PROTASIO VARGAS. Contos do Final do Milênio 0 VOLUME 4

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Contos Literários e Jurídicos

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Contos do Final do Milênio VOLUME 4 (86-107) JOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUES DE VARGAS UFRGS Versão 2, de 09/11/2000

Resumo Em quatro volumes, os 107 contos, escritos no final do inverno e início da primavera do ano 2000, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, apresentam uma variada temática de abordagem, com personagens inventados em um cotidiano ora reflexivo, ora bastante cinético, movimentados em cenários variados de enredos bastante simples. O autor se vale da ironia na maioria dos enfoques, sem descurar da crítica, inclusive de cunho político, social, econômico, ideológico, filosófico, religioso, enfim, jurídico, de espraiada modalização. A ordem dos contos é a ordem de sua criação, inclusive na cronologia posta. O volume 4, com 31 contos vai do conto 86, “Quadro de Kelsen”, ao conto 107, “Frio na Barriga”.

Modo de Citação VARGAS, João Protásio Farias Domingues de. Contos do Final do Milênio. Vol. 4/4. Porto Alegre: digitado, 2000.

Apresentação . Os contos foram escritos entre 19/06/2000 e 02/10/2000. Metodologia de escrita: construção à medida que digita; tática principal: escrever muito para aperfeiçoar o estilo; estratégia geral: ter acúmulo de texto que possibilite uma seleção para divulgação. Estratégia específica: escrever de modo que os Contos possam evoluir, naturalmente, para escritos maiores, de gênero diverso: o romance e a novela. Limite inicial da tática: 100 Contos. O autor mistura trechos de fatos observados na vida observada no cotidiano com emendas da imaginação, de modo que nada do que está escrito represente realidades postas. Eles não têm essa vocação. Por isso que tudo quanto possa ser semelhante a fatos da vida constitui mera coincidência e não pode ser levado a sério. Trata-se de mera ficção e, como tal, devem os escritos ser encarados.


Podemos chamar de contos-momento, construído na espontaneidade da inspiração. Alguns são longos e outros muito curtos, quase beirando à crônica; outros tangenciam o ensaio, mas sem nunca perder o ar ficcional. Todas as personagens, são fictícias e, na realidade de cada conto, adquirem a vida que lhes coube pela imaginação do autor.

Sumário RESUMO. MODO DE CITAÇÃO. APRESENTAÇÃO. SUMÁRIO. CONTO 86 - QUADRO DE KELSEN; CONTO 87 - CAFÉ DA MANHÃ; CONTO 88 - CENTELHA DA MADRUGADA; CONTO 89 - BEDUÍNOS DO DIREITO; CONTO 90 - LIQUIDANDO A TEORIA E A PRÁTICA; CONTO 91 MUDANÇA DE NOME; CONTO 92 - VÍTIMA DA HORA; CONTO 93 - DESEJO DE CONTAR; CONTO 94 - RESPOSTA SÓLIDA; CONTO 95 - SIMBIOSE CONCEPTIVA; CONTO 96 - GENIALIDADE; CONTO 97 - MODELO RESOLUTIVO; CONTO 98 - GENEALOGIA DO DIREITO; CONTO 99 - RECONSIDERANDO OPÇÕES; CONTO 100 GÊNIO DO RIO; CONTO 101 - QUADRINHOS DE ZOË; CONTO 102 - PARECIA UM SONHO; CONTO 103 CRITÉRIO DA ELEGÂNCIA; CONTO 104 - ERRO DE IDENTIDADE; CONTO 105 - RISCOS DESNECESSÁRIOS; CONTO 106 - QUESTÃO DE ADAPTAÇÃO; CONTO 107 - FRIO NA BARRIGA. ÍNDICE ANALÍTICO.

Conto 86, de 11/08/2000, segunda

Quadro de Kelsen João Protásio Farias Domingues de Vargas

Mustafá olhava atentamente o "Quadro de Kelsen" que havia lhe passado um professor de direito. Ele não era estudante de direito, mas sim pós-graduando em engenharia civil, numa universidade católica daquele Estado, bem no meio de um grande país, cuja dissertação era sobre a responsabilidade jurídica do engenheiro por erro de cálculo nos projetos e construções civis.

Não dizia muita coisa para Mustafá, mas as cores eram marcantes; inclusive lembravam as cores de um partido político brasileiro e a Alemanha. O que percebia de imediato era a binariedade da formulação "NJC=HL+CJ". Era simpática para ele, acostumado a fórmulas e cálculos. O que mais o intrigava era a expressão "suporte fático", de um tal Pontes de Miranda. Ficava pensando em "suporta o fato". Sabia que dizia respeito à parte da norma que trata da descrição genérica dos fatos da vida social, uma espécie de alarme normativo que indicava no que a norma como um todo era aplicada ou não. Lembrava-se, de imediato, das palavras penais "matar alguém". Era isso o suporte fático da norma. Todo aquele que


matasse alguém estaria enquadrado na tal norma sobre homicídio. "suporte fático", "suporte fático", "suporte fático" - ficava assim, pululando na sua cabeça a expressão. Era essa coisa, de nome estranho, o modo, a maneira técnica de controlar as pessoas, prevendo seus comportamentos. Se estiver o jeito previsto na norma, a esse jeito a norma é aplicável. Previsão genérica, alargada ao máximo, para caber o máximo de casos da vida somente naquele quadradinho. Pouco importaria o modo de matar; havendo o resultado morte, a norma incidiria sobre o fato, tornando o fato da vida, um fato social, em fato jurídico, já qualificando o sujeito, de cidadão a bandido, a assassino. É o enquadramento legal, no sentido lato da palavra "enquadrar", pôr no quadro; aquele quadro ali, vermelho como sangue. Sentia-se como se estivesse delirando com o retângulo normativo, com os dois quadrados jurídicos. Era a geometria do Direito; a sua matemática; o seu modo de se exprimir, de se manifestar, de se exteriorizar no mundo; era o mundo dito jurídico. Havia um mundo jurídico; para ele, um mundo novo, desconhecido. Há pouco havia descoberto a normatividade de recorte jurídico. Pegou um dos códigos que havia comprado no dia e passou a olhá-lo, com jeito de entendido no assunto, atrás do suporte fático de cada norma. Todas elas tinham um. O quadro do tal Kelsen era certeiro. Pela primeira vez estava entendendo essa coisa chamada direito. Era uma estrutura, sim, uma estrutura normativa. Com essa estrutura podia criar todas as normas, brincando, que quisesse; podia corrigir o mundo através das normas. A técnica era boa, muito boa. Como não descobria o direito como curso, antes de se decidir pela engenharia? Não sabia; nunca lhe passara pela cabeça ser advogado, juiz, promotor, delegado ou coisa que o valha. Agora, tudo aquilo, de desconhecido passa a objeto de desejo, de sonho, de volúpia mental. Estava seduzido pela estrutura; amava a estrutura. Era como que quadros metálicos, implacáveis, resistentes, soldados, perfeitos; feitos para durar a vida inteira. Agora fixou os olhos e as narinas no quadro amarelo, no dourado. A sanção era o ouro; o suporte era sangue. Sangue e ouro, era isso o que o Direito era para ele, naquele momento. Um direito positivo completo. Olhou a sua mão direita e empunhou o polegar, em sinal de positivo, erguendo-o, rígido, para cima, com os quatro outros dedos dobrados, tocando o centro da palma. Era positivo mesmo! Não era negativo, como pensava anteriormente, quando tivera algumas disciplinas na Faculdade, anos antes. Era positivo, sim! E com um grande sim! Um sinzão daqueles! Estava apaixonado pela estrutura da norma. Amava, repetidamente, os seus arcos e dobras, os seus ângulos internos e externos. "Preceito", "Sanção", "preceito", "sanção", sansão, preconceito. Estava brincando com as palavras: o preconceito de sansão. Dalila? Os longos cabelos. Ah, como era bela naquele filme antigo! Ursula Andrews? Não lembrava mais, só que era linda. A criança adormecida dentro dele era despertada, de súbito, e percebia que dormira longos anos. A vida é regulada pelas normas, não é mesmo? Se perguntava e ria, sozinho, seguro. Agora não era o fato o que importava, mas o que fazer com as pessoas em função do fato. Era a pena, a prescrição; era a bula do remédio jurídico, na medicina jurídica de sua cabeça. Ouro é prescrição; sangue é fato. Ocorrendo o fato, o que fazer? Pergunte à norma e ela responde. Tudo o que se quiser fazer com o fato deve estar ali. Pode-se proibir um fato, incentivar um fato; tudo fica positivado, insculpido, redigido, prostrado na norma, na segunda parte, no preceito. Suporte e Preceito; Vermelho e Ouro; Sangue e Fato. À esquerda, o fato; à direita, o preceito. Pode-se corrigir ou agravar a vida, conforme se determine o que deve ser feito em função do fato. O preceito está sempre em função do fato. Isso é matemática pura: "F(f)". Tanto um quanto o outro era funcional; funcionavam; um existia em função do outro; a relação era também dialética. Havendo um fato, haverá uma sanção, um preceito, uma prescrição. Era a prescrição o que efetivamente importava na norma; era o "que fazer" de Lênin, pô! Era bárbaro isso tudo. Era lindo saber aquilo. Parecia uma relação de causa e efeito: havendo o fato, haverá a prescrição. Um antecedente, o fato, e um conseqüente, o preceito. Um e dois, lado a lado e vinculados. O preceito está vinculado ao suporte fático. É o suporte o que suporta a norma; o fato suporta a prescrição, a bula jurídica. Era uma bula, sim; um bulão. "Se "a" ocorrer, então "b" deve ser. "Ser" e "dever ser" atuando a um só tempo. "Se "a", então "b" ". Era a lógica do Direito, a lógica jurídica. A vida jurídica imita a vida real; e é realidade, ainda assim; uma realidade construída, inventada para regular a vida. É vida regulando a vida. Algumas vezes a norma não é completa, não está inteiramente posta em uma redação única e contínua, como descreve o Quadro de Kelsen. O suporte fático pode estar posto e remetendo o conteúdo do preceito para a redação posta em outra norma, em outra lei. Por vezes a norma apresenta apenas o suporte fático, sem explicitar o preceito, mas ele existe e está posto em algum "lugar" do ordenamento jurídico. Podemos criar normas impossíveis de serem cumpridas na determinação do seu preceito. Uma norma que dispusesse como sanção uma pena impossível de ser executada, como é o caso de uma "pena de morte da alma". Pode-se matar o corpo, tirando-se a vida, mas é desconhecido da ciência a possibilidade de "matar a alma" ou "exterminar o espírito". Fala-


se na existência de alma e espírito, através de diversas religiões, mas não se comprovou, ainda, cientificamente, que ele exista ou que não exista. Mustafá era descendente de árabes e sabia muito bem o que era uma norma jurídica e a força vinculante dela, principalmente quando estava associada às metafísicas religiosas. A tirania religiosa gera um direito tirânico, senão cruel. A crueldade era característica bem conhecida e o seu desprezo não era suficiente para minimizar as lembranças do que aprendeu como herança paterna. No ocidente, apesar de nem sempre ter sido assim, a relatividade do conteúdo das normas sempre foi visto como forma liberal de ver o mundo e as pessoas. Todas as religiões são politizadas e disputam o poder de mando dos Estados. A separação ocidental entre Igreja e Estado deu um salto de qualidade na vida das pessoas e da sociedade em geral. Elas, agora, disputam com menor força do que antes. E isso era bom; seus olhos diziam isso com muita clareza. O telúrico dos olho estavam vivos e acesos. Hipótese e conseqüência; suporte e preceito; fato e sanção; vermelho e ouro. Tudo isso, em dois quadradinhos, com o polegar direito retesado para o alto. Thêmis, a deusa grega da justiça, com certeza estava presente quando o homem foi obrigado a inventar a norma, o normatizado, o normalizado, o normal. Norma é normal? É como um metro, serve para medir, não o comprimento, mas a paz social. Quanto mais justo for o Direito, tanto mais as normas são cumpridas voluntariamente. Direito e Justo são coisas muito distintas; o justo absoluto é o nada nas coisas, assim como o direito absoluto. Não há um direito natural, que exsurja da natureza, espontaneamente e seja sumamente bom. Mesmo um direito dito natural não pode rescindir da norma, da estrutura normativa apontada. A benevolência social possível constitui conteúdo de algum preceito normativo. A felicidade pode ser resultado de normas sumamente boas, no sentido lato da palavra bondade. Mas, como tudo na vida, a bondade é sempre orientada, tem um sentido e uma direção. O que é bom para um, pode não sê-lo para outro. Portanto, ser bom para um, pode ser, ao mesmo tempo, mal para outro. Mustafá estava delirando, viajando no espaço sideral da sua consciência. Sabia disso, mas se sentia bem com todas essas elucubrações.

Conto 87, de 12/08/2000, terça

Café da Manhã João Protásio Farias Domingues de Vargas

Lisandra arrumava as unhas com um pequeno alicate metálico. Os longos cabelos muito loiros voavam com o sopro da brisa. A mesa, posta no gramado, com suas cadeiras brancas, lembravam coisas de filmes antigos. A tranqüilidade da manhã convidava para uma boa conversa. Era o café matinal do grupo naquele pequeno retiro. Quatro haviam chegado; os outros não demorariam tanto. Frutas, legumes, cozidos, leite, café, iguarias de todo tipo. Não só isso, se quisesse beber, álcool não faltava no lugar. A escolha era livre; podia ser algum tipo de suco, laranja, por exemplo. Não faltou quem preferisse calibrar o pulso. - Você é um doente, Márcio. Márcio, com o copo de whisky na mão, olhou bem dentro do olho de Lisandra, numa mistura de cinismo e ousadia, expressando não perplexidade com a colocação, mas sim uma certa indignação. - Não, Lisandra. Sou apenas um cara comum que não tem nada a perder. Pestana percebeu que haveria outra discussão entre os dois, já famosos pelas brigas conjugais. Ignorou o papo e dirigiu-se a Manoela, tentando dar outro rumo à conversa matinal. - Para se ter sucesso é preciso projetar-se uma imagem de sucesso o tempo todo. É isso, Manoela? A moça tomou mais um gole de suco de morango. Os longos cílios ao redor dos olhos amendoados, de córneas muito azuis, ofuscantemente azuis, diria, até, malignamente azuis, e deu uma resposta muito evasiva, copiando uma fala de um filme qualquer que lhe vinha à cabeça. - Pestana, a mais importante lição da vida: não conte com ninguém a não ser você mesma. Sabe, é triste, mas é verdade. E, quanto mais cedo aprender isso, melhor. - Está te referindo o casalzinho ali? Eles me parecem se gostar muito. Afinal de contas,


sempre estão desse modo. Deve ser o jeito deles se dizerem bom dia. - Não, Pestana, não estou me referindo ao casal 20, mas sim a nós dois. - Eu não entendi, Manoela. Pode repetir? Estou meio lento. - Repito. Só podemos contar conosco mesmo; os outros nunca estão conosco. Não podemos contar com os outros, sem levar frustração de troco. - Credo, Manoela! De manhã cedo, não. Vamos melhorar o clima do local. Tá certo que bebemos muito ontem à noite, mas podemos dar uma alegria maior para o ambiente. Olha a mata ali, abaixo; como está verde! Percebe aquele verde? Aproveitando a oportunidade, me passe a manteiga, por favor. - Essa? - perguntou, apontando para um lindo pote metálico. - Não; a do lado. Obrigado. Todos temos problemas na vida; o que é insuportável é preferir lavar a roupa suja em público, socializando tudo, como se todos fizessem parte de um mesmo drama... ou de uma mesma comédia. - Comédia?! Quem está falando de comédia? A vida privada não é e nunca foi comédia; nem tragédia; nem melodrama. É, simplesmente é; nada mais do que isso. Cada um na sua! Não é assim que diz a propaganda? "Free", meu caro; "sempre free". - Como se a prisão dos relacionamentos pudesse representar o seu oposto complementar! Eu sei, Manoela, que as mulheres, em lugares de educação muito machista, casam-se cedo e que esse ato apressado representa duas coisas: um, a liberdade dela, que sai do jugo paterno e, dois, que, se demorar muito, cai na boca do povo e fica difícil conseguir marido, aumentando a dependência geral da família de origem. - Isso é que é machismo! - Que seja! Ainda assim, é a realidade posta dos dias atuais em muitas localidades, inclusive aqui, na cidade grande. Olha! Agora a coisa vai piorar na lojinha ao lado! Vai voar louça, estou te dizendo! Que boca! Meu deus! Eu vou lá prá dentro; não suporto muito tempo esse tipo de peça. A discussão estava acalorada entre Lisandra e Márcio. A mesa estava cheia de convivas. Mais de dez pessoas tomavam café e assistiam, com as mais variadas expressões faciais, aquela cena patética da vida privada se publicizando. Pestana se levantou e, à francesa, tomou o rumo do saguão de entrada, sumindo, perto do bar. Manoela acompanhava seus passos, absorta, alternando imagem, pensamento e vozes ásperas de desacato. - A alegria de uns é a tristeza de outros; não é isso, Márcio. Me diz se não é isso? Agora um triângulo; uma vida triangular; era só o que me faltava para aprimorar esse quadro de felicidade. Prova que isso é verdade! Ele está ali; olha para ele, se és homem, e tira a prova! Vai lá e diz isso a ele e vamos ver o que acontece. - Não vou incomodar ninguém por isso; é o que estou dizendo e pronto! - Cabeça dura! Eu te amo e tu nem percebes isso! Não há ninguém na minha vida, seu canalha! Ele só é meu amigo; nada mais do que isso. É teu amigo também. Ou, por acaso, estás saindo, também, com a mulher dele. Piora as coisas; piora! Diz que não é triângulo, mas um quadrado diagonalizado essa nossa vida amorosa! Diz! São dois triângulos postos lado a lado? É essa a geometria do nosso amor, Márcio? Nunca foi uma reta, não é? Nunca pudemos ser a menor distância entre dois pontos, não é?! Tinha que haver um terceiro ponto para formar novas retas, não é?! Meu Deus, o que é que eu faço agora?! Que horrível!! - Fica fria, Lisandra; se existem outros pontos, eles estão perto do teu ponto; não do meu. Esse traçado não é meu! Não sou eu a matemática; a geômetra é você! Eu sou um reles historiador; é por isso que o passado sempre foi muito importante para mim! E com ele que eu tenho condições de prever parte do futuro imediato. E esse futuro está me dizendo, agora, nesse momento, que tu vais pegar um copo de whisky e detonar todas, como sempre fez. Sugiro que tome um bom café, ao invés de beber. - Olha quem falando! E o que é isso que está bebendo agora? É café, por acaso? - Não; é whisky! - Então! Não enche o saco, Márcio. Eu faço o que bem entender; se quiser dar vexame, darei; quando achar necessário. - Fica pouco civilizada bêbada. - Ah, de civilização entendem os historiadores, não é? Eu, aqui, a matemática, só entendo de números; não é isso? É isso mesmo o que diz de mim por aí, nos teus círculos de amigos! Que, se não houver números eu não consigo ler nada; eu sou uma analfabeta; uma numerada apenas. Pensa que eu não lembro daquela vez, no congresso, em São Paulo, quando disse para aquela tua amiga de lá, que eu a única coisa que li nos livros eram os números das páginas, porque não conseguia identificar símbolos verbais! E, mais; que só conseguia ler verbalizando palavras; que precisava ouvir o som da minha voz para entender as coisas; como que traduzindo. Traduzindo! - Não foi bem assim. - Foi; foi bem assim, sim! - Tá bom! Foi assim mesmo; era apenas uma brincadeira. - De mau gosto! - De mau gosto; pronto. Que é que tá olhando?! - disse, voltando os olhos para Manoela, no outro lado da mesa.


- É comigo? - perguntou Manoela, apontando, com o indicador direito, o próprio peito e, ato contínuo, olhando para os lados imediatos, como que indicando dúvida sobre a referência. - É; contigo mesmo. - Pára, Lisandra; deixa a moça em paz! - Que moça! Que moça! É o teu ponto, a tua diretriz? Quer que eu fale ou cale a boca nesse ponto? Pombinho! Acho que formam até um lindo casalzinho! Dois historiadores! Que lindo! Diaba é a matemática, aqui, não é? Anjinhos! - Chega, Lisandra! Bom; já tomei o meu café. Vou voltar lá para dentro! Fica à vontade disse, levantando-se da mesa e tomando rumo; o mesmo rumo do amigo Pestana. - Vou jogar um pouco. Sugiro um bom sono depois do café; vai te fazer bem. - Obrigada pelo conselho, mas não vou dormir mais! Estou cansada de dormir! Aliás, a minha vida tem sido um sono só! Vai! Vai! Vai te divertir um pouco lá dentro, com os teus amigos; vai! Te manda, historiador!! Eu e o meu amigo, aqui, vamos ficar um pouco mais juntos - disse, olhando para o copo e movimentando-o circularmente, fazendo as três pedras de gelo emitirem o som característico de suas batidas imersas em whisky. ¤¤¤ No bar do casarão, como denominavam o local, Márcio e Pestana se encontraram. Pestana estava jogando bilhar, sozinho, com um longo taco de cerejeira. Márcio foi até à caixa e escolheu um escuro, mais curso e pesado, como preferia, para dar mais firmeza nas jogadas. - A tua mulher está uma arara, cara! - disse Pestana, dando uma forte tacada na bola seis, certeiramente, já posicionando as outras duas que restavam sobre o feltro muito verde e novo. - É; tá! Que fazer!? - É duro, meu amigo. Elas são todas iguais: ciumentas e traiçoeiras. Te cuida, meu! Já vi gente, por muito pouco perder muita coisa. É esse o caso do dono da casa, não é? - É!... - disse Márcio. - Uma partida? - Vamos. Eu pego as bolas. - Eu ajudo - disse, pegando as bolas dos buracos mais próximos do seu lado e colocando-as no centro próximo cada uma. - Vão se embebedar as duas! - disse Pestana, reticente, jogando, com a mão, as bolas, sobre o pano, em direção ao lado de Márcio. - Vai dar pizza, meu amigo! - Vai! - respondeu Márcio, reunindo todas elas em um monte no formato triangular, ancorado nos dois braços e no traço atravessado, sobre a mesa, com a ponta direcionada para o outro lado. - Saio eu? - perguntou. - Pode sair. A primeira que fizer dá a altura das bolas! Eu quase sempre fico com a menores; mas, pode ser diferente, desta vez. - É; foi diferente. Fiz a bola cinco. - É; fez a bola cinco. Vamos lá, meu caro. Quer apostar alguma coisa ou vamos apenas na brincadeira? - Tanto faz. - Uma garrafa de Chivas ou um WH? - WH? - É; um cavalo branco. - Ah, tá; pode ser Chivas. Menos chance de ser falsificado no mercado. - Pode ser. Está apostado! Quem ganhou a aposta é o que menos importa no momento. O fato é que Márcio olhou pela vidraça e viu a mulher de Pestana e a sua conversando, bem próximas, calmas, calmíssimas, como se nada tivesse acontecido. Uma com a mão sobre o ombro da outra, como que consolando a outra. Ficou satisfeito com a cena. Afinal, era isso mesmo o que queria: paz; um pouco de paz. De tacada em tacada, o jogo progredia. O dia estava lindo; muita luz, sol forte e céu azul. Há muitos anos não fumava mais. Teve uma compulsão por fumar. Veio uma forte vontade de pedir um a Pestana, mas ela passou de relâmpago. Afinal, era ainda de manhã e o primeiro dia já prometia ser longo... e rezava para que fosse bom! Eram férias e por muitos dias ficariam por ali, convivendo, dia-a-dia.

