, advém da compreensão de que nos constituímos como sujeitos sociais na relação com os outros, e, portanto, se aqui estamos é porque nos formamos em uma rede de relações construídas ao longo de nossas histórias, que nos aproximam cotidianamente através de nossas palavras e ações nos diferentes lugares que atuamos: como reafirma a canção “Caminhos do coração”, do saudoso Gonzaga Junior: “E aprendi que se depende sempre; De tanta, muita, diferente gente; Toda pessoa sempre é as marcas; Das lições diárias de outras tantas pessoas” (GONZAGUINHA, 2006). O tema conhecer e praticar a extensão pode fazer parte daqueles que praticam extensão, mas pode ser fonte de curiosidade para aqueles que querem realizar extensão e ainda não o fazem

numa Universidade Pública. Então, neste trabalho, propomos

apontar questionamentos a respeito da necessidade de se pensar trajetórias formativas de 130


jovens universitários e de professores com mais compromissos uns com os outros no fazer universitário, alicerçado por ações participativas e cooperativas. No sentido exposto acima, objetivamos neste artigo abordar a idéia de formação universitária, enfatizando o papel da extensão como prática acadêmica e científica na Universidade pública. Em vista de atingir tal objetivo discutimos inicialmente a compreensão de formação, a ideia do diálogo entre saberes e as características de extensão universitária na perspectiva de uma prática acadêmica. Com estas análises, buscamos mostrar que a formação universitária poderá está respaldada no exercício permanente do diálogo com os diferentes sujeitos que aparecem na trajetória de formação, e neste sentido, não se deve cochilar e sim abraçar aquilo que se sente, deseja e somos tocados pelo nosso coração como fundamentos imprescindíveis à formação comprometida com a nossa condição humana.

1. O sentido da formação O biólogo chileno Humberto Maturana em seu livro “Emoções e linguagem na educação e política” (2001) ao refletir sobre formação profissional questiona o papel da educação frente à realidade chilena e traz a seguinte pergunta: a educação chilena serve ao Chile e à sua juventude? E, remete a outros questionamentos: Que país queremos? Que educação queremos? Para que queremos educação? Que Universidade queremos? Ele responde a essas questões a partir de sua vivência universitária, pois, quando foi estudante universitário nos anos 1960, Maturana identificava um projeto de responsabilidade social, no qual havia a preocupação com o bem-estar das pessoas de seu país, o Chile, procurando devolver aquele conhecimento, que estava recebendo, à sociedade. Diferentemente, do que viveu Maturana, no neste século XXI, percebe-se a configuração de um dilema entre um projeto individual voltado para a exigência do mercado profissional, competitivo e, por outro lado, a preocupação de estudar, a fim de colaborar para o enfrentamento dos problemas sociais. Neste século XXI, uma das questões que emerge para a redefinição da atuação da Universidade é o paradigma da formação profissional, tão privilegiado ao longo da sua história, mas que entra em xeque frente aos crescentes problemas sociais que sinalizam a emergência de seres autônomos, críticos, criativos, cooperativos, solidários e, sobretudo, dispostos e abertos a mudanças, a enfrentar as incertezas.

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Uma possível crítica a esta formação profissional universitária, para o século XXI, poderia ser pautada no modelo de ciência moderna, sustentada na fragmentação e na especialização do saber, modelo este que repercute na construção de um conhecimento descontextualizado, hierarquizado e sem um diálogo com a realidade. Há neste modelo científico um domínio do know-how técnico sobre o know-how ético; este seria necessário para aproximar a Universidade dos interesses sociais, mesmo porque o paradigma que dominou o mundo ocidental da racionalização, da separação, da fragmentação, da especialização entra em crise e desafia as instituições produtoras de saberes a rever suas funções num mundo permeado pelas crises de percepção e de valores. Nesta direção analítica, Santos (1996, p. 225), quando avalia as crises da Universidade moderna (hegemonia, legitimidade e institucionalidade), propõe outro modelo de atuação desta instituição com a seguinte tese: A "abertura ao outro" é o sentido profundo da democratização da universidade, uma democratização que vai muito além da democratização do acesso à universidade e da permanência nesta. Morin (1999) corrobora a tese de Santos ao abordar a reforma do pensamento, sugerindo que precisamos desenvolver um pensamento com a capacidade de ligar e solidarizar os conhecimentos que foram separados pelo paradigma do pensamento científico moderno, procurando integrar o local e o específico em sua totalidade e em seu contexto. Esta religação de saberes dispersos poderá constituir-se no alicerce para a sustentação da responsabilidade e da cidadania dentro e fora da Universidade. Fazendo uma conexão entre estes pensadores, vemos que o compromisso da educação universitária não poderá se prender somente a uma formação meramente instrumental, especializada, mas deverá aproximar-se da sociedade formando cientistas comprometidos com ela, sobretudo, com aqueles setores mais marginalizados da população. Albert Einstein, o pai da teoria da relatividade, nos ajuda a refletir sobre a perspectiva da formação que estamos a pensar; assim diz o físico em sua obra Como Vejo o Mundo: Não basta ensinar ao homem uma especialidade. Porque se tornará assim uma máquina utilizável, mas não uma personalidade. É necessário que adquira um sentimento, um senso prático daquilo que vale a pena ser empreendido, daquilo que é belo, do que é moralmente correto. (EINSTEIN, 1981, p. 29).

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Chauí (2003), ao analisar o contexto de crises das Universidades brasileiras, nos reafirma a necessidade de mudança do sentido da formação, hoje então, considerado no âmbito utilitário, operacional. Ao pensar a Universidade pública como investimento social e político, afirma:

há formação quando há obra de pensamento e que há obra de pensamento quando o presente é aprendido como aquilo que exige de nós o trabalho de interrogação, da reflexão e da crítica... (CHAUI, 2003, p. 10).

Esta consideração de Chauí (2003) nos remete a pensar o significado do processo educacional na Grécia antiga, denominado paidéia, que significava a formação integral e cultural do ser humano, levando em consideração os interesses coletivos e individuais na formação de cidadãos em sociedade. Em Platão, conforme nos apresenta Jaeger (1995), a paidéia significava que toda a verdadeira educação está “na arete que enche o homem do desejo e da ânsia de se tornar um cidadão [...].” (JAEGER, 1995, p. 146). Esta formação do homem cidadão se apresenta em Freire (1999) quando compreende que estamos inseridos no mundo como sujeitos capazes de construir a nossa própria história, ao invés de sermos meros objetos, sendo, de fato, cidadãos no mundo. Deste modo, precisamos denunciar o mundo, agir como sujeitos capazes de modificar, superar difíceis barreiras e construir a nossa tarefa histórica de estarmos no mundo e com o mundo, pois é sabido que os obstáculos existem, mas não se eternizam. A idéia de ser sujeito está relacionada à possibilidade de uma educação que propicie a inserção e a reflexão dos sujeitos sobre o contexto que o cerca. Para Freire (2003, p. 20), “a educação, como formação, como processo de conhecimento, de ensino, de aprendizagem, se tornou, ao longo da aventura do mundo dos seres humanos uma conotação de sua natureza, gestando-se na história, como vocação para a humanização [...].” Essa dimensão da educação, como formação e vocação para a humanização, se coaduna com o pensamento de Morin (1999), ao propor a reforma do pensamento que requer a reforma das instituições educacionais, assumindo o ensino da condição humana e da compreensão entre os humanos. Nesta dimensão de um conhecimento contextual do humano, o ensino da compreensão humana, entre os humanos, fortalece, como nos diz Morin (2000), a 133


solidariedade intelectual e moral da humanidade. Este pensador nos diz que existem duas formas de compreensões: aquela intelectual ou objetiva e a humana intersubjetiva. A primeira, a compreensão intelectual, para Morin (2000), valoriza a explicação procurando aplicar os pressupostos objetivos do conhecimento; enquanto a compreensão humana intersubjetiva supera a explicação, pois advoga um conhecimento do sujeito na relação com um outro, que também é sujeito A Universidade Pública no caminho da conquista de sua legitimidade pode sim abrir o espaço para a formação de seus graduados em sintonia com o seu entorno, com outros sujeitos do mundo que o cerca. Neste sentido nos diz Freire (1993, p. 16): “a primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir.” Talvez seja a extensão universitária este espaço a ser experimentado pelos alunos de graduação das Universidades Públicas neste século XXI para em diálogo com o mundo construir outros saberes.

2. O diálogo entre saberes na construção de si e do outro na graduação universitária Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os [seres humanos] se educam entre si, mediatizados pelo mundo. Paulo Freire

Na trajetória de uma graduação universitária é necessário exercitar a curiosidade que move os sujeitos para perseguir novos horizontes de conhecimentos no aspecto cultural, filosófico, político e social. Neste sentido, o envolvimento com as várias possibilidades internas de formação universitária é fundamental: com outros cursos diferentes do que se está cursando, participar em viagens de campo, ser parte do movimento estudantil, envolver-se com grupos de pesquisas, ficar atento as atividades que acontecem para além de sala de aula: participação em eventos científicos, atividades em comunidades externas a Universidade quando estas são fomentadas no interior deste espaço formativo. Cremos que a participação em grupos de pesquisa e extensão, por exemplo, pode propiciar e motivar os estudos, criar compromissos com a construção de seu próprio conhecimento, provocar o estimulo a participação em eventos científicos e culturais, fortalecer a responsabilidade consigo e com o outro na construção do conhecimento e ajudar na escolha da área de atuação de qualquer um estudante universitário. Ampliar 134


assim o seu repertório de conhecimentos e saberes sobre si e sobre as comunidades possíveis espaços de atuação quando passarem a ser egressos das IES. Geralmente, nos grupos de pesquisas e extensão acontecem diálogos com diversos saberes da ciência, da arte, da cultura das humanidades que poderão promover caminhos para uma formação acadêmica atrelada a compreensão humana, responsável e solidária. Assim, a ideia de participação remete a uma dimensão afetiva, na medida em que no processo da ação, num grupo em que nos sentimos mais estimulados, confiantes, seguros, se instala ai um elo de interação, de confiança, de diálogo, de vínculo entre pessoas. Podemos considerar que nestes espaços coletivos de formação exercita-se o diálogo defendido por Freire (1983) para a formação humana quando afirma que:

É uma relação horizontal de A com B.... Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois pólos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação” (FREIRE, 1983, p. 107)

Tal perspectiva de diálogo na educação, pensada por Freire (1987), revela-se pelo exercício da palavra e pressupõe a superação de uma concepção educativa, como mera transmissão de conteúdos para uma educação respaldada na construção do conhecimento em contato com a realidade, objetivando a formação de uma consciência crítica, autônoma e responsável nos educandos. Como bem lembra Freire (1993, p. 33), O desenvolvimento de uma consciência crítica que permite ao homem transformar a realidade se faz cada vez mais urgente. Na medida em que os homens, dentro de sua sociedade, vão respondendo aos desafios do mundo, vão temporalizando os espaços geográficos e vão fazendo história pela sua própria atividade criadora.

Por sua vez, Arendt (1993), ao discutir a condição humana, nos indica como elementos fundamentais: a palavra e a ação, aspectos defendidos por Freire (1987) na prática educativa. Ela nos ensina que é através das palavras e de nossos atos que poderemos nos inserir no mundo e nos dar a oportunidade de um segundo nascimento. Este ocorre quando nos tornamos atores e agentes de nossos atos e, paralelamente, 135


assumimos a autoria das palavras. Nesta perspectiva, a ação assume proeminência, mediante “a palavra falada na qual o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer.” (ARENDT, 1993, p. 191). Assim, vale também destacar o que nos orienta Freire (1983, p. 58): “o que importa, realmente, ao ajudar-se o homem é ajudá-lo a ajudar-se. É fazê-lo de sua própria recuperação. É, repitamos, pô-lo numa postura conscientemente crítica diante dos seus problemas.” Todavia, alerta-nos Freire (1983), é preciso fugir de práticas assistencialistas, pois estas retiram do homem as condições de exercitar umas das necessidades fundamentais de sua existência, que é a sua responsabilidade perante o mundo. E, ainda, diz Freire (op. cit. p. 60): “é essa dialogização do homem sobre o mundo e com o mundo mesmo sobre os desafios e problemas, que o faz histórico.” A extensão universitária pode promover a efetivação de um diálogo horizontal entre os participantes das experiências que ao aprender e ensinar reafirma o que diz Freire (2002, p. 47): “ninguém sabe tudo, assim como ninguém ignora tudo. [...] O homem, como um ser histórico, inserido num permanente movimento de procura, faz e refaz constantemente o seu saber” Ou seja, alunos, professores e participantes envolvidos em práticas extensionistas nas Universidades Públicas realizam movimentos de reflexão, diálogo e ação como seres históricos, problematizam a realidade, fazem e refazem saberes contextualizado-os.

3. Conhecimento e a ação no mundo A atividade de extensão é o caminho básico para a Universidade descobrir o mundo e para o mundo descobrir a Universidade. Cristovam Buarque

Sabemos que historicamente a extensão tem se apresentado como uma terceira função na Universidade. Este é um discurso que não podemos mais legitimar e sim defender a extensão universitária como uma forma de fazer Universidade em diálogo com o mundo. Precisamos partir para ações efetivas em busca da valorização e compreensão da extensão universitária como um dos caminhos da Universidade Pública legitimar-se no espaço em que ela está inserida.

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Para que esta compreensão se efetive é relevante que se busque conhecimentos já sistematizados sobre a temática, assim, vale tecer rapidamente comentários sobre as diferentes concepções de extensão existentes no Brasil para isto, retomo o trabalho de Jezine (2001, 2002), professora, extensionista e pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba, que estudou historicamente e nos documentos de várias instituições as concepções de extensão. Assim vejamos: 1. Concepção Assistencialista (também chamada funcionalista) – compreende-se como aquela em que a Universidade procura atender às necessidades e carências da população, sem aproximação com o ensino e a pesquisa; 2. Concepção crítica – busca defender o vínculo entre ensino e pesquisa e extensão. Aposta que o ensino como um processo de construção e reconstrução do conhecimento poderá acontecer a partir da reflexão da realidade e em contato com ela. E ao assim fazer, a Universidade irá eleger as prioridades para a pesquisa. Assim, a extensão é uma das etapas de produção e disseminação do conhecimento. 3. Concepção progressista – defende também a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Mas diferencia-se da concepção crítica ao creditar a extensão o caminho para a Universidade exercitar a sua vocação social e seu papel político. Deste modo, é a extensão o motivador do ensino e da pesquisa voltada para a realidade. 4. A prestação de serviço - retoma a dimensão assistencialista, compensatória, eventual e que muitas vezes aparece como uma alternativa para o aumento de rendimento dos professores. Retira-se a perspectiva crítica e de perceber os participantes também como sujeitos na construção de saberes. 5. Concepção de extensão como prática acadêmica Entre as características demarcadas na função acadêmica da extensão indicamos, conforme Jezine (2001; 2002): a relação teoria e prática; a relação dialógica entre Universidade e sociedade, como promotora da troca de saberes; parte integrante da dinâmica pedagógica curricular do processo de formação e produção de conhecimentos; o envolvimento do aluno e do professor em uma dimensão dialógica. Ainda propõe a flexibilização curricular visando à formação crítica do aluno; procura auscultar as demandas da sociedade; trabalha o contexto onde os problemas aparecem; trabalha numa perspectiva transformadora da sociedade; busca associar o conhecimento científico com o conhecimento popular; entende o movimento dialético entre teoria e prática; procura, ao trabalhar com a comunidade, potencializá-la em sua organização

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política e econômica; vislumbra a visão de homem nas suas dimensões política, social e humana para se projetar como sujeito, como ser histórico. Nesta direção analítica, Santos (1996, p. 225, grifo do autor), quando avalia as crises da Universidade moderna, propõe outro modelo de atuação desta instituição com a seguinte tese: A "abertura ao outro" é o sentido profundo da democratização da universidade, uma democratização que vai muito além da democratização do acesso à universidade e da permanência nesta. [...] a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino.

Entretanto, se faz necessário compreender para o caso brasileiro as diretrizes necessárias à prática da extensionistas que são assim orientadas: identificar os impactos das ações; promover o diálogo entre diálogo entre Universidade e os grupos envolvidos; efetivar a interdisciplinaridade; propor a transdisciplinaridade e incrementar a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Concordamos com Santos (1996, p. 229) quando afirma: A universidade deverá criar espaços de interacção com a comunidade envolvente, onde seja possível identificar eventuais actuações e definir prioridades. [...] deve dar atenção privilegiada [...] à aprendizagem concreta de outros saberes no processo de “extensão.

Nesta direção de abertura da formação a aprendizagem concreta Freire (1999), salienta que uma das tarefas mais importantes da prática educativa crítica é dar condições para que os indivíduos possam vivenciar diversas experiências na sociedade e perceber-se como seres sociais e históricos. E isto é verdadeiro para qualquer profissional que hoje cursa uma Universidade com vistas à obtenção de um diploma superior. A possibilidade de vivenciar experiências com e no mundo exterior permite constatar que os espaços das salas de aulas são re-significados – creches, posto de saúde, escolas das comunidades, praças, favelas, grupo de jovens, ruas, morros – e neles educandos e educadores aprendem a identificar e contextualizar uma dada realidade, questionando, criticando, dialogando com diferentes saberes, problematizando e propondo mudanças. 138


Finalmente, a perspectiva da formação pelo caminho da extensão universitária coaduna com uma das alternativas para se pensar a reforma do ensino proposta por Morin (1999; 2000; 2001), quando nos sugere a necessidade de uma formação que seja capaz de organizar, contextualizar e globalizar os saberes que foram dispersos, fragmentados, separados, entre estes, a cultura científica, a cultura das humanidades; enfrentar as incertezas; educar para a compreensão humana; passar a tratar os problemas identificados na realidade como multidisciplinares, transversais, globais e planetários, assumindo a responsabilidade e a atitude para uma cidadania planetária.

4. Considerações No contexto de crise da universidade pública no início do Século XXI, no Brasil, a extensão universitária vem se apresentando como um dos caminhos para implementar mudanças no paradigma de formação universitária historicamente alicerçada na dimensão técnica, profissional, fragmentária .e descontextualizada. Vivenciar a extensão universitária apresenta-se como um dos componentes para a Universidade Pública abrir o diálogo entre os formandos, formadores e setores externos para problematizarem os problemas do mundo presente buscando possibilidades de soluções coletivas. Neste sentido, o diálogo na formação universitária pelo caminho da extensão universitária é fundamental, pois efetiva o exercício da palavra, do discurso, do respeito às diferenças e supera a prática educativa universitária ainda alicerçada na mera transmissão de conteúdos. Propõe novos espaços formativos àqueles formadores que ainda em pleno século XXI se colocam como os detentores dos conhecimentos e não conseguem dialogar com os saberes externos a academia recheados de práticas e saberes importantes a formação do universitário. Na prática da extensão na sua dimensão acadêmica ocorre a emergência de compartilhamento dos valores da conservação, da cooperação, da parceria ao exercitar nossas percepções e pensamentos sobre a vida e o mundo, fundamentais ao sentido da responsabilidade ética e solidária entre os humanos. Defendemos a necessidade e legitimação do conhecimento e da prática da extensão universitária como emergência, para abrir as possibilidades para alunos, professores realizarem leituras críticas, questionadoras, curiosas, autônomas e complexas do mundo presente. A partir dos conhecimentos adquiridos na reflexão e ação, tecerem juntos os saberes sobre o homem na sua relação com a natureza, a cultura e a sociedade. No processo de diálogo entre saberes, propiciar uma a formação pautada 139


na ação consciente em qualquer que seja a área de atuação profissional alicerçada na responsabilidade do ser humano no mundo e com o mundo como integrantes na constituição da sua condição humana.

Referências Bibliográficas ARENDT, Hannah. A condição humana. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. BUARQUE, Cristovam. A aventura na universidade. São Paulo: Ed. UNESP; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. CHAUÍ, Marilena. A universidade pública sob nova perspectiva. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 26., 2003, Poços de Caldas, MG(?). Anais... Poços de Caldas, MG: ANPED, 2003. 14p. Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/26/marilenachauianped2003.doc>. Acesso em: 15 dez. 2003. EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. ______. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 ______. Educação e mudança. 19. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1993. (Coleção Educação e comunicação, v. 1). ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 13. ed. Rio de Janeiro: 1999. (Coleção leitura) ______. Extensão ou comunicação? 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. (O Mundo, Hoje, v. 24). ______. Política e educação. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2003. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 23). GONZAGUINHA. Caminhos do coração. In: Meus momentos: Gonzaguinha. BR: EMI music, p2000. 2 CDs. Faixa 11. v. 2. Disponível em: <http://vagalume.uol.com.br/gonzaguinha/caminhos-do-coracao.html>. Acesso em: 03 out. 2006. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. JEZINE, Edineide Mesquita. As práticas curriculares e a extensão universitária. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, 2., 2001, Belo Horizonte, MG. Anais... Belo Horizonte, MG: [s. n], 2001. ______. A crise da Universidade e o compromisso social da extensão universitária. Recife, UFPE, 2002. 294f. Tese. (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-

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Graduação em Sociologia, Centro de Filosófica e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, 2002. MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, 2001. MORIN, Edgar. Complexidade e transdisciplinaridade: a reforma da universidade e do ensino fundamental. Natal: EDUFRN, 1999. ______. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez: Brasília, DF: UNESCO, 2000. ______. A cabeça-bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social na pós-modernidade. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1996. _______. A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004a. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 120). ______. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: MORIN, Edgar (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: „um discurso sobre as ciências‟ revisitado. São Paulo: Cortez, 2004b. p. 777 - 821.

