PROTASIO VARGAS. Contos do Final do Milênio 0 VOLUME 2

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Contos Literários e Jurídicos

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Final do Milênio VOLUME 2 (46 a 65) JOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUES DE VARGAS UFRGS Versão 2, de 09/11/2000

Resumo Em quatro volumes, os 107 contos, escritos no final do inverno e início da primavera do ano 2000, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, apresentam uma variada temática de abordagem, com personagens inventados em um cotidiano ora reflexivo, ora bastante cinético, movimentados em cenários variados de enredos bastante simples. O autor se vale da ironia na maioria dos enfoques, sem descurar da crítica, inclusive de cunho político, social, econômico, ideológico, filosófico, religioso, enfim, jurídico, de espraiada modalização. A ordem dos contos é a ordem de sua criação, inclusive na cronologia posta. O volume 2, com 17 contos, vai do conto 46, “Substantivo e Adjetivo”, ao conto 65, “Opções Táticas”.

Modo de Citação

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VARGAS, João Protásio Farias Domingues de. Contos do Final do Milênio. Vol. 2/4. Porto Alegre: digitado, 2000.

Apresentação . Os contos foram escritos entre 19/06/2000 e 02/10/2000. Metodologia de escrita: construção à medida que digita; tática principal: escrever muito para aperfeiçoar o estilo; estratégia geral: ter acúmulo de texto que possibilite uma seleção para divulgação. Estratégia específica: escrever de modo que os Contos possam evoluir, naturalmente, para escritos maiores, de gênero diverso: o romance e a novela. Limite inicial da tática: 100 Contos. O autor mistura trechos de fatos observados na vida observada no cotidiano com emendas da imaginação, de modo que nada do que está escrito represente realidades postas. Eles não têm essa vocação. Por isso que tudo quanto possa ser semelhante a fatos da vida constitui mera coincidência e não pode ser levado a sério. Trata-se de mera ficção e, como tal, devem os escritos ser encarados. Podemos chamar de contos-momento, construído na espontaneidade da inspiração. Alguns são longos e outros muito curtos, quase beirando à crônica; outros tangenciam o ensaio, mas sem nunca perder o ar ficcional. Todas as personagens, são fictícias e, na realidade de cada conto, adquirem a vida que lhes coube pela imaginação do autor.

Sumário RESUMO. MODO DE CITAÇÃO. APRESENTAÇÃO. SUMÁRIO. CONTO 46 - SUBSTANTIVO E ADJETIVO; CONTO 47 - MANDA UMA VEZ, QUE É BOM; CONTO 48 - SIMBÓLICO DE SAIR DE CASA; CONTO 49 - ESPELHO DE CEGO; CONTO 50 - GROSSO E PARTIDO; CONTO 51 - O ATOR E A PRÁTICA POLÍTICA DE JESUS; CONTO 52 - VALORES DE CADA UM; CONTO 53 - ELEFANTE JURÍDICO; CONTO 54 - TE MANDA, ZÉ, QUE É HORA; CONTO 55 - ÁGUA PARA UM PEREGRINO; CONTO 56 - FILANTROPIA DAS VÍTIMAS INOCENTES ACUSADAS E ABSOLVIDAS; CONTO 57 - LIVRINHOS DA SILVA; CONTO 58 - OLHOS DE ESMERALDA DA GRINGA; CONTO 59 - PORTE, TRANCO E SEMBLANTE; CONTO 60 O TELEFONE DE VERÔNICA; CONTO 61 - ESTRUTURA AUSENTE; CONTO 62 - O


ERRO DE CONFÚCIO; CONTO 63 - PARADÍGMA DA MOTIVAÇÃO E DO INCENTIVO; CONTO 64 - E-MAIL SACANA; CONTO 65 - OPÇÕES TÁTICAS. ÍNDICE ANALÍTICO.

Conto 46, de 03/08/2000, quinta-feira

Substantivo e adjetivo João Protásio Farias Domingues de Vargas

O filho conversava com os pais, tentando ajuda na solução de um dever de casa. - O que é substantivo e adjetivo? - O que são, tu queres dizer. - O que são? - disse, corrigindo a conjugação do verbo, passivamente. - Substantivo é o nome das coisas; adjetivo é uma qualidade agregada ao substantivo. Por exemplo pedra amarela; pedra é substantivo e amarela é adjetivo. Entendeu? - Não. É muito difícil. - Se digo "a pedra é amarela", a palavra amarela está adjetivando, dando uma qualidade, identificando, precisando melhor uma característica da pedra que se tem em mente. Entendeu, agora? - Ainda não. - O que é isso? - perguntou, apontando para um objeto. - Um lápis. - Muito bem. Lápis é um substantivo. Qual é a cor dele? - Verde. - Ótimo. Verde é um adjetivo. A cor dá uma qualidade ao lápis. - Entendi. - Agora, junta substantivo e adjetivo, com um verbo e forma uma frase, para eu ver se você pegou o jeito. - Tá bom. O que é um verbo? - Verbo é a palavra que indica movimento, como falar, ouvir, correr, ser, brincar. - Fácil! Que tal: o lápis é verde? - Muito bom. É isso aí. Fácil, não? - É só isso!? - disse, desapontado. - É, só isso. O começo de tudo. Depois não pára mais, até chegar na Lógica Formal e na Lógica Dialética, mais adiante. Por enquanto, é só isso. - Moleza! É só dizer o nome de uma coisa e dizer como ela é. Moleza. Posso ir, agora? - Prá onde? - Ora, brincar. Já aprendi tudo. Foi moleza. Tchau!


O garoto saiu da sala correndo e os pais ficaram ali, em silêncio, admirando os tempos. Não demorou um minuto e o garoto voltou. - Pai, o que é um verbo no gerúndio. Tenho que dar um no infinitivo e outro no particípio. O que é que... SÃO - já ia dizer "o que é", mas o correto é "o que são", né? - O que é que SÃO essas coisas? – reformulou, frisando o verbo, ajeitado foneticamente no plural. - Bom... Senta aí. Vou explicar. - Estou ouvindo. - Muito bom. Já sabe usar um verbo no gerúndio. - Como assim? - perguntou, perplexo. - Vai ouvir? - Vou. - Agora já sabe usá-lo no infinitivo. - Não estou entendendo. - Tem escutado? - Escutado? Claro! - Viu como é fácil, já sabe no particípio, também. - Ah, fala sério. Não estou entendendo nada. - Já demonstrei os três usos, filho. - Já? Que rápido! Nem percebi. Qual? - Escutar, escutando e escutado. - Ah! Ar, ando e ado, na terminação, que a profi falou em aula. - Isso. - Moleza. Agora vou voltar. Tchau! Obrigado. Saiu correndo da sala novamente. Ficou pensando nas primeiras lições de Lógica e de História que estavam embutidas naquelas singelas construções. Percebia o quanto era fácil não saber classificar o que estava diante dos olhos; melhor, diante dos ouvidos. E não foi fácil aprender essas coisas hoje tão banais! Naquele tempo tinha um certo ar de solenidade aprender algo sobre História ou Lógica. Hoje isso se tornou tão banal; pelo menos, parece tão banal. É, o jeito de parecer criança mudou. Acho que são as gerações. Lembrou da idéia das duas caravanas que se encontram, e se separam, no deserto, a certa altura de suas caminhadas, na metáfora de Ortega y Gasset. Levantou-se foi até o computador, continuar o que estava fazendo. Olhou o relógio e viu que já estava atrasado. Precisava sair. Levantou-se novamente e ganhou a porta de saída, em direção aos elevadores, com outra esfera de ocupações. O filho? O filho ficou ali, na outra sala, absorto com os seus brinquedos e os cadernos, fazendo outra parte das lições de casa.

Conto 47, de 04/08/2000, sexta-feira

Manda uma vez, que é bom João Protásio Farias Domingues de Vargas


A utilidade da publicação de escritos. Luiz André estava ali, diante do computador, absorto, pensando em diversas coisas, olhando a tela vazia, à espera de uma inspiração. Escrevia tanto, tanto e não publicava nada. Nem mandava para lugar algum. Só eram seus leitores aqueles para quem mostrava alguns textos. Escrevia sobre variados temas, desde os seis anos de idade, quando começara com cartas amorosas. Dedicava, pelo menos, umas duas horas por dia aos seus textos. Já estava acostumado às observações dos amigos. Era muito simples, bastava dar um "send" em um e-mail atachado ou enviá-los por carta a algum editor do ramo do conteúdo dos mesmos. Não tinha jeito. Há anos ouvia e não seguia nenhum conselho. É claro que não queria escrever só para si, tanto o é que mostrava alguns aos conhecidos. Uns até eram bons; não de todo ruins, outros. Lembrava ter lido em algum lugar a expressão de Karl Marx: "exposto à crítica roedora dos ratos". Não tinha ratos, mas as traças cumpriam o seu papel. Tinha uma boa desculpa, sempre; escrevia como modo de aprendizagem, para melhorar sua capacidade narrativa, descritiva e dissertativa. Nunca estava preparado. Alguns diziam que tinha medo das críticas; não mostrá-los era uma forma de autoprotecão. Algo infantil, até. Não se importava. Não mandava nunca. E a produção, sempre se avolumando, ali, nas estantes; hoje em dia não ocupavam mais espaço; tudo digitalizado, armazenado em bit. - E esse, vai publicá-lo? - Não. Nem sei para quem mandar - respondia, de pronto. - E aquele ali? Está bom. Quer mandar? - Prá onde? - Ora, a um editor! - Não sei, não... Não, não está bom o suficiente. - Quando vai estar? - indagou Débora. - Não sei. - Quanta indecisão, meu deus! Credo! Infantilice, no duro! - Pode ser. Não tinha jeito de mudar de idéia. Nem se sabia mais o que fazer. - Tanta gente publicando asneiras e tu, aí, impassível. - É isso. Não quero que as publicações entrem nesse rol de asneiras. Emmanuel Kant só publicou pela primeira vez quase beirando os sessenta anos... - Mas, tu não és um Kant. Tem de começar por baixo, como todo mundo. Ninguém sabe que tu escreves, que tens algo a dizer. Compartilha isso com o mundo! - Quem sabe! Mas esses aí, não. Definitivamente, não. - Tudo bem que não mandes os de psicologia, os biográficos, as poesias, os contos antigos; mas, os jurídicos são publicáveis, não te parece? - Muito verdes, ainda. Ademais, eu escrevo muito mal. Quem vai querer lê-los? A chacota, o riso, o deboche... Parece que estou vendo alguém dizer: é teu mesmo aquele texto???!!! - Pode ser que a surpresa seja positiva. Pega pelo melhor ângulo. Pode ser até elogio. Depende de quem faz a crítica para ela poder


ser levada a sério. Muita gente critica porque não sabe fazer outra coisa a não ser isso mesmo, desqualificar o que é feito pelos outros. Aqueles que não fazem nada não gostam do que é feito pelos outros, se sentem inveja. - Pode ser. Mas não gosto de críticas desse tipo, vazada na moral comportamentalista. Sou muito sensível a ela. - Bobagem! Crítica séria é aquela feita por quem entende do assunto. Se não, não é crítica; é... é... Como se diz?... - Sei lá. Tenho medo de me expor. - Isso eu sei. Tens que superar isso. É um medo infantil, pueril, adolescente. Pura insegurança. - É. É isso mesmo. Que fazer!? - Mandá-los às revistas, jornais e editoras. Só assim vais saber se eles foram aceitos. - E, se não responderem nada? - Sempre dão resposta. - Nem sempre. - Então, falha da casa de origem. Põe a conta na falta de educação e continua enviando, até que se manifestem. Ajuda a educá-los, a insistência. - Tá, tá bom! Não vou prometer mandá-los, mas vou repensar o assunto. Prometo, tá bom? Agora vamos mudar de assunto. Preciso terminar esse texto que estou escrevendo. Faz alguma coisa, enquanto isso. Voltou ao silêncio do micro e ao barulho das teclas. Estava decidido repensar. Não seria tão mal tentar, pelo menos algumas vezes. Pensou até em procurar os endereços, a começar pelos eletrônicos. Informar-se. - Um sonho de cada vez – pensou, em voz alta. - É!... Quem sabe?! - É isso aí, Luiz! Manda! Manda! - dizia, toda eufórica. - Pára! Não me atrapalha! Tá bom! Eu vou mandar. Tá satisfeita, agora? Tá? - Agora, tô! Viva! Viva! - gritava, levantando-se da cadeira e indo até ele, dar um beijo. - E vejo o endereço das editoras, tá legal? Não custa nada; eu gosto. Faço qualquer coisa por isso. Tu vais te sentir bem melhor. Afinal, faz cinco anos que foi publicado o primeiro e único texto teu. - Aquilo só foi publicado por insistência do Desembargador! Não conseguia terminá-lo e ainda não ficou bom. - Mas, publicou, não é?! Tá lá, na revista. E não doeu nada, não é? Faz de novo, faz - disse, dando outro beijo, agora de incentivo e retribuição. - Vou fazer! - Isso!!!!!...

Conto 48, de 05/08/2000, sábado


Simbólico de sair de casa João Protásio Farias Domingues de Vargas

O ato de sair de casa. Na infância, é um ato de hetero-abandono; na juventude ou adolescência, ato político-revolucionário; quando adulto, é ato de desistência; já velho, uma atitude de renúncia. Enquanto se está em casa, com ou sem poder de mando, os atos ou são de acomodação ou são de resistência, - já usando a linguagem dual ou binária de Nicollo Machiavelli, em O Príncipe. Na vida, são esses quatro os momentos históricos em que alguém sai de casa. Os motivos dão nome aos momentos, respectivamente: abandono, rebeldia, desistência e renúncia. Nenhum dos casos deixa de arrastar as noções de dor, saudade e violência, reais e/ou simbólicas, ainda que possa haver consenso. A insatisfação transforma a acomodação em resistência e, dessa, numa das quatro posturas máximas. Essas são as três fases por que passa qualquer ser humano, em sua vida, na progressão do tempo. Quatro pessoas conversam entre si, enquanto esperam, em uma sala, no centro da cidade, reunidas segundo a agenda recepcionada. - Demorado, hein? Já faz quase meia hora que estou aqui - fala o jovem. - A agenda do doutor é sempre assim, mas ele sempre atende responde o velho. - E esse menino forte, que faz aqui? - pergunta a mulher. - Eu tô esperando, ora. Me deixaram aqui prá falar cum u médico - responde a criança. - Sozinho? - pergunta de novo. - É. Me abandonaram. A assistente social vai me buscar, no final da manhã. - Esse psiquiatra, psicólogo, analista, sei lá, é um tratante, não é? - diz, para todos, o jovem. - Não acho isso - afirma a mulher. - Se estamos aqui é para alguma finalidade importante. Volta a recepcionista, anunciando que todos devem entrar para a sala ao lado. - A sessão de terapia grupal terá início em 10 minutos. Doutor Joel estará com vocês - afirmou. Todos entram e sentam-se em torno de uma mesa redonda, posta no centro da sala vazia. Um janela ampla, ao longo da parede, com cortinas abertas, dava ampla luminosidade natural a todo o ambiente. A claridade era quase ofuscante, comparada à da sala de espera. O analista entra e senta-se no lugar vago. - Vamos dar início a nossa primeira sessão de terapia grupal. Meu nome é Joel e estaremos juntos duas vezes por semana, nesse mesmo horário e local, durante uma hora de conversa franca, informal e livre. Todos vocês são voluntários e a finalidade terapêutica cumpre dois desígnios: resolução da instabilidade emocional de vocês e a identificação acadêmica das causas, do significado simbólico do ato de sair de casa, que vai fundamentar uma dissertação de mestrado na área. Por essa razão, alguns estudantes estarão presentes, algumas vezes, sentados, fora da mesa, observando e tomando notas, apenas. Os crachás que vocês


mesa, observando e tomando notas, apenas. Os crachás que vocês usarão tem a finalidade identificativa, apenas. Iniciados os debates, quem quiser falar pode levantar o dedo, ou simplesmente intervir; faremos inscrição, se houver dificuldade de comunicação, está bem? Essas são as regras mínimas do jogo de nossas conversas. Todos estavam em silêncio, ouvindo atentamente. - Vamos nos apresentar, um a um, dizendo o nome completo, a idade, estado civil, o lugar onde mora, o que faz na vida e por que está aqui. começo por mim. Eu sou Joel Beck Franco, tenho 40 anos, casado, moro nessa Cidade, sou psicanalista e estou aqui para auxiliar vocês a resolver alguns problemas psicológicos oriundos do fato de terem saído de casa, recentemente ou há muito tempo. O analista era um homem semi-calvo, alto, magro, levemente grisalho, vestia um terno cinza e uma gravata azul-marinho; barba muito bem aparada, cabelos lisos, cabeça ovalada, tez clara, face limpa e nariz afinado; a voz era mansa e pausada, porém firme. Os olhos eram castanhos, amendoados e penetrantes, detrás de um par de óculos de aro dourado e lentes arredondadas. Punha as mãos sobre a mesa, cruzando os dedos; gesticulava, com certos movimentos circulares, horizontais e perpendiculares feitos com ambas as mãos, conquanto falasse algo que a voz realçasse. - Meu nome é Marina Lima Macedo, tenho 35 anos, sou casada há 12, moro no interior desse Estado, sou arquiteta; estou aqui porque saí de casa e estou me separando do marido; tenho uma filha de 8 anos de idade, que mora com o pai. - Eu?! Meu nome é Luis Henrique Santos da Silva, tenho 9 anos de idade, estou morando no Albergue Bom Jesus; estou no segundo ano do primário, vou ser médico, quando crescer, e estou aqui porque a assistente social me mandou... Ah, eu fui abandonado pelos meus pais; não me queriam mais em casa, lá, bem no alto do Morro da Cruz. - Meu nome é Gustavo Löef Hinz, tenho 67 anos, sou divorciado, moro na Capital e exerço a atividade de advogado particular; estou aqui porque está muito difícil conviver comigo mesmo sozinho, depois de dois anos do término de um casamento de 30 anos e vários filhos. - Eu sou Máximo Giotti, tenho 17 anos, sou solteiro, estudantes e moro atualmente em Porto Alegre; trabalho como free-lance e estou aqui porque fugi de casa há alguns meses e estou confuso com a minha decisão. Terminadas as apresentações, quase todas feitas no padrão sugerido pelo analista, esse tomou a palavra, enquanto olhava um a um, nos olhos, bailando entre um e outro, num ato de direção a todos e a cada um, momento a momento. - Sair de casa, fato comum a todos nós, é o tema de nossas conversas. As causas, as conseqüências, as posturas, as angústias, as vantagens, as desvantagens, os modos, o que poderia ter sido feito para evitar, o que não foi feito, o que não poderia ter sido feito, o que não surtiu efeito, os arrependimentos, os medos, as frustrações, as raivas e ódios, tudo isso, deve ser vertido nas nossas falas. Podemos, até, falar como se estivéssemos falando para a própria pessoa que quisermos, num diálogo fingido, criado qui, para nós. Há um critério necessário: soltar tudo prá fora, como se fosse uma confissão; sem isso não há melhora ou mudança do estado de espírito de cada um de nós. Apesar de eu estar casado,


houve um tempo em que eu também saí de casa, duas vezes: uma como jovem e outra quando do primeiro casamento. Portanto, tenho experiência de vida para compreender muito bem cada um de vocês, além, é claro, da experiência técnica. - Posso começar? - pergunta Marina, aflita. - Sinal verde, Marina - responde o analista. - Pois bem, ... Joel..., não é? Como disse, estou me separando do marido. Ele é três anos mais velho do que eu e exerce a mesma profissão. Durante doze anos vivemos juntos uma vida de altos e baixos, junto com a filha, Cassandra, de 9 anos. Não suportei mais a convivência e, há duas semanas, saí de casa. Abandonei tudo; trouxe a filha junto, do interior. Estou vivendo um dia de cada vez, com toda a dificuldade do mundo. Eu gosto muito do Marcos, mas não deu mais para suportar o jeito dele levar as coisas. Algumas vezes, no passado, nos pegamos no pau; nos machucamos muito; fomos até passar vexame em delegacia. No final, o desrespeito era mútuo; sequer tínhamos convivência sexual; eu não queria mais, mesmo gostando dele. Era uma vida que não tinha futuro... Desisti, é isso, desisti daquela relação, daquela forma de vida. Por enquanto, é isso; depois, falo mais. - Muito bem, Marina - disse, incentivando elogiosamente, Joel. É isso aí, desistiu daquela relação, não de tudo, não da vida; tanto é que está aqui, vida, cheia de vida e de esperanças, não é mesmo? Gostei muito da intervenção; foi exemplar e colaboradora para os nossos trabalhos. Quem é o próximo? Pode inclusive, se quiser, fazer pergunta para quem já falou ou provocar quem está quieto. - Se a Marina desistiu - afirmou Gustavo - daquela vida inoportuna, eu renunciei ao casamento, à convivência, à vida comum. Ela viveu 12 e, eu, 30 anos de casado. Lembro quando essa fase passou por mim. Foi um pequeno inferno. Mas, eu sempre pensava: - É só um tempo difícil; vai passar; afinal, já enfrentamos tantas crises... Todas as crises que vieram depois foram piores e mais doloridas. Sabe por quê? Porque cada uma trazia junto a si a lembrança das causas e momentos de todas as que já tinham havido. Uma bola de neve de fatos recorrentes arrastando os novos; tudo era causa de desavença. Claro, houve momentos de felicidades, de muita alegria; nem tudo era inferno. A gente, com o passar dos anos, torna-se mais exigente, eu acho. Nunca fomos um casal acomodado e sempre debatemos tudo em nossas vidas. Mesmo assim, não deu certo. Ela tem hoje 70 anos de idade e parece mais jovem do que eu; está forte, sadia e lúcida... mas, aquela boca... não parava nunca de falar! Esse, o maior problema; dizia tudo que vinha à telha; não media palavras. Foi me desgostando aos poucos. Já nos primeiros dois anos de casado, pensei em me separar. Durante trinta anos fui adiando essa decisão tomada há pouco. Não sei no que vai dar. Tempo gera convivência; convivência gera sentimento e acomodação. Fui me acomodando. Se conseguisse ficar mais um pouco, quem sabe a vida fosse inteira com ela. Resisti o que deu, também, defendendo minhas posições; ao final, não agüentei mais e tive de partir, renunciando a tudo. - O que é a experiência, hein, gente! - disse Joel, absorto com as palavras do homem idoso. - O diálogo é sempre muito importante, mas também tem que ter limite no seu conteúdo e no modo de dizer. É por ele que tudo começa e, também, termina. O próximo


colaborador? Muito bem, Giotti - que acenava com o dedo, indicando que falaria. - Máximo. Não gosto que me chamem pelo sobrenome. Eu saí de casa e ponto final. Não deu mais. Estava barra a vida com eles. Apanhava muito do pai e da mãe. A boca dela, sempre falando, me azucrinava a vida. Não gostava dos conselhos dela, sempre regulando a minha vida; sempre dizendo: - isso é para o teu bem, filho; gente decente não anda assim; vou escolher uma moça bonita e rica para tu casar; tu vai ter um bom emprego na cidade; pode ser um grande homem até, mas tem que se endireitar...; um belo futuro te espera junto da família. Eu tapava os ouvidos e ela continuava falando, falando, falando, falando e falando. Não me deixava em paz. Tudo que eu fazia estava mal; nunca havia elogio; só crítica. Me fazia sentir criança o tempo todo. Esperei terminar o segundo grau e fugi; disse que vinha a Porto visitar um amigo, no final de semana; peguei meia dúzia de roupas, pus numa maleta e piquei a mula; nunca mais voltei; só dei notícia e as caras oito meses depois. Fui bem tratado, mas não teve volta; não fiquei. Voltei prá cá, dono do meu próprio nariz. Foi um alívio. Acho que fiquei até mais respeitado depois. Ás vezes, tenho saudades e dá vontade de voltar para casa, apesar de tudo. Tomei a decisão de não voltar e não vou voltar mesmo. A nossa conversa é para eu conseguir ficar aqui e enterrar de vez aquele passado que não tenho mais. - Isso, Máximo? Muito bom. Uma história e tanto, hein? Muito boa. E está só começando. Vamos poder aprender muito com a tua experiência. O sonho de todo adolescente que sai de casa é se dar bem. E tu vais te dar bem, podemos notar e vamos te ajudar muito. Mais um? Esse garoto ultra-jovem, que falar alguma coisa? - Meu nome é Luis Henrique, mas me chama só de Luiz; em casa eu era o Riri. Sinto falta da mãe e do pai. Eu gosto deles; mas, eles não gostam de mim. Dizem que sou muito arteiro, que não pára quieto; que tenho bicho carpinteiro no cú. Eles me davam muito; mais de uma surra por dia. Era pau, tapa, ponta-pé, cinta, chinelo, vara; me batiam com tudo que encontravam pela frente. Eu sou o mais pequeno de todos; e, ainda, apanhava dos manos maiores. Me expulsaram, todos eles. Fui parar no albergue porque um vizinho denunciou meus pais ao conselho tutelar e eles me levaram de lá e botaram meus pais na justiça. Essa cicatriz aqui - apontou com o dedo para o canto esquerdo do olho esquerdo - foi feita com um copo de lata de azeite, cheio de água, que minha mãe jogou em mim. Doeu muito e sangrou; sete pontos; não consegui enxergar durante uma semana; ficou tudo vermelho na hora e manchou toda a camisa de sangue. Achei que ia morrer. A mãe ficou desatinada e me levou até o posto de saúde da vila, onde fizeram os pontos. Não me importava com tudo isso, desde que ficasse com eles. Mas, eles não me quiseram mais, porque eu contei tudo na delegacia, no juiz e no conselho. Eu não sou caguete; só disse a verdade. Não queria ser adotado e nem ter família substituta; eu gosto da minha - disse isso, começando a chorar, copiosamente, interrompendo a fala. - Muito bem, Riri... Luiz Henrique. É isso aí, garotão! Tá tudo bem, aqui. Somos amigos e parceiros, certo? Tudo vai ficar melhor, tu vais ver. Nós gostamos muito de ti. Enxuga as lágrimas, mas chora tudo que quiseres chorar, tá? Tu vais ver essa gente grande aqui, várias vezes, chorar, também. Eu, vez que outra, também


aqui, várias vezes, chorar, também. Eu, vez que outra, também choro. Na próxima fala tua, diz sobre a namoradinha ou da garota que tu gosta, tá? Ela é muito importante para ti, não é? - o garoto balançou a cabeça, dizendo que sim. - Agora é a minha vez. O analista também fala de si, aqui. - Sou Joel, como já sabem. O que não sabem é que também estou por me separar de minha companheira. Vivemos há cinco anos juntos. Ela é 10 anos mais jovem do que eu e temos dois filhos pequenos. Somos casados, mas não de papel passado, para dizer numa linguagem comum. Ela não sabe dessa minha pretensão. Será muito difícil para ela, que gosta muito de mim. A paixão e o amor sumiram há quase um ano. Ela tinha 25 quando nos conhecemos, em um congresso realizado noutro Estado. Era linda. Amor à primeira vista; nos apaixonamos e ela veio morar aqui, comigo, longe dos seus pais, que moram no norte do País. Fez uma breve pausa, como que pensando na continuidade, e retomou a linha de narrativa. - No início, a diferença cultural foi superada pelos carinhos, pelas atividades conjuntas, pelo dia-a-dia. Veio o primeiro filho e, logo depois, o segundo, um atrás do outro. Não era bem o que queria, mas aceitei; ela decidiu assim, me consultando, mas sem esperar as minhas respostas. Começaram as desavenças a partir do ciúme. Passou a me vigiar em tudo e a desconfiar de homens e mulheres que conviviam comigo nos mais variados ambientes. Mostrou-se magoada, irada, nervosa e, quase, escandalosa. Os amigos se afastaram e tive de me isolar para poder conviver melhor com ela. Fez uma segunda pausa e continuou sua longa fala. Maior do que a de todos os pacientes. - Casa-trabalho, trabalho-casa, era tudo o que tinha de fazer, para a paz acontecer entre nós. Cansei disso. Minha natureza expansiva não me deixava aprisionar a esse modo de vida. Depois, o modo de educar os filhos, anulando as minhas influências, começaram a me decepcionar muito. Não gostava da educação do tipo como os nossos pais. Acho que há muita coisa errada que nos ensinaram nossos pais, que precisam ser corrigidas; repassar, acriticamente, inconscientemente, para os filhos, sempre me pareceu burrice e desperdício de oportunidades pedagógicas importantes. Ela não dava ouvidos. Fazia tudo do jeito dela, assim, meio estabanado, impensado, cego e surdo. Da mágoa surgiu o desespero e, deste, a vontade de fuga. Não está dando mais para suportar; nem fingir consigo mais; tentei salvar o casamento de muitos modos, mas não dá mais. Não sinto mais nem vontade de voltar para casa. Não se pode mudar as pessoas de uma hora para outra; muito menos se elas não querem mudar para ajudar na convivência a dois. Deu, novamente, uma pausa longa e retomou, agora diferente na fala. - Era isso que ía dizer, de início, sobre mim. Terminada a primeira fala de todos. Vamos analisar o que um pensa da história do outro e o que sugere como melhoras. Pode falar, Marina - disse, em resposta ao aceno indicativo de vontade de falar. - Que bom que o analista também se expõe junto com os pacientes. Nunca vi isso antes e acho bem melhor assim. Olha, que eu já fiz muita análise! Não assim, coletiva, mas individual. Nem ouvi dizer que analista fizesse isso. Está de parabéns na