Conto 88, de 13/08/2000, quarta

Centelha da madrugada


João Protásio Farias Domingues de Vargas

Houve consenso da turma em escolher Paulo Ricardo o líder de aula. Era o primeiro ano do ginasial. Ele contava com quatorze anos de idade. A importância do fato está em que ele não era prata da casa naquela escola pública. Vinha de uma escola privada, perto dali. A escolha se deveu ao curso; no seu entendimento, era o melhor que encontrava na cidade para prepará-lo para o vestibular de medicina numa universidade particular; sabia que não teria chances em uma pública. Todos os dias, pela manhã, muito cedo, todas as turmas se encontravam no pátio do Ginásio, na parte frontal. Em pé, enfileirados, cantavam o Hino Nacional e do Estado. O Diretor fazia um breve discurso e desejava um bom dia a todos. Era a rotina da casa. Tempos duros. A Ditadura Militar estava longe de terminar. Apesar de ser o sonho de muitos, estava início de discussão a prometida Abertura Política. Alguns colegas sabiam do que estava acontecendo no País; a maioria, não. Vivia sua vidinha repetitiva, alheia a tudo; e incentivada a agir assim. Uma juventude politicamente perdida; sem referencial algum. O maior desejo era o de continuar ouvindo a música popular e as novelas de televisão. Os bailes de sábado à tarde, em alguma escola de periferia, era o programa máximo. Era lá que os pais deixavam as garotas ir. As boates? À noite? Nem pensar! Eram mal-faladas as moças que iam a tais locais! Só as mais velhas tinham esse acesso. A idade de Paulo Ricardo não permitia um acesso desse tipo, apesar do interesse. Não dava para fazer muitas coisas. A escola era o principal programa de todas as manhãs. À tarde, as aulas de educação física tomavam o resto do tempo; pelo menos três vezes por semana. "Mente sã em corpo são" era a norma fundamental ditada pelos mais velhos aos mais novos. Isso não estava errado de todo. Mais; até estava certo. O problema era o modo de como era posto; imposto. A liberdade, a principiar pela de ir e vir, era a primeira atacada. Acostumados a pouca liberdade, a juventude da época não dava muito valor a isso. Uns poucos sabiam, como disse, o que estava acontecendo. Não era por acaso que aquele estilo espartano de vida era imposto e cobrado, tanto pelos pais quanto pelas autoridades de todos os tipos na cidade. Ser um líder não era pouca coisa naquela época e com aquela idade. Era o primeiro passo para disputar o Grêmio; para entrar em uma chapa; ou para montar uma viável. Calça de brim, camisa branca, sapato preto, eis o uniforme dos homens. As mulheres podiam variar com uma saia azul-marinho. Um distintivo escolar sempre no peito, do lado esquerdo, era necessário portar. Ai de quem não o portasse! Uniforme e distintivo era o jeito escolar do militarismo da época. Um colega, de nome Gilmar, foi o cabo eleitoral de Paulo Ricardo. Fez os contatos com todos os colegas e resolveram, à unanimidade, convidá-lo a se candidatar. Após uma brevíssima resistência, a candidatura tomou corpo e voto, vindo a ser confirmado o nome, sem nenhuma abstenção ou voto divergente. Estava eleito. Logo em seguida organizou o Conselho de Líderes de Turma (CLT) e elegeu-se presidente, também com a ajuda de Gilmar, que não era vice-líder. Não havia vice-líder. Como a diretoria do Grêmio era nomeada por indicação da própria Diretoria da escola, o Conselho era livre e os próprios estudantes decidiam. Uma vez por mês se reunia, no pátio da escola, o CLT, para deliberar sobre o que fosse proposto. Era um grêmio paralelo? É possível; mas era nosso; somente nosso; os professores não apitavam nele. Tiramos um tesoureiro e um secretário, com as respectivas cadeiras de vice, incluindo vice-presidente, e fomos à luta. Era um quarto de ano quando isso aconteceu. As pressões começaram logo. A diretoria oficial do Grêmio exigiu a dissolução do CLT por ilegalidade. Os seus integrantes era subversivos, diziam, a começar pelo presidente. Ameaçaram os integrantes do CLT com expulsão. A resistência começou junto com as desistências de vários. Das mais de 40 turmas fundadoras, pouco mais de dez permaneceu firme com a idéia. Tiramos o slogan "Grêmio livre", para demonstrar que queríamos uma organização política feita pelos próprios estudantes. A União de estudantes da cidade, se não era pelega, pelo menos não era esfolada pela Ditadura. Os milicos toleravam seus líderes. Por que, então, não nos tolerariam? Era essa a pergunta que os resistentes se faziam em suas reuniões, agora mudadas do pátio da escola para os bancos da praça, em frente ao mesmo local, do outro lado da rua, na hora do recreio. Quando a pressão aumentou e fomos fisicamente atacados por estudantes de não se sabe onde, ficamos apavorados e de olhos roxos; literalmente, caras machucadas. Era o pagamento do preço da ousadia de enfrentar o poder instituído. A nossa vontade não podia se realizar, segundo as regras de mordaça da época. Havia colaboradores do regime já nos primeiros anos do segundo grau. Eles era visíveis para nós. A palavra pelego ainda não era muito usada, mas algumas vozes já a pronunciavam. Quando mais a pressão aumentava, mais alguns partidos clandestinos se aproximavam de nós e nos davam orientação de como agir, como se defender e como enfrentar sem muito castigo. Fomos aprendendo, nós, seis ou sete resistentes, a fazer política dentro de


um mar de ingenuidade, como era a nossa consciência, lá nos quatorze anos de idade. Em outubro do mesmo ano, o CLT não resistiu. Éramos tão poucos líderes que resolvemos cancelar as atividades, dar um tempo, esperar um pouco. Muitos líderes de turma perderam suas funções. A diretoria da escola fez novas eleições em diversas turmas. Claro, não faltaram candidatos de direita, ávidos pelo poder; apenas pelo poder; por vaidade pessoal, eu acho, ou qualquer outra coisa desse gênero. A minha turma, onde havia consenso, resistiu e não apresentou nenhum candidato, sendo a escola obrigada a manter Paulo Ricardo na função de líder. A turma passou a ser chamada de indisciplinada e a ameaça de rodar a todos veio logo em seguida. O desgaste foi inevitável. O cabo eleitoral, no final do ano, em dezembro, rompeu com o candidato e assumiu uma postura nitidamente adesiva á proposta escolar, contra os interesses que motivara a criação do CLT. No ano seguinte, Gilmar se candidatou a líder e foi eleito por uma pequena margem de votos. Paulo Ricardo perdeu sua primeira eleição. A maioria dos líderes que criaram o CLT perderam as eleições em suas recandidaturas. Cassados de seus mandatos, como era comum no Parlamento nacional. Os biônicos estavam lá, sob os aplausos e sorrisos dos dirigentes patronais, os dirigentes escolares. Antes de varar o ano, logo depois do encerramento das reuniões do CLT, Paulo Ricardo foi convidado para participar de um partido clandestino que fazia reuniões abertas em um dos partidos regulares. Foi o que aconteceu. Saiu da institucionalidade estudantil para a entrar na institucionalidade partidária. Na greve geral de professores que aconteceu no ano seguinte, adivinha quem era uma das lideranças estudantis? Acertou. Puxou a greve e a sua turma, a mesma que o havia eleito, sustentado e, depois, desistido dele. Perceberam que Paulo Ricardo estava certo e aderiram aos seus conclamamos. Foi a primeira turma a entrar em greve. As outras foram, aos poucos aderindo, até que a escola parou totalmente. Inobstante isso, o CLT não voltou a funcionar. Vários anos mais tarde, já vivendo em outra cidade, soube, por intermédio de conhecidos, que os estudantes da mesma escola estavam ressuscitando o CLT como instrumento de luta contra a Ditadura Militar e do Ginásio. Era uma centelha que não quis se apagar. Das cinzas, como Fênix, com alguns sopros, fez-se chama ardente, reacendendo o fogo da política estudantil da época. Era a esperança tomando consciência de sua força organizada. Era a vida tomando conta da morte; era a política enfrentando os desafios da mordaça, da letargia. Estávamos ficando mais velhos e mais experientes. Foi isso o que pensou. A liberdade lutando, agora, por igualdade. Nunca mais quis usar distintivo e uniforme. Foi o que conseguiram. Já era um avanço, ainda que pequeno. Um bom começo. Como disse, uma centelha... na madrugada da vida.

Conto 89, de 14/08/2000, quinta

Beduínos do Direito João Protásio Farias Domingues de Vargas

Dois professores conversavam sobre ciência e tecnologia, acaloradamente, em uma reunião informal, numa das salas de uma importante instituição de ensino superior, em duas etapas. Ali e, depois, lá. Vamos ver apenas o ali. Noutra ocasião, o lá. - Ciência e tecnologia em Direito. Que bicho é esse? O texto do Villa, de que te falava, apresenta três conceitos muito interessantes: ciência básica, ciência aplicada e ciência tecnológica. Ele fala que há dois modelos científico-tecnológicos comumente empregados no Brasil: o "modelo ofertista linear" ou de pesquisa empurrada e o "modelo científicotécnico orientado" ou de pesquisa puxada. Naturalmente que o texto é mais direcionado para a ciência e tecnologia das engenharias, origem intelectual do autor, entretanto, podemos aproveitar os seus conceitos e compará-los com o que é efetivamente produzido no campo jurídico. - Mas, Gustavo, pensa um pouco. Não podemos aplicar conceitos da área físicomatemática às ciências humanas, posto que são muito diferentes. Sei que uma proposta positivista, de cunho comtista, permite isso. Penso que não estamos orientados para esse tipo de linha filosófico-jurídica, ainda que não se possa prescindir de todos os tipos de positivismo, até porque o Direito é Positivo; falo de um positivismo lógico e não ideológico. - Claro, Luiz Henrique. Isso é cristalino para mim. Falo do fato notório de que não há


produção intelectual no Brasil que aborde esse binômio no campo jurídico. É essa a minha proposta intelectual no momento. Pesquisar ciência e tecnologia jurídicas. Quero saber o que efetivamente existe nesse campo, mas utilizado com outros nomes. Tudo é muito incipiente; mas, isso não é de todo mau. Pode-se partir do zero de conhecimento nosso; isso não quer dizer que não haja pesquisadores que tenham se detido sobre isso. - Tu tens razão. Temos de iniciar de algum ponto. Ciência se produz com pesquisa; tecnologia se produz com invenções. Toda invenção é necessariamente técnica, pois se destina a alguma forma de aplicação de conhecimentos acumulados. Não é isso, meu amigo? - Corretíssimo, Luiz Henrique. Corretíssimo. E como fazemos isso? Comecemos por onde? Qual é a tua proposta. Agora é que eu quero ver. Não sei iniciar algo que não tenha sido iniciado por alguém? Acho que sei, sim. A questão é: por onde iniciar. Como dizia Lênin: "o que fazer, companheiro?". - Pára com esses comunismos brabos, Gustavo. A questão é séria. - Ora, Henrique, fique calmo; a vida é bela e não se resume a um só problema. Estamos atrás dele; sequer sabemos o que queremos. Isso sim é grave. Me alcança o livro, de novo. Vou verificar algo que vi com o passar dos olhos. Está aqui. Olha só: "De certa maneira, a construção epistemológica de forma geral, e do método cientifico de modo particular, dá-se a partir da ciência básica nas construções teóricas indutivistas a partir da obra do cético inglês David Hume, dos dedutivistas capitaneados pela obra de Karl Popper, das idéias de paradígma desenvolvidos por Thomas S. Kuhn, do "anarquismo epistemológico" de Feyerabend e dos programas de pesquisa de Lakatos".

- Sim; e daí? Isso todo mundo sabe. A questão não te parece ser outra? - Parece, sim; o que quero dizer é que podemos começar pela idéia de "construção epistemológica" e de "método científico", de "construção teórica" e de "dedução", de "indução", de "paradígma", de "anarquismo epistemológico" e de "programa de pesquisa". Acho até que a expressão dada a Lakatos é a mais promissora. Qual programa de pesquisa podemos querer no campo da ciência e tecnologia jurídicas? Nós já sabemos o núcleo básico, qual seja: " CIÊNCIA E TECNOLOGIA JURÍDICAS". Podemos, dando um lance mais baixo, iniciarmos pela própria idéia de técnica. Tecnologia é a arte ou ciência de produzir técnica, não é isso? Tecnologia aplicada é a aplicação prática específica de conhecimentos teóricos específicos. Uma petição processual é a prova de um modo técnico de agir. O "processo judicial" constitui um complexo de técnicas. Ele é um processo tecnológico judicial, meu caro. É disso que estou falando. - Propões que iniciemos o nosso "programa" pelo processo? Por que não pelo idéia de norma jurídica? Fala, aí, Gustavo. - Luiz Henrique, meu amigo. Podemos iniciar pela idéia de norma, sim. Há uma ciência da norma, assim como há uma ciência do processo. Já foram usadas as palavras "normologia" e "processologia". Estudo da norma e estudo do processo. - Um "processo digital judicial" seria uma boa entrada no campo, na linha de pesquisa que estamos nos propondo trilhar. A Lei federal 8.900, de 1999, trilha esse caminho futurista que já iniciou. Atrasado pelo "fax", mas avançada pelo "e-mail". - O que há de mais prático em pesquisa nas universidades é sobre a compreensão das normas e sobre a criação de normas. Fazem pesquisa normológica e muito pouco tratam do processo fático, do processo judicial real, de tinta, papel, plástico e metal. A pesquisa sobre os métodos de julgamento, sobre os "modelos de processos judiciais", inclusive em perspectiva crítica, quase nada há. Fala-se em ciências sociais e aplicadas. A ciência do direito é uma ciência social e aplicada ao fenômeno jurídico, ainda que não exclusivamente isso. O modo de dispor o processo e do processo no Foro é um campo vastíssimo para a observação empírica com olhos de cientificidade. O Direito, "lato sensu", precisa assumir para si a tarefa de pensar cientificamente todos os ângulos de seus procedimentos práticos, inclusive no campo da produção científica, i.e., fato de epistemologia e de fenomenologia jurídicas. Pesquisar também exige técnica, ainda que de pesquisa; exige invenção, portanto. - Gustavo, concordo com tudo isso que disse. É isso mesmo. Agora, a questão é: como produzir ciência e tecnologia em Direito? Grafo o "Direito" com "D" maiúsculo para dar o significado distintivo da palavra "direito", i.e., o que é certo ou está correto, do ponto de vista do senso comum, seja ele qual for. - Luizão, eu vou radicalizar. Sabe o que mais me fascina? É o grampo ou a bailarina que vai no centro esquerdo dos autos dos processos, afixando as folhas impressas ou datilografadas, unindo documentos. Quando foi que inventamos tecnicamente a bailarina processual? Eu não sei. É uma coisinha bem pequenina, mas importante, ao meu ver. Eu


não consigo pensar um processo judicial sem bailarina, em se utilizando papel e tinta, como foi dito antes. Até que um dos nossos alunos poderia pesquisar sobre "a bailarina processual", inclusive do ponto de vista histórico. A "capa processual", que forma os autos, junto com a bailarina. É certo que antes dessas duas peças fáticas do processo real já existe uma petição inicial e um despacho judicial ordenando a autuação e citação do réu. - Vou continuar falando um pouco mais, Luis. Posso? Tá legal. Então, lá vai, de novo. A "citação judicial", palavra esquisita que tem outro significado bem diferente no uso comum da língua. "Citar" é falar sobre algo ou alguém; remeter alguma coisa a outra. Claro que existem normas sobre cada uma dessas coisas; são normas postas. O que me interessa é a tecnologia que está por trás de cada norma; o modo como os homens põem em prática os comandos legais. O processo é outro na realidade. Há muita coisa existente, ditadas pelos costumes forenses, que não está normatizada. São procedimentos práticos e, se quisermos, podemos dar emprego científico às observações dessas coisas aparentemente irrelevantes, mas usadas no dia-a-dia. - Esse homem fala, meu Deus! Como fala! Parece uma metralhadora verbal! - Está com ciúmes da minha capacidade de fala ou está tecendo um elogio rasgado? - Os dois, meu amigo. Eu também falo bastante; gosto de falar, principalmente para quem sabe escutar tão bem, como tu. - Obrigado, amigo. Isso é consolador. Não é o que muita gente pensa, mas é o que eu gosto de ouvir dos amigos. Obrigado pelo elogio. Eu gosto muito de ouvir, também. Luiz, temos pouco tempo. Vamos voltar à questão da ciência e tecnologia em Direito. - Vamos. Eu estava pensando... - Sério??? Estava pensando. Que coisa interessante, o homem pensa. Acho que tudo é técnica. Essa "concepção pantecnica" tem me preocupado muito, pois não me deixa ver alternativa a não ser pensar que, se tudo é técnica, qual pode ser o interesse por ela, se está em tudo. - O ar está em tudo, e nem por isso os físicos e os químicos deixam de pesquisá-lo. Isso é bom, pois indica que podemos fazer objeto de qualquer pesquisa técnica qualquer coisa. Os chamados "modelos de petição inicial" são muito comuns em qualquer concepção jurídica, pois é esse o modo de pedir a prestação jurisdicional. A lei diz o que ela minimamente deve conter, mas não se resume a descrever exatamente como devem ser todas elas. Há uma normatização mínima e formal, não uma máxima. Gustavo, nós podemos criar tipos de petição inicial; inclusive, um modelo geral dela. Podemos até criar uma "teoria geral da petição inicial". O interesse prático é evidente nesse campo processual. Há uma tecnologia da petição inicial, tanto aquela normatizada quanto aquela inventada pelos operadores do direito no agir forense, não te parece? - Claro que sim, Luiz. E há aquilo que Kelsen falava sobre a norma jurídica: método de controle social. O Direito positivo é expresso através de normas positivas. Portanto, norma é controle de pessoal, não é? Claro que é. Há normas que apresentam, inclusive, desenhos técnicos em seu conteúdo. A exemplo de qual deve ser o modelo de um determinado livro de controle de alguma coisa. Há um desenho posto. Portanto, desenho também é, e pode ser, conteúdo normativo. Já vi até desenho de máquinas dentro de normas, tanto abaixo de um inciso como na forma de "anexo". - A elaboração legislativa também está no campo da tecnologia jurídica. Como elaborar melhor as leis é um tema importante de larga data. A Lei Complementar federal 95/98 é um exemplo de lei que dita parâmetros tecnológicos, tanto de confecção quanto de compilação legislativa. - É isso aí, Gustavo. Os modelos pedagógicos para o ensino do direito também constituem tecnologias. É assim que reproduzimos o saber jurídico. A "cola" nas escolas também é uma tecnologia, um método de estudo e de resolução de problemas, quando não possibilitamos a consulta para a realização de provas e o aluno não conseguiu decorar os conteúdos exigidos especificamente, segundo o método tradicional da certeza das palavras a serem repetidas. A "fofoca" é uma tecnologia social reconhecida penalmente como "difamação", visando mitificar e mistificar fatos que possam melhorar ou piorar a imagem de pessoas e/ou micro-grupos sociais. É isso mesmo: tudo envolve técnica. Tudo o que inventamos constitui produção tecnológica. Isso é banal, mas é importante. Se não pesquisarmos nada de banal, estaremos embarcando no juízo da banalidade, meu amigo. O que é banal para uns não o é para outros. - Luiz Henrique, meu querido amigo. Estamos há oras nesse papo e ainda não conseguimos desmistificar a temática. O que fazemos daqui para a frente? - Vejo que estamos progredindo, Gustavo. Já falamos em "mistificação científica e tecnológica". Há o mito da ciência e o mito da tecnologia. No mais das vezes, quando falamos em tecnologia, as pessoas já imaginam máquinas complexas com movimentos calculados e que produzem alguma coisa tangível. A tangibilidade tecnológica é a sua característica mais popular para os usuários e curiosos. Existem tecnologias que produzem produtos imateriais. As religiões são tecnologias que produzem bens intangíveis, alimentados pela fé das pessoas, pela credulidade em façanhas, milagres, espaços celestiais ou infernais, fortuna ou miséria, ira e cólera dos deuses, graça e desgraça. "Deus", seja de que tipo for, é um produto tecnológico, ainda que não tenha sido inventado


ou descoberto por nenhuma forma de ciência, no sentido "stricto" do termo. Um modo diferente de produzir qualquer coisa é uma forma de tecnologia. Ela pode ser inédita ou reproduzida. As novas tecnologias podem ser produzidas endógena ou exogenamente, i.e., pela própria ciência ou assimilada de outras ciências e aplicada em campo diverso. É o caso dos computadores, que são produzidos pela ciência da computação e utilizados em todos os demais campos. A tecnologia jurídica, produzida pela ciência do Direito, pode ser utilizada em outros campos, como instrumento de normatização aplicado. - Didaticamente, está dizendo o amigo que o uso tecnológico não implica em uso da ciência. - Não exatamente, mas quase isso. - Uso uma máquina de escrever, produto das ciências exatas físico-matemáticas (engenharia e outras áreas) sem precisar ser físico, engenheiro, matemático, etc. É o que penso. O uso de produtos tecnológicos e dos serviços tecnológicos podem ser feitos por leigos. Isso é claro. Só produz ciência e tecnologia quem é entendido no assunto, dentro de sua específica área de reflexão e ação. - Gustavo? - Sim, estou aqui, a postos e ouvinte; franco e operante, meu Capitão! - Debochado! O que quero dizer é que me parece que estamos andando em círculo nessa discussão. Vamos falar exclusivamente da produção de ciência jurídica. Acho que essa expressão engloba várias ciências: a ciência do Direito, a sociologia do Direito, a psicologia do Direito, a Dogmática Jurídica, dentre outras assessórias, mas nem por isso menos importantes. Há quem afirme que Ciência Jurídica e Ciência do Direito sejam coisas diferentes, na medida em que a primeira engloba tudo e a segunda se dedica exclusivamente a estudar o direito positivado nas leis emitidas pela principal fonte produtiva, o Estado. Até pode ser isso. Entretanto, prefiro que Ciência Jurídica seja sinônimo de Ciência do Direito e que tudo o mais possa ser por ela alcançado como objeto de pesquisa. - Objeto de pesquisa. Esse é o ponto chave, Luiz Henrique. - Valava-se, antes, em pesquisa básica, pesquisa aplicada e pesquisa tecnológica, dentro dos campos, respectivamente, da ciência básica, ciência aplicada e ciência tecnológica. A pesquisa tecnológica, em sendo uma variante da pesquisa aplicada, isso faz com que a ciência tecnológica seja uma variante da ciência aplicada. Assim, somente dois tipos de ciências são possíveis, nas mais altas linhas: ciência básica ou pura e ciência aplicada ou dedicada. Aquela produz exclusivamente teorias e sem se preocupar com a sua aplicação prática. É a ciência aplicada que vai produzir a teoria e os meios de aplicação dos resultados daquela. - Toma-se conhecimento da produção científica básica ou aplicada através da publicação em periódicos e em livros, agora, também, através da internet, i.e., o texto é ainda o principal instrumento de divulgação dessa produção. No direito, diria eu, a produção científica se restringe à ciência básica. Pouco ou quase nada há de produção no campo de ciência aplicada. Agora, a jurisprudência dos tribunais é produto indiscutivelmente de ciência aplicada? Tenho lá minhas dúvidas. E isso porque não vejo o Juiz como um Cientista, mas sim como um técnico que aplica o direito positivo em nome do Estado, sem se preocupar com a ciência. Essa não é o seu primeiro campo, mas sim um campo meio, um modo de uso ou de consumo dos produtos postos pelos pesquisadores básicos. Ele é como um advogado, um usuário da ciência básica, não um produtor científico. É como o mestre de obras e o engenheiro, que empregam conhecimentos para a produção de alguma coisa prática, eficiente e útil. - Penso como tu, nesse tocante. E digo mais. O juiz, o promotor e o advogado, os profissionais mais avançados no uso da ciência do Direito, sem esquecer outros, como os delegados, os escrivães e tebeliões, são meros aplicadores enquanto exercentes de tais funções. Eles até podem ser, também, cientistas, enquanto pesquisadores, mas o fazem em outras funções, no mais das vezes dentro das academias universitárias. Ninguém pode ser cientista sem ser um pesquisador científico, que utilize o método científico na produção intelectual de teorias e técnicas especializadas. São práticos ou consumidores de ciência; são profissionais do ramo jurídico. Os professores de direito são um tipo de profissional híbrido, que está entre os demais citados, de um lado, e os cientistas do direito ou pesquisadores, de outro. Eles, necessariamente, são pesquisadores, mas sua pesquisa visa a reprodução do saber, não a produção do mesmo. É muito comum que um cientista do direito seja um professor de direito e, ao mesmo tempo, um advogado, juiz, promotor, etc. O que quero dizer é que Cientista difere de qualquer tipo de profissional aplicado, ditos operadores do Direito, seja ele professor, advogado ou funcionário do Estado em alguma função pública. - Luiz Henrique, estou contigo nisso. Há mesmo que distinguir profissional de pesquisa de profissional de aplicação. O produto feito pelo advogado, se inovador, constitui ciência aplicada ou tecnológica. A inovação tecnológica ou a inovação básica é o que caracteriza a produção científica. As compilações dissertativas das pós-graduações não constituem ciência básica ou são produtos de ciência aplicada? Sei que com a tese deve ser diferente. - A dissertação de mestrado, como qualquer dissertação, se não contiver a inovação


como produto de ciência básica, não pode o texto ser considerado de ciência básica. O mestre quer provar que sabe mais do que todos no seu específico tema; e é só isso. Ele sistematiza saberes já produzidos anteriormente. A sua criatividade está na síntese e na reorganização dos saberes postos. Com o doutor é diferente. Ele não só deve saber mais do que todos naquele tema, como também deve ir além, deve produzir algo novo, que é efetivamente a tese de doutoramento. A tese implica em dissertação, necessariamente. Ele, por dever, deve produzir ciência básica. Agora, nada obsta que a tese seja de ciência aplicada ou de ciência tecnológica, assim como as dissertações. - Desculpa a ignorância. Tenho um modo específico de saber sobre isso, mas gostaria da tua opinião. Alguém que não é mestre ou doutor não pode produzir ciência básica, aplicada ou tecnológica? - Pode sim. O que importa é a pesquisa, não a titulação. Essa é importante como argumento de autoridade. Presume-se que sua produção intelectual seja altamente competente, eis que já deu prova disso diante de outros doutores e mestres. Há homens notáveis que produzem ciência básica e que nunca estiveram ligados a academias. Um simples homem pode rever o conhecimento produzido sobre determinada área e ir em frente, produzindo novos saberes. Sei que é muito mais difícil disso acontecer, mas não é impossível. - Então, alunos de graduação de direito podem, muito bem, serem ensinados a pesquisar e a produzir dissertações e teses, bem como "ensaios" jurídicos, e de qualidade. É isso? - É claro. Tanto o é que é justamente na graduação que começam as pesquisas e a se formar os pesquisadores do futuro. Há alguns alunos que são dedicados e brilhantes, tanto na compreensão quanto na produção de ciência e tecnologia. - Hum! Então o caminho é mesmo, de início, para nós, conceitual. Precisamos conceituar ciência jurídica básica , ciência jurídica aplicada e ciência jurídica tecnológica. Por siglas: CJB, CJA e CJT. Esses conceitos são novos no campo da ciência do Direito. Logo... estamos produzindo que tipo de ciência, agora? - Estamos produzindo ciência básica do Direito, eis que teórica, conceitual, a meu ver. Mais, de início, no jeito de ensaio jurídico, não de dissertação ou tese. O ensaio é uma tese pequena, menor, que não tem o compromisso de varrer todo o saber conhecido sobre aquele tema específico de que trata. Qualquer ensaio é importante por si só, eis que ele apresenta as teses sem a sua comprovação científica de forma total ou completa. É uma tese exposta, como que um projeto de tese, mas não a tese mesmo. O ensaio é o primeiro passo em direção à tese. Muitas dissertações apresentam o ensaio como elemento de produção intelectual, ao final. Ensaio, como disse, é uma Quase-Tese. O senso comum jurídico aplicado fala em "tese" no sentido de "afirmação", "posição", "argumento". Está correto, mas difere do conceito de tese acadêmica. Todo profissional utiliza teses o tempo todo, inclusive as por ele inventadas, como instrumento de trabalho. Esse tipo de invenção é fruto de pesquisa tecnológica, no mais das vezes e, dependendo do modo conceptivo, pode constituir ciência jurídica tecnológica. Entra uma terceira pessoa na sala e avisa que está na hora de fechar o prédio, retirando-se, de imediato. - Gustavo, vamos indo? - Vamos. Para onde? - Há um boteco aqui perto, na frente. Quer continuar o debate lá? - Pode ser. Mas, eu pago a conta. - Combinado. Podemos levar alguns alunos juntos? Afinal, hoje é sexta-feira e a noite está convidativa. - Podemos. Faz as escolhas. - Certo. Nos encontramos lá em quinze minutos. - Trinta minutos. - Certo. Ah, tem uma coisa. Vamos centrar a conversa regada em teoria e prática, fazendo contraponto com ciência básica e ciência aplicada, certo? - Certíssimo, até porque vai facilitar a compreensão dos amigos que não puderem acompanhar a aridez da conversa que tivemos. - O nosso deserto jurídico. - É isso aí, nosso deserto jurídico. Nós somos os Beduínos do Direito. Riram e saíram.