CREDENCIAIS DE AUTORIA Geovânia da Silva Toscano Doutora em Ciências Sociais (UFRN), Professora do Departamento em Ciências Sociais/UFPB, Lider do Grupo de Pesquisa Ciências Sociais, Cultura e Educação, Profa. Do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas/UERN; Pesquisadora do Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo (UERN), Grupo de Pesquisa Cultura, Política e Educação(PPGCS/UFRN), Grupo de Estudo e Pesquisa Educação Superior e Sociedade (UFPB). Extensionista no Programa de Extensão Patrimônio, Memória e Interatividade (PAMIN/UFPB/PROEXT/MEC). Contato: geotoscano@gmail.com Acesso - Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4798549D6 Alcides Leão dos Santos Junior Pedagogo, Mestre em Ciências Sociais (UFRN), Doutor em Educação (UFBA), professor da área de Fundamentos da Educação, do Curso de Enfermagem, do Campus do Seridó, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e pesquisador do Grupo de Estudo e Pesquisa do Pensamento Complexo (UERN), Grupo de Pesquisa Cultura, Política e Educação (PPGCS/UFRN) e Lider do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Saúde e Pensamento Complexo. Contato: alcideleao@uern.br Acesso - Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=W847335

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EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE ATUAL: PROCESSOS EDUCATIVOS NECESSÁRIOS A FORMAÇÃO DO ALUNO Ana Alice Cavalcante Câmara Helder Cavalcante Câmara

1. A sociedade em que estamos inseridos Uma das características mais marcantes do homem é a capacidade de manter relações entre si, de tal maneira que seria impensável sua existência sem o outro. É com o outro que as relações são estabelecidas e é, numa organização, constituída ao longo da história da humanidade, é que o homem tem “garantido” sua existência. Vale salientar que nos primórdios as relações eram bem simplificadas, mas paulatinamente e em virtude dos contornos que diversos momentos históricos propiciaram, as relações tiveram que ser reorganizadas de maneira a atender essas “novas” necessidades. Hoje, essa organização social atingiu tamanha complexidade que se torna até difícil entender ou explicá-la, contudo essa organização imbricada entre os homens, penetra de tal forma nas relações que não são mais percebidas como construções, mas como algo natural para o seu existir. Guareschi e Ramos (2000), analisando as teorias que explicam o funcionamento da sociedade, apontam que uma das que está mais em voga, é a sistêmica, na qual a sociedade é comparada a um todo orgânico, um sistema que se articula mutuamente e se auto-regula. Contudo, afirma que esse entendimento é bastante limitado, pois quem vê a sociedade dessa maneira ... é levado a esquecer que ela nem sempre foi assim, que houve um tempo que não existiu, e poderá não existir. (...) fica a idéia de perpetuidade ou naturalidade da sociedade. Torna-se para mim uma coisa “natural”, como se “sempre foi assim”. E, com isso, eu nem sempre penso mais noutra coisa. Boa ou ruim, paciência! É assim que ela é, assim tenho que aceitá-la. (op. cit., p. 14)

Esse entendimento é problemático, pois o homem quando não se percebe como produtor do seu existir, mas como produto de coisas dadas, se torna ser passivo no sentido de que, como tal, é “inoperante” para construção/reconstrução da realidade, deixando para os outros o poder para tal. Essa relação estabelecida fortaleceu uma divisão que hoje é bem acentuada – aqueles que detêm “as rédeas” da sociedade e, portanto, que “trazem” para si tudo que 142


for necessário para manutenção de um status de superioridade – dinheiro e poder. Os outros ficam submetidas aqueles, portanto não tem poder de decisão e ficam com “as sobras” daqueles. Portanto, sua existência se torna subsistência. De forma pontual poderíamos dizer que o sucesso de uns (poucos) é garantido pelo fracasso (de muitos), fracasso esse que é garantido pela própria organização social. A partir dessas considerações, procurar-se-á nas linhas que se seguem discutir a sociedade nos contornos dados pelo sistema econômico que, talvez tenha mais acentuado as desigualdades – o capitalista. O capitalismo é um sistema econômico em que se estabelecem uma relação entre as forças produtivas (os trabalhadores) e o capital (terras e fábricas), o qual é de propriedade particular, portanto a relação é de alguém que possui capital e se apropria e dos lucros, ou seja, institui-se uma relação de posse. (GUARESCHI, 2000) De forma mais pontual há uma articulação consciente ou inconsciente de alguém que possui o capital e aqueles que trabalham. É necessário especificar que esta relação é de dominação dos “donos” sobre os “dominados” – os trabalhadores. Nessa perspectiva, há uma exploração da força de trabalho que produz produtos e, a estes, são dados um valor moral além do que é necessário para sua produção (gastos e trabalho), a mais valia, que nada mais é que o lucro líquido que sobra depois de descontadas as despesas. Singer (1987) enfatiza que na relação lucro/capital procura-se aumentar cada vez mais a taxa de lucros, de forma que um investimento em dinheiro, através da produção que é realizada pelos meios de produção e se materializa pela exploração acentuada dessa mão de obra, gere cada vez mais lucros excedentes. Em linhas podemos dizer que o capitalismo segue uma lógica que procura garantir o status quo dos detentores do poder a partir da exploração do trabalho das forças produtivas, tendo como meta a aquisição de capital-dinheiro, como produto da incorporação de um valor além do valor real – a mais valia. A ótica daqueles que detém o poder se reproduz e se fortalece a partir de mecanismos que devem justificar suas ações a fim de que o status conseguido se perpetue. Nesse sentido, se constrói a naturalização da “exploração”. Para Passet (2001, p. 251), Tudo repousa sobre convenções simplificadoras, e a questão não é saber se elas são idênticas a um real que se pode aprender diretamente, mas sim de saber se elas são aceitáveis enquanto representações, 143


levando em conta o conjunto do que chamamos de nossos conhecimentos (...) (PASSET, 2001, p. 251)

No contexto globalizado da atualidade, novos contornos são dados ao capitalismo, contudo, é necessário deixar claro que a lógica do capitalismo mantém-se firme. Nessa “nova” perspectiva econômica, o “mercado deixa de ser regulador e tornase ampliador dos desequilíbrios, na medida em que um excedente de oferta acarreta uma competição que exige a baixa de preços de custos que só pode ser exercida pelo aumento da produção (...)” (op. cit., p. 254), ou seja, o mercado tem de produzir mais e mais porque se produz mais do que o mercado necessita, prova disto é que a produção de gêneros alimentícios no mundo supera as necessidades mundiais. (op. cit.) Poderíamos dizer que há uma lógica ilógica. Vivemos no mundo da abundância. O que não falta é pobreza, é miséria, é fome, é desrespeito, é desumanização. Talvez o problema não seja a desigualdade, mas o tamanho da desigualdade. Uns com tanto outros com tão pouco. Problema maior é perceber isto como coisas naturais e justificar inclusive a própria situação de “miséria” e a “riqueza” do outro como algo normal. É discutindo os motivos que levam a normalização das coisas que iniciaremos o próximo capítulo.

2. Ideologia: um dos pilares da sociedade É necessário considerar que a toda sociedade tem uma forma de organização que “garante” sua existência, contudo essa organização não surge ao acaso, mas é construída num contexto em que grupos se relacionam e procuram as “melhores” estratégias para que a sociedade funcione “melhor”. Vale ressaltar que nessa relação há sempre interesses, os quais nem sempre são convergentes portanto, na divergência, muitas vezes há a luta entre poderes, os quais se utilizam de diversas estratégias para garantir suas formas de ver o mundo e gerir a sociedade. Nesse processo de “confronto” os indivíduos e ou grupos procuram garantir sua hegemonia, justificando porque suas idéias são melhores que a do outro. Uma dessas estratégias é a estratégia de “convencimento”. A partir desse entendimento, podemos dizer que na sociedade em que estamos inseridos, na qual tem como sistema econômico o capitalismo, não há sempre consenso. É nessa perspectiva que diversas estratégias são criadas para garantir a hegemonia da classe dominante sobre a classe dominada. 144


Althusser (1985) afirma que para manutenção do Estado enquanto ordenador das “coisas”, este lança mão de duas estratégias: os aparelhos repressivos (ARE) e ideológicos do Estado (AIE). De forma geral poderíamos dizer que os (ARE) utilizam da força para garantir a ordem e os (AIE) do convencimento. Neste trabalho discutir-se-á somente os (AIE), pois tem estreita relação com a educação formal, a qual será discutida em linhas posteriores. Os (AIE) se materializam através de instituições que, através da ideologia, apresenta a realidade a partir de determinados pontos de vista, os quais são os pontos de vista que devem ser apreendidos pelo povo e, esta apreensão, é a “garantia” da reprodução das estruturas sociais em que estamos inseridos. Althusser (op. cit., p. 68) apresenta algumas instituições que são reprodutoras da ideologia dominante: AIE religiosos (o sistema das diferentes igrejas) AIE escolar (o sistema das diferentes “escolas” públicas e privadas) AIE familiar AIE jurídico AIE político (o sistema político, os diferentes partidos) AIE sindical AIE da informação (a imprensa, o rádio, a televisão, etc.) AIE cultural (Letras, Belas artes, esportes, etc...)

Podemos deduzir que diversas instituições atuam de maneira a reproduzir a ideologia dominante, ou seja, uma forma de pensar que dá naturalidade as coisas, de acomodação, de impotência frente a uma realidade dada como pronta e, estando pronta, não há mais o que fazer. Ou a única coisa a fazer é adaptar-se a essa realidade a partir do que ela me permite. Minhas possibilidades são as possibilidades dadas. Não há o que fazer, mas sim aceitá-la. A realidade é – portanto – imexível. Para concretização disto, diversos discursos são construídos para justificar a normalidade das coisas. Discursos de acomodação e aceitação da realidade: “sou pobre porque Deus quis”, “não sou ninguém na vida porque não estudei”, “a realidade é assim mesmo, não há o que fazer”, “fulano é anarquista, pois acha que quer mudar o mundo”, “é necessário que meu filho vá para escola para que aprenda a se comporta de forma certa perante a sociedade”, “as leis foram feitas para serem cumpridas, não para serem discutidas”, “o que vale é a interpretação dos juízes, afinal eles que tem condições para dizer o que é certo e o que é errado. Nós não temos conhecimento para isso”.

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Tais discursos tornam-se tão comuns que acabam sendo perpetuados na vivência em sociedade, os quais já surgem como verdades. Verdades para serem seguidas. Verdades para serem vivenciadas. Verdades para serem perpetuadas. Falando sobre ciência e sobre economia, Passet (2001) afirma que tudo que percebemos no mundo o fazemos pelas mensagens de nossos sentidos. Nessa perspectiva, podemos dizer que há uma interelação entre subjetividade e objetividade, constituindo a forma de perceber o mundo. O mundo estaria perceptível através de convenções. A ideologia talvez atue nessa perspectiva, a partir de convenções simplificadoras, que visam criar representações do mundo, independente do real, que sejam aceitáveis, ou melhor, que levam os indivíduos a aceitarem tais representações, entendo-as como a realidade. A escola, enquanto AIE, entra nesse jogo com significativo poder, pois é uma ambiente em que todos vivenciam determinadas práticas e aprendem determinados conhecimentos e atitudes que se refletirão no seu processo de formação – porque não dizer “deformação”. A criança para cumprir seu processo de escolarização, considerando a educação básica somente, tem de passar cerca 12 (doze) anos de estudo, em aproximadamente 20 (vinte) horas semanais de estudo, isto se contabilizarmos somente o período em que está na escola. Na escola o aluno aprende os conhecimentos que um “grupo de especialistas” determinou como sendo o conhecimento essencial para ser aprendido, conhecimento que na maioria das vezes pode definir o tipo de pessoa a ser formado. Conhecimento tratado de forma pronta. O aprender então se concretiza numa aprendizagem para passar em provas que, de certa forma, não avalia se houve aprendizagem, como bem disse Juquinha 38 Me dei bem tirei um cem e eu quero ver quem me reprova. Decorei toda lição. Não errei nenhuma questão. Não aprendi nada de bom. Mas tirei dez (boa filhão!). Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci. Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi. Quase tudo que aprendi, amanhã eu já esqueci. Decorei, copiei, memorizei, mas não entendi. Decoreba: esse é o método de ensino. Eles me tratam como ameba e assim eu não raciocino. Não aprendo as causas e conseqüências só decoro os fatos. Desse jeito até história fica chato. 38

Juquinha, personagem da música de Gabriel O Pensador – estudo errado.

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O conhecimento acabado limita muito as possibilidades de aprendizagem, pois a única forma de apreensão, nessa perspectiva, é o decorar. Decorar coisas certas, portanto o aluno aprender a certeza das coisas e, como coisas certas, limita-se a decorálas. Além da aprendizagem de conhecimentos, outras aprendizagens se processam, as quais estão relacionadas ao “dia-a-dia” na escola. Assim atitudes são aprendidas e reforçadas. Aprende-se a hierarquia, portanto a submissão de uns em relação a outros; a separação de papéis, pois cada um tem sua função, algumas mais importantes que outras; a disciplina, essencial para ordem e que deve ser condição para harmonia na escola; aprende que na escola existem aqueles que são “melhores” e os que são “fracos”, classificação essa feita a partir de um único referencial – a aprendizagem de conteúdos; aprendem a ser passivos, pois é local onde se limitam a repetir. Passividade, aliás, essencial para esta sociedade. Sociedade que precisa de pessoas para fazer e não de pessoas para pensar. Deixa-se para “os pensadores”, os “donos do poder”, o pensar, pois a eles foi dada essa dádiva. Contudo, mesmo considerando o “poder” dos aparelhos ideológicos, é necessário destacar que estes aparelhos são ambientes de contradição, portanto, ao mesmo tempo que alienam podem também libertar. Mas como poderia a escola ser um artifício para libertação? Talvez a resposta esteja em explicar o porquê das “coisas”, como é bem explicitado por Juquinha: “Mas os velhos me disseram que o „porque‟ é o segredo”. No capítulo a seguir faremos algumas discussões sobre o papel da escola enquanto instrumento de libertação.

3. Educação: para quê? Para início de conversar, ratificamos que a escola é local de contradição, pois tanto pode alienar como libertar. Mas como seria isso? A resposta não é fácil nem apresentaremos com definitiva, mas como uma forma de pensar a escola. A escola em si, dada e com objetivos de instrumentalizar e transmitir conhecimentos é alienante, pois nessa perspectiva considera o aluno como receptor de conhecimento. Tudo é dado como certo e, na certeza, para que refletir? Contudo, entendemos a educação não como a mera transmissão de conhecimentos. Aqui talvez resida a diferença. A escola a nosso ver é local em que conhecimentos são tratados não como mera instrumentalização, mas que vá além do 147


saber fazer e que este saber fazer seja acompanhado de reflexão. Reflexão sobre o próprio conhecimento, sobre a utilização desse conhecimento, sobre a temporalidade e historicidade desse conhecimento. Portanto, a educação tem de fazer sentido, pois “(...) enquanto a educação não abranger o sentido integral da vida, bem pouco significará.” (MURTI, s.d., p. 9) Para Murti (op. cit., p. 12) A educação não significa, apenas, adquirir conhecimentos, coligir e correlacionar fatos; é compreender o significado da vida como um todo. Mas o todo não pode ser alcançado pela parte – como estão tentando fazer os governos, as organizações e os partidos autoritários.

Aqui retomamos o entendimento da escola enquanto instrumento de manutenção da ordem social, consciente ou inconsciente, portanto não podemos ser ingênuos quanto a seu uso enquanto instrumento de alienação, contudo concordamos com Murti (op. cit.), quando diz que a educação pode ser compreendida e vivida num sentido mais amplo. O fazer diferente é que será o diferencial para constituição de uma escola que não aliene. “Giroux sugere que existem mediações e ações no nível da escola e do currículo que podem trabalhar contra os desígnios do poder e do controle” (SILVA, 1999, p. 53) Nesse sentido, podemos dizer que estão nas mediações, nas estratégias metodológicas, as possibilidades de uma apreensão ativa e consciente do conhecimento. É no trato com os saberes que se “abrem” as possibilidades de libertação. Murti (s. d.) enfatiza que a educação deve tornar-nos conscientes de nos mesmo, talvez um passo inicial para termos consciência do mundo. A partir dessas considerações vemos a necessidade de desnaturalizar aquilo que se cristalizou. O trato metodológico é um dos caminhos para que a escola liberte ao invés de aprisionar. No nosso entendimento o trato pedagógico deve ter algumas características. Primeiro tem que ser político, ou seja, não há escola neutra, permitindo uma reflexão sobre a realidade dada como pronta e seus múltiplos determinantes, bem como deve considerar e permitir que os alunos sejam sujeitos no processo ensino aprendizagem. É nessa perspectiva que eu, refletindo sobre os conhecimentos, utilizando-os, questionando, duvidando, criando estratégias, ou seja, sendo um ser pensante sobre uma dada realidade e construindo subsídios para que a reflexão sobre esta realidade possa ser

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o caminho para libertação, como bem apresentou Platão (1965), na Alegoria da Caverna. Seguindo Giroux apud Silva (1999, p. 54) é necessário (...) desenvolver uma pedagogia e um currículo que tenha uma conteúdo claramente político e que seja crítico das crenças e dos arranjos sociais dominantes. (...) É através de um processo pedagógico que permita as pessoas se tornarem conscientes do papel de controle e poder exercido pelas instituições e pelas estruturas sociais que elas podem se tornar emancipadas ou libertas do seu poder e controle.

A escola e o currículo nessa perspectiva devem ser locais nos quais os estudantes tenham a oportunidade de serem sujeitos, de vivenciar as habilidades democráticas, bem como possibilitar a discussão e a participação, o questionamento dos pressupostos dados como naturais na sociedade. (op. cit.) Kunz (2004), ao apresentar uma abordagem pedagógica para a Educação 39

Física , denominada Crítico-emancipatória, indica algumas estratégias que são essenciais na formação dos alunos. Nestas, aponta uma preocupação em possibilitar as crianças uma vivência numa conduta exploratória, a qual é fundamental para o desenvolvimento de suas identidades. Aqui já se percebe uma inversão de fazeres se comparados a uma pedagogia tradicional, do ser passivo para o ser ativo, não só no sentido que realizar as tarefas e ou atividades, mas como aquele que busca descobrir as diversas possibilidades que estão nas coisas. O trato metodológico deve permitir essa descoberta. Tal conduta exploratória é uma das formas de combater a significativa influência das informações e, às vezes, porque não dizer “desinformações” existentes no contexto social em que estamos inseridos. (op. cit.) Outro aspecto defendido por Kunz (op. cit.) discutindo o conhecimento esporte, afirma que os alunos não devem ser instrumentalizados somente com capacidades e conhecimentos que o permitam pratica esporte, pois há uma interelação entre outros aspectos. O esporte não é algo isolado, mas há todo um relacionamento com o mundo social, político, econômico e cultural. Enfatiza que no trato com esses conhecimentos, uma “didática comunicativa” deve estar presente, discutindo que o agir comunicativo é condição necessária para o esclarecimento e para prevalência do racional.

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Kunz não vê na Educação Física, sozinha, a possibilidade de transformação social, contudo a formação apresentada em sua proposta, a nosso ver, é o passo inicial para toda e qualquer mudança.

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Esse entendimento dado ao esporte e a seu trato pode e dever ser uma realidade em toda prática educacional Para Kunz (op. cit., p. 31) A educação é sempre um processo onde se desenvolvem “ações comunicativas”. O aluno enquanto sujeito de processo de ensino deve ser capacitado para sua participação na vida social, cultural e esportiva, o que significa não somente a aquisição de uma capacidade de ação funcional, mas a capacidade de conhecer, reconhecer e problematizar sentidos e significados nessa vida, através da reflexão crítica. A capacidade comunicativa não é algo dado, simples produto da natureza, mas deve ser desenvolvida.

Na proposta de Kunz (op. cit.), organiza-se o processo ensino-aprendizagem para o desenvolvimento de competências através dos processos de trabalho, interação e linguagem. Competências Objetivas, na qual o “aluno precisa receber conhecimentos e informações, treinar destrezas e técnicas racionais e eficientes, aprender certas estratégias para o agir prático de forma competente. Precisa, enfim, se qualificar para atuar dentro de suas possibilidades individuais e coletivas e agir de forma bem sucedida no mundo do trabalho, na profissão, no tempo livre (...)” (op. cit., p. 40); Sociais: na qual o conhecimento que o aluno deve adquirir para entendermos relações sócio-culturais na realidade em que vive, bem como compreender os problemas e contradições dessas relações, os diferentes papeis que os indivíduos assumem numa sociedade, no esporte, e como essas se estabelecem para atender diferentes expectativas sociais. O esporte é tratado visando desvelar diferenças e discriminações que se efetivam nesta prática; Comunicativa, que visa desenvolver a linguagem verbal. É a linguagem que possibilita interpretar nossas experiências, bem como as experiências dos participantes no processo de ensino dos esportes. (op. cit.)

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Educação Física, o conhecimento deve ser tratado dentro de três dimensões: procedimentais, ligados ao fazer; atitudinais, que dizem respeita a e vivência e aprendizagem de atitudes; e conceituais, ligados a aprendizagem de conceitos e conhecimentos. (BRASIL, 1998) Embora não entendemos os Parâmetros Curriculares Nacionais de Educação Física como uma proposta crítica, em sua proposição quanto as dimensões dos conteúdos também foge da perspectiva tradicional de ensino, possibilitando também aos alunos outras aprendizagens além do simples fazer. Para finalizar, podemos dizer que vivemos numa sociedade, num contexto cultural que, em linhas gerais, tem influência significativa no nosso agir. Poderíamos

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dizer até que somos “determinados” na relação entre objetividade/subjetividade se não dominarmos saberes suficientes para compreensão da realidade. Também consideramos que a escola é uma dos principais locais em que somos determinados, pois é um (AIE) que tem forte influência no contexto social, nos “alienando”. Contudo, é também a escola um dos possíveis lugares de libertação, a qual só se concretizará com a suplantação do ensino tradicional e a partir da proposição de práticas que considere e coloque o aluno como sujeito do processo ensino aprendizagem. Sujeito que reflita, faça, refaça, duvide, compreenda e se compreenda, como ser no mundo e não como ser do mundo. Ser que está inserido num contexto social-econômico-cultural em que é “determinado”, mas também “determina”, pois sabe que seu existir não é natural, mas uma construção social e esse saber é essencial para se tornar “construtor”. Construtor do seu próprio existir.

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CREDENCIAIS DEAUTORIA Ana Alice Cavalcante Câmara Graduado em Educação Física (UERN, 2010), Especialista em Ciências da Educação (FATIM, 2011). Atualmente é professora do município de Caicó-RN (Escola Municipal Professor Mateus Viana; Escola Municipal Professor Raimundo Guerra) e do estado do Rio Grande do Norte (Escola Estadual Professora Calpúrnia Caldas de Amorim). Mestranda em Ciências da Educação (ULUSÓFONA) Contato: aninha.cavalcante.2@gmail.com Acesso - Lattes: http://lattes.cnpq.br/6372169754209032 Helder Cavalcante Câmara Graduado em Educação Física (UERN, 1995), Especialista em Informática em Educação (UFLA, 2001) e em Educação Física escolar (UFMT, 2003). Atualmente é professor do Curso de Educação Física, do Campus Avançado “Prof.ª Maria Elisa de Albuquerque Maia”, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – CEF/CAMEAM/UERN. É pesquisado vinculado ao Grupo de Pesquisa Educação Física, sociedade e saúde, onde coordena o Projeto Educação Física e a constituição da identidade dos discentes e Membro do Projeto de pesquisa A questão cultural e a atividade física em espaços de educação não formal. Membro do Grupo de Pesquisa da Complexidade - GECOM Mestrando em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN) Contato: redlehcc@gmail.com Acesso - Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=E9278574

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A INCLUSÃO DE CRIANÇAS EM UM CONTEXTO DE VULNERABILIDADE SOCIAL Marlete Euná Brito de Melo

Introdução Em contextos neoliberais, a distribuição de renda caracteriza-se pela parca abrangência e frágil sistematização, a qual não tem transformado significativamente a relação de desigualdade, ao contrário absorve tais desigualdades socioeconômicas e culturais. A relação entre essas duas políticas tem causado indefinição conceitual e de ações, muito mais do traduzido em benefícios que promovam o papel da educação para os segmentos mais vulneráveis, significando que a educação por si mesma é fonte originária de renda, reforçando a compreensão do capital humano, predominante nos anos sessenta. Políticas públicas possibilitam o redimensionamento e asseguram a função social e a política da escola, garantindo às classes populares condições de uma efetiva participação nas lutas sociais, em que os educadores tenham o domínio dos conhecimentos, das habilidades e capacidades mais amplas exigidas pela complexidade do mundo atual para que os[as] alunos[as] possam interpretar e compreender melhor o seu contexto, para dar rumo às próprias experiências de vida, de modo a poder defender seus interesses de classe. Assim, as ações sociais voltadas à inserção escolar, como vem sendo preconizada no Brasil, retratam a frágil universalização da educação, como direito do cidadão e dever do Estado. A criação de programas, como linha de pensamento ora desenvolvida é a de que os altos índices de fracasso escolar apontam a negação do exercício pleno do direito à educação, quando o número considerável de crianças e/ou de adolescentes está afastado da escola, ou nela inserida com baixo padrão de qualidade na participação – o que tem levado aos índices de reprovação, repetência e evasão – a cada ano letivo, já que inexistem na escola estratégias pedagógicas com dispositivo de inserção, que possam promover a permanência do aluno na instituição escolar. Partindo desse contexto, o presente artigo tem por objetivo discutir sobre a vulnerabilidade social como reprodutora das desigualdades sociais, encontrando na criança uma das vítimas desse fator.