ouvi

dizer

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analista

fizesse

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parabéns

na

metodologia. O jeito me deixa bem mais à vontade para falar. - Obrigado, Marina - agradeceu, Joel, observando atentamente a reação da mulher. - O que eu queria dizer - retomou Marina -, era que, como arquiteta, e sem nenhuma experiência como analista, penso que entre a rebeldia adolescente e a desistência adulta há pouca diferença metodológica. Ambos os modos são formas de resistência ao continuísmo, à mesmice do dia-a-dia; frustração gera frustração até não se poder mais agüentar. Foi o que aconteceu comigo e, resgatando a fala do Máximo, vejo que temos muita coisa semelhante, apesar da diferença de idade. O marido, com o tempo, passa a se assemelhar a um pai à mulher, mesmo contra a vontade dela; ela quer um marido, e não um pai; saiu de casa para não ter mais um pai em sua vida, mas, de repente, ela se vê diante de mais um pai, de um pai que não escolheu; de um marido que se transforma, que se transmuta, como um casulo que se transforma, não em uma linda borboleta, mas em um besouro, um pai estranho e piorado que faz sentir saudade da infância e vontade de fugir; a vida e o inferno, lado a lado, convivendo juntos. - Era o que eu estava pensando - disse Gustavo, o sexagenário -. Na verdade, o ato de renúncia, nome a que dou à minha atitude drástica, mas necessária, é muito parecida com o que ela chama de desistência e de rebeldia, para a maturidade e juventude, respectivamente. Pequenas coisas, insignificantes, do cotidiano, vão se somando, como que uma gota em um copo ou balde que não pára de encher, até que transborde, exploda, estilhace tudo, ferindo a todos. Um velho como eu não se rebela e nem desiste; não tem mais condições de fazer isso, depois de tantos anos de paciência e acomodação; é renúncia mesmo, ainda que possa ficar numa situação pior depois da separação, já no final da vida. Pelos menos, penso, tenho direito a alguns anos de sossego na vida. Morrer em paz é muito importante para mim e acho que estou no caminho certo. Não tenho tempo para recomeçar nada, mas posso ir andando, em paz, em direção alguma, enquanto ser humano existente, vivo. Todos os filhos estão criados e os netos estão crescendo. Estou sozinho, mas me sinto bem melhor agora do que antes. Eles não entenderam minha separação; nem esperava isso, mas eu sei o que é melhor para mim mesmo. Tocou o telefone. Joel atendeu. Era a recepcionista avisando o fim da sessão. - Minha gente, o tempo acabou. Retornamos quinta-feira próxima. Avalio que o debate está bem melhor do que imaginava. Vamos embora, em paz, cada um para o seu canto e retornamos com as reflexões que tivermos, no encontro seguinte. Levantou-se, abriu a porta lateral e todos saíram. Fechou a porta, limpou o suor do rosto com o lenço xadrez, arrumo as cadeiras, olhou a agenda e foi à sala ao lado, preparar-se para a próxima sessão, lembrando-se do que dissera sobre sua própria vida. Não compreendia ao certo porque resolvera ser paciente de si mesmo naquele grupo. Pensou, consigo mesmo: - Somos todos loucos, quem sabe? Muito mais do que um simples significado simbólico. Uma decisão de vida! Insatisfação, acomodação e resistência, um comboio de desate! A rebimboca da parafusina dos motores sociais, das relações de convivência humana


parafusina dos motores sociais, das relações de convivência humana a dois. A dois! Justamente dois, quando não há um terceiro para equilibrar o jogo; toda decisão é unânime ou carece de legitimidade! A vida é uma caixinha de pandora. Muito engraçada, quando se olha à distância, no tempo; não sorri, quando os tempos voam juntos ao dia-a-dia do presente. Fechou a porta e foi olhar o rio, da janela do seu gabinete, ouvindo um pouco de Wagner, baixinho, como música de fundo dos seus pensamentos, anelando a consciência.

Conto 49, de 06/08/2000, domingo

Espelho de cego João Protásio Farias Domingues de Vargas

Fernando Pessoa falava ao seu ouvido, cantando um trecho de verso do famoso Poema em Linha Reta, em seus pensamentos. - "Nunca conheci quem tivesse levado porrada na vida; todos eles nunca foram senão príncipes na vida; poderão suas mulheres lhes terem traído, mas ridículos, nunca! Que dizer de mim, que sempre fui ridículo sem ter sido traído!" As seis palavras porrada, vida, príncipes, mulheres, traição e ridículo, recorrentemente, não saíam de sua cabeça, evoluindo para expressões inteiras: porrada na vida, príncipes na vida, traição de mulher, ridículo na vida. Simplificava um pouco, repetindo as palavras: porrada, príncipes, mulher e ridículo. Depois, singularizava, distintamente: vida e traição. Seus pensamentos misturavam tudo, formando frases inteiras. - A vida é uma traição só; mulheres de príncipes traem; mulheres dão porrada e fazem ridículo; mulheres dão porrada nos príncipes que traem; ridículo é trair com porrada a mulher do príncipe; príncipes são ridículos com as mulheres na vida; somos ridículos porque não temos mulher e nem somos príncipes; a vida dá porrada nas mulheres dos príncipes ridículos; a traição dos príncipes é ridícula na porrada da vida das mulheres; ridículo é ter sido traído sem ter mulher, sem ser príncipe na vida; ridículo é ser príncipe traído por mulher da vida; vida é ser mulher de príncipe para trair o ridículo na porrada!... Ía, assim, no seu devaneio, enquanto puxava a cortina, deixando os raios do sol iluminar a escuridão da sala, escancarando a janela. - Porra! O que é que o portuga quer dizer com essa droga de verso! - disse em voz alta, quase gritando, realizando os pensamentos no ar. Ninguém respondeu. Estava sozinho. Aproveitou a solidão momentânea e resolveu conversar consigo mesmo, num diálogo esquizofrênico, meio paranóico.


esquizofrênico, meio paranóico. - Cara, tu não era espada, pelo que me contaram! Que papo é esse de traição de mulher, de príncipe, porrada e ridículo, então? Não faz sentido. Tu era o cara que comia as mulheres dos príncipes, e por isso eles eram ridículos? Que feio! Um moço tão bonitinho, tão certinho e tão peralta ao mesmo tempo! Era bi? Tri? Poli? Seja lá o que fosse, os teus versos não deixam ver com clareza. Mas, aquela parte que fala sobre piscar de olhos dos moços de frete e fazer feio às camareiras de motel são muito comprometedoras! Acho que não era espada, não! Era bainha, cara! Pouco importava a opção sexual de Fernando Pessoa, mas ele estava ali, naquela linha de questionamento desnecessário, enquanto tomava sol e olhava os prédios, até onde a vista alcança. Estava intrigado com alguma coisa que não sabia o que era. As motivações não pintavam. Não saía dessa. E o tempo passando; a tarde ía alta quando deu um estalo. - É isso! O ridículo da vida! É disso que ele fala! Não tem nada a ver com os versos, mas é como estou me sentindo agora, ridículo na vida. Mas, o que é o ridículo? - perguntou-se, pondo os dedos da mão esquerda sobre o queixo, imitando a clássica posição do filósofo grego, franzindo levemente a sobrancelha. Queria ter certeza do significado da palavra. Pegou o mata-burros e pôs-se a folheá-lo, em busca do verbete certo. - Rico, rimar, rincão, ôpa! Voltei! Ricto, ridente, está aqui, ridículo. " Do latim, ridiculu. Adjetivo. 1. Que provoca riso ou escárnio; grotesco. 2. Diz-se de pessoa, atitude ou circunstância que se torna visível por levar ao exagero aquilo que é natural ou apropriado a determinada condição. 3. Ver Cômico. 4. De pouco ou nenhum valor; irrisório, insignificante, mesquinho. 5. Ver Avaro. 6. Brasileiro: "quanto mais rico, mais ridículo". Substantivo masculino. 6. Pessoa ou coisa ridícula. 7. Ato ou efeito de ridicularizar. 8. O que há de ridículo (1,2 e 3) numa pessoa ou coisa: Não pensou no ridículo a que se expôs durante a festa." Terminou a leitura em voz alta e impôs-se a reflexão, tentando saber se o que o portuga queria dizer estava dentro das palavras do verbete. - Para algo ser classificado de ridículo é preciso que alguém, alguma pessoa julgue a tal pessoa, tal coisa ou tal atitude como sendo ridícula. No caso, é o Fernando quem se diz ridículo e que entende que os príncipes, mesmo sendo ridículos, com a traição de suas mulheres, não se sentem ou não se apresentam, ou não se parecem ridículos. Ah, está comparando o ser ridículo com o estar ridículo. Bá! Ele está down mesmo! Se compara com os príncipes e se sente mais ridículo ainda, mesmo que não o seja! Ele, o portuga, julga os príncipes e julga a si próprio. O ridículo na vida... Parou um pouco a sua reflexão, já incursionando na lógica, a partir da moral, para retomá-la, agora com um novo recorte, mais conceitual e específico. - A aparência de exagero ou de inadequação são os dois critérios que permitem classificar algo de ridículo ou não, segundo o dicionarista. É a questão de parecer ou não ridículo. Usa a palavra "tornar-se visível". Se não parecer ridículo, ridículo não é. É tudo aparência! Quando se sabe que uma coisa é exagerada ou inadequada? É difícil responder. Nunca se sabe, senão na hora. Alguns falam em meio termo, equilíbrio, sincronia... Nunca se sabe


Alguns falam em meio termo, equilíbrio, sincronia... Nunca se sabe ao certo o momento em que algo está visivelmente adequado ou não. Também, as pessoas não andam por aí cassando as coisas para verem se elas são ou não ridículas! Acho que o princípio é o da boafé, do incentivo, da benevolência, o que norteia o julgamento dos outros!... Ou não é? Nova dúvida pairou sobre sua cabeça, como uma nuvem carregada de forças negativas, com raios, trovoadas e tudo, como se vê nos desenhos em quadrinhos feitos para crianças. Apesar de parecer ridículo, não conseguia compreender o que era o ridículo das coisas ou nas coisas. Olha só, e eu, daqui, do alto desse teclado, julgando a vida e o modo de pensar da personagem. Isso é um disparate. Um modo deus de agir. Quero assegurar ao leitor, desde logo, que não é minha intenção tornar a personagem ridícula em sua cogitação sobre o ridículo, pois uma atitude como essa resultaria numa petição de princípio, o ridículo de mim que gera o ridículo do outro que reflete o ridículo de mim e assim por diante. Não que tenha medo de ser tachado de ridículo. Isso eu acho ridículo. É que a pretensão é deixar a personagem se desenvolver solta sobre o ridículo, no ridículo do ridículo das reflexões sobre o ridículo do ridículo das coisas e da vida. Nosso herói-filósofo retornou à bala, entrando de sola na massa cinzenta do cara que escrevia sobre ele. (Pensou que a fala anterior era a minha, hein? Enganou-se. Eu estou mais acima. Sou outro. E, para piorar as coisas do entendimento, também quero deixar você, leitor, na dúvida, se esse aqui, agora, sou eu mesmo, ou um outro eu que finge o eu que realmente sou. Há uma sucessão de eus que você nem imagina! Há! Há! Há!) - Ridículo! - Como assim, ridículo? - É ridículo falar sobre o ridículo! - Complicado, né? Não tenho nenhuma dificuldade, não. Não me parece que todo ridículo seja ridículo. Há ridículos aceitáveis e até ridículos que são salvos pelas circunstâncias. Ridículo é desqualificar os outros chamando de ridículo aquilo que a gente não entende ou não aceita. Falo do chamado ridículo moralista. É o mais pernicioso dos gêneros de pregação e de carregação, no sentido literário do termo. - Agora, viajou mesmo, não é?! - Não. Sempre me pareceu ridículo ver uma pessoa chamar outra de ridícula! - Está me chamando de ridícula? - Serviu o chapéu? - Agora, piorou. Está me chamando de burra, também! - Nada disso. Segundo minha proposição anterior, eu seria ridículo se te chamasse de ridícula, não percebe? - Percebi. Então, qual é a razão do riso debochado? - Nenhum. É hilário, só isso. - Isso é ridículo! - Viu só. Eu estava certo na minha assertiva. O chapéu serviu! O sol estava se pondo e os raios já não iluminavam mais a sala. Fazia um bom tempo que não estava mais sozinho. Os seus pensamentos ganharam asas e atingiram outras muralhas. O monólogo viou diálogo e, como sempre acontece nessas horas, o ridículo põe a sua cara para ver, espiando de perto as cenas do


ridículo põe a sua cara para ver, espiando de perto as cenas do cotidiano da vida. Disse a última palavra, mudando de assunto. - Fernando Pessoa estava certo, ninguém gosta de parecer ridículo, mesmo que isso possa parecer ridículo. Tudo o que é ridículo faz sentido; só é ridículo o que faz sentido. Façamos sentido sempre, mesmo quê. - Ame e dê vexame, é isso? - É isso. Mostre-se, sempre que tiver oportunidade, sem se importar com o ridículo do julgamento ridículo do ridículo das coisas e das pessoas que olham. Vou encerrar dizendo assim: todo ridículo é ridículo, aos meus olhos. Não seja nunca ridícula, ridicularizando os outros. - Então, o ridículo existe. - Existe e é ridículo; um espelho de cego.

Conto 50, de 07/08/2000, segunda-feira

Grosso e partido João Protásio Farias Domingues de Vargas

Cinco amigos, numa reunião semanal e etílica que lembrava os contos do mal do século, á beira de uma mesa, tarde da noite, conversavam, entretidos, entre si. - Vou contar a do "Grosso e partido". Certa feita, andando pela João Pessoa, vindo no sentido centro-bairro, logo depois do Viaduto Leopoldina, deparou-se com uma voz estranha dizendo: “- Aqui, ó, companheirada. Atenção, mais uma vez. Ordem no plenário. Vou falar. os três critérios são: inovação, radicalização e ousadia. Os três eixos programáticos são: combate à miséria absoluta, radicalização da democracia e desenvolvimento econômico e tecnológico. Entenderam? Preciso repetir? Não; ótimo. Vamos em frente. Mais uma vez, alguma dúvida? Última chance para explicações. Não. Mãos à obra. Boas plenárias e fim de papo. Calegário ia passando em frente à sede municipal do PT, em Porto Alegre, quando ouviu a conversa acima. No seu trajar simples, de gaudério de lide campeira, curioso, quis saber do que se tratava, aquele povo todo ali, reunido, falante, cheio de cores e interesse. Era uma plenária partidária para fins de organizar o programa de governo do candidato deles a prefeito da cidade. - Buenas tarde, moço. Que é que tá havendo aí dentro, com esse gritedo todo? - perguntou, numa linguagem que logo se via que não era da cidade grande. - Plenária - respondeu o recepcionista. - O quê? - reperguntou, estendendo o ouvido para o lado do balcão, indicando que não tinha ouvido bem. - Plenária. Tá havendo uma reunião de campanha. É isso aí.


- Plenária. Tá havendo uma reunião de campanha. É isso aí. - Posso entrar? - Claro - respondeu, abrindo a cancela que dava prá dentro. Calegário foi entrando, de mansinho, como quem não quer nada; mala de garupa nas costas, alpargatas, bombacha azul e camisa volta-ao-mundo branca, caladinha; boina preta na testa, cavanhaque muito preto e um palito entre os dentes. Ficou parado na porta, admirando o movimento. Aquela montoeira de gente lá na frente, falando alto; alguns gritando palavras de ordem, outros levantando os braços e dobrando o antebraço no alto, como em sinal de murro no ar, com punhos fechados. Parecia que todos falavam entre si e ninguém se entendia. Outros tinham um monte de papel debaixo do braço, escritos a tinta, com letrinhas miúdas. Tudo era muito estranho; nunca tinha vista coisa parecida. Mal comparando, parecia gado no final da tarde, perto do brejo, com sede e pressa prá voltar pr'os bretes. Uma moça bonita estava sentada numa cadeira, na última fileira, com uma bolsa de couro marron, à tira-colo. Aproximou-se dela e perguntou, como quem não sabe de nada. - Que é que deu aí? - Como assim? - perguntou, olhando de cima a baixo o camponês e vendo que ele era de fora. - Ah...É uma plenária do Partido dos Trabalhadores que tá tirando as propostas de programa para o candidato a prefeito de Porto Alegre. - O Brizola tá aí? - Brizola?!??? Ei, cara, tá no lugar errado. O Brizola é do PDT, outro partido; aqui é o do Lula, entendeu? - Ah, é!... É do Lula... Lula-lá, lula-lá, uma estrela...- Ficou, assim, cantarolando, como quem tenta se dar conta de alguma coisa que mal consegue lembrar. - Obrigado, moça. É que eu não sou daqui. Vim das grotas... Tava indo prá Redenção, ouvi o entrevero, achei que era bochincho e fui entrando. A cancela tava aberta, convidando; o porteiro disse dava, então, entrei e tô aqui. - Pode ficar, companheiro. De noite vai ter uma caminhada no centro. Tá convidado. Pega, aqui, um panfleto - e foi dando um impresso pequeno, de um quarto de página, para o matuto. - Como é o teu nome? - É meio esquisito, dona; me chamo Calegário, a seu dispor disse, fazendo um cumprimento típico, tirando a boina e se inclinando levemente o tronco para a frente. - A moça é bonita e muito jovem. Qual é a sua graça? - Graça?!? O que é isso? - perguntou perplexa, levantando-se da cadeira. - Graça? Ah, é o nome, o apelido, o modo como se chama explicou. - Ah, bom! Eu me chamo Clarissa Barnes. Faço parte da Zonal 115. Nisso, passou um jovem com uma camiseta branca estampada no peito uma foice e um martelo, com as insígnias " PCdoB". Ele reconheceu o símbolo e fez logo o sinal da cruz. - Credo, moça; tem comunista aqui! Vão ser preso! Os milicos cassam comunistas! - Calma! Esse tempo já passou. Agora é livre. Qualquer um pode ser comunista nesse País. Os tempos da ditadura já passaram. É a


ser comunista nesse País. Os tempos da ditadura já passaram. É a democracia. - É, mas não dá de se fiar. Vai que feche de novo a coisa e tudo volte como era antes! Esses caras são machos, mesmo; eu não me atreveria tanto; e, olha, que eu sou guapo! Aproximou-se um homem de meia idade, chamado Zé e foi logo falando com a moça. O grosso ali, prostrado, ereto, olhando tudo com muita admiração; não dava um pisco de olho, com medo de perder alguma coisa importante. Estava fascinado com tudo o que via. - Quem é o cara, Clarissa? - Ah. É um cara que chegou aí e ficou olhando. Acho que quer se filiar - disse, rindo e brincando, num jeito malicioso. - Ô, companheiro! Companheiro! - disse, tocando o ombro do vivente. - Pois, não, senhor! - O senhor quer se filiar ao partido? - Posso??... E o que eu ganho com isso? - redargüiu. - Uma bandeira de luta, companheiro; um caminho prás mudanças necessárias no nosso País. O combate à miséria, à opressão, ao desemprego; a luta contra os ricos que não querem dividir nada com os pobres. É isso, e vai ajudar a eleger o novo prefeito da Capital. - Mesmo!?!! Ah, então, manda, que eu quero - respondeu, ingenuamente. - Sempre gostei das falas, mas nunca tive perto de um, assim como agora. Tem tanta gente entusiasmada; deve ser muito bom. - E é! Manduco - gritou, para o cara que estava no guichê -, pega uma ficha e traz aqui, com caneta. Veio uma moça de cabelos muito pretos e longos trazendo um formulário e uma caneta. - Ah, moça, mas não vai dar. Eu não sei escrever; só sei assinar o nome. - Não tem problema. Analfabeto pode se filiar, também. - Não me ofenda, moça. Eu não sou analfa. Eu já disse que sei assinar o nome e até lei alguma coisinha, se não for muito difícil. Freqüentei escola; não foi muito, é certo, mas quase terminei o segundo. Ela começou, no meio daquele povo já saindo para fora, a fazer as perguntas e a preencher a ficha. Ao final, foi lá dentro, pegou uma pequena plaqueta, apertou o polegar direito do interiorano na tinta preta e imprimiu a digital sobre a ficha. - Mas, eu sei assinar o nome... - disse, meio que reclamando pelo tratamento com o dedo. - Ótimo. Então, assina aqui - indicando o local onde deveria assinar. - Pronto! E, agora? - Tá filiado, companheiro. Bem vindo ao Partido. Pode participar de tudo o que for feito por nós. Pega esse folheto, aqui está uma cópia dos estatutos, do manifesto e o manual do recém-filiado. Já te disseram que tem caminhada, hoje à noite, no centro, antes da festa? - Festa? Onde? - perguntou, muito interessado. - Ah, Clarissa, fala prá ele, tá? Eu estou com pressa. Preciso ir. Faz esse favorzinho? - disse, saindo, apressada.


Faz esse favorzinho? - disse, saindo, apressada. - Tá bom, Gina - vou quebrar esse galho prá ti. Olha, aqui,... Calegário, né? A festa vai ser no endereço que está aqui no mosquitinho. Se tiver dificuldade para encontrar o local, vem prá cá; sempre tem gente que sai da sede prá lá e tem carona, tá legal? Agora, me dá licença, que também preciso ir. Tá tarde e tenho de comer. Vamos, Zé? - falou, puxando o amigo pelo braço, como que arrastando mesmo. - Calma! Já estou indo. Que mulher mais apressada! Deixa eu terminar isso aqui, primeiro. Dá mais uma atençãozinha ao novo companheiro; convida ele prá almoçar com a companheirada ali no Alemão; vai, que ele vai se sentir bem conosco. Afina, não podemos deixá-lo desamparado, assim, perdido, como está. - Anjo da guarda! Te apressa. Vou fazer isso. O gaudério gostou da fala do homem e foi já imaginando como seria comer com aquela gente. Vinha novidade pela frente. E isso que ele só queria dar uma espiadinha ali dentro; terminou filiado e agora almoçando com aquele bando de loucos. Tava do jeito que o diabo gosta! Ficou vermelho de alegria; bendita hora que resolveu ouvir a conversa e os gritos. Novos amigos! Eram bom demais prá quem não conhecia nada na capital. Enquanto esperava, sentou-se. Ficou folheando o tal de estatuto. Não tinha nenhuma figura; só letrinha. Letrinha e mais letrinha. Como é que ia entender o que estava ali; precisa aprender a ler e isso custava tempo e dinheiro; estava velho demais prá recomeçar. Pensou que a sua tia Mariana deveria ter sido mais dura com ele, quando ele se recusou a estudar, quase vinte anos atrás. Até deu vontade de ir prá aquele tipo, o Mobral, como chamavam; pelo menos aprenderia um pouco; e era à noite, sem gastar o dia. É, mas - continuou pensando -, lá no interior as coisas eram mais difíceis; tudo mais difícil. Até as pessoas eram mais difíceis! Nunca deram atenção para ele, como estava sendo dada agora... Passou pela cabeça dele, de relance, uma vontade de ficar por ali e não voltar mais para as grotas. Bem que podia dar certo. - Vamos indo, Calegário, chamou Clarissa - agora, puxando o interiorano pelo braço. - E o Zé? - perguntou, meio que ensaiando uma certa intimidade. - Deixa ele aí. Depois ele vai. Vamos na frente, que eu estou morrendo de fome. - A senhora é que manda. Vamos lá. Eu também estou louco por uma xepa! - Xepa?!? - o que é isso. - Ora, essa! Bóia! Rango! Pasto! Grude! Xepa é isso. Comida. - Entendi. Tu fala uma palavras tão estranhas! Alguns minutos depois, descendo a rua, entraram em um restaurante lotado. Lá no fundo, uma mão acenava, indicando o local. Era o pessoal da turma do Zé. Foram ter com eles, e o Calegário, junto, enturmado, já de estrela, adesivo e tudo no peito. Todo fantasiado de PT. Na mesa, o papo, para variar, era outro. O partido, mesmo. - Essas propostas estão muito fracas! Fracas, mesmo. A companheirada do Estado e do Município, os burocratas, não desceram para ajudar. Os que desceram foi só prá barrar o avanço, sob o pretexto de que temos de ser realistas - disse uma mulher de seus trinta e poucos anos, enquanto arrumava os pratos e servia um


seus trinta e poucos anos, enquanto arrumava os pratos e servia um pouco de cerveja. - Alguém vai querer? - ofereceu, com a garrafa suspensa sob a mão. - Eu. Eu vou - se adiantou o nosso matuto, de bombacha e tudo, erguendo o copo na direção dela. - Uma cervejinha é sempre muito bom! - Vai, gaúcho, que essa tá bem gelada, do jeito que o diabo gosta - disse, rindo e servindo o guasca; de logo notando que era interiorano mesmo, e não fantasia. - Me conta, vivente - falando já na linguagem do homem -, que te faz por essas bandas? - Tô dando uma camperiada por essas cochilhas das capitar! Oiando o novo pago e admirando as pessoa daqui. Gente boa, barbaridade. Se entusiasmou com a linguagem da prenda que nem mais se preocupou em falar do jeito que entendia direito. Soltou o verbo do jeito que sempre fala, mal uma barbaridade, mas muito à vontade, prosante. Gostava de uma prosa, principalmente com gente da cidade, o que era raro na vida dele. - Se filiou agora. Fresquinho, fresquinho da silva - disse Clarissa, apresentando Calegaro. - Epa! Fresquinho, nada! Eu sou é macho, mesmo. - Não, não, gaúcho. Não é disso que ela tá falando. Tá dizendo que tu é filiado novo, novinho como pão fresco, feito na hora. É isso. - Ah, bom. Tava quase me ofendendo. Tem muito viado por aí e não gosto que me tirem prá isso. Eu gosto é de china, mesmo; me arrasto por uma prenda que é uma barbaridade! - Tá gostando do partido, da companheirada? De onde é que tu é, cara? - perguntou outra mulher, que estava mais à esquerda, no canto daquela mesa longa. - Sou das barras do Quaraí. Me criei e vivo até hoje, no campo, na lide de fazenda. Eu laço, domo, toso, marco, castro, planto, faço de tudo um pouco. Pau prá toda obra, do começo ao fim; não há o que não saiba fazer nesse ramo. Estou nele desde piá; e nele já estavam meu pai e meu avô, que Deus os tenha. - Tem filhos, mulher? Quantos anos tu tens? - perguntou outro. - Nem muié, nem cria. Tô com vinte e lá vai fumaça. - Nem parece que é tão novo. Parece que tem seus trinta e cinco ou mais - disse uma voz meiga, posta ao lado da gorda de boné operário. - É! As madrugadas, o fogo, a geada, o esforço, tudo isso vai envelhecendo o homem muito cedo. Mas, a idade é essa mesmo. - Vocês não vão acreditar, mas o meu pai foi fazendeiro, gente! disse Clarissa. - Então é por isso que arrastou o peão, confessa?! - disse Zé, chegando à mesa. E o que houve do gado e das terras, que nunca vi? - Tudo foi perdido. Ele faliu quando eu era novinha, ainda. Vendeu o que restou e viemos para Porto, tentar a vida. Compramos uma casa. Foi tudo o que deu prá fazer com o dinheiro. Ele virou empregado em uma fábrica e minha mãe, também. Por um lado foi bom, deu para eu estudar... - Íiii. Vai começar todo aquele lero de novo; o burguês que virou revolucionário na fábrica. Essa biografia foi roubada da Rosa, não parece a vocês? - perguntou, debochadamente, a todos. - Essas feministas! - completou.


feministas! - completou. - Pára! Pára, viu! Eu só queria dizer que eu entendo muito bom o jeito do Calegário, pois conheço muita gente como ele; grossa e de bom coração; ingênua de dar dó, mas muito trabalhadora! - Desculpa. Só queria tirar um sarrinho das colocações. Retiro tudo o que disse. Tá legal? - Eu tô gostando uma barbaridade de todos vocês. Em toda a minha vida, nunca vi hospitalidade tão grande prá gente como eu, acostumada a ser escorraçada... - disse, num depoimento triste, sentido, quase chorando. - Aqui, ó, a companheirada é das boas! O que tu precisares, podes contar conosco. O que precisar e estiver ao nosso alcance, tu vai ter. É só procurar. Estamos sempre por perto. O coletivo é grande e sempre tem um jeito de ajudar - consolou um homem de barba branca, sentado à cabeceira dos fundos da mesa. Calegaro se inclinou e olhou para o homem, fazendo um sinal com a cabeça, no sentido de que entendera e agradecia a bondade de todos. Veio o garçom e trouxe vários pratos de comida, pondo-os enfileirados, ao longo da mesa. Todos puseram-se a servir-se e a comer vorazmente. Calegário perdeu a timidez e foi logo fazendo o cerro no prato. Sem cerimônia, horizontalizou o garfo na mão esquerda - era canhoto - e mandou brasa, que a comida tava uma delícia. Eram três horas da tarde e o sol ardia do lado de fora. Podia ver, através da janela, do outro lado da rua, o Parque da Redenção, onde iria visitar e conhecer, antes de chegar, por acaso, naquela sede. O que é o destino! Novos amigos e partido novo. Não sabia o que seria dali em diante, mas já tinha quase certeza de que não tinha mais condições de voltar para casa. Aquela cidade o havia adotado e não se importava nenhum pouco por engrossar a estatística do êxodo rural. Afinal, era uma realidade mesmo, que não se poderia maquiar. Comeu e comeu, até estufar a barriga, aliviando com uma boa cerveja gelada. - Muito bom o conto, Marcos! De onde tirou esse do grosso e do partido? É a melhor dos três, já contados nessa mesa, enquanto tomamos esse bom vinho! - Inventei agora! - Ora, conta outra! O conto tá redondinho, meu! - Não; é verdade; inventei agora, prá vocês; sempre invento na hora; eu nunca lembro, quando quero lembrar. Claro que tem coisas de vários lugares, mas a engenharia da trama e dos diálogos foi feita agora. - Muito bom, mesmo. Parabéns. Paulo, é a tua vez. - Vou contar uma de padre, se importam? Certa feita... E os cinco amigos, já passados das cinco da madrugada, estavam ali, vá a tomar vinho, lambiscar uma carne e contar causos, despreocupados com o tempo. Faziam isso uma vez por semana, pelo menos, quando não duas; depois iam todos ao Botafogo, dormir na casa do Freitas, enquanto curavam a ressaca e reduziam a termo a nova produção, que já não era pouca. Não eram desocupados, mas todos eles tinham como dar conta


Não eram desocupados, mas todos eles tinham como dar conta de suas vidas, levando a literatura avante. Reduziam a escrito, posteriormente, e iam compilando as falas. Pareciam irmãos e não eram nem parentes, de tão bem que se davam. Era inverno naquele dia e estava longe de clarear; horário em que o dono do bar sempre fechava as portas. Planejavam publicar um livro. Era o sonho, enquanto a imaginação cantava os contos que a vida dava.