Conto 90, de 15/08/2000, sexta


Liquidando a Teoria e a Prática João Protásio Farias Domingues de Vargas

Gustavo e Luiz Henrique se encontraram novamente para discutir no mesmo tema: ciência e tecnologia em Direito. É o lá que vamos tratar aqui e agora. Quem leu a Conto anterior sabe do que estamos falando; os outros, ah, esses vão ficar boiando, mas só de início. Depois vão nos encontrar. O restaurante estava cheio. Gustavo foi até o gerente e logo localizaram a longa mesa reservada, aos fundos. Foram até lá, encaminhados pelo garçom, enfatiotado e tudo. Sentaram-se. Alguns alunos já estavam a postos, nervosos, como sempre. - Boa noite a todos - disse Luiz Henrique, arrumando-se na cadeira. - O que vamos beber, Gustavo? - O de sempre: cerveja. - Boa idéia. Garçom, cerveja, por favor. - De que tipo, senhor. - A de maior saída. O povo sabe qual é a melhor servida na casa. - Perfeitamente, senhor. - Obrigado. Ah, e alguns salgadinhos, para beliscar. - De que tipo, senhor? - Do tipo queijo, salamito, azeitonas e cia. - Perfeitamente, senhor; é prá já. Com licença. - Á vontade. - Quanto formalismo - disse Gustavo. - Não é formalismo, Gustavo; é gentileza. Ele é um profissional como nós. E, queiramos ou não, é obrigado a pesquisar. Viu a consulta feita? Se não consultar, não serve. Isso é pesquisa, também. É técnica no duro. - Agora, todos os profissionais viraram pesquisadores - disse Marinalva. - É isso aí. Falem-me de algum profissional que possa ser absolutamente alheio a qualquer tipo de pesquisa para executar o seu ofício e eu pago a conta total da mesa. - Isso é bom, Luiz. Vamos ver... Acho que as prostitutas não precisam pesquisar nada. Os soldados não precisam pesquisar nada . Ambos só executam ordens - disse Marinalva, desafiadora. - Eu respondo, Luiz Henrique - disse Gustavo. Apesar de eu nunca ter sido soldado e nem ter sido ou comprado os serviços de uma profissional do sexo, entendo que a Marinalva está equivocada em sua "tese" ou "proposição" ou "afirmação". Vou dizer por que, em rápidas palavras. Comecemos pelo soldado. Ele tem que aprender a condicionar o corpo através de exercícios físicos, tem de aprender a montar e desmontar suas armas de todo tipo, tem de aprender a controlar os nervos diante do inimigo; tem de aprender a defender as fronteiras da unidade onde trabalha, bem como tem de estipular estratégias e táticas de ataque e defesa. Fiquemos com isso, por ora. Se o soldado é raso, graduado ou oficial, tem incumbências maiores. Mesmo o raso precisa pesquisar quando é ensinado e põe em prática os conhecimentos assimilados. Os exercícios e manobras implicam nisso. Tem de saber onde está o inimigo. Isso implica em reconhecimento. Se ele for uma máquina computadorizada, não pensante, morre na primeira pegada. O cérebro dele tem de agir. Ele precisa pesquisar os fatos para poder selecionar o conhecimento a ser aplicado no momento. É o contato fático um modo de pesquisa aplicada. - E o caso das prostitutas? - perguntou Linz, aluno presente. - Essa eu quero ouvir de camarote - complementou. - Vamos lá, Linz. As prostitutas pesquisam, sim. Aprenderam sua profissão através de ensinamentos práticos. Não existem manuais teóricos ou cursos profissionais que ensinem a sua arte. A informação é verbal. Mas, há ensino, sim. O Kama Sutra é um importante referencial teórico na arte do sexo. Isso pode ser muito útil. Os ensinamentos da sexologia, ramo da Psicologia, também. Agora, a maioria não tem acesso aos bancos escolares. Vivem de sobreviver. Precisa prestar um bom serviço para poder manter a clientela. Mesmo as prostitutas de rua, essas de calçada. Saber a posição - imagino eu que o cliente prefira, implica em perguntar para executar. Isso é pesquisar, também, ainda que de um modo diferente do sentido de pesquisa teórica que estamos acostumados a fazer. Acho que os telesexos, por telefone, implica em uma forma de prostituição. Os cibersexos, na internet, também. As fitas pornográficas implicam, também, em prostituição mostrada, muitas vezes. Tudo isso ensina. Ter acesso a tudo isso implica em pesquisar. A forma do corpo, a malhação, para manter um arquétipo agradável, também precisa ser pesquisado, para ser executado. - Há pouca pesquisa na arte das prostitutas - disse Linz. - O conhecimento é prático ou é teórico? - perguntou Gustavo, rindo. - É... teórico - respondeu, de pronto, o aluno. - Ganhei ou não ganhei a aposta? - perguntou Luiz Henrique a todos. - Eu julgo - disse Gustavo. A dissertação foi boa, mas deixou muito a desejar. Ela está


lacunosa. O expositor omitiu uma série de elementos que poderia ter sido utilizado e a bibliografia está incompleta; pelo menos, muito magricela. Não foi citado Sun Tzu e nem Marta Suplicy; faltou o Relatório Reich. Daria para citar "sístole e diástole", do Golbery, bem como a pesquisa médica que as prostís precisam fazer regularmente, como forma de controle de transmissão de doenças. Como disse, o expositor deixou passar oportunidades importantes para demonstrar o domínio sobre o tema. Entretanto, como ele próprio afirmou, em sua introdução, seria breve e sucinto. Vejo que faltou uma conclusão ao final, mas houve interrupção pelos presentes. Assim sendo, levando em conta tudo isso, a nota é 9,98, com aprovação simples. - Que benevolente, Gustavo. Esperava uma franca e direta reprovação. Eu mesmo não me aprovaria. De qualquer sorte, é preciso consultar os demais julgadores se acompanham ou divergem do voto do relator. - Consulto a todos. Aqueles que votam com o relator, permaneçam como estão; os que divergem, levantem a mão. Aprovado. Cada um paga a sua própria conta - afirmou Gustavo. - Agora, meus amigos, ao que interessa: teoria e prática, que bicho é esse e como se relacionam com a idéia de ciência e tecnologia? - afirmou Luiz Henrique, aumentando um pouquinho a voz para que todos da mesa pudessem ouvir, acima dos burburinhos. - Vamos começar pelos alunos - disse Gustavo. - Teresa, o que nos diz sobre isso? - Ah? Desculpe; não estava prestando atenção - disse Teresa e todos riram. - Que concentração, hein! Teoria e prática, que bichos são esses? Têm ou não a ver com ciência e tecnologia? Essas são as questões do nosso debate etílico do aqui e agora. Se se apetece, responde; não estamos em sala de aula e nem em prova. Estamos em um bar, confraternizando e batendo um papinho descontraído, só para ocupar o tempo. - Bom, Gustavo... Sei lá! Ainda não tinha pensado nisso. Sobre teoria e prática, tudo bem; agora, ciência e tecnologia, tudo mal. Vou contribuir com a primeira parte e deixar a segunda, o filé, para os outros. - Tudo bem - disse Luiz Henrique, sorrindo. - Teoria é abstração; prática e aplicação. A teoria trabalha com as formas, com a lógica, com sistematizações, com explicações. O que vemos na sala de aula é teoria e tão-só teoria; prática que é bom, neca qui ti biriba. Aprendi que não existe teoria sem a prática e vice-versa, mas é difícil de perceber isso, pois só nos ensinam uma e não nos demonstram de qual prática saiu o conhecimento teórico que nos repassam. Belos professores! Um ensino pela metade, eu diria. Acho que se faz ciência com teoria e com prática. Essa coisa de tecnologia é nova, mas acho que tem a ver com a técnica. Essa é prática ou teórica. Uma técnica teórica é aquela que ensina a pesquisar, por exemplo; uma técnica prática, a elaboração de uma petição, simulada ou para o foro, por exemplo. Acho que ciência pode ser sinônimo de teoria ou essa ser o objeto daquela; que tecnologia pode ser sinônimo de prática, ou o objeto daquela. Aqui é preciso levar em conta a noção de "método", de "modelo", que permeia tanto a ciência quanto a técnica ou arte de fazer as coisas. É isso aí, gente; fico por aqui. Vou ouvir os outros. Essa era a minha contribuição inicial. Ah, me dá um gole dessa água; fiquei com a garganta seca - disse, voltando-se para Gil, sentado ao seu lado. - Á vontade e meus parabéns - disse Gil, flertando com Teresa. - Obrigada - retribuiu a recente expositora. - Meus parabéns, Teresa - disse Gustavo. Muito bom, mesmo! Quem é o próximo? Quem sabe o próprio Gil? E, aí, Gil, que tem a dizer ou o que esse whisky quer falar? - Eu não digo nada; agora, o whisky pode falar por si só. A noção de paradígma de Thomas Kuhn é importante para a noção de epistemologia jurídica. O modelo normativo do Direito é um paradígma jurídico. Também é importante a obra "Contra o Método", do anarquista epistemológico Feyerabend, pois, como disse Teresa, a noção de método é fundamental para qualquer ciência ou técnica. Por fim, a noção de programa de pesquisa, desenvolvida por Lakatos, atualizadissimo, é fundamental. Todos falam: qual é o teu programa de pesquisa? Estou de saco cheio com isso. Toda pesquisa tem o seu próprio programa. Por que não perguntam, então, qual é o teu tema de pesquisa? O programa é sempre longo demais para explicar. Eu, na prática, se me perguntam isso, respondo dando o título da pesquisa e ponto final. Tudo isso aí, de Kuhn a Lakatos, é teoria da teoria, epistemologia. É a ciência pesquisando a própria ciência, tornando-se objeto de si mesma; um olhar no espelho, como se a imagem fosse outro eu e, ao mesmo tempo, eu mesmo projetado para melhor regular o olhar investigativo. Posso continuar? Não está longo demais? - Pode. Não está - disse Luiz Henrique. - Continuando. Como disse, teoria e prática são indissociáveis. Não existe teoria a não ser de uma prática específica; e, a toda prática, corresponde uma teoria específica que lhe dá suporte. Se não se leu sobre a prática, observa-se os fatos e se começa a montar a teoria a ele correspondente. Se um carpinteiro pode ensinar a carpir é porque ele teorizou sobre a carpintaria, logo, produziu conhecimentos teóricos sobre a arte, sobre a técnica. Só pode ser ensinado o que pode ser condicionado teoricamente; só pode ser praticado o que pode ser apreendido teoricamente. Pouco importa se o ensino foi autodidata ou


heterodidata. Fico por aqui, minha gente. Paro aqui. - Muito bom, Gil - disse Gustavo. É isso aí. Vejo que estás lendo sobre epistemologia e refletindo sobre o affaire comunicativo. Aposto que Habermas está do teu programa de pesquisa, não? - Acertou - disse Gil. - Muito bem, meu gurú. Quem dá mais? Cristina, quer dizer alguma coisa para nós, socializando essa sapiência reservada? - Com prazer, gente. Eu tenho muito a dizer sobre o tema. Essa mesa é, a um só tempo, um laboratório sociológico dos mais ricos. Aqui, a teoria e a prática se subsumem num caldo de cultura dos mais ricos possíveis. Estamos, na prática, teorizando. Isso é tudo. Nada mais posso dizer sobre isso que não um desdobramento dessa frase: "estamos, na prática, teorizando". - Grande, Cristina! Estamos, na prática, teorizando sempre. A teoria é a reflexão lógica da prática; a prática é a inflexão lógica da teoria - disse Marcelo, sentado em frente a Cristina, do outro lado da mesa. A conversa estava boa, quando veio o Garçom avisar que o restaurante estava sendo fechado. Olharam os relógios e passava da meia-noite. A conta foi posta sobre a mesa, com a divisão por 12, o número dos presentes. Dava quase nada per capta. Cada um pôs a sua contribuição sobre a mesa e foram se retirando, de imediato. Antes disso, Gustavo teve um idéia. - Gente, quem sabe a gente se reúne aqui na sexta-feira que vem, para continuarmos o debate. Para isso eu sou parceiro. Todos assentiram e se retiraram, eufóricos com a idéia. Estava surgindo um grupo de debate sobre um importante tema. Gustavo e Luiz Henrique foram para outro bar, encerrar a noite e avaliar o debate realizado, a sós e, agora, em grupo. Lá foi o aqui; o aqui, agora, era o lá, de lá. O leitor entendeu? Se não entendeu, deve ir lá e pesquisar sobre o aqui, como disse no início da nossa conversa.

Conto 91, de 16/09/2000, sábado Mudança de nome João Protásio Farias Domingues de Vargas

Os nomes Rebostiano da Silva e Fredolina Rego Preto, podemos convir, não são nada agradáveis em suas conotações na Língua Portuguesa. Pois bem, as duas pessoas se encontraram no Fórum de Porto Alegre, numa tentativa de que o Juiz da Vara de Registros Públicos, no meio da década de oitenta, modificasse-os. Prenome e patronímicos da mulher casada lembravam o que o senso comum moral chama de obscenidade nominal. - Rebostiano? Que nome, hein? - disse Fredolina, logo que começaram a conversa, sentados nos bancos do cubículo ligado a um dos dois longos corredores do segundo andar. - É! É muito ruim ser chamado por ele. O apelido fica melhor. - Qual é o apelido? - Tiano. - Ah, é bem melhor mesmo. Posso te chamar pelo apelido, não é? - perguntou Fredolina. - Deve - disse Tiano. - Pois, bem, Tiano, vou te contar que eu também nunca gostei do meu prenome, Fredolina. Por isso o apelido também é o que soa melhor: Lina. Chame-me Lina, por favor. - Muito prazer, Lina - disse Tiano. - O prazer é todo meu, Tiano. Lina e Tiano são dois destinos parecidos, vinculados, neste momento, pelo nome, não é mesmo? - É, pelo nome, sim; e, agora, pelas audiências, não? - Também. Como é o destino! Ele aproxima as pessoas pela semelhança e as afasta pela dissemelhança. Os astros dizem isso. - Astros? Gosta de signos? Adoro astrologia. Minha mãe era astróloga. Durante muitos anos fez mapa. - Mesmo? Eu sou apaixonada por astrologia. Consulto o horóscopo todos os dias. Sei tudo sobre signos, inclusive os do horóscopo chinês. - Que azar demos com os nomes, não é mesmo? - É; é muito azar. Não sei onde estava a cabeça dos meus pais quando me puseram o nome de Rebostiano. Não bastava ser "bosta"; tinha que ser "re". Em latim, "rebus"


significa algo bem diferentes do que "rebosta" em Português. Tem até uma cláusula jurídica "rebus sic stantibus", que significa estancar o pagamento por incumprimento do devedor, ou seja, deixar de cumprir a obrigação por descumprimento comprovado por parte do outro contratante. Meu pai era promotor de justiça. - O que é que faz na vida, Tiano? Você é advogado, também? Seguiu a carreira do pai? - Não, Lina, eu não segui a carreira jurídica. Eu sou veterinário. Na verdade, consultor em matéria de reprodução bovina. Eu digo os modos e meios para o cruzamento de raças e avalio geneticamente os animais de corte e de exposição. E tu? - Eu sou artista plástica. Eu pinto. Mas, a minha formação acadêmica é outra; eu sou engenheira química e me formei na UFRGS. Meu pai era engenheiro e resolvi segui-lo. Por isso perguntei se tinha seguido a carreira jurídica. - Tu pintas por esporte ou faz exposições? - Eu tenho um atellier e ensino pintura e desenho clássico. Fiz muitas exposições. Recentemente eu expus no Museu do Estado. Vendi muitos quadros. Foi a melhor safra. Desde que eu me separei de meu marido eu passei a me dedicar à produção artística. Ele não gostava disso. Era engenheiro também; tínhamos uma empresa de consultoria em química industrial de corantes. Prestávamos serviços para várias refinarias e indústrias de tintas. Ganhamos muito dinheiro no ramo. Depois eu saí fora; não deu mais para eu continuar. Ele me asfixiava com o seu gênio de mau gosto. Odiava arte. Vivemos cinco anos juntos e não tivemos filhos. - Eu também não tenho filhos, mas ainda continuo casado. Minha mulher é dona de casa. Nunca estudou além do primário, mas é uma boa mulher. Temos lá os nossos problemas, mas ainda continuamos firmes. Se nos separássemos, não sei o que seria dela. Não sabe fazer nada na vida. Tem uma grande virtude: a família dela é muito rica; tem muita terra aqui, no Uruguai, no Matogrosso do Sul e no Paraguai. - Deu o golpe no baú? Assaltou o caixa? Um belo dote, hein? - Nem pensar; não usamos um tostão da família. Tudo o que temos foi com o meu único e exclusivo trabalho. Ganho dinheiro o suficiente com animais. Estavam nesse pé de conversa quando uma funcionária da Vara de Registros Públicos chamou pelo nome de Tiano. Ele disse que iria esperar a audiência dela, depois que saísse, se ela quisesse continuar a conversa tomando um cafezinho do outro lado da rua. Ela disse que adoraria. ¤¤¤ Para Tiano a situação era muito estranha. Inobstante o pai fosse juiz, estar diante de um era, ano mesmo tempo, familiar e estranho. Sentia-se quase infantil diante daquele homem de meia idade, sentado no alto de um pedestal, com duas colunas de mesas descendo, paralelas, como se fossem dois fortes braços, com um vão no meio, onde o homem da lei mandou que se sentasse. O juiz, aparentemente simpático, com os primeiros fios grisalhos nascendo, demonstrava na tez um ar permanente de concentração e compenetração. Os olhos baixos, lia um calhamaço fino de folhas grampeadas, com as duas mãos postas nos ouvidos, como quem não quisesse ouvir nada além do retumbar das palavras lidas em sua cabeça. Os aros metálicos dos óculos ovalados davam um ar quase de político antigo ao magistrado de cabelos crespos e levemente castanhos. - Pois, não, Excelência! - disse Tiano, suando nas mãos e com o queixo erguido de modo que pudesse olhar o juiz de frente. Na verdade, via de baixo para cima, num plano inclinado de mais de trinta graus, o homem da lei. Era o homem que decidiria a vergonha que seu nome lhe causava. - O cidadão pediu a substituição do prenome alegando a vergonha social que sente no seu uso, tendo em vista a sua grafia e sonoridade lembrar a expressão "bosta", "duas vezes bosta", eis que "re" - "bostia" - no. Afirma, às folhas 12 do processo, que "sente-se socialmente e internamente como sendo chamado de "um monte de merda" (sic)". - É isso mesmo, Excelência: um monte de merda, eis que rebostiano - redargüiu. - Um minuto só, cidadão; estou me inteirando das locução processual. Já converso com o senhor. - Pois, não, Magistrado. - Obrigada. É só um instante e voltamos a falar. Com o silêncio das vozes, Tiano passou a olhar com mais calma o ambiente, sua mobília e arquitetura. Notou um crucifixo, com a imagem, em gesso, ao longo da cruz, de Jesus Cristo pregado, sangrando com a coroa de espinho na cabeça, no peito, nas mãos, joelhos e pés, cabisbaixo. O som contínuo do teclado do computador, digitado por uma moça jovem e muito bonita, de lindos olhos verdes, amendoados, e farta cabeleira vermelha, lisa e volumosa, cuidadosamente ajeitado com uma fita vermelha uma uma grande madeixa jogada, da frente para o lado esquerdo do peito. Os óculos lembravam o gesto das professorinhas do interior, que via, em suas andanças, a cuidar do gado alheio. Olhou o chão. O carpete era grosso e cinza felpado. Os móveis, os braços titânicos do Prometeu judicial, eram duas mesas longas, ajuntadas, de cada lado. Uma mulher, também jovem, mas de meia idade, sentada, a sua esquerda, com uma máquina preta, pequena, de estenotipia, manipulava, como que preparando, um pequeno gravador de fita K-7. Ela não o olhava; estava absorta em seu trabalho e cuidava atentamente os gestos do juiz.


Nesse instante de inventário mobiliário e pessoal, de continuidade de silêncio de vozes, entra uma mulher de seus vinte e poucos anos, crespa, loira, baixa, muito bem vestida, magra, de olhos muito vivos, rápidos e quase suando na tez, como de quem tivesse corrido para economizar os minutos de atraso. - Bom dia, Doutor Gervásio! - Bom dia, Senhora Promotora. Como tem passado? - perguntou o juiz, sem tirar os olhos do processo. - Bem, obrigada! Atrasadinha um pouquinho. Perdia alguma coisa? - Nada, ainda; estamos começando. Dando uma lidinha no processo. Sente-se e fique à vontade, como de praxe. Nossa manhã será longa. - É verdade; há muitos casos para hoje, justamente quando precisava sair um pouco mais cedo para resolver um probleminha bancário. - A sua presença é fundamental, Doutora, mas pode resolver os seus probleminhas agora, se quiser, pois essa é muito fácil. Tem vinte minutos para ir e voltar. São suficientes? É aqui mesmo, no Foro? - É; são suficientes - disse, pegando a bolsa novamente, levantando-se e saindo pela porta dos fundos, à direita de onde estava. Rebostiano observava atentamente tudo. O teto era de prédio mal acabado; concreto armado; concreto chumbo, pintado de um cinza esverdeado, aparecendo os canos e tubulações. As paredes eram divisórias de compensado, brancas, reluzentes, com contornos em preto. Tudo dava um ar de seriedade ao ambiente judicial, à exceção, é claro, da presença feminina, que recoloria tudo, dando um ar de jovialidade e descontração. Agora centrou os olhos na roupa do juiz. Era uma camisa branca, de colarinho engomado, com botões nas laterais prendendo o nó de uma gravata avermelhada muito bem alinhada; por cima, o paletó escuro. A roupa sentava com o que via acima do pescoço forte, firme, rubrado e com a artéria exposta, quase pulsante. Olhou para trás e viu um banco longo, com quatro lugares fixos e duas cadeiras pretas. Era o lugar da galera? Platéia, aqui? Não sabia dizer. Quando seu pai era vivo, o Foro ficava numa espelunca, no Centro, perto do metrô; depois, quando desembargador, fora para a praça principal da cidade, junto aos demais poderes constituídos, no quinto andar. Fora lá muitas vezes. Agora lembrou-se de que os lugares poderia ser para os estudantes assistirem às audiências. Havia tomadas de energia elétrica no chão, tampadas com uma lâmina circular, metálica, levemente dourada. Os fios que saíam de trás do monitor desciam pela direita, ao lado da primeira mesa, a mais perto da digitadora, enfiando-se por debaixo. Não via a torre; só o monitor e o teclado. A torre deveria estar debaixo da mesa da secretária. Ivete era o seu nome e estava escrito no crachá; Ivete Machiello era o nome da foguinho de óculos. Seria parente, amiga, filha, namorada ou esposa do juiz? Era pouco provável. Não podia responder, por ora a essa linha de questionamento. Voltou a olhar o juiz, que já estava folheando as últimas páginas do processo. Passaram-se quinze minutos desde que o homem da lei começou a ler. A promotorinha ainda demoraria para voltar, se ocupasse todo o tempo que o juiz sugerira. - Ivete, pode pedir um cafezinho? - disse o juiz, voltando os olhos para a secretária. - Pois, não, doutor; é prá já. Levantou-se, passou por detrás da cadeira de recoste alto e desceu o degrau do mezanino, ganhando a porta da direita, a mesma e a única dos fundos. Em menos de um minuto voltou com uma xícara de porcelana branca, cilíndrica verticalizada, pequena, em um pires de abas reduzidas. Colocou-a à direita do juiz e voltou a sentar-se diante do teclado. - Está servido, doutor - disse, avisando que já trouxera o café. - Obrigado, Ivete; eu percebi. Agora vamos conversar - disse, dirigindo-se ao cidadão Rebostiano. - Ivete, o preâmbulo da ata está pronto? - perguntou à secretária. - Sim, doutor; está pronto. - Fale-me do seu incômodo com o nome, cidadão Rebostiano. Mesmo que o nome não seja agradável, ele é o seu nome e, por isso, devo usá-lo para me dirigir à sua pessoa, certo? - Certo, Magistrado. Eu falo sobre a minha angústia que já dura trinta e oito anos de idade. Desde que me lembro, lá pelos dois anos de idade, sempre que falavam meu nome eu percebia os risos e sorrisos, as exclamações e as palavras "que peninha!", "Ah, mas esses pais não têm coração!", "que maldade fizeram com a criança!", e assim por diante. Mais tarde, já com três-quatro anos, os risos começaram a vir dos primos e vizinhos. Me chamavam de "bostinha", "merdinha", "cocozinho". Diziam que não adiantava eu ficar brabo, eis que era esse mesmo o meu nome. "Merdinha da Silva" era o que mais me incomodava. Na adolescência, não conseguia namorada; a todo fracasso sentimental e de trabalho eu atribuía ao nome. Uma vez uma empresa me recusou porque o meu nome não era viável para a boa imagem da empresa no mercado. A duras penas, com vinte e nove anos, já formado e pós-graduado, conheci uma moça que deixou-se enamorar comigo e terminou casando comigo. Foi minha única namorada. Não temos filhos; não gostaria que constasse na certidão deles que o nome do pai é "Rebostiano da Silva". Eu fiz análise


psiquiátrica durante anos para poder me manter com o nome. Já tentei suicídio várias vezes; felizmente, como percebe, eu sobrevivi. Como eu virei médico veterinário e trata de cruzamento de bovinos, eu, literalmente, trabalho no meio da merda bovina. Meu nome até senta com os afazeres da profissão. Afinal, veterinário com nome de Rebostiano não é tão mau assim. Agora, imagina seu resolvesse ser, por exemplo, Juiz? Qual seria o meu destino? Tenho profunda vergonha do meu nome e desejo trocá-lo; não viverei melhor e só piorarei se o senhor entender que eu deva ficar, para o resto de minha vida, com o perdão da expressão, "com essa merda de nome Rebostiano!". O juiz esboçou um risinho no canto da boca e disse: - Vamos ver o que a Justiça Pública pode fazer pelo senhor. - Desejo que ela seja efetivamente justa, pois estou sofrendo muito; eu, minha mulher, meus amigos e isso me impede até de ter filhos. Somente a Justiça pode me fazer feliz, neste momento. - O senhor já pensou no nome que quer substituir? - Sim, senhor. Quero me chamar "TIANNO", como me conhecem meus amigos e empresários. Tianno com dois “enes”, para dar uma grafia diferente e original. - Esse nome, grafado assim, não existe; eu nunca vi igual, e olha que estou neste ofício há muitos anos. - Eu sei; por isso mesmo é o que quero. Uma diferenciação compensatória pelos trinta e oito anos de sofrimento. Não culpo meus pais, pois, para eles, o nome era lindo. Era nome de um parente distante, italiano, que vivia antes deles imigrarem para cá. Lá, na Itália, pode ser que seja lindo; aqui, pelo contrário, é ultrajante usá-lo. - O seu pai, Androvalldo Lucas da Silva era o que na vida? - Desembargador, doutor. - Aqui? - É; aqui mesmo. Ele se aposentou na década de sessenta e morreu dois anos depois. - Nunca ouvi falar dele. - Foi Corregedor Geral de Justiça. - Ah, é? Que interessante. E pôs esse nome no senhor? - É; como disse, ele tinha um valor sentimental diferenciado para meu pai. Ele era já desembargador quando eu nasci. Ele tinha 65 anos de idade e minha mãe 25. Ele morreu um ano depois que eu nasci. Praticamente não o conheci; mas conheci muitos de seus amigos. A maioria está aposentada ou morreu. - Estou convencido de que precisa trocar o nome. Acho que TIANNO, com dois enes é um bom nome. - Graças a Deus, doutor, que está entendendo a minha dor profunda. - Estou; e estou decidindo agora a troca de nome e já emitindo o ofício o Registro de Nascimento para que a troca seja efetuada. Poderás, a partir de hoje mesmo, se quiseres, começar a troca dos documentos. Emitirei, ainda, a ordem para o Registro de Casamento, para que a troca seja efetuada. Terás de fazer a mudança na Fazenda Federal, para fins de cadastro do CIC, também, certo? - Estou entendendo. Doutor, muito obrigado. Fico eternamente grato a isso. Minha amiga Lina, que espera do lado de fora para a audiência seguinte, tem caso muito semelhante; o problema dela está na combinação dos sobrenomes: "Rego Preto". Pode dar uma força para ela, também? - Veremos, seu Tianno; veremos. O senhor pode procurar o Cartório da Vara, daqui a uma hora, aqui do lado, e poderás já pegar o ofício. Estamos conversados e a audiência terminou. Nisso entrou a promotora. Sentou-se, quieta. Tianno, com um sorriso largo, levantou-se, apertou a mão do juiz, da promotora, da secretária, da estenotipista e, estabanadamente, quase tonto, saiu do corredor de parte, abriu a porta da frente e ganhou o corredor interno do Foro. Não conseguia esconder a felicidade. - Lina, falei com o Juiz; acho que ele vai dar uma força para ti. Eu te espero, tá? - Legal, Tiano; eu volto assim que terminar. - Tenho de esperar o ofício para o Registro; sai dentro de uma hora. Tenho bom tempo de espera. Até mais. - Até mais - disse Lina. Antes de entrar, saiu a secretária e apregoou seu nome. Ela entrou e a porta foi fechada. Tianno sentou-se e acendeu um cigarro, trêmulo nas mãos e sorrindo muito. ¤¤¤ - Sente-se - disse o juiz, folheando o processo de Lina. - Obrigada, doutor - respondeu, com um belo sorriso. - Então, a senhora deseja mudar o sobrenome. Ele lhe causa muito incômodo? - Sim. Rego Preto não é um par de sobrenomes muito agradável. Provoca riso nas pessoas. Quando ainda namorava meu ex-marido eu sabia que a combinação não iria ficar boa; mesmo assim, gostando como gostava dele, avaliei que seria um mal menor. - E, por que não ficou com seu nome de solteira ou aboliu o nome paterno? Poderia ter abreviado o problema. - Soube disso só mais adiante, quando os papéis já estavam prontos e não dava mais