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A escolha da temática se deu em função de pesquisas realizadas no Programa Tributo à criança. Programa este que funciona em horário oposto ao da escola convencional da criança ou adolescente, desenvolvido, especificamente, no Núcleo Educacional Zona Oeste, na cidade do Natal, Estado do Rio Grande do Norte, durante o ano de 2008. O referido programa foi estabelecido entre os anos de 1997/2004, através da Secretaria de Educação do Município e está voltado à (re) inserção e à permanência escolar de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, através de mediações pedagógicas específicas que buscam garantir a transformação social desses atores sociais historicamente excluídos de direitos sociais fundamentais. Com esta perspectiva pode ser dito que os paradigmas pedagógicos do programa, quanto à formação de novos atores sociais, conscientes dos seus direitos, historicamente negados nas políticas públicas tem norteado estratégias de inclusão no âmbito social, político, econômico e cultural, voltadas ao atendimento das camadas populares. O descompromisso com esta questão como medida importante para a inclusão social e escolar é percebido por meio da própria questão da evasão escolar, a qual tem se constituído muito mais em elemento para ampliar os estereótipos envolvendo as crianças pobres do que em um ponto de partida para ações pedagógicas voltadas à permanência escolar e, portanto, à inclusão social. As políticas de inclusão social sob os ditames do ideário neoliberal em parceria com as políticas públicas em educação envolvem critérios como condições econômicas da família, inserção precoce da criança no trabalho infantil, possibilidades de ampliação dos saberes escolares, submetendo as crianças e adolescentes à situação de pedintes, à prostituição, envolvimento com drogas, violência e, finalmente, com o abandono familiar. São processos de marginalização, de dependência, de esquecimento social, afetivo e pedagógico. Nesta ótica, se entende a exclusão escolar como fruto da indiferença às condições de vida, aos interesses e às motivações dos excluídos socialmente por parte da escola. O fator econômico influencia, mas não responde exclusivamente pela questão da evasão escolar, o que força a buscar no interior da escola elementos comprobatórios que determinam a exclusão escolar, que em parte se torna semelhante à ordem social injusta dos opressores com os oprimidos. Para a realização do estudo, destaca-se a necessidade de desvelar as mediações existentes entre o objeto de estudo e o ambiente onde ele se constituiu, influenciado 154


pelas múltiplas determinações de ordem econômica, política, social e histórica, procurando evidenciar o contexto histórico-social do objeto de estudo. Logo foi tomando como dimensão o método exploratório. Visto que este trabalho propõe envolver levantamento bibliográfico. Nesse sentido, o estudo se desenvolve a partir da revisão da literatura e da análise documental pertinente ao debate sobre as políticas de inclusão com crianças e adolescentes em vulnerabilidade social. Assim, nesse estudo, far-se-á uso desses dois tipos de pesquisas, buscando tirar proveito das vantagens que os mesmos apresentam. A concepção educativa sustentadora, e seus respectivos instrumentos de trabalho do monitor e do gestor do Programa Tributo à Criança, baseiam-se na educação popular, fundamentando-se no pensamento pedagógico de Paulo Freire, que considera a teoria e a prática como momentos indissociáveis de um processo social.

1. Vulnerabilidade social e reprodução das suas desigualdades Um conceito relevante de análise do bem-estar de uma população é o de vulnerabilidade, que se refere à relação entre pobreza, risco e esforços para o gerenciamento desse risco. Vulnerabilidade é consensualmente definida como a perda de bem-estar causada pela incerteza de eventos. Segundo Katzman (2005) os lugares vulneráveis são aqueles com riscos para os indivíduos, com a impossibilidade de acesso e condições habitacionais, sanitárias, educacionais e trabalho, participação e acesso diferencial á informação e às oportunidades. A cidade sempre foi palco do crescimento e da inovação tecnológica, transformando-se em atrativo para quem busca o sonho de subir na escala social, mesmo que sejam poucos os que o realizam, favorecendo a desigualdade e a pobreza. Considerando a diferença entre pobreza e vulnerabilidade, Word (2003) e Bank (1998) salientam a importância de se centrar nas políticas de bem-estar não somente sobre indivíduos que estão na pobreza, mas também sobre aqueles altamente vulneráveis a ela. Para a eliminação da vulnerabilidade seria preciso que as consequências das privações sofridas em diferentes âmbitos [social, político, ou econômico] sejam ultrapassadas. Para a família pobre, marcada pela fome e pela miséria, a casa representa um espaço de privação, de instabilidade e de ligação dos laços afetivos e de solidariedade. Segundo Gomes (2003), quando a casa deixa de ser um espaço de proteção para ser um espaço de conflito, a superação desta situação se dá de forma muito fragmentada, uma 155


vez que essa família não dispõe de redes de apoio para o enfrentamento das adversidades, resultando assim, na sua desestruturação. A realidade das famílias pobres não vislumbra no seio familiar as suas necessidades básicas, uma vez que seus direitos estão sendo negados para se efetivar a necessária harmonia, a fim de que consiga um equilíbrio dos seus membros, o que por outro lado, compromete a qualidade de vida de todos, que se sentem membros desta família. A pobreza, a miséria, a falta de perspectiva de um projeto de existência que vislumbre a melhoria da qualidade de vida, impõe a toda família uma luta desigual e desumana pela sobrevivência. As consequências da crise econômica a que está sujeita a família pobre precipita a ida de seus filhos para a rua e na maioria das vezes, o abandono da escola, a fim de ajudar no orçamento familiar. Essa situação, inicialmente temporária, pode se estabelecer à medida que as articulações na rua vão se fortalecendo, ficando o retorno dessas crianças ao convívio sócio-familiar cada vez mais distante. No plano social, a vulnerabilidade está relacionada a aspectos sócio-políticos e culturais combinados, como o acesso à informação, grau de escolaridade, disponibilidade de recursos materiais, entre outros. A vulnerabilidade social pode ser entendida como um espelho das condições de bem-estar social, que envolvem moradia e acesso aos bens de consumo e graus de liberdade de pensamento e expressão, sendo tanto maior a vulnerabilidade quanto menor a possibilidade de interferir nas instâncias de tomada de decisão. Do ponto de vista sociológico mais recente considera-se a vulnerabilidade social como fator intermediário, instável, ao qual se liga à precariedade do trabalho, às sucessivas crises econômicas, cujo efeito tem sido o aumento do desemprego, a generalização do subemprego, dilatando a zona de vulnerabilidade, impossibilitando zonas de integração e filiação. Mesmo que não se secundarize o fator econômico na definição de vulnerabilidade e ainda que deva ser de base material para seu mais amplo enquadramento, este é insuficiente por não especificar as condições pelas quais os indivíduos ingressam no campo dos vulneráveis. Fatores como a fragilização dos vínculos afetivo-relacionais e de pertencimento sociais [discriminação etárias de gênero ou por deficiência] ou vinculados à violência, ao território, à representação política, também afetam as pessoas. 156


Nesse contexto, a importância da família na vida social, explicitada no ato constitucional e em diversas legislações específicas, não garante a proteção integral e necessária à criança, sobretudo, àquelas que pertencem às famílias pauperizadas, porque as negligências, abandono, desagregação familiar, violência, abuso sexual são situações que afetam as crianças concorrendo para o surgimento de problemas relativos ao desenvolvimento da sexualidade, e à baixa escolaridade. É como ser vivo que a criança exibe sua vulnerabilidade, seja interna, seja externamente. Facilmente compreensíveis, no plano interno, que as colocam em vulnerabilidades aliadas ao seu desenvolvimento, à sua maturidade, e quanto menor, mais frágil é a criança. 1.1 Infância em perspectiva – a criança e suas especificidades Diante da apresentação de um alto grau de vulnerabilidade de crianças no Brasil, faz-se necessário se discutir as formas de diminuir as desigualdades. O problema das crianças não reflete uma questão de anomia social ou desordem urbana, mas de interação que sinaliza para a questão do acesso aos serviços e aos relacionamentos. Nesse sentido, a vulnerabilidade é relativa, pois nem sempre tem como o lado mais frágil a criança ocupar um lugar na ordem da interação com os adultos, e isto não é apenas representação, mas resultado de um determinado modo de convivência que se reflete na sociedade, quando se percebe as diversas maneiras das diferentes crianças se apresentarem frente às suas dificuldades de interação no meio social e familiar. Portanto, as crianças não são vulneráveis simplesmente por uma suposta natureza que lhes é inerente; faz-se necessário refletir o trabalho das instituições escolares ou programas com propostas inclusivas, que não garantam apenas o acesso, mas também possam intervir nos seus modos de funcionamento. Nesse sentido, a vulnerabilidade pode ser resultado dos diferentes modos de inserção ou de exclusão a que estão submetidas às crianças, ou seja, o problema não se restringe às questões de exclusão social, mas de socialização/individualização. A relação entre vulnerabilidade e direitos da criança expressa não a idéia de sujeitos incapazes, mas a intenção de bloquear as ações que os impedem de experimentar o bem-estar na infância. Desse modo, é preciso rever as formas de realização da proteção social, utilizando-se da segurança jurídica para viabilizar a produção de bem-estar tanto no espaço público quanto doméstico.

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Trata-se, portanto de redirecionar a política social para a redução dos fatores de vulnerabilidade que ameaçam o bem-estar da população infantil, e na maioria das vezes estas crianças e adolescentes indefesos ficam desprotegidos da própria atenção dos familiares e por que não dizer do próprio pai ou mãe, sem nenhuma providência para evitar problemas de ordem mais séria. Entre os fatores de vulnerabilidades das crianças destacam-se os riscos inerentes à dinâmica familiar, como os problemas relacionados ao alcoolismo, aos conflitos entre casais que fazem das crianças testemunhas de ofensas e agressões; enfim, toda forma de violência doméstica. Os riscos ligados ao lugar de moradia, relacionados às relações de vizinhança, à proximidade e à localização dos pontos de vendas controlados pelo tráfico de drogas; os riscos do trabalho infantil, pois muitas crianças são exploradas até pela própria família, trabalhando na informalidade, às vezes ficam impunes, frente as catástrofes que ocorrem na vida destas crianças e adolescentes sem nenhuma proteção.

2. Infância e vulnerabilidade social: a pobreza como fator de influência O estudo da vulnerabilidade é uma vertente dos estudos da pobreza, pois amplia a análise para o campo não somente material, como ter acesso a bens e serviços usuais da sociedade, que são provenientes de uma dada renda; mas vai além, passando por questões de acesso a bens e serviços imateriais. Hogan (2006) afirma sobre a vulnerabilidade que: “a mesma compreende reflexos e produtos da pobreza, e está associada às desvantagens sociais que produzem e, ao mesmo tempo, são reflexos e produtos da pobreza” (p. 27). A pobreza não pode ser definida de forma única, mas ela se evidencia quando parte da população não é capaz de gerar renda suficiente para ter acesso sustentável aos recursos básicos que garantam uma qualidade de vida digna. Estes recursos são: água, saúde, educação, alimentação, moradia, renda e cidadania. De acordo com Yasker (2003), são pobres aqueles que, de modo temporário ou permanente, não têm acesso mínimo de bens e recursos sendo, portanto, excluídos em graus diferenciados da riqueza social. A pobreza é um problema para quem a vive não apenas pelas difíceis condições materiais de sua existência, mas pelas condições subjetivas negativas que experimentam permanentemente em todos os aspectos de sua vida, que marcam sua existência a cada ato vivido e a cada palavra ouvida. Situação que Castel (1995) assim define: 158


Silhuetas incertas às margens do trabalho e nas bordas das formas de troca socialmente consagradas, desempregadas de longa duração, habitantes das periferias, deserdados, beneficiários da renda mínima de inserção. Vítimas das reconversões industriais, jovens em busca de emprego e que perambulam de um estágio a outro, [...] em ocupação provisória [...]. (pp. 13-15).

A noção de pobreza relaciona-se diretamente com a falta e a carência, enfatizando a carência material e, em especial, ressalta-se a falta de recursos financeiros, desvinculando as pessoas da grade das desigualdades políticas e sociais. Considerar o fenômeno da pobreza única e exclusivamente pela questão da renda, não explica tal fenômeno por completo, pois além desse fator há outras questões que fundamentam os estudos na área da pobreza, como as capacidades básicas [educação, saneamento básico, estrutura habitacional], as quais, quando inexistentes, associadas a um baixo nível de renda contribuem para o não agir autônomo dos indivíduos. Segundo Campos (2007), o fenômeno da pobreza tolhe o agir, privando as capacidades básicas, e está para além do plano material: perpassa o imaterial, o subjetivo, o que indica que não é somente não ter acesso, não usufruir, mas, além disso, ser visto e sentir-se como alguém indesejável, alguém que não pode ser considerado um cidadão de direitos, significado por simbologias ligadas ao fracasso. As crianças que vivem na rua têm experiências muito peculiares que as tornam diferentes das demais; por viver em condições adversas ao seu desenvolvimento, expostas a grupos de risco. Isto significa que integram uma parcela da população a quem faltam condições [saúde, educação, moradia, alimentação] para se desenvolver. Quinteiro (2002) comenta que a história da infância coincide também com a história do atendimento realizado às crianças em situação de risco, contribuindo para a produção da imagem de uma criança pobre, encarada como uma ameaça social que precisa ser contida. No mesmo contexto, Sarmento (2004) explica que “[...] a construção histórica da infância foi o resultado de um processo complexo de produção de representações sobre as crianças, de estruturação dos seus quotidianos e mundos de vida e, especialmente, de constituição de organizações sociais para as crianças”. (p. 11). Essas instituições que ajudaram a construir a infância moderna continuam sofrendo mudanças que vão promovendo a reinstitucionalização da infância, porque da mesma forma como as próprias crianças reiteram criativamente os seus mundos de vida, 159


as instituições também parecem ser reinventadas como se começassem tudo de novo (SARMENTO, 2004). Nessa ótica, a rua, do modo como hoje está constituída nos espaços, principalmente nas grandes cidades, não é um espaço que propicia um desenvolvimento sadio, sinalizando uma infinidade de perigos que necessitam ser evitados. Desse modo, dificilmente se poderá compreender a exclusão no caso particular das crianças de rua, sem antes conhecer o fenômeno da exclusão e suas formas de manifestação de modo geral, o que exige um recorte pela via das considerações sobre a exclusão social em geral, em sua relação com a questão das crianças excluídas. Em algumas de suas obras nas quais se dedica a analisar a crise econômica (1991; 1993; 1994), o educador e Senador da República Cristovam Buarque (1996) chama a atenção para a ameaça à paz social e para a exclusão social como um processo visível que ameaça confinar grande parte da população numa „apartheid informal‟, expressão que dá lugar ao termo apartação social. Para ele, fica evidente a divisão entre pobre e rico, em que o pobre é miserável e ousado, enquanto o outro se caracteriza como rico minoritário e temeroso. A discussão sobre a exclusão social emerge na Europa com o crescimento da pobreza urbana, e sua orientação variou de acordo com as conjunturas políticas e econômicas das sociedades, nas quais está imbricada à problemática da integração social, a qual emerge na Europa e nos Estados Unidos atravessada por três paradigmas, ligandado-se cada um deles a uma filosofia política: os paradigmas da solidariedade, da especialização e do monopólio. O paradigma da “solidariedade estaria associado ao republicanismo, sendo a exclusão vista como quebra de vínculo entre o indivíduo e a sociedade”. Para esse paradigma caberia ao Estado a obrigação de ajudar na inclusão dos indivíduos. No da especialização, associado ao liberalismo, à exclusão se refere à discriminação e, nesse caso, o Estado deveria garantir o trânsito do excluído nas categorias sociais. Finalmente, no paradigma do monopólio, a social-democracia liga-se à exclusão, explicada pela formação de monopólios de grupos sociais. (BUARQUE, 1996). De acordo com Dupas (1999), a exclusão é multidimensional e manifesta-se de várias maneiras, atingindo as sociedades de formas diferentes, sendo os países pobres afetados com maior profundidade. Os principais aspectos em que a exclusão se apresenta dizem respeito à falta de acesso ao emprego, a bens e serviços, e também à falta de segurança, justiça e 160


cidadania. Observa-se que a exclusão se manifesta no mercado de trabalho [desemprego de longa duração], no acesso à moradia e aos serviços comunitários, a bens e serviços públicos, em relação à terra, aos direitos. Esse autor, ao enumerar várias categorias de excluídos, reúne os velhos desprotegidos da legislação, os sem-terra, os analfabetos, meninos de rua e as mulheres. No que se refere especificamente à exclusão social do menino de rua, pode se afirmar que esta é secular. O fenômeno da exclusão não é específico da criança, mas atinge os diferentes segmentos da sociedade. Sabe-se também que a exclusão não é provocada unicamente pelo setor econômico − embora se admita que este seja um dos principais pilares de sustentação desse fenômeno, sendo a exclusão gerada nos meandros do econômico, do político e do social, tendo desdobramentos específicos nos campos da cultura, da educação, do trabalho, das políticas sociais, da etnia, da identidade e de vários outros setores. Segundo Milito e Silva (1995), “menino de rua é um termo genérico que designa meninos, meninas e adolescentes, cujos vínculos familiares são cíclicos, permanentes ou interrompidos e que em decorrência ocupam a rua intermitente, temporária ou permanentemente” (p. 9). Essa definição chama a atenção para o fato de que esses meninos/meninas podem ou não manter vínculos com as famílias, o que vai implicar na forma como eles vão ocupar o espaço público. Há uma distinção entre “menino de rua” e “menino na rua” (ROSEMBERG, 1993, p. 55). Os meninos de rua seriam aquelas crianças que estão permanentemente nas ruas, tendo a rua como o seu único ponto de referência. Já os meninos na rua são aquelas crianças que permanecem temporariamente, trabalhando ou perambulando, mas que mantêm ainda um vínculo com os familiares, geralmente retornando para suas casas à noite. Para que as crianças sejam consideradas meninos e meninas de rua e, ao mesmo tempo, sejam distintas das que se deslocam dos bairros onde residem para os centros comerciais, os educadores de rua recorrem a uma nomenclatura que gradua as relações que estas crianças ou adolescentes estabelecem com a rua, que é entendida como o centro comercial. Dessa forma, as crianças e os adolescentes que pernoitam na rua recebem a denominação de meninos e meninas de rua; aquelas que permanecem no centro comercial durante um período do dia e retornam para o convívio familiar fazem parte do 161


segmento chamado de em situação de rua; e aqueles que residem em favelas ou cortiços situados em bairros que não dispõem de infra-estrutura urbana adequada, cujos pais estão desempregados, subempregados, ou, embora empregados, percebem salários que não lhes permite suprir todas as necessidades da família, e apresentam um desempenho escolar insatisfatório, são consideradas crianças e adolescentes em situação de risco. O menino e a menina de rua podem ser caracterizados a partir de três níveis: o primeiro, menino de rua, é o menino que está na rua, onde a moradia dele é a rua. Nessa fase, ele já rompeu os laços com a família, com a comunidade e criou um laço no centro da cidade com o seu grupo de convivência, no qual não há regras, e a regra é a regra da rua, a regra da marginalidade, para ele poder sobreviver, "[...] ao mesmo tempo em que ele é menino, ele é um adulto, ele já quebrou uma fase, deixou de ser adolescente para ser adulto responsável pela sua própria existência" (ROSEMBERG, 1993, p. 58). O outro é o menino em situação de rua, ele já está iniciando o processo de rompimento dos laços com a família: ele sai de casa, fica por um tempo na rua, muitas vezes no bairro ou proximidades, ou seja, mantendo laços com a comunidade, e retorna para casa, "[...] isto é, quando, por exemplo, a fome aperta, ele retorna para casa. [...]." (idem, p. 58). O terceiro é o menino em risco de ir para a rua. Ele é aquele que não está freqüentando escola, tem que tomar conta de irmãos mais novos, porque o pai e a mãe saem para trabalhar. Então, a partir do momento que ele não conta com a assistência dos pais, ele começa a utilizar o tempo livre indo à rua. Em razão disto, se faz necessário uma educação que inclua, ou seja, podendo ser definida como “práticas de inclusão de todos independentes de talento, deficiência, origem socioeconômica ou cultural, em escolas e salas de aulas provedoras, onde as necessidades do indivíduo sejam satisfeitas” (STAINBACK & STAINBACK, 1999, p. 21). Esse conceito está colado aos seguintes princípios: aceitação das diferenças individuais, valorização de cada pessoa, convivência dentro da diversidade humana e aprendizagem através da cooperação. No campo educacional, essa independência tem implicações concretas e positivas no sentido de reformulação ou transformação da filosofia adotada na escola em relação aos alunos diferentes, exigindo a revisão das práticas pedagógicas desenvolvidas, sobretudo na avaliação da aprendizagem adaptando os currículos aos diferentes ritmos e às características e peculiaridades que envolvem a aprendizagem dos alunos, no sentido de garantir a apropriação e socialização do conhecimento. 162