Conto 51, de 08/08/2000, terça-feira

O ator e a prática política de Jesus João Protásio Farias Domingues de Vargas

Título ilustrativo e cheio de imaginação é o de um dos filmes do Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Lembra, de logo, trecho da música do Raul Seixas, ...lá vem Deus, lá vem o bem de braços com mal... A gente é ensinado a ter medo do que é sumo bem! Pode isso?! Não é falta de piedade para com as religiões que exploram a vida de pessoas tidas como santos, profetas ou guias; é tratamento humanitário, mesmo. Pode-se, sem medo, pesquisar a vida de Jesus de Nazaré, de Maria, de Madalena, de Gabriel, de José, sem medo de ir arder nos quintos dos infernos. Se há bondade, e ela é tanta, há de compreender nossas reflexões, não é mesmo? Afinal, todo pai é compreensivo para com seus filhos, ou não é pai; é qualquer outra coisa, menos pai. Foi tentando ver de um modo humano essa gente humana que Saramago foi tão atacado com o seu Evangelho Segundo Jesus Cristo; que aquele famoso cineasta foi agredido por ter ousado pensar Maria e José nos tempos modernos, como a burguesa e o taxista. Os exemplos são vários e muita estória não está bem contada. Aquela do anjo que aparece à janela, tarde da noite, anunciando que a moça virgem vai ter um filho de um deus é quase uma piada, nos tempos modernos. Se alguém ousa contar uma estória assim, ninguém acredita; por que, então, devemos acreditar naquela, ocorrida tantos anos atrás? Afinal, Maria era oriunda da nobreza, da tribo de David, descendente de Salomão. Tinha nome e patrimônio a zelar. Sabem qual era o castigo para as grávidas ou mães solteiras da época? O mesmo de Maria Madalena, morte por apedrejamento. Não é à-toa que, já grande, o menino crescido a defende, mandando atirar a primeira pedra, quem não tivesse erro algum nas costas. Não seria de todo errôneo afirmar que a estória foi construída para justificar uma gravidez fora do matrimônio; uma mãe solteira de origem nobre. Quem era o pai do garoto: José, que depois casou com ela, ou o cara da janela? Não se sabe até hoje. Daí a rebeldia do garoto, quando cresceu!


do garoto, quando cresceu! Outra é a da formação do Grupo dos 13, o líder e seus doze militantes. Jesus era um articulador político com um chefe de gabinete, de nome Pedro. Tinha até os dissidentes, a exemplo de Judas, que mudou de partido, entregando todo o jogo aos inimigos da causa. A dificuldade de cooptar e arregimentar militantes era grande; não tendo como atingir a juventude, Jesus teve de buscar mesmo os trabalhadores do mar, pescadores, para engrossar as fileiras do seu partido. Ele era modesto, como liderança; afirmava que a sua força não estava nele, mas num grande guia, poderoso e que não tinha nome, por isso o chamavam pelo gênero, o deus; que era o maior, o grande dirigente, o pai, o mais forte, o imbatível. Na sua modéstia política, sequer se identificava como o grande militante da causa; rebaixavase à condição de filho, de discípulo, na tentativa de construir a sua causa, nos moldes de uma grande família, com laços fortes de fraternidade. Líder e militantes faziam reuniões periódicas e comiam em quando discursavam. Reuniões-almoço, tais quais fazemos hoje em dia, quando dispomos de pouco tempo. E à noite, depois do trabalho; tudo igual a hoje em dia. Se vivesse nos dias de hoje, revisando o seu passado, com certeza teria assumido um partido político; e não seria de direita, não; tanto o é que foi morto pelo imperialismo da época. Estaria no PT, no PDT ou em um partido comunista do tipo PCdoB ou PCB. Como ensinava a dividir o pão e se articulava entre os trabalhadores mais pobres da periferia, sua ideologia seria socialista, é claro. Filho da mulher nobre que fica pobre pelo fato de ser mãe solteira e ir viver com um carpinteiro, crescido no berço de uma família de numerosos irmãos, não teria condições sociais de se tornar um político de direita. Quanto a Barrabás, esse sim, sem dúvida, não seria nem petista; seria um aguerrido militante da causa comunista, do tipo revolução armada, à lembrança de Spartacus. O imperialismo não muda, mesmo, não é? Sempre jogando as esquerdas entre si. Não é que jogou Barrabás contra Jesus, impondo a massa como juiz: Jesus ou Barrabás? Barrabás! Barrabás! Barrabás! Gritava a plebe ingrata, ignara e dominada. É claro que nenhum dos dois! Não tinham que entrar no jogo dos estrangeiros; tinham de afirmar os dois, pois era dois partidos que estavam do lado do povo e contra o imperialismo estrangeiro! Mas, não! Tiveram de fazer o jogo dos algozes, preferindo trucidar o grupo mais fraco, o mais diminuto e desorganizado, o de Jesus. Também, quem mandou ele aparecer demais, chamando a atenção do inimigo, sem uma larga base de sustentação! Provocou e levou! Foi ingenuidade política, mesmo! No duro! Aliás, as esquerdas são sempre assim, idealistas e eivadas de mártires! Quando Jesus diz a César o que é de César, cometeu um grave erro político. Quando deveria enfrentar o adversário, resolveu fazer mediação e isso pareceu enfraquecimento. Seria o mesmo que dizer, hoje em dia, pague a dívida externa, ainda que o povo morra de fome e a violência aumente! Aquele grupo de teatro que fez filmes, de nome “Monte Phyton”, em “A Vida de Brian”, dava um retrato interessante para os militantes perdidos da época. Os judeus de esquerda estavam em uma crise de propostas afirmativas bárbara! A civilização opressora era muito mais avançada do que a deles, e isso não se poderia


era muito mais avançada do que a deles, e isso não se poderia negar. Agora, bem que poderiam se aproveitar disso, dar um salto de qualidade e expulsá-los de suas vidas, com o uso das armas e tudo o mais que dispusessem. As lideranças políticas institucionais judaicas eram permissivas, do mesmo modo que os milicos dos tempos das ditaduras da guerra fria, na América Latina. Algum grupo de elite se beneficiava economicamente com a dominação imposta. Tanto o é que não resistiam enquanto Estado ou Nação. Os dois maiores grupos revolucionários eram os de Barrabás e os de Jesus, cada um com as suas deficiências próprias e sabidas. Quanto ao misticismo das lideranças políticas da época, isso era muito comum. Todo líder político era um religioso, ao mesmo tempo; era mitificado e mistificado pelos seguidores e pelos que eram arrastados como massa. Não há nada demais, portanto, no fato de dizerem que Jesus fazia milagres, como os de transformar água em vinho e pão em carne ou multiplicar os pães para matar a fome. Vinho e carne eram comidas escassas e, por isso, preciosas; nada mais milagroso do que fazer isso, viesse de onde viesse. No deserto, miragem é coisa comum! E tem as suas utilidades, sim; permite que as horas e as dores passem mais depressa. Assim como os milicos, recentemente, matavam com um tiro na nuca, diante de um buraco largo, os romanos da época tinham o hábito de matar crucificando vivo, ao relento do sol. A morte na cruz tinha um significado psicológico e pedagógico muito importante: você pode ser o próximo, se seguir esse caminho. Coisa comum, em época de guerra, inclusive hoje; mais, ainda, se se está em permanente estado de sítio, como estava aquela região, na época. Milhares morreram lá, antes de Cristo, assim como muito mais morreu depois, inclusive durante a idade média, sob o patrocínio dos próprios sedizentes seguidores dele. Falamos das Guerras Santas feitas pelos Cruzados, contra os árabes; sob o pretexto de defesa da Europa, fizeram muitas guerras de conquista, à base da pilhagem e da instalação do terror sobre os povos orientais. A prática política de Jesus era muito pobre, mesmo. Tinha muitos seguidores, mas poucos militantes para o exercício das tarefas que qualquer organização política exige. Faltava cultura organizacional, diríamos. Não tinham objetivos muito claros, o que lhes tirou a possibilidade de montar uma estratégia fortalecida por táticas conseqüentes. O seu messianismo pôs tudo a perder, colocando em risco a vida de seus correligionários, que não tiveram outro caminho a não ser se dispersar. Tanto ocorreu isso que até o principal militante, Pedro, negou três vezes, antes do galo cantar, que fizesse parte do grupo. Não tinha saída; ou mentia ou morria. Galileu fez isso mais tarde, na ciência, para salvar a pele da fogueira; a cruz dos tempos medievais; o novo martírio real e simbólico dos romanos! Como dirigente político, Jesus estava ciente de que a sua estratégia era falha, que não daria certo. Quando a polícia já estava nos seus percalços, reuniu uma última vez a militância, fazendo sua última análise de conjuntura; e não foi boa em suas conclusões, porém, realista. Previu a derrota e a crise de imaginação não permitiu montar uma estratégia rápida, ainda que fosse de fuga. Como toda política messianista, foi suicida. Também houve falha por parte dos romanos, pois permitiram o surgimento de um mártir, engrossando as forças de resistência.


surgimento de um mártir, engrossando as forças de resistência. Nisso, a política de Jesus deu certo. Um mártir é sempre bem vindo à causa de qualquer esquerda ou oposição! Jesus deu-se para tal. Quem sabe essa tenha sido o maior avanço de toda a sua experiência política prática. Posso não concordar com ela, pois desperdiça a vida, mas funcionou. Prova disso é que pouco mais de quinhentos anos depois eles venceram. O partido era outro, está certo, mas tinha a mesma origem. Como ratos de esgoto, cresceu nos subterrâneos a organização clandestina que haveria de derrotar, finalmente, os romanos, internamente. O partido se tornou internacional; foi corroendo o império por dentro, ganhando as consciências das lideranças para as fileiras de sua militância. Assim como a estória dos reis magos e da estrela d'alva, símbolos da vida e nascimento, postos ao lado do símbolo da morte, a cruz, fez-se uma corrente imensa e política que persiste até hoje, séculos depois, tendo dado origem a centenas de partidos políticos e religiões que se articulam em e com partidos que lutam pelo poder institucional dos Estados. Sem querer menosprezar a religião - e nunca é demais se desculpar de plano, quando se trata de enfoques como esse -, Jesus havia sido politicamente muito mal educado em sua juventude; pelo menos para as disputas de poder e enfrentamento com o inimigo armado e enraizado no Estado. Estava ficando esperto quanto morreu muito cedo e jovem, ainda. Trinta e três anos é pouco tempo para formar uma grande liderança política. Nesse ponto, os romanos estavam certos; se ele não fosse morto logo, teria causado um grande estrago político naquelas possessões orientais. O povo era respeitado pelos romanos, tanto o é que Pilatos, após o julgamento sumário da massa, embretada na arena, julgou quem deveria morrer, lavou as mãos, em sinal de que não era decisão dele, mas daqueles. Dava a entender, como fazem tantos hoje em dia, que só estava cumprindo ordens; sabe-se, na verdade, que tudo aquilo foi obra e artimanha do próprio poder imperial. Só Jesus não percebia isso com a clareza política necessária para se inventar uma estratégia rápida e eficiente. Quando dissemos que Jesus não tinha boa prática política, não estávamos querendo dizer que os seus seguidores de agora devam imitá-lo. Não. Não é isso. Pelo contrário. Achamos que o mais prudente e esperto é aprender com os erros do mestre; aculturar-se, superar as sua falhas, aprender com os seus acertos, eis a atitude mais inteligente. Se Jesus tivesse tido a chance histórica de ter convivido mais com políticos experientes da época, que estivessem do lado de sua causa, teria poupado a vida do seu grupo e dado uma grande contribuição contra a tirania estrangeira; isso não aconteceu; mas, os seus méritos, mesmo diante de sua grande inexperiência, ampliam a sua importância histórica e serve como modelo a ser pensado, pois ele teve uma grande virtude: a coragem, a audácia, a ousadia. E isso fez dele um revolucionário, sim. Ter os cabelos compridos, andar pelado, só com um manto sobre o corpo, falando às multidões e se fazendo ouvir, isso constitui ato de grande ousadia política. Está certo que ele se engrandecia pessoalmente, à medida que dizia que era filho de um deus, e isso não tem pouca importância, não, já que a política institucional era monárquica mesmo, na época.


########### - Padre! Padre! Padre!- ouvia, como uma voz sussurrando ao seu ouvido, longínqua, misturando-se aos seus pensamentos. Deu um sobressalto, levantou-se da cadeira e olhou, assustado, ao seu redor. Era um menino vendendo flores, que lhe oferecia rosas. - Obrigado, meu filho, mas não quero rosas. E não sou padre. Sou um ator e estou ensaiando para apresentar uma peça de teatro. Quase me deu um susto, menino! Estava sonhando com Jesus... - O senhor quase me enganou. Com bíblia, batina, colarinho e tudo. Ninguém diz que não é um padre. Tem todo o jeito de um. - Obrigado pelo elogio; não sou padre mesmo. Como disse, sou um ator e estava dormindo, quando me assustou. - São só dois reais! Leva uma, leva. Então, me dá umas moedinhas para eu comer algo; estou com fome. O ator levantou a batina e tirou, de dentro da calça de brim, algumas moedas. Nem as olhou e foi logo dando ao garoto. - Obrigado, moço; que Deus lhe pague - agradeceu, sorrindo e saindo da sala. O ator se levantou novamente, foi até à porta e ganhou as escadarias do Viaduto dos Burgueses. Do parapeito, olhou para baixo e viu um ameaço de passeata, organizado por um grupelho, na Avenida. Um monte de papel picotado era jogado do alto, pela Duque, sujando a rua. Meia dúzia de pessoas faziam tudo e tinham até filmadora, para documentar o evento. Na rua, as pessoas, apáticas, em cima e em baixo do viaduto, olhavam uma vez, curiosas, e seguiam seu caminho, como se nada estivesse acontecendo. Que sonho! E, dizer que o que sonhara tinha tudo a ver com a realidade da hora. O florista, a candidatura de direita, a desunião das esquerdas, aqui e ali, possibilitando que o império se mantenha. Os romanos nunca foram embora, pensou, apreensivo. Estava quente. Voltou para dentro e tirou a batina. Estava pronto para fazer outras coisas; já mais descansado e aliviado, pois o contexto do sonho, no seu realismo mágico, havia dois mil anos que passara. Mas, Jesus, bem que poderia ter estudado um pouco mais a conjuntura da época, antes de se aventurar nos meandros do combate às ditaduras locais. Faltou força política e estratégia eficaz. Olhou o palco e viu que a cruz estava de bom tamanho. Sentouse numa poltrona da arquibancada e pôs-se a admirar o cenário, como se estranho fosse. A miséria era grande, apesar de tudo o que fomos e fizemos..., pensou, lembrando-se que havia sonhado, naquela miscelânea, com algo que lembrava Raul Seixas ou Elis Regina. Dá até vontade de dizer que a História sempre se repete e não aprendemos com ela.


Conto 52, de 09/08/2000, quarta-feira

Valores de cada um João Protásio Farias Domingues de Vargas

Cada um tem o seu próprio mundo de referência, as coisas em que acredita, os métodos que segue, um jeito peculiar de ser, humano, de viver a singularidade que encerra em si próprio, nas relações com os outros. Isso tudo constitui um conjunto de valores que cada um, necessariamente, ostenta. Valores são tudo o que importa, para qualquer pessoa. Encontra-se alguém e o encontro revela um conjunto de valores que estão agregados, escancarados em cada coisa visível ou perceptível nela. O tipo de penteado, o estilo da roupa, o modo de dispor as mãos quando fala, o estilo facial que estampa, os trejeitos do rosto, as dimensões do corpo, os objetos que pendura ou segura com os braços, enfim, tudo que é visível ostenta os valores da pessoa. Há outros índices de valores, como o timbre da voz, o jeito de caminhar, de dispor o corpo ao andar, o modo calmo ou apressado, a velocidade da fala, o conjunto dos termos que usa para se expressar verbalmente, os lugares que freqüenta, as pessoas com quem anda, o modo de reagir nas relações interpressoais, o tipo de temperamento, - lembrando a tipologia clássica - se sangüíneo, colérico ou fleumático, se dá vexame ou é discretos nos recintos públicos, tudo, tudo isso, evidencia a carga valorativa da vida de cada um, conforma a singularidade, possibilita distinguir uma pessoa de outra. Alguns, do conjunto de tudo quanto se disse, chama personalidade; outros, caráter. O modo como as pessoas se enxergam, valorizando-se ou depreciando-se, em variadas circunstâncias, também contribui para traçar o perfil próprio de cada um. A profissão que escolheu ou exerce, o modo como executa as suas tarefas, os desafios que se impõe e que impõe aos outros, os resultados que alcança, as obras que realiza, as coisas que imprime ou materializa no mundo, também se somam ao aporte cultural da imagem pessoal de cada ser no mundo, singularizando-o, evidenciando a si, chamando a atenção do mundo para si, exibindo-se. Quando se fala em valores não se quer falar simplesmente das preferências estéticas pessoais. Dizemos - simplesmente - pelo fato de que as preferências também constituem valores pessoais. A corrente estética a que se filia, a origem culinária da comida que degusta, o partido político que escolhe para o comando das coisas de Estado, o time de futebol que sustenta, o estilo de esporte que pratica, o tipo de homem ou de mulher que escolhe para viver, ou conviver, a linha filosófica que evidencia nas reflexões, o modo de ver os sistemas, os macro e os microssistemas existentes em cada campo da cultura e, por derradeiro, também, o jeito de olhar o mundo, o singular recorte que dá nas narrativas sobre os fatos da História, são, e não poderiam ser de outro modo, manifestações de valores pessoais. Os valores, posto que da pessoa, são sempre pessoais; quando a


Os valores, posto que da pessoa, são sempre pessoais; quando a pessoa se agrega a outras, formando grupos, seus valores tendem a mudar, por influência recíproca; alguns permanecem intactos, outros se extinguem, outros se transformam, dando lugar a uma simbiose valorativa que só se reconhece na própria convivência interativa. É comum ver como certas pessoas se transformam estando diante de outras certas e determinadas pessoas. A influência da personalidade de uma sobre a personalidade e manifestação dos caracteres de vida da outra é muito interessante de observar! As pessoas exercem poder sobre as outras, nas relações de grupo. Não somos as mesmas pessoas em todos os lugares e circunstâncias; mudamos muito, de lugar para lugar; em alguns somos praticamente irreconhecíveis; em outros, sempre os mesmos. É essa transformação que as personalidades dos outros exercem em nós que é capaz de, no conjunto de todos os que se reconhecem coletivamente, que foram aquilo que os sociólogos chama de personalidade e caráter grupal. Os grupos, pelas mudanças que operam nas consciências e práticas, geram características que os singularizam, como que formassem uma nova pessoa, diferente de cada um de seus componentes. Tanto é assim que a ciência do direito chama os coletivos de pessoas fictícias ou jurídicas, dotadas de personalidade, jurídica; afirma que possuem capacidades determinadas. As ordens jurídicas estatais regulam, através de normas peculiares, o modo de exercício do poder pelas pessoas que integram os grupos ditos sociais. Até mesmo aqueles grupos que não se formalizam, voluntariamente, nos moldes ditados pelas normas estatais, são regulados por essas, como é o caso das chamadas sociedades de fato, do campo comercial, do campo familiar, do campo criminal, enfim, também, grupos de trabalho. Os grupos e os grupos de grupos também possuem uma personalidade perceptível pela homogeneidade de muitos de seus caracteres e ligações. Não é assim que as pessoas, principalmente no exterior, dizem: brasileiro, americano, europeu, argentino, francês, inglês, mexicano, etc? Pois bem, a marca registrada está, nesse recorte, na origem, sendo reconhecido como uma pessoa oriunda de um determinado grupo social territorialmente posto na face do planeta. As falas denunciam nossas origens e as esferas ou orlas de grupos existentes nas diversas sociedades que se reconhecem ou se distinguem. Dizemos que fulano é do norte do país, do centro ou do sul; os americanos conseguem o mesmo, ainda que para nós, falando a língua deles, seja mais difícil tal identificação. Eles sabem até mesmo qual é a filiação de origem de nossa aprendizagem lingüística. Classificam-nos, de imediato, através desse traço característico; agregam em nós valores que não podem ser negados, - ainda que possam ser falseados, maquiados -, pois carregamos, em nós, a marca de tudo que nos possibilitou a vida até então; nós somos a nossa própria história de vida, tenha ela importância ou não para nós ou para quem quer que seja. - Vinho ou cerveja, senhor? - Vinho; está frio, hoje. Foi feita uma escolha entre duas alternativas, em um estabelecimento qualquer. Esse diálogo curtíssimo demonstra uma série de valores que podemos alcançar com um simples golpear de


série de valores que podemos alcançar com um simples golpear de vista. E isso se reconhece porque as falas poderiam de um modo diferente, a exemplo da seguinte. - O que vai querer, o freguês? - O que oferece? Outro modo inicial também demonstra novos estilos, que dão idéia de onde, ou como, estão situados, na mesma linha de atuação. - A carta, senhor. - Obrigado. Cada fala corresponde a uma série de interrupções ou de ruídos na vida das pessoas, exigindo atenção, compreensão e resposta, para que as coisas possam acontecer. - Pois, não?! - A carta, por favor. Alguns se antecipam à vontade dos outros, prevendo as falas, antecipando os desejos, facilitando ou dificultando as relações, segundo a experiência de vida, no exercício das coisas e profissões. Outros, ah, outros nos fazem perder tempo com atos de fala que poderiam ser poupados de externação, pela obviedade dos ambientes. - O que mais deseja, senhor? - Comer e beber. Nas relações políticas, a satisfação de vontades é o mote principal para qualquer articulação. A política nada mais é do que um jogo de vontades, de interesses, a caminho de resolução, satisfação ou frustração. Articulamo-nos com aqueles que nos satisfazem mais e combatemos aqueles que nos frustram mais, segundo uma agenda de interesses previamente elencada e explicitada publicamente. Não há ação política conseqüente sem a compreensão dos interesses e vontades de pessoas e grupos. Inobstante todas as ações interpressoais sejam de natureza política, ou tenham reflexo político, - pois cada um está, necessariamente ligada a algum grupo social, pelo menos -, a compreensão de que o relacionamento é político depende muito da cultura ou experiência política, mesmo, de quem reflete a ação que engendra; se se preocupa com o reflexo político, é porque possui uma compreensão política da dimensão da vida. Há aqueles que ignoram isso; esses, quase sempre, se dão mal. Uma simples conversa pode, por isso mesmo, abrir ou fechar portas amanhã ou depois, em algum lugar, para os dois lados das pessoas que falam entre si. - Cadela! - Corno! É ruptura, na certa, que esse diálogo demonstra, ainda que faticamente as pessoas possam permanecer unidas por um bom tempo a mais. A relação está rompida em algum ponto e os reflexos políticos disso serão óbvios, no futuro, quando as pretensões de um dependerem da vontade de pessoas ligadas as grupos relacionados ao outro, caso tenham conhecimento dos fatos ora expostos. A comunicação. Isso! A comunicação! Sem a informação veiculada pode-se controlar a ação de pessoas e grupos. Mais, com o seu conteúdo diferenciado, pode-se mover ou demover vontades! Não informar é, para um bom entendedor, uma forma de informar, desinformando. - Bravo!


- Bravo! - Esplêndido! A união de vontades pelo fato de comungar de um mesmo ponto de vista ou vontade ou interesse, ainda que momentâneo, aproxima muito as pessoas, pois confirma e valida o desejos e expressões. - Linda! - Charmoso! O elogio estético reforça relações pessoais e facilita as relações políticas entre pessoas e grupos. Tudo o que é bom para o alter, para o outro, reforça laços e une grupos, abrindo, escancarando portas para a satisfação de vontades, interesses, pretensões, direitos. Rompe resistências; reata laços rompidos. - Parabéns! Foi magnífica. - Obrigada! Devo a todos vocês! A fala breve de reconhecimento do valor de um ato sintetiza discursos inteiros, muitas vezes. O retorno, simples, imediato, da ajuda recebida tem a mesma importância e reforça os laços de todas as relações, ainda que possam não ser dos mais sinceros. Os valores pessoas estão postos, necessariamente, em todas as manifestações verbais e não verbais do ser. As pessoas lêem satisfações e insatisfações nas manifestações de sentimentos dos outros, em todos os detalhes que têm acesso. A ostentação do corpo e da fala demonstra estado de espírito que facilitam ou dificultam relações. Esses ícones, esses índices e os símbolos denunciam o que somos, como somos e, até, se quisermos, por que, quando, para que, enfim, qual e quanto o que quer que seja. O desenvolvimento da sensibilidade perceptiva está diretamente ligada às necessidades de cada pessoa na experiência de sobrevivência social. A ignorância sobre esses sinais não é ato de burrice, não; constitui privilégio pessoal. A inteligência e percepção desenvolvida pode ter origem na experiência de vida prática ou na simples aprendizagem direcionada, específica. Treina-se pessoas para o desenvolvimento de sensibilidades técnicas. É o que ocorre nos estudos para o exercício de profissões. Não sabemos fazer coisas que especialistas desenvolvem com muita facilidade, pelo simples fato de que não temos acúmulo ou aporte informativo naquele setor. Pagamos pela condução do exercício da experiência dos outros em favor dos nossos interesses, mediante contrato, quase todos os dias; e somos contratados, do mesmo modo. ¤¤¤ Chega o garçom, à mesa do casal, que recém entrara. - Pois, não?! - A carta, por favor. O homem, muito bem trajado, ergue dois pequenos livros negros e põe-nos sobre a mesa. - A carta, senhor. - Obrigado. Segundos de espera, em pé, ao lado da mesa, pergunta, de forma atípica, como se tivesse pressa: - O que vai querer, o freguês? - O que oferece? Mesmo dispondo da carta, o garçom pergunta: - Vinho ou cerveja, senhor?