para mudar. - E, quando se divorciaram, por que permaneceu com o sobrenome dele? - Eu não sei; não sabia que poderia voltar a usar o nome de solteira. O advogado fez os papéis segundo as intruções do Ivan e foi assim que aconteceu. - Quer suprimir o nome do ex-marido? - Quero; acho essa a melhor saída. - Muito bem, é o que será. A partir da mudança no Registro de Casamento, passará a se Chamar Fredolina Rego. Fica bom a ssim? - Fica, doutor. O senhor não imagina a minha felicidade. E ainda dizem que a justiça não funciona! - Funciona, sim, e muito bem; algumas pessoas podem se sentir injustiçadas pelo fato de quererem que as coisas saiam conforme a sua vontade particular e não é assim. Temos lei nesse País e a justiça aplica a lei, independentemente da vontade das pessoas. - Foi o que sempre pensei. Estou dispensada? - Tão logo assine a ata. Pronto. Agora assine aqui, abaixo. - Pronto. - Dentro de uma hora poderá pegar, no Cartório, a sala ao lado, o ofício ao Oficial do Registro. - Muito obrigada, doutor. - Não há de quê. É o meu trabalho. Que bom que ficou satisfeita. Está dispensada agora. Na audiência anterior julguei um caso semelhante ao seu; o problema era no prenome; o seu era no sobrenome. - Ah, o do Tiano? Ficamos amigos, enquanto esperávamos chamar... - Ah, se conheceram? Que bom! Novas amizades são sempre bem vindas. Ele, também, ficou muito feliz. - É, eu percebi. Está esperando o ofício ali fora, como eu farei o que sair daqui. - Muito bem, senhora; felicidades. Pode se retirar agora. - Obrigada, mais uma vez. Até logo. Tenha um bom dia. Lina saiu da sala eufórica por ver o amigo. Abrira a porta rapidamente e fechou-a do mesmo modo. ¤¤¤ Quando saiu, foi até o vão e Tiano não estava lá. Olhou para os lados e nada do amigo. Olhou ao longo do corredor e não o encontrou. Deu alguns passos e olhou ao longo do outro corredor; também não estava. Foi até o Cartório da vara, abriu a porta, olhou e nada, de novo. Saiu. Foi em direção aos elevadores. Ninguém conhecido. Perguntou ao guarda do andar se vira a pessoa com as descrições que deu e obteve a informação de que não poderia lembrar; que havia centenas de pessoas semelhantes à da descrição. Resolveu descer pela rampa. A passos rápidos, descia como criança; quase correndo nas curvas. Foi até o térreo e nada. Desceu as escadarias da frente, olhou a rua. Nada. Desceu as segundas escadarias e ganhou a calçada. Foi até o café da frente da praça e não o encontrou. Caminhou em direção ao outro lado da praça. Nada de Tiano. Bolsa na mão, quase escabelada; estava desesperada com o desencontro. Poderia ter pedido o número do telefone dele, mas, recém haviam se conhecido; teria sido uma demonstração demasiada de interesse. Lembrou-se de que tinha tempo. Uns quarenta minutos antes de sair o ofício. Resolveu sentar-se no Café Solimões, o segundo, na rua diagonal, com mesas ao ar livre. Caminhou na direção, sentou-se e veio o garçom. Pediu um expresso e descansou a bolsa sobre uma das três cadeiras vagas. O sol estava forte no seu rosto. Colocou os óculos de sol, pegou a bolsa e um maço de cigarros. Acendeu um e deu uma longa tragada, com os olhos fixos na saída do Fórum. Ainda tinha esperanças de encontrá-lo. - Açúcar ou adoçante, madame? - Adoçante, por favor - disse, com a voz ainda trêmula. O garçom colocou sobre a mesa um frasco transparente. Ela pegou-o, abriu a tampa de derramou três gotinhas sobre o café. Pegou a colher, mexeu o líquido negro e voltou a descansá-la sobre o pires, na lateral direita. Pegou a xícara e tomou o primeiro gole. Estava muito bom. Voltou a olhar a entrada do Fórum e nada de Tiano aparecer. Nisso teve uma idéia. Consultar o serviço telefônico. Ligou os três dígitos, atendeu a telefonista. Feita a consulta, foi informada de que não constava o nome como titular de telefone celular naquela companhia. - Mais um café, madame? - perguntou o garçom. - Mais um, por favor. Olhou outra vez as escadarias. Nisso descia um homem alto, magro, com a roupa muito parecida com a de Tiano. Levantou-se, de salto e correu até lá. Era ele. - Tiano! Tiano! Aqui! - Lina! - disse sorrindo. - Te procurei por todo o Foro e não encontrei. Estava até agora te procurando. Onde se meteu? - Eu... também estava te procurando. Faço a mesma pergunta.


- Eu estava no banheiro quando tu saiu da sala de audiência. Ao voltar, tu já havias saído. - Mas eu te procurei por tudo; me demorei no andar e desci correndo a rampa, vendo se dava tempo de te dar adeus. - Eu fiz o mesmo. Havia desistido e quando... - Que legal te encontrar. Eu estava tomando um cafezinho aqui perto. Quer um? - Nós merecemos. Claro que quero! Adoro café. Vamos lá. Sentaram-se na mesma mesa. O garçom estava preocupado. - Voltei - disse ao garçom. - Leva este, que deve estar frio e nos traz outros dois, por favor. - E, aí, Tiano? - E, aí, que eu estou muito feliz; felicíssimo. Até que enfim posso ficar com o nome que sempre me chamaram, sem a indesejável sensação de que eu sou o que o meu nome indicava. - Eu, também estou muito feliz. Graças a Deus que deu tudo certo, né? Agora podemos comemorar. - Uma cervejinha? - Pode ser. - Onde e quando? - Pode ser hoje mesmo; pode ser agora mesmo. É só dizer onde queres ir e irei. - Puxa! Que bom! Tem o Shopping ali. Pode ser? - Não, não. Shopping, não. Prefiro um bar; um barzinho é melhor. - Tem muitos aqui perto. Eu estou de carro. - Eu também. Vamos lá? Eu te sigo, pode ser? - Pode. Garçom! - disse, chamando-o e indicando, mimicamente, que desejava a conta. - Deixa que eu pago. - Tudo bem. Mas, no bar pago eu, tá? - Tá legal! Vamos lá. Onde está o teu carro? O meu é aquele verde metálico ali, que está na nossa frente. - O meu é o de trás; o branco. - Belo carro. Então, vamos lá. Temos muito a comemorar hoje. Mesmo sendo cedo, uma cervejinha é bem merecida. Atravessaram a rua e entraram nos carros. Lina saiu na frente e dobrou à esquerda, em direção ao Shopping, ganhando logo a avenida movimentada. Tianno foi colado em sua traseira, seguindo-a. Ela olhava pelo retrovisor e nem acreditava no que estava acontecendo. Gostara tanto dele e nem percebera que mal o conhecia. Pouco importava agora. Eram amigos; um novo amigo, como disse aquela maravilha de juiz. "Ah, se todos fossem assim!" - dissera quase em voz alta. ¤¤¤ Seis quadras dali ela estacionou. Fez sinal a Tiano de que era perto. Tiano estacionou, desceu e foi ter com ela. Ela apontou o lugar, indicando o outro lado da rua seguinte. Era no meio da quadra. Entraram. Várias pessoas estavam almoçando. Foram ao fundo, perto do balcão e sentaram-se no mezanino. Veio o garçom com a carta. - Uma cerveja? - Como combinamos. - Uma cerveja, garçom; bem gelada. Ah, e uma coca diet, com uma rodelinha de limão fina e duas pedras de gelo, também pequenas. -Mais alguma coisa, senhora? - perguntou o rapaz de casaco branco e gravata vermelha. - Por ora é só - respondeu Tiano. Veio a cerveja e estava bem gelada. O garçom serviu as duas taças quase em limite de igualdade, a meio termo. A espuma era pouca. - Um brinde! - Um brinde! À nossa felicidade! Aos novos nomes! - Ao nosso encontro! - disse Tianno. - Ao nosso encontro, também - repetiu Lina. As taças tilintaram e beberam um longo gole cada um. Olharam-se dentro dos olhos e descansaram as taças. - Não sei por que, mas agora estou tendo a impressão de que já te vi antes; só não sei de onde - disse Tianno. - É possível; eu ando por aí. É possível, por que não? Agora, eu não lembro de ter te visto alguma vez. Para mim tu és totalmente novo. - Totalmente novo - repetiu Tianno. Encheram os copos novamente e beberam como quem está com muita sede e tem pressa. Vários garçons transitavam pelos dois corredores do ambiente, com bandejas lotadas de pedidos. O dia estava calmo e o sol forte, lá fora. As luzes, dentro, davam a impressão de entardecer. A felicidade é feita de pequenos momentos como esse. Dois desconhecidos se conhecem mudando suas vidas... e seus nomes.


Conto 92, de 17/09/2000, domingo Vítima da hora João Protásio Farias Domingues de Vargas

Machado descera do táxi algumas quadras acima do local onde desceria. Pagou, pegou o troco e desceu. Atravessou a rua, pôs as mãos nos bolsos da calça e voltou calmamente. Resolveu descer as escadarias e ir por outro caminho. Nem percebera que estava tarde e que aquele local era muito perigoso à noite. Atravessou as duas ruas, nas faixas de segurança e passou por debaixo do viaduto. Resolveu ligar e dizer que já estava chegando. Estava com o aparelho móvel sobre a orelha direita quando, de repente, vindo do nada, sentiu-se agarrado por várias pessoas. Uma pegava um braço, a outra o outro, uma terceira, na frente, apalpava os bolsos e, ainda falando ao celular, sentiu uma forte pancada na nuca e mais nada. Minutos depois voltou a si e viu seu rosto colado ao chão. Olhou à volta. O dinheiro estava no bolso, o relógio estava arrebentado e o celular não estava com ele. Lembrou-se de que falava ao telefone quando fora atacado. Tentou lembrar o rosto de algum, mas não conseguiu. Teve a sensação de que eram quatro homens e lembrou da voz de um dizendo "Não reage; não reage que tá tudo bem; rápido; bate logo...". Não via ninguém na rua. Foi até à esquina e dobrou, descendo até o local. Pegou o elevador, as chaves e entrou. Pegou o telefone e ligou para a polícia informando o fato. Ligou para a companhia telefônica informando o roubo; roubo, pois houve agressão física. Imediatamente o telefone foi bloqueado para ligar e para receber chamadas. Fez o teste e o celular estava desativado. Pelo menos nisso eles foram rápidos, pensou; rápidos como os assaltantes. Desceu novamente, ganhando a rua. Subiu até à quadra de cima e dobrou à esquerda. Foi até o local onde tudo acontecera para ver se lembrava de algo. Parou no local, no vão de entrada de uma garagem. Olhou os lados e nada. Viu uma pessoa, abaixo, perto do Treiler e foi até lá. Conversou com o velho e este disse que não vira nada. Disse que a cidade estava insegura e que isso era culpa do governo. Concordou com isso e voltou ao local para ver se lembrava de algo, novamente. Nada lembrou além do que já tinha rememorado. Subiu a rua e voltou à casa. A dor começava a aparecer na cabeça, no alto e à direita. Um calombo ficou posto. Não sangrara. A batida não deve ter sido muito forte. Ainda bem que não se machucou muito. Não levaram dinheiro. Só o celular. Abriu a porta, entrou e sentou-se no sofá. Pôs uma fita no aparelho de vídeo, serviu um café preto e tentou distrair-se um pouco. Já passavam das três horas quando resolveu dormir. Aliás, acordara dormindo no sofá. Foi para a cama. De manhã, alta, quando acordou, teve a impressão de que tudo o que acontecera fora um filme. Mas, não era; era um assalto mesmo e ele havia sido a vítima da hora.

Conto 93, de 18/09/2000, segunda

Desejo de contar João Protásio Farias Domingues de Vargas

O desejo de dizer pode ser compulsivo. Muitas vezes temos uma vontade gigantesca de falar, de contar o que pensamos, o que sentimos, que nos esquecemos de que nem todas as pessoas desejam ouvir o que temos a contar. Algumas pessoas não resistem como outras. Contam tudo a qualquer pessoa. Contam


sobre qualquer coisa, sem se importar com o resultado do que pode acontecer com o ato de contar. Algumas contam tanto que se tornam aquilo que o senso comum denomina de "fofoqueiras". A fofoca é um meio útil de melhorar e de piorar a imagem das pessoas. Criminalmente, pode ser enquadrado no tipo de crime contra a honra das pessoas, como é o caso da "difamação". Fofoca e difamação são sinônimos, no mais das vezes. Marialda era assim, uma faladora compulsiva. Tudo o que via, contava do seu modo o que a seu modo via. Muitas pessoas já haviam falado para ela parar com aquele comportamento anti-social, mas não tinha jeito. Outro dia, com uma amiga, num restaurante, durante o almoço, ouviu poucas e boas; mas, também, do mesmo modo, disse tudo o que sentia e sabia. - Credo, Marialda. Quero ser tua amiga para o resto da vida. Que língua, hein! Credo! Uma boca assim e não se precisa de mais nada para arruinar a vida social de uma criatura. - Não é assim, Mônica. Eu não sou linguaruda, não; eu só conto o que vejo com esses olhos que a terra há de comer. Falando nisso, viu o vestido da Betinha, na festa de ontem? Estava um arraso, né? Também, com o dinheiro que tem; não tem como não ficar bonita. Pode comprar qualquer coisa. Dizem, por aí, que foi a mãe quem assaltou o baú; o velho era podre de rico. Podre e mulherengo! - Viu! Tá vendo? Fofocando de novo! Tu não perde um minuto, Marialda. Tá sempre falando da vida alheia. Que é que eu tenho que ver com a vida da Betinha? Nada. Deixa a mulher em paz! - Ai, tá irritadinha hoje, hein? - Sabe que não curto essa de fofoca; eu odeio fofoca! Sofri muito nas mãos de gente como tu! - Eu? Ora! Eu não sou fofoqueira. Eu só digo o que sei. - É, mas diz para as pessoas erradas; erradas, viu? - Tá bom! Vamos mudar de assunto. Hoje está um dia lindo, não? Que sol! - Um lindo dia! Gostou do babado da minha saia, Marialda? Que mimo, né? Foi feito pela nona! Que velhinha simpática. Nona é nona! Melhor que mãe. - Falar em nona... - Não começa, Marialda! Não começa. Não estraga o dia de novo, tá legal? - Credo, Cristina! - Mônica! Meu nome é Mônica, esqueceu? - Desculpa. Saiu sem querer. Acho que a Cristina está pensando em mim. Saiu. De repente. Isso acontece muito comigo. É só estarem falando no meu nome e sai da minha boca o nome da criatura. Tu viste o gatão que ela arrumou? Uma lindeza de rapaz. Para a idade dela, é sorte no duro! O nome dele é Ricardo Vahl. - Vahl? Esse sobrenome não me é estranho... - Não, não é. É irmão do fulaninho que tu tá pensando. - Do Marcelo? - É, do Marcelo mesmo. - Mas o irmão dele não estava morando na Alemanha? - Estava; voltou. Voltou no ano passado e mora aqui em Cerro Alegre. - Aqui??? Ah, ele era lindo! Que homem! Desses é que eu precisava para mim! E não daquelas porcarias que tenho lá em casa! - Ora, Mônica, a escolha foi tua. Ele também era bonito quando vocês começaram a namorar. - Era; disseste bem: era! Agora está um lixo. Barbudo, pé descalço, passa o dia enfurnado em casa assistindo vídeo e bebendo. - Credo! Tá assim, é? O que uma mulher pode fazer com um homem, hein? - Que é isso, Marialda? Ele ficou assim porque quis. Eu não mandei ele ficar na deprê que tá. Homem tem que ser homem; tem que ser macho! Macho, minha filha; não mulherzinha como aquele tá parecendo. Não sai nem no portão de casa. Fica comendo e comendo e bebendo. Tá um porco de gordo. Aquela barriga me enoja, sabe? - Larga ele, ora! - Não posso! Eu adoro aquela barriguinha, aquela barbinha, aqueles olhinhos. - Ainda apaixonada pelo marido! Que vida, hein! Bem que podia ser diferente. Se gosta tanto dele assim, por que tá falando mal dele prá mim? Isso é que é jeito? Depois a fofoqueira sou eu aqui, né? - É diferente, Marialda. Eu falo de amiga para amiga. Então tu não me contas sobre a tua vida íntima com o Mathias? Conta; e conta tudinho. Sei até quando foi a última vez que transou com ele, não sei? - Está desatualizada, minha filha! Foi ontem à noite a última; demos quatro. Caí feito uma condenada. Que homem! Fico arrepiada só de me lembrar! Ele é o meu calmante do dia-a-dia! - Tão bom assim? Não quer dar uma emprestadinha? - Ora, essa! Dinheiro e marido não se empresta, não sabe disso, Mônica. Por acaso empresta o teu? - Quem é que iria querer o meu? Ninguém. Ele é um lixo de homem, mas eu gosto tanto dele...


- Um lixo bom, é isso? - É. Um lixão bonzão! - E... ainda? - Ainda, o quê? - Ora, Mônica, não te faz de mal entendida? Ainda fuque-fuque? - Se eu trepo com ele? - É; trepa? - Todos os dias, várias vezes! - Credo! Uma depravada! Uma ninfo! - É; ele me deixa assim! Eu gamo, gamo, gamo! Sou gamada nele! - Isso é que é paixão. Oito anos e está aí, com esse jeito de adolescente apaixonada! Isso é coisa de gente?! - É coisa de gente. Amor faz bem e rima com todas as coisas boas. Sabe do que estou falando, não? - Claro que sei, sua tolinha! - Então!? - Então, nada! - Nada? - Como assim? Não estou te entendendo, Marialda. Fala direito, mulher! - Bem, vou indo. - Já? - Viu as horas? Está tarde. Ademais, estamos a horas nesse bar. Bebemos todas e precisamos ir. - Tá certo. Vamos virar umas alcoólatras desse jeito. - Acho que já viramos. Há meses que vimos nesse mesmo bar todos os dias e na mesma hora, já percebeu? - Claro. Isso não é bom? - Não acho, não. Bem que poderia ser em outros lugares, também. Dizem que o Café da Zona Norte ficou um mimo de lugar. As gurias vão lá todo final da tarde. - Que gurias? E fica na contra-mão prá mim. É longe prá burro! - É longe, mas vale à pena. As gurias? Ah, as filhas do velho Lucas. - O da boutique do Centro? - Dele mesmo. - Ouvi dizer que a mais velha foi viver com um argentino, é verdade? - Pior do que isso; com um colombiano! - Que fria! - Acho que ela pensa diferente. É feio prá burro, mas ela deve gostar, pois juntaram os trapos. - Vamos! - Vamos!

Conto 94, de 19/09/2000, terça

Resposta sólida João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Ainda não há resposta sólida. - Pelo visto deve haver três tipos físicos de respostas, não é? Uma resposta sólida, uma resposta líquida e uma resposta gasosa. Poderia haver uma resposta pastosa ou em estado de gel, completando um quarto tipo ou um intermediário, dependendo da conformação da matéria da resposta? - Deve estar armando uma decepção para si mesmo. - Armar uma decepção. Essa é boa. Ainda não tinha ouvido a expressão. Uma decepção de que tipo? Intelectual, moral, material, social, histórica, jurídica ou psicológica? Diz, aí, mestre das classificações e tipologias. - Cismou com as expressões "resposta sólida" e "armar decepção". Poderia ser "construir decepções". São palavras. Paroles, paroles, meu amigo; meramente palavras. Percebe isso? É claro que percebe. Centra a atenção da fala nas expressões para ganhar tempo de pensar enquanto o diálogo continua. Eu deixo. - Engraçadinho! - Não é isso? Se são apenas palavras, fica frio; calminho, calminho, pedagogo.


- É, mas não sou astrônomo; não gasto o meu tempo observando, ou viajando, literalmente, no espaço. - Professor de astronomia, para ser mais preciso. - Que seja, Humberto. Portanto, meu irmãozinho, não me apurrinha o saco me chamando desdenhosamente de pedagogo. Eu ensino as pessoas a ensinar; tu ensinas a viajar no espaço. - Não; ensino o que vejo e o que já viram no espaço. É diferente. Apenas pelo fato de ter morrido alguém da família, não pode me imputar a tua noção de culpa religiosa. - Um membro da família uma pinóia! Era a nossa mãe. A nossa mãe! Desamoroso! - E daí! Agora quer que eu sinta a mesma intensidade de dor que tu dizes estar sentido? Não somos iguais. Não podes tornar norma o teu modo de sentir. Eu vejo o mundo de modo diferente. Para mim a morte é um evento natural na vida de qualquer ser vivo. A morte não é o peso ou o castigo que parece ser para ti. - Piedade, Humberto; piedade. - Calma, Pablo. Vai com calma digo eu. Ora, piedade? O que é que é isso? Piedade é qualidade de quem tem pena do sofrimento alheio. Não tenho pena das pessoas; não sofro por elas. As pessoas não precisam do sofrimento dos outros para se sentirem melhor, ou precisam? Eu não estudei teologia na adolescência, portanto, tenho todo o direito de expor minha ignorância metafísica nesse campo "científico"! - Respostas e armações. É isso o que sabes da vida, não é? Nunca voltaste para casa; deixou todos nós com saudades; nunca mandou notícias. Agora, aparece aí, feliz, insensível com a dor de mamãe... - Sempre souberam onde estive; por que não ligaram? - O dever era teu, Humberto. É o filho quem deve ligar para os pais; não o inverso! - Não pode ser recíproco? Não pode? - Pode sim! Mas, sempre precisou ser essa pessoa desligada, fria, calculista, cientificizada; perdida ou escondida nesse cientificismo ridículo que tomou conta de toda a tua existência! - Agora, partiu para a agressão, é? Não fui eu que passei drogando por causa dessa metafísica braba de vinda do messias! Nunca precisei me picar para ficar em paz comigo mesmo! - Por acaso ficar olhando as estrelas o dia todo através de um tubo metálico com conchas de vidro não é a mesma coisa! Telescópio e droga produzem o mesmo efeito, meu caro! - É diferente. Estou ajudando a humanidade a conhecer o universo, e você? Ajudando a destruir a humanidade que há em ti. - Eu aplicava as picadas de morfina na mãe. Eu! Eu! Eu mesmo; com essas mãos aqui, que estás vendo agora. Mas eu estava lá, ajudando. E tu? Não tinha tempo para isso! Tinha de ir atrás de alguma estrela perdida em alguma galáxia, não? A mãe morrendo e tu lá, olhando as estrelas! - Por que tu? Não poderia ser um enfermeiro? Por que deixaram ela em casa. Há hospitais e bons, se não sabida disso! É para isso que pagamos impostos caros! Ademais, dinheiro nunca foi o problema, ou foi? - Não, não foi. Mas a humanidade tem que ser demonstrada, Henrique. Tem que demonstrar amor, se há amor! - Ora, Pablo! Não seja infantil! A humanidade toda é amorosa! Demonstrar amor é o que menos importa, a menos que as pessoas sejam educadas para isso! Fui mais velho; quem sabe por isso seja um pouco mais duro. - As pessoas precisam se sentir amadas para poder distribuir amor, sabia disso? - Isso é apenas uma forma de amar; existem outras, como aquela que não exige reciprocidade. - Agora vai dizer que é válido um amor bandido ou um amor por quem nos odeia? - Claro! Amor que exige reciprocidade é muito restrito, de curto alcance; diria mais, um amor egoísta, exclusivista, excludente. Exige reciprocidade e limita a expansão do amor do outro. Amor cativo, preso, acorrentado. É o amor romântico do século XIX; a literatura demonstra isso com clareza. - Os loucos também amam; é isso? - Também amam. Todos os psicopatas, a seu modo. Há formas doentias de amores; são amores imperfeitos? Não sei; entendo muito pouco disso! - Isso é uma resposta sólida? - É uma resposta; para mim, sólida; para ti pode ser volátil ou pastosa; pode ser, até líquida, do tipo que escorre entre os dedos, impossibilitando que esteja seguro dela. Isso depende do nível de compreensão da resposta. Uma resposta correta pode ser incorreta para um mau entendedor. Há coisas que nós não compreendemos, meu irmão!


Conto 95, de 20/09/2000, quarta

Simbiose conceptiva João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Agora eu sei que discordamos de muitas coisas, Manoel... - Eu me lembro das coisas, mas com dificuldade em localizá-las no tempo. A ordem cronológica... - A idade é algo com o que não se brinca. Os teus setenta e cinco anos é tempo de vida! Graças a Deus não se pode dizer que ficaste senil; a tua lucidez me assombra ainda. Te conheço e vivo contigo há mais de trinta anos e tenho certeza de que a tua dificuldade não é comum. A perda da ordem cronológica pode ser efeito de algum modo traumático... - Claro que discordamos de muitas coisas, Carolina. Temos idades diferentes, profissões diferentes, viemos de famílias diferentes e encaramos, naturalmente, o mundo de um modo diferenciado. Entretanto, malgradas as diferenças, temos muita coisa em comum; coisas que já vieram contigo e coisas que acolmatamos juntos. Essa simbiose conceptiva é, quem sabe, a única coisa que torna possível a convivência por longo tempo. - Não é o respeito pelas coisas dos outros, Manoel? Mudaste de idéia? - Mudei há muitos anos. Acho que o respeito, conceito de ordem moral e jurídica, é produto e não causa. A causa do respeito é a simbiose conceptiva. Primeiro respeitamos o que é comum, pois implica em respeito mútuo; depois, ah, depois passamos a respeitar as nossas diferenças. Se não respeitamos nos outros as diferenças, não podemos exigir que os outros respeitem as diferenças que vêem em nós. - Toda aprendizagem, por mais lógica que seja, é fática, profundamente fática. Aprendemos com as coisas e com os modos de fazer as próprias coisas. Eu aprendi muito contigo e, acredito eu, aprendeste muito comigo, também. - É verdade. Creio, até, que aprendi mais contigo do que tu comigo. Os mais velhos aprendem, no mais das vezes, mais do que os mais jovens; aprendem com os erros dos outros mais do que com os seus próprios. Todos caminhamos para a velhice.