Para incluir todas as pessoas, a sociedade deve ser modificada a partir da compreensão de que é ela que precisa ser capaz de atender às necessidades de seus membros. Inclusão social é um termo amplo, utilizado em contextos diferentes, em referência a questões sociais variadas. De modo geral, o termo é utilizado ao fazer referência à inserção nas escolas de ensino regular e no mercado de trabalho de pessoas com algum tipo de deficiência ou ainda pessoas consideradas excluídas, que não têm as mesmas oportunidades na sociedade por motivos como: condições socioeconômicas, gênero, raça e falta de acesso às novas tecnologias da informação – denominada exclusão digital ou analfabetismo digital. O processo de inclusão social de pessoas em vulnerabilidade tornou-se efetivo a partir da Declaração de Salamanca, em 1994, respaldada pela Convenção dos Direitos da Criança (1988) e da Declaração sobre Educação para Todos (1990). Até há pouco tempo, o debate sobre a inclusão social, combate à pobreza e à fome, era tema circunscrito às iniciativas na área dos movimentos sociais. Felizmente, o cenário mudou porque o tema passou a envolver as mais diferentes esferas governamentais e não-governamentais e, principalmente, a ser central na agenda das políticas públicas do Governo Federal. No cenário brasileiro, o governo atual do presidente Lula, para assegurar melhor a qualidade de vida e o bem-estar para toda a população, sobretudo, para o imenso contingente de excluídos e desamparados, tem oferecido, com ampla divulgação nacional e internacional, o programa de bolsa-família, que incorporou a fome zero, a bolsa-escola e outros projetos assistenciais, inclusive aqueles implantados no governo anterior. Nesse cenário de significativa exclusão social, a ênfase na assistência social ocorre em função do entendimento de que salva da fome está garantida a sobrevivência física de quase nove milhões de famílias, ou seja, um quarto da população brasileira que vive abaixo da linha da pobreza com menos de um dólar por dia. Com esse propósito, percebe-se que apesar das carências existem trabalhos propostos para minimizar essas dificuldades e tentar reverter o quadro da fome da maior parte da população brasileira pelos programas dos governos nas esferas municipal, estadual e federal. A inclusão, como novo paradigma alavanca a escola, que com novas implicações educativas, acolhe todas as crianças independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas e culturais. Segundo Blanco (1998), a transformação das escolas inclusivas implica modificações substanciais na prática 163


educativa, desenvolvendo uma pedagogia centrada na criança e capaz de dar respostas às suas necessidades, incluindo aquelas que apresentam problemas graves. 3. Políticas para a infância e situação da inclusão/exclusão em Natal/RN A educação, na rede municipal de Natal, é ministrada em 70 unidades escolares, envolvendo a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e a Educação de Jovens e Adultos. Segundo dados contidos no Plano Municipal de Educação - 2003/2012, constatamos a existência de matrícula correspondente a 4.901 alunos de 0 a 3 anos, equivalente a 9,33% da demanda existente nesta faixa etária no município, em 2002. Mesmo com a ampliação de ofertas de vagas, a rede municipal de Natal, em 2002, só atendeu a 20.653 alunos de 4 a 6 anos, o que correspondeu a um percentual de 49,57 %. Esses dados revelam que ainda existe uma grande demanda que requer um esforço conjunto dos órgãos públicos e da sociedade civil, para universalizar o atendimento a esse nível de ensino. O Plano Municipal de Educação – 2003/2012 considerou que a matrícula inicial no Ensino Fundamental, no ano de 2002, foi de 131.922 alunos e que a população escolarizável, nesse ano, na faixa etária de 7 a 14 anos, era constituída de 113.413 pessoas, verificando, assim, uma taxa de escolarização bruta da ordem de 116,32%. Dar prioridade a um debate de grandes proporções a respeito da educação e a influência direta que ela exerce no desenvolvimento social e econômico de um país! De um lado o ideário da lei – Educação direito de todos e dever do Estado e da Família. Direito fundamental a ser assegurado com prioridade à criança e ao adolescente. Direito subjetivo público. De outro lado, a realidade que conduz à lógica da exclusão. Desigualdades dramáticas. Políticas públicas direcionadas a conveniências e oportunidades. Famílias desestruturadas. Escolas inertes frente aos fracassos repetidos quase que de forma programada. Como quebrar ou conciliar esse antagonismo? A distância entre o ideário da lei e a realidade é o desafio! Superá-lo perpassa pela necessidade de assumirmos esse compromisso de forma responsável e articulada, avaliando as conquistas e projetando as metas. Sem este esforço não há garantias de iniciativas eficazes capazes de realizar de modo pleno, a viabilização das conquistas sociais da Constituição de 1988. É preciso, num esforço coletivo, saldar a dívida social historicamente contraída com nossas crianças e adolescentes. 164


Com a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente na trilha da orientação constitucional disciplina o direito de acesso aos direitos fundamentais e os instrumentos para sua proteção e socorro, e o atuar na implementação desta lei, como bem, tem sido, para todos envolvidos nesse empreendimento gigantesco, um aprendizado constante nos campos do Direito, da formulação de políticas, da construção de soluções técnicas e, sobretudo, de vivência e convivência democrática. A operacionalização da Doutrina da Proteção Integral exige a correlação das diferentes Políticas

Sociais Públicas, traduzidas em

programas, projetos e

serviços, integrados e articulados em rede. Todos somos sabedores de que além da família, as instituições educativas são fundamentais na complementação do desenvolvimento pessoal e social das crianças e adolescentes e através de parcerias articuladas e ativas a escola poderá cumprir o seu papel de construtora do conhecimento e, ao mesmo tempo, contribuir para o questionamento e a continuidade das políticas sociais integradas que possibilitem intervenção na problemática vivenciada pelas crianças e adolescentes. Dentre as várias iniciativas eficazes, uma delas, desencadeada no Rio Grande do Norte, permite ilustrar de forma clara a visão sistêmica de gestão de uma rede de atenção

à

inclusão

escolar.

A

implementação

de

Programas

Sociais.

A

operacionalização destes Programas como é o caso Tributo á Criança, como bem reconhece o Secretário Municipal de Educação de Natal, prevê um compromisso do poder público, da escola, dos pais, e de toda a sociedade no sentido de efetivar movimentos para o retorno e permanência do aluno, assim como, um processo progressivo de conscientização da importância da escola, como espaço privilegiado para construir conhecimentos e estabelecer vínculos e relações com o grupo no qual convive. Esse Projeto surgiu como fruto de trabalho de articulação e integração interinstitucional efetuada entre o Ministério Público, Conselhos Tutelares, Secretaria Municipal de Educação, com o objetivo de definir a fixação de estratégias para combater os índices de evasão escolar e repetência. Refletindo sobre a regra de controle externo de acompanhamento da frequência escolar do aluno, disposta no artigo 56, inciso II, do ECA, que atribui aos dirigentes dos estabelecimentos de ensino fundamental a responsabilidade de, superado o funcionamento da instância escolar, comunicar ao Conselho Tutelar e, na sua falta, à autoridade judiciária os casos de altos índices de repetência, reiteração de faltas injustificadas e evasão escolar , surgiu a necessidade de elaborar um plano de orientação de ações, as quais poderiam ser 165


executadas pelos agentes no seu cotidiano, uma vez que tal comunicação oportuniza o surgimento de novas relações institucionais que superam práticas individualizadas e permitem integrar todas as forças para manter o aluno na escola. Antes de implantar esse plano de orientação de ações que culminou com a criação do Programa Tributo á Criança, ficou clara a necessidade de promover reuniões periódicas para definir um consenso mínimo quanto a formas de uniformização de atuações e de consolidação sobre o conhecimento dos papéis de cada instituição, uma vez reconhecido que a consequência dos afastamentos, definitivos ou temporários, da escola era e é extremamente negativa para o aluno que se desvinculava da escola e do grupo ao qual pertencia, sendo muito difícil em, seu retorno, o restabelecimento das relações tanto com o grupo quanto com o trabalho desenvolvido na sala de aula. 3.1 Análise e reflexos das políticas públicas articuladas em torno de iniciativas como o Programa tributo à criança para o combate à exclusão na capital Norteriograndense Entende-se que a doutrina de proteção integral implica um processo de reconstrução de valores, outra cultural, uma nova postura,enfim, a construção de uma nova práticas sociais e de proteção. No que se refere á categoria o atendimenrto á criança e o adolescente, uma primeira questão que nos fará refletir , é a prevalência de politicas para a população pobres. A política de atendimento á criança e adolescente tem se caracterizado pela atenção a um determinado segmento da população pobre e excluída, estando conectada aos efeitos do sistema de produção capitalista, sendo denominadas de políticas assistencialistas. O estado brasileiro respondeu á demanda crescente das questões sociais, principalmente o aumento da marginalidade, com uma complexa rede assistencial,destinada a atender a grupos especificos, “grupos de risco”. Essas políticas sociais residuais tendem assumir um papel prioritariamente assistencial pela situação de pobreza da maioria da população. Essa configuração das políticas sociais é responsável por parte importante dos resultados insatisfatórios que caracterizam as ações socias governamentais. Com isto, há o agravamento paulatino da distribuição desigual de riqueza e o crescimento das massas desfavorecidas, com altos índices de desemprego e de miserabilidade, atingindo diretamente e desestruturando a instituição de maior responsabilidade pela inserção do indivíduo na sociedade: a família.

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Neste contexto, o Estado é um meio de garantia formal da cidadania, dos direitos à vida, à igualdade, à proteção, à educação, entre outros, com fins de mediar uma relação justa entre detentores/concentradores de riquezas e compradores da força de trabalho e a grande massa. Temos, contudo, em nossa realidade, o Estado como um grande meio reafirmador das desigualdades estruturais de nosso país, onde as políticas sociais são entendidas como concessões do Estado, e não como direito. As políticas de atenção a crianças e adolescentes em situação de risco surgem da ineficiência e ineficácia do Estado em suas políticas econômicas, agrárias, habitacionais, educacionais e de saúde. As instituições de amparo a crianças e adolescentes em situação de risco não seriam necessárias caso houvesse políticas sociais eficazes, que dessem conta das causas geradoras desta realidade. Ao fazer uma análise das políticas sociais destinadas a esta parcela da sociedade, Souza Neto (1993) afirma que “a história brasileira é carregada da privação dos direitos sociais à infância e à adolescência. Isso significa que a ausência de políticas sociais bem estabelecidas já constitui um corolário da abertura para uma „política de genocídio‟, presente em toda a história brasileira da criança e do adolescente.” (p. 79) Desta forma, instalam-se políticas assistencialistas que visam resolver um determinado problema sem se preocupar com as causas e suas possíveis consequências. Estratégias voltadas à garantia das necessidades sociais de emprego, com remuneração justa, educação, saúde, moradia e lazer com qualidade, teriam maiores chances de quebrar a cadeia geradora do fenômeno social de crianças e adolescentes em situação de risco. No entanto, as políticas de atenção à criança e ao adolescente em situação de rico em nosso país são marcadas por uma trajetória de enorme descompasso político entre discurso legal, ideologias e práticas, ações governamentais e não governamentais desuniformes, com as mais diversas concepções sobre a questão do abandono social da infância (SOUZA NETO, 1993; GREGORI & SILVA, 2000). A eficácia de qualquer ação depende do nível de conhecimento que possuímos da realidade, na qual se insere o objeto a que se destina a intervenção. Nesse sentido, inúmeros estudos se propõem a compreender a questão do abandono social da infância e adolescência em nosso país oferecendo uma significativa contribuição na construção do conhecimento deste fenômeno social. No entanto, há necessidade de conhecermos as especificidades locais para que as propostas de ações voltadas a este grupo tenham um melhor direcionamento e, assim, tenham maiores possibilidades de sucesso (MINAYO, 1993). Desta forma propomos avaliar Freire, em seu livro Política e Educação (1995), 167


ao analisar o exercício da política nos convence da importância da compreensão histórica da realidade como elemento que contribui para a emancipação social, reforçando a necessidade de uma política de construção histórica. Assim, vê-se que o Estado não consegue atender aos marginalizados e passa a responsabilidade social ao setor privado em ações coletivas, que atendam as parcelas menos favorecidas da população realizando ações pontuais e não verdadeiramente Políticas Públicas que contemplem o cidadão e suas reais necessidades. Uma das necessidades básicas na qual acreditamos ser possível à quebra da desigualdade social, a Educação: baixos níveis educacionais criam relações pouco sólidas com ouras instituições, principalmente com relação ao mercado de trabalho. A situação da infância e da juventude em situação de pobreza, excluída dos seus direitos cidadãos, bem como suas famílias, configura uma das expressões da questão social espelhada na sociedade brasileira. Situadas nas periferias das grandes e pequenas cidades, sem acesso ao processo produtivo, estas famílias não podem garantir condições mínimas de subsistência para si e para os seus, uma vez que se encontram expostas ao desemprego aberto ou camuflado, lançando mão das estratégias que lhes são possíveis; ou partem buscando em migrações sucessivas um alimento à esperança. Na contemporaneidade, expande-se um cenário que expressa ainda uma condição de pauperização da população, cujas marcas estão no não trabalho que expulsa da produção, no alimento que falta, na saúde que se deteriora, na educação que ignora, no vestuário andrajoso, na moradia insalubre, ou nas casas de papelão em extrema situação de precariedade. Está na fome, na miséria, na violência vivida, sofrida ou exercida. Está no rosto, nas mãos, no corpo e no olhar das famílias, das crianças, dos adolescentes que vivem em condições sub-humanas e de risco social. Estas crianças e jovens, muito cedo, individualmente ou em grupos, com ou sem o apoio da exploração de adultos, em permanente situação de risco, buscam trabalho na rua e passam a vigiar carros, vender balas e doces, pedir esmolas, carregar pacotes, limpar pára-brisas, engraxar sapatos, furtar. São atividades que geralmente ocorrem nas portas de cinemas e de hotéis, nas praças e semáforos, em estacionamentos, supermercados, shoppings, residências e outras localidades. Em sua maioria usam drogas; outras vêm sofrendo ou sofreram algum tipo de violência, como agressão moral, física, perseguição policial, exploração sexual. Poucos frequentam a escola, muitos deixaram de estudar e, ou, até mesmo nunca foram à escola. Na interpretação de Yasbeck (1991, grifos do autor), 168


Estes são sinais que muitas vezes enunciam os limites da condição de vida dos excluídos [...] e expressam também o quanto à sociedade pode tolerar a pobreza e banalizá- la e, sobretudo a profunda incompatibilidade entre os ajustes estruturaisnova ordem capitalista internacional e os investimentos sociais do Estado brasileiro. (YASBECK, 1991, s/p).

Como protagonista deste cenário de pobreza e de exclusão social, segundo os indicadores sociais divulgados pelo IBGE, em 2010, encontram-se mais de “[...] 52 milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza, excluídos, portanto, do consumo, da produção e da cidadania”. Destes, mais de 31 milhões vivem entre a linha de pobreza e acima da linha de miséria, com renda mensal per capita inferior a 0,45 de um salário mínimo. Cerca de 20 milhões encontram-se na situação que se define como indigência ou miséria, que não ganham dinheiro o suficiente para comprar diariamente alimentos em quantidade mínima necessária à manutenção saudável de uma vida produtiva. Ainda, de acordo com estes indicadores sociais, o Brasil, como campeão de concentração de renda, apresenta uma realidade na qual um rico ganha o mesmo que 54 pobres; 1% da população mais rica detém 13,5% da renda total do país e os 50% mais pobres ficam com 14,4%. [...] E que hoje estão incluídos em programas federais como a Bolsa Família. A esse processo crônico de profunda desigualdade social soma-se a crescente diminuição das políticas sociais. A verdadeira minimização do Estado tem acompanhado uma crescente restrição de fundos para financiamento das políticas públicas, sobretudo em educação. A pobreza que se situa em um nível de exclusão que indica haver pessoas que não têm qualquer utilidade para o sistema, nem mesmo para serem exploradas é apontada por Santos (1995, p.42): É uma população sobrante, gente que se tornou não empregável, parcelas crescentes de trabalhadores que não encontram um lugar reconhecido na sociedade, que transitam à margem do trabalho e das formas de troca socialmente reconhecidas” numa sociedade em franca expansão capitalista que produz “o necessitado, o desamparado e a tensão permanente da instabilidade no trabalho.(YASBECK, 2003, p.35).

De acordo com Relatório da Secretaria Municipal de Trabalho e Ação Social Semtas (2010), do total de brasileiros que vivem na miséria 61% tem seu espaço de vida 169


na região Nordeste, concentrando-se nas periferias das cidades de médio e de grande porte. Nestas cidades, estão submetidos ao desemprego, subempregos, à fome, à miséria, à violência, lançando mão de estratégias de sobrevivência, buscando por um lugar social digno para trabalhar e morar. O Estado do Rio Grande do Norte não é discrepante em relação ao contexto da região em que se insere. Com uma população de aproximadamente (dois milhões oitocentos e cinqüenta mil habitantes, destes, 45,5% estão abaixo da linha da pobreza. As condições sócio-econômicas da população pobre e excluída no estado e na capital reproduzem a situação dos excluídos de todo o país; ainda que, de modo ufanista, os documentos oficiais proclamem ter o Rio Grande do Norte o quarto Produto Interno Bruto do Nordeste (PIB): R$ 8,8 bilhões, e o maior per capita da região: (três milhões, trezentos e oitenta e três reais e cinqüenta centavos). Relatório da Semtas (2010). No Estado do Rio Grande do Norte, as estatísticas de renda decifram um dado devastador: 13,53% da população não têm qualquer rendimento. Segundo a imprensa norte-rio-grandense, de cada 10 migrantes que saem do interior para a capital do Rio Grande do Norte apenas um consegue emprego, os demais se instalam com sua família nos canteiros da cidade ou em barracos nos bairros periféricos. Relatório da Semtas (2010). Compondo este cenário, a cidade do Natal, com uma população estimada de 744.794 habitantes é uma cidade que esconde em sua malha urbana, segundo França (2003), outra face reveladora de uma feiúra social, e onde se concentra a maioria da população mais pobre [...], compondo o fenômeno da favelização, da violência urbana, dos problemas de trânsitos, do desemprego, da exploração infanto-juvenil, através do turismo sexual e do trabalho infanto-juvenil. É um cenário acrescido dos loteamentos clandestinos evidenciando a vida dos que vivem sem terra e sem teto. A estimativa do Ministério Especial da Segurança Alimentar (MESA) é de que 35,69% da população do estado esteja em situação de insegurança alimentar, ou seja, mais de um terço da população do Rio Grande do Norte passa fome e fazem parte dos 40 milhões de pessoas que sofrem com a fome no Brasil. Quanto à educação, em âmbito nacional o Brasil universalizou o acesso à educação fundamental, mas a taxa de evasão e repetência está muito acima dos países em desenvolvimento; nos dados em julho de 2010 a taxa de repetência era a segunda maior do mundo, perdendo para o Suriname (18,7%). O contexto educacional do Estado do Rio Grande do Norte, não mostra um diferencial: tanto o sistema estadual quanto o 170


Municipal apresentam problemas estruturais graves, visíveis com a inexistência de um ensino público de qualidade; aí se associam as ausências de uma política salarial, de uma infra-estrutura digna, de um processo de capacitação efetiva, bem como a limitação de recursos humanos e, sobretudo, a ausência da definição de prioridades pertinentes para o setor, em termos das políticas públicas. Muito embora 97% das crianças sejam matriculadas no ensino fundamental, 60% desses alunos no 6º ano não sabem ler nem efetuar corretamente as quatro operações. As crianças que se evadem ou repetem são pobres, negras ou de origem indígenas, norte ou nortistas, e de classe baixa. Algumas causas para os índices de evasão/repetência, entre elas, as Políticas econômicas, a desigualdade social, as políticas educacionais, a gestão escolar, a formação de professores, o sistema de avaliação, etc. Existem muitas pedras no caminho para se concluir a inclusão nas escolas, e neste caso podemos lembrar uma frase de Fernando Pesssoa: “Pedras no caminho guardo todas um dia vou construir um castelo”. 3.2 Inclusão escolar de crianças em risco social Cada vez mais, as políticas de atenção à criança em situação de risco enfrentam o desafio das precárias condições de vida em que estas se encontram, vivendo no cotidiano, muitas vezes, situações extremas de exclusão social, em que os direitos assegurados no Estatuto da Criança e do Adolescente não são respeitados - ECA (1990). Por situação de risco, entende-se a condição de crianças que, por suas circunstâncias de vida, estão expostas à violência, ao uso de drogas e a um conjunto de experiências relacionadas às privações de ordem afetiva, cultural e socioeconômica que desfavorecem o pleno desenvolvimento bio-psico-social. Esta situação de risco acaba se traduzindo por dificuldades na freqüência e no aproveitamento escolar, nas condições de saúde de forma geral e nas relações afetivas consigo mesmo, com sua família e com o mundo, tendo como conseqüências à exposição a um circuito de sociabilidade marcado pela violência, pelo uso de drogas e pelos conflitos com a lei. Muitas vezes estas experiências de vida facilitam dinâmicas expulsivas da família nuclear e da casa e o ingresso no circuito da rua e das instituições de abrigamento. O paradigma da inclusão surgiu para combater a exclusão social e, no âmbito da educação, busca superar a visão da integração anteriormente tão propagada, onde o aluno devia adaptar-se á escola, sem que houvesse qualquer movimento no sentido de

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mudar a escola para acomodar uma diversidade, cada vez maior, de alunos. (MITLLER, 2002). O acesso á escola extrapola, pois, o ato da matrícula e implica na apropriação do saber e das oportunidades educacionais oferecidas á totalidade dos alunos, com vistas a atingir os objetivos educacionais, com base na diversidade da comunidade escolar. Podemos conjecturar, enfim, que o modelo de sociedade em que estamos inseridos na contemporaneidade, pode até surgir outro tipo de exclusão, mas somos, por hora, expectadores de um novo processo de democratização social. Prova disso é o fato de sermos informados a todo instante de sucesso em projetos de acessibilidade dos sujeitos a diferentes serviços e a multiplicação dos meios de locomoção em diferentes espaços da vida cotidiana.