- Vinho ou cerveja, senhor? - Vinho; está frio, hoje. E, imediatamente, interpela, mais uma vez: - O que mais deseja, senhor? - Comer e beber. O garçom se retira; o casal, aparentemente amável, vota-se a si, num tom nada cortes, mas sem perdera a elegância. - Cadela! - Corno! Algo chama a atenção de ambos, a latere. Aplaudem a cantora, que encerra a última canção do intervalo. - Bravo! - Esplêndido! Voltam-se, à mesa, em uma mudança repentina de linha de diálogo, sorrindo, um para o outro, recompondo aparências. - Linda! - Charmoso! Acompanham a descida do palco e o andar sereno da moça. Ela chega e senta-se à mesa. - Parabéns! Foi magnífica. - Obrigada! Devo a todos vocês! Era a filha, em sua estréia, na nova profissão escolhida, feliz, com a presença dos pais, inobstante o ledo atraso, o que era comum, para os dois. Ela já estava acostumada. Sorria muito; os aplausos continuavam, demonstrando o agrado da platéia. Só um problema, o garçom era o novo namorado, dono do recinto, vieram a saber, depois. O modo de olhar o moço se modificou naquele mesmo instante. ¤¤¤ O significado dos diálogos, postos nesse novo formato demonstra um novo conjunto de valores do que no modo posto ao início de nossa conversa, não é mesmo? A forma, a disposição das coisas, também evidenciam valores muito claros. É a informação nova que possibilita uma compreensão maior, desvelando a realidade, para o leitor. Viu? Valores. São quentes e com eles pode-se brincar, mas sempre terá alguma conseqüência real. Pode crer!

Conto 53, de 10/08/2000, quinta-feira

Elefante Jurídico João Protásio Farias Domingues de Vargas

Vários professores de direito, sentados à mesa de uma churrascaria, logo após o almoço, conversavam sobre coisas amenas.


churrascaria, logo após o almoço, conversavam sobre coisas amenas. Para variar, surgem algumas piadas sobre alunos. Arruda, que leciona disciplinas de Direito do Trabalho, o mais sarcástico deles, vai logo descendo uma sobre a situação dos nossos alunos na Europa. - Três estudantes estrangeiros em um curso jurídico de pósgraduação, na Europa, um alemão, um português e um brasileiro. O professor determina um trabalho de pesquisa e dá o tema: - "O elefante e do Direito. Vocês têm trinta dias para pesquisar e entregar o texto escrito em minha mesa. Sugiro a utilização dos fichamentos já efetuados." - Foram à labuta. Dez dias depois, aparece o aluno português com o texto: "Tratado do Elefante Jurídico", em dois tomos. Em vinte dias aprontou o aluno alemão, entregando "Elementos para uma Teoria Geral do Elefante Jurídico", em três alentados volumes. - No final da tarde do último dia, estourando o prazo, ofegante, aparece o aluno baiano, que entrega uma folha manuscrita ao professor: - "Prorrogação, mestre". Após um silêncio se fez e, logo em seguida, a explosão de gargalhadas. O contador da piada era o que mais ria. Villaverde, um homem de seus cinqüenta e poucos anos, grisalho, oriundo da área criminal, resolveu, de pronto, cessado o riso, encarar a piada com um olhar crítico. - Posso fazer a crítica do conteúdo da piada? - Claro! Se bem que preferia ficarmos só no ato de contar, sem aprofundamentos. Afinal, estamos em confraternização...Mas, fique à vontade, Villa - disse Mandaloso. - É! Pode analisar, mas a prenda é contar uma piada depois! disse outro dos presentes, incentivando o colorido do ambiente. - Pois, bem, vou dizer o que penso da piada - disse Villaverde. Ela é, de começo, preconceituosa e exagerada. O riso que causa é justamente pelo fato de que nos deprecia; fala mal de nós mesmos e engrandece, injustamente, os alunos portugueses e os alemães, que nós sabemos, não são tão bons assim como tem sido contado por aí e lá. Nós sabemos disso porque convivemos com eles durante bons anos, não é mesmo, Firmo? - Por que é preconceituosa, Villaverde? - perguntou Firmo. - Ora, Firmo. Está na cara que ela foi inventada por um professor português, alemão ou francês. Assim como nós debochamos dos nossos ex-colonizadores, com piadas de português, eles adoram debochar de tudo quanto achamos que é importante na nossa cultura brasileira. Fez uma pequena pausa, e retomou a fala. - É humanamente impossível produzir dois tomos em dez dias, varrendo a literatura, sobre o direito e o elefante; mesmo em vinte dias, em três volumes, produzir uma pesquisa sobre o mesmo tema. E, isso, ainda que já tenha fichamentos feitos anteriormente. A piada dá uma escala de capacidade de pesquisa e redação, afirmando que o aluno alemão é mais rápido de todos, mas é o português que escreve mais; o brasileiro é o lerdão, não escreve nada e ainda pede tempo, sendo capaz apenas de produzir um requerimento, no mesmo prazo. Isso não é verdade. As universidades européias estão cheias de alemães e de portugueses relapsos.


relapsos. - É óbvio que a piada não foi feita por um professor brasileiro; se o fosse, teria colocado no lugar do alemão o aluno brasileiro; no lugar do português, um argentino e, no lugar do brasileiro, um paraguaio ou colombiano - disse Heinz -, já na defensiva, assumindo as dores de Villaverde. - De qualquer sorte - continuou -, o preconceito e o exagero continuariam. Mas, é isso que faz da piada uma piada; daí o riso que nos causa. Piada explora quase sempre esses dois ângulos das coisas. Vê as piadas sobre loiras e religião. Conhecem aquela da carlaperes e sãopedro? - Não. Conta, conta, conta! - disseram, em coro, vários dos presentes. - Vou contar, se Villa me permitir. Diante do aceno afirmativo, encorajou-se. - Essa está rolando por aí; eu peguei na internet. Conta que São Pedro estava à porta do céu, triando a entrada dos novos mortos em subida. Chegou um velho grisalho, todo escabelado, com a língua de fora, pedindo entrada. " - Quem é você? " - Albert Einstein, Senhor. " - Como prova que é você mesmo? " - Eu inventei a fórmula da energia, E=mc2 " - Entra. O próximo. Quem é você? " - Leonardo D'Vince, Mestre. " - Como prova isso? " - Pintei Monalisa. " - Ah; entra. Próxima. Quem é você? " - Carlaperes, vovô! " - Como prova que é ela mesmo? " - Pode fazer a pergunta que quiser e eu respondo. " - Conhece aqueles dois caras que acabaram de entrar? " - Hummm - pensou, pensou e pensou, fez cara de séria, de compenetrada, e respondeu um sonoro, ingênuo e sorridente - Não! " - É ela mesmo! - disse para si. - Entra!!" - Taí, vejam - atalhou Güinter -, de novo o preconceito e o exagero presentes. O aluno brasileiro é a carlaperes do momento! - Não torra, Güinter! É só uma piada! - afirmou Arruda. - Não tem nem comparação! Uma coisa é a demora para entregar a dissertação; outra é não saber nem quem são figuras históricas tão badaladas quanto Einstein e D'Vince! Numa há a lerdice e o descompromisso; noutra, loirice farmaciada e ignorância glorificada. Lá, há estudo e viagem; aqui, dança e canto, não te parece? - Não parece, não. É a mesma coisa. De novo estamos depreciando o que é nosso. O aluno brasileiro e a carlaperes é coisa nossa, brasileiríssima, por que desprestigiar tanto? Isso é coisa de mente colonizada! Temos de acabar com essa postura imatura e ajeitada ao modo da côrte, da metrópole! Nós estamos aqui, nascemos e morreremos aqui. Somos brasileiros; é isso o que somos. Nós não iremos de volta! Nós somos daqui e eles não nos vêem mais como sendo de lá. Brasileiros é o que somos, por mais que queiramos nos sentir europeus ou estrangeiros! - Ninguém disse isso, Güinter! Estamos só brincando um pouco com as nossas próprias coisas! Que mal tem tirar um sarro de nós mesmos, um pouco? Nenhum, ora bolas! - atacou Arruda, de novo. - O Güinter está certo, gente - afirmou Villaverde.


- O Güinter está certo, gente - afirmou Villaverde. - Que é isso, minha gente? - perguntou Heinz, perplexo. - Não vamos brigar por pouca coisa, não é? - Ninguém está brigando, Heinz! É só uma conversa, um bate papo, como estamos acostumados a travar - disse Firmo, tentando acalmar os ânimos. Fizeram um brinde e mudaram de assunto, quando chegou o garçom, trazendo a conta. Pagaram e saíram, contando novas piadas, uns com os outros, como se nada tivesse acontecido. Villaverde se despediu dos amigos no estacionamento, em frente à churrascaria, na zona norte da cidade. Quando entrou no carro, estava pensando no que os amigos diziam. Pôs a chave na ignição e passou ambas as mãos no rosto, como se quisesse limpar as imagens que passavam diante dos seus olhos internos, retrospectivamente. Há muito tempo havia aberto guerra contra as piadas preconceituosas. Entendia que elas representavam um potente instrumento de perpetuação de discriminações e preconceitos contra minorias e derrotados políticos nas diversas batalhas que a vida impõe às pessoas e grupos. Deu a ré e saiu em direção ao Centro, pela Sertório. Diante do primeiro semáforo, veio-lhe a cabeça um antigo texto que havia escrito, anos atrás, sobre o tema. Defender direitos humanos não era tarefa fácil, principalmente para os seus agentes, pois sempre dava a impressão de estar em desvantagem, na defensiva. O desconforto diante de certas cenas da vida era evidente e isso o incomodava não poucas vezes. Piadas! A palavra ficava sendo repetida continuamente na sua cabeça, recorrentemente. Não era o instrumento que o incomodava; gostava de rir. O problema era o conteúdo daquelas que mais pegavam na boca do povo. A de negros, no Brasil, era exemplo clássico. Negro que é bom já nasce morto. Outro exemplo estava no machismo. Esquentar a barriga e esfriar no tanque. Coisas desse tipo. Era um dilema. Afastar-se dos amigos, pelo simples fato de que nutriam preconceitos sociais que ele não aceitava, não era a alternativa mais viável; era necessário combater, não as pessoas, mas a postura, o modo, o comportamento, o sistema como um todo. Educação! É isso! Educação parecia ser a alternativa mais viável. Como fazê-la, se ela mesma, no ensino formal, na sala de aula, reproduz os preconceitos pela fala e pelo gesto, pelo modo de expor os temas, de entonar a voz em certas passagens, pela própria professorinha, formada às pessoas e jogada diante do quadronegro? Não era fácil enfrentar a problemática. Engatou uma segunda e ganhou à esquerda, em direção à zona sul. Pegou o celular e discou oito números. - Alô? É Márcia? Aqui é Gustavo. - É ela - respondeu do outro lado. - Qual Gustavo? - Não reconhece a voz? - Não... Deixa pensar... Villa?! Como vai, Villa? E a Vara, como está? - Muito bem! A vara criminal e eu vamos bem, obrigado. Absolvendo os pobres, sempre que possível. Estou ligando para fazer uma pergunta. - Pois, que faça. Tudo o que puder ajudar estará ao teu alcance.


- Pois, que faça. Tudo o que puder ajudar estará ao teu alcance. Sabes bem que sou tua fã incondicional. O melhor juiz do mundo! - Nem tanto; nem tanto! Tu que és antropóloga, como faço para convencer grandes amigos a não veicularem piadas preconceituosas contra minorias e derrotados? - Questão difícil, amor da minha vida! Muito difícil! Eu não dou mais bola, sabe? Limito-me, de cara, a afirmar que é preconceituosa e não dou atenção. Deixo que se divirtam à vontade, sabe? Que fazer?! São assim mesmo, principalmente os homens. Eu estou loira, sabia? É; loiríssima. Imagina, né, o que eu tenho que suportar no dia-a-dia, piadas de todo tipo, dizendo que é burra, que é galinha, que é puta, e assim por diante. Ah, mas ficou tão bonitinho o cabelo! Uma graça! Serginho, o meu cabeleireiro, fez um verdadeiro milagre. Eu estava me sentido péssima morena; o cabelo estava ceco, sem brilho, etc. Loira de farmácia, mas bonita! - É..., deve ser barra, mesmo - disse, já lembrando da piada, a última do Firmo, na entrada do céu. - Márcia, obrigado pela ajuda, mas preciso desligar. Te ligo mais tarde, tá legal? Para continuarmos o assunto. Preciso muito da tua ajuda, mesmo! - Sempre que precisar, lindo! Tchauzinho. Estava chegando no ponto de destino, quando desligou o telefone. Desceu, acertou o nó da gravata, alinhou o paletó e apertou o alarme; ganhou o recinto da choperia, onde havia marcado um encontro com uma pessoa muito especial. Desanuviou os pensamentos e ingressou numa discussão comercial que passou a fazer sentido somente depois que olhou pela janela e viu que estava chovendo forte. A discussão comercial ocupou os seus pensamentos, desejoso de que não surgisse nenhuma piada do tipo, o que era improvável, como sempre. É o destino da cultura, reproduzir o que é bom e o que é mau. A questão é, para quem é bom e para quem é mau? Eis o eixo central da questão, o poder; mas isso já é outra discussão. Paremos por aqui. Chega de elefantes jurídicos de loiras nas escadarias do céu.

Conto 54, de 11/08/2000, sexta-feira

Te manda, Zé, que é hora João Protásio Farias Domingues de Vargas

Certa feita Lênin bateu à porta de São Pedro. Esse olhou pelo olho mágico da porta celestial e demorou a abrir a porta. Lênin, sem muita paciência, bateu de novo, insistentemente. São Pedro abriu e perguntou o que era. "É aqui que devo entrar ou há outro lugar reservado para mim. Estou á procura de Marx e Engels". "Não é aqui" - respondeu São Pedro, indicando com o dedo a porta que ficava ao


- respondeu São Pedro, indicando com o dedo a porta que ficava ao lado, um degrau abaixo. Lênin se dirigiu ao local, que era uma porta larga, vermelha e muito quente. Gostou do jeito, já que na Rússia tudo era muito gelado. Bateu e a porta se abriu imediatamente. No fundo, uma voz disse que estava sendo esperado e questionava a demora. Lênin respondeu que errada de porta, mas que agora estava no caminho certo. O porteiro era Sócrates, o ateniense, que o recebeu de braços abertos, dando-lhe um grande e apertado abraço. De pronto foi mostrando as instalações e as celebridades presentes, como Spartacus, Galileu, Gengis-Kahn, Marco Antônio, Alighieri, Getúlio Vargas, Che Guevara, Sartre, Pontes de Miranda, Kelsen, Paulo VI, Gandi, vários compatriotas e lideranças de várias épocas e lugares. Nisso, perguntou Lênin, pelos dois amigos, Marx e Engels. Sócrates coçou a barba e respondeu que não estavam ali, mas que olharia a planilha de entrada, pois poderia estar enganado. Sentouse ao computador e foi dando cliques de enter, sem parar. Digitou duas teclas, os nomes e deu novo enter. " Não estão aqui", respondeu. Lênin deu uma olhada em volta e, avistando um homem sentado sobre uma mesa grande e cheia de livros, a escrever com uma pena de ganso, disse que um deles estava ali, era Marx. "Impossível", disse Sócrates. "Esse é o nosso guarda-livros". Aproximou-se e cutucou o obro do velho, também grisalho e de longa e basta barba. "Marx?", perguntou. "Psssiu! Fala baixo, senão me mandam de volta para aquela chatice de céu. Tá todo mundo aqui". A felicidade de Lênin não poderia ser maior. "E o Engels, Marx?" "Ficou por lá. Um tal de Richelieu, que fora repatriado daqui, lhe deu um cargo e ele está feliz da vida, tratando do desenvolvimento econômico celestial. O maior problema lá é a falta de ocupação dos presentes. O tédio é o seu verdadeiro inferno. Vez que outra ele me faz um visitinha". "Há intercâmbio entre céu e inferno, então?" - perguntou Lênin, espantado. "Sim, e muito. Sócrates é exemplo disso. Como eu, não agüentou o local e veio parar aqui. Ele tá meio caduco; quase não reconhece as pessoas, mas é gente boa". "E, Deus e o Demônio, permitem?" "Claro. São muito amigos. Tratam-se muito bem. Estão sempre juntos. São acessíveis e muito amáveis". Lênin ficou muito preocupado, pois não tinha idéia de que as coisas fossem tão diferente do que haviam lhe contado. "Vou visitar Engels". "Vai, disse, Marx; ele vai gostar muito da tua visita". Bateu novamente na porta ao lado, grande, alta e azul clarinha. São Pedro abriu e mandou entrar, vendo o crachá de visitante, no peito de Lênin. "Procuro por uma cara chamado Engels, Friedrich; deve estar aqui há muito tempo, segundo me informaram". "Sei quem é, disse Pedro", fazendo sinal para segui-lo. Digitou uma senha de vários números e letras em um pequeno painel agregado à parece e Lênin entrou, fechando-se a porta atrás de si. No fundo de uma grande sala, em roda de uma mesa, três nomes conversavam, em pé, alegremente, apontando para diversos pontos. Aproximou-se. De imediato Engels o reconheceu. "Lênin! Que bom que veio ter conosco. Deus, apresento-lhes o homem mais importante da Europa Oriental; Lúcifer, esse homem fez mais pela humanidade do que eu pude compor em O Capital. Lênin, meus amigos, os gerentes das duas casas mais importantes, fora da Terra." Lênin apertou a mão dos dois, com firmeza, como convém a


Terra." Lênin apertou a mão dos dois, com firmeza, como convém a um bom comunista. "Que bons ares lhe trazem ao céu?" perguntou Deus. "Vim fazer uma visitinha ao amigo, respondeu. "Se não me engano, esse é teu, não é, Lúcifer?" perguntou Deus. "É, disse Lúcifer", sem muito interesse, voltando-se para o mapa esparramado ao longo da base da mesa. "Em matéria de estratégia e planejamento, Lênin me superou, disse Engels, a ambos. Lembram-se da Comuna de Paris e do Manifesto? Foi ele quem botou em prática tudo o quanto pesamos. Até hoje meus amigos ingleses e, depois, os americanos, têm medo dele. Pode ajudar nos nossos planos melhor do que eu". Deus olhou dos pés à cabeça o baixinho de boné, interessado. "Nem adianta, Deus; ele é meu; é quota minha, está lembrado?" apressou-se Lúcifer, diante do olhar desejoso do divino. "Calma, Lúcifer. Tudo é negociável; lembra dos meus ensinamentos e vai concordar comigo. Temos prioridades aqui que estão acima dos teus interesses. Afinal de contas, tenho sido muito bondoso contigo. Tu levastes quase todas as celebridades para o inferno e nunca me importei com isso. Afinal, pouco me importa se estarão aqui ou lá. Gosto de satisfazer as tuas vontades, não é mesmo?" "É verdade, Deus, mas esse é especial para mim". Lênin, impaciente com a disputa sobre a sua pessoa, disse: " Posso escolher para onde ir?" "Claro, disse Deus". " Lúcifer concorda com isso?" - perguntou. "Lúcifer é muito bondoso; satisfaz todas as minhas vontades" - afirmou, convictamente, Deus. "O que deseja, meu rapaz, e será atendido?" "Quero ficar mais cinqüenta anos na Terra, pois preciso tirar um crápula do poder, antes que tudo seja entregue para os americanos". "Impossível", respondeu Deus. "Por quê, se és o todo poderoso?" "Ora, ora, Lênin, não me faça rir. Então não sabes que tudo dividimos aqui em cima? Eu e Lúcifer, secretariados por Engels, decidimos conjuntamente, e com muita eqüidade, a vida de todos e de cada um. Ademais, já é quase século XXI na Terra. A Rússia não existe mais. O Muro de Berlin foi derrubado há mais de dez anos! A Guerra Fria acabou e agora são os países ricos contra os pobre que movem a História terrena". Lênin ficou muito preocupado. Não sabia o que dizer. "E, quanto tempo levei para chegar até aqui?" - perguntou, perplexo. Deus deu uma olhada para Lúcifer; Engels não disse nada, olhando, cabisbaixo, para os seus próprios pés, como se não fosse nada com ele. "Não lhe contaram nada?" perguntou Deus. "Sobre o quê?" inquiriu Lênin, mais confuso ainda. "Tu foste morto por Stalin que, logo depois de tua morte, mandou matar Trotsky, no México. Tudo o que tu construíste está acabado. A URSS não existe mais. Foi um acordo que fiz com Lúcifer. Ele queria Stalin e tu, antes mesmo de nascerem, em troca de Marx e Engels e eu topei. Mas, aquele preferiu ficar como contador de Sócrates, outro traidor; estão lá, os dois, na malandragem da boca do inferno. Deves ter visto a alegria dos dois! Ocorre que o trato foi desfeito e, então, resolvi que tu virias para mim, a pedido de Engels, suprir a falta de Marx. Sócrates eu deixei por isso mesmo". "Não me disseram nada disso - afirmou Lênin, sentindo-se infantil. - Pelo contrário, Pedro mal me recebeu, Sócrates nem se lembrava de Marx e, agora, chego aqui, e uma grande surpresa me aparece. Vocês brincam com as nossas vidas?" "Calma, meu jovem


aparece. Vocês brincam com as nossas vidas?" "Calma, meu jovem russo. O que está feito está feito; não dá prá mudar. Lúcifer e eu decidimos tudo; afinal, fomos nós que inventamos tudo isso. Tu és criatura nossa. Não te zangues tanto. A vida é assim mesmo. Temos tanto poder que a palavra poder não faz mais sentido para nós. Agora, podes ficar aqui, com teu amigo, e nos secretariar no destino do mundo! Não te parece uma coisa boa?" Lênin, seduzido, mas confuso, nem acreditava que a proposta fosse séria. Afinal, as duas maiores lideranças - religiosas? presentes e lhe oferecendo um cargo, era coisa que merecia, pelo menos, uma breve reflexão. Pensara se não poderia fazer mais pelo seu país do que fizera na Terra. Afinal de contas, daqui de cima poderia controlar tudo, inclusive influir no destino daqueles que gostava, e dos que não gostava. A idéia era sedutora. "Companheiro Deus; companheiro Lúcifer; companheiro Engels, se for o melhor para todos, eu aceito o encargo e fico por aqui mesmo" - disse, solenemente, Lênin, olhando no olho de cada um deles. "Bravo! Bravo!" - disse Lúcifer. "Isso merece uma comemoração. Pedro, atenção, reúne os melhores do céu e vamos dar uma festa de recepção a Lênin, nosso novo e eterno hóspede; o braço direi... esquerdo - corrigiu, de imediato - da diretoria celestial". Dava para ouvir o gongo soar, ao fundo, lá fora. "Lênin, meu amigo, sempre soube que tu não falharias conosco!" disse Lúcifer, abraçando Lênin pela lateral, com o braço direito. "Agora vou te mostrar o que há sobre a mesa. Aqui está o mapa do mundo. Nós controlamos tudo por aqui. Eu e Deus tomamos a decisão depois de discutirmos cada assunto e pedido. É ele quem executa as ordens coletivamente tomadas. Sempre que quiseres, podes opinar sobre os assuntos em pauta, mesmo que não seja pedido o teu conselho. Afinal de contas, tu já é nosso assessor direto. Estamos agora com um pequeno probleminha para resolver. Já ouviu falar no Brasil? Não? Pois bem, é um país que fica abaixo dos Estados Unidos. Lá tem um presidente, um tal de FHC, que tá pisando na bola. Nós elegemos ele uma segunda vez e, agora, estão chovendo as rezas para que a gente decida que o Lula seja o novo presidente. Esse cara sempre perde as eleições. Também, as esquerdas, lá, não se unem nunca. Tão sempre de rixa. Quero que penses o que devemos fazer. Jogamos fixas na corrupção e botamos uns jornalistas para furungar e acharam furo de um amigo e secretário dele. A coisa tá ficando feia. Ainda não sei se vamos dar um impeachment ou coisa pior. Que te parece?" Lênin pensou um pouco e perguntou: "Quais as forças que o apoiaram?" "O empresariado internacional, os EUA, as multinacionais e uma parcela do empresariado doméstico e empobrecido, mais as massas desarticuladas". "Extrema direita!" afirmou. "Isso mesmo". "E, quem apóia esse tal de Lula?" "Ah, aparentemente, todos os PCs, o PT, PV, PSB, etc, sem-terras, a classe média pobre, ONGs, uma parte da igreja, por quê?" "Por nada, não. Acho que não posso ajudar no assunto. Não conheço ninguém do lugar" - afirmou Lênin. "Não precisa pressa, meu amigo. Se quiser assessoria sobre história do paísinho, eu mando chamar os mais entendidos; se precisar, Lúcifer chama dos seus. Tenho prioridade nisso. Dentro de três anos quero uma solução para o problema, tá certo?" "Venha, Lênin; vamos chamar o Marx para uma rodada de


"Venha, Lênin; vamos chamar o Marx para uma rodada de champanhe. Deus, onde vais? - perguntou Engels. "Ora, meus amigos, não se preocupem comigo! Vou dar uma voltinha. Se Maria aparecer por aí, ou mesmo o piá, Jesus, diz que fui dar um passeio na Terra. De vez em quando eu gosto de andar por lá. Não quer me acompanhar, Lúcifer?" "Obrigado, Deus, mas já tenho outro compromisso. Engels, cuida para que não falte nada ao nosso novo assessor; mas, nada mesmo, certo? Até à festa!" - disse Lúcifer, saindo da sala. Engels e Lênin foram passear pelo céu, conhecer os novos aposentos e o modo de vida daquela gente, vinda de todo lugar do mundo. Não havia dinheiro, logo, nem sistema econômico; sem meios de produção a serem apropriados por uma minoria dominante era algo incompreensível para Lênin. Só havia algo parecido com aquilo, o comunismo, a fase final do socialismo, depois da derrocada das lutas de classe, com o fim do estado burguês. Uma verdadeira e auto-suficiente sociedade comunitária. E, no entanto, havia um Estado ali, um poder de mando altamente centralizado. Lênin, enquanto Engels mostrava cada coisa, pessoa e aposento, a cabeça ia pensante, tentando ver como tudo aquilo era possível. Mais intrigante, ainda, era o fato de nada daquilo parecer surpreender Engels. Estava ele tão familiarizado com aquilo que parecia ter ajudado em sua invenção. A certa altura da caminhada, não se conteve. "Camarada, como é possível essa organização social daqui, onde não há sistema econômico e há poder de mando centralizado? Isso eu não consigo compreender. Me explica um pouco esse modo de produção concreto da existência". " É simples, camarada. Marx chegou primeiro do que eu e foi direito para o céu; escolha do Homem; sabe como são essas coisas. Deus e o Diabo viviam em guerra um com o outro; cada um tinhas suas próprias armas, estratégias e modo de ação. Dizem que há milênios viviam assim, sem paz no céu e no inferno. Marx, muito surpreso com a escolha divina, ainda que a contragosto, resolveu se acomodar e até a ajudar Deus e várias questiúnculas domésticas. Notou, de plano, o descontentamento de muita gente que estava aqui. Tentando resolver o problema, resolveu perguntar a Deus se tinha gente também insatisfeita no inferno. Deus disse que ia consultar o Diabo, quando tivesse tempo. Depois de muita insistência, resolveu fazê-lo e a resposta foi que havia sim, muita gente querendo ir para o céu. Diante dessa informação, Marx perguntou a Deus se não seria melhor fazer um intercâmbio de pessoas, de modo que os descontentes daqui fossem para lá e vice-versa. Deus pensou um pouco e resolveu fazer a experiência. Mas essa estratégia de melhorar a imagem do governo celestial gerou um novo problema. Os contatos dos imigrantes geraram novos desejos de troca. Marx organizou uma lista de candidatos e, quando estava de um certo tamanho, resolveu ter com Deus. Contou o ocorrido e que não parava de crescer o interesse de troca de lugar. Sugeriu novo intercâmbio. Vieram e foram vários nacionais. Isso gerou uma cultura de informações muito grande que levou a novos milhares de pedidos. Marx passou a ocupar quase todo o seu tempo no recebimento de pedidos, agora com formulário e tudo. A lista de espera foi se avolumando. Um certo dia Marx, notando que o problema inicial crescera