Conto 96, de 21/09/2000, quinta

Genialidade João Protásio Farias Domingues de Vargas

Duas pessoas muito comuns conversavam em um banco de praça. - O que estás fazendo, Ling? Um gênio é freqüentemente a causa de sua própria ruína. - O que estou fazendo? Estou, silenciosamente, julgando você. - Ficou irritado com a minha afirmação, mas é verdade; é, pelo menos, o que eu penso. Acho que todos os gênios se dão mal na vida; era para ser o contrário, mas não é. - De onde você tirou que eu sou um gênio; eu sou uma pessoa comum, como todas as outras. Estou com vinte e cinco anos de idade e o que foi que fiz de importante na vida? O que fiz? Nada; nada. Aliás, eu sou o antigênio. - A modéstia é uma qualidade típica deles. A tua inteligência está acima dos casos comuns. Não tem nada de comum. O problema é que tu és confuso; bastante confuso. Eis outra qualidade deles. Modéstia e confusão são típicas dos gênios. - Por que insistes nisso, se já te falei que não muda em nada a minha vida a afirmação; não me ajuda a melhorar a vida; aliás, piora, pois me demonstra que, se sou gênio, sou um gênio fracassado. - O fracasso é sempre uma situação temporária, assim como a covardia é um ato profundamente temporal. - Coragem e covardia são conceitos fruto de um julgamento de que está com heroísmo na cabeça. Acho que há muita gente corajosa que é julgada covarde; ah, mas os seus julgadores é que não conseguem ser corajosos! - O primeiro passo para a mudança, para qualquer forma de mobilidade, é a necessidade. Se não tens necessidades de mudança, mudanças não acontecerão, exceto se


a vontade que impõe mudanças é alheia. - A vida é uma mudança só; não há nada que não mude na vida; inclusive os nossos posicionamentos sobre as coisas. Tudo apresenta mudança, ainda que elas possam ser, no mais das vezes, quase imperceptíveis. Por óbvio, as mudanças abruptas, essas sim podem ser visíveis sem nenhum esforço de visão. Há pessoas que conseguem ver as mudanças minúsculas. - Até acredito. - Não é uma questão de crença, Ling; a fé é um método de revelação da verdade que depende fundamentalmente da vontade e muito ou quase nada de prova. - Não és um homem de fé, Zion? - Não sou um homem de fé, é claro. Sou um homem de prova. Tudo o que me é dito é assumido por mim como sendo a verdade de que quer ver acreditada; os que me dizem eu tomo como sendo a verdade dele, não a verdade. - És um homem descrente, Zion; isso te faz sofrer muito. - A fé, por acaso, não faz sofrer? A dúvida permanente por ausência absoluta de algo positivo externo que sirva de instrumento de prova, por acaso, gera mais felicidade ou consolamento psicológico? - Não vejo a fé desse modo. - Vês? Pensas como eu; estás apenas ouvindo o que estou dizendo como sendo aquilo em que eu acredito, não que seja a própria verdade, não é mesmo? - É. - Pois é disso que eu estou falando. - A fé pode remover montanhas. - Não; homens podem remover montanhas; homens que tenham fé ou ciência. É mais provável que homens que tenham fé possam determinar homens que tenham ciência façam isso. - Locatário? - Uma mistura de louco e otário; daí "louca-atário". Se locação fosse boa não permitiria esse trocadilho. A vida é uma locação perpétua? Na tua visão, somos locatários de Deus? Só pode ser, pois, ao morrermos os outros ficam com tudo o que temos; até brigam pelas coisas que construímos com o nosso suor. - Agora estás tripudiando sobre a minha idéia de fé. - Os meus maiores respeitos à tua fé, ainda que ache que elas são equivocadas no mais das vezes. - Ajuda a viver melhor, Zion. Um pouco de fé em tua vida te ajudaria a viver melhor. Quem sabe os teus desencontros sejam fruto de tua atitude cética e atéia diante da vida e da existência. - Irei para o inferno, se for ateu, Ling? - O inferno é aqui mesmo; assim como o céu. - Isso é um avanço, camarada; é um avanço. Acho o mesmo no tocante à religiosidade. - Nós fazemos o céu e/ou o inferno. Isso reforça a minha imagem na tua cabeça, Zian? - E como! Reforça mesmo. É um ponto de vista em comum. - A religiosidade é coisa que te incomoda, meu amigo? - Não me incomoda; mas, como ela está sempre presente nos discursos dos outros, a toda hora, tenho de pensá-la, discuti-la. Não gosto de discutir o assunto; faço-o por necessidade. - Deus era um gênio. - Acho que o gênio está mais para o herói do que para um deus. - É, pensando bem, sim; afinal, foi ele quem criou os gênios, também. - Isso é lógico. - É essa a tua linguagem predileta, não? Do que foges na vida, Zian? - De nada; estou sempre buscando me encontrar com ela. As insatisfações são muitas. - Pensei que pessoas guiadas pela ciência, sem fé, não tivessem insatisfações... - Enganou-se. Acho que os homens de fé é que não têm isso, pois não pensam na insatisfatoriedade e temporariedade, precariedade diria, das provas sobre a verdade das coisas. - Existe prova lógica e prova material da existência de Deus? - De que deus? - De "O" Deus; o único, o todo-poderoso, o Rei dos Reis. - Vivemos numa Democracia, Ling; a idéia de reinado é da antiguidade pré-judaica. - Que seja! Mesmo assim eu acredito nisso e desse modo. Acho que temos um Rei dos Reis, sim. - Faça bom proveito da fé; desse tipo não me serve. Não deixo de afirmar que existe um certo percentual, mínimo ainda, de fé nas coisas de ciência. Um exemplo claro está no fato de que muitos cientistas acreditam em um método e vão em frente, contra todos os pareceres dos doutos e, muitas vezes, ainda que taxados de loucos, conseguem provar suas teorias. Einstein foi um desses em relação à teoria do campo unificado e sua relatividade. - Então existe fé na ciência? Então, estamos em uma substituição de divindades: Deus


é substituído pela Ciência. É o novo deus dos pagães. - Se a tua religião está correta, Deus criou todas as coisas, inclusive a ciência e os homens de ciência. Por acaso, a tecnologia, que é seu fruto, disseminada por todos os povos, cultos ou incultos, fugiu ao seu controle? É obra do demônio, o anjo mau que ele criou para aterrorizar os homens e comprometer ou tentar a sua fé no supremo senhor? É isso o que pensas e por isso não faz ciência; ficas escondido por trás da máscara da fé para justificar a tua incompetência para compreender as criações da humanidade? - Agora estás ofendendo. - Não; estou afirmando. Um Deus que brinca com as coisas humanas não merece este nome; não pode ser sumamente bom. - Deu o livre arbítrio ao homem e ele se tornou o que é. - E, mesmo permitindo isso, como o pai que põe o filho na beira do precipício sem dizer o que pode acontecer se ele for naquela direção? Como um pai que incita o filho a ir na direção do abismo, a pretexto de testar a sua fé? Isso é bondade, benevolência, Ling? - O exemplo é extremo. - A fé leva a extremos. A Igreja não matou milhões a pretexto de fazer guerras santas? A superioridade da fé católica. Hitler não fez o mesmo, a pretexto da superioridade da raça ariana? Por acaso não foi na Alemanha e na Itália onde mais frutificaram essas idéias de superioridade, com o nazismo e o fascismo? Por acaso o Império Romano-germânico não era formado, principalmente, por essas duas nações? A idéia de povo escolhido por Deus, tirada da concepção judaica antiga não está por trás de todas essas atrocidades? Incluase, aí, quem sabe, a superioridade de classe, como pensaram os russos no início do século XX. - O totalitarismo político tem um que de religiosidade, é isso o que queres dizer? - Isso mesmo; as religiões ensinam e arrastam para os totalitarismos. Ou, por acaso, a idéia de democracia está presente na bíblia de alguma religião ocidental? Não, não está. A democracia está fora dos contextos de religiosidades e dos totalitarismos. - Agora Deus se tornou responsável pelos desatinos políticos da humanidade. - Eu quero responsabilizar o teu Deus, com o "D" maiúsculo que utilizas, pelas mazelas da humanidade, sim. Não quero dizer outra coisa. Quem é o representante dele na Terra? - O Vaticano, o Papa. - É a ele que devemos direcionar todos os recursos de última instância nos julgamentos dos homens? - Bem que poderia ser. - Caí fora, meu! Chega desse papo. Agora ignorou total a organização da vida humana. A tua atitude é política, direcionada. Não temos mais condições de conversar sobre esse assunto. E, a propósito, a genialidade, segundo Thomas Alva Edson, se faz com um por cento de inspiração e noventa e nove por cento de transpiração. Acho que não queres transpirar. Não sou gênio, mas não vou ficar esperando que tenha noventa e nove por cento de inspiração. Tenha um bom dia, amigo; qualquer dia a gente se encontra e podemos discutir outros assuntos. Zian abandona o banco e deixa Ling sozinho na praça.

Conto 97, de 22/09/2000, sexta

Modelo resolutivo João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Às vezes eu confundo melancolia com depressão. - Isso é uma coisa que acontece. A melancolia é um estado de tristeza e insatisfação; a depressão é um estado de desespero e descontrole. - Fico deprimido sempre que dou um passo à frente na política. - Faz bem em ficar deprimido. Melhor seria se ficasse simplesmente triste, melancólico, entretanto, ficar deprimido tem um que de protesto no seu semblante. - Estou falando sério. Não sei por que isso acontece comigo, se gosto tanto da política. - Problema seu; eu, aqui dos meus botões, não tenho nenhuma atração por essa pessoa. É pessoa ou coisa, essa tal de política? É mulher? O nome, pelo menos, é feminino. - Grande, Pedro; é isso aí, é uma mulher muito gostosa; daquelas! - Foi o que eu pensei. Só não entendo a razão pela qual quer tanto essa mulher, se dá um passo na direção dela e cai deprimido.


- Eu também não sei; só sei que é isso o que sinto. - Procura uma analista e acho que vais conseguir uma resposta satisfatória. - Já procurei e nada ocorreu. - Então, o caso é grave; aconselho um psiquiatra. - Já tente, e nada! - Só tem um remédio, então: entra para uma religião fundamentalista e o problema será resolvido de imediato. - Ela não deixa. - Quem? - A política. - Isso é mulher ou uma garrafa de cachaça? - Nem mulher e nem cachaça. - Então, o que é? Onde estás quando sai em direção a ela? - Em qualquer lugar fora dela; no campo de outras técnicas. - Estás perdido, meu amigo. - Ainda acho que o problema pode ser resolvido. - Todo problema pode ser resolvido ou não é problema. - Gostei! É isso aí! Se há problema, há solução; o que não tem solução, solucionado está. - É verdade! Agora, tens certeza de que tens um problema? - Tenho. - Então vamos nos debruçar sobre ele. Repete a assertiva. - Eu raramente faço política. Quando participo de algum evento que tem repercussões políticas, fico irritado e me afasto de todos aqueles com quem me relacionei politicamente. Sinto vontade de beber e bebo todas, agredindo verbalmente meus interlocutores de mesa. - Isso é perigoso. É de má política, meu amigo. - Eu sei disso. É por isso que acho que temos um problema. - Pode ser que o teu problema seja fácil de se resolver para mim; creio que não o seja para ti, que estás dentro dele. Vamos perceber de perto o modelo do que tu estás trazendo à discussão. Antes, estabeleçamos um método de investigação. Método investigativo e modelo representativo são as duas contribuições iniciais que posso dar. Pode guardar isso: MI e MR são as duas siglas mais importantes para se chegar a qualquer conclusão que seja minimamente lógica e minimamente aproximativa da verdade ou realidade posta. Há uma terceira sigla, a PS. - O que é PS? - Proposta Solutiva, a resposta hipotética que se dê ao problema, em forma de solução. - Vou colocar no quadro negro a formulação, posso? - Claro. Os pincéis estão ali naquela caixa, sobre a estante. Vai facilitar a visualização.

Método Investigativo MI +

Modelo Representativo MR <=>

Proposta Solutiva PS

- Agora ficou melhor. Que fazemos agora? Colocamos o que sabemos onde? - Em primeiro lugar, deve-se designar o método investigativo, i.e., as regras que vamos seguir para investigar o que está acontecendo, de modo que se possa ter uma "representação" exata da realidade (segundo passo), o que nos permitirá, numa terceira etapa, apresentar algumas hipóteses ou propostas solutivas. - Não entendo por que o método vem antes do modelo, se é fundamental sabermos exatamente o que e o como do que está acontecendo. - Bom, ao dizer isso, estás já trabalhando o método investigativo, pois estás referindo o que deve vir primeiro no procedimento a ser adotado. Percebes que, mesmo sem se dar conta, está trabalhando o método em primeiro lugar? - É verdade. Proponho que, metodologicamente falando, primeiro se esmiúce a parte fática e, depois de analisada, se comece a apresentar as hipóteses explicativas; tudo isso fazendo parte do modelo representativo. A explicação deve estar dentro dele? - Pode ser. Dentro da tua proposta metodológica, sugiro que se trabalhe com exemplos fáticos ocorridos, principalmente os recorrentes. Depois disso, vamos para aqueles casos mais esporádicos, vivenciados por ti mesmo, e, por fim, aqueles que conhecemos por ouvir dizer. Pode ser assim? - Pode. Vou começar. Certa vez, há muitos anos, quando atuava, muito jovem, antes dos quinze anos de idade, de um partido político clandestino, tinha medo da polícia, dos militares e das pessoas que poderiam nos denunciar para aqueles. Precisávamos nos esconder de tudo e de todos. Ficamos, como se diz, no "ostracismo". Várias vezes eu soube de colegas que foram presos, torturados e desaparecidos. Várias vezes eu mesmo quase fui preso. Detido eu fui, mas preso, nunca. Depois da abertura política, já em outra cidade, eu deixei de lado a política engajada e fui fazer outras coisas, como me dedicar


exclusivamente aos estudos técnicos e científicos. Nas faculdades que iniciei e não terminei, passava longe de todos aqueles que faziam política estudantil. Nos dois últimos cursos superiores, comecei a me aproximar um pouco, muito de leve. Quando senti que não tinha mais medo, passei a aparecer um pouco mais e a ocupar cargos de direção, mas secundários. Quando sou eu o organizador ou passo a figurar entre os organizadores de qualquer evento, notando que houve avanço político pessoal e do grupo, ocorre aquilo que passei a denominar "síndrome do engajamento político - SEP". - Pode ser que, inconscientemente, ainda pense que corre risco de ser lesado físicopsiquicamente. Um medo inconsciente de sair perdendo com a ação entabulada. - Quando eu consigo realizar algo politicamente com sucesso, fico deprimido logo-logo e passo a literalmente agredir meus companheiros ou auxiliares, quando, em verdade, deveria estar colaborando com eles. Isso tem um efeito político atroz, pois leva eles a se afastarem de mim e a terem a impressão de que eu não fiquei satisfeito com a atuação deles e nem com a minha, quando a realidade é inversa. - A "realidade é inversa"? Isso é sintomático. Realidade inversa não seria a inversão da realidade que tu operas em função da contração da síndrome que referiste. Como é mesmo o nome? Ah, síndrome do engajamento, SEP. Uma necessidade de renúncia à participação que tu não consegues cumprir de todo pelo fato de ser fascinado pela participação coletiva. Isso não é algo que só há em ti. É preciso sublimar isso. - Fico como que enlouquecido sempre que dou um passo político à frente. A síndrome não me permite avançar, pois interrompo os contatos e gero, pior ainda, um decréscimo político, pois causo uma péssima impressão. Eu fujo da continuidade dos atos que iniciei com sucesso. A má impressão política é um mal com que preciso trabalhar melhor. - O modelo representativo está quase sendo desenhado. Isso é bom. Quais são as impressões, as emoções que sentes com isso? - Eu sinto como que estivesse estragando tudo; me sinto sem legitimidade para agir. Parece que estou fazendo uma coisa errada de modo errado. Sinto que ninguém está do meu lado; que todos estão me julgado negativamente. Sinto vontade de sumir, de me esconder, de não ter iniciado o processo que redundaram nas coisas; os aplausos e elogios soam negativos. Olho o meu rosto e sinto ele feio, deselegante. Parece que estou furtando o espaço dos outros, que muita gente mais competente do que eu deveriam estar no meu lugar e que, por eu me impor, fiz as coisas acontecerem de modo perverso, pondo tudo a perder. - Isso é complexo de inferioridade política? - É de inferioridade, sim. - Isso tem um lado bom, pois não há arrogância, mas sim humildade, ainda que excessiva. Por que não te dedicas mais à política prática? Pode ser uma saída para deixar de lado esses fantasmas do passado. Estudar política seria outro modo. Bom, mas já estamos entrando nas propostas solutivas, na PS. - Pedro, vamos nos adiantando, pois o tempo está passando. - Certo, Ives, vamos em frente. A tua proposta solutiva é me aprofundar na política prática e na teórica? - Mais ou menos isso. Acho que o teu problema é traumático, de um político traumatizado pela própria política da época. As vítimas precisam ir ao lugar do crime e, se puderem, olhar nos olhos do bandido para, vivenciando o problema, começar a solução do trauma. Os tempos mudaram muito, meu amigo; não há mais necessidade alguma ter os medos que eram funcionais há tanto tempo atrás. E, quando digo que os tempos mudaram, isso significa que os métodos de encarar as mesmas coisas precisam se atualizar, mudar. - É; não é, Pedro? Preciso mudar meus pontos de vista! Como fazê-lo? - Eu não sei, Ives. Acho que a postura é mental, também. Tens que enfiar na cabeça que os tempos mudaram e que não vais ser punido por agires ostensivamente na política. - Fazer um papel meramente coadjuvante acho que não é a saída; gostaria de agir de modo incisivo na direção das coisas políticas. - Dá, como se diz, umas beliscadas de início e, pari passu, vai te aprofundando, te enfronhando nas coisas. Começa como em sopa quente, pelas bordas. Afinal, tu não és um iniciante. - A política é uma eterna iniciação; cada novo interlocutor é uma nova aprendizagem política. Cada cabeça é uma sentença, literalmente; todos julgamos tudo continuamente. O ser humano é um juiz por natureza, dos seus próprios atos e dos atos dos outros. Não é à toa que inventamos essa técnica chamada Direito. - Noutro dia vamos conversar sobre isso; adoraria tocar no assunto e brincar sobre a árvore abstrata, genealótica, alegórica do Direito, tratando-o como pessoa, humanizando essa coisa. - Vamos. Por ora ficamos por aqui. Foi boa a conversa. Melancolia e depressão são, de fato distintos. A sua confusão não é coisa boa. Valeu pelo método que tocamos, amigo. - Amigo é para essas coisas. Vem, que tem!


Conto 98, de 23/09/2000, sábado

Genealogia do Direito João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Ives, dizem por aí as mas línguas que a política é a mãe do direito; se é, fico pensando em quem seria o pai. - Se a política é a mãe, a violência deve ser a avó, a mãe da política, pois é mulher e está sempre garantindo a eficácia de um tipo específico de política, seja ela hegemônica ou não na sociedade. A política da Ditadura Militar evidenciava isso com fuzis e metralhadoras nas ruas de todas as cidades; os inúmeros quartéis em todos os cantos do país demonstram isso. - E quem seria o pai? Insisto na pergunta. O império, seria o império? - Não creio. Acho que temos dúvida quanto à paternidade do direito; quanto à mãe e tia, acho que temos consenso. - Não seria o consenso o Pai da Política? Sem consenso, ainda que nas internas, do grupo que faz a política majoritária, não haveria Direito que se sustentasse. Acho que a política e o consenso são mãe e pai do Direito. - A violência seria a sogra do Direito, nessa árvore genealógica. - E o marido da violência teria que ser o seu oposto, também? - Acho que sim; o marido da mãe violência seria o povo. Que viagem, essa, hein? - Povo e Violência são os pais da Política; o Consenso e a Política geraram o Direito. Pode ser que o Império seja o amante eterno da Política. Daí porque o Consenso e o império sempre estão em oposição. A Democracia, bom, acho que a democracia é a amante eterna do Consenso, nessa família degenerada. Vou por em um quadro isso tudo e vamos visualizá-los melhor.

Violência Império<=> Escrita

Povo Política

M?

P? Consenso

Direito

<=>Democracia Fala

- O Império ou Arbítrio, é o padrasto do Direito; a Democracia é a madrasta do Direito. Somente a Política e o Consenso são os pais legítimos do Direito. O Consenso é amante da Democracia; a Política é amante do Império. A Violência e o Povo são os avós maternos do Direito. E quem são os avós paternos, nessa árvore alegoricamente genealógica? O Direito é filho único da Política com o Consenso? - É, é filho único. A raça termina no Direito, que já não terá mais filhos. Agora, nada obsta que a Política tenha filhos com o Império e que o Consenso tenha filhos com a Democracia. Seriam os irmãos do Direito. Agora, a relação do Direito com o Império é quase sempre muito conturbada. A relação do Direito com a Democracia, pelo contrário, é de uma amistosidade bárbara. Não é de se duvidar que o Direito enxergue na Democracia uma segunda mãe; o que já não acontece com o Império, ou, se isso é possível, vê no Império um mau pai, severo, porém eficiente. - E vou em frente. Acho, mais; acho que as relações do Direito com o Império lembram muito a vó Violência e a relação com a Democracia lembram muito o avô Povo. Aliás, de se crer, nessa fantasia ou nova mitologia moderna, que Violência, ainda viva, acreditasse que o Direito seria um filho melhor se o pai fosse o Império, e não o Consenso, como aconteceu. Diferentemente pensa o Povo, para quem a mãe do Direito deveria ter sido sempre a Democracia, e não a sua própria filha, a Política. Política e Democracia sempre foram grandes amigas, porém suas relações nunca foram muito fáceis. Agora, o Consenso e o Império nunca foram amigos, mas sempre se admiraram pela força que conseguiam reunir em se aproximando dessas outras pessoas. - E o Consenso nunca se deu conta dessa paixão interna da Política pelo Império? Nenhum marido é tão tapado que não perceba alguma coisa. - Acho que pode até ter percebido, mas sempre, ingenuamente, acreditou que podia fazer melhor do que o Império para satisfazer os desejos da Política. Ademais, com a Democracia por perto, por que se preocupar com o Império? - Ah, mas é preciso ver que o Império tem o apoio de Violência, e isso não é pouco. Entretanto, a Democracia sempre contou com o apoio do Povo. Esse sempre viu naquela uma segunda filha.


- Mas, se a Política amava tanto o Império, por que foi se casar com o Consenso? E, por que o Consenso, que amava tanto a Democracia, foi se casar logo com a Política? - Acho que a Política e a Democracia, grandes amigas, tinham muita coisa em comum e eram parecidas; assim, a escolha do Consenso não deve ter sido fácil, mas, pressionada pelo Povo e por Violência, teve de fazer a sua opção. O Direito, filho dessa relação, é prova de que ambos, apesar de preferências por outros, amavam-se muito. Assim, nasce o Direito, amado por todos, com influência de todos esses personagens históricos. - Continuando a fantasia. O Império e a Democracia, que não são pais do Direito, de certa forma se acham e se portam como tais, por isso, estão sempre por perto. E, sem dúvida, de longe, os avós Violência e Povo, estão atentos a tudo. O Direito é o herdeiro da fortuna dos avós. Os seus, pais, bom, esses não têm nada; só são os herdeiros daqueles. Acho que o Direito nunca conheceu ou soube quem são os pais de Consenso, seus avós. Isso é um mistério até hoje. Uma coisa é certa, o Consenso é muito mais jovem do que a Política. - Ives, a alegoria está ótima. Acho que é isso mesmo. Temos uma imagem familiar do Direito e a posição genealógica da Política, que está no centro de tudo. - O centro de tudo é o Direito. A Política, sua mãe é, como todas, uma serva e tudo faz pelo filho. Severo é o pai; não é à toa que o seu nome é Consenso. A Política está na vida do Consenso assim como o Consenso está na vida da Política. É nessa transa que surge o Direito, seu filho primogênito. - Ives, A Escrita e a Fala são irmãs do Direito ou pretendentes enamoradas? Acho que a Fala é filha da Democracia com o Consenso e que a Escrita é filha da Política com o Império. Agora, nada obsta que ambas sejam apaixonadas pelo Direito; afinal de contas, pode ser que o Direito não saiba que sejam irmãos. - Acho que não são filhas, mas sim estranhas que se aproximam do Direito, buscando disputá-lo; ambas são pretendentes à sua mão. Querem ser noras do Consenso e da Política. A Escrita é muito parecida com o Império e poderia até se passar por sua filha, mas não é e não pode sê-lo. Vou dizer o porquê? Porque o Império não pode ter filhos com a Política enquanto ela viver com o Consenso. Se divorciarmos os dois, aí, sim, o direito terá a Escrita como irmã. O mesmo deve suceder com a Fala, pois o Consenso ainda vive com a Política. Pedro, se houver divórcio, o Consenso se junta com a Democracia e a filha pode ser filha dele, sem problema algum. - Ora, Ives! Ainda que a Política seja casada com o Consenso, na maior parte do tempo estão separados, parecem até que nem vivem juntos; acho até que dormem em camas separadas! Cada qual faz as suas coisas, independentemente do outro. Não é à toa que apareceram esses dois, um de cada lado do polo da relação. - Vamos especular, Pedro. Se Direito casa com a Escrita, teremos herdeiros totalmente diferentes. Veja o exemplo romano-germânico. Se casa com a Fala, o papo é outro; estaremos no seio de um modo de ver anglo-americano. Seus filhos serão, por assim dizer, qualificados: o Direito Escrito e o Direito Falado. Tudo isso, uma grande família! Dois irmãos com muita dificuldade para dialogar. Quem sabe isso seja fruto de uma origem duvidosa, sem se saber se a Fala e a Escrita são ou não irmãos. - O Direito Escrito nasce surdo e o Direito Falado nasce cego! - Atrofiados, mesmo! Muito atrofiados. Doentes em suas relações, por assim dizer. - A convivência dos dois pode auxiliar na visualização melhor das coisas. - Chega! Chega! Vamos mudar de assunto. Não agüento mais essa família. Deixemos o Direito e a mãe Política de lado. Vamos falar sobre coisas mais terrenas; abandonemos essa metafísica braba! - De acordo.

Conto 99, de 24/09/2000, domingo

Reconsiderando opções João Protásio Farias Domingues de Vargas

-

"The truth it 's out there". Inveja profissional, Mônica. Estou reconsiderando opções, João Carlos. O passado já era para nós, mas não nós para o passado. Precisamos reconsiderar nossas opções, João Carlos.


- Por que, então, a fala em estrangeirismos! Ora, a verdade está lá fora! O que queres dizer com isso? - Quero dizer simplesmente o que estou dizendo. Queres que cite Shakespeare? Entre o céu e a terra há muito mais coisas do que nossa vã filosofia imagina. - Parábolas! Mais parábolas! Sempre parábolas! Não dá para falar direito? Te custa muito isso? Vamos, Mônica, diz para mim que te é muito custoso falar de um modo comum, sobre coisas comuns, para pessoas comuns como nós! - E o que é isso de inveja profissional? - Bom, estava me lembrando do pastelão americano cuja música compõe a abertura e leva esse nome. É algo assim! Diz " o governo nega ter conhecimento...", algo assim! Murther é o protagonista e está sempre tendo de provar que está no caminho certo, apesar de todo o descrédito de seus colegas policiais. Sua colega de trabalho e fiel escudeira é a única que sempre está do seu lado, inobstante o ceticismo com que encara fenômenos sobrenaturais. Em geral, crente é a mulher; no caso, é o inverso o que acontece. Crente é o homem. Acho que o sucesso da dupla gera uma inveja profissional em seus colegas! Agora, sobre o "reconsiderando opções", Mônica, sobre isso eu quero ouvir. Opções nossas ou suas? - Minhas, nossas, de todos. Reconsiderar opções é uma atitude metodológica de revisão de posicionamento diante de uma tomada de decisão. Por vezes, o quadro político muda e temos de mudar o nosso comportamento, tendo em vista as opções que temos pela frente para garantirmos o sucesso do nosso empreendimento. Por exemplo, pode ser que tenhamos nos enganado na estratégia adotada, pela própria mudança dos fatos. Ela poderia estar correta no início, porém, com o dinamismo histórico, temos de mudar o procedimento e, muitas vezes, tomar rumo em outras direções. - E o que tem isso a ver conosco, Mônica? - Tem tudo a ver. Afinal, dizer que o passado já era para nós, mas não nós para o passado para nós, é chover no molhado. É dizer o óbvio ululante. É claro que passado é passado e que todos os seres vivos serão, um dia, também parte exclusiva do passado. História é isso! É que nem " o hoje já é o amanhã que já foi ontem". Entretanto, serve para nos dar conta de que precisamos fazer alguma coisa no agora, no presente, para mudar o passado que virá, o futuro do presente, que é um tipo de passado. "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer", dizia Vandré, naquela época e se tornou uma música símbolo de resistência política. É por isso, ainda, que o que estou dizendo faz sentido. Reconsiderar opções é um modo de construir o presente e, desse modo, também o futuro e o passado, pois essas três categorias temporais estão intrinsecamente ligadas de uma forma necessária. - A verdade está lá fora é quase apelar para o sobrenatural; nada a ver com o teu ceticismo metodológico. - Acho que não. A expressão pode fazer esse sentido para ti, em função do filme "X File". Para mim, não; quer dizer que a verdade não está aqui dentro de nós, mas sim lá do lado de fora de nós mesmos. Trata-se de um postulado de cientificidade, ainda que não nos dê grandes satisfações emotivas. Se é isso o que se procura, melhor alcançar a fé religiosa, que terá mais proveito. Ciência é feita para os que desistiram de crer nos dados positivos; a metafísica é adágio e bálsamo dos místicos. Não quero dizer que tu sejas um místico, mas, se seguires esta clareira exposta, pode ser que chegues lá. Cuidado com o que desejas, pois podes consegui-lo! - Agora estás agredindo, Mônica. - Vamos parar a conversa por aqui. Afinal de contas, no que nos levaria esse papo? A nada. Eu quero falar e tu não queres escutar; tu queres falar e eu não quero te escutar. Vamos ouvir música? - De que tipo? - Sei lá; clássica, pode ser? - Que chatice; profiro pop local. - Que gosto! Não gosto de pop local. Orquestrada? - Melhorou. De trilha sonora de filmes? - Sim, pode ser. Põe aquela do filme "Carruagem de Fogo". - Começamos a nos entender. Vinho, licor ou cerveja? - Café. - Café, não, Mônica. - Ora, João Carlos, sabes muito bem que gosto de café e não quero beber a essa hora, cinco da tarde. Mais tarde, quem sabe... - Hoje é sábado; qualquer hora é hora. - Não. Mais tarde, está bem? - Está. Eu prefiro cerveja. Te importa? - À vontade; o fígado é seu. Os pulmões também. - Obrigado por lembrar disso. Agora, um beijinho doce? - Doce, não; um beijinho só. - Pode ser. É isso o que chamas de "reconsiderando opções". - É. De certa forma é. Consenso na reconsideração de opções é sempre uma boa. Tem


que ceder um pouco para que as coisas possam acontecer. - É, é preciso ceder um pouco. Aqui, Mônica, quem sempre cede sou eu. - Não começa, João Carlos. De vítima de novo, não! Estou cheia desse teu vitimismo. E agora não tem nem beijinho, viu! - Retiro o que disse. Reconsidero a opção. - Assim fica melhor. - Bem melhor. E, o pior, é que foi doce. - O que foi doce? - O beijo,... está sendo doce. - Ah, bom. Que seja! - Isso era tudo o que eu queria. Viu como é muito pouco? - Pouco? Isso é muito para ti! É demais, até. - Pode ser. Mas, que é muito bom, é. - Cala a boca, senão eu paro de... - Fechei.