Muitas vezes a nossa incapacidade em lidar com o

diferente – o desconhecido nos leva a assumir uma atitude de esquiva, de fuga e, mais grave ainda, de abandono. A inclusão institui a inserção de uma forma mais radical, completa e sistemática, uma vez que o objetivo é incluir um aluno ou grupo de alunos que não foram anteriormente excluídos. A meta da inclusão é desde o início não deixar ninguém fora do sistema escolar, que terá de se adaptar às particularidades. O processo de legitimação da exclusão desse grupo social pode ser entendido, conforme Bourdieu (1999, p. 193), como diferentes tipos de “gratificações econômicas e simbólicas correspondentes às diferentes formas desta relação, que se define o grau em que se enfatiza objetivamente a pertinência ou a exclusão”. A preocupação com a inclusão de crianças e adolescentes no cenário educacional brasileiro é recente. Surgiu com o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) criado pela Lei 8.069/1990. Esse documento trata da proteção integral da criança e estabelece o direito à educação como prioritário para o pleno desenvolvimento humano e preparo para o exercício da cidadania. Assegura a todas as crianças “a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, o direito de ser respeitado por seus professores e o acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência” (Art. 35). A política nacional de educação inclusiva assume as recomendações da Declaração de Jomtien, Tailândia, em 1990 e da Declaração de Salamanca (1994), as quais enfatizam que o êxito da escola inclusiva depende: da identificação precoce, da avaliação, da estimulação de crianças com necessidades educativas especiais desde as primeiras idades e da preparação para a escola como modo de impedir condições incapacitantes. 172


Seguindo esses princípios, a Política Nacional de Educação Infantil (1994) concretiza-se por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB (1996), que assegura a conquista democrática da igualdade de direitos em relação à educação infantil, concebe-a como a primeira etapa da educação básica, que tem por finalidade o desenvolvimento integral de “todas” as crianças, do nascimento aos seis anos (art.58), incluindo as com necessidades educacionais especiais. Assim, a LDB trouxe como responsabilidade dos sistemas municipais de educação a estruturação e a organização de creches (0-3 anos) e pré-escolas (4-6 anos), hoje cinco anos, mediante apoio financeiro e técnico dos estados e da União. Para a implementação dessa proposta, foi elaborado o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998), que enfatizava como eixo do projeto pedagógico: diversidade, interação, comunicação, brincar, socialização das crianças por meio de sua participação nas diversificadas práticas sociais, sem discriminação de espécie alguma. O que concerne à Educação Infantil, esse documento não aprofunda questões de âmbito político, de organização do sistema e da elaboração de projetos pedagógicos. Cabe pontuar que os Planos Municipais de Educação, nesta última década, têm-se esforçado no sentido de ampliar o atendimento dos Centros de Educação Infantil em muitos municípios brasileiros. Não obstante, os direitos adquiridos tanto pelas crianças das classes populares quanto pelas crianças com deficiências estão longe de ser garantidos na sua integralidade. Observa-se a falta de diretrizes políticas específicas para esta população, ausência de articulação e integração entre os níveis responsáveis pela elaboração e implementação dessas políticas e, em especial, a falta de previsão de recursos financeiros para a expansão da rede de educação e a baixa qualidade dos projetos educativos. O contexto da educação infantil. Dados levantados (MEC/INEP, 2002) apresentavam indicadores de que apenas 13,47% das crianças brasileiras tinham acesso a creches nas suas comunidades. Bobbio, (1999) ao discutir as teorias democráticas e pluralistas da sociedade, pondera que o Estado alarga a participação do poder político estreitamente ligado ao poder econômico. Enfatiza que o poder e a democracia não estão nas instituições do governo local, mas nos grupos menores, formais e informais. “É nessas comunidades, na capacidade de se formar rapidamente sob a pressão das necessidades imediatas, que reside o verdadeiro espírito da democracia” (p. 17). O 173


teórico reconhece a importância dos grupos, dos diferentes interesses de uma sociedade complexa, da luta pelo poder, do jogo de forças e dos conflitos entre o momento de força e o momento de consenso. Apesar do avanço conceitual da legislação, enfrentam-se, na prática, três grandes desafios para a inclusão na educação infantil. Primeiro a limitação de ofertas de vagas na faixa etária de 0-5 anos em creches e pré-escolas; crianças pobres e deficientes freqüentam creches comunitárias, sem espaço e tempo adequados para o brincar e o aprender. O segundo é a falta de professores com formação para lidar com a diversidade, com as especificidades das crianças pequeninas e com as necessidades educacionais especiais. Observa-se, na prática, em especial nas regiões periféricas dos grandes centros urbanos e nas cidades do interior, que o atendimento ocorre em creches comunitárias, na esfera da assistência. Os profissionais que atuam nessa faixa etária, tanto professores como recreadores, não têm formação no campo das especificidades da infância e do conhecimento pedagógico que lhes permita trabalhar com os conceitos de interculturalidade, flexibilidade, adequação curricular.

Pesquisadores de orientação

sociológica pós-moderna como Ball e Bowe (1992) nos ajudam a refletir sobre a distância existente entre a política pública e a prática na área educacional. No Brasil, o discurso da política de inclusão social e educacional surgiu no governo neoliberal e foi ampliado pelo atual governo de cunho socialista e pluralista. Entretanto, as agendas de ambos os governos não aprofundaram o debate sobre os meios, os fins e as estratégias para a implementação da política de ampliação da rede de educação

infantil.

Assim,

os

discursos

ampliam-se,

generalizam-se

e,

contraditoriamente, distanciam-se dos fundamentos e princípios que os balizaram: assegurar a igualdade de oportunidades, o direito à diferença e a escola de qualidade para todos, desde o nascimento. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Brasileira (FUNDEB), regulamentado pela Lei 11.494/2007, traz como promessa contemplar investimentos para educação integral da criança desde o nascimento. Parece-nos que não prioriza especificamente esse nível de ensino, pois os recursos serão destinados na mesma proporção que aos demais níveis e modalidades de educação. O que ele traz de novo são o investimento na formação continuada de professores e o incentivo à pesquisa no campo da educação infantil.

174


Ball (1994) discute que as políticas deveriam ser analisadas em termos de seus impactos nas relações e nas interações com as desigualdades existentes. Os efeitos gerais da política tornam-se evidentes quando aspectos específicos de mudanças e um conjunto de respostas são observados na prática. Sugere que a análise da política deva envolver o conjunto de proposta, as questões mais amplas, as políticas locais e as amostras de pesquisas. Seguindo essa tendência analítica das políticas sociais, passemos a apreciar o que dizem os estudos e pesquisas sobre o processo de inclusão de crianças em risco social. A análise discursiva das políticas de educação infantil indica avanço significativo no que diz respeito ao caráter de proteção, acesso, universalização e redistribuição das políticas educacionais sociais, atribuindo maior responsabilidade aos municípios quanto a expansão, estruturação e implementação de sistemas educacionais inclusivos. Dados de avaliação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2003) indicam que a ampliação de creches foi de 7,3% e, na pré-escola, o crescimento foi na ordem de 3,7%. Entretanto, para cumprir as metas do Plano Nacional de Educação seria necessário, no mínimo, quadruplicar esses dados. Há grandes capitais brasileiras com índice menor do que 10% da população infantil com acesso a creches e pré-escolas. Estratégia consistente para a implementação de políticas de inclusão educacional foi o Programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade (MEC/SEESP, 2003). Programa concebido como um novo tempo destina-se a apoiar estados e municípios na tarefa de reorientar as escolas para que estas se tornem inclusivas e de qualidade. Conforme Alves e Barbosa (2006), esse programa materializa a política pública de desenvolvimento de sistemas educacionais inclusivos em 147 municípios-pólos, em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal. Essa relação do discurso político com a prática envolve, de acordo com Bowe (1992), identificar processos de resistências, acomodações, subterfúgios entre os profissionais e o delineamento de conflitos e diferentes interesses na esfera da prática cotidiana. Os discursos políticos no contexto atual são construídos e as políticas públicas são iniciadas no contexto de influência, ou seja, onde os grupos de interesses disputam para influenciar a definição das finalidades sociais da educação e do que significa ser educado. Os atores do contexto de influência são as redes sociais dentro e em torno de partidos políticos, do governo e do legislativo. Os autores enfatizam que é nesse 175


contexto que os conceitos ganham legitimidade e formam um discurso de base para a política. Apontam ainda meios de comunicação, comissões e grupos representativos como lugares de articulação e de influência na formação inicial e continuada de professores para a construção da inclusão nos programas e escolas.

3.3 A escola e suas implicações para o processo de inclusão As políticas sociais [educação e assistência] a partir de seus próprios objetivos e independentes da vinculação que é preconizada nos vários programas sociais, acabam por repercutir sobre o aumento da frequência escolar através de alguns mecanismos, tais como: o repasse de bolsas ou modalidades de renda de caráter mínimo. Contudo, sua eficiência é discutida quanto a permanência e sucesso da aprendizagem em crianças e adolescentes em vulnerabilidade social. Logo, a relação entre essas duas políticas sociais [educação e assistência social] causa indefinição conceitual e de ações, provocando questionamentos quanto aos benefícios que promovem o papel da educação para os segmentos mais vulneráveis, inclusive retomando a visão do capital humano da educação como fonte originária de renda, predominante nos anos sessenta. A escola, segundo Barroso (2003) precisa ser concebida como um espaço sociocomunitário numa organização multifuncional que proponha recuperar o sentido para crianças e adolescentes com a finalidade de reduzir o risco de sua exclusão. Contudo, historicamente a escola acaba por excluir, não possibilitar uma igualdade de oportunidade para todos, muitos alunos não encontram sentido para a sua assiduidade, utilizam modelos de organização pedagógica em um padrão cultural uniforme. Deste modo, os fatores organizacionais estruturam a escola no seu conjunto e regem as relações entre os envolvidos (gestores, professores, funcionários, alunos, família). Barroso (2003) cita que A manutenção da forma escolar de educação e da ordem burocrática de organização constitui, hoje, os fatores estruturais mais expressivos que contribuem para o mal-estar que se vive nas nossas escolas e para um crescente sentimento de ineficácia e injustiça no seu funcionamento. A inclusão de todos os alunos nesta mesma “matriz” pedagógica é responsável por muitos fenômenos de exclusão. A escola massificou-se sem se democratizar, isto é sem criar estruturas adequadas ao alargamento e renovação da sua população e sem dispor de recursos e modos de ação necessários e suficientes para gerir os 176


anseios de uma escola para todos, com todos e de todos. (BARROSO, 2003, p.31).

Os processos envolvidos são resultados da globalização, que de certa forma mostram o ápice do processo capitalista. Assim, Fiori et.al (1998, p. 7) afirma que: “[...] não importa que se fale de globalização ou de mundialização, o que importa é compreender a forma, os mecanismos e o funcionamento desta nova realidade geopolítica e geoeconômica e os seus impactos sobre a produção e a distribuição da riqueza mundial”. O fenômeno da globalização e o contexto e patamar de internacionalização do produto, do dinheiro, do crédito da dívida (SANTOS, 2000) têm tido consequências desastrosas para a efetivação de processos de inclusão social e educacional. Para Young (2007, p.1296) “Inevitavelmente, as escolas nem sempre têm sucesso ao capacitar alunos a adquirir conhecimento poderoso. Também é verdade que as escolas obtêm mais sucesso com alguns alunos do que com outros”. Nesta visão, cabe ao aluno o seu sucesso dependendo altamente da cultura que eles trazem para a escola. É do conhecimento de muitos que a cultura das elites são mais congruentes com a aquisição de conhecimento, enquanto que culturas desfavorecidas são as subordinadas. Em vista disso, as escolas passam a promover a igualdade social, elas precisam considerar seriamente a base de conhecimento do currículo, mesmo quando isso parecer ir contra as demandas dos alunos. Nesses moldes, Young (2007) acrescenta que [...] para crianças de lares desfavorecidos, a participação ativa na escola pode ser a única oportunidade de adquirirem conhecimento poderoso e serem capazes de caminhar, ao menos intelectualmente, para além de suas circunstâncias locais e particulares. Não há nenhuma utilidade para os alunos em se construir um currículo em torno da sua experiência, para que este currículo possa ser validado e, como resultado, deixá-los sempre na mesma condição. (YOUNG, 2007, p. 1298).

Enfim, a escola como instituição, define regras e normas para disciplinar, o que acaba por transgredir o direito de discutir suas ações e oferecer a oportunidade de trabalhar as suas singularidades. (FURLANETO et all., 2007).

177


Considerações Finais Assim, se chega à definição de que a universalização da educação e o combate à pobreza dependem do Estado programar políticas sociais. Historicamente, o fenômeno da pobreza tem impedido que uma parte considerável da população brasileira participe das oportunidades sociais, tendo em vista que a disseminação da pobreza não é uma questão social, mas um problema focalizado, circunscrito a algumas regiões do país. Neste sentido, programas que permitam contribuir para reduzir a desigualdade social, não resolve plenamente a questão da pobreza, pois ela se instalou há muito tempo, necessitando de políticas públicas que possam viabilizar estratégias para saná-la. Partindo desse entendimento, argumenta-se que a educação não dá conta, sozinha, do combate à pobreza, em duplo sentido: por um lado, não é a educação que a produz, porém, pode contribuir para reproduzir os condicionantes excludentes; e, por outro lado, também não é responsável diretamente pelo seu enfrentamento, mas pode contribuir para criticar a situação e criar caminhos de organização social. No que tange às políticas brasileiras, estas priorizam o ensino fundamental e apontam para a universalização do nível médio de ensino, com grande parte dos planos educacionais programados como mecanismos para alívio temporário das condições de pobreza e de aviltamento social por meio de políticas compensatórias, como o caso de programas assistenciais associados à educação. Neste contexto político-econômico e social, a união de políticas sociais e educacionais constitui uma das estratégias baseadas nas medidas de desregulamentação do Estado e de focalização das políticas sociais e formais. Essa tendência segue uma orientação global do desenvolvimento econômico e parte do pressuposto de que a economia internacional deve basear-se no livre mercado, enquanto regulador “natural” da cultura econômica capitalista, exigindo assim políticas sociais de caráter compensatório. No espaço da escola pública pode-se vivenciar uma trajetória estudantil vivendo e aprendendo com os professores e as professoras, compartilhando seus sonhos e ações, na medida em que desenvolvia cotidianamente suas ações pedagógicas. Portanto, pensar a educação na perspectiva de Paulo Freire é colocá-la como instrumento de edificação e transformação social e a escola como espaço que atende as necessidades daqueles que por ela clamam. Os educadores e educadoras da transformação sonham com uma escola comprometida com a aquisição de saberes que possibilitem a melhoria das condições de 178


vida e de trabalho dos jovens brasileiros, aumentando a participação de todos nas decisões no interior da escola, contribuindo assim, com a consolidação de uma sociedade democrática, e, portanto, mais justa e igualitária – enunciados que ainda são significativos para a efetivação de processos transformacionais na realidade brasileira. As crianças em situação de vulnerabilidade social, atores sociais desta pesquisa, possuem um perfil consubstanciado em histórias de vida pautadas em experiências e saberes práticos, marcada por hábitos, atitudes, valores de classe, carecendo de saberes que se sustentem criticamente em ações pedagógicas e escolares potencializadoras de transformações em suas vidas. Isso significa de certo modo contrapor-se às concepções de educação social tradicionais, ainda expressivas e significativamente

baseadas

no

treinamento

de

habilidades,

em

conteúdos

descontextualizados da realidade dessas crianças em risco social, distante do processo educativo da escola. O pedagogo, atuando no campo da educação escolar, e, sobretudo, não-escolar, deverá ser capaz de orientar e construir com todos os que estão inseridos em seu processo educativo possibilidades que envolvam condições qualitativas fomentadas pela vontade de transformação das propostas pedagógicas que possibilitam o sucesso das aprendizagens, notadamente em contextos não-escolares, contribuindo com a comunidade e a família. Considerando que este estudo procura revelar novos espaços não-escolares como espaços legítimos de atuação profissional do pedagogo enquanto educador social. Acredita-se que tal atitude viabilizaria a ampliação dos espaços de trabalho valorizado, fazendo com que esse profissional envolvido em processos educativos não-escolares tivesse maior visibilidade social e profissional. Assim, registra-se a importância do Profissional Pedagogo contribuindo nesse cenário global, onde um trabalho de socialização, sensibilização, informação, capacitação e organização da aprendizagem são fundamentais para amenizar os índices significativos de exclusão social. Compreende-se que as crianças, como a parte mais vulnerável da exclusão social, no contexto teórico da vulnerabilidade social, na sua conexão com as políticas públicas desenvolvidas no Brasil, permite, sobretudo a problematizando do Programa Tributo à Criança como mecanismo de inclusão social. Portanto, o „lócus‟ privilegiado para proposições a novas perguntas; lugar de provocações éticas e políticas pertinentes à complexidade e seriedade que envolve a 179


questão da inclusão social de menores em risco e do Programa Tributo à Criança, como dispositivo potencializador de inclusão social, e a Pedagogia Social de Rua como alternativa pedagógica, para atender às prerrogativas da aprendizagem nos espaços de atendimento de educação social, principalmente o atendimento às crianças vítimas de vulnerabilidade social. Referências Bibliográficas BAL,S. J. Educational reforma: a critical and post structural approach. Buckingham: open University Press, 1994a. BARROSO, João. Os professores e os novos modos de regulação da escola pública: das mudanças do contexto de trabalho às mudanças da formação. In: BARBOSA, Raquel Lazzari Leite (Org.). Trajetórias e perspectivas da formação de professores. São Paulo: Ed. UNESP, 2003. p. 31-60 BLANCO, Rosa, DUK, Cynthia. A integração de alunos com necessidades especiais na América Latina e no Caribe: Situação atual e perspectivas. ln: MANTOAN, Maria Teresa Eglér. A integração de pessoas com deficiência: contribuições para uma reflexão sobre o tema. São Paulo: Memnon/SENAC, 1998. BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente. Lei Federal nº8. 069/90. Ministério da Justiça, Brasília, DF. 1990. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1999a ______. Referências curriculares nacional de educação infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. CARNEIRO, Maria Sylvia Cardoso. Tentativas de integração escolar de alunos considerados portadores de deficiência. lntegração, ano 8, n. 20, 2005. CASTEL, Robert. A Insegurança social o que é ser protegido? Tradução: Lúcia M. Endich. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995. FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. São Paulo: Cortez, 1995. ______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. FIORI et al.; SENE, Eustáquio. (1998). Globalização e espaço geográfico. São Paulo: Contexto. FURLANETO, E. C. (et all.). A escola e o aluno. Relações entre o sujeito-aluno e o sujeito-professor. São Paulo: Avercamp editora, 2007. GOMES, M A. Filhos de ninguém? Um estudo das representações sociais sobre famílias de adolescentes em situação de rua. Dissertação de mestrado. Universidade do Estado do Ceará, Fortaleza, 2003. HOGAN, D. J e MARANDOLA JR., E. Para uma conceituação interdisciplinar de vulnerabilidade. In: CUNHA, J. M. P. (Org). Novas metrópoles paulistas: população, vulnerabilidade e segregação. Campinas: NEPO/ Unicamp, 2006. 180


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CREDENCIAIS DE AUTORIA Marlete Euná Brito de Melo Graduada em Letras (UFRN, 1981 ),Especialista em Gestão Educacional (UNP, 2008), Mestre em Ciências da Educação(ULHT,2010 ) Portugal, doutoranda na Universidade Lusófona de Humanidade e Tecnologia ( tese em fase de preparação para defesa). Professora das Faculdades Integradas de Patos, atuando principalmente seguintes temas: Pedagogia Social, Políticas educacionais, Políticas de inclusão e Desenvolvimento Humano. Diretora do Instituto de Ensino Superior Natalense (IESN) Contato: marletebrito1@hotmail.com Acesso - Lattes: http://lattes.cnpq.br/5478514736631916

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O SEXO DOS ANJOS, OU OS ANJOS SEM SEXO Maria Manuel Carvalho Escrever sobre este tema é de uma enorme responsabilidade, por vários motivos: primeiro porque são poucas as vezes em que se pode dar voz a pessoas sem grandes oportunidades de expressarem o que lhes vai na alma; e depois se a inspiração não está nos seus melhores dias? Perde-se uma excelente oportunidade de falar de um tema que por cá, terra de Camões, ainda se fala muito baixinho. Pois bem, quis o destino termos sido convidados para falar sobre este assunto, o que foi uma grande honra, mas por outro lado uma grande angústia de não saber se estaríamos à altura de representar condignamente as pessoas com deficiência e ou incapacidade (PCDI). Estivemos bastante tempo sem saber como começar este texto, que palavras escolheríamos, até que pensámos que a dificuldade de arrancar vinha do facto de se estar a tentar explicar o óbvio, na medida que consideramos que falar de sexualidade de PCDI é em tudo semelhante em falar sobre o mesmo tema em pessoas sem deficiência. Para nós, CERCIAG (Cooperativa para a Educação de Crianças Inadaptada de Águeda, C.R.L), tudo começou com a vontade do nosso grupo de Auto-Representantes, grupo de clientes cujos objectivos se centram na sua auto-determinação. Este grupo de clientes, bastante inquieto em querer saber mais e melhor, desafiou os colaboradores a começarem a abrir uma porta que, até aí, estava bem fechadinha para que ninguém ousasse sequer abrir! No ano de 2007, um grupo multidisciplinar de técnicos da CERCIAG, com o total apoio dos superiores hierárquicos, começou a trabalhar e a tatear o caminho. Depois de inúmeras reuniões de equipa, da leitura de bibliografia e principalmente de entrevistas de levantamento de necessidades e expectativas realizadas a clientes, famílias e colaboradores…decidimos começar com o nosso projecto Átomo. Nascia assim um projecto baseado também na recolha de afirmações de familiares que diziam que os filhos eram uns anjos, até afirmações opostas que exprimiam o seu anseio em

que os seus filhos/familiares tivessem oportunidades para terem experiências

sexuais.

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O nome do projecto levantou muitas questões. O que é que um “Átomo” tinha que ver com o tema? No fundo o que queríamos era esmiuçar ao máximo o tema até à partícula mais pequena possível, um Átomo. E assim batizámos o nosso projecto. Aquilo que agora iremos explanar resulta de uma extensa leitura bibliográfica, que será devidamente referenciada no final, mas que se mistura na nossa vivência prática do tema. Em jeito de desabafo, iremos escrever sobre o tema sem grandes preocupações científicas de referências porque acreditamos que este tema tem de ser simplificado e escrito com base na prática, para que se passe efetivamente à… prática! Falar sobre a temática da sexualidade ainda é um tabu no nosso país, quanto mais associá-la à deficiência e incapacidade! Foi de facto um acto de coragem, dizem ainda as vozes mais conservadoras. Em nossa opinião foi um acto de necessidade premente! Mas qual acto de coragem? Nós não descobrimos nada que já não existisse, estava era muito bem camuflado. Estaria? Ao longo do desenvolvimento do projecto fomos verificando que não estava assim tão escondida como se pensava! O que estava ou que continua a estar em cima da mesa é o facto de pessoas com deficiência ou incapacidade terem o direito de vivenciar a sua sexualidade. Mas, infelizmente, esta simples frase acarreta tantos constrangimentos, cujo limite de páginas para escrever sobre o assunto tememos que não chegue. Em relação à temática da sexualidade, em que ficamos? As PCDI são uns anjos, não pensam nisso? Ou por outro lado só pensam nisso chegando mesmo a serem rotuladas como hipersexuadas? Valerá a pena estar a esmiuçar o assunto? Estamos tão bem assim! Para quê dar ideias? Eles não pensam nisso, são umas eternas crianças! Foram estas e outras questões e afirmações com que nos deparámos no início do projecto! O leitor poderá pensar que este punhado de técnicos ou foi muito corajoso ou, então, era completamente “suicida”. Nós, membros fundadores do projecto, gostamos de pensar que fomos simplesmente pessoas que trabalhamos com PCDI e que perante a angústia dos nossos clientes e suas famílias não poderíamos jamais fechar os olhos a uma evidência tão clara de apoio. Nós não eramos, nem ainda somos, especialistas na área. Obviamente que a vontade de resolver o assunto esteve, e estará, sempre presente; no entanto tem de ser constantemente refreada sob pena de as portas do caminho que estamos a ajudar a trilhar se fecharem.