Um certo dia Marx, notando que o problema inicial crescera demasiadamente, pois já eram milhares os que desejavam ir para o inferno, resolveu fazer uma proposta diferenciada a Deus. "Quem sabe a gente propõe liberdade de trânsito entre os dois domínios, Deus? Afinal de contas, o que vai mudar em tudo isso, pois tu és o mais poderoso de todos? O povo vai ficar satisfeito e, assim, tu também". Deus pensou um pouco e disse que faria uma reunião com o Diabo. Mandou chamá-lo. Veio o Diabo, sem demora. "Diabo,..." Mal entonara a frase e Deus teve de ouvir. "Diabo, não; Lúcifer é meu nome; trata-se de uma questão conceitual muito importante, que Deus precisa incorporar em seu vocabulário. Afinal de contas, chega de discriminações aqui no céu. Se houver algum acordo, o primeiro tem que ser esse, sobre o uso do meu nome, certo?" "Tudo bem" disse, amável, Deus, e prosseguiu: "A questão é a seguinte, Lúcifer. O nosso primeiro intercâmbio foi um sucesso. Estamos os dois de parabéns. Ele iniciou uma era de paz entre nós. Muita gente tua, que eu nunca quis, transita livremente por aqui. Deve ocorrer o mesmo com os meus santos, por lá. A idéia do Marx é aprofundar essa relação, pondo fim às nossas fronteiras". "Isso é um absurdo!" - disse Lúcifer, de sobressalto. "E, como vou permanecer no comando, se houver uma união dos territórios? Chega de uniões. Prefiro desmembramentos. Tu me passa uma parte do céu e eu administro do meu modo, como parte do inferno. Isso eu aceito de muito bom grado". Deus olhou, olhou e consultou Marx. "Que acha da proposta, Marx?" "Não resolve o nosso problema, Deus. A questão não é territorial; é cultural. Não temos sistema de trocas e nem é necessário aqui. As minhas pesquisas demonstram que o problema é o tédio, a mesmice do sistema de funcionamento das relações sociais em cada um dos territórios. Os de cá cansaram da paz; os de lá devem estar cansados da guerra! A lógica seria mesclar um pouco de cada um até chegarmos a um meio termo". "Com isso eu concordo" - disse Lúcifer. "Mas tenho minhas exigências para a formação da comunidade. O poder total deve ser compartilhado, de igual para igual entre Eu e Tu, senão, nada feito. Com a União Inferno-celestial ou União Celesti-infernal, tu manda no inferno tanto quanto eu, assim como eu mandarei no céu tanto quanto tu". Deus consultou Marx. "Não muda nada, Deus. Aumenta o seu poder e o dele também, pois, afinal, os poderes, até então, estão restritos a territórios e povos menores. Todos saem ganhando". "Eu topo", disse Deus, a Lúcifer. "Fechado", disse Lúcifer a Deus. "Mas, tenho outras esferas de exigências, Deus", afirmou Lúcifer. "Quero Marx comigo, no Inferno e te mando quem tu quiseres, para cá". Deus disse que queria Sócrates de volta. Lúcifer concordou. "Quero Marx comigo". "Meu melhor assessor? De jeito nenhum. Isso não é pedido, é uma afronta!" "Então, nada feito" - disse Lúcifer. Marx, fazendo de tudo para que a nova política de alianças desse certo, disse, reservadamente, a Deus: "Eu aceito, Mestre; não faz diferença eu lá ou aqui, pois vai ser tudo uma coisa só; vamos derrubar as fronteiras, lembra?" "Aceito" - disse Deus, sem titubear. "Quais são as outras exigências?" "Quero que Lênin fique comigo, no Inferno, junto com Marx". "De acordo", disse Deus, sem pestanejar. "E Stalin, também, quando subir". "Sem problemas. Que mais?",


"E Stalin, também, quando subir". "Sem problemas. Que mais?", disse Deus, paciente. "Só isso". "Pois bem, eu quero alguém que tu tens lá; ele se chama Engels". "Concordo", disse Lúcifer. "Não vai querer, também, os padres que tu mandaste matar na fogueira, também?" - perguntou, Lúcifer, debochadamente. "Afinal de contas, fui eu quem levou a culpa de todas aquelas chacinas!" - completou. "Não, não vou querelos; que fiquem por lá mesmo" - respondeu, de pronto, Deus, incomodado com o jeito da colocação. Lênin, ouvindo atentamente a história contada por Engels, imaginava cada uma das cenas. Era quase cômico tudo aquilo. Era uma verdadeira revolução no céu e no inferno, patrocinada pelo camarada Marx. "Tempos depois, quando tu chegaste, ou seja, agora, tudo havia mudado muito. Encurtando a fala. O Diabo, Lúcifer, não sai do Céu, junto de Deus; passam os dias juntos, que dá gosto ver. Parecem irmãos. Trocam gentilezas entre si. O Diabo se humanizou e Deus se infernizou. Acho que estavam precisando disso, já que embarcaram juntos. Foi um santo remédio para o tédio de todos. Deus vai quase todos os dias à Terra; Lúcifer, também. Andam de abraços, para cima e para baixo. Que tempos, hein?" " E eu, como fico nessa história?" - perguntou Lênin, a Engels. "Ora, fica como está. Marx visitou o inferno e gostou de lá; se encontrou com Sócrates; cada um no seu mundo; ele, escrevendo sobre suas reminiscências na terra e vá a mandar mensagens psicografadas para os centros mediúnicos terrestres; o outro, vive a falar sobre a moral, os costumes e a razão. Acho que Sócrates ainda não engoliu aquela de ter sido obrigado a tomar cicuta por causa dos amores de Platão! Fingem que nem se conhecem, mas estão sempre juntos; um grude só." "Não respondeu á minha pergunta" - redargüiu Lênin. "Ah, bom... Eu fiquei aqui, sozinho, no céu e tu vais ficar no lugar aqui, também, no lugar de Marx. Eu assessoro Lúcifer e tu assessorarás Deus; não te parece bom?" Lênin ficou em silêncio. Engels continuou: "Afinal de contas, assessorar um ou outro não faz diferença, pois é uma aliança e não há divisão de tarefas. Cada um dá o seu palpite e pronto; se colar, colou e fim de papo. É bem simples". Lênin percebeu que era tempo de paz mesmo. A revolução estava se consolidando e ele havia ficado de fora; chegara tarde demais; perdera o processo histórico de mudanças. Marx fizera todo o serviço inicial e Engels só continuara; depois, quando tudo ficou na sua santa paz, Marx resolveu cair fora, para um lugar mais sossegado. Era isso, continuou pensando Lênin, meio aborrecido. Parecia que não havia nada para fazer naquele lugar. "Dá para imaginar o que vamos fazer juntos" - disse Lênin. "Sério?!" - disse Engels, sem entender direito a afirmação. "Sim, pois podemos influir no destino do Mundo, daqui, não é mesmo?" "É", disse Engels, meio preocupado. "Pois bem, Engels, eu quero que a Revolução Socialista se internacionalize de modo que a derrocada do capitalismo seja breve, na Terra". Engels pensou um pouco e disse: "Não sei, não, Lênin. Acho que é meio difícil convencer Deus e o Diabo disso". "Por quê?" perguntou Lênin. "Pelo simples fato de que é isso tudo o que sabem fazer Lúcifer e Deus, brincar com o destino dos homens. Imagina! Qual seria a utilidade dos dois, se a Terra inteira se tornasse


Qual seria a utilidade dos dois, se a Terra inteira se tornasse comunista! Sem posse, sem propriedade privada dos meios de produção, sem apropriação da mais-valia, sem Estado opressor, sem fronteiras territoriais; eles não teriam mais o que fazer aqui. Seria o fim da aliança..." "Aí é que tu te enganas, Engels; é o começo de uma nova era. Antes da Aliança o União era assim; agora pode ser diferente. Era a divisão daqui que gerava a divisão de lá. Não havendo céu e nem inferno isolados e combatentes entre si, não há porque haver capitalismo e comunismo guerreando entre si. Sempre se soube que Deus era comunista e que o Diabo era capitalista. Agora não há mais nenhum dos dois; uma coisa só, uma nova síntese dialética se operou aqui, com o dedo de Marx, tu não percebes?" Engels pensou um pouco. "Sabes que não havia me dado conta disso. Marx, aquele safado, operou tudo em silência e não me contou nada! Ninguém percebeu essa mudança, assim, pensando com essas categorias políticas... Afinal, faz tanto tempo que não tocávamos mais nesse assunto. Que bom! Acho que tem razão, camarada Lênin. Vou propor isso assim que os dois voltarem da Terra." "O que? Os dois foram desceram na Terra?" - perguntou, surpreso, Lênin. "Sim, não percebestes; por quê?" "Pensa, Engels; acorda um pouco!" "Se FHC era uma problema para Deus e ele desceu à Terra, é bem provável que vá visitá-lo. Ocorre que ele já tinha um antigo acordo com Lúcifer, visando se reeleger nas últimas eleições. Isso pode dar um problema diplomático, se os dois se encontrarem lá". "Como sabes tanto sobre a história recente do Brasil, se disseste a Deus que não poderia contribuir em nada para mudar aquilo lá?" "Não seja ingênuo, Engels; eu não posso mudar a história das coisas não estando inserido no contexto histórico; foi isso o que quis dizer. Agora, posso analisar muito bem a história com algumas informações básicas de conjuntura, se tiver acesso. A essas aí eu tive". Dois dias depois, voltam Deus e Lúcifer, da Terra. Entram cantarolando no céu e rindo entre si. Na Sala do Destino, o mesmo lugar de sempre, lá estão os fiéis assessores, Engels e Lênin. Deus, dirigindo-se ao seu novo assessor, diz, alegre: "Resolvido o problema do Brasil, Lênin. Não precisamos mais nos preocupar. Visitei o FHC e depois o Toninho Malvadeza. Estão em guerra, para variar. Dei um pulo nos staites e falei com o Clinton. Acho que vai dar uma moratória à dívida externa brasileira e tudo vai ser resolvido numa boa". Lênin saltou da cadeira. "Não faça isso, Deus! Pelo amor de Deus, não faça isso!" "Ué? Por quê? Afinal, é uma boa solução, não acha Engels?" Lênin respondeu de pronto: "Espera o Lula ganhar as eleições!". Lúcifer, que estava quieto, entrou na conversa. "Não te preocupa, Lênin; eu já dei um jeito. Deus ajuda os capitalistas, agora, e eu ajudo os socialistas. Conversei com Lula, pessoalmente e prometi a ele que Deus iria dar a solução brasileira só depois que ele ganhasse as eleições. Ele ficou surpreso com a minha visita, pois sempre estive do outro lado. Contei da aliança aqui, operada graças ao anjo Marx, e que tu estavas comigo, mas assessorando Deus. Ele ficou mais tranqüilo com isso, ainda que meio descrente". Deus completou: " E, tem mais, minha gente. Eu disse para o


Deus completou: " E, tem mais, minha gente. Eu disse para o Clinton que ele vai fazer o sucessor, se esse se comprometer com em não fazer nada com a moratória que o Lula vai fazer, logo no início de seu governo. Ele aceitou quietinho e prometeu empenho." Deus continuou a narrativa de viagem. "O FHC só está querendo que sua imagem histórica não fique abalada com os problemas do Laulau, o juiz que pegou a grana de um tribunal de lá e se escafedeu. Prometi que vou deixar ele de fora dessa lama toda, se ele se comportar direitinho. Entendeu, certamente, o meu recado, pois fui enfático. Ele sabe, melhor do que ninguém, que cumpro as minhas afirmações. E, disse, ainda, que não poderia prometer nada quanto ao apoio do empresariado que estava debandando. Ele ficou friíssimo. Só queria terminar o mandato em paz e viver uma vidinha comum, como todo mundo; estava muito cansado, abatido, por causa da imprensa loca. Fui ter com a Globo, mas ninguém me recebeu. Não me reconheceram. Possessões antigas de Lúcifer, sabe?". Lênin estava estupefato. Parecia um sonho aquilo tudo. Pensava o que era a força da união dos contrários, na formação da síntese. Marx tinha razão, quando embarcou naquela lógica hegeliana. Deus e o Diabo estavam irreconhecíveis, aos seus olhos. A fome, no mundo, poderia até acabar. Seria o nirvana, o paraíso, pensava. Deus, percebendo os pensamentos de Lênin, disse: "Russo, vamos melhorar o mundo; estou convencido disso! Pega as tuas coisas lá em baixo e sobe com tudo para cá. Temos muito trabalho pela frente. Lúcifer, dá um tempo aí, tá? Vou tirar uma soneca e depois nos falamos de novo, tá bom? Essa viagem me cansou um pouco. Adorei o teu modo de tratar das coisas mundanas. Temos muito a aprender um com o outro. Engels, me alcança as minhas chinelas, que estão ali, no canto daquela mesa!" Deus se encostou na poltrona celestial e entrou em sono profundo, roncando, como um verdadeiro Deus, o que era.

¤¤¤ - Adroaldo! Adroaldo! Acorda! Tá na hora de levantar, omi de Deus! - O quê??? Já?? Que horas são? - Cinco da manhã! A marmita tá pronta e o ônibus já vai passar. Não te atrasa de novo, senão o patrão desconta. Hoje é dia de rancho; vê se pega um adiantamento, meu bem! Não tem mais nada prá comer e as crias estão ficando duente. Te manda, Zé, que é hora!

Conto 55, de 12/08/2000, sábado

Água para um peregrino João Protásio Farias Domingues de Vargas


João Protásio Farias Domingues de Vargas

Estamos em um monólogo. Portanto, as falas se sucedem como se fosse um diálogo mas, na verdade, é um só quem fala, consigo mesmo, no silêncio ou solidão de suas reflexões. Cá, com os seu botões, Henrique pensava e pensava em uma solução para a sua dificuldade de soluções em certas áreas de problemas do dia-a-dia. Andava pela Rua Oswaldo Aranha, tarde da noite, no interior do corredor de ônibus, quando lhe ocorreu, como uma luz, denominar um problema. Já que não solucionava alguns e querendo saber a razão de não o fazer, já que tantos, e mais complexos, eram resolvidos com tanta facilidade, ocorreu-lhe dar nome aos bois, de modo que pudesse identificá-los quando tocasse no assunto, no silêncio - ou na gritaria - de seus pensamentos, mesmo nos passeios noturnos, quando retornava das aulas semanais do campus médico. - Algumas vezes ficamos tão cegos, mas tão cegos que não conseguimos enxergar nem um palmo à frente do nariz para resolver determinados problemas técnicos ou pessoais. Parece faltar a imaginação necessária para a compreensão da gravidades e dos riscos; mais do que isso, parece haver uma crise de imaginação para as soluções, quando conseguimos visualizar o problema. O pior de tudo isso ocorre quando até enxergamos soluções, mas a imaginação não avança além de um palmo na frente do nariz, visivelmente; não evolui para os procedimentos capazes de impulsionarem a ação positiva ou direcionada; capaz de emular a força de vontade, aquela determinação que move as coisas, que desarranja, que move a roda da história. A isso denomino miopia conceptiva, a irmã gêmea da cegueira conceptiva. - Cegueira e miopia! C-e-g-u-e-i-r-a; m-i-o-p-i-a - gritava dentro de sua cabeça, soletrando as duas palavras mais ardidas de sua consciência ali, naquele momento, Tentou ver o histórico daquela incapacidade. Não lhe ocorria nada. Os passos iam e vinham, assim como as ruas e as casas, passando, acompanhando o ponteiro do relógio, no pulso. Veio um trecho de diálogo, relampejando da infância, a mais remota possível, sem identificar data. - Credo, Luíza! Por que tu não deixa o Guilherme! Tá jovem e te enchendo de filhos! Aquele homem não presta; não trabalha, te bate, dorme o dia inteiro e, à noite, bebe feito um condenado; é puteiro e, ainda por cima, não dá estudo às crianças. Isso é vida, mulher? Não tem futuro garantido, senão na amargura! Larga dele e te manda prá Capital! Lá, quem sabe, a vida melhore! - Não consigo, dona Dica. Não consigo. É só o que sei dizer. Eu tento, mas não consigo. Não sei o que fazer. Toda vez que deito na cama com ele, eu penso que será a última vez, mas os dias se repetem e eu estou sempre lá, ao lado dele, vivendo aquela vida de merda que a senhora bem conhece. Tenho vontade de fugir, mas fico; às vezes, de me matar, mas nem isso consigo; sou covarde demais; penso nas crianças... - É ele quem está decidindo o teu destino, não percebe! É ele quem diz como deve ser a tua vida; não o oposto, ou os dois juntos.


quem diz como deve ser a tua vida; não o oposto, ou os dois juntos. Ele quer é viver essa vidinha mesmo, com mulher, filhos, vizinhança, boteco; é boa vida, não? Tu és a garantia dessa boa-vida dele! Vai deixar ficar assim a vida inteira? Olha, um dia ele te mata, e aí? Morta não poderás fazer nada mesmo. Aproveita enquanto estás viva, jovem e cheia de saúde. Pensa, menina, tu só tens dezoito anos! Pensa! Te manda daqui; não tem nada de bom nesse cú de mundo onde estamos. A vida está palpitando do lado de lá da estrada! Ela tá te chamando para um futuro bom e cheio de glórias, fora daqui! - Sempre quando saio daqui volto cheia de esperanças, mas, quando chego em casa e vejo aquela bagunça, que nada mudou, me bate um desespero e choro, choro, choro até não poder mais! Que vida ingrata é essa, dona Dica?! - A vida que tu estás te permitindo viver. Tem outras por aí. A escolha é tua. - Não consigo enxergar saída. Não consigo me imaginar noutra. Não sei nem por onde começar. Me ajuda, dona Dica! Não tem outro modo além de fugir? - Tem, mas não com aquele trapo! - E como eu faço, então? - Te mandando, de qualquer modo! Não tem outro jeito. Deixa os filhos com ele, se necessário. Nós damos um jeito com as crianças; fome elas não vão passar; nem escola vai faltar, mas tu tens que ir, antes que seja tarde demais. Um dia tu volta, melhor, e reassume o que der! Mas, não pode perder tempo; já perdeu demais! A vida é tua; o conselho é meu. Eu já fiz isso; mas, se não tivesse feito, minha vida teria continuado o lixo que era, que se tornou, a certa altura. - Eu sou fraca, dona Dica! Mas, vou tentar. Se quiser, eu posso, não é? - É isso, minha filha! Se tentar, vai conseguir; pé na estrada! Henrique ficou pensando nesse diálogo, nos conselhos da dona Dica de sua imaginação sem endereço histórico. Já estava em frente ao Auditório Araújo Viana, quando essa última fala apareceu na sua cabeça, incentivando Luíza a desaparecer do mapa local, levando só a roupa do corpo. Ponderava a saída proposta e olhava se era o modo mais acertado de agir. Parou bem no meio do calçamento e olhou para a cúpula do ginásio coberto, observando o efeito das luzes amareladas sobre as águas das duas piscinas laterais. Havia um reta calçada entre ele e a porta de entrada. À esquerda, as pistas de corrida e ginástica; à direita, a mata cerrada; ambos os lados contrastavam num claro escuro que parecia fazer coro à sua cabeça, no momento. Os conselhos de dona Dica se repetiam em si. "Se tentar, vai conseguir; pé na estrada". Se tentar. Pé na estrada. Tenho medo. Sou fraca. Se tentar, eu posso. A fala de Luíza se misturava e entrava de sola nos pensamentos, como se fossem os dele próprio. Estava dialogando com as duas, numa distância temporal que remontava mais de trinta anos, seguramente. Como o passado emerge na nossa cabeça! - pensava, avaliando contemplativamente. Já que aquilo estava ocupando o espaço mental, deveria fazer algum sentido. Era o id dando recados? Ou, seria o superego? Não sabia classificar. Pouco importava; era um deles, seguramente; e isso é que importava. Um aviso.


- Toda fuga é uma auto-exclusão! Uma auto-expulsão de algum lugar!- disse para si mesmo, como se falasse com alguém, concluindo alguma coisa. - A diferença é que Adão e Eva não se queriam ir embora. Deus os expulsou do Paraíso, por desobediência; insubordinação dos dois! A comida foi o estopim da briga; a razão da saída. Comer ou comerem-se! Comer e comerem-se! A alegoria da maçã partida ao meio; o formato interno da maçã dita o procedimento da metáfora. Eram três: homem, mulher e a árvore frondosa, com seus frutos proibidos. Por que proibidos? Por vontade do pai, ora! Capricho, no mínimo; mania de velho! Meu reino por uma maçã, diria, então, Otelo. Ou, seria Macbeth? Ou, ainda, algum imperador romana? Não sei. Um dos dois! Ora, pouco importa. Era a regra da hora, ditada por quem podia, por quem tinha mais poder. Estavam, no mínimo, de favor, no paraíso. Foi melhor assim. Não haveria história se a maçã não fosse comida! Fizeram bem; estava certo. Como mudou tudo, foi revolução! Uma ato político de rebeldia! Resolveu ir andando em direção ao centro. A noite estava amena. Os pensamentos iam e vinham de todas as direções. - Dona Dica! Dona Dica! - dizia, baixinho, falando pela boca, enquanto olhava a entrada do Instituto Flores da Cunha, à frente, do outro lado da curva. - É a cegueira. É isso! Luíza estava cega! Não via luz no fim do túnel da sua vida! Estava perdida! Perdidinha da silva! O que é a vida! Ela é ingrata; não perdoa algumas pessoas! 18 anos, dois filhos, um marido daqueles e miséria por todos os lados! Desemprego! Desocupação! Eta vida de merda! - Mas, voltando ao nosso assunto de antes, como sair da cegueira, da miopia conceptiva? Ainda não resolvi esse pequeno problema! Tá difícil! Tá barra, meu! Palavra bonita essa, conceptiva! Concepção, conceber, parir! Lembra a maiêutica de Sócrates. Bonito, não? E o que me resolve? Nada! Não resolve nada! Estou no mesmo lugar de antes. Não avancei em nada! Saída! Saída! Água para um sedento! Água para um peregrino!

Conto 56, de 13/08/2000, domingo

Filantropia absolvidas

das

vítimas inocentes

acusadas e

João Protásio Farias Domingues de Vargas

Há muitas formas de ser inocente. Uma delas é obter provas de que não se cometeu o ato imputado, porque no dia e hora do fato estávamos em um outro lugar, com outra pessoa, sendo impossível a prática. Outra é que o acusador não obtenha provas que demonstrem a nossa culpa, pela ausência de vestígios e fatos o


demonstrem a nossa culpa, pela ausência de vestígios e fatos o suficiente para provar a autoria. Uma terceira forma é sermos a própria vítima, mas inocente, porque há vítimas que são tão ou mais culpadas do que os próprios agressores dos alegados direitos. Recapitulando. Há três formas de ser provada a inocência de alguém. Numa o imputado prova inocência; noutra, o acusador não prova a culpa; noutra, é-se a vítima inocente e o imputado de culpa um terceiro, identificado ou não. A vítima que não é totalmente inocente é também, em parte, culpada; caso de culpa concorrente. Ambos devem ser imputados, posto que ambos são, ao mesmo tempo, inocentes, também. É o caso da vítima culpada. - Eu sou a vítima inocente, seu juiz! Meretríssimo, eu sou inocente! Majestade, eu sou a vítima inocente, viu?! - insistia o acusado, algemado, na sala de audiência, durante o interrogatório. - Eu percebi a sua colocação, senhor réu! - afirmou o juiz, num ar grave, voltando-se para o Parquet, que nada disse. - Abro o prazo passou a ditar à secretária, na digitação - para o tríduo e designo audiência de oitiva das testemunhas para o dia 25 do mês de outubro deste ano. Fica o réu intimado de que incorre em revelia, caso não compareça a qualquer das audiências para as quais for intimado. Relaxo a prisão provisória, eis que não está demonstrada a necessidade de sua continuidade. Expeça-se alvará de soltura. Intimadas as partes presentes. Nada mais. Dois anos depois, na audiência de debates orais. - Sou pela condenação, Excelência. O réu é acusado de homicídio doloso, pôs fogo na própria casa, matando a família e lesionando fisicamente a si próprio. Há prova da autoria e da materialidade carreada aos autos do processo pela autoridade policial. O réu representa perigo social e tem antecedente noticiado do mesmo tipo. Esteve preso e foi solto. A sua liberdade representa politicamente descrédito social ao poder judiciário. Houve clamor social e ampla cobertura pela imprensa local. - A defesa, com a palavra. - O réu é inocente, Meretríssimo. A casa pegou fogo por ação não cometida pelo réu. O MP não conseguiu provar a autoria do incêndio. O meu cliente tentou salvar a família, mas era tarde demais. Mulher, sogra e quatro filhos morreram numa tragédia horrenda! O fato de o réu ter fama de incendiário remonta à sua infância e hoje ele conta com mais de quarenta anos de idade. Amava a família e a acusação é injusta em todas as suas formas. É questão de direitos humanos. O testemunho de fls. 545 é de uma vizinha desafeta que o persegue desde pequeno. O fato de ter sido afirmado que ele pôs fogo no galpão da casa dos pais com oito anos de idade não quer dizer que 35 anos depois tenha repetido o feito. E prosseguiu, em sua peroração. - Ademais, nunca ficou provado que tenha sido ele o autor do incêndio infantil; boatos é o que há; mito e mistificação feito por pessoa que sempre odiou seus vizinhos, os pais do autor, avós dos filhos hoje mortos. Há prova nos autos de que o réu chegou do trabalho quando o fogo já estava alto; é o seu próprio patrão quem afirma o horário de saída do mesmo da fábrica em que trabalhava. Cópia do cartão ponto demonstra isso às fls. 99. Sempre foi bom pai de família e querido pelos vizinhos. Suas atividades políticas demonstram seu interesse pela cidadania na organização da cidade. Freqüentou escola, é eleitor, tem endereço fixo e trabalha


Freqüentou escola, é eleitor, tem endereço fixo e trabalha regulamente, inclusive presta serviços voluntários à comunidade local, como presidente da associação de bairro, ligada ao Orçamento Participativo. Não há motivos para condenação, exceto para engrossar a estatística condenatória do Promotor de Justiça, para se vangloriar de um currículo com mais de duzentas acusações procedentes. A defesa pede absolvição como medida de direito e de justiça, forte no art. 386, IV, do CPP, que a firma que deve o juiz absolver o réu em caso de não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal. - Conclua, advogado! - disse o juiz. - O sensacionalismo da imprensa criou um estigma in correto e injusto na imagem social do réu, com a contribuição negativa do MP e das autoridades policiais da época, pondo em risco a imagem da instituição judiciária, já na fase do inquérito, que nada apurou de concreto. A sua prisão provisória foi injusta e logo relaxada, como merecido. É isso, Excelência. Pela inocência. O juiz assumiu a palavra, ditando. - Pelo Dr. Juiz foi dito que passava a decidir. Vistos, etc. Relato o processo. O MP ingressou com denúncia, à base do relatório da autoridade policial, no inquérito juntado, forte no art. 121, parágrafo segundo, III, do Código Penal, arrolando testemunhas e pedindo a prisão provisória, que foi deferida. Expediu-se alvará de prisão e essa foi concretizada, com recolhimento ao Presídio Central da cidade. Houve interrogatório com réu presente e relaxamento da prisão. Veio o tríduo, no prazo, com arrolamento de testemunhas e pedido de diligência, alegando inocência. Na audiência da oitiva, ouviu-se duas testemunhas do MP e cinco da defesa, sendo duas abonatórias. Vieram os autos conclusos. Realizada a audiência final, com debates orais, oportunizando-se a fala para MP e defesa, no mesmo prazo. É o relatório. Justifico. Não há prova de que o réu tenha concorrido para o fato narrado na peça inicial. O inquérito foi inconclusivo e equivocado o relatório da autoridade, que opinou pela autoria. A prova judicial é precária pelo autor e favorável ao Réu que, inobstante não necessitasse provar sua inocência, provou-a. É de ser absolvido. Decido. Julgo improcedente a denúncia para absolver o réu das acusações postas na denúncia, forte no art. 386, IV, do CPP. Ficam intimadas as partes. Nada mais. A secretária imprimiu a ata e passou em revista, colhendo as assinaturas das partes e do réu. - Está encerrada a sessão - disse o magistrado, levantando-se e dirigindo-se às dependências internas da vara. O réu, fascinado de alegria, abraçava fortemente o advogado, elogiando o trabalho. - Passe no meu escritório mais tarde. Precisamos acertar os honorários pendentes - disse o advogado, sorrindo. - Não vamos esquecer de que o MP ainda tem prazo para recorrer da sentença; a luta pode continuar. Não fique muito confiante. Só depois de transitada em julgado a sentença é que poderá ficar tranqüilo. - Com certeza, Doutor. Passo amanhã mesmo - disse, enfático, o cidadão, ora réu absolvido. O MP não recorreu e nem o notável cidadão apareceu no escritório do advogado. Três anos mais tarde, no escritório do advogado. - Doutor Pereira, onde ponho a pasta de... Agostinho Ferreira


- Doutor Pereira, onde ponho a pasta de... Agostinho Ferreira Martins, caso de homicídio qualificado, com absolvição e honorários em aberto? - Na estante de filantropia. Que seja feliz e faça bom uso do dinheiro que não pagou ao escritório, pois pode precisar um dia, para outro advogado - disse, em um certo tom de ironia. - Lembrese disso, Fabrícia: réu criminal deve-se cobrar adiantado; adiantado, viu; depois de feito o serviço eles não pagam mais. Depena, mas sempre antes da sentença; - e arrematou - e cobra mais pelos recursos que vierem! Recorre sempre! Não dá mole no crime! - Ouvi, doutor; sempre cobrar antecipado do réu criminal e recorrer sempre! - respondeu, repetindo as palavras, enquanto colocava a cópia do processo na estante vermelha, posta no final da sala ao lado, arquivando os documentos, onde estava escrito, em uma pequena plaqueta, em letras garrafais: "FILANTROPIA DAS VÍTIMAS INOCENTES ACUSADAS E ABSOLVIDAS".