Conto 100, de 25/09/2000, segunda-feira

Gênio do rio João Protásio Farias Domingues de Vargas

Milla e Jucá estão conversando na beira de um rio, sentados em algumas pedras. De óculos de sombra, sem camisas, observam a correnteza das águas. - "The green mille". - Não são as palavras. É toda a abordagem. - O corredor da morte, como chamam em certos Estados norte-americanos. Não estou nesse corredor. - Nem eu. O que eu estou dizendo é que não são as palavras apenas o que nos incomodam, mas sim a abordagem toda, com seus gestos braçais, faciais, de entonação de voz, de local, ambiente, tudo. Não estou te condenando em nada. Quem sou eu para te julgar, meu amigo Jucá! Nem quero que me julgues. Não faças com os outros o que não queres que façam para contigo. - Acho isso correto. Há muita gente por aí que se confunde com juiz, que tem o direito de processar e julgar sem que seja processado e julgado junto. Todos parecem juízes e não aceitam que sejam processados e julgados no mesmo processo em que julgam! Esses juízes são, como dizia Fernando Pessoa, no poema "Linha Reta", todos eles são e sempre foram príncipes na vida. - Grande Fernando Pessoa! Era quatro ao mesmo tempo, né? - É. Eu nunca gostei dele ele mesmo. O mais apreciado, o mais próximo do meu gosto era o Alberto Caeiro. - Eu gosto mais do Ricardo Reis e suas odes. - Arre! Não gosto do Pessoa Ricardo Reis; gosto mais do lado romântico e angustiado dele, nada parnasiano! - Gosto é gosto, não se discute, Milla. - Essa é boa. Agora vai dizer, Jucá, que futebol e religião também são indiscutíveis, pelo simples fato de estabelecerem preferências muito particulares de cada indivíduo. - O medo de perder tira a vontade de ganhar, meu amigo. Estética, Esporte e Religião se discute sim e muito. - Esse binômio é muito interessante: Medo de Perder e Vontade de Ganhar. Acho que está presente em todas as coisas. - Está e é apropriado ao nosso papo agora. - Não vejo como. - Eu explico, Jucá. Se digo que gosto, time e religião não se discute, pois a preferência diz respeito aos valores pessoais, estou dizendo que somente há arbítrio nisso; que só há vontade, sentimento, e pouca racionalidade. Que não há razão que oriente a escolha, mas sim apenas paixões. Se quero discutir o gosto contigo, tenho de avaliar se o meu medo de perder alguma coisa é maior ou menor do que a minha vontade de ganhar o que tenho em mente. Pode ser que uma briga sem saída racional possa ser o resultado final e, com isso, entendamos que o medo de perder espaço de aceitação perante o outro seja maior do que a vontade que temos de ganhar na discussão, dizendo que o nosso gosto é melhor do que


o do outro. Assim, abandono a idéia de disputa e mudo de assunto. Ganhou o medo de perder. O contrário também é possível. Muitas vezes deixar as coisas piores pode ser o nosso objetivo. - Entendi. E, agora, qual é a tua posição no binômio? A última? Acho que sim. - Não vou entrar nessa discussão, pois entendo que estás posicionado na vontade de ganhar e, eu, no medo de perder. - Acho o inverso. - Não é o que me parece. Agora, dou um dedo para não entrar em uma briga mas, uma vez nela, dou tudo que tenho para não sair dela. - Comportamento obsessivo, Milla. - Achas mesmo? Não me parece. É um ditado gauchesco muito conhecido. Estava lembrando do saudoso Jaime Caetano Braun. Sabes que eu o conheci tempos atrás? - Tu me disseste muitas vezes; todas as vezes em que entra em pauta a política, o caudilhismo, o populismo, tu me lembras dele. - É, ele era ligado a eles, até onde sei; mas, não foi sempre assim. Ele tinha lá suas reservas. - Acredito. - Medo e vontade; essa é muito boa, Jucá. Deverias levar mais a sério o binômio. Quem sabe poderia até fazer mais coisas e melhores, se o tivesse sempre em mente. - O binômio me lembra uma gangorra: pende para um lado e para outro, continuamente. Como um pêndulo, indo e vindo, Milla. O Medo de perder está á direita e a Vontade de ganhar, à esquerda; e digo isso sem nenhuma conotação política. - Acredito, Jucá; sei que a tua intenção é de elogiar; mal educada, mas boa. - Acho que é como um relógio de areia. Se colocamos no alto a Vontade de Ganhar, ela vai diminuindo até que o Medo de Perder esteja com tudo. - Nesse momento, é hora de virar de novo a ampulheta e começar a construir a vontade de ganhar. Não precisa deixar com que uma termine inteira com a outra; encontra um ponto de equilíbrio e vira, em tempo certo, novamente, a coisa, e vai em frente. - Olha aquele peixe, Milla; que grande! Na flor d'água. - Onde? - Ali, à esquerda, perto daquele galho emerso. - Não consigo ver... - Acho que já foi. Perdeu a hora. Estavas desatenta. - E, tu, seu safado, como sempre, atento a tudo e a todos, não é? - Pode ser; que culpa tenho eu de não conseguir sair da minha realidade? Sou assim. - Assim, Gabriela na vida? "Eu sou assim, fui sempre assim, Gabriiieeeelaaaa", como na música. - Nada a ver. Não sou gabriela, não. Eu sei que as pessoas e as coisas mudam. - Acreditas que Heráclito dizia que não se pode banhar mais de uma vez em um mesmo rio? - Ah, a dialética heraclitiana! Sei, sim. Mas, os números são sempre os mesmo. Dois mais dois serão eternamente quatro! Isso a dialética dele não explica. - Não explica mesmo, pois a dimensão dele é a histórica, não a estritamente lógicomatemática. Agora, nem sempre o homem soube ou determinou que dois mais dois são quatro. Inclusive, há matemáticos que entendem que não é exatamente quatro; que é um pouquinho mais ou um pouquinho menos. Há matemáticas inexatas, se quer saber; há, inclusive, números imaginários! - Não trova, Milla. Ora, matemática inexata, números imaginários. Agora só falta falar em família de números. - Há os números primos! - Nada a ver com família. - Mas o nome indica proximidade, parentesco, não? - É diferente, Milla. Vamos pescar um pouco? - Não estou com vontade. Quero ficar só observando as águas, com os pés molhados, dentro d'água, como agora. É relaxante. Se quiseres pescar, te faço companhia. - Tá bom. Vou pegar as linhas e iscas; já volto, tá? Ah, quer algo para beber? - Traz cerveja; quero uma das pequenas e bem gelada; copo de metal. - Mais alguma coisa, madame? - Só isso, garçom, por ora. Pode ir agora; o que estás esperando? Estou morrendo de sede e torrando nesse sol. - Te cobre, se necessário. - Não quero; só estou com sede. Tiveste uma idéia genial. Gênio, vai e satisfaz o desejo do teu amo! - Sim, ama! Gênio saindo para satisfazer a vontade de sua alteza real... - Lindo! - Interesseira! - Acha que não te acho bonito? Te enganou, gatão! Eu te-a-do-ro! Ouviu? - Não. A história não permite que amas amem gênios, pois gênios só satisfazem três pedidos e depois estão livres.


- Livres da ama satisfeita, mas não da garrafa! - É verdade. Já volto com as cervejas! - Agora deu vontade de pescar, também, Jucá. Traz vara prá mim também. - É prá já, ama da garrafa! - Gênio do Rio! - Gênio do Rio... Que seja! Milla ficou observando a correnteza e seus objetos. Jucá estava feliz e queria pescar. Uma cerveja ajudaria o bronzeado.

Conto 101, de 26/09/2000, terça-feira

Quadrinhos de Zoë João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Zoë. Bonito nome. Diz-se "zoé"? - Isso mesmo. Ah, isso eu admiro. A sua motivação é a própria face do ódio. - Não do ódio; da ira, Zo-é - disse Bohrer, debochadamente, soletrando o nome. - Ódio, ira, é tudo a mesma coisa Tem o mesmo fim, a violência, a destruição do outro, ainda que simbolicamente. - O que tu entendes por vingança simbólica, Zoë? - Manja o bonequinho da prática Vodu? Isso é violência simbólica; uma forma meramente visual dela. As palavra violentas podem configurar agressão mesmo e não meramente simbólica. O desenho animado demonstra um tipo de violência que se apresenta à base de símbolos; a pessoa não sofre a violência diretamente, mas aprende com ela a ser violento. Entendeu, Turco? - Entendi, Zoë. Gosta de desenho animado? - Eu tenho discussão nesse tema. - É? Me fala sobre isso. - O que quer saber? Há muitas formas de interpretar desenhos animados. Eu gosto mais de quadrinhos. E você? - Eu li muito Tio Patinhas, Batman, Demolidor, Hulk, Zé Carioca, dentre outros. - Vamos falar sobre o Tio Patinhas. Mas, antes, vamos convidar a Valquíria para participar, pode? - Claro. Vai lá traz ela para cá. Afinal, é só uma conversa sobre coisas infantis. - Valquíria! Valquíria! Aqui! - gritou Turco para a moça que ia passando, no balanço de seu gracioso andar. - Oi, gente. Com vão? E, aí, Turcão, o que é que manda? Não me apresenta a tua amiga. - Ah, Zoë, essa é Valquíria, minha amiga. - Valquíria, muito prazer. - O prazer é todo meu,... Como é mesmo o teu nome? É difícil de dizer; és estranho.... Zôi? - Oi, Valquíria. Posse te chamar de Val? Acho tri elegante o nome Val. É Zoé, foneticamente falando. - Claro que pode. Aliás, todo mundo me chama de Val, exceto o Turcão. Zoë, é um prazer te conhecer. De onde vem o teu nome? - Ah, é uma longa história. Até onde sei, o nome tem origem austríaca. Não tem tradução para o português. Ele é pouco usado. Me deram o nome em homenagem à minha bisa que morava lá e não veio para cá. - Que legal! Acho bonito o nome "Zoë". É um dos mais bonitos que conheço. Do que falavam? Podem continuar o assunto. - Na verdade, Val, estávamos jogando conversa fora. A Zoë estava por falar sobre uma interpretação das histórias em quadrinhos do Tio Patinhas. Quer ouvir? Pode ser um papo chato, meio sociológico, meio lingüístico, meio semiótico, meio político. Algo assim. - Tá, eu quero ouvir. Mas, que calor, gente. Vamos tomar uma cerveja? Está nos convidando o tempo para uma loirosa! O que eu tenho bebido nesses dias é uma monstruosidade. Engordei três quilos com essa agenda social pesadérrima. - Manda, aí, Zoë - disse Turco, olhando o canto do cabelo longo e loiro de Val e os olhos, alternadamente, mas com discrição, da outra. - Vocês, por acaso, têm um caso? - perguntou Zoë aos dois.


- Não! - apressou-se Val. - Tivemos um, no final do ano passado, que não durou quase nada, não é Turcão? Somos apenas amigos; muito amigos. Por que pergunta? - Por nada; só para saber. Adianto. Não estou interessada nele, a não ser como amigo, também. É sempre bom se precaver nessas horas; nunca se sabe se pode ser interpretada como dando em cima do namorado das outras... - Tranqüilo. Não temos nada - repetiu Val. - É isso aí! Toca o barco, Zoë, que estou curioso! - disse Turco, descruzando as pernas e chamando o garçom, para a cerveja de Val. - O Tio Patinhas é a imagem judaico-americana do homem de negócios que se deu bem na vida, reuniu grande patrimônio e se tornou avarento. Tem uma caixa-forte cheia de dinheiro onde ele nada sempre que quiser. A moeda "número um", a primeira, na ordem cronológica, é o símbolo de sua capacidade de acumulação e multiplicação. Não casou para não dividir fortuna. A sua convivência é com o primo pobre, o pato Donald, que tem três sobrinhos, Huguinho, Zezinho e Luizinho, bem como com os irmãos metralhas, os bandidos fugitivos que estão sempre querendo roubá-lo. Ele também se relaciona com a sua avó, a Vovó Donalda, que mora no campo, na roça, uma interiorana. Afora isso, há, ainda, a sua relação mística, com a Maga Patalógica e com a Madame Mim, que estão sempre atrás, não de quantidade, mas da qualidade da moeda número um, a mais querida de Patinhas, a quem ele atribui poderes mágicos e responsável pelo seu enriquecimento. - O Donald, primo pobre, é apaixonado pela pata Margarida, que também faz parte do círculo de relações do Tio Patinhas. - Tem o Peninha, que é Jornalista, também - disse Val, complementando a fala de Turco. Eu gostava muito do Peninha, quando era pequena. - Todas essa personagens ganharam revistas próprias, com o tempo. Ladrões, bruxas, parentes pobres, parentes do interior, empregados e enamoradas de parentes fazem parte do caldo de cultura dos enredos dessa modalidade de quadrinhos. Patinhas é um velho geniático, ranzinza, pão-duro, avarento, que está sempre às voltas com os problemas desses interlocutores, quando não está tramando algum modo de aumentar a sua fortuna ou de defendê-la contra os ataques dos Irmãos Metralhas e das Bruxas Maga e Mim. - A julgar pelo modo, acho que o Patinhas é um banqueiro - disse Turco. - Ele é um investidor monetário. É o símbolo de economia e acumulação norteamericano. Ele não dá esmolas, mas não tem vergonha de pedi-las a quem quer que seja. Muitas vezes se faz passar por mendigo para aumentar a sua fortuna. O Pato Donald está sempre duro e pedindo emprestado para o Tio Patinhas, que sempre nega ajuda. É o caso dos ricos que negam solidariedade econômica aos parentes pobres; que se danem; que façam dinheiro, como eu fiz, soam as suas afirmações. Todos são animais, patos. Pato é um animal que, na história inglesa, era a caça predileta dos nobres, juntamente com a raposa. De certa forma, os norte-americanos querem dizer que, mesmo sendo os patos antigos dos ingleses, agora são patos ricos que construíram sua própria sociedade e independência total, inclusive da língua que falam. - O engraçada de tudo isso, Zoë, é que a riqueza do Patinhas está dissociada da política, coisa que a realidade demonstra que é muito diferente - disse Val, olhando os dois, bem pertos, lado a lado. - Isso demonstra que não és apenas bonita, Val - disse Zoë, olhando de forma fisgada Turco. Walt Disney deixou de fora o discurso político, mas não sempre. Quando colocou seus personagens no mundo político, foi para demonstrar que investir energias em política é perda de de tempo. Na verdade, em política institucional, esses quadrinhos não apenas são despolitizados como também ensinam uma visão negativa e deturpada da política, como sendo um modo de levar vantagens em detrimento exclusivo daqueles que nela fazem parte. Imagina só! Disney teria politizado milhões de crianças, principalmente no Terceiro Mundo, se seus personagens se demonstrassem interessados em política e demonstrasse, nos gestos, que a política traz bens sociais importantes para qualquer indivíduo. Se ensinasse democracia, estaria lutando contra os interesses dos empresários de seu país que investem verdadeiras fortunas nesses países pobres, pagando muito pouco pela mão de obra que usufruem. Ele não mostra o mundo social de modo íntegro; fraciona a vida e joga as pessoas na vida de um cotidiano que só faz sentido em cima da banalidade de pequenas aventuras sem fundamento algum! - Mas, há fundamento moral em vários quadros - disse Val, interessada. - Ah, a socióloga se manifestando... - Como sabe que sou socióloga, se estudo direito? - Turco me falou outro dia. - Ah. É, sou socióloga, sim; até mais do que jurista, o que é coisa de futuro. Eu conheci o Turco lá no campus. Ele fazia antropologia, naquele tempo; uma ênfase do mesmo curso. Filósofo é o Turco, formado e tudo. - Ah, é? Isso eu não sabia, Turco. - Nem tudo é dito, Zoë; agora já sabe. Antes, não havia perguntado. E tu, tem algum outro curso? - Eu sou jornalista formada aqui mesmo; agora, como sabem, estou fazendo, terminando o meu segundo curso, economia. Vamos voltar aos quadrinhos? E a cerveja da


val, não vai vir? - É; vamos chamar de novo o garçom. Garçom! - gritou, abanando, para o homem que estava lá no fundo. Ele veio, anotou o pedido e voltou. - Bem, como dizia... Ah, sim! Claro. Todas as histórias possuem fundo moral; todas, sem exceção. E isso porque toda expressão de comportamento humano ou imitativo, como acontece nas fábulas, expressa cunho moral; não há como fugir disso. É uma realidade da vida irrefutável. Querem saber que tipo de moral eles passam? Quem saberia melhor isso seria um filósofo, não uma jornalista-economista - disse, olhando Turco. - Não tenho leitura nesse campo. Quando lia esses quadrinhos, a leitura era prezerosa, não dedicada. Agora, lembro que em várias passagens havia tipos de comportamento preconceituoso. O Patinhas era preconceituoso contra os pobres, representado pelo Pato Donald; era afetuoso para com os sobrinhos, mas não poupava o primo de críticas sobre sua indisposição para acumular riqueza. - É bem isso, Turco. A moral primordial do Tio Patinhas é liberal clássica, típica da fase do metalismo. A obsessão dele pelo ouro demonstra isso. As legendas escrevem os cifrões ($ $) como sendo os seus próprios olhos, diante de uma oportunidade a ser explorada. A moral acumulatória é típica do protestantismo luterano, muito bem retratada pelo sociólogo Max Weber, que fez estudos sobre isso para demonstrar o avanço econômico e acumulativo patrocinado pela moral protestante, não católica, que vingou naquela parte do mundo. Uma interpretação econômica da religião ou da ideologia religiosa para o capitalismo da época? Pode ser. - Isso influi na educação das crianças, não é? - E como influi. Acontece que a maioria não se identifica com o Patinhas ou com o Donald, que nas fábulas representam os adultos; elas se identificam com os sobrinhos deles. Antes eu disse que eram filhos do Patinhas; não são. Não existe pais dos três. Eles são sobrinhos de Patinhas e Donald, netos da Donalda. Uns peraltas que estudam, estão sempre juntos, não têm pais para incomodá-los e estão sempre inventando moda e se dando bem. Com isso, dizem aos leitores, que, mesmo sendo sobrinhos pobres, possuem tio rico. Não moram com esse, mas com o tio pobre. São alimentados por eles e, durante o tempo todo, estão em férias ou coisa parecida. Eternamente em férias. Não é esse o sonho das crianças? Pois bem, isso é satisfeito plenamente pelos quadrinhos. Veio a cerveja. Depois vieram outras e a tarde se foi. Era noite e o trio continuava conversando. Estavam alegres e falavam sobre diversos assuntos, sem se preocupar com as transições. Qualquer conversa era papo. Val se despediu e foi, ficando apenas Zoë e Turco. - Bom, vou indo, também - disse Zoë. - É cedo, Zoë; vamos a um outro lugar, comer alguma coisa. Estamos há muito tempo aqui. - Onde? - Em qualquer lugar. - Qualquer um? - Sim. - Pode ser a minha casa? Lá temos comida, bebida e ambiente mais agradável. Assim eu não preciso ir embora quando terminarmos de conversar. - Claro, Zoë; será um prazer conhecer a tua casa. Quando queres ir? - Agora. - Ótimo. Vamos fechar a conta. O bar estava fechando as portas quando ambos saíram, quase cambaleando. Entretanto, seus rostos não demonstravam nada além da serenidade que a conversa havia propriciado.

Conto 102, de 27/09/2000, quarta-feira

Parecia um sonho João Protásio Farias Domingues de Vargas

"Seu arrependimento não me interessa, só o seu comportamento", dizia a voz, do outro lado da parece. "Não me insulte levantando a voz", disse uma voz feminina. Marta estava, ouvindo isso, parou no corredor e encostou o ouvido na porta, para se situar melhor. A linha de diálogo era áspera, rude e incisiva. Era uma briga de pai e filha ou de marido e mulher. Marta não reconhecia a voz. De repente houve um barulho, como um quebrar de


vidros com um estampido forte. Era um tiro. Grelou os olhos e saiu correndo em direção às escadarias. Chegando ao quarto do irmão, bateu na porta baixinho, dizendo do mesmo modo o nome dele. - Miguel! Miguel! Abre a porta, por favor! Socorro! Abre a porta, mano! Continuou batendo, insistentemente, por alguns instantes, apavorada. O chambre branco estava entreaberto e os cabelos muito negros mal penteados. - Miguel, a porta. Abre, por favor. Está acontecendo algo no quarto da Kátia. Abre! Nisso uma voz fugidia se manifesta. - Está aberta; entra. Marta entrou e contou a história ao irmão. Ele vestiu a calça e saiu correndo em direção às escadarias. Em um instante estava diante da porta. - Kátia, é Miguel. Abre! Houve um longo silencia. Na verdade, não ouvira barulho algum além de sua própria voz. Movimentou a maçaneta e ela estava trancada. - Kátia! - disse mais forte. - Kátia! Abre a porta! Tu estás bem? Abre ou vou arrebentar! Tudo silencioso. Nisso, Marta já estava do seu lado. - Marta, vai até o quarto do pai e pega a cópia da chave desse quarto. Está na mesinha do lado do guarda-roupa, nos fundos. Vai! Vai rápido! Te manda, mulher. Marta desce correndo as escadarias. - Kátia, vou arrombar, se não abrir? Marta ouviu berros e tiros. Tu estás bem? Vamos, responde. Chegou para trás, dois passos e veio com tudo, jogando o ombro direito sobre o lado da porta mais próximo de onde fica a fechadura. A porta balançou um pouco. Estava chaveada. Repetiu o gesto e nada de abrir. - Marta! Rápido com isso! Marta estava subindo as escadarias quando ouviram um novo estampido. - É tiro -disse Miguel - mas não é no quarto. Vamos ver pelo lado de fora. Pode ser que seja no pátio, perto da janela do quarto dela. Desceram correndo as escadarias e ganharam a porta da frente. Pés descalços, Miguel entrou no gramado e fez a volta, perto da rede, ao lado sul. Costeou o oitão. Não conseguia ver nada. Lembrou-se de pegar a arma, mas era tarde. Tinha de ir assim mesmo. A noite estava um breu só; não dava para ver nada. - Marta, pega a arma! - gritou. - Onde está? - Deixa prá lá. Pega uma faca na cozinha, pelo menos. Vai, anda! Marta voltou a entrar na casa. Miguel chegou debaixo da janela do quarto do pai; acima ficava a do quarto de Kátia. Olhou para cima, para os lados, para os fundos. Não via nada. Tudo estava calmo. Acocorou-se em um canto, buscando ambientar os olhos na escuridão. Nisso vem vindo Marta, correndo, entrando no gramado. - Miguel, onde estás? - Pssssiu! Quieta! Aqui perto da janela do pai. Ela aproximou-se da parede e foi andando por dentro do canteiro de flores até tropeçar em alguma coisa. Caiu. - Ai, meu Deus! Que é isso? Miguel! Aqui. Tem algo no chão. Miguel veio correndo, já conseguindo enxergar no escuro. - Ah, meu Deus! É Kátia. Tá sangrando... Deus! Quem fez isso? Corre, Marta, prepara a mesa da cozinha, água e sutura. - Deus, maninha, o que houve? - disse trêmula, passando a mão no peito e sentindo o arfar quente de sangue escorrendo. - Levou um tiro, Miguel. - Vai, mulher; eu levo ela - disse, irado. Marta sai correndo, desatinada, com a faca na mão, em direção à cozinha. Não conseguia pensar em nada, a não ser no estampido e na voz. Não sabia de quem era a voz. Podia ser de Pedro, o namorado ou de outro qualquer. Miguel pegou o corpo no colo e foi correndo em direção à porta de entrada. - Fala, Kátia; fala comigo. Agora está tudo bem. Vai, fala...Diz que está tudo bem! Fala. Estava chorando. Gostava tanto da irmã. Ao chegar no claro, a grande surpresa. Ela não era ela. Era outra pessoa. Os cabelos estavam diferentes... - Marta, não é a Kátia. É outra pessoa! Olha! - disse, colocando o corpo sobre a mesa, já limpa. - Meu Deus, é a Boni! - exclamou. - Conhece a moça? De onde? - Claro, é a amiga da Kátia que vem aqui às vezes. Acho que tu nunca chegaste a ver ela. Ela ficava pouco. Uma vez ela ficou aqui de noite. É a namorada do Zezé, o filho do engenheiro que trabalha com o papai. - Do Zezé, aquele marginal? - É, do Zezé. Será que era ele no quarto da mana? Ela não está muito ferida. O tiro passou de raspão no braço, perto do ombro. Acho que está só desmaiada.