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Depois de um ano de preparação, iniciamos o nosso querido “Átomo” com um dia de “Abraços Grátis”. Nesse dia morno de Outono, quando o “Átomo” saiu da teoria à prática, todos nós na CERCIAG sentimos o quentinho dos muitos abraços trocados. E assim plantou-se a semente do Átomo. O que é o projecto Átomo? O Projecto Átomo é um projecto de educação afectiva-sexual para PCDI destinado aos clientes, famílias e colaboradores, com objectivos de educação/ formação/desmitificação/ apoio/ nesta área de intervenção. À semelhança do que a bibliografia preconiza, também nós consideramos que trabalhar este tema com a nossa população PCDI, maioritariamente deficiência intelectual e jovens com problemas de comportamento, deve ser realizada dentro de um projecto sistematizado com base nas escolhas e necessidades dos clientes a longo prazo. A realização de acções de sensibilização pontuais não nos parece que faça sentido na medida em que a capacidade de retenção da informação nem sempre é a mais adequada. No fundo o projecto Átomo tenta ir de encontro às necessidades e expectativas de cada cliente, através de sessões quinzenais onde são abordados temas do seu interesse dentro da temática da sexualidade. Afinal, o que é a sexualidade? Existe uma definição muito completa sobre o assunto que normalmente aparece em todos os artigos referentes ao tema. No entanto, como gostávamos que este artigo não fosse mais um e que resumisse a sexualidade, não a algo que se pode remeter ao acto, mas remeter-se à dimensão relacional, à erótica e à relacional! Será que estamos a dar ideias? Não, nós simplesmente estamos a disponibilizar um serviço de apoio que responde a um direito invocado na “Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência”, que nos indica que todas as PCDI têm o direito à informação sobre esta temática. O leitor menos familiarizado com o tema poderá questionar-se sobre a necessidade da existência de um documento onde esteja escrito um direito básico. Mas é verdade; foi necessário criar um documento que preconizasse que as PCDI tinham também direito a casar, a ter uma família, no fundo a almejar algo que para pessoas sem deficiência, caso pretendam ter, é quase um facto garantido. Por partes, o porquê de informar? As PCDI têm o direito a ser informadas sobre o conhecimento do corpo, do seu e o do outro, dos riscos que determinados comportamentos podem acarretar, etc. No fundo, a sexualidade enquadra-se na grande temática da “Promoção da Saúde”. Se 185


tivermos a imagem que este tema se enquadra dentro das variáveis dos estilos de vida saudável como a alimentação, o consumo de substâncias nocivas (álcool, tabaco e drogas), e o combate ao sedentarismo, é bastante pacífica a abordagem do tema. Em nossa opinião, e seguindo a linha veiculada pela literatura, as PCDI são extremamente vulneráveis ao abuso. Daí a necessidade de estas serem capazes de identificar potenciais situações de abuso, saber dizer “Não” e denunciar estas situações. Muitos familiares alegam que estas pessoas não necessitam de qualquer informação do género porque tomam determinados métodos contraceptivos e daí estarem completamente protegidas. Ora, neste tipo de situação, essa rapariga/mulher, de facto, poderá estar protegida para uma eventual gravidez…mas, e as Infecções Sexualmente Transmissíveis e o Abuso? Outro dos temas bastantes referenciados quando se aborda esta temática é a questão da masturbação. Para muitas pessoas, infelizmente, a imagem de uma PCDI é de uma pessoa que se masturba com muita frequência e em qualquer sítio. Em relação a esse tema é importante analisar diversas variáveis: uma dela é facto de para algumas PCDI, não existir um espaço privado, isto é, estão constantemente supervisionadas. A ausência de situações em que se encontram em privado é tão escassa que não lhes deixa outra alternativa. Outra variável refere-se ao facto de muitas PCDI não saberem distinguir locais como socialmente incorrectos, o que nos leva a nós, cuidadores, a ter de lhes ensinar os locais mais indicados para o efeito. É obvio que, tal como outros comportamentos socialmente incorrectos, temos de relembrar constantemente a forma correcta de o fazerem. É claro que esta invasão de privacidade nos deixa pouco à vontade; no entanto, acima de tudo, deverá estar a protecção da privacidade do cliente. Devemos retirar o cliente do local público para um local privado. Existe também uma ideia enraizada de que as PCDI com maior grau de dependência se masturbam constantemente. Uma das razões justificativas deste tipo de comportamento foi anteriormente explicada e a outra prende-se com o facto da procura do prazer. Nesta situação é importante referir que todos nós procuramos o prazer, no entanto nem todos temos a mesma capacidade para apreciar o contexto da mesma forma. Se para pessoas sem défice cognitivo o prazer pode surgir de múltiplos estímulos como apreciar uma paisagem, uma obra de arte, comer algo, namorar, ter relações sexuais, socializar com o outro, etc., para uma pessoa com défice cognitivo a sua capacidade para apreciar é algo limitada. O que se encontra à sua volta muitas vezes pouco o influencia e o prazer encontra-se no seu próprio corpo, através da auto186


erotização. A falta de poucas actividades ocupacionais também poderá ser um incentivo à auto-estimulação. Aquilo que deverá ser preconizado será o de lhes proporcionar o máximo de experiência prazerosas para além daquelas que eles já conhecem. A estimulação dos 5 sentidos, a questão da afetividade, o toque, são pedras basilares no trabalho com esta população. E agora, quando uma PCDI necessita de se masturbar e não consegue, o que fazer? Alguém o deverá ajudar? E quem? Os cuidadores da instituição ou a família? Também gostaríamos ter certeza sobre a resposta a estas questões, no entanto ainda nos encontramos num dilema ético. Na Holanda, a situação já pode ser resolvida através da contratação de uma profissional do sexo especializada em proporcionar momentos de prazer a este tipo de população. O leitor menos familiarizado com o tema poderá ficar escandalizado com esta observação, mas o que queremos não é uma igualdade de oportunidade? Então quantas pessoas sem deficiência recorrem a esse tipo de serviços? Não querendo fazer juízos de valores sobre a legalidade, ou não, da profissão, na Holanda. Este tipo de serviço existe e o utilizador tem a plena certeza da segurança do acto. Outro grande tema prende-se com a dúvida se a população que apoiamos tem capacidade para casar, ter filhos, formar uma família. Relativamente a esta questão muito terá de ser analisado. O tipo de deficiência, o grau de capacidade para cuidar de si e do outro. É muito complicado dar uma resposta formatada para todos os casos. O que é importante referir é que a questão de ter filhos é uma situação que nos preocupa, na medida em que é um direito para uma PCDI ter filhos, no entanto, do outro lado, existe uma criança que ao vir ao mundo terá de ter todas as condições para desenvolver ao máximo as suas potencialidades. Se por um lado existe o direito das PCDI terem filhos, por outro existem os direitos das crianças de não serem resultado de um contexto pouco estimulante e potenciador da perpetuação do ciclo da deficiência. A propósito deste tema, o visionamento do filme “I‟am Sam”, protagonizado por Sean Penn e Michelle Pfeiffer, é um bom exemplo: por muito afecto que exista do pai com deficiência, o futuro da sua filha sem deficiência poderia ter sido posto em causa quando esta se recusa a aprender mais do que o seu pai. É óbvio que tratando-se de um filme, conseguiu-se solucionar uma situação intermédia, em que sem perder o contacto com a filha o Pai teve o apoio de uma família de acolhimento. No entanto, na realidade, os finais nem sempre são tão felizes. 187


Para muitas famílias, quando ouvem da boca dos seus familiares que estes têm uma ou um namorado, a preocupação atinge um pico incomensurável! No entanto, é importante tentar discernir o que é para essa pessoa ter uma ou um namorado! Para muitas PCDI é ter alguém com quem podem trocar carinhos, beijos e principalmente mostrar aos outros que têm um ou uma namorado (a) ou uma pessoa preferencial. Relativamente a esta questão existem mentes conservadoras que mencionam que é preferível vedar o acesso a este tipo de experiências sob pena de estes serem rejeitados. Tal como foi mencionado no ínicio deste artigo, a dificuldade por vezes é explicar o óbvio, e, como tal, assim como em todas as experiências interpessoais em pessoas sem deficiência, a aceitação e rejeição são factos mais do que evidentes, também nas PCDI. Para finalizar, algo que nos atormenta. O que fazer quando informamos as PCDI dos seus direitos enquanto casal e o contexto não o permite? Que angústia é ver casais com relações duradoras e plenamente conscientes das implicações de uma relação, quererem avançar para algo mais e não existirem espaços nem autorizações para tal! O que fazer? Como instituição, de momento não temos forma de contornar a situação, mas temos algumas ideias que poderiam passar pela existência de mais lares residenciais para casais que teriam no seu quarto a sua privacidade e necessitarem de apoio de terceiros para as tarefas básicas como a alimentação, higiene, etc. Pensamos que esta poderia ser uma situação intermédia entre o Sonho/Direito em vivenciar a sua sexualidade plenamente. Cabe-nos a nós, e ao leitor que agora acabou de ler este artigo, a responsabilidade de lutar para que estes sonhos sejam concretizados. Num país com baixa taxa de natalidade será que as pessoas deixaram de ter relações sexuais? Será que a sexualidade na sua dimensão erótica não está a ser negada às PCDI? Gostaríamos de dedicar este artigo a todas as pessoas que directa ou indirectamente contribuíram para o desenvolvimento do projecto Átomo, que em Portugal começa agora a ter o seu lugar, ao ser solicitado para dar formação às demais pessoas envolvidas no apoio às PCDI na edição de um manual de boas-prática. A todos eles um abraço e um voto de incentivo para continuarmos todos juntos a lutar por um direito básico das PCDI a vivência da sua sexualidade!

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CREDENCIAIS DE AUTORIA Maria Manuel Carvalho Educação e Formação Geral: Licenciatura em Desporto e Educação Física na Opção complementar de Desporto de Reabilitação e Reeducação pela ex- FCDEF- UP (2002);Mestrado em Ciências do Desporto na Especialização de Actividade Física Adaptada na área dos Estilos de Vida Saudáveis e Promoção da Saúde pela ex- FCDEF-UP. Dissertação de Mestrado com o Tema “Estilos de Vida e Autopercepções em Jovens com Deficiência Mental – Estudo de Caso - Centro de Formação e Emprego da CERCIAG” (2005); Certificado de Aptidão Profissional – Competências Pedagógicas para exercer a profissão de Formadora Certificado n.º EDF 18236/2003 DC. Experiência Profissional: Actualmente exerce funções, desde Novembro de 2012, como Técnica de Apoio Educativo no Serviço de Apoio, Psicologia e Orientação (SAPO) na Escola Profissional de Aveiro. Prestando apoio a alunos com necessidades educativas em diversas áreas de intervenção;Professora de Actividade Física Adaptada e Responsável pelo serviço de Actividade Física Adaptada da Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas de Águeda, C.R.L. (CERCIAG) de 2002 a 2012. Dando apoio nesta área a clientes do Centro de Formação e Emprego, Centro de Actividades Ocupacionais e Unidade Educativa;Membro fundador do projecto Átomo - Educação afectivo-sexual de pessoas com Deficiência – (2007/2012); Concepção e Implementação do projecto na CERCIAG; Realização de candidaturas a projectos de financiamento; Realização de Dinâmicas de grupo semanais com os clientes da CERCIAG; Dinamizadora do Projecto “Despertar Sensações”, projecto incluído de estimulação sensorial com clientes com maior grau de dependência; Realização de acções de divulgação/formação do projecto em contextos exteriores à instituição; Participação na concepção e edição do Manual de Boas Práticas “O Sexo dos Anjos, ou os Anjos sem sexo”. Dinamizadora de uma oficina de Malabarismo para pessoas com deficiência na CERCIAG (2005/2012); Coordenadora do projecto de Dança Inclusiva da CERCIAG (2010/2012). Contato: mcarvalho@epaveiro.edu.pt Acesso – Lattes: caso tenha

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JORNADAS MÍTICAS DO TORNA-SE PROFESSOR Eglê Betânia Portela Wanzeler

A construção do conhecimento A sexta jornada mítica do torna-se professores representa a etapa final de seu processo de formação. O tempo da V jornada para esta foi de dois meses. Ao todo esta jornada durou quatro semanas, realizada na disciplina Prática da Pesquisa Pedagógica II, cujo objetivo era orientar os alunos na elaboração da monografia de conclusão de curso. Esta disciplina representou a consagração de todo o processo formativo: construção do conhecimento. Um processo derivado por uma constelação de imagens, desejos e necessidades, reproduzidas no ato de pensar, sentir e de escrever, circunscrito na trajetória antropológica do tornar-se professor. Como na jornada anterior, os aprendentes estavam extremamente ansiosos. Esta seria a última disciplina do curso. Para mim, essa jornada representaria a concretização dos objetivos desse projeto de formação: juntar os fragmentos dos saberes construídos pelos aprendentes durante as cinco jornadas, dando-lhes uma unidade. Fazer essa antropologia dos saberes levou-me à criação de uma matriz de exploração epistemológica e metodológica de natureza transdisciplinar e complexa destinada a formação de professores. Com efeito, esses desafios estiveram presentes nas cinco jornadas deste percurso formativo e constituem-se como objeto de análise e de reflexão desta pesquisa. Resumidamente, as disciplinas Estágio Supervisionado e Prática da Pesquisa Pedagógica constituem-se como eixos teórico e metodológico da formação do professor pesquisador. As estratégias metodológicas que usei para o processo de ensino e de aprendizagem foi o Projeto Canoeiro. O Canoeiro foi inspirado nos quatro pilares da educação: aprender a ser, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a conhecer. Esses quatro pilares também foram responsáveis pela vivência de uma experiência transdisciplinar desse processo de formação, orientada pelos operadores da complexidade.

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Como última etapa da formação do Projeto Canoeiro40, esta jornada também pode ser vista como aquela que recuperou os tempos vividos das outras jornadas. Escrever sobre os seus próprios percursos, abrir os baús de suas memórias e traduzi-las em um texto acadêmico foi, de fato, um grande exercício cognitivo e emocional para os aprendentes. No entanto, eles já tinham caminhado mais da metade desse percurso, era o momento agora de dar significado à experiência, juntando os fragmentos deixados em suas escritas feitas ao longo desse processo. As jornadas míticas do tornar-se professor sofrerão o refinamento do tornar-se pesquisador. Na jornada anterior, os aprendentes ficaram com a tarefa de elaborar um relatório sobre a experiência da docência a ser me entregue logo no primeiro dia de aula. Esse dia chegou. E com ele, todo o início de preparação para o trabalho de conclusão de curso. Felizmente, todos os aprendentes me apresentaram o relatório, o que, de fato, colaborou com as atividades propostas para essa etapa da formação. Os aprendentes estavam visivelmente cansados e preocupados com essa disciplina. Apesar disso, havia neles uma certa leveza, um misto de vitória e de incerteza. “Finalmente, chegamos, professora. Chegar até aqui pra mim já me deixa muito alegre. Agora temos que transformar nosso trabalho em pesquisa, em ciência. Será que a gente consegue...?” (LUDI, 2008) Se já chegaram até aqui, não tem como não conseguir. Tudo já foi feito, agora é só uma questão de reorganização, disse ao aprendente. Como proposta metodológica dessa jornada, criei um roteiro de atividades que os aprendentes deveriam seguir: 1. Levantamento de todas as atividades realizadas no decorrer da disciplina Estágio Supervisionado (I, II, III, IV); 2. Leitura de todos os relatórios de estágios; 3. Elaboração de um roteiro desses relatórios, apresentando os principais pontos de análise dos mesmos; 4. Criar um sumário a partir do roteiro; 5. Fazer interligações entre as partes e o todo: organizar a monografia.

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Trata-se de um projeto pedagógico de formação de professores indígenas de natureza intercultural, desenvolvido ao longo de dois anos. O canoeiro foi fundamento pelos princípios da transdisciplinaridade e teve como ponto de partida e de chegada o contexto cultural dos aprendentes, seus mitos e seus saberes.

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Essas atividades foram realizadas em sala de aula. E, a partir delas, passamos ao processo de escritura da Monografia. Nesse caso, essa escrita foi o fio de ligação entre as partes – que, ao serem tecidas, dariam o formato de suas monografias – e o todo. Os quatro relatórios foram organizados e/ou tematizados da seguinte maneira: 1. Diagnóstico Escolar (Estágio I); 2. A Sala de Aula como objeto de pesquisa: etnografia da sala de aula (Estágio II); 3. O objeto da pesquisa entre a Teoria e a Prática (Estágio III); 4. Reflexões sobre a Docência: teoria, método e intervenção (Estágio IV). Com base nessa organização, os aprendentes foram orientados a construir suas Monografias. Disse um aprendente: “professora, então quer dizer que a gente... na verdade, nós já fizemos esse trabalho. Agora nós temos que organizar, dar uma sequência lógica a ele. Temos apenas que pegar tudo o que foi feito e fazer um único texto” (LENITA, 2008). Com efeito, todas as jornadas culminariam com esse momento. Essa foi a estratégia que usei a fim de conduzir essa experiência. Cada tema representaria um capítulo de suas monografias. Os temas deveriam ser recriados para atender as exigências e as especificidades dos projetos individuais. Como vimos, as dificuldades de aprendizagens dos aprendentes, suas fontes cognitivas e culturais implicadas no pensamento sensível, defrontaram-se com a linguagem da ciência ocidental e seus operadores técnicos. Com isso, o processo formativo sofreu uma série de conflitos, de contradições e de dificuldades de ensino e de aprendizagem. Em outras palavras, esse processo deparou-se com as dificuldades de comunicação entre as duas formas de operar a ciência: pensamento sensível e pensamento científico. O principal veículo dessa comunicação foi a escrita. Como vimos, a sala de aula era um lugar de sujeitos múltiplos, multiétnicos, falantes de várias línguas e, portanto, portadores de um universo mítico e cultural diferente dos saberes da ciência ocidental, mas sabedores dos mesmos. Eles reconhecem e diferenciam os saberes escolares, pois estes também compõem suas existências e fazem parte de suas culturas. No entanto, observou-se, que essa forma de reconhecimento foi construída, muitas vezes, de maneira equivocada. Sabemos que esses equívocos são, em larga medida, oriundos da formação escolar. É na escola que eles são construídos. Aprender a ler, a escrever, a contar, a interpretar e a refletir sobre o conhecimento são, em larga medida, responsabilidades da educação escolar. Portanto, essas dificuldades da formação, especialmente referentes ao processo de ensino e de aprendizagem, não residiram na diferença cultural, étnica ou nas formas 192


de operar o pensamento. Elas têm suas origens no processo de letramento ou alfabetização dos aprendentes. Nesse caso, encontram-se nos domínios sociolinguísticos da língua portuguesa. Ou seja, os aprendentes não foram bem alfabetizados nesta língua, portanto, suas dificuldades de tradução, produção e interpretação de texto se explicitam. Logo, não se trata de um problema étnico-cultural, mas um problema de linguagem e de aprendizagem. No entanto, o nível de letramento/alfabetização, aliado às diferenças de linguagem e de pensamento, tornou o processo formativo mais difícil ainda. Mas, por outro lado, essa dificuldade colaborou para inserção de uma prática pedagógica transcultural. Reconheci nos operadores cognitivos do pensamento sensível um caminho possível para a vivência de uma prática de ensino e de aprendizagem dialógica, inspirada no pensamento mítico dos povos indígenas e no seu modo de operar o pensamento, sem, no entanto, perder as referências do pensamento científico. A partir dessas referências cognitivas foi se construindo o imaginário da pesquisa dos aprendentes. A aprendizagem ancorada nas experiências míticas e culturais dos aprendentes, tornou-se mais significativa e, consequentemente, o ensino mais humanizado, visto que se realizou respeitando as leis dos vivos, com seus contextos e seus sistemas de referenciais existenciais e culturais. A aliança entre a ciência do concreto e a ciência ocidental, respectivamente, entre o pensamento sensível e o pensamento científico, permitiu a renovação do ensino e deu um significado a aprendizagem. O ofício de aprender é um processo longo e dura por toda a vida. O ofício de ensinar também, visto que não há ensino sem aprendizagem e nem aprendizagem sem ensino. A tarefa do educador/professor está em abrir caminhos para que os educandos possam se perceber no mundo e exercer sobre ele processos de mudanças e transformação social, cultural, política e econômica. Cabe aos educadores revelar ao aprendente o seu potencial de aprendizagem, as potencialidade de atualizações, e de estabelecer relações que nós possuímos enquanto seres vivos. (...) Atualmente, no mundo inteiro se impõe a urgência de uma verdadeira alfabetização, que consiste em compreender – e em escrever – o livro do meio ambiente, o livro dos outros e o livro de si mesmo. (TROCMÉ-FABRE, 2004, p.13-14. Grifos da autora)

Trocmé-Fabre, com essa citação, me instigou desde o início desta experiência a procurar estabelecer relações entre as lógicas dos viventes (aprendentes) e o conteúdo da aprendizagem. O lugar da formação, a sala de aula, possui características 193


multiculturais e pluriétnicas. Conhecer o universo cosmológico e cosmogônico dos sujeitos da aprendizagem foi o primeiro passo para o desenvolvimento do processo formativo. Fazer com que os aprendentes compreendessem seus mundos e estes serem vistos como conteúdo de ensino e de aprendizagem foi fundamental para que eles potencializassem suas aprendizagens e para que estas fossem desenvolvidas de forma criativa e significativa. Essa dialogia de saberes de diferentes lógicas implicou na construção de uma linguagem sensível, desenvolvida pelo poder da escuta, da espera e da paciência. Significou também a ruptura com o tempo cronológico (chronos), substituído pelo tempo da existência (kairos), pois abarcou a temporalidade do vivido, do momento oportuno. Entramos numa nova etapa: a organização da escrita. Nessa etapa, chronos e kairos conduzem o percurso. E, entre conflitos, tempos de espera, de entrega e de decisão, realizamos a travessia. O Canoeiro, enfim, aportou. O que não representou o fim, mas o início de uma nova travessia. Organizar a escrita significou reordenar as experiências. O reordenamento das experiências implicou recuperá-las em seus diferentes tempos. Para muitos aprendentes, essa foi uma tarefa fácil, para outros, um processo difícil. Muitos se valeram de orientações de professores de outros cursos, outros recorreram aos colegas ou amigos já formados. Alguns aprendentes entendiam a monografia como relatório que deveria conter: memorial, quadro teórico, metodologia e resultados. Eles copiaram esse modelo, na tentativa de antecipar o trabalho que estava por vir ou muitas vezes para não terem trabalho. Isso acarretou uma série de conflitos, pois, nesses relatórios, suas experiências do estágio não apareciam. Na verdade, eles perderam seus relatórios de estágios e recorreram a essa estratégia. Mas foram surpreendidos quando viram que a orientação era outra. Eles tiveram que recuperar os trabalhos perdidos e, em alguns casos, refazêlos. Entre tempos e contratempos, a orientação seguiu.