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Conto 57, de 14/08/2000, segunda-feira

Livrinhos da silva João Protásio Farias Domingues de Vargas

Paulo de Tarso chegou de uma reunião complicada sobre a organização de um grande evento, de nível nacional e deu de cara com um livro de História Geral posto sobre a mesa, acima do teclado; esses utilizados como manuais do ginasial, com capa coloridíssima e tudo. Antes de entrar o mundo cibernético outra vez, para mais uma batalha com as letrinhas digitais, resolveu olhá-lo. Passando os olhos pelo índice geral e folheando, aleatoriamente algumas páginas iniciais, deu de si diante da Unidade 11, onde estava escrito As primeiras civilizações da Antiguidade. Centrou os olhos no primeiro parágrafo:

"Grandes civilizações começaram a se formar por volta de 7 mil anos atrás. A maioria dessas civilizações tem um ponto em comum: desenvolveu-se nas proximidades de grandes rios, aproveitando o regime de suas águas, que favorece a fertilidade da terra e a prática da agricultura. Assim, os vales dos


agricultura. Assim, os vales dos rios Nilo, Eufrates, Tigre e Ganges, entre outros, foram primordiais para a formação das civilizações egípcia, suméria, babilônica e hindu, por exemplo. Essas civilizações, pelas suas características, são chamadas de sociedades agrárias ou férteis, mas existem alinda outras denominações, como Impérios Teocráticos de Regadio."

Interessou-se e leu um último parágrafo, logo abaixo: "Sem a possibilidade de desenvolver a agricultura, outras civilizações se formaram dedicando-se ao comércio, à pecuária ou mesmo à guerra. Entre elas vale destacar a dos fenícios, a dos persas e a dos hebreus." Olhou a capa novamente, para ver o nome do escritor. Lembrava vagamente do nome em algum uso, anos atrás, quando ainda morava numa cidadezinha do interior, muito longe dali. Resolveu voltar alguns capítulos e viu, à página 9, uma imagem intitulada "árvore genealógica da humanidade" e várias legendas com desenhos de crânios em um grande quadro circundado em vermelho. Mais abaixo, um conjunto de linhas curvas que saía da palavra primatas e ia parar em doze imagens de animais, partindo do "lêmure" e chegando no "humano", numa escala temporal de 0 a 60 milhões de anos, passando pelo "macaco-aranha", "sagui", "balbuíno", "gibão", "orangotango", "gorila" e "chimpanzé". Reformulou o entendimento anterior; na verdade, as linhas saíam da palavra "primata" e subiam até alcançar cada um dos animaizinhos acima nominados, através de um conjunto de linhas horizontais que partiam, à esquerda, dos números indicativos dos milhões de anos: 60, 50, 40, 30, 20, 10 e 0. Pensou um pouco na hermenêutica que estava aplicando aos quadros e percebeu outro erro de entendimento inicial. Na verdade tudo começava nos macaquinhos, passava pelo "ser humano" e reiniciava no quadro de bordas vermelhas, posto no alto da página; aquele cheio de crânios meio-macacos-meio-humanos. Verificou que havia uma nova escala, agora mais complicada e quebrada, que partia, de cima para baixo, indo do zero até o 4,6... milhões de anos. Assim, quanto mais para baixo, mais distante do homem, mais perto do macaco. Tudo indicava isso. Fixou-se, aleatoriamente em um dos crânios. Dizia "homo habilis", em mais ou menos 2,5 milhões de anos atrás. Olhou o mais antigo de todos, chamado "Australopithecus aferensis". Tanto um quanto outro tinham nítida cara de alguns negros que vemos hoje em dia pelas ruas e nos filmes americanos. Aliás, olhou os galhos da árvore e percebeu que havia um tronco comum, próximo de 3,0 milhões de anos atrás, denominado "Australopithecus africanus", de onde partiam quatro outros galhos, indo desembocar, logo a seguir, em 2,0 milhões, no "Australopithecus boisei", no "Austraopithecus robustus", em 1,5 milhões, bem como no já referido "homus habilis"


robustus", em 1,5 milhões, bem como no já referido "homus habilis" e, por fim, entre 2,0 e 1,5 milhões de anos atrás, no denominado "homo erectus", todos com cara nitidamente negróide. Ergueu os olhos um pouco mais, seguindo agora um traçado vertical, à direita do desenho que ia dar na linha entre 0,5 e 0 milhões de anos, chegando em um ponto de onde saíam duas outras, únicas e últimas, ramificações. O ponto, o nó apontava para o nome "homo sapiens". Ao que tudo indica, acima da linha do zero, estavam os dois últimos crânios, denominados "Homo sapiens neanderthalensis" e "Homo sapiens moderno". O interessante disso é que os dois últimos rostos eram brancos e meio avermelhados, com pouca barba e crânio mais arredondado. Eram os chamados "Hominídeos". Voltou os olhos, mais uma vez, para a fila de macacos, que terminava em um pequeno quadrado, também circundado em vermelho, à direita da fila, e de onde partia a seta grossa e curva, direcionada para cima, para os crânios que referimos. Pois bem, dentro do quadradinho, de mais ou menos uma polegada, logo acima das palavras "ser humano", estava um homem nú, sentado no chão, sobre a perna direita e descançando o braço esquerdo sobre o joelho, enquanto apoiava o resto do corpo no próprio chão. O que lhe chamou a atenção era que o homem tinha os cabelos curtos e pretos, sem barba, e totalmente branco em sua cobertura corporal. O contraste com o chimpanzé, que batia com a mão direita a cabeça, acocorado, era gritante, com sua cobertura corporal toda negra, como se vestisse um grande veludo. Curioso com a sua observação visual, resolveu ler o último parágrafo da página ao lado, anterior, onde dizia: "O Homo sapiens moderno": "Entre 150 mil e 100 mil anos atrás surgiu o Homo Sapiens moderno. Alguns milhares de anos depois, todas as outras espécies de hominídeos estavam extintas. A anatomia desse primeiro homo sapiens moderno é muito semelhante à nossa. Em um curto espaço de tempo, do ponto de vista biológico, essa espécie se espalhou pelo mundo, conquistando a Oceania e a América, que não haviam sido ocupadas por nenhum outro grupo de hominídeos." Resolveu continuar a leitura na página seguinte, abaixo das figurinhas, onde se deteve antes:

"Acredita-se que um dos fatores principais dessa conquista tenha sido o desenvolvimento da linguagem, que ampliou a comunicação entre os membros do grupo. O Homo sapiens moderno soube aproveitar também as conquistas anteriores, como o domínio do fogo e as técnicas de fabricação de instrumentos. Por volta de 40 mil anos atrás, começaram a surgir as primeiras pinturas no interior de cavernas, sinal do desenvolvimento de uma linguagem simbólica e de uma vida social mais complexa".


Paulo de Tarso terminou a leitura e olhou o aparelho de CD, logo abaixo do munitor e viu a faixa 13, minuto 137, da música que tocava. Pegou a capa e viu o nome "If you wanna leave me (Can I come too?)", do vocalista Bryan Adams. Um homem segurava um megafone erguido para o alto, com o corpo inclinado para trás, cantando, com uma guitarra a tira colo. No alto, a expressão "Waking up the neighbours". Colocou a capa do CD, com o homem do megafone, sobre a página 19 do livro aberto. - Que contraste! - disse, sozinho, em voz alta. - Que contraste! repetiu, como que quisesse se convencer disso, unindo as duas culturas, a dos egípcios antigos e a americanófila atual. Atrás do CD estavam dois mapas. Um evidenciava o Rio Nilo, do Delta no Mediterrâneo até a sua 4ª Catarata, aqui embaixo. O mapinha, posto no quadrado, evidenciava a África atual, em verde, com um quadrado rosado, indicando "Egito. Cairo". Uma nova música tocava. Olhou o monitor do aparelho e viu o número 15. Olhou a legenda e viu o nome da música: "Don't drop that bomb on me". Era a última da lista. Visualizou um código de barras, acima e à direita, no retângulo de plástico que servia de contra-capa. Viu a série 8283971642. No centro, uma fotografia em preto e branco. Três homens tocavam guitarra em uma ruína ou escombros de uma construção qualquer, em algum lugar do mundo. Via-se os tijolos espalhados no piso. Um deles estava sentado. Olhou um pouco mais fundo e à direita, na mesma página do livro e viu uma fotografia aérea de uma estrada reta posta ao lado de um córrego ou rio. Ao lado da estrada asfaltada, várias palmeiras ou coqueiros guarneciam casas ou ruínas, também. Chegou mais perto, para ver melhor, inclinando-se sobre a mesa. Eram ruínas ou construções inacabadas e duas casas construídas, grandes. Leu a legenda lateral: "A importância do rio Nilo para o Egito é incontestável. Até hoje, em suas margens, estão concentradas as principais atividades econômicas e centros populacionais do país. Na imagem, canal de irrigação em Luxor, que utiliza águas do Nilo". Pegou a capa do CD e pôs sobre a torre, deixando o livro livre, com suas páginas abertas no mesmo lugar. Agora fixou-se na expressão, em vermelho, A era dos grandes faraós. Lembrou-se do primo que faz fisioculturismo e sua academia recém aberta no interior do Estado. Logo que ele nasceu, pusera o apelido de Tutancâmon e, à sua irmã, hoje mulher feita e casada, de Ameneth. O primeiro pegou; o segundo, não. Na página 20 estava a fotografia que ele já conhecia desde tenra idade, a máscara mortuária de Tutancâmon. A legenda trazia um período histórico, "1347-1338 a.c". Lembrou da expressão Lápislazúli, que o professor Eurico tanto falava; o modo egípcio de pintar no ouro. A legenda não dizia isso. Falava em "ouro puro com pedras preciosas incrustadas". Aquele professor insistia que os egípcios eram os únicos da antiguidade que tinham desenvolvido a técnica de pintar no ouro, coisa que até àquela época, uns 40 anos atrás, não havia sido descoberto pela humanidade atual. Apertou o botão "power", no baixo relevo que apresentava uma seta e dois traços verticais grossos, parando a música. Apertou a do lado, a "off", e desligou; parou de rodar o CD. Olhou o seu monitor e


lado, a "off", e desligou; parou de rodar o CD. Olhou o seu monitor e viu a inscrição digital "15 74:55", indicando, respectivamente, "track" e "time". - Que contraste! - disse, novamente, em voz alta, ouvindo apenas o som do ventilador do microcomputador e das teclas sendo imprimidas pelos dedos, na digitação. Olhou os subtítulos em vermelho da duas páginas abertas. "Hierarquia social e "Sistema econômico". Virou a página e leu os demais: "Crenças e deuses", "Artes", "Ciências". Ao todo, seis subtítulos. Ficou pensando em como era hoje no Brasil o indicativo dos títulos postos em vermelho, inventariando o CD importado, o micro, o livro, a evolução do macaco ao homem, os faraós e o nilo. Pegou um maço de folhas e virou-as, dando na página 190, que indicava, de cara, o capítulo 45. "Primeiros passos da colonização brasileira". Quatro títulos postos em vermelho e uma pintura chamavam a atenção. "1. Colonizar é preciso", "2. Como colonizar?", "A exploração do açúcar" e "Pacto colonial". A pintura evidenciava, num certo realismo ou retratismo, um grupo de homens na beira da praia, junto a árvores, distanciados de um grupo de índios semi-nús. A legenda, à direita, dizia: "A fundação de São Vicente, primeira vila do Brasil, a 22 de janeiro de 1532, foi uma das iniciativas de Martim Afonso de Souza para a colonização do Brasil. Na foto, reprodução da tela Fundação de São Vicente, de Benedito Calixto", com itálico e tudo. O negrito é do texto, mesmo; não daquele, deste, aqui e agora, fora do livro, diante dos seus olhos, leitor curioso e enfadado com essa avalanche histórica em que se meteu. Paulo de Tarso resolveu dar mais uma navegada aleatória. Pegou outro maço de olhas e dobrou-as, indo parar nas páginas 446 e 447. Como elas insistiam em se fechar, pegou o guarda-canetas de madeira e assegurou a página da direita. Diante dos olhos viu, de cara, uma data, 1922, e os seguintes títulos, não mais em vermelho, mas em negrito preto: "A semana da Arte Moderna", "As artes plásticas dos modernos", "Os novos escritores e poetas", "A música e o cinema", tudo em uma página. Na outra, agora em vermelho, "3. Sob a égide de Vargas" e "4. A literatura de 1945". Entre os dois títulos, o seguinte, em preto: "Como as curvas da mulher amada". Voltou à página anterior, na parte baixa, fixando-se na figura. Era um quadro estranho, um corpo alaranjado, pegando só o lado direito, feito só braço, mão, perna e pé; um tronco fino erguia uma cabeça bem diminuta, quase do tamanho de um alfinete, ancorada em um punho fechado. Tudo isso estava diante de um cactus de três braços erguidos para o alto, em forma de tridente, pintado em negro. O fundo era todo azul e, no alto, uma esfera laranja, com um centro vermelho, raiado, em forma de córnea e pupila. Ah, a figura estava sentada em um piso preto, curvo, só com uma ponta da bunda. Leu a legenda. "Mostrar a alma do Brasil. Esse era o objetivo de Tarsila do Amaral ao pintar Abaporú (ao lado). Suas cores e formas procuravam sintetizar a alegria da natureza tropical e a simplicidade do mundo rural, livres da colonização européia". - Chega de leitura histórica! - disse a si mesmo. Mas, a curiosidade quase o matava. Pegou um maço de folhas, agora em sentido contrário, como que voltando no tempo, e se deparou com as páginas 164 e 165. O desenho de um livro aberto, contendo outro desenho e letras, quatro títulos que o chamaram à atenção. Em


desenho e letras, quatro títulos que o chamaram à atenção. Em letras vermelhas: "3. O Renascimento científico", "4. O Renascimento artístico" e "5. O Renascimento da península Itálica". Na metade leste da segunda página, circundado, um resumo intitulado "Um homem moderno", escrito em verde, indicando, ao pé da página, a referência bibliográfica da origem da adaptação feita. O testículo iniciava com a seguinte frase: "Leonardo da Vince (14521519) é o perfeito representante do espírito renascentista empenhado em conhecer leis que regem a natureza e em transformar o conhecimento em técnica". Quanto ao desenho da página ao lado, falo sobre ele. Era um livro amarelado, evidenciando duas páginas mais ou menos centrais. Estava escrito em latim a palavra "INFERNO Canto Primo". A legenda dizia "Iniciada em 1307, a Divina Comédia, longo poema de Dante Alighieri, foi um dos marcos do Renascimento. Na foto, uma edição de 1554". Era foto, e não um desenho. No desenho do desenho da página esquerda do livro amarelado, um homem de manto longo fugia de feras, leões e leopardos, em direção à floresta, ao lado de um morro de pedras. Nela, um homem o esperava, acenando, ao que parece. Lembrou-se de que tinha uma edição do mesmo livro na estante. Levantou-se e foi até ela. Pegou o volume, capa dura emoldurada, e foi direto ao índice. Página 25. Eram as primeiras. Não havia figura alguma na página anterior. Leu o número 1, do "Canto I": "Ao meio da jornada da vida, tendo perdido o caminho verdadeiro, achei-me embrenhado em selva tenebrosa. Descrever qual fosse essa selva selvagem é tarefa assim dolorida que na memória o pavor renova. Tão triste que na própria morte não haverá maior tristeza. Mas, para celebrar o bem ali encontrado, direi a verdade sobre as outras coisas vistas". Intrigado, olhou a referência bibliográfica. Ali dizia que a tradução era de Hernâni Donato, com ilustrações de Gustavo Doré. A edição era brasileira e de 1981. Fechou o exemplar e colocou-no de volta ao lugar, entre o "O Vermelho e o Negro", de Stendhal, e "O Dicionário do Diabo", de Ambrose Bierce. O último, jornalista e escritor norte-americano que viveu a maior parte de sua vida no século passado, fora traduzido por Carmem de tal e outro, que comprara na Feira do Livro do ano anterior, com dedicatória e tudo, dos tradutores. Conta-se que esteve no Rio Grande do Sul, na era do caudilhismo de Flores da Cunha e se fez amigo do Barão de Itararé. A dica é de um historiador gaúcho, que escreveu "O homem que inventou a ditadura", com base em manuscritos depositados em uma biblioteca pública dos Estados Unidos da América. Esse volume também foi comprado na mesma feita do livro, juntos; só que não teve paciência para pegar autógrafo, tamanha era a a fila de interessados, naquele final de tarde, na Praça da Alfândega. Era noite e passavam das vinte horas. Paulo de Tarso havia dado uma pausa e comido alguma coisa. Panquecas, batata-frita, ovo cozido, salada de beterraba, uma rodela de laranja e suco de tangerina. Voltou – tomando café preto - e fechou o livro de História Geral e do Brasil, colocando-o de volta no lugar de origem, na estante, bem no alto, ao lado de um livro de Geografia, similar. Sentou-se e acendeu um cigarro. Agora estava livre. Nada mais de livros para olhar e pensar, fora de sua realidade circundante.


de livros para olhar e pensar, fora de sua realidade circundante. Alegria do leitor, também, que, a essa altura do campeonato, depois de tanto ler acidentadamente, deve estar cheio de tantas citações, recortes, vai e vem de folhas e referências, História acima e História abaixo. Estamos, portanto, nós três, autor, personagem e leitor, livrinhos da silva. Partamos prá outra, que tempo é tempo, dinheiro é dinheiro.

Conto 58, de 15/08/2000, terça-feira

Olhos de esmeralda da Gringa João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Gente bonita e inteligente se encontra em toda parte; gente boa é difícil. Era isso o que dizia Vó-Gringa, com seus olhos de esmeralda, na infância lembrada. A beleza e a inteligência contrastando com a bondade, como valores e posturas em conflito no cotidiano das pessoas. A assertiva carrega a seguinte linha seguinte questionamento, em duas ordens de perguntas: 1) é mais importante, para viver melhor, ter beleza e inteligência do que bondade como virtude, ou a conjugação das três completa uma integridade? 2) Se tiver que escolher dentre as três apenas uma, qual delas seria preferível sobre as outras duas para viver melhor? A velha estava sentada, sobre um bonito tapete artesanal de retalhos, à beira do fogão à lenha, numa manhã de inverno. À sua volta cinco crianças na faixa de seus 5-7 anos de idade. Conversavam como gente grande. - Karina, quando tu crescer, qual será a tua escolha entre ser bonita, ser inteligente ou ser boazinha? - perguntou Vó Gringa, como era chamada pela criançada da vizinhança. - Vó, eu quero ser bonita! - disse, sem titubear. - Eu, também - adiantou-se Zilá, sorrindo, solícita. - Muito bem meninas - incentivou a vovó. - A beleza é uma virtude muito importante na vida. Ela define muitas coisas no nosso dia-a-dia. As mulheres precisam ser bonitas para seus homens ficarem satisfeitos. Os homens também precisam ser belos, para os olhos de suas mulheres. As pessoas muito feias têm dificuldades para viver, se não tiverem dinheiro disponível; pior, sendo pobre. E tu, Oscar, o que pretende ser? - Eu quero ser inteligente, Vó. Meu pai sempre diz que se não se é inteligente não se consegue ser nada na vida. - Não é totalmente verdade, Oscar. Mas, seu pai tem razão em parte. A inteligência, ainda que mínima, é fundamental para a vida. A burrice completa leva o ser à loucura. Imaginem! Uma pessoa


A burrice completa leva o ser à loucura. Imaginem! Uma pessoa totalmente burra não consegue compreender nada; como viver sem saber das coisas? Fica muito difícil. Um pouco de inteligência a mais nunca é demais. - Agora eu, vó. Eu quero ser boazinha - disse Carolina, expressando um sorriso cândido. - Grande, Carolina! A bondade é uma virtude maravilhosa. Todos gostam das pessoas boas; podem até não gostar das belas e das inteligentes, mas sempre gostam das bondosas. Essas sempre têm acolhida onde quer que seja. Entretanto, a bondade tem limite e custa caro. Não se pode ser bom o tempo todo; até porque, muitas vezes, a bondade está em praticar o que pode até aparentar, no momento, uma pequena maldade. Por exemplo, o castigo dos pais diante de uma peraltice de vocês, não é verdade? É isso mesmo. E, você, Marcos, o que pretende ser? - Não sei, Vó. Estava pensando. A Carolina, que é a mais bonita, quer ser a mais bondosa. Oscar, que é o mais burro, quer ser inteligente. Zilá e Carolina, que todo mundo diz que são feias, querem ser bonitas. Eu não estou entendendo. Estou com medo de dizer que quero ser uma coisa e parecer que não tenho ela comigo. - Meu querido Kiki, a vovó não disse isso e nem os outros. Isso foi tirado da sua cabecinha. Tu és muito crítico, sabia? Isso é muito bom e denota grande inteligência. Tu és muito inteligente e bonito, sabia? Mas, não chames os outros de burro ou de feio. Não combina com o teu jeitinho tão meigo de ser. Tens um rostinho lindo que Deus te deu e a vovó gosta muito de ti. Agora, diz prá vó qual é a tua escolha. - Eu quero ser bonito, inteligente e bondoso, ao mesmo tempo disse, enfático e franzindo as bochechas coradas pelo calor do fogo. - Ora, Ki, tem que fazer uma escolha; só vale uma das três. - Eu não consigo, Vó Gringa. Eu tentei, mas não consigo. Elas parecem ser a mesma coisa ou estar todas juntas em uma só coisa. - Ki, meu querido. Quem quer ter tudo ao mesmo tempo, acaba ficando sem ser nada. A beleza com o tempo se esvai, a inteligência quando não exercitada fica estagnada e de pouco serve quando não convertida em ações. Já a bondade, precisa de pelo menos um ato diário, ainda que pequenino, para que sua chama continue brilhando em nós. E continuou, entre um sopro e outro dado na boca do fogão à lenha. - Querermos ter muitas virtudes ao mesmo tempo significa que não paramos para analisarmos os nossos defeitos, e passo a passo transformá-los também em virtudes. Defeitos são virtudes negativas para quem valora as ações humanas de um ponto de vista estritamente moral. É um rótulo ou pecha histórica. Tanto o é que o que hoje é julgado como defeito pode, no futuro, olhando-se para trás, verificar-se que era, na verdade, uma virtude. A criançada reclamou da fumaça, que estava indo aos seus olhos. Vó Gringa não teve dúvida. Seus olhos reluziam de tão verdes e disse, meiga e maternalmente: - A fumaça só procura pessoa muito bonita. Ela vai onde a beleza está. Todas passaram a suportar a fumaça de bom grado, acreditando que eram muito bonitas, satisfeitas e lacrimejantes. Durante muitos anos eu refleti sobre esse episódio e tirei, em


Durante muitos anos eu refleti sobre esse episódio e tirei, em épocas diferentes, ensinamentos diferenciados. Um deles foi o de que o primeiro sentimento que temos sobre qualquer pessoa ou coisa é de ordem estética; trata-se de um sentimento primeiro, primário, básico. Outro ensinamento foi o de que o gosto pode ser confundido com inteligência ou bondade. Diz-se que se gosta de algo que nos parece inteligente ou bom. A beleza é uma questão de gosto, está na subjetividade do ser que olha,... como se diz? A beleza está nos olhos de quem vê. Um terceiro ensinamento está na intercambialidade das três virtudes, nas relações que existem entre elas. Há belezas inteligentes ou não, boas ou más; há inteligências belas ou não, boas ou más; há bondades belas ou não, assim como bondades inteligentes ou não. A classificação possibilita um julgamento determinado por qualquer pessoa, em função das circunstâncias históricas em que o juízo emitido ou o episódio produzido. Vó Gringa era uma espanhola sábia e seu apelido, apesar de não fazer jus à origem étnica, servia como sinônimo de galega, que também não deixava de ser impreciso. As crianças a viam assim, cheia de mistério no que dizia, arrebatando respeito e obediência imediatos. É!... Eram os olhos de esmeralda da Gringa o que tanto nos encantava e firmava ensinamentos, exigindo, tranqüilamente, paciência e lágrimas na fumaça, com um toque de beleza. Nunca consegui esquecê-los e, sempre que posso, revisito, com ternura, nas pradarias da minha memória o quadro vivo daquela época.

Conto 59, de 16/08/2000, quarta-feira

Porte, tranco e semblante João Protásio Farias Domingues de Vargas

O tenente-de-fragata Gründwizard observava a longa fila de mulheres recém selecionadas para o serviço da marinha. Uma jovem de seus vinte e três anos, loiríssima e de andar gracioso, munida de planilha e caneta, fazia o acompanhamento e as notas, ajudando na descrição do novo quadro. - Esquerda, volver! - deu o comando, em viva voz. Umas trinta mulheres viraram-se à esquerda, de frente para os dois inspetores. - Sargento Nunes, tome nota do ditado. - Sim, senhor! - disse, enfática, em posição de sentido. - À vontade, Sargento. - Obrigado, senhor! Tomando nota. - Primeira. Número 667. Morena, portuguesa, olhos de amêndoa, castanhos, cabelos negros, semi-ondulados e longos, rosto ovalado


castanhos, cabelos negros, semi-ondulados e longos, rosto ovalado de tez clara, lábios finos, busto e corpo pequeno, tudo num avental branco e casaquinho azul. - Segunda. Número 668. Loira, italiana-espanhola, olhos cor de mel, levemente esverdeados, sílios longos, cabelos lisos e franjas na altura das sobrancelhas, longos e escorridos beirando as costas, repartidos ao meio, lábios carnudos, vermelhos, rosto quadrado, fino, tez muito branca e com sardas em volta do nariz; seios redondos, pontudos, cintura fina e pernas fortes dentro de calças de brim azul. - Terceira. Número 669. Quase morena, italiana-portuguesa, olhos e cabelos castanhos claros, crespos, presos por uma presilha metálica, repartidos à direita, caídos até os ombros; rosto quadrado de tez clara, com muitas espinhas na testa e nas bochechas; lábios grossos, seios fartos, corpo pequeno, dentro de uma calça azul clarinho. - Quarta. Número 670. Loira, italiana-portuguesa, cabelos curtos e encaracolados em forma de cachinhos dourados, olhos pequenos, muito azuis e brilhantes, rosto quadrado, tez muito clara e lisa, quase leitosa; seios redondos, pequenos e pernas roliças, dentro de uma saia curta, azul e rendada de branco. - Quinta. Número 671. Morena, portuguesa-índia, cabelos muito negros, lisos e longos; olhos amendoados, castanhos, de cílios finos; tez clara, lisinha e jambada, lábios finos, seios firmes, pontudos e pequenos, coxas fartas, cintura fina e pernas fortes, dentro de uma calça de brim e camisa azul piscina forte, tope na altura do umbigo e andar de bambolê. - Sexta. Número 672. Morena, portuguesa, cabelos levemente ondulados e pintados, na altura dos ombros, olhos grandes, castanhos e tez muito clara, lábios grossos, seios fartos, pernas roliças, fortes e canela fina, dentro de umas calças de brim azul clarinho e bustin branco, mostrando o umbigo, muito faceira. - Sétima. Número 673. Meio loira, germaníssima, cabelos castanhos muito claros, longos e escorridos até a cintura, olhos amendoados, muito azuis, tez lisinha, muito branca e leitosa, lábios finos, seios fartos, roliços, pontudos e duros; corpo longo, cintura fina e pernas roliças, dentro de uma bermuda de brim azul, esfarrapada, na altura das coxas. - Oitava. Número 674. Morena, germaníssima, cabelos castanhos, lisos, presos com fitinha, tez muito clara, com algumas espinhas na testa, olhos de amêndoa, cílios longos, lábios finos, seios diminutos, cintura fina e fartas coxas, canela grossa, corpo pequeno, dentro de uma saia cinza, abaixo dos joelhos, e casaquinho branco. - Nona. Número 675. Morena, italiana-espanhola, olhos amendoados, castanhos, cabelos negros muito lisos e longos, tez fina e leitosa, rosto quadrado, lábios finos, seios pequenos, redondos e firmes; corpo mediano, cintura fina, pernas roliças e canela grossa, tudo dentro de umas calças de brim e bustin cinza, com umbigo aparente. - Décima. Número 676. Loira, italianíssima, crespa encaracolada até os ombros, olhos castanhos, sobrancelhas grossas, lábios carnudos, tez rosada e sardas em torno do nariz, seios fartos, redondos e firmes; cintura e canela fina, pernas roliças, dentro de uma par de calças de brim azul, camisa vermelha com tope longo na altura do umbigo, muito sorridente.


altura do umbigo, muito sorridente. - Décima-primeira. Número 677. Castanha, italianíssima, cabelos negros, muito lisos, soltos e escorridos, brinco na orelha, tez leitosa, sardas em torno do nariz, boca pequena, lábios carnudos, rosados, olhos castanhos, amendoados, e longos cílios, seios fartos, redondos e firmes, pernas grossas, cintura delgada e canela fina, dentro de uma camisa branca, calças e jaqueta de brim azul. - Décima-segunda. Número 678. Negra, africaníssima, cabelos muito curtos, encarapichados, olhos negros, amendoados, nariz fino, lábios roxos e carnudos, tez reluzente e lisa, orelhas ornadas, corpo grande e muito alta; seios fartos, lisos, firmes e pontudos, cintura delgada e pernas roliças, dentro de calças de brim, sapato alto e casacão longo. - Décima-terceira. Número 679. Loira, germaníssima, cabelos muito lisos, sem volume, rabo-de-cavalo, longos e finos, olhos azuis, amendoados, tez alva, lábios grossos, corpo pequeno, seios redondos e pontudos, cintura delgada, pernas roliças, dentro de calças de brim azul e camiseta branca, meia manga e tênis. - Décima-quarta. Número 680. Castanha, germaníssima, cabelos vermelhos, lisos, escorridos e soltos, olhos pequenos, ora azuis, ora castanhos, tez rosada, lábios finos, corpo delgado, cintura fina, pernas roliças e canela grossa, dentro de um macacão de brim azul e camisa branca. - Décima-quinta. Número 681. Morena, portuguesa, olhos muito verdes, cabelos pretos, retintos, lisos e escorridos, atados atrás; tez branquíssima, lábios finos, sobrancelhas retas e cílios longos, sardas em torno do nariz; corpo médio, levemente gordinha, seios fartos e firmes; cintura e canela finas, pernas fortes, dentro de um vestido florido, solto, à altura dos pés. - Décioma-sexta. Número 682. Morena, portuguesa-índia, cabelos muito negros, lisos, escorridos e curtos, a channel, olhos amendoados, castanhos, cílios longos, sobrancelhas mornas, face bonita e sem adornos, pele jamba e muito lisa, lábios carnudos e rosados; corpo pequeno, roliço, seios redondos e firmes, cintura delgada, pernas roliças e canela fina, dentro de um macacão de brim, camiseta rosa e tênis branco, com jeito de travessa. - Tomou nota de tudo, Sargento? - Sim, senhor! - Atenção, pelotão de fuzileiros, cinco minutos para se vestir e apresentarem-se no Pavilhão 9, devidamente em forma. Entendido? - gritava o comando. - Sim, senhor! - em uníssono berro, responderam as dezesseis candidatas. Tenente e Sargento saíram do alojamento, em direção à Companhia Foca, a passos largos e firmes, cadenciados. O sol estava a pino e o branco da farda ardia nos olhos dos passantes. Grupos de fuzileiros corriam, em forma, em diversos locais do pátio interno do Quartel.