- Olha bem, mano e vamos chamar a polícia. - Estou olhando. Fez vistoria completa. Levantou o vestido, passou a mão no restante do corpo e nada além do ferimento visto. - É só isso. Mas, como ela foi parar no canteiro de flores? - Não tenho a menor idéia; a janela estava fechada. - Estava fechada sim, eu vi... Ai, tem alguém ainda lá em cima. Fica com ela aqui que eu vou subir. - Te cuida, mano! - Vou pegar a pistola! - Cuidado com isso; não vai fazer besteira! - Pode deixar! Subiu as escadarias correndo. No meio do caminho se deu conta de que a arma estava no andar de baixo. Voltou e entrou correndo na dispensa. Colocou a cadeira em frente ao armário e pegou uma caixinha de sapatos que estava no alto. Dentro, uma Parabela 9mm, inox. Apertou o botão e saltou o pente. Estava carregada. Desceu e voltou correndo às escada. Antes de subir, gritou. - Marta, pegou as chaves? - Não achei! - Droga, Marta; nem prá isso tu presta! Droga. Entrou correndo no quarto do pai. Estavam as luzes acesas. Abriu a gaveta do bidê e pegou o molho de chaves. Correndo, subiu as escadarias, gritando. - Se tem alguém aí em cima, é melhor sair. Estou armado e vou atirar, se preciso! Tudo estava silêncio. Colocou a chave na fechadura e... a porta estava aberta. Acendeu a luz e o quarto estava todo revirado, com a janela aberta. Foi correndo até ela e olhou para fora. Teve a impressão de ter visto um vulto correndo em direção à cerca da frente. Levantou a arma e mirou na imagem. Antes de apertar o gatilho lembrou de que poderia estar matando um inocente. Baixou a pistola. Olhou o chão e viu sinal de luta, de coisas quebradas. Na parede, o quadro predileto da irmã estava quebrado e furado. Um tiro fizera aquilo. Lembrou-se do banheiro. Andou alguns passos, abriu a porta e... - Marta, aqui... Corre! Ela tá ferida. Kátia está ferida - gritava. - Já vou, Miguel - disse Marta, deixando as coisas como estavam. Nem lembrou mais de Boni. Só pensava na imagem da irmã morta. Quando estava subindo as escadas, no segundo lance de contorno, vinha Miguel correndo com o corpo da irmã, toda ensangüentada. - Meu Deus, Miguel! Quem faria uma coisa dessas?! - Não sei e agora é o que menos interessa! Vamos botar a Kátia no sofá da sala. Chama a polícia e um médico, rápido. Vou ver a pulsação. Olhou o rosto e estava lívido. Encostou os ouvidos no peito, nada. Encostou o rosto perto do nariz e não havia sinal de respiração. O piso estava parado. Nenhum sinal de vida. Olhou a mancha e viu que havia um buraco na barriga da irmã. O tiro atingira o perto do umbigo. Rasgou a roupa e não estava mais jorrando sangue; pouca coisa saía. - Kátia! Kátia, responde! Mana!... Fala comigo! - dizia, abraçando o corpo mole da irmã. Miguel começou a chorar, a urrar de dor, como se ele mesmo tivesse sido atingido pelo mesmo tiro no peito. Gostava tanto da irmã caçula. - Eu mato o desgraçado que fez isso! Eu mato! - gritou. Marta veio correndo e se jogou no chão da sala. - Mana! Maninha, responde! Fala comigo... Não! Não! Kátia! Ah, meu Deus! Chegamos tarde... - É, chegamos. Chamou o médico e avisou a polícia? - Agora mesmo. Já estão vindo. Vou ver a Boni, na cozinha. Saiu soluçando. Quando chegou na mesa, Boni estava acordando, com as mãos na cabeça. - O que aconteceu? - perguntou, tentando se levantar. - Onde estou? Onde está a Kátia? Ela tá bem? Ah, meu Deus! Estou sangrando... - Calma, Boni. Tu está bem. Fica calma que o médico já está vindo. Toma um pouco d'água. - Não sei o que aconteceu. Me lembro que estávamos conversando no quarto quando entrou o Zezé, bêbado, com um revólver na mão, dizendo que ia me matar. Kátia dizia para ele parar com isso e, de repente, ele me deu uma coronhada na cabeça e tudo se apagou. - Então o Zezé estava aqui? - perguntou, atônica, Marta. - Estava. Ele entrou não sei como. Eram umas três horas da manhã, mais ou menos. Ai, que dor de cabeça! - Deixa eu ver. É, está sangrando um pouco, mas nada grave. Fica descansando aí. Vou pegar álcool e algodão. Marta saiu da cozinha e foi até à sala ver os irmãos. Miguel estava abraçado na Kátia, chorando baixinho e balbuciando algumas coisas. O rosto da irmã estava totalmente pálido, pendido para o lado, com os olhos semi-fechados. Bateu-lhe uma tristeza aquela cena.


Entrou no banheiro, encostou-se na pia e recomeçou a chorar. Olhou seu rosto no espelho e viu que estava uma verdadeira bruxa; olhos borrados, despenteada, roupa suja, rosto sujo de sangue. Uma megera. Abriu a porta do armário, pegou um frasco branco e um rolo de algodão brando e voltou à cozinha. Ao chegar, viu que Boni estava sentada na cadeira, olhar absorto, como que catatônica. - Ah, Boni, meu amor! Fica calma, tá? Fica calminha! É uma tragédia, mas temos de enfrentá-la - dizia chorando, enquanto embebecia de álcool uma mecha de algodão e passava levemente na cabeça da amiga. - Eu gostava tanto da Kátia! Aquele cafajeste! Ele vai ver só! Eu quero ele apodrecendo na cadeia ou morto! Ele vai ver! - disse ela, com raiva, brilhando os olhos. - Nós vamos nos vingar, pode deixar, Boni. Por ora, vamos deixar a polícia ver tudo e tirar as conclusões. Me conta o que aconteceu. - Eu e Kátia chegamos da Martinica, aquela boate nova do Centro, perto do Cassino dos Maçons, eram umas duas horas ou nem isso. Ficamos de frescura no quarto, conversando, bebendo mais um pouco, fumando e comentando a festa. Estava tudo bem, quando entrou o Zezé, de arma em punho. Estava irado, mas não comigo, como pensei, mas sim com a Kátia. Não sei o que havia entre eles, já que tinham terminado há um bom tempo e eu é que estava com ele há uma semana, mais ou menos! Ele parecia bêbado ou cheirado, algo assim. Eu falei qualquer coisa e ele veio prá cima de mim, com a arma. A Kátia saltou em cima dele e não vi mais nada. Ficou tudo escuro. - Como é que tu foi parar no canteiro de flores, Boni, do lado de fora da casa? - Não tenho a menor idéia; fui jogada ou caí. Algo assim. Estou com as costas toda doída. Parece que um carro passou por cima de mim. Ai, a cabeça... - Calma; calma. Relaxa. Preciso te contar uma coisa. Tem certeza de que está bem? - Tenho; conta. - Kátia está morta. - Ah, meu Deus - gritou. Levantou-se e saiu correndo em direção à sala, jogando-se sobre o corpo imóvel de Kátia, empurrando Miguel para o lado. - Amiguinha, amiguinha... - começou a chorar efusivamente, mexendo os braços e abraçando o peito de Kátia. - Não adianta, Boni. Ela morreu, será que não entende? Ela morreu! Deixa ela em paz. Ela tá ferida na barriga. - É culpa minha! É culpa minha! Marta chegou perto das duas e pôs-se, novamente, a chorar. Manoel levantou-se e começou a andar de um lado para outro, passando as mãos no rosto, nos cabelos e nas calças, como quem precisa tirar alguma coisa de dentro de si que está incomodando. A polícia chegou junto com o médico da família. O tenente foi logo observando o corpo, os sinais vitais, pedindo para as pessoas se afastarem e sentarem-se no outro sofá, onde faria algumas perguntas. Entra o fotógrafo legista e tira algumas fotos, de diversos ângulos. - Ali, Mitra, tira daquele canto também, onde tem gotas de sangue. - Como era o nome da moça morta? - perguntou, dirigindo-se aos três. - Kátia - disse Miguel. - Eu sou irmão dela. Ela é irmã, também e a outra é amiga nossa. - Eu sou o tenente Dutra e estou chefiando essa ocorrência. A polícia civil virá em seguida. Preciso fazer algumas perguntas. Muito bem Miguel, Kátia morreu no sofá? - Não, tenente. Ela morreu no banheiro do quarto dela, lá em cima. Eu a trouxe para baixo. Levou um tiro no abdômen... - Viu algo estranho na casa? - Eu vi, tenente - disse Marta. - Eu acordei de madrugada e fui ao banheiro do corredor de cima. Ao passar pelo quarto da Kátia, ouvi vozes. Colei o ouvido na porta e uma voz masculina estava falando áspero com a minha irmã. Dizia: "Seu arrependimento não me interessa, só o seu comportamento", a voz de homem. A voz de mulher disse: "Não me insulte levantando a voz". Acho que era a Kátia falando, ou a Boni. Depois ela conta o que sabe. Nisso eu ouvi barulho de coisa quebrando e um estampido. Começei a bater na porta para abrirem, mas não abriram. Gritei, desci e acordei o Manoel. Não conseguimos achar a chave e nem arrombar a porta. Fomos pelo jardim, ver a janela, pelo lado de fora. Estava fechada. Encontramos, no escuro, um corpo no chão. Era Boni, ferida. Trouxemos ela para a cozinha e estava ferida com um raspão de bala no ombro. Conseguimos a chave e, ao tentar abrir a porta, ela estava aberta. Manoel entrou, armado e viu um vulso correndo no pátio, em direção à cerca, do outro lado. Não atirou. Foi aí que encontrou a Kátia no banheiro, ferida, morta. Trouxe ela para baixo, para o sofá. Estava morta. Chamei a polícia e o médico. Vocês demoraram demais, demais, demais! Ai, meu Deus! Que tragédia! - Boni, é isso? - perguntou o tenente.- Está tudo bem, Boni? Pode me contar o que aconteceu? - Claro. Eu e Kátia saímos da boate e voltamos para casa de carro. Ficamos conversando no quarto, quando chegou, pelas duas-três horas da manhã, de surpresa, meu namorado, o Zezé; ex dela. Ele estava bêbado, irado, gritando e com um revólver na mão. Me deu uma bordoada na cabeça e acordei em cima da mesa da cozinha, com a Marta ao meu lado.


Depois vi a Kátia baleada no sófá, onde está agora. Isso é tudo que me lembro. - E tu, Miguel? Como aconteceu tudo isso. Foi como a Marta disse. Ela me acordou e eu fui correndo até o quarto da Kátia e ninguém respondia. Tentei arrombar e não consegui. Demos a volta na casa. Estava muito escuro. Marta encontrou Boni estirada no chão, inconsciente, no jardim. Tropeçou nela. Trouxemos ela para dentro e tentamos medicá-la. Chamamos vocês e o plantão médico. Kátia tinha perdido muito sangue e já não sangrava muito. Não tinha pulso e nem respiração quando botei ela no sofá. Antes disso, depois que trouxemos a Boni, eu peguei a chave de reserva no quarto do pai e subi. A porta estava aberta, tudo revirado e quebrado, a janela aberta. Do lado de fora eu vi que a janela do quarto tava fechada. Então, o bandido estava aqui, ainda, quando encontramos Boni. No quarto de banho da Kátia eu a encontrei estirada no chão e sangue espalhado por todo lado. Uma fotografia na parede recebeu uma bala, podem ver. É tudo o que sei. Ah, eu tive a impressão de ver, do quarto da Kátia, um vulto correndo no pátio, em direção à estrada. Ia atirar, mas resolvi parar. Pode ser que tenha saltado lá de cima ou que tenha saído pela porta, enquanto socorríamos a Boni. - Boni, onde posso encontrar esse Zezé? Como é o nome dele? - perguntou o militar. - Ele se chama Paulo Sérgio e mora na Rua Sete, esquina com a Pleno Garcia, no centro. Ele é filho de um amigo do pai deles - disse, apontando para Miguel e Marta. - Onde estão os pais de vocês? - O pai eu não sei onde está. A mãe está viajando e só volta sexta, no final da tarde. Foi visitar a vó, em São Bernardo. - Ele tem celular? - perguntou o policial. - Tem como entrar em contato com a mãe? - Claro. Posso ligar agora mesmo. - Então, liga. É notícia ruim, mas é importante que eles saibam e agora o que está acontecendo aqui. Miguel pegou o telefone e ligou o número do pai. Chorava muito e contou de chofre o que acontecera, apenas omitindo que a irmã já estava morta. Dissera que estava muito mal e que a ambulância estava a caminho. Disse que a polícia estava no local. Contou que o suspeito era o Zezé, filho do engenheiro amigo dele, bem como que a amiga de Kátia, Boni, estava com ela quando tudo isso aconteceu. O pai, estarrecido, choroso, irado, disse que já estava a caminho de casa. Recompôs-se um pouco e ligou o número da avó. Contou a mesma coisa para ela e ela disse que entraria na estrada imediatamente, afirmando que era uma irresponsabilidade o pai não estar em casa em uma hora daquelas. - Em quanto tempo eles chegam, Miguel? - perguntou o policial. - A mãe, em cinco horas; o pai, daqui a pouco. Acho que ele está na cidade. Disseram que já estariam a caminho. - Vamos deixar o meu pessoal trabalhar, certo? Preciso levá-los até à autoridade policial para tomar o depoimento de vocês. Preparem-se, então, pois vamos precisar do resto da madrugada e um bom pedaço da manhã. A polícia civil estava entrando quando a conversa parou nessa indicação. - Inspetor Nick! Quem é a autoridade aqui? - perguntou em voz alta, a todos. - Aqui, polícia! Eu sou o tenente Dutra... - Inspetor Nick, tenente. A partir de agora pode deixar tudo conosco. Libere seus homens que a perícia técnica já está a caminho do local. Não mexam em nada, certo? Podem auxiliar, se quiserem, mas ao meu comando. Entendidos? - Eu conheço a rotina, inspetor - disse, voltando-se para o centro da sala. - Atenção todos os militares, vamos voltar às viaturas e deixar tudo sob o comando da polícia civil. A missão está cumprida. Vamos embora. Voltando-se aos parentes e ao inspetor, despediu-se quase cordialmente. - Vai dar tudo certo, gente. Fiquem calmos. Agora estarão seguros. Nós já vamos por em perseguição o tal de Zazá. Quando chegarem à DP, ele já estará lá. - Obrigado, tenente - disse Marta, limpando as lágrimas com um lenço azul. - Vamos nos vestir, Miguel. Boni, vem comigo; eu te empresto algumas roupas. Vamos subir. No quarto de Marta, vestiram-se, pentearam os cabelos e saíram. Ao passar novamente pelo quarto da irmã, a cena estava deplorável. Havia sangue por todo lado. Boni se deteve um pouco na porta, mas foi incitada a se afastar, pela segurança. Homens e brilho de fotografias se espalhavam por todo lado. Descendo as escadas, Marta resvala e cai. - Droga! Droga! Droga! - Calma, Marta. Resvalou no sangue, só isso. Tudo vai ficar bem. Te machucou? - Estou bem, Boni; pode deixar; eu estou bem, já disse. Ao chegarem no térreo, avistaram o pai. - Pai! - disse Marta, correndo e abraçando-o. - Filha, que aconteceu! E Kátia, ela está bem? - Uma tragédia! Uma tragédia! Boni foi ferida no braço e na cabeça; Kátia, no abdômen. - Com o quê? - perguntou, aflito. - Com um tiro de revólver; com um tiro - disse, pondo-se a chorar de forma mais soluçante e alto do que antes.


- Ah, minhas filhas! Como deixaram isso acontecer? - Não sei, pai; eu estava dormindo e depois não tivemos mais paz, eu e o Miguel, até encontrar Boni estirada no jardim, desmaiada, e Kátia no banheiro dela, toda ensangüentada.... O pai, abraçado na filha, de repente ficou pesado demais para Marta, e caiu desmaiado. - Aqui, socorro, por favor! Papai! Papai! Papai! Veio correndo o enfermeiro e foi logo desabotoando a camisa e as mangas, afrouxando a cinta e tirando os calçados. Colocou os dois dedos da mão direita na jugular, abriu a maleta metálica e tirou uma série de fios que passou a colar no peito, nas têmporas e nos pulsos. Um monitor mostrava um fio leve e florescente na tela. - Ele teve uma parada cardíaca. Ele já teve problema do tipo? - perguntou o enfermeiro. - Não que eu saiba. Acho que foi o choque. - Pode ser. Vamos levá-lo ao hospital. Equipe de socorro, aqui, com maca; paciente para remoção. Procedimento padrão. Vieram quatro homens com uma maca e colocaram Alexandre Porto sobre o pano, erguendo-o juntamente com os fios aderidos, indo em direção à ambulância. Marta foi atrás. Manoel estava chegando do quarto quando viu o pai na maca. Correu até lá. - Pai! Marta! O que houve? - O pai chegou e desmaiou. Estava contando para ele o que aconteceu e ele caiu duro... - Contou que Kátia morreu? Sua burra! Como pôde fazer isso, sabendo que ele é cardíaco? Idiota! Quer matar mais um da família? - Eu não sabia. Vocês não me contam nada do que acontece nessa casa. Não sabia que ele era cardíaco. Sempre me pareceu normal... - disse, pondo-se a chorar soluçantemente. - Meu Deus, Marta; agora vê se te acalma quando a mãe chegar. Deixa que eu falo com ela, tá legal. Desse jeito vai derrubar todo mundo. Precisamos deles, não percebe? - Desculpa, Miguel. É que estou muito nervosa com tudo isso! Chega o inspetor Nick e avisa que a viatura 1013, que está estacionada em frente à porta de saída, conduzida pelo investigador José, levará os três à DP de homicídios para colher seus depoimentos. - Boni, vamos! - Grita para a amiga, que está na sala, falando com outro policial. Os três entram na viatura policial em direção à DP. Vários carros estavam estacionados do lado de fora, com suas luzes de diversas cores ligadas. Nunca aquela casa estivera tão movimentada. De dentro, só a visão auxiliava, pois os sons estavam vedados. Não era muito frio, mas a madrugada estava úmida. O carro fez a volta no chafariz de entrada e ganhou a estrada, em direção à cidade. Pelo vidro de trás, Miguel olhou mais uma vez o local. Não acreditava que aquilo tudo estava acontecendo. Parecia um sonho!

. Conto 103, de 28/09/2000, quinta-feira

Critério da elegância João Protásio Farias Domingues de Vargas

- "Nenhuma virtude moral reprimida" foi a expressão que ouvi do ator Tom Cruise, no filme Magnólia, na cena em que ele está sendo entrevistado pela jornalista negra, enquanto seu pai está morrendo e o enfermeiro tentando fazer contato com ele. Tudo acontecia ao mesmo tempo; a pressão por informações sobre quem era o seu pai, sobre a mentira da vida da mãe, sobre o sensacionalismo da auto-ajuda para homens reprimidos frente às mulheres, e tudo o mais. O filme foi demais. Assisti a fita domingo passado e achei o filme tão bom quanto longo. Vocês que o assistiram também - disse, frisando o "também" - , o que tem a dizer sobre a cena da entrevista? Ah, gostaria de denominar a cena de "A cena da entrevista". Na verdade, é um conjunto de cenas; uma megasena. - Não acho a melhor cena - disse Francis. - A melhor cena é aquela da visita policial que se transforma em paquera. Aquela cena é bárbara! Aliás, um monte de cenas. A mulher toda cheirada, nervosa, apavorada com a presença policial, inquiridora, vindo pedir café... Vê se pode uma coisa dessas! Aquilo foi uma estupidez estatal das maiores! E, o pior de tudo, que ainda saem para jantar! Claro, ela dá o troco, mas foi pouco perto do que ele fez a moça passar! Quanto a essa da entrevista com a jornalista, achei fraca. Até ridícula em certas partes, como naquela em que o Tom baixa as calças, começa a dançar, se requebrando todo e fica brabo quando descobre que o cameramen não está gravando. Essa foi de doer! Vou chamar a cena de "O policial apaixonado".


- Não vamos nos esquecer de que estamos aqui para debater métodos de mapeamento de cenas para fins de análise fílmica ou pelicular. As impressões pessoais são importantes, mas apenas para ajudarem a situar os momentos e as dicotomias de continuidade das cenas. Vocês sabem identificar cenas ou segmentos e sabem que podemos denominá-los com certa liberdade, desde que esteja a denominação dentro da temática principal da exibição recortada. Vamos deixar de lado as críticas morais que possamos fazer ao conteúdo do filme e vamos nos concentrar nos aspectos formais ou estruturais do filme, certo? É para isso que estamos aqui. A conversa não é informal sobre impressões sensitivas. Isso não é uma crítica, Francis; é apenas uma lembrança de fixação das regras do jogo. Nós podemos passar dias e dias discutindo o filme. A idéia não é essa. A idéia é identificar precisamente cada uma das cenas completas, o número delas, as suas denominações, os conjunto de cenas ou grupos e suas denominações, até obtermos o mapa completo do filme, o que nos possibilitará analisar, na latinês dessa palavra. - O filme, até á metade, é um pé no saco - afirmou Secco. Não se sabe o que está acontecendo. É uma sucessão de grupos de cenas intercalados que nos confunde por inteiro. Só mais adiante é que vamos começar a juntar as peças. O filme não é de fácil compreensão. Há uns cinco grupos de cenas na primeira parte e que vão se aproximando, se confluindo para o final. O que mais me surpreendeu foi a cena do xixi do menino durante o concurso de decoreba na TV. Aquilo foi demais. Tive um ódio só da funcionária que não deixou o menino ir ao banheiro. Até agora eu me pergunto se o menino foi, no passado, a bixa apaixonada por aparelho nos dentes ou se ela era presente e observava uma situação similar à sua genialidade perdida. Podemos chamar a cena do xixi de "Mijando em cena". Não ficaria bom? Eu acho que ficaria, pois foi a única no estilo. - Surpreendente foi a cena da farmácia - disse Voslova. O show de moral que a mulher deu no velhinho e no piazão foi o máximo. A forma sentida, profunda, indignada dela, como consumidora, respondendo às insinuações dos palhaços, mesmo diante da receita médica. O piá parecia que estava vendendo drogas para uma viciada! Ora festa! Ela fez muito bem. Foi um dos papéis melhor interpretados pela atriz. Sem falar que ela é muito bonita e estava muito bem produzida no filme. Poderíamos chamar a cena de "A cena da Farmácia", pois foi a única do tipo, quando ela vai comprar a morfina em gotinhas para acalmar, de vez, a dor do marido moribundo. - Falta a cena do apresentador do concurso televisivo "Crianças x Adultos". Essa foi muito boa e chocante. No que toca ao velho doente e desenganado, pai da tal moça do policial apaixonado, podemos chamar, o que aparece no estúdio e no camarim, de "Cena do Apresentador de Concurso de TV". Acho que fica bom esse nome. - Não podemos esquecer do velho moribundo. Dono de uma grande fortuna, com um filho extraviado e casado com a mulher da farmácia, aquela que não quis saber do filho do velho. Podemos chamar a cena de "Cena do Velho de Cama"- complementou Anna. - Posso continuar? - perguntou Ana. Tem ainda o enfermeiro que é o articulador do encontro entre o milionário morimbundo e o filho; este, professor de cursinho de autoajuda para homens com baixa estima e medo de mulheres, representado por Tom Cruise. A humanidade do cara, e o envolvimento com as dores do paciente é algo impressionante. Estou chamando a cena de "Cena do Enfermeiro do Velho". ¤¤¤ Ana era uma morena linda; longos cabelos crespos, encaracolados, muito negros, caídos sobre as costas, os ombros e o peito; por isso, toda vez que baixava a cabeça, punha as mãos por baixo do pescoço, ajeitando a sua cabeleira bem cuidada. Os olhos castanhos claros davam um tom de estranheza e doçura em sua face. A voz combinava com tudo isso, mas sem afetação. Era franca e direta, mais dando a entender do que efetivamente dizendo as coisas. Magra e alta, quando se levantava, deixava transparecer as curvas de um corpo bem malhado. As roupas seguiam as formas até às sandálias brancas, trançadas em uma cepa de quatro dedos. Sentada, cruzava as pernas com a naturalidade daquelas mulheres que sabem o que querem e o que estão dizendo. A contribuição sobre o Velho e seu Enfermeiro, adesiva ao recorte da fala da polaca, demonstrava, de plano, o seu interesse pelas coisas inusitadas e chocantes. Voslova andava sempre junto com Ana; mesmo que aparentassem muito amigas, na verdade eram mais duas adversárias que se tratavam muito bem - isso eu já disse antes, né? -, sem se poupar por demais nas disputas pelos espaços sociais e culturais. Numa escola de jornalismo, a beleza - como dizia Vinícius - é fundamental e as feias precisam se desculpar. Naquele lugar, mulher nenhuma podia se dar ao direito de vacilar sobre a sua auto-estima; na dúvida, classificam-se todas de lindas, belas ou bonitas. E, de fato, eramno. O que já não se podia dizer dos homens, para quem esse atributo nunca foi um instrumento de culto. Mas, como diz o ditado, "a necessidade é a parteira da História". Quando algo se torna necessário, a luta, o embate, a batalha, a guerra é feita para a sua realização. Não lembro se foi Marx ou Engels quem reafirmou esse princípio, mas um deles a ele se referiu em alguma de suas obras. Bom, mas a autoria é o que menos interessa no momento; a referência feita é suficiente para dar uma idéia da origem. Se alguém considera algo necessário é porque esse algo se torna prioridade nas suas ações, no traçado das


estratégias, na estipulação das táticas e na confecção da própria História. O debate naquela sala, sobre o filme, por ser algo programático, era necessário; daí a sua realização, inclusive compulsória. Aqueles cachorros comendo as pílulas de morfina do velho... é, foi uma cena patética.

Conto 104, de 29/09/2000, sexta-feira

Erro de identidade João Protásio Farias Domingues de Vargas

- Desculpa, foi erro de identidade. - Como, erro de identidade? - Errei na identificação da pessoa; só isso. - Qual pessoa procurava? Quem sabe eu possa ajudar... - Não, não; desculpa; deixa prá lá. Obrigado por tentar. - Ora, o que é isso. Posso ser útil em mais alguma coisa, doutor? - Não sou doutor; sou um simples policial. - Ora, que interessante! Temos profissões semelhantes, em parte. - É? Qual? - Sou advogada. - Não, é muito diferente, ainda que tenhamos muita intersecção com a advocacia no ramo penal. - É verdade. O inquérito policial. - É. Qual é o seu nome? - Virgínia; e o seu? - Mathusalem. - Bonito nome, Mathusalem. Bom... Foi bom te conhecer. A gente se encontra por aí. - Claro; foi um prazer, doutora. - Todo meu. Dois dias depois, na DP 37, na Tijuca, encontram-se novamente advogada e policial, por acaso. - Doutora Virgínia, que conincidência encontrá-la novamente! - Inspetor Mathusalem! - É aqui que trabalho, doutora; o que precisar de mim... Estou à sua inteira disposição. Entre. Não quer tomar um cafezinho? Venha conhecer o meu escritório. É coisa simples. Vai conhecer melhor as nossas parcas condições de trabalho para o exercício da defesa dos direitos dos cidadãos contra o crime. - Se for rapidinho, eu vou; ademais, quem sabe tu possas me ajudar. - Com todo o prazer, doutora. É só subir esta escadarias e já estaremos no gabinete desse humilde servo da lei. As damas primeiro. Tenha a bondade. - Obrigada. Mas, é só um cafezinho, pois estou com a ficha 915 e acho que estão chamando a 900. - Não tem problema. Quando chegar a sua vez, alguém virá chamá-la no gabinete. - Ah, é muita gentileza de sua parte. Homens assim, no serviço público, com essa gentileza toda, é muito difícil de encontrar. Os maus humorados e incompetentes parecem serem os que estão mais disponíveis no atendimento ao público. - Há bons e maus profissionais em todo canto e em todas as áreas. Estamos tentando recuperar o nosso quadro de pessoal com retreinamentos e novos concursos públicos. - Vejo que estás inteirado da política de segurança pública. - Sim. Eu só estou esperando ser chamado para assumir o cargo de Delegado de Polícia. Fiz o concurso no ano passado. Faltam dois, ainda, na minha frente. Ao que sei, dentro de dois-três meses tomarei posse. - Ah, isso é muito bom. É importante conhecer gente que dirige postos públicos. - Se é! Facilitam as coisas, não? - É; ou dificultam. Depende sempre da pessoa que está no cargo. - É verdade. Por aqui, por favor; é nesta porta. Entre. Sente-se. Olívia, um cafezinho, por favor, para a nossa visitante. - Pois, não, senhor; já providenciarei - disse a voz, da outra sala. - É minha secretária; muito eficiente. Olívia está nesta DP há mais de dez anos. É um doce de pessoa.