A bricolagem: os entornos e contornos de uma aprendizagem contingencial e necessária A formação do professor pesquisador, conduzida pelas disciplinas Estágio Supervisionado e Prática da Pesquisa Pedagógica realizou-se dentro de um contexto sociocultural específico que exigia mudanças no processo de orientação pedagógica. A lógica da ciência ocidental, projeto da escola Normal Superior, para formação de 194


professores-pesquisadores não coadunava com a lógica dos viventes. Como vimos, os aprendentes sentiam muitas dificuldades em aprender dentro dessa lógica e ao mesmo tempo apresentavam dificuldades de linguagem no processo de reconhecimento e tradução dos conceitos e métodos da ciência ocidental. Decifrar os códigos da língua portuguesa, dar significados aos conceitos, categorias ou conteúdos das disciplinas, foi, de fato, um grande problema ao processo de ensino e de aprendizagem. Os aprendentes nasceram e se desenvolveram fazendo uso de outras línguas, linguagens e culturas. Levá-los a construir conhecimentos orientados pelos operadores científicos ocidentais, portanto, tornou-se outro problema. Como romper com essa lógica sem perder de vista suas referências? Como desenvolver um projeto de formação que levasse em consideração as duas lógicas: lógica científica e lógica dos viventes/aprendentes? Lévi-Strauss (1989), em sua análise sobre a ciência do concreto, apresenta os meios pelos quais essa ciência é construída. Trata-se da bricolage, definida como o modus operandi da reflexão mitopoética. O bricoleur realiza seu trabalho pela ausência de um plano preconcebibo, ou seja, ele não necessita de um projeto que delimite linearmente causa, meios e fins. A bricolagem se faz por meio de uma razão prática, de um fazer prático, no qual o bricoleur se utiliza de meios já disponíveis para executar um grande número de tarefas. O resultado de suas pesquisas é contingente e sempre renovável. Ele opera por meios de signos e estes são sempre limitados. Ao contrário do cientista, que opera por meios de conceitos que são ilimitados. Foi inspirada nessa forma de operar o pensamento que elaborei essa proposta de formação vinculada e orientada ao mesmo tempo pelo pensamento mágico e pelo científico. Já na primeira jornada essa metodologia se explicita. Nela, abri mão indiretamente do modelo padrão de fazer ciência, deixando de lado a construção do projeto de pesquisa, enquanto ferramenta que antecede a produção do conhecimento. Considerei o professor-pesquisador como bricoleur, aquele capaz de fazer seu caminho de pesquisa a partir de um conjunto de peças singulares, mas deve, assim como um artista, ultrapassar o limite do concreto, abrindo passagem para o novo, elaborando questões cujas respostas ainda não foram dadas. Com isso, ele pode confeccionar algo que é material, mas ao mesmo tempo é também conhecimento (LÉVI-STRAUSS, 1989). Num certo sentido, inverte-se a relação entre diacronia e sincronia: o pensamento mítico, esse bricoleuse, elabora estruturas organizando os fatos ou os resíduos dos fatos, ao passo que a ciência, “em marcha” a partir de sua

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própria instauração, cria meios e seus resultados sob forma de fatos, graças às estruturas que fabrica sem cessar e que são suas hipóteses e teorias. Mas não nos enganemos com isso: não se trata de dois estágios ou de duas fases da evolução do saber, pois os dois andamentos são igualmente válidos. (LÉVISTRAUSS, 1989, p.37. Grifos do autor)

Lévi-Strauss insere a arte entre o pensamento sensível e o pensamento científico. A arte como elemento que possibilita a aproximação entre essas duas formas de operar ciência permitiria não apenas a renovação científica, mas transformaria o objeto do conhecimento em uma experiência sensível, dando a ele uma estética prazerosa de descoberta e de significação. a arte se introduz a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico; pois todos sabem que o artista tem, por sua vez, algo do cientista e do bricoleur: Com meios artesanais ele confecciona um objeto material, que é, ao mesmo tempo, um objeto de conhecimento. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 43)

Ao longo de dois anos, os aprendentes inventariaram uma série de dados sobre a escola, a cultura escolar, a sala de aula, a prática do professor, os problemas de ensino e de aprendizagem e as dificuldades dos alunos. Foi com esses dados, adquiridos etnograficamente, que eles construíram seus objetos de conhecimento, levantaram questões, teorias, conceitos, métodos e construíram as estratégias de pesquisa. A bricolagem como proposta de construção de conhecimento se configurou entre os dois níveis estratégicos da ciência: o primeiro apoiado pela experiência sensível da intuição, do imaginário e da contemplação do objeto de investigação – pensamento sensível. O segundo orientado pela etnografia, pelo registro escrito da realidade observada, assegurado pelos os conceitos e técnicas – pensamento científico. Os dois níveis encontraram-se numa mesma realidade, comunicando-se de forma dialógica e recursiva. Esse fazer da bricolagem pode ser comparado ao fazer da alquimia, no sentido que o termo se propõe como transformação de substâncias. Metaforicamente, o fazer monográfico pode ser entendido como um processo de manipulação de palavras, transformando-as e dando a elas uma polissemia de significados e sentidos, além de permitir a liberação da alma, aprisionada pelas e nas palavras, ativando as possibilidades imaginativas no processo de construir conhecimento. As palavras criam objetos, que por sua vez recriam as palavras. As palavras produzem conhecimento, mas é também seu produto. Como nos lembra Bachelard:

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A alquimia é uma cultura íntima. É na intimidade do sujeito, na experiência psicologicamente concreta, que ela encontra a primeira lição mágica. Compreender, em seguida, que a natureza opera magicamente é aplicar ao mundo a experiência íntima. É preciso passar pela magia espiritual na qual o ser íntimo sente sua própria ascensão para compreender a valorização ativa das substâncias primitivamente impuras e conspurcadas. Um alquimista, citado por Silberer, lembra que só fez progressos em sua arte no momento em que percebeu que a natureza age de forma mágica. Mas é uma descoberta morosa; é preciso merecê-la moralmente para que ela ilumine, depois do espírito, a experiência. (1996, p.66. Grifos do autor)

Percebi que para que os aprendentes conseguissem desenvolver suas pesquisas, teriam de, primeiramente, entrar em contato com seu próprio mundo, natural e cultural. Fiz isso por meio dos mitos, entendidos como experiência do sentido e do conhecimento (ver Primeira Jornada). Entendia, concordando com Bachelard, que a experiência psicológica devia ser acompanhada pela experiência material, concreta, intuitiva e pessoal (BACHELARD, 1996, p.67). A construção da monografia, nesse sentido, foi feita nessa comunhão entre a magia e a ciência. Daí a importância do contato com o universo da pesquisa – a escola, antes da definição do objeto de investigação. Somente a partir dele eles tiveram condições de definir seus problemas e objetivos de pesquisa. Foi preciso primeiramente instaurar a experiência do vivido e do sentido para que eles pudessem dar significado à pesquisa e, consequentemente, construir seus textos escritos, pois estes só ganhariam significados quando aplicados a um contexto de produção. Significa dizer que a monografia foi uma experiência íntima, existencial, espiritual e concreta, transformada de forma objetiva em conhecimento. Nasce no imaginário, mas se materializa em objeto de conhecimento. A escrita representaria o instrumento de mediação entre esses dois universos: científico e mágico. É nesse sentido que a monografia representa uma escrita do ser, de si, do mundo e da vida. Escrevê-la é de certa forma é escrever a si mesmo. Com esse processo, os aprendentes foram construindo suas fontes, coletando dados e analisando o objeto. Como vimos nas jornadas anteriores, eles se valeram do registro etnográfico, de entrevistas aos sujeitos da escola: professores, alunos, gestores, pedagogos, agentes administrativos. Esse contato com o campo empírico da pesquisa foi fundamental para a realização das outras etapas do trabalho pedagógico e da pesquisa. Dele se retirou questões e com ele se estabeleceram processos, estratégias de investigações e de intervenções futuras. A leitura de teóricos relacionados aos temas de pesquisa também se inseriu nessa experiência. As teorias foram manipuladas do mesmo modo como foram os dados 197


concretos. Elas representaram um dado sobre o objeto ou sobre realidade e os aprendentes as usavam ora para validá-lo, ora para discordar. Eles não as entendiam como possibilidade de reflexão sobre os dados da realidade, mas sim como um dado da realidade a ser refletido (ver Jornada IV). Um exemplo desse processo é texto de Sol41 em que ela faz uma reflexão sobre o seu objeto de pesquisa a partir da leitura dos teóricos. Primeiro ela faz a referência: Com o objetivo de favorecer o desenvolvimento da oralidade, o professor deve reservar um tempo, em sua sala de aula, para que os alunos contem e comentem os fatos que acontecem com eles; para conversar sobre ideias polêmicas; para que os alunos descrevam, por exemplo, o processo de construção de uma casa, as partes de uma planta, uma brincadeira infantil; para pedir que o aluno faça dramatização sobre história conhecidas sobre situações do cotidiano (caçada, pescaria, festas tradicionais...) ou sobre situações imaginárias (um problema de saúde, uma situação de compras e vendas, uma conversa ao telefone ou pelo rádio, uma solicitação de informação na polícia, no banco. (sic) (RCNEI apud SOL, 2008, p. 28)

Em seguida, faz a reflexão: Não podemos dizer que a criança tenha facilidade de aprender a ler e escrever, na escola o professor deve expressar com clareza as atividades de leitura e escrita, para os alunos perceberem que é útil para sua própria vida, revelando interesse onde o aluno se tornara um bom leitor (sic) A criança que mora na cidade já entende ao chegar à porta de uma padaria, já ver uma linguagem escrita em frente de uma loja, em frente o banco, há um grande estímulo para que elas comecem a se interessar pela leitura e escrita. (sic) “O desenvolvimento da língua escrita sua competência oral vai se desenvolvimento natural e tranquilamente, na medida da sua necessidade de uso da linguagem. (RECNEI, 2005, p. 134)

Com uma coletânea de dados concretos, fragmentos elaborados em cinco jornadas, os aprendentes desenvolveram suas pesquisas e conseguiram construir conhecimento. A monografia estava sendo construída, desde o princípio, dessa experiência de formação. Chegara o momento de fazer a bricolagem, de juntar os fragmentos e dar a ele um significado de ciência. Manipular dados empíricos e teóricos foi um trabalho demasiadamente cansativo para os aprendentes. Orientá-los na confecção desse trabalho também não foi uma tarefa fácil. O resultado dessa experiência de construção de conhecimento orientada pelos

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Sol é o nome fictício da aluna. Em todas as citações dos trabalhos dos alunos me vali desse recurso a fim de evitar constrangimentos futuros.

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operadores da complexidade e implicada na dialogia entre o pensamento sensível e científico foi um conhecimento etnopoético: aquele que é instruído e construído pela e na experiência do vivido e pela reflexão mitopoética e que incluem as ferramentas cognitivas do fazer científico ocidental: objetivos, teoria e metodologia. Sob o ponto de vista mitopoético, a construção da monografia representou o caminho percorrido pelos aprendentes nas jornadas do tornar-se professor. Essas jornadas de formação são entendidas como narrativas míticas dos indígenas rumo à escolarização. Significa dizer que, ao considerarmos as jornadas como experiências míticas, pois foram construídas por meio de uma aprendizagem biográfica, não perdemos de vista as condições bioantropológicas das quais fazem parte os aprendentes. Nesse caso, foi preciso considerá-los também como sujeitos do conhecimento, reintegrando-os ao conhecimento ao qual foram (des)integrados. Necessitamos, portanto, reintegrar e conceber o grande esquecido das ciências e da maioria das epistemologias; enfrentar, sobretudo aqui, o problema incontornável da relação sujeito/objeto. Não se trata de modo algum de cair no subjetivismo, mas, ao contrário, de encarar o problema complexo em que o sujeito cognoscente, permanecendo sujeito, torna-se objeto do seu conhecimento. O sujeito reintegrado não é o Ego metafísico, fundamento e juiz de todas as coisas. É o sujeito vivo (...), aleatório, insuficiente, vacilante, modesto, que menciona a sua própria finitude. Ele não é o portador da consciência soberana que transcende os tempos e os espaços: introduz, ao contrário, a historicidade da consciência. (...) (MORIN, 1999, pp 30-31. Grifos do autor)

Embora, concordando com Morin (1999), o conhecimento seja, de fato, construído em condições históricas, sociais, culturais e ecológicas específicas, porém, é preciso refletir sobre como essas condições foram circunscritas no processo de construção do conhecimento dos aprendentes e quais os efeitos delas nesta construção. Como vimos nas jornadas anteriores, esse processo foi desenvolvido em torno das dificuldades da escrita, da produção textual e da tradução e interpretação da leitura na língua portuguesa. Aliado a isso ainda encontramos as diferenças étnico-culturais e a diversidade sociolinguística, responsáveis pela forma de organização dos pensamentos dos aprendentes. Portanto, as dificuldades oriundas da linguagem refletiram na comunicação entre os saberes científicos e culturais e esta refletiu na construção do conhecimento, infletindo direta e indiretamente no processo de ensino e aprendizagem, perfazendo todo percurso formativo. O processo de ensino e de aprendizagem sofreu a ação dessas 199


condições bioantropológicas. Mas estas também sofreram a ação desse processo. As formas pelas quais essas condições interferiram no processo de formação são assim destacadas: 1. Diversidade linguística: a sala de aula foi um lugar marcado pela diversidade de línguas, portanto, pela diversidade na forma de operar o conhecimento. Apesar de a língua portuguesa ter sido o veículo principal de comunicação nesse processo de formação, ela não assegurou a aprendizagem dos aprendentes no que se refere à assimilação dos conteúdos de ensino. Ainda que os aprendentes sejam falantes da língua portuguesa, suas formas de operar o pensamento possuem vínculos estreitos com suas línguas maternas. Eles aprenderam a pensar a vida, o mundo, a natureza e a si mesmos com suas línguas originais. Significa dizer que, sob aspectos biocognitivos, suas aprendizagens estão atreladas às suas línguas e às suas experiências de vida e da cultura. Como vimos, a aprendizagem da língua portuguesa se realizou sob a pressão do catequismo e das escolas cristãs. Nelas os aprendentes foram forçados a abandonar, ainda que não totalmente, suas línguas e a falar apenas o português. E entre o falar e o pensar, um problema: tradução e a comunicação. Um problema que recriou a linguagem e a cultura e que produziu um sotaque estrangeiro a fala dos aprendentes, bem como uma escrita marcada pela oralidade. Também dificultou o acesso aos conteúdos disciplinares e, consequentemente, a aprendizagem se desenvolveu de forma, muitas vezes, deformada. E foi na escrita que esses problemas se potencializaram. Historicamente, o processo de alfabetização dos índios na língua portuguesa parece ter sido fortemente marcado pela aprendizagem da língua falada. Saber falar o português sobrepôs o letramento. A escola não conseguiu, em larga medida, realizar uma prática pedagógica capaz de desenvolver um processo de ensino e de aprendizagem satisfatório, pois as dificuldades de aprendizagem dos aprendentes recaíram basicamente sobre o letramento. Eles não tinham o domínio dos códigos sociolinguísticos da língua portuguesa. Apresentaram dificuldades de leitura e de escrita, bem como de interpretação e tradução dos conteúdos de ensino. Os aprendentes entendiam que o fazer científico, a pesquisa, tinha relação direta com a lógica científica ocidental. Eles pretendiam um ensino voltado para essa lógica. No entanto, suas dificuldades, por estarem implicadas 200


diretamente no letramento, não permitiram uma compreensão correta desse modelo. Foi uma questão de interpretação, tradução e comunicação, que se circunscreveu na ordem do desejo. O desejo mimético dos aprendentes era voltado para o modelo da ciência ocidental e foi responsável por uma série de conflitos nesta formação (ver Quarta Jornada). Produzir conhecimento nessas condições levou-me a reconstruir a proposta pedagógica pensada para as disciplinas e a romper com o modelo o padrão de fazer ciência. O programa disciplinar falhou. Isso acarretou a construção de novas estratégias (ver Jornadas I e II). Para Edgar Morin: A estratégia supõe a aptidão do sujeito para utilizar, pela ação, os determinismos e acidentes exteriores e pode-se defini-la como método de ação próprio a um sujeito em situação de jogo (...) em que, para alcançar os fins, deve-se submeter-se ao mínimo e utilizar ao máximo os limites, as incertezas e os acasos do jogo. O programa é predeterminado nas suas operações e, nesse sentido, “automático”; a estratégia é predeterminada nas finalidades, mas não nas suas operações. (...) ( MORIN, 1999, p. 71).

Foi

necessário,

primeiramente,

comunicar-me

com

o

universo

antropológico dos aprendentes, dialogar com suas lógicas de pensamento e, a partir

delas,

encontrar

uma

possibilidade

de

ensino

inspirada

na

transdisciplinaridade e na complexidade, instaurando a experiência sensível nesse processo de ensino e de aprendizagem. O diálogo com os operadores cognitivos dos aprendentes indígenas permitiu a inserção do conhecimento mítico no conhecimento científico e deste no mítico. Essa comunicação entre as duas lógicas permitiu que os aprendentes tomassem consciência de suas referências bioantropológicas, responsáveis por suas formações enquanto sujeitos, e das referências científicas, responsáveis pelas suas reconstruções subjetivas e objetivas. O resultado dessa comunicação foi a construção de uma escrita instruída por uma linguagem mestiça reunida pelos saberes indígenas e pelos saberes científicos e construída nos entre-lugares da cultura. Pois, é preciso ressaltar que essas condições de aprendizagens foram favorecidas pela inserção dos aprendentes no contexto das próprias condições de produção do conhecimento: a escola. É na escola que o conhecimento começa a ser registrado, descoberto e reconhecido. Foi o exercício etnográfico que permitiu que a escrita evoluísse, se 201


desenvolvesse e organizasse o pensamento. A escrita ao educar o pensamento, organizou o conhecimento que por sua vez renovou o pensamento sobre a realidade. A diversidade linguística foi, portanto, uma condição primordial para que o conhecimento e a escrita do conhecimento fossem significados e apreendidos pelos aprendentes. 2. Diversidade étnicocultural: encontramos na sala de aula uma diversidade de etnias e de culturas. Nessas condições o ensino e a aprendizagem precisaram ser dinamizados a partir dos contextos socioculturais dos aprendentes. Os conteúdos culturais das diferentes etnias no contexto da produção do conhecimento atravessaram a dinâmica do processo de construção da escrita do conhecimento. O encontro entre as diferentes culturas e etnias provocou processos de fricções interétnicas que desestabilizaram, em larga medida, a formação (ver Jornada V). Esses processos vão interferir diretamente não apenas na construção do conhecimento, mas também na sua compreensão. Os aprendentes orientaram seus pensamentos a partir dos conteúdos culturais de suas etnias. Esses conteúdos são influenciados pelas relações interétnicas e estas foram trazidas à sala de aula originando os conflitos entre os aprendentes. São esses conflitos que irão determinar os lugares dos sujeitos na aprendizagem e também no ensino. Isso foi observado no Estágio de Docência IV, quando as equipes foram formadas. Vimos que elas se organizaram em torno de suas origens étnicas, seja em comum ou por proximidades. Os conteúdos de ensino foram selecionados obedecendo a hierarquia da sabedoria dos mais velhos. Não se trata de uma hierarquia dos saberes, mas de uma hierarquia dos que sabem e dos que podem dizer. O conhecimento oriundo dessas e nessas condições conduziram uma prática formativa transcultural. As diferentes culturas presentes na sala atravessaram o conhecimento, mas foi para além dele e ao serem introduzidas nele provocaram sua emancipação. Nesse sentido, o conhecimento se transforma e ganha contornos culturais específicos, que, ao serem transportados didaticamente para a sala de aula, provocaram a ressignificação do processo de ensino e de aprendizagem. 3. Tempos, temporalidades e história: notadamente, o processo formativo dessa experiência é marcado por tempos múltiplos, representado pelo ciclo do dia, da noite e das horas, pela duração e pela existência e experiência do sentido. Tratase de um tempo biológico, individual, social e existencial. O tempo biológico é 202


aquele marcado pela experiência do dia, da noite, das horas e é sentido de forma diferente por cada pessoa ou sociedade; o tempo individual diz respeito ao tempo do sujeito e suas características próprias de estar no mundo, pois cada pessoa tem um biorritmo próprio; o tempo social diz respeito ao tempo destinado ao estudo, ao lazer, a família. Sofre influência do modelo de sociedade, de sua relação com o mundo do trabalho; o tempo existencial representa o tempo da vida e da existência humana. É o tempo vivido, sentido e experienciado (PINEUA, 2003). Os três encontram-se implicados mutuamente e sofrem a ação da flecha do tempo e da sua irreversibilidade. Tudo caminha pelo tempo e no tempo se transforma e se dissipa. De acordo com Prigogine, os sistemas vivos são auto-organizadores, se formam a partir de estruturas dissipativas que ocorrem longe do equilíbrio. As estruturas dissipativas se caracterizam por uma nova coerência associada com interações a longo prazo e com a quebra de simetria (...). O aparecimento das estruturas dissipativas ocorre em “pontos de bifurcação”, onde novas soluções das equações não-lineares da evolução se tornam estáveis. Temos em geral, uma sucessão de bifurcações que conduz a uma dimensão de historicidade. (PRIGOGINE, 2001, p.28)

As estruturas dissipativas são organizações espaço-temporais surgidas a partir de flutuações, essenciais para o aparecimento de pontos de bifurcações. Nota-se que são nesses pontos, geradores de acontecimentos, que fazemos escolhas e definimos valores (PRIGOGINE; 1996; 2002). Se entendemos a formação como um sistema aberto, logo, este é movimentado por fluxos de energia e matéria, o que implica instabilidade, que pode gerar novas estruturas (PRIGOGINE, 1996). É nesse sentido que podemos afirmar que o processo de transformação ocorrido pelo e no tempo, são determinados pelas flutuações do sistema e pelas bifurcações que delas derivam (PRIGOGINE, 1996). Pode-se afirmar que o sistema de formação está fundamentalmente implicado na experiência do tempo, veículo organizacional dos sistemas vivos. Por outro lado a experiência do tempo como elemento organizador dos processos de ensino e de aprendizagem, ou seja, da formação, também será influenciada pela experiência mítica do estar do mundo, que é atemporal. E por ser assim, o tempo foi constantemente revisitado, recuperado ou revivido. O tempo da aprendizagem foi diferente do tempo do ensino. Ele obedeceu a lógica 203


dos aprendentes, que se apropriaram do tempo da formação de maneira diferente. Cada aprendente tinha um ritmo próprio de aprender.