¤¤¤ - E, aí, Tenente, conta mais prá gente! Tá muito interessante o papo. - E, aí, nada. Foi só isso! - respondeu.


- E, aí, nada. Foi só isso! - respondeu. - Ora, Tenente, todos nós sabemos que o senhor se ferrou justamente por causa dessa revista! - Qual, nada, guerreiro! A ferração teve outra causa. Lembra daquela loirosa que eu descrevi prá Rosinha, digo, prá Sargento Nunes, a 673? Acho que era esse o número de guerra. - Claro, a de alemoa de bermuda! - Isso mesmo! A de bermuda. Pois bem, me amarrei na recruta! Tudo no lugar e da medida certa. Deu bolo! - Não!!!? Ela dedou?! - Que nada! Pior que isso. Naquele dia mesmo, ao cair da tarde, fomos fazer uma inspeção no paiol de granadas e convoquei ela para a missão. Ela se apresentou no estilo. Contamos todas as mais de mil granadas armazenadas, tirando das caixas, uma a uma. Cansada, ela se sentou num dos caixotes, assim, bem pertinho de mim, dizendo prá dar um tempo de descanso, o que fiz. Ela me olhava e eu nela. Não deu outra. Suados, em um minuto o beijo veio e, com ele, o amasso. Encurtando, prá estragar a história, chegou a Sargento Nunes e nos pegou no fraga, nuzinhos da silva, no meio das granadas, como o diabo gosta. - Então, foi isso!!!? - Também, não! A sargento levantou a irregularidade da inspeção feita no dormitório. Ela tinha de fazer sozinha, pois importava em verificação a nú. E eu me ferrei! Vi de tudo, como descrevi e foi bom, mas me ferrei! - Só isso! - É! Só isso! E estamos aqui. Não é muito?? - Quanto tempo pegou? - 30; e tu? - 60. Não vejo a hora de pegar um sol, lá fora. - Eu também. Não quero nem ver mulher na minha frente. Chega delas! Porte, tranco e semblante dão cana, meu amigo! - É verdade! - disse o recruta, concordando complacentemente com a desgraça do tenente posto ali, numa cela comum, comendo da mesma comida, e com tanta mulher boa, bonita e gostosa lá fora, dando sopa, suadas, exercitando o corpo... - Mas, não são mulheres, Tenente, são guerreiros. Não é isso? - Guerreiros. São guerreiros. Preciso me acostumar com isso. Os tempos mudaram. Agora temos aqui mulheres que não são mulheres. Não podem ser vitas como mulheres, senão dá cana. - E, como era o nome da 673, tenente? - Giselle; bonito nome. Veio de Frederico e era modelo. Deu na louca e virou marinheira. Sonho de infância, dizia ela. - Deu cana, também? - Não, não deu. Já disse que a Sargento Nunes acobertou tudo. Eu estou aqui por outro fato. Se descobrirem aquilo, me ferro mais ainda! Fica só entre nós, guerreiro, tá ouvindo? - Claro, tenente; amigo é para essas coisas mesmo! - É isso aí! Bico calado. Trinta dias depois, chega a guarda e a ordem de soltura, trazido pela Sargento Nunes. - Marinheiro, abra a cela e libere o Tenente Gründwizard. - Tenente solto, Sargento - respondeu o carcereiro, abrindo a cela. Enquanto conduzia o Tenente ao Alto Comando, houve o


Enquanto conduzia o Tenente agradecimento. - Obrigado pela força, Sargento.

ao Alto

Comando,

houve

o

- Que não se repita, Tenente! - Não se repetirá! Foi um momento de fraqueza; eu... - Se ia perguntar, ela está bem, Tenente. Pediu-me para entregar esse bilhete. Pôs a mão no bolso e retirou meia página de papel rabiscada a lápis, em letras de forma, arredondadas e firmes. O tenente abriu um largo e reluzente sorriso, brilhando os olhos. - Obrigado, Sargento. Fico te devendo essa! - Tenente, passe no seu alojamento, tome um banho, troque de roupa e se apresente no Comando em quinze minutos. O Almirante o aguarda. Após isso, estará liberado. Após a conversa com o Almirante, feita nos conformes, com as cautelas de praxe, relatório verbal e tudo, retirou-se. Estava no saguão de saída, quando tocou a sirene da troca de guarda. Estava liberado. Foi ao estacionamento, pegou o carro e foi ter com Giselle, no Laranjal, onde era esperado. A estrada estava limpa e vazia, ventava muito e o tempo voou, velocidade acima. Cinco minutos antes do local, derrapara na curva do sal. Veio a mão, o freio, a sensação de vazio e calor na testa, ardendo como brasa, na garganta, no peito, nos pés e na espinha, como se tudo girasse ao redor. Um clarão forte de luz branca apagou a imagem de tudo. Fez-se noite. As ondas batiam no penhasco, sibilantes, como que chamando, adivinhando a hora. Porte, tranco e semblante... dão cana, meu amigo!

Conto 60, de 17/08/2000, quinta-feira

O telefone de Verônica João Protásio Farias Domingues de Vargas

Verônica era uma morena linda e gostava de brincos ornados. O Cinelândia estava lotada naquela tarde. No amarelinho, as pessoas se acotovelavam da entrada aos corredores. Paulo Ricardo havia reservado uma mesa, no andar de cima, perto da janela. Quando chegou, de pronto viu que estava ocupada. Procurou o garçom e reclamou a reserva da mesa 13. Disse que não se preocupasse, pois no horário marcado a mesa estaria desocupada. Olhou o relógio e viu que estava meia hora adiantado. O jeito era esperar. Ficou ali, meio recostado na parede, entre a copa e a escada, fora do caminho de passagem. Acendeu um cigarro e pôs uma das mãos no bolso da calça, olhando a clientela sentada às mesas, sorrindo, bebendo e conversando. Lembrou que deixara o paletó no escritório e a cafeteira ligada. Pegou o celular e ligou. Andreza


escritório e a cafeteira ligada. Pegou o celular e ligou. Andreza atendeu e confirmou o esquecimento, afirmando que desligara o aparelho antes de sair. Agradeceu, reprisou o horário agendado pela manhã seguinte e desligou, voltando a concentrar-se no ambiente local. Olhou novamente o relógio. Passara apenas cinco minutos. Faltava muito, ainda. Olhou a decoração do teto, depois os quadros, um a um. Escolheu os que lhe pareceu mais bonitos, dentre a fileira de desenhos, fotografias, pinturas e colagens. Arremangou a camisa até à dobra do braço, observando os ladrilhos do piso e os sapatos dos passantes, distinguindo os tipos. Voltou o rosto para a mesa 13, ainda ocupada. Procurou com os olhos um relógio distinto e o encontrou no pulso de um homem engravatado que ia em direção às escadas. Eram dezoito e vinte. Em dez minutos a mesa estaria desocupada e poderia descansar um pouco, sentado, olhando o movimento lá fora, pela janela. Tocou o telefone. De pronto, levou-o ao ouvido, dizendo alô. Estava mudo e continuava tocando. Não era o seu. Era o da moça que estava sentada na mesa, ali próximo. Retornou o aparelho à cintura. Nisso, passava o garçom com quem falara na entrada. Interpelou-o, novamente, obtendo a mesma resposta, agora exigindo um pouco mais de paciência, pois a casa estava cheia. Uma outra mesa, nem pensar. A negativa foi imediata. O suor escorria pelas têmporas do paciente. Pegou um lenço no bolso e secou o rosto, guardando-o, dobrado, novamente. Olhou mais uma vez a mesa 13. O casal conversava sorridente, sem pressa. Acendeu mais um cigarro e tragou profundamente, como que nervoso. Agora foi a coleção de rótulos de cerveja o alvo de seus olhos. De cima abaixo, o quadro era uma rotulhada só, de todos os tipos, nacionalidades e tempo, todos pequeninos, um do lado do outro. As letras não davam para ver; dava para reconhecer algumas nacionais, com o logotipo mais primitivo. O reflexo da lâmpada impedia de ver um grupo, mais à esquerda, mas não tinha importância mesmo, afinal, estava só dando um tempo de espera; não estava pesquisando rótulos. Olhou o relógio novamente. Passavam dois minutos do horário combinado para a reserva. Foi reto, procurar o garçom, pela terceira vez. Encontrou-o subindo as escadas, logo ali, ao seu lado. Fez sinal para o relógio e o garçom sinalizou espera, indo em direção à mesa 13. O homem meteu a mão no bolso e deu o dinheiro ao garçom, que o colocou no bolso. Dava para ver perfeitamente o ato de pagamento da conta, mesmo estando ele de costas. Sorriu e deixou a mesa, vindo em direção ao cliente na espera. Paulo Ricardo deu um largo sorriso e disse que era a hora. O garçom disse que era para ter paciência e que iria providenciar outra mesa, pois o casal ficaria mais tempo naquela. Desceu as escadas, deixando o apressado cliente aos bravejos, quase impropérios, exasperado, indignado. Olhou a mesa 13 pela centésima vez e sequer foi notado pelos ocupantes. Aquela altura da espera, o casal não era mais humano, mas uns monstros e quase não pareciam necessitar de respeito, coisa de se dispensar. Pensou em ir até à mesa e informar ao casal que estava há mais de meia hora esperando, que tinha reserva específica e que marcara um encontro ali. Olhou o relógio novamente. Eram quase sete horas da tarde e Verônica não


novamente. Eram quase sete horas da tarde e Verônica não aparecera. Desistiu de ir ter com o casal e resolveu descer as escadas, falar com o gerente ou coisa que o valha. O andar de baixo estava lotadíssimo ainda; mais do que antes, até. Não dava nem para andar. Os passos eram curtinhos e os corpos úmidos colavam-se uns aos outros, no burburinho e fumaça local. Com dificuldade, chegou até o caixa, perguntando pelo gerente. A moça, simpática, indicou com o dedo um senhor de idade que estava de pé, de paletó amarelo, perto da porta de serviço. Foi até lá e contou o seu descontentamento, em forma meio de desabafo. Obteve como resposta que não poderia fazer nada; as reservas eram sempre cumpridas, exceto em casos como aquele, em que o cliente que dispõe da mesa se recusa a aliviá-la. Não poderia tirar a pau o cliente, mas poderia garantir, com prioridade, outra mesa para o da reserva. A gentileza da explicação não adiantou muito, não aliviou a tensão do paciente, mas ficou mais confortável; afinal, era cliente da casa e vinha quase todos os dias, ao final da tarde, no local, efetuando sempre a mesma reserva. Achava que tinha o direito a prioridades e regalias; tratamento diferenciado. Não era exatamente como pensava. Até mencionou as centenas de gorjetas que sempre deu aos garçons, que era bom cliente e que merecia uma atenção especial. Não deu em nada. Pensou em voltar para cima, mas desistiu da idéia. Estava tudo lotado mesmo. Olhou o relógio. Eram sete e meia. Verônica estava uma hora atrasada. Isso não era costume e estava demais. pegou o telefone e resolveu ligar. Estava ocupado. Ligou de novo; ocupado. Ligou novamente e veio a voz da gravação, dizendo que estava desligado ou fora de área. Ligou uma quarta vez e nada. Desligado. Tirou o lenço do bolso e secou novamente o rosto. Resolveu sair do Amarelinho e ganhar o calçadão. Estava mais quente do lado de fora do que lá dentro. Não sabia o que fazer. Ligou uma quinta vez; nada. Desligado. Foi até á esquina, olhando o movimento, no desejo de ver a convidada chegando, ainda que atrasada. Nada. Andou uma quadra abaixo, à esquerda, em direção à livraria, cuidando as pessoas. Nada. Ligou uma sexta vez. Nada. Mesma coisa. Desligado. Estava mais zangado ainda do que antes. Andou mais uma quadra e chegou até o carro. Entrou e foi em direção ao escritório, pegar o paletó. Estava indignado com o Amarelinho, com a Cinelândia, com os garçons, com o celular, com Verônica, com ele mesmo, feito palhaço, com Verônica. Pronto! Com o mundo todo! Chegou em frente ao prédio e havia, por sorte, vaga. Estacionou e subiu. Ao passar pela portaria, ouviu o chamamento. O porteiro acenava para a correspondência. Voltou, pegou o envelope branco e foi em direção aos elevadores. Era um bilhete de Verônica, dizendo que só poderia se encontrar com ele às oito horas, pois estava presa na Universidade, em reunião de urgência. Perguntou que horas chegou o bilhete. Obteve a resposta que foi logo depois do meiodia. Interpelou pelo fato de não ter sido entregue imediatamente, obtendo a resposta de que foi outro porteiro que recebeu e que, quando aquele chegou, o bilhete estava ali, no balcão, fora do escaninho do conjunto, meio extraviado. Olhou o relógio e viu que eram dez para as oito horas. Ligou para


Verônica. O celular estava mudo, desligado, ainda. Ligou para a casa dela; só a secretária eletrônica, com a voz de sempre. Ligou para a sala dela, na Universidade; ninguém atendeu. Ligou para a portaria do Laboratório e nada. Tornou a ligar para o celular; a mesma coisa. Um ar de preocupação e desconfiança apareceu em sua sobrancelha direita; tremeu, rapidamente, o olho direito. Pegou o molho de chaves, irritado, abriu a porta e entrou. Sentou-se na cadeira giratória, olhando a paisagem sul da cidade. Pegou o casaco e saiu, nem percebendo se a cafeteira estava ou não ligada. Desceu os elevadores, ganhou a rua e o carro, zunindo de volta à Cinelândia, no Amarelinho. Ligou o ar condicionado, pôs um CD e rodou com calma; afinal, estava cansado de esperar Verônica. Eta mal entendido! Já estava pensando minhoca em sua cabeça, com a demora e tudo mais. Cinco quadras dali, ligou novamente. Deu linha. Chamou, chamou, chamou e ninguém atendeu. Desligou e voltou a ligar, imediatamente. Ninguém atendeu de novo. Estava ficando impaciente de novo. Afinal de contas, o que estava havendo com aquele encontro. Parecia fadado a não dar certo. Apertou a marcha, mas com cuidado. Aumentou o volume da música. Estava lúcido e atento. Só precisava se acalmar um pouco. Iria dar tudo certo, pensava, a título de incentivo e fé. Quando chegou no Amarelinho eram oito e quarenta. Entrou porta a dentro muito afoito, pedindo licença e meio empurrando as pessoas. Subiu as escadarias em um passo só, voando, sem se importar com os atropelos. Estava suando e piorou. Chegou no andar de cima e foi direto à mesa 13. O mesmo casal estava no local, sorridentes e amorosos, como antes. Aquilo o irritou profundamente. Profundamente mesmo. Tinha vontade de esganar aqueles dois monstros sentados. Dar um murro na cada dele; qualquer coisa do tipo, pois era merecido, no seu juízo do momento, que lhe parecia mais do que justo. Prostrou-se em frente à mesa, pondo as duas mãos sobre a base de toalha branca, olhando no olho do homem, sentado. Sem entender do que se tratava, saudou-o, meio temeroso, pelas feições do rosto suado e avermelhado. Estava bufando de brabo e enrijecia o braço direito, sentindo o sangue descer punho abaixo. Ia dar um murro. Ia haver bochincho e dos grandes. Nisso ouviu uma voz chamando, que lhe pareceu conhecida. Dizia, "querido", "querido", e vinha de trás. Relaxou um pouquinho e se voltou, olhando meio enviezado para o outro lado, para perto de onde ficara aquela centena de horas esperando. Era Verônica, sentada, linda como sempre, que o chamava para a mesa. Deu um alívio e um largo sorriso se estampou na face toda molhada de suor. Ergueu o corpo, ficando ereto. Tirou o lenço do bolso e secou novamente o rosto. Foi em direção à mesa, tirando o paletó, que descansou sobre a guarda da cadeira, sentando-se calmamente. O rosto de Verônica era calmo como uma valsa. O sorriso da moça clareou o ambiente e ele quase notou uma praia e um jardim de flores, ao fundo, com passarinhos assoviando, na calmaria da tarde. Ela estava linda, toda de vermelho, chiquérrima, como sempre. - Esperou muito, querido? - perguntou, olhando-o ternamente no olho e nos lábios, como que sedenta por um beijo.


olho e nos lábios, como que sedenta por um beijo. - Não; acabei de chegar! E você, esperou muito? - perguntou, como se nada tivesse acontecido. - Um pouco; achei que não viesse. Estava me sentindo tão sozinha nessa mesa, com tanta gente em volta, que deu vontade de te ligar, mas a bateria descarregou. Que bom que não demorou muito. Estou feliz que tenha vindo. Estava louca prá te ver! - Eu também. Veio o garçom. Era o mesmo de sempre. Trouxe a carta e sorriu, elegantemente, para o cliente paciencioso. Ele sabia o quanto aqueles encontros eram importantes para o cliente, mas não pôde fazer mais do que apresentou. O casal apaixonado permaneceu na mesa de reserva alheia. Beberam, conversaram à vontade e comeram. Ao final, veio a conta, com a indicação da reserva, mesa 31. A pressa o levara a trocar a ordem dos números. E a gentileza do garçom e do gerente fora tanta que sequer mencionaram o terrível equívoco do cliente. Afinal, eles sempre têm razão, não é mesmo? Tanto barulho por nada; mas, no final, tudo pode dar certo. E deu, não é mesmo? A pressa ganha tempo, é verdade, mas com essa economia pode-se perder muita coisa; o sossego, por exemplo. Verônica e Paulo Ricardo saíram do Amarelinho passava das onze da noite, em direção à casa, aos abraços e beijos, cheios de carinhos um pelo outro. Um gorda gorjeta sobre a mesa fez a felicidade dos garçons, como sempre. Naquela noite, mais ainda, pois o final foi feliz, tendo tudo para dar errado. Cheio de amores, entraram no carro, trocaram mais um beijo daqueles e... , dentro da bolsa, tocou forte e carregado o telefone de Verônica!

Conto 61, de 18/08/2000, sexta-feira

Estrutura ausente João Protásio Farias Domingues de Vargas

Estrutura ausente. É possível a existência de algo sem um estrutura? Estrutura, relação e função estão sempre juntas. Os sujeitos agem. Sujeito e ação constituem os outros dois, dos cinco elementos de qualquer postura, do que quer que seja, coisa ou pessoa. Ações são feitas mediante papéis relacionados a uma estrutura determinada. Não existe sujeito sem ação ou ação sem sujeito; assim como não existe ação sem estrutura e estrutura sem ação. Uma estrutura ausente implica em ausência de sujeitos e de ações. Só o significado, em si, pode não ter uma estrutura, imaginando-se sua existência sem um sujeito determinado que o


pense. A própria expressão "estrutura ausente" já constitui uma estrutura determinada. A expressão dá título a uma obra do semiota italiano Umberto Eco. Não estamos discutindo a sua obra ou o significado da expressão na obra. Estamos usando a expressão para explorá-la dentro de um contexto sociológico de posturas das coisas e pessoas, imaginando que toda postura possua, ao mesmo tempo, aqueles cinco elementos, a que chamamos elementos estruturais de qualquer postura. Uma estrutura ausente em uma postura seria uma apostura, uma postura inexistente. Trata-se de uma impossibilidade lógica concreta, à exceção do uso metalógico dela, i.e., da ausência da estrutura da estrutura ausente. Afirma-se que estrutura ausente possui uma estrutura presente, ainda que aquela queira significar a ausência mesma de uma estrutura possível. O signo não possui uma estrutura? A tríade de Peirce: objeto, signo e interpretante constitui uma estrutura determinada, a tríade da semiose. O interpretante teria uma estrutura ausente? Seria uma estrutura que existe em algum lugar mas que, em determinado momento, ela não está presente; isso, precisamente, pelo fato de estar ausente. Assim, estrutura ausente seria aquela existentes, mas que não está presente em determinado momento e lugar. Ausência e existência não seriam antíteses, mas pressupostos necessários. ¤¤¤ Brincando um pouco com as palavras e seus significados, a Razão dialoga com a Postura, isolando o Sujeito, numa ação que, esquizofrenicamente, postula-se interpretante. Em alguma sala de aula, fora de qualquer universidade local. - Estrutura? - pergunta o professor. - Presente - responde uma voz. - Estrutura??? - indaga o professor. - (...) - ninguém responde. - Ausente! Quem respondeu por ela? Quem se fez passar por Estrutura? Quem? - (...) - Relação! Foi você? - inquire o professor. - Fui eu! - adianta-se a Função. - Não foi não. Eu conheço o timbre da tua voz - afirma o professor. - Se não foi Relação, - e isso não é improvável -, foi a Ação ou o Sujeito. Um dos três está se passando por Estrutura. Quem se acusa? - (...) - E você, professor, quem é, nisso tudo, perante a postura? pergunta o Sujeito, categoricamente. - Eu? Eu sou a Consciência, a Razão. Não sabiam disso? Sou eu quem dá significado a cada um de vocês cinco, individualmente e, também, na formação do grupo, do coletivo denominado Postura. Sem mim, vocês, coletivamente, nada significam. São, por assim dizer, uma estrutura ausente. - (...)


Conto 62, de 18/08/2000, sexta-feira

O erro de Confúcio João Protásio Farias Domingues de Vargas

Outro dia lembrava do antigo ditado confuciano "A mente humana é como argila; dependendo as mãos que a moldam, pode se tornar uma bela obra de arte ou um simples vaso sem valor". Afora o fato evidente que emerge do texto, que diz respeito à preocupação pedagógica do filósofo chinês, o que me ocupa a mente agora é a estreita vinculação do aprendiz ao mestre e o resultado concreto dos ensinamentos. A imagem dá uma idéia de submissão intelectual e passividade plena dos alunos, o que não corresponde à realidade. Outra observação é o fato de que parece que há apenas uma pessoa que ensina, abstraindo todas as demais relações do sujeito na vida. Emerge da máxima a cultura da responsabilidade do educando. Os pais são os primeiros educandos de qualquer pessoa. Hoje, não tenho dúvidas de que o nasce já com informações, colhidas durante o período em que já possui, biologicamente, notocorda, um sistema nervoso central e periférico capaz de armazenar dados, por mais imprecisas e não-significantes que sejam elas, para o bebê, ainda no ventre da mãe. Diz-se que se nasce com a mente vazia, tabula rasa. Não é bem isso, mas é quase isso. O significado preciso das coisas existe com a interação social, após o nascimento com vida e capacidade psicológica de aprendizagem. É isso mesmo, nascem burros, burrinhos, burrinhos! No bom sentido da palavra. A frase também faz uma crítica ao mestre que é uma obra de arte e àquele que é uma simples vaso sem valor, reproduzindo-se no discípulo. Como saber se se está diante de um bom ou de um mau mestre? Bom ou mau para o quê e para quem? Essas perguntas a máxima não responde. Ela pressupõe que o seu emissor o saiba, i.e., o próprio Confúcio. Mas essa dica de critério para a escolha ele não nos deu. Limitou-se ao enunciado que está posto. "Mãos que moldam", "bela obra de arte" e "simples vaso sem valor" apresentam relações de causa e efeito. O enunciado do ditado é fisicalista e unilateral. A mente humana não é matéria inanimada como argila; é massa pensante, dotada de razão, de inteligência; é animada. Esse é o erro de Confúcio, retirar a humanidade do aluno e jogá-lo no rol das coisas, das reses. Nem o mestre é tão poderoso; nem o aluno é tão fraco. Há exemplos históricos de mãos maravilhosas que produziram insignificâncias e magnificências, em épocas diferentes de suas vidas, com pessoas diferentes. Nunca se sabe se o resultado será o desejado; há um certo grau de incerteza em cada ato de ensino. "Mãos que moldam" significa "ensino magistral" ou "ensino exemplar"? O segundo tipo ensina mais do que o primeiro. É a


pessoa que ensina quem é o alvo da crítica confuciana; não os alunos; no entanto, vincula o valor de um ao de outro. É como se dissesse: "Dize-me com quem andas e te direi quem és". Traduzindo: "Dize-me quem te ensina e te direi quem és". Portanto, a crítica também serve para o ato de escolha do mestre, dentre outros possíveis e concorrentes. É inegável a influência de qualquer pessoa que interage; não há como fugir das influências dos outros. Pero, nunca é total a ponto de anular a racionalidade de quem é influenciado. A via é de duas mãos. Nem tudo que é ensinado é apreendido; nem tudo que é apreendido é aplicado; nem tudo que é aplicado é exatamente como foi ensinado e/ou apreendido. Há mudanças operadas pela razão do aprendiz, pela seleção que é feita com base nos valores carregados de outras experiências de vida. O Velho Testamento dá exemplos disso quando trata da relação Deus e o Diabo, seu discípulo primeiro. Não sendo assim, a religiosidade estaria dizendo que a maldade do Diabo estava originalmente em Deus. Portanto, ele teria de ser sumamente bom e sumamente mau, ao mesmo tempo. Nem todos os ensinamentos técnicos vêm carregados de ensinamentos morais ou éticos para o seu uso. Técnica pode ser usada para o bem ou para o mal, bem usada ou mal usada, dependendo das mãos que a operam. Outra questão que o verbete confuciano deixa em aberto é a crítica sobre as mãos que moldaram a cabeça do mestre, do professor, do ensinador, que também foi, um dia, aluno, como aqueles que ora são seus. O ensino se produz e se reproduz, mas sempre com mudanças operadas pelas diversas circunstâncias da vida e necessidades das épocas. Enquanto escrevo essa Conto, amigo leitor, querendo ou não, o simples contato informativo lhe coloca em um dos pólos previstos por Confúcio na relação de aprendizagem. Como saber em que mãos se encontra a sua consciência agora? Não tem como. Mas, pode imaginar; a imaginação nunca foi boa conselheira. De que adiantaria eu afirmar que está em boas ou más mãos? Nenhuma. Agora, a sua racionalidade pode encontrar pontos de comparação com sua experiência pessoal e julgar se o que acima foi dito ou não com seriedade. É só com isso que você pode contar. A razão é o mestre de sua consciência e a régua de sua vida. E, no entanto, assim mesmo, algumas vezes, você vai precisar colocá-la de lado para que possa, quem sabe, ser feliz de verdade por alguns momentos. E, ainda assim, enxotada, não vai lhe abandonar; ela vai estar ali, ao seu lado, falando ao pé do ouvido, servil, como sempre foi e será. A razão, a inteligência e a sensibilidade são escravas da consciência. O erro de Confúcio, finalizando, está no fato de que não previu que as belas obras de arte estão juntas com os simples vasos sem valor; são até a mesma coisa, variando o tempo, o lugar e as pessoas. A utilidade do saber depende, foi dito, na práxis, do interesse das pessoas, da finalidade de seu emprego. Ademais, uma bela obra de arte pode até ter menos valor do que um simples vaso sem valor. Quer um exemplo, leitor exigente? Como receptáculo de água numa choupana à beira do deserto, para matar a sede de seus moradores, salvando vidas. Quer um exemplo


matar a sede de seus moradores, salvando vidas. Quer um exemplo oposto? Um quadro de pintor famoso em uma galeria de arte é, obviamente, mais valioso do que um simples vaso sem valor. Quer um exemplo misto? O simples vaso sem valor que vira obra de arte em um museu histórico. Com isso queremos afirmar o primado da mudança e do desvinculamento dos ensinamentos primeiros. As pessoas mudam, independentemente da vontade de seus mestres! Não fosse assim, como explicar a existência de homens que foram muito importantes para a humanidade e tiverem péssima educação no seio da família, sem acesso a bons mestres. A história está cheia de exemplos. Para sair dessa, leitor, só descendo a teoria das idéias imanentes de Platão! Só o idealismo platônico pode sustentar, sem crítica, o erro de Confúcio e torná-lo um acerto cheio de verdade.