- É bom ter secretária eficiente. - Se é! Entra uma moça de seus trinta-trinta e cinco anos, com uma saia beirando ao justo, camisa decotada, salto alto, cabelos loiros, crespos, longos, presos por uma fita vermelha no meio das costas e olhos muito azuis, abaixo de uma franja levemente desparelha. - Açúcar ou adoçante, doutora? - Adoçante, por favor. Ela se inclina, com a bandeja, para que Virgínia se sirva. - És muito bonita. Como se chama? - Magda, doutora, mas, das inteligentes... - disse sorrindo. - Muito obrigada, Magda. Eu percebi. - Como estava dizendo, doutora, esse é o meu gabinete... - O senhor quer café, também? - Não, obrigado. Estou cheio de café. Passo o dia todo tomando café. Depois, quem sabe, Magda. Aceito um copo de água gelada. - Pois, não - disse se retirando. Em um minuto voltou e deixou o copo sob um tablado de celulose que trouxe consigo. - Estava lembrando do erro de identidade no nosso primeiro encontro. - Ah, sim; é verdade. Enganei-me com a pessoa. Pensava que era Débora, esposa de um conhecido e ex-colega de aula. É verdade, me enganei... E, que bom, pois assim pude conhecê-la. Há fatos na vida que casualmente aproximam as pessoas. - É o caso. Acho que o inspetor pode me ajudar. Estou com uma pequena dificuldade. Um cliente meu me contratou para acompanhar a detenção de seu filho, um moço de 22 anos que foi preso no dia de hoje e, ao que saiba, está sendo ou será ouvido agora de tarde. - Como ele se chama? - José Maurício Gomes de Souza. Gostaria de acompanhar o depoimento do mesmo. É por isso que estou aqui. - Pode deixar. Só um pouquinho - disse, pegando o telefone. Discou dois dígitos. - Alô, Mitre? É o Didi. Tem aí o caso José Maurício Gomes de Souza? Traz a pasta dele aqui no meu gabinete, voando, por favor - disse, voltando os olhos para dentro dos olhos da advogada. - Já vamos ver como estão as coisas. É só um minuto e teremos a pasta. - Que poderoso, hein? Um inspetor pode tudo isso? - Não, claro que não. Ocorre que eu estou substituindo o Delegado. Estamos sem comissário. - Ah, claro. Eu deveria ter percebido isso. - Só um minuto e teremos o material para averiguar. - Obrigada. É que só raramente atuo no crime... - A área criminal é uma barbada. Agora, tem que ter gosto e sangue de barata, pois o que se vê por aqui não é mole; de muitas coisas até Deus duvida. - Eu acredito. - Ás vezes dá até medo. E, olha que eu estou por aqui há muitos anos. Inclusive meu pai foi policial. A anatomia do crime e o seu mapa na cidade e regiões estão se modificando. A violência tem tomado novos contornos, doutora. - Sei...

Conto 105, de 30/09/2000, sábado Riscos desnecessários João Protásio Farias Domingues de Vargas

A questão do risco sempre caminhou lado a lado com a lesão. Dir-se-ia, até, que risco e lesão são como irmãos bivitelinos, onde aquele nasce primeiro e a segunda pode ou não nascer. Há riscos necessários e há os desnecessários. Todo risco é o risco de alguma lesão. O homem está sempre procurando a, em tendo de correr riscos, que evite ou minore o máximo possível a lesão. Andrada e Ethel conversavam sobre isso, numa dessas madrugadas quentes do sul meridional do país, à beira de um grande rio, no escuro da noite, sentados à porta do carro, estacionado na beirada da praia - se é que se poderia chamar aquilo de praia.


- Ethel, não quero correr riscos desnecessários. - Evitar a lesão ajuda a lubrificar o relacionamento. - Ora Ethel, a mentira é uma verdade que esqueceu de acontecer. - Ora digo eu, Andrada. Risco e relação fazem parte de uma mesma situação perigosa. Acho elegante a expressão, pois minora o peso da idéia imoral da mentira. Dá a entender que verdade e mentira só se distinguem pelo simples fato de que uma acontece e a outra não. A realização fática se torna o único critério de aferimento do que seja verdade ou mentira. Sabe que estou me pautando pela verdade; portanto, pare de ter medo de mim. - Não é uma questão de medo ou de coragem, Ethel. Risco é risco; lesão é lesão. Aquele leva a esta, mas não necessariamente. - Uma vez ouvi uma voz desconhecida dizer que a verdade de um homem fica atrás do que ele esconde. É isso, Andrada? - É a idéia do descortinamento, da descoberta da verdade. Não creio que seja verdadeiro que os homens escondam a verdade; acho que homens e mulheres, em circunstâncias várias, sentem necessidade e o fazem, isso de encobrir a verdade ou a realidade dos fatos. Politicamente, muitas e muitas vezes, a mentira é preferível à verdade. Veja o exemplo daquelas verdades que geram comoção social, inclusive sublevações, pondo em risco a paz pública. - Pelo tom do discurso até achei que seguiria o caminho da afirmação de que a verdade é aquela de um homem que a procura. - Ora, sabe muito bem que não ligo para a verdade dita em si; ligo para a realidade. Essa sim, quase sempre constitui a própria verdade, Ethel. - A verdade é geral ou é particular; é singular ou é universal. Diz, aí, Andrada. Tu sabe que eu estou contigo em qualquer circunstância; certo ou errado, estamos nessa juntos. - Não quero te envolver nisso, Ethel. Deixa eu resolver meus próprios problemas. Eu fiz a coisa, eu resolvo; fica de fora dessa. - Não posso. Tudo o que sofrer eu vou sofrer junto. Somos os dois uma coisa só. É assim que eu entendo o nosso relacionamento... - É, mas não é assim que eu entendo. Somos pessoas diferentes que convivemos durante certo período histórico, ainda que ele seja tão longo quanto o resto de vida que restar. - Se eu não conseguir fechar aquele contrato, aí sim as coisas vão piorar. Mas, eu vou conseguir! Tenho certeza disso, Andrada. - Eu preciso de dinheiro, mas não necessariamente do teu. Eu sempre dei um jeito nas minhas coisas. Prefiro não ficar devendo para ti - disse Andrada, fechando a porta e preparando-se para partir. Ethel ficou ali, parada, meio indecisa e reflexiva sobre o que havia ouvido. Não sabia se pedia a Andrada que mudasse de idéia, por uma segunda vez, ou se deixava que ele fosse e fizesse as coisas a seu modo. Antes que ela disse qualquer coisa, Andrada deu a partida no carro e foi a destino. As marcas de pneus ficaram no chão, junto com a fumaça do arranque. Ethel virou-se e olhou as ondas do mar, calmo, como sempre, naquele local. Voltou-se para o sul e foi em direção à casa, espairecendo o pensamento, meio ensaiando um sorriso de aborrecimento, balançando levemente a cabeça, em sinal de desaprovação.

Conto 106, de 01/10/2000, domingo

Questão de adaptação João Protásio Farias Domingues de Vargas

Agora Paulo Oscar estava de casa nova. Era no mesmo centro da Cidade, porém os detalhes da nova morada davam o diferencial na qualidade de vida. Em primeiro lugar, todas as janelas venezianas do lado leste eram grandes, de vidros transparentes e recebiam sol toda a manhã. A sala de tv, o quarto e a biblioteca ficavam sempre muito iluminadas. A Sala de Estudos ficara muito boa. O tamanho do ambiente regulava com o anterior e cabiam todas as estantes de livros, as duas escrivaninhas, o armário de aço e ainda sobrava espaço. De onde sentava, diante do microcomputador, podia ver, através da vidraça, duas grandes e altas árvores, como se fosse no seu próprio quintal. Um pequeno galpão vermelho, uma pracinha de crianças e, entre os dois edifícios, mais distante, um espaço de céu. O verde era colírio aos seus olhos e realçava as qualidades do novo local.


Pela manhã, os páss aros começavam a cantar muito cedo, numa espécie de concerto da natureza; há muitos anos esse modo de ver as coisas, no meio de uma selva de pedra, era privilégio de poucos; desse clube estava, agora, fazendo parte. Enquanto ouvia um "blues" muito bem cantado por um brasileiro, olhava o detalhe das folhas e dos troncos das árvores. Mesmo estando no terceiro andar do prédio, no coração da Cidade, a três-cinco quadras de seus dois locais de trabalho, estava satisfeito com o novo esconderijo. Não deixava de pensar na "entrada greco-arábica", nome que dera ao saguão de entrada de seu prédio. Era lindo, a seu ver. Tapetes verdes ao longo do corredor, um pequeno canteiro abaixo do espelho grande, em frente ao nicho de visitas, com um sofá, uma poltrona e uma mesinha de canto, tudo ajeitadinho, um pouco antes de chegar nos elevadores, ao lado das escadarias, davam o tom e formavam um conjunto que sentava como a denominação dada por Paulo Oscar. Márcia e Miguel não mosravam juntos, porém, na mesma Cidade podiam se ver. Agora, outros olhos miravam os seus a uma distância que já não se podia dizer longa e nem que fosse de pouco tempo. Estava se acostumando a viver só, porém não tão só quanto se possa imaginar. Havia melhores condições de trabalho naquele local. Gostava disso, já que o trabalho representava mais de 80% do seu dia útil. A área de serviço tomava o sol todo da tarde, voltada para o oeste da Cidade. Não era pequena e o quarto de serviço era amplo; pelo menos maior do que os dos dois apartamentos onde morara antes. Um banheiro privativo, um tanque e uma máquina de lavar, ligados por um bom corredor à cozinha, davam um toque especial ao local. A janela oeste também era ampla e de correr, com vidros crespos e alumínio nas voltas. A julgar pelo sorriso que emitia, a sua satisfação era grande. A tranqüilidade do local era condição indispensável para produzir mais e melhor seus textos, petições, planos de aulas e palestras. A vida, pelo menos dali em diante, deveria ser melhor; esse era seu desejo e entendia que os últimos cinco anos foram pagos regiamente como karma. Merecia melhorar e viver em paz, no silêncio daquele ambiente quase miraculoso. Pelo menos eram essas as suas impressões iniciais. Observava o tronco da árvore mais grossa e via nele alguns buracos, de onde entravam e saíam pássaros. Os ninhos eram embutidos no tronco. Isso era bonito e representava a bondade da natureza ou, o que é o mesmo, a natureza se expressando através da sobrevivência de seus seres alados. Poucos metros dali, abaixo, fosse a leste, oeste, norte ou sul, o trânsito era quase um inferno; o novo local de moradia isolava todo o barulho das ruas e avenidas circundantes, permitindo aquele silêncio característico de novo local. No final da tarde, uma leve brisa parecia vir da janela da sala de estudos. Os raios de sol brilhavam sobre o galpão de madeira, ao fundo, fazendo realce na cor tijolo das portas, janelas, telhas e cerca. Não sabia o nome da planta de folhas largas que estavam sobre o muro, antes do pé da árvore de tronco mais fino, entretanto, sabia que também era bonita. Há muitos anos trazia consigo uma sensação e um presságio que precisava resolver na sua cabeça. Como sempre tivera pouco conforto na vida, nutrira, um pouco consciente e um tanto não, que de tudo quanto gostava muito, tal coisa fragilizada ficava, levando, quase sempre a sua perda ou ruína. Tinha a impressão de que se tratava de parte de seu antigo complexo de inferioridade e isso era um problema que vinha resolvendo com o tempo, aos pouquinhos, como quem toma sopa quente, começando pelas beiradas. Agora era preciso avançar um pouco mais em direção à superação disso tudo; estava mais velho, e como o tempo veio um pouco mais de experiência acumulada nos mais diversos campos da vida. Era o alento para o problema. Quem sabe, desta vez resolveria de vez esses velhos fantasmas e aprenderia a manter e a conviver com as coisas em que depositava seus melhores sentimentos de agrado. Paulo Oscar lembrava que, muitas vezes, precisava fazer de conta que não gostava de alguma coisa ou alguém para conseguir manter a coisa ou pessoa junto a si. É claro que era superstição e das brabas, entretanto, aquilo ainda parecia fazer sentido em sua cabeça. Quem sabe um analista ou psiquiatra resolveria o problema, quem sabe? Muitas pessoas só conseguem manter junto a si coisas e pessoas nas quais depositam muito sentimento. Pois, bem, com ele se dava o oposto; se dava, pois, agora, estava disposto a usar esse verbo referente apenas no passado; no presente, nunca mais. Era essa a sua reflexão e desejo. Entendia que essa era a sexta grande mudança em sua vida. A primeira se dera quando mudara de casa, aos 13 anos de idade, na cidade em que nascera. A segunda, quando fugira dessa casa, fora morar na Capital e morara alguns meses de favor de amigos. A terceira grande mudança ocorrera quando fora morar na Ceugeti, uma república de estudantes, no centro da metrópole local, na qual conquistara seu próprio cubículo e tivera sua primeira mulher durante cinco anos. A quarta mudança ocorrera quando, também, mudara mais uma vez de casa, indo morar na Ceu, uma re-pública universitária, com apartamento, serviço de quarto e restaurante; foi quando conquistou a sua segunda mulher. A quinta maior mudança ocorrera quando alugara seu primeiro apartamento, casara, tivera filho, concluíra um curso superior, iniciara a pós-graduação e tornara-se professor universitário. A sexta e última mudança, no seu entendimento, era essa de agora, dez anos depois,


na qual ia morar sozinho, também em apartamento, tentando vida nova, mas sem se afastar demais de quem quer que seja. As imagens que descrevia em sua cabeça, sobre as salas, árvores e sol diziam respeito ao novo local. Estava admirado e gostando de tudo isso. Algumas decaídas e a sensação de estar sozinho aparecia várias vezes durante o dia, mas não persistia por muito tempo. Era uma questão de adaptação.

Conto 107, de 02/10/2000, segunda

Frio na barriga João Protásio Farias Domingues de Vargas

A angústia é um pouco mais do que um frio na barriga. É um misto de vazio e de enchimento (diríamos até empanturramento) que se revezam a todo instante, sem equilíbrio, sem estabilidade, num alto e baixo que vai deixando a cabeça e o corpo atordoados. Sartre escreveu um romance filosófico para falar sobre isso, através da noção de náusea. Daí a palavra deselegante "nauseabundo" - quando a náusea abunda em alguém. Angústia e náusea são como duas irmãs univitelinas, uma se confunde com a outra e não se pode saber quando se está presente diante de uma ou de outra. Apenas os nomes as distinguem, para quem olha de longe. Também não faz diferença a distinção, pois, se há, é tão pequena, tão insignificante, que não faz sentido buscar seus contrastes. Por isso, para nós - e o "nós" aqui é proposital - trata-se de uma única e mesma coisa. Quando dá o frio na barriga, sinal orgânico facilmente perceptível quando se trata da nossa barriga, a angústia, pode ter certeza, está chegando. Ela só se instala quando o fio passa e chega a sensação de enchimento desse vazio. É a supersaturação repentina que logo em seguida vai se traduzir em um novo ou no retorno ao vazio anterior. Essa gangorra de altos e baixos faz a cara de quem quer que seja não ficar muito agradável. Por isso é fácil perceber nas faces a presença dela. Dizemos que a pessoa está angustiada, aflita; de qualquer sorte, insegura. Não há pulso forte que não perca a firmeza com o frio na barriga. Como dizíamos, é com o enchimento que se instala a angústia, mas a percepção mais forte dela se dá quando percebemos um certo peso no lado esquerdo do peito. Quase todas as pessoas possuem um coração nesse lugar. É sobre essas e para essas que concebemos a angústia como sentimento ou sensação possível. Como dizia Lupicínio Rodrigues, sempre há pessoas "com nervos de aço, sem sangue nas veias". Essas não têm condições técnicas e nem emocionais de entender do que estamos tratando aqui. Entenderiam melhor Augusto dos Anjos, na "Psicologia de um Vencido". Nem Fernando Pessoa, no "Poema em Linha Reta", teria a graça de ser compreendido por esse tipo de "rambo hollywoodiano". Creio que há lugar ao sol para essa tipologia forte, que contrasta com a fraqueza daqueles que são capazes de se angustiar com certas coisas da vida. Não estamos no ataque ao tipo, nem à concepção de sensibilidade estampada; apenas fizemos referência como forma de prevenção em caso de desagrado pela temática da abordagem que propomos aos leitores. Eles todos têm o direito de não gostar e de desgostar, também; até porque, como dissemos, não é para eles que estamos escrevendo. Portanto, o leitor já está prevenido: caso não goste, o texto já deu um locus classificatório para a pessoa. Mas, caso se estresse com o que acabamos de dizer agora, então, não é bem do tipo inquinado pelo Lupi. Claro que haveria maneira mais elegante de dizer e de tratar; entretanto, essa foi a melhor que se arrumou no momento. Quem sabe o futuro possa nos reservar uma aprendizagem melhor. Tudo que possa ser reduzido a duas coisas, não tenha dúvidas, trata-se efetivamente de uma redução. Até se pode dar o nome emprestado das matemáticas: "denominador comum", mas a coisa permanece a mesma, um reducionismo. Não há como não fazer essas simplificações, de vez em quando. É o caso do agora. Há dois tipos dois tipos de homens e de mulheres: os que sentem e os que não sentem. Os que sentem são os sentimentais e, os que não sentem, são os anti-sentimentais. Os primeiros são sinceros; os últimos, os personalizados (no sentido original de "máscara"). Aqueles se movem pelas ruas caminhando; esses estão sempre circulando em um baile de máscaras. Como tudo na lógica dialética (inclusive na hegeliana!) exige um contraponto que chama, exige ou impõe um terceiro, tudo que é um deve ser três. Explicamos-nos melhor. Se há uma coisa, há o seu contrário complementar; se há um contrário, há um terceiro, que


constitui a síntese dos dois primeiros. Pois bem, seguindo essa lógica aceita do movimento das coisas, entre os seres humanos sinceros e os personalizados, deve haver um terceiro, que emerge do contato ou atrito dos dois, um meio termo entre o sentir e o "não sentir", entre o sentimento e a razão, entre o coração e o cérebro, entre a pele e os nervos. Esse novo homem é, necessariamente, cibernético, meio "bit", meio "mouse", meio "mão-e-clique"; sente e expressa que sente, mas, ora disfarça que não sente e volta a sentir se sentindo como se nada sentisse. É a raça sobrevivente na selva de pedras. Um tipo hipócrita sincero. Ele sente, sabe que sente, diz que sente, mas que não quer sentir e, de tanto afirmar isso, sente que não sente mais nada, sem deixar de sentir os dois sentimentos, o do sentir inicial e o do sentir que não sente. Meio confusa a colocação, não é? Mas, dá para o gasto. É mais ou menos isso o que estamos querendo dizer. Os brutos também amam, dizem alguns. Esse amor deve ter traço da origem. Quanto mais brutos, tanto mais procuram mulher ou homem, conforme o caso, que tenham ou expressem o oposto, a quase pura sensibilidade. Se é mulher a cara-metade, tem de ser melosa, destilar gestos, sons e formas leivosas, quase miar e gastar a maior parte do tempo ajeitando as unhas e a tinta amarela; se é homem, tem de ser gentil, inseguro e quase afetado. Mas, a convivência faz história e, essa, mistura os gestos e os modelos de sentir. Os brutos se sensibilizam (pero no mucho!) e os sensíveis se endurecem um pouco. E isso porque aprender é ato da natureza humana: basta estar em contato! Ouvir dizer que, já constitui saber e introjeção; é experiência pura. Quando houver situação semelhante a ser vivenciada pela pessoa, a primeira coisa que vem à cabeça é o que sabe a respeito do assunto. Na ausência de meio melhor de tratar, vai mesmo aquela que se aprendeu. Por isso os nossos pais eram muito exigentes em selecionar nossas amizades e o acesso a determinados assuntos, quando pequenos, é claro. Cada vez estamos mais convencidos de que os ditados populares são sábios. Aquele "dize-me com quem andas e te direi quem és" é certeiro. Quem caminha ao nosso lado, queira ou não, está aprendendo conosco, tanto o que é bom quanto o que é ruim; e isso, também, no que pode vir a ser, pois bom hoje pode ser ruim amanhã e vice-versa. Depende do ângulo de quem vê. Como dizia Einstein - penso que dizia, pois não tive oportunidade de estar com ele mais do que em alguns pequenos fragmentos de texto -, tudo é relativo ao referencial adotado. Não é verdade que tudo seja relativo, simplesmente. Não há "relativo" sem "referencial", assim como não há "decisão" sem "critério". O que pode acontecer é que não tenhamos claro na cabeça o referencial ou critério adotado. Mas, para isso, basta olhar os bastidores da "coisa relativa" ou da "coisa decidida". Sempre está lá a razão que impulsiona essa mesma coisa. Vamos com A. Conan Doyle: "Elementar, meu caro Watson". Ainda sobre o abrigo do guarda-chuva da angústia, vamos comentar as legendas de um e-mail que recebemos recentemente, que tinha o "subject" "homens e mulheres". Vamos até colocar em quadros emoldurados, para fazer maior realce.

Asserção 1 - Homem e Mulher 1) Homem inteligente

+ Mulher inteligente

= romance

2) Homem inteligente

+ Mulher burra

= gravidez

3) Homem burro 4) Homem burro

+ Mulher inteligente + Mulher burra

= caso = casamento

Não vamos discutir aqui a veracidade das afirmações da Asserção 1, nem a moral que está por trás delas. Vamos conversar sobre as colocações apenas. De qualquer forma, em uma das quatro, ou em mais de uma, você, leitor, deve estar enquadrado hoje. Naturalmente que todos gostamos de estar posicionados em "1", mas, se somos casados, é inevitável o enquadramento em "4". Se tivermos um filho, a posição ocorrida foi a "2". Se há a posição "4" e uma terceira mulher inteligente, então a questão se resume em "3". Não deixa de estar correta a concepção que entende que se possa inverter o qualificativo "inteligente" por "burro" e vice-versa. A conseqüência será a mesma (=). Há a incongruência da ligação "4" com a "2", pois, como está posto no quadro, com a gravidez, o homem ou a mulher ganha inteligência. Também constitui incongruência a ligação "3" - "2", pois a mulher inteligente se torna burra e o homem burro se torna inteligente. Agora, no liame "1" - "2", a mulher emburrece e o homem não muda seu padrão intelectual. Por fim, como última observação, na mudança de "1" para "4", ambos perdem o "status" de inteligência, mas o homem retoma a cabeça, caso ela tenha um filho ("2"), e volta a perdêla ao instituir um caso. Vamos ver agora a relação Chefe-Empregado.


Asserção 2 - Chefe e Empregado 1) Chefe inteligente

+ empregado inteligente

= lucro

2) Chefe inteligente

+ empregado burro

= produção

3) Chefe burro 4) Chefe burro

+ empregado inteligente + empregado burro

= promoção = hora-extra

Um único comentário: não é verdade que a hora-extra não dê lucro e nem que produção não rime com lucro. A concepção é quase totalmente furada. Vamos à terceira Asserção do e-mail: " O homem paga $2 por um produto de $1 que precisa; a mulher paga $1 por um produto de $2 que não precisa". Moral: o homem é esbanjador, mas conseqüente; a mulher, econômica, mas inconseqüente. Nem sempre isso é verdade. Muitas vezes ocorre o inverso. A quarta Asserção afirma que "A mulher se preocupa com o futuro até arrumar um marido; o homem nunca se preocupa com o futuro até arrumar uma esposa". Moral: o futuro de qualquer mulher é sempre garantido pelo marido; em suma, as mulheres não produzem financeiramente. Nós, os homens, somos inclinados a pensar que sim; entretanto, pode ocorrer o inverso, o que é mais raro. As mulheres poderiam contraargumentar afirmando que são elas que pressionam os maridos a garantir o futuro dos dois, independentemente da partilha de bens que será feita com a separação. Há um senão ali: o futuro só é garantido com o casamento, o que não é verdade. Muitas vezes ele já está garantido desde o início. A quinta Asserção diz: " O homem de sucesso é aquele que ganha mais dinheiro do que sua mulher pode gastar; a mulher de sucesso é aquela que encontra tal homem". Moral da história: mulher custa caro e é interesseira. O sentido da asserção está na mesma linha da anterior, com o aditivo de que uma mulher só é de sucesso se o homem for de sucesso; do contrário, está perdida. A sexta asserção é sobre o entendimento homem-mulher: "Para ser feliz com um homem, a mulher deve entendê-lo muito e amá-lo um pouco; para ser feliz com uma mulher, o homem deve amá-la muito e nunca tentar entendê-la". Moral: as mulheres são complicadas e carentes; os homens são ininteligíveis e insensíveis. As mulheres, no mais das vezes, como mostram os filmes e romances, sempre estão perguntando "você me ama?" e ficam esperando a resposta imediata. Se ela vem demorada, ficam amuadas; se ela não vem, ficam irritadas; se vem invertida, arrastam o que encontrar pela frente, furiosas. A sétima asserção diz sobre o casamento: "Homens casados devem esquecer seus erros, não tem sentido duas pessoas lembrarem da mesma coisa". Moral: casar é um erro coletivo. A afirmação está na mesma linha da Asserção 1, item "4": homens e mulheres burros se casam; os inteligentes têm romances. A oitava asserção opera sobre a estética: "Os homens acordam tão bonitos quanto quando deitam; as mulheres, de alguma forma, deterioram durante a noite". Moral: a mulher despenca, os homens não. Nem sempre isso é verdade. Varia caso a caso, noite a noite, de pessoa para pessoa, de cama para cama. A mudança e o casamento é abordado pela Asserção 9: "A mulher casa esperando que o marido mude, mas ele não muda; o home casa esperando que a esposa não mude, mas ela muda". Moral: casamento gera desencontro. Mesma linha das Asserções 1 e 7. Não é verdade que as mulheres desejam mudança nos homens e esses sejam mais conservadores. Pode ocorrer o inverso e o transverso, mudança e conservação dos dois lados, época a época. A Asserção 10 trata das "discussões e gêneros": A mulher tem a última palavra em qualquer discussão; qualquer coisa que o homem diga depois disso é o início de uma nova discussão". Moral: as mulheres não calam a boca nunca. Pode ser que seja isso mesmo; pode ser que não. Há homens que não param de falar e incomodam muita gente, como sói acontecer com as mulheres, no mais das vezes. Questão de educação? Talvez. Mas, nem sempre é assim. Nem sempre a última palavra é a que define a discussão. Por fim a Asserção 11: "Em dois momentos o homem não entende a mulher: - antes do casamento e depois do casamento". Moral: casamento gera desentendimento. Comentários próprios para 1, 7 e 9. O casamento exige burrice, leva ao desencontro e só produz desentendimento; o melhor é ficar só no romance, sem filhos, sem caso e, se levarmos em conta a Asserção 2, melhor que gere lucros, produzindo pouco, garantindo promoção e sem fazer hora-extra. A mulher dosa está ralada dentro da concepção machista das Asserções que estamos debatendo. Trata-se de uma apologia do romance anti-casamenteiro. Não tenho nem idéia quem tenha inventado isso tudo, mas, com certeza, deve ser alguém que casou, teve caso, filhos e estava com saudades dos romances de outrora, para quem isso é sinônimo de inteligência. É possível ser feliz no casamento, ainda que possa tudo isso terminar um