Logo, o

aprender é um constructo do tempo, que também é um constructo individual, social e existencial. Para ilustrar essa compreensão trago como exemplo a história de vida de Sol Miriti-Tapuia. Sou filha de pai indígena e mãe não-índia. Nasci no Rio de Janeiro em 1959 e aos seis anos de idade, quando meus pais se separam, retornei com o meu pai para São Gabriel da Cachoeira, onde estudei durante um ano no Colégio São Gabriel. Em 1967 mudei para Distrito de Tarumã e logo em seguida fui para a Comunidade Vila Nova no Rio Tiqué. Nesse lugar eu tive que aprender a conviver com esse povo. Tive que aprender a língua deles, a comer a comida deles, os Tukano. Um ano depois ingressei na missão Salesiana de Tarumã, onde encontrei muitas dificuldades nas relações sociais da escola, pois não sabia falar a Língua Tukano, minha língua materna era o português. No entanto, como maioria dos colegas falava o Tukano e sentia dificuldades de falar o português, fui muito judiada. Eles não gostavam de quem falasse português. Os colegas me judiavam muito, era um povo muito bravo, me batiam, me empurravam. Os indígenas maltratavam quem falava o português. O que fez com que eu desistisse de estudar na terceira série do ensino fundamental em 1971. Minha mãe morreu. Meu pai morreu também. Eles não me deixaram parentes. Não tenho tio, tia, avós. Me criei no mundo. Acho que o mundo me criou também. E eu acabei criando meu mundo. Fui crescendo longe da escola. Somente vinte e dois anos depois voltei a estudar, já era 1993. Já estava morando em São Gabriel da Cachoeira e me matriculei no Programa PETI onde conclui a 4ª série, depois fiz Ensino Fundamental - 5ª a 8ª série. Em 2000 entrei no Ensino Médio através do Programa Telecurso 2000. Aí eu fui fazendo as provas e passando. Foi quando apareceu a UEA. Em 2005 entrei na Faculdade, onde tive muitas dificuldades, pois eu só tinha o acadêmico. Não aprendi escrever direito o português, eu só falava. Não sei como eu passei de ano, nem como entrei na faculdade. Não entendia as palavras da apostila. Eu fui fazendo e aprendendo e cheguei até aqui... Me casei, tive filhos, fiz concurso público, passei, fiz vestibular depois e passei, tudo junto. Foi uma grande mudança na vida quando terminei a escola. Também me separei do meu marido, ele bebia muito e me batia algumas vezes. Daí me cansei dele, me separei. Hoje eu estou muito bem, estou melhor. Mas eu comecei muito tarde, já era velha. Minha dificuldade de aprendizagem vem muito disso. Fiquei muito tempo sem estudar, sem ler nem escrever. De repente me vi numa faculdade, onde escrever era o principal. Não sabia escrever aquilo que eu pensava. Isso tudo demorou, foi muito difícil pra mim. Também não sabia falar o que eu pensava ou que os autores diziam. Tinha dificuldade de interpretar as coisas. Para mim, fazer etnografia foi muito importante, porque eu tinha que escrever. No início foi difícil escrever, mas depois eu fui indo até... Hoje sou professora... Tenho cinquenta anos. (SOL, Miriti-Tapuia. Entrevista cedida a Eglê Wanzeler, 2009. Grifos meus). 204


A história de vida de Sol é marcada por intensas flutuações, muitas idas e vindas. A escola foi uma bifurcação e representou um lugar de sofrimento, violência, mas também de transformação e de crescimento. Ela ficou vinte dois anos sem estudar, sem ter contato com leituras e escrita. Esse tempo sem dúvida repercutiu na sua aprendizagem. A aprendizagem de um adulto não se processa do mesmo modo que a de uma criança. Ele já carrega um mundo de vidas, de escolhas, de conhecimentos que precisam ser recuperados nesse processo, para que a aprendizagem seja, de fato, significativa. Ele já construiu sua ancoragem cultural de compreensão da vida e das coisas da vida, de valores e de escolhas e opera a partir delas. Vejamos esse processo na história de Ludi Tariano. Eu sou Luis Aguiar Kuenaka da etnia Tariano natural da comunidade Vila São Pedro do distrito de Iauareté denominado Boca do Cachorro, filho do Senhor Antônio Nicolau Aguiar Kuenaka da etnia Tariano e, da dona Amazonina Campos Nhama Phakó natural da comunidade Ananás Ponta do rio Waupés da etnia Piratapuia. A maior parte da minha infância foi à vida de aventureiro dediquei mais na Colômbia conhecendo outra realidade, e outras culturas diferentes, dificultando a minha comunicação, fiz muito esforço para acompanhar e entender linguagem dos meus colegas da época, a multilíngüe acomodou mais respeito na minha formação para crescer juntos com eles, são com os costumes diferentes no momento de dar o nome de cada objeto. Em mil novecentos e setenta e um retornei da Colômbia com onze anos de idade, neste mesmo ano fui matriculado na primeira série do ensino fundamental na escolhinha da Comunidade Santa Maria situada na margem direita do Rio Papuri do distrito de Iauareté conheci novos colegas, a minha primeira professora ensinou-me a ler e escrever as primeiras palavras as pronuncia corretas. Encontrei dificuldade na escrita e na leitura a linguagem era só tucano na sala de aula, quanto à professora falava português para os alunos seguirem a mesma linha de aprendizagem, devagar fui aprendendo até conseguir identificar o formato da letra. Em mil novecentos e setenta e dois estudei na Escola de 1º Grau São Miguel na época existia um decreto nº 1212/68 de 10.09.68 criado pelo Governo do Estado do Amazonas, para os alunos era um grau de estudo muito elevado. Neste ano conhecia os alunos de várias etnias, a sensibilidade foi um pouco estranho na conversa na sala de aula, e na hora do intervalo no do recreio sempre procurei respeitar e valorizar as diferenças culturais dos meus colegas. Em mil novecentos e setenta e nove conclui a oitava série, tive bons professores da minha raça indígena, sempre procuravam de entender a dificuldade de cada aluno, foram rígidos, mas valeu muito para minha aprendizagem e da formação, outros formadores da educação estão na memória, já faleceram, mas os frutos ainda continuam na batalha para formarem melhores alunos. Em mil novecentos e oitenta e sete com a finalidade de continuar meus estudos para minha formação fiz via ensino supletivo o curso de 2º grau com habilitação para o magistério de 1º Grau de 1ª a 4ª série, 205


os meus professores foram compreensivos dedicavam completamente valorizando a educação, na aula teórica com o dialogo dos meus colegas de estudos, e na troca de idéias aperfeiçoei o meu conhecimento, dando a importância da educação com as crianças nas séries iniciais do ensino fundamental. Na aula pratica no primeiro momento a acolhida foi bom, devido os formadores ensinavam como fazer com os alunos ao entrar na sala de aula. A troca de experiência com os colegas no momento de preparação de materiais didáticos para o dia seguinte foi excelente, os orientadores acompanhavam sempre aos alunos no momento das atividades para poder avaliar. Nestes três anos de conhecimentos, aprendi dos meus colegas realmente a importância da educação, quantos os formadores orientavam sempre a formação do aluno completa diante da sociedade não envolvente e do envolvente sempre acompanhando o mundo globalizado. Em mil novecentos e oitenta e nove, conclui com novo conhecimento para educação, desde daquela época fui entendo a importância do aluno para ter educação de qualidade. Em mil novecentos e noventa e seis fiz curso, Quarto Adicional no Município de Santa Isabel do Rio Negro com a finalidade de aumentar meus conhecimentos para ministrar as aulas das 5ª a 6ª série do ensino fundamental nas áreas de Estudo Sociais, os professores experientes de cada disciplina ensinavam como pode ser desenvolvido com os alunos na sala de aula o assunto de qualquer área para alcançar o objetivo, estas trocas de idéias com diferentes culturas foram excelentes aperfeiçoei novos conhecimentos com os professores de vários municípios, perguntavam no trabalho em grupo como orientador incentivava o aluno para alcançar o objetivo de acordo o planejamento. Os mais experientes professores colocavam com vários exemplos na sala de aula o trabalho executado de acordo a capacidade do aluo. A minha formação como professor começou quando fiz estágio na Escola São Miguel no Distrito de Iauareté nas séries iniciais de 1ª a 4ª série no ensino fundamental, a gestora sempre dava visto o plano de aula antes o estagiário entrar na sala de aula, as minhas atividades foram preparadas com atenção de acordo com o nível do aluno para ter assimilação e habilidade no trabalho, no exercício e nas outras atividades na sala de aula. Em mil novecentos e oitenta e seis, fui contratado pela gestora da Escola São Miguel para trabalhar no processo da educação com a primeira série do ensino fundamental, aplicando a minha experiência de acordo dos meus orientadores do meu estágio, aprendi nova cultura com meus alunos totalmente diferentes principalmente na comunicação, no momento de acompanhamento de aprendizagem dos alunos de diferentes comunidades. Fui descobrindo do aluno o valor da educação recebido dos pais até chegar à escola a forma de comportamento em relação do seu colega dentro da sala de aula, o grupo étnico foi muito elevado, foi importante conhecer e entender a diversidade cultural com um mundo da cultura muito diferente. Acompanhei com atenção a dificuldade para encontrar uma alternativa, perguntei sempre do assunto repassado em qualquer disciplina, foi maior o meu entusiasmo quando deu sinal positivo, isto significou o trabalho de acordo do meu planejamento foi alcançado. 206


Percebi a minha carreira profissional importante, quando acompanhei os alunos na hora de entrada na sala de aula, no momento de intervalo, quando iam ao auditório, nas festividades da escola para não criar problema entre eles, a felicidade foi quando aprendi novo hábito do aluno. A vida profissional continuou com muita luta por gostar de dar aula, aperfeiçoei meu conhecimento lendo vários livros na biblioteca da escola por falta de cursos para capacitação. Em mil novecentos e noventa e seis, tive oportunidade de aperfeiçoar meu conhecimento na minha formação como professor fiz curso de formação, oferecida pelo Centro de Formação e Treinamento de professores padre José de Anchieta, com a habilitação para o exercício do magistério na 5ª e 6ª série do Ensino Fundamental na área de Estudo Social no município de Santa Isabel do Rio negro. Durante o curso tive apoio dos professores mais experientes dos vários municípios, também contribui a minha experiência na troca de idéias com meus colegas, durante o curso foi muito importante, principalmente no debate, e no trabalho em grupo. Importante, encontrar uma alternativa adequada diante da dificuldade do aluno à atividade exposta pelo orientador em qualquer disciplina na sala de aula. Enquanto não surgiu faculdade continuei dando aula de maneira delicada aos discentes, tendo maior preocupação de ser um professor transformador e isso para precisei de uma faculdade para enriquecer o meu conhecimento. Em dois mil e quatro fiz vestibular da Universidade do Estado do Amazonas na cidade de São Gabriel da Cachoeira, desta vez foi feita duas provas, só no final vinha aprovação do candidato, fiquei muito feliz quando recebi a minha aprovação, agora depende mim. A transformação da educação de qualidade do país e do município precisa o orientador preparado para o processo de educação. No primeiro ano da faculdade tive um conhecimento mais profundo, devido a meterias sempre orientou para minha formação e também para o educando de ser um cidadão autônomo dentro da sociedade. As disciplinas identificadas durante o curso foram, a filosofia, a sociologia, pedagogia, as políticas publicas educação infantil, e a didáticas. Estas disciplinas citadas acima chamaram mais atenção do meu cotidiano na vida profissional, cada curso é importante na carreira do educador. Os professores foram competentes, compreensivos, comprometidos com a educação e formação dos alunos, como a professora Egle wanzeler orientadora do pré- projeto, dos estágios I, II, III apesar de ser exigente sempre acreditava no nosso esforço, a ela o meu sincero agradecimento batalhadora para minha formação durante o curso. Hoje, concluindo o Curso Normal Superior, tenho meta de fazer curso de especialização, com a finalidade de contribuir a educação de qualidade na escola, principalmente aos alunos carentes formando bom cidadão autônomo. Tudo, exposto e escrito, só posso dizer muito obrigado meu Deus. (LUDI, Tariano. Entrevista cedida a Eglê Wanzeler. 2000)

O tempo existencial está implicado no tempo biológico, com seus ritmos específicos e individuais. O curso de vida de Sol é um constructo do tempo e pelo

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tempo. Um movimento, um vir a ser, um devir. Para compreender esse curso foi preciso atentar para sua antropologia temporal. Nesse caso, fazer história de vida foi uma estratégia que favoreceu essa compreensão antropológica. No adulto, ela possui condições específicas que estão vinculadas à dinâmica da vida social e cultural. A cada encontro de formação, os conteúdos de aprendizagem eram retomados como se fossem ensinados pela primeira vez. Mas essa repetição não era feita da mesma maneira que foi dada outrora. Ela sofria alterações metodológicas e conceituais. Portanto, o tempo de ensino também era apropriado de forma diferente a cada jornada de formação e se organizava de acordo com os ritmos de aprendizagens dos aprendentes. Daí a ideia de entender a formação como um movimento, um devir. É esse movimento que dá a ela o caráter histórico, contingencial e imprevisível dada a irreversibilidade do tempo. Repetir, revisitar, recuperar ou reviver, não significa voltar ao passado, mas estabelecer com ele novas experiências de ensino, de aprendizagens e compreensões. Por conseguinte, pode-se afirmar que esse processo formativo possuiu as marcas do tempo mítico, representado pelo ciclo ensinar-aprender, mas é organizado de maneira individual, social e existencial. Ou seja, ocorre de maneira complexa e transdisciplinar, visto que se desenvolve em função de novos contextos e temporalidades. Os aprendentes haviam passados por novos processos de aprendizagens oriundos das disciplinas cursadas anteriormente. Por isso, novos conteúdos disciplinares eram representados e expressos em suas linguagens, mas estas foram submetidas ao tempo da disciplina, ou seja, ao sistema formativo. Como afirma Morin, “Todo sistema, toda organização são submetidos ao tempo (...), ele faz parte da definição interna de toda organização humana. A atividade é evidentemente um fenômeno no tempo” (2002, p.265). (...) o tempo irreversível e o tempo circular se envolve um no outro, entrelaçam-se e entrerrompem-se, entreparasitam-se: eles são o mesmo. O tempo irreversível e desintegrador, transforma-se no e pelo circuito, no tempo do recomeço, da regeneração, reorganização, da reintegração. E, entretanto, eles são distintos: um seqüencial, o outro é repetitivo; eles são antagônicos, um trabalha para dissipação, o outro para organização. Há um circuito precisamente porque há um duplo e mesmo tempo, senão seria um círculo vicioso do movimento perpétuo num vácuo absoluto, ou a dispersão. A recursão, repetimos, não é anulação, mas produção. (2002, p.266)

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O espaço tempo dessa experiência de formação representou a vivência de novas flutuações e a formação de novas bifurcações para Sol. Essas bifurcações, sob o ponto de cognitivo permitiu a formação de novas estruturas dissipativas de natureza social, cultural e identitária. Sol se metamorfoseou. Tornou-se professora. Leciona numa escola em São Gabriel da Cachoeira e hoje faz pós-graduação lato sensu em educação de Jovens e Adultos. A flecha do tempo é de fato irreversível, mas as bifurcações que delas derivam permitem a percepção de que é possível recuperar o passado, dando a ele significação e sentido, tornando o presente mais significativo e compreensível. Nesse sentido, a história está ligada a memória, que é a presença do passado e permite a comunicação com os outros tempos (HALBWACHS, 2004). Essas bifurcações, quando guardadas na memória, permitem que o passado seja vivido, sentido e recuperado. Ela nos aproxima do passado. O vir a ser de Sol, experienciado ao longo de seis jornadas míticas é um exemplo de que o tempo é ao mesmo tempo, mítico, por ser circular, e irreversível, porque não volta atrás, é contingencial e imprevisível. Contudo, por ser um constructo individual, social e existencial, permite a construção de realidades e a partir delas promove transformação dos sistemas vivos. Fazemos escolhas e com elas construímos realidades. Isso é fazer história. A construção do conhecimento, a partir dessas dimensões bioantropológicas, pode ser vista também como um constructo individual, social e existencial que se organiza pelo e no tempo, sofrendo influências de seus múltiplos ritmos e experiências. Foram nessas condições que os aprendentes construíram conhecimento. A Monografia de Conclusão de Curso ocorreu nos entretempos da formação e nas flutuações inerentes a ela. Os projetos surgiram dessas e nessas flutuações, aqui entendida como conflitos, portanto, podem ser vistos como bifurcações da formação e do conhecimento oriundo dela. A monografia representou uma escrita biográfica dos aprendentes frente aos seus processos míticos e acadêmicos. Ela mostrou a caminhada deles rumos à emancipação intelectual e à formação profissional: tornaram-se professor.

O conhecimento construído: mitopoesia, intuição e razão sensível. Pode-se, a cada instante, corrigir, completar, enriquecer, contextualizar a representação através de mudanças de ângulo e de distância. Pode-se então, à vontade, retrabalhá-la, recomputá-la e, além disso, cogitá-la e recogitá-la, pois toda representação é acompanhada, explícita ou implicitamente, por palavras e idéias que 209


exercem sobre aquelas análises e sínteses. Assim, a representação é cognoscente, reconhecível, analisável, descritiva por um espíritosujeito que, além do mais, pode, pela troca de informações e descrições com outros espíritos-sujeitos, objetivar melhor e enriquecer a sua percepção e, nesse sentido, conferir o seu conhecimento do mundo exterior. (MORIN, 1199 p.119)

A Monografia de Conclusão de Curso como fruto de uma construção do conhecimento, expressa a representação gráfica do aprendentes sobre a realidade investigada. Ela é, portanto, uma tradução e interpretação do real. Um real traduzido de forma polissêmica, polifônica e semanticamente criativo. Ela representa o universo cognoscente do aprendente diante do reconhecimento da realidade, que passa a ser analisada, refletida e descrita sob o ponto de vista de sua aprendizagem, cultura e linguagem. O processo criativo de produzir um conhecimento implicado na relação entre o pensamento sensível e o pensamento científico orientado pelos operadores da complexidade e da transdisciplinaridade se desenvolveu a partir de experiências oriundas do universo mítico e cosmológico dos aprendentes, bem como pelo exercício da escrita etnográfica da escola (Jornadas I, II, III, IV e V). Ao longo de seis jornadas, os aprendentes fizeram pesquisa, levantaram dados, escreveram sobre os mesmos e refletiram quanto aos objetivos e intervenções necessárias para uma prática docente inovadora. Vimos que nem sempre essas práticas foram desenvolvidas. No entanto, houve experiências riquíssimas que indicaram a possibilidade de construção de aprendizagens pautadas no ensino criativo, dotado de significação e sentido (Jornada V). O resultado de todo esse processo foi um conhecimento instruído pela experiência mítica, sensível e transdisciplinar, possuído pela sabedoria ancestral dos povos indígenas e pelo conhecimento científico das disciplinas. A bricolagem desses elementos construídos ao longo das jornadas mostrou que é possível desenvolver um ensino voltado para a compreensão, para uma aprendizagem prática, sustentada pela criatividade e pela sensibilidade. Os aprendentes construíram conhecimento, assumindo um compromisso consigo mesmos de tornarem-se professores, transformadores da realidade. Ser professor é acima de tudo pensar e refletir antes de abraçar a profissão. Ser professor não é nenhuma brincadeira, pois o professor tem uma missão muito importante na sociedade, dele depende a transformação do mundo. Como professor, meu papel é dado tudo de mim: a minha sabedoria, o meu tempo e a minha dedicação às 210


crianças, aos adultos. (...) Quero que meus alunos aprendam tudo o que tiver direito: do assunto mais simples ao mais complexo. Quero que eles acompanham as transformações do mundo. (...) Quero ensinar sobre as culturas dos povos indígenas. Dizer sobre a importância de praticar a cultura, para que ela não seja esquecida. O meu papel será de valorizar a cultura de nascença de cada um. Cada um terá que reviver a sua cultura. (sic). (DOMI, Piratapuia. Ser professor. Questionário respondido à Eglê Wanzeler. 2008). Como professor quero ser o ponto diferencial para a busca de uma sociedade melhor, para isso dedicar-me aos alunos, propondo-os sempre uma nova visão de educação com novas metodologias na sala de aula e despertar o interesse de aprender realmente, para que o aluo vá na escola não apenas porque são mandados pelos pais. No primeiro momento não escolhi ser professor, com decorrer dos anos do curso, aprendi a valorizar e respeitar ainda mais a profissão do professor, com isso poder contribuir com a formação dos indivíduos para transformar um pouco mais a sociedade. (sic) (MILA, Baré. O Ser Professor. Questionário respondido à Eglê Wanzeler, 2008).

Esse caráter de professor transformador vai estar presente em todas as falas dos aprendentes. O entusiasmo se amplia na medida em que eles percebem essa construção nos seus escritos monográficos. Para eles, a monografia foi o registro do nascimento do professor. Dentro deste trabalho eu vejo como eu fui me tornando professor. É como se fosse uma história de um nascimento de uma criança, mas é de um professor. Aqui eu renasci como professor, renovei minha profissão. Eu já lecionava, mas nunca tinha me visto assim pela escrita. Sei, como a minha escrita, preciso muito melhorar ainda. Mas vê esse trabalho assim, na capa dura, é como se fosse também uma criação minha, uma obra de arte. Sou ainda uma pedra, precisa ser lapidada para se tornar preciosa. Serei um professor pesquisador. (sic). (LUDI, Tariano. Ser professor. Questionário respondido à Eglê Wanzeler, 2008. Grifos meus).

As afirmações desses, agora professores, representam a natureza mitopoética de seus pensamentos. Devem ser vistas como um movimento de seus pensamentos implicados em suas existências. Nesse caso, seus pensamentos sofreram e sofrem as ações de experiências oriundas do conhecimento, da cultura, das relações sociais, políticas e ecológicas, bem como dessa formação. Adiante, veremos que seus textos traduzem não apenas suas relações com o conhecimento, mas também as relações do conhecimento construído com suas vidas e com seus pensamentos. (...) o pensamento é um tipo de “dança da mente” que funciona de forma indicativa e que, quando desempenhada adequadamente, flui e se funde em um tipo harmonioso e ordenado de processo na vida como um todo. (...) O pensamento com totalidade, como seu conteúdo, deve ser considerado como uma forma de arte, tal qual a poesia, cuja 211


função é primeiramente oferecer uma nova percepção, e uma ação que seja implícita nessa percepção, em vez de comunicar o conhecimento reflexivo de como tudo é. (...). (BOHN, 2008, pp. 68-75)

As monografias resultaram, portanto, de um exercício cognitivo de operar um pensamento implicado na totalidade das existências e experiências dos aprendentes em suas relações com o mundo vivido, no qual se incluem a natureza e a cultura. E por serem construídas dentro dessa implicação existencial, apresentaram traços etnopoéticos (FITCHE,19987). Esses traços expressaram a tentativa de comunhão entre os saberes oriundos do pensamento selvagem e do pensamento científico, com vista à elaboração de uma linguagem imbuída de uma estética poética e antropológica, que de certa maneira inspirou a construção de seus trabalhos.

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Disciplina

Estágio

WILSON, Edward O. A unidade do conhecimento: consiliência. Tradução de Ivo Koritowiski. Rio de Janeiro: Campus, 1999.

CREDENCIAIS DE AUTORIA Eglê Betânia Portela Wanzeler Professora Adjunta da Universidade do Estado do Amazonas. Professora de história da Secretaria Municipal de Educação/Manaus. Mestre em Natureza e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas; doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Contato: eglewanzeler@gmail.com Acesso - Lattes: http://lattes.cnpq.br/0060709651046345

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