¤¤¤ - Alguém deseja fazer a defesa de Confúcio? - perguntou o professor, após a breve dissertação que vimos acima. Houve um silêncio total na turma; alguns com um certo sorrisinho de escárnio estampado no canto da boca; outros, franziam as sobrancelhas, denotando concentração forçada. - Eu, professor - disse um dos alunos, no fundo da classe. - Muito bem, Sérgio - diga. - Confúcio queria dizer o que disse e nada mais do que isso. A metáfora a mente humana é como argila quer significar a sua maleabilidade. Se as mãos que a moldam são as do próprio aprendiz, a sua mente se tornará obras ou vasos. É o acerto ou o erro. Não vejo uma crítica à educação, como o senhor disse. Vejo uma simples colocação. - É uma colocação digna de nota. Essa interpretação é possível e defende bem o mestre chinês. Quem gostaria de dizer mais alguma coisa? - Eu acho que Confúcio estava puxando a brasa para o seu assado. Diz, literalmente quase, "Vejam, eu sou um bom mestre e produzo belas obras de arte. A sua frase é de auto-justificativa. Acho até que ele estava com baixa estima, quando escreveu isso. Estava meio down, precisando de estímulo diante de algumas experiências educativas que não deram muito certo. - É possível, Tiago, é possível - disse o professor, incentivando outras manifestações. - Essa hipótese não está descartada, ainda que a tua análise transcenda os limites do próprio texto. - Confúcio estava confuso, professor - disse uma aluna, sentada na primeira classe. - Se não estivesse não trataria do assunto distinguindo bons e maus mestres que formam bons e maus alunos. Esse negócio de mente de argila é coisa de chinês mesmo! Só pode ser! A máxima dele é um bom artesão faz boas obras. Nada mais do que isso. E isso é óbvio para qualquer um. Mais importante do que isso é como se produzir um bom mestre. Não existe um mestre para todas as coisas; para todas as mentes. Se a mente é argila, muitas mãos mexem nela durante a vida inteira. Veja o nosso caso. Temos 15 professores só nesse semestre. Como dizer se nossa mente será vaso ou obra de arte? É muito difícil de avaliar.


vaso ou obra de arte? É muito difícil de avaliar. - Está correta, Cássia; corretíssima. Confúcio não é atual para os tempos modernos em muitas de suas máximas. - O erro de Confúcio está em superestimar o papel do mestre e em subestimar o papel do aluno na produção da aprendizagem. Ele ignora a pesquisa e a extensão, como formas de exercício da aprendizagem, ao lado do ensino meramente formal. Com a pesquisa e extensão o aluno aprende muito por si próprio, na interação com os outros. No ensino de sala de aula, como esse agora, ministrado pelo senhor, a aprendizagem é apenas uma parte de tudo o que é possível. - Sempre certeiro, Eduardo; muito bem. Agora vamos encerrar com um dever de casa. Vamos tratar, na próxima aula, pegando um gancho no dilema de Confúcio, e tratar da utilidade das coisas, seja na contemplação que possibilita, seja para o armazenamento de coisas. Vamos dar um corte estético e utilitário para a abordagem, diríamos, pela razão instrumental e pela razão prática de Kant. - A estética e a utilidade da argila na formação da mente confuciana, como tema? - perguntou, debochadamente, um aluno. E todos riram, em ruidosa retirada.

Conto 63, de 19/08/2000, sábado

Paradígma da motivação e do incentivo João Protásio Farias Domingues de Vargas

Uma paradígma. Certas pessoas nos motivam e/ou incentivam a fazer certas coisas, o que outras não conseguem. Motivar e incentivar são coisas distintas. Motivar é dar motivo, importância, razão, valor. Incentivar é dar força, estímulo à continuidade ou mudança, criar meios de ação, dar subsídios a realizações. O motivo está na base inicial de qualquer ação; é anterior a essa. O incentivo é posterior; diz respeito à realização prática de alguma coisa. Motivo e estímulo estão sempre juntos, como início e meio visando um fim determinado. Algumas pessoas utilizam as duas palavras como sinônimos, mas não está correto. O motivo justifica um projeto; o estímulo edifica o mesmo projeto. O estímulo pressupõe um projeto existente. A anterioridade do motivo ao estímulo é o que possibilita a existência do último. Na prática, em geral, quem motiva também estimula, em uma forma de ajuda mais completa, mais abrangente. O motivo convence; o estímulo dinamiza. Quando queremos alguma coisa que não temos idéia por onde começar, estamos precisando de motivação; quando sabemos o que queremos e não sabemos como, ou não temos meios de por em


queremos e não sabemos como, ou não temos meios de por em prática, precisamos de estímulo. O motivo ajuda a planejar; o estímulo dá "um empurrãozinho" para os primeiros passos,... e os seguintes, dependendo de seu "tamanho" (uma baita ajuda). Como tudo na vida, a motivação e o estímulo podem ser de duas ordens, positivos ou negativos. A motivação positiva é aquela que nos dá razão em fazer alguma coisa que temos em mente; a negativa, a desistir da idéia. O estímulo positivo, a continuar um projeto; o negativo, a desistir dele. Não resta dúvida de que, em determinadas circunstâncias e para certas pessoas, uma motivação negativa ou um incentivo negativo podem desempenhar o papel inverso. É o que ocorre quando temos idéias ou projetos negativos, perniciosos para si ou para outros, por assim dizer. Se alguém tem a idéia de se matar, uma motivação a mudar de idéia é muito positivo; o mesmo se quer matar a outrem. Se uma pessoa está tentando se matar, incentivá-lo a desistir ou mesmo agir para impedi-lo, constitui estímulo negativo que age positivamente. Como em certos ensinamentos das ciências físicas, negativo com negativo gera positivo. É o que a eletrodinâmica ensina, não é mesmo? - Com toda essa conversa fiada, Olavo, o que é que tu estás querendo dizer para mim? Por acaso, estás me cantando? - pergunta a mulher, secamente, ao seu acompanhante. - Não; nada disso. Estava querendo simplesmente falar sobre algo; dissertar; só isso. Não tem nada a ver com cantar alguém. Agora, se a tua interpretação é no sentido de que estou tentando gerar uma motivação nesse sentido, apesar de não ser exatamente o ponto do que eu estava querendo dizer, mesmo assim, eu entendi. Fez sentido. É isso. - Credo, Olavo. Também não precisa me agredir por ter feito uma pequena brincadeira. É claro que não está tentando me cantar! Foi um modo apenas de dizer. Mas, bem que poderia ser; eu gostaria muito. - Nem sei o que dizer, Cloraldina. Se eu precisasse te cantar com um discurso tão árido, tão impessoal, eu me sentiria mesmo como se estivesse fora de fora; o que entendo que não acontece. Eu ainda sei cantar muito bem uma mulher, se é isso que deseja saber. - Sabe?!? Mesmo?!? Não parece! - O que seria necessário para eu te cantar a contento? perguntou, meio enfático, meio insinuoso. - Precisaria me convidar para dançar - disse, com um olhar sorrateiro que lembrava a imagem machadiana dos Olhos de Capitu. - Dançar. Faz muito tempo que não danço. Dá-me a honra de uma dança, minha adorável senhora - disse, com um jeito afetadamente cavelheiresco. - Claro, Cavalheiro. Prefere algum estilo, em especial? - Tango. Adoro tango. Gardel sempre foi meu ídolo. Não sei dançar muito bem, mas gostaria de imitar Al Patino em Perfume de Mulher. - Eu cuido para que possas se sair melhor do que o Patinho disse, levantando-se e erguendo a mão em sua direção, como manda o estilo antigo de convite. A pista de dança estava vazia. O Restaurante estava fechando. Somente o casal se encontrava no recinto. Mesas de patas para o ar enfeitavam quase todas as mesas, dando uma imagem de um


enfeitavam quase todas as mesas, dando uma imagem de um grande exército em forma, visto do alto. Uma música compassada tocava, baixo, ao fundo, enquanto giravam e giravam, imitando os modos antigos da dança argentina. O barman olhava os dois, secando os copos, admirando o quanto é lindo o amor. Com motivação e incentivo a vida se torna tão bela, não é mesmo!? Como é linda a felicidade alheia, olhando assim, à distância, num final de noite, dançando, um casal cheio de amor, rodando, solitário e, ao mesmo tempo, repletos, satisfeitos consigo mesmos. O amor é lindo!! - dizia para si mesmo, tentando se convencer de que felizes mesmo são os outros; principalmente aqueles - como esses ali - que dançam tango agarradinhos, em compassos de separação, presos pelos braços e mãos que se tocam e se prendem. Paradígma da motivação e do incentivo: o amor é lindo!

Conto 64, de 20/08/2000, domingo

E-mail sacana João Protásio Farias Domingues de Vargas

Recebi de um amigo médico um e-mail que me deixou intrigado. Fiquei pensando em seus diversos significados. Vou transcrevê-lo, amigo leitor, para que compartilhe conosco o seu inteiro conteúdo, enquanto fazemos algumas reflexões. Ei-lo, inteiro:

" Leia e responda 1.Se você conhecesse uma mulher que está grávida e já tem 8 filhos, dos quais 3 são surdos, 2 são cegos, um é retardado mental, e ela tem sífilis... Recomendaria que ela fizesse um aborto? Leia a próxima pergunta antes de responder a essa. 2. É tempo de escolher um líder mundial e o seu voto é importante. O comportamento dos candidatos é o seguinte: CANDIDATO A: é associado a políticos corruptos e costuma consultar astrólogos. Teve duas amantes,


astrólogos. Teve duas amantes, fuma um cigarro atrás de outro e bebe de 8 a 10 Martinis por dia. CANDIDATO B: foi despedido do trabalho duas vezes, dorme até meio-dia, usava drogas na Universidade e bebia meia garrafa de Whisky toda noite. CANDIDATO C: é um herói condecorado de guerra, é vegetariano, não fuma, bebe às vezes um pouco de cerveja e nunca teve relações extraconjugais. QUAL DESSES CANDIDATOS VOCÊ ESCOLHERIA ? Decida antes de procurar a resposta no final da página... Candidato A: é Franklin Roosevelt Candidato B: é Winston Churchill Candidato C: é Adolph Hitler E sem esquecer a primeira pergunta: A resposta da questão do aborto... se respondeu que sim, você ACABA DE MATAR BEETHOVEN. Nem tudo o que brilha é ouro, e nem tudo o que é ouro deve brilhar. O importante são as decisões que você toma no caminho, e como elas te ajudam a chegar ao final. Por isso é que não devemos préjulgar ninguém ...principalmente com a descrição de duas ou três linhas. Um abraço."

O que é a mente humana, hein? Não sei classificar ao certo o texto recebido, se piada, teste psicotécnico ou político, Conto moral de interface direta, deboche público ou apologia anglo-americanófila, literatura anti-nazista, ensinamento ético-médico, adivinhação histórica, prova de conhecimentos biográficos, propaganda antiaborto, apologia da globalização, ou tudo isso ao mesmo tempo. Vou repetir o jeito do texto do médico e provocar você, leitor. Afinal, qual é a do texto, leitor? Responda rápido e antes de virar a página!

¤¤¤


¤¤¤ - Pára com isso, Márcio! - assim eu não consigo me concentrar! disse Helena, pegando um travesseiro para se recostar melhor na guarda do sofá, enquanto tentava continuar a leitura da folha impressa. - Tem que ser rápida, menina! O tempo não espera ninguém; passa de qualquer forma. - Acho que já sabe a resposta, não é? Eu não fiz doutorado nos EUA; por isso preciso de um pouquinho mais de tempo para me concentrar do que esses semideuses. Enquanto ela lia, Márcio olhava pela janela, concentrado em algum ponto da Baía de Copacabana. O dia estava quente e haviam acordado muito cedo para ir à praia, antes de ir ao compromisso agendado com a Companhia. Olhou o relógio. Marcava 6:20. Era cedo. Haviam tomado banho e já estava quase vestido. A empregada estava pondo a mesa. Dava para ouvir o barulho de talheres, vindo da cozinha. - Pronto, seu apressadinho! Terminei. Quer saber minhas impressões? Quer mesmo!? Pois bem, vou dizê-lo. Uma droga de texto, mas com uma conclusão moral muito boa. - Quero uma análise; não um mero juízo conclusivo. As razões do juízo ensinam mais do que o juízo mesmo. Ainda que não seja fácil julgar; justificar é mais difícil ainda. - Não gostei do texto, Márcio. Ele não é bom. Deixa a gente errar e depois demonstra que cometemos crime de lesa-pátria. Deixa a gente com jeito de idiota, mesmo. É isso aí! Uma criatura que tem sífilis, já tem 8 filhos, 3 surdos, 2 cegos, um retardado mental, e ainda engravida por uma nona vez, tem que fazer aborto! É óbvio! Mas, aí - e isso é que é uma droga! - faz a gente matar um Beethoven! Eu adoro Beethoven! Eu comecei a estudar piano com as primeiras sonatinas dele! - E, quanto à eleição do execrável líder "mundial", o que te parece? - É outra coisa. A descrição joga a nossa opção a quem não é bêbado, não é drogado, é trabalhador, tem méritos, não tem amantes, não fuma inveteradamente. E, aí, o que acontece? Faz a gente eleger Hitler. Nos faz parecer nazista! - E quanto à leitura moral das decisões que nos leva a tomar? - Aí, dá um show de moral na gente! Diz que somos apressados, que não sabemos distinguir o que é ouro e o que não é, que préjulgamos à base de uma descrição de menos de três linhas! O que é importante são mesmo as decisões que tomamos no meio do caminho? Ali está o "o quê" das coisas; aqui, o como? Por isso, afirma o "como as decisões nos ajudam a chegar ao final". Que final é esse? Falei demais até. Agora é a tua vez, senhor sabe-tudo. O que te parece? - Antes de falar sobre isso, me lembrei de uma expressão num filme a que assisti ontem à noite. Chamava-se Força Aérea 1, tendo por protagonista o ator Harrison Ford. A certa altura das cenas, quando o Presidente dos EUA se transforma em um verdadeiro Rambo dentro da aeronave, depois de ter feito de conta que estava salvando a pele na cápsula. Ele encontra um celular, lê o manual de instruções, prova que é ele mesmo e pergunta, ao seu Estado-Maior: "Quais são as nossas opções táticas?". A expressão "opções táticas"


"Quais são as nossas opções táticas?". A expressão "opções táticas" me pareceu sintomática e relativamente importante. Como estamos decidindo, subliminarmente, quem deveria ser, no mundo globalizado, o Presidente do Mundo, pergunto, senhorita sabe-nada: quais são as nossas opções táticas para não eleger Hitler e não matar Beethoven antes de nascer? - Eu não sei. Eu é que estou perguntando? Você deve responder. É a sua vez. Nunca fui militar, Márcio. Como vou saber de opções táticas? Isso é com vocês, homens, que prestam serviço militar! Eu, hein?! - Minha adorável Helena de Tróia! - Meu Jasão! - Ôpa! Jasão??? Bom, deixa prá lá! Foi maus, hein? - É mesmo! Me dei conta agora. Mas, não vou remendar. Continua a tua explicação, que o tempo está passando. Vêm. Vamos tomar café, enquanto dá a tua explicação, meu historiadorzinho de meiatigela! - Não vem, que não tem! Sem ofensas, tá?! Não gosto de brincadeiras desse tipo. Historiadorzão! Historiadorzão, tá legal!? - Tá! Joana? Está pronto? - gritou para a empregada. - Tá na mesa, dona Helena. Tá na mesa! - respondeu a empregada. Foram à outra sala, tomar o café-da-manhã. - Ficou brabinho, por quê? Matou Beethoven e elegeu Hitler, não é? Confessa, professor! Que feio, hein! Elegendo bandido e matando inocentes, hein? - disse, rindo, debochando, carinhosamente, enquanto sentava à mesa e pegava uma fatia de melão e enchia um copo de suco-de-laranja. - Não é isso, mas, não importa agora; foi responder à pergunta. Não elegi Hitler e nem matei Beethoven. Acho que foi tu quem seguiu o roteiro. Eu deixei ele nascer e elegi o desempregado. Fui de Winston, viu? - Um vagabundo, drogado e bêbado! - Seria melhor ou pior um corrupto, místico, galinhão, viciado e bêbado? - lascou, de imediato. - Ou um herói vegetariano, sem vícios, moderado e certinho? replicou, perguntando. Está com medo de que a escolha denuncie traços de sua personalidade? - Não provoca, Tânia; não provoca! - Tânia????? Quem é Tânia? Já sei; escolheu o inglês! Que ato falho! Bom, não importa, agora. Diz logo, que a praia tá nos esperando, amor! É Helena, viu? He-le-na! Ainda não se acostumou com o meu nome? - O teste tem cinco partes. A primeira - miséria humana - dá um quadro tétrico sobre uma mulher que está grávida e pede um conselho sobre aborto. A segunda, - escolha DO - não de UM! - líder do mundo - convida a escolher um líder mundial - MUNDIAL! IGNORANDO AS SOBERANIAS NACIONAIS! - entre um americano, um inglês e um alemão, dando uma descrição sumária e moral de alguns comportamentos passados de cada um, escondendo a identidade na página seguinte. O que foi? - Nada. Vai fazer outro discurso? - Tá bom; eu paro de falar! - Não é isso. Continua. Estou interessada; é sério! - ... Em terceiro lugar, identificação - dá a resposta para as duas


- ... Em terceiro lugar, identificação - dá a resposta para as duas perguntas, identificando as quatro celebridades históricas, misturando música, militarismo e geopolítica em um mesmo grupo, sem maiores explicações. Em quarto lugar, uma comparação compara, implicitamente, as respostas com o ouro e o engano sobre a aparência de seu brilho, afirmando que o importante são as decisões e como ela ajudam para chegar a um fim qualquer. Por fim, em quinto, - julgamento - conclui moralmente que não se deve julgar ninguém com descrições incompletas. - Palmas! Bravo! Magnífico! - disse, batendo palmas levíssimas. - Que foi? Qué se passa, tica? - perguntou, forçando um sotaque portenho, sibilando, com a língua na ponta do bico da boca, entre os dentes. - Estrutura. Estrutura! Estrutura! Sempre estrutura. Eta, estruturalista! Louis Althusser deve estar sorrindo no caixão, agora. Merece palmas, doutor! - Que tem a ver com aparelhos ideológicos de estado, é isso que está querendo dizer? - Foi o que eu disse, queridinho. Que não houve análise de conteúdo, mas de estrutura de discurso. Posso descer ao meu chão e falar na estrutura ausente, dialogando com o bolonhês e umbertíssimo Eco. - Não me venha com essas de semióticas que não tem vez! Isso é balela! Peirce! Peirce! Peirce! Peirce! Peirce! Peirce! Peirce! .... - Nem tudo que reluz é ouro, meu bem! - Nem tudo que não reluz não é ouro! - Tá dizendo a mesma coisa. A mesma coisa. A mesma lógica. - Pode ser a mesma lógica, mas o conteúdo da proposição é outro! - Ah, tá bom! Agora vai atacar com Aristóteles! - Não! De logística, não; de lógica dialética, com Lefebvre. Sai dessa, que eu quero ver, filósofa! - Não ofende! Vai estragar o café! Sabe que eu não gosto de comunista! - Ah, resolveu tirar a máscara e mostrar a face direitosa agora! - Não tem nada a ver com os braços de Napoleão na ágora francesa a que se refere! Positivista! - Mística! - Eu não escolhi o inglês! Escolhi Hitler! Errei; é isso! Escolhi o menos pior. Essa foi a lógica. Não gostei da escolha, só isso! E, tem mais; eu matei Beethoven, sim! Outro erro! Gosto tanto dele! Mas, o texto me levou a isso. Acho que o autor da proposta parte do princípio anti-ético faz o que eu te digo, mas não faz o que eu faço. Ele, simplesmente, descreveu pouco para forçar uma resposta errada e depois capitalizar em cima, dando um falso show de moral. Estou puta da cara com o cara! Afinal, qual é a dele?! - Está irritadinha, agora!? - Estou. Não poderia ficar? Eu es-tou ir-ri-ta-da! Toma esse café logo e vamos cair na água! A hora não espera acontecer! - Hora do Povo! - Quê?! - Nada. Eu sou de outro partido. Só isso! - Não entendi a colocação. Por favor, repita. - Lembrei o Geral do Vandré. - Ah, bom.


- Ah, bom. - Está correta. A estória do texto é uma armadilha surrealista, mesmo. induz ao erro e depois dobocha do nosso erro, dando lição de moral! Lembra o texto lobatiano Panacéia ou Mistificação contra a Anita Malfatti, no início do século. Não nos dá chance de escolha correta. Só tem uma coisa boa ali. A afirmação "Não devemos préjulgar ninguém". Isso bastaria. Fazer a gente passar pela experiência de pré-julgamento dando a entender que estamos fazendo um julgamento completo e com conhecimento de causa tanto o é que dá os critérios e as descrições incompletas ou sem demonstração da fonte de consulta, para se saber se aquilo é verdade ou não! - é coisa inaceitável! Helena pôs o biquini na bolsa e o resto dos apetrechos; pegou o guarda-sol, o chapéu, a changa e desceram o elevador. Calção, chinelos e óculos de sombra eram tudo quanto Marcio levava consigo, além de si próprio, é claro. Enquanto atravessava a faixa de segurança, em direção ao calçadão, lembrava-se que a empregada havia chamado Helena de Joana e ela nem percebera. Uma troca de nomes completa. Que manhã! Pelo menos um descanso depois da tragédia do texto. Depois de matar um grande músico, eleger um nazista e levar um xixi telemático (ser chamado de preconceituoso!), um bom banho de mar faz bem à alma de qualquer carioca. O mar estava lindo. O sol brilhava como nunca. A areia estava limpa e muita gente bonita circulava de um lado para outro, como sempre, entre os corpos bronzeados jogados nas esteiras coloridas. Como a vida é bela! Mesmo matando Beethoven e elegendo Hitler! E-mail sacana, hein, leitor?!

Conto 65, de 21/08/2000, segunda

Opções Táticas João Protásio Farias Domingues de Vargas

Leonardo havia levado 35 dias para ler A Arte da Guerra, de Sun Tzu, de 07 de fevereiro a 14 de março. Era uma tradução yankee de José Sanz, adaptada e prefaciada por James Clavel, de uma tradução inglesa (The art of war) do original japonesa. Era a 19ª edição brasileira. Deu a cada um dos capítulos o título de uma teoria desenvolvida, conforme a tabela construída.

A 13 Teorias de Sun Tzu Numeração dos Capítulos

Teorias

Títulos dos Capítulos


Capítulos

Capítulos

I

Teoria dos cálc ulos

Preparação dos planos

II

Teoria dos

Guerra

c ustos

efetiva

III

Teoria da Vitória

A espada embainhada

IV

Teoria das estratégias

Tátic as

V

Teoria das táticas

Energia

VI

Teoria do ataque

Pontos fracos e fortes

VII

Teoria das Manobras I

Manobras

VIII

Teoria das Manobras II

Variação de táticas

IX

Teoria das Manobras III

O exército em marcha

X

Teoria dos Terrenos I

Terreno

XI

Teoria dos Terrenos II

As nove situações

XII

Teoria do Fogo

Ataque pelo fogo

XIII

Teoria da Informação

O emprego de espiões

Sun Tzu viveu há 2.500 anos na China, quando escreveu o livro. Olhava algumas passagens. "O mérito supremo consiste em quebrar a resistência do inimigo sem lutar". Começa afirmando: "A arte da guerra é de importância vital (...). É uma questão de vida ou morte, um caminho tanto para a segurança como para a ruína. Assim, nenhuma circunstância deve ser negligenciada". No capítulo III, Teoria da Vitória, segundo Leonardo, página 25, glosou, logo abaixo do título "A Espada Embainhada", mais uma tabela:

1º - Impedir os planos do inimigo 2º - Evitar junção suas forças Política de Ataque

de

3º - Atac ar o inimigo no campo próprio 4º - Não sitiar cidades muradas 5º - Não tomar de assalto como formigas 6º - Conquistar as tropas


6º - Conquistar as tropas inimigas sem luta

À página 29, em 07 de fevereiro, glosou, de novo, abaixo do título do capítulo, agora o IV, na sua Teoria das Estratégias, Táticas, formando uma nova tabela.

1º Planejar sec retamente 2º - Deslocar-se subrepticiamente

Estratégia

3º - Frustrar as intenç ões do inimigo 4º - Impedir planos do inimigo

os

5º - Vencer sem derramar sangue 6º Preparar soldados inteligentes

Adiante, na página 44, capítulo VII, Manobras, denominado Teoria das Manobras I, organizou glosado uma terceira tabela:

1º - Estudar os humores humanos 2º - Conservar o autodomínio 5 Artes de Manobras

3º - Economizar forç as 4º - Examinar as c ircunstâncias 5º - Manobrar c om eficác ia

Voltou à página 17, na Preparação dos Planos, Capítulo I, denominado Teoria dos Cálculos, verificando mais uma tabela:

1º - Lei moral efetividade política 2º - O Céu efetividade dos terrenos

5 Fatores

3º - A Terra efetividade dos


efetividade terrenos

5 Fatores

dos

4º - O Chefe efetividade militar 5º - Método e Disciplina efetividade bélica

Fechou o livro e olhou a contra-capa. Ali estava escrito, sob duas linhas grossas e vermelhas:

•"Se você se conhece e ao inimigo, não precisa temer o resultado de uma centena de combates. • Se você se conhece, mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. • Se você não conhece o inimigo e nem a si mesmo, perderá todas as batalhas."

Ficou pensando na desiderata suntiziana. Imaginou um inimigo e se pergunto sobre o conhecimento que tinha de si e dele. Concluiu que nada sabia sobre o inimigo. Bom perderia a metade das batalhas. Olhou para dentro de si e viu que também não se conheci: perderia todas as batalhas, assim. Guardou o livro de volta na estante. Sentou-se novamente. Olhou as mesmas tabelas, de novo. Pensou e pensou. Preciso conhecer meus inimigos; mais, preciso me conhecer melhor, se quiser ter alguma vitória. O maior inimigo somos nós mesmos, concluiu, apreensivo. - Quais são as minhas opções táticas? - perguntou a si mesmo, em voz alta, dialogando com a sua consciência. - Não sei nem o que são táticas, como saber o que são opções táticas? - respondeu de si para si. - Tenho opções de ação? - Não me ocorre nenhuma. Chega. Estou com fome. Vou almoçar. Chega de Sun Tzu. Vamos guerrear com os talheres, para a sobrevivência da vida! Levantou-se e saiu, inconclusivamente.

Índice Analítico RESUMO MODO DE CITAÇÃO


MODO DE CITAÇÃO APRESENTAÇÃO SUMÁRIO CONTO 46 - SUBSTANTIVO E ADJETIVO CONTO 47 - MANDA UMA VEZ, QUE É BOM CONTO 48 - SIMBÓLICO DE SAIR DE CASA CONTO 49 - ESPELHO DE CEGO CONTO 50 - GROSSO E PARTIDO CONTO 51 - O ATOR E A PRÁTICA POLÍTICA DE JESUS CONTO 52 - VALORES DE CADA UM CONTO 53 - ELEFANTE JURÍDICO CONTO 54 - TE MANDA, ZÉ, QUE É HORA CONTO 55 - ÁGUA PARA UM PEREGRINO CONTO 56 - FILANTROPIA DAS VÍTIMAS INOCENTES ACUSADAS E ABSOLVIDAS CONTO 57 - LIVRINHOS DA SILVA CONTO 58 - OLHOS DE ESMERALDA DA GRINGA CONTO 59 - PORTE, TRANCO E SEMBLANTE CONTO 60 - O TELEFONE DE VERÔNICA CONTO 61 - ESTRUTURA AUSENTE CONTO 62 - O ERRO DE CONFÚCIO CONTO 63 - PARADÍGMA DA MOTIVAÇÃO E DO INCENTIVO CONTO 64 - E-MAIL SACANA CONTO 65 - OPÇÕES TÁTICAS ÍNDICE ANALÍTICO

Veja o Volume 1 - Veja o Volume 2 - Veja o Volume 3 - Veja o Volume 4

Acesso

, desde 15 de março de 2009.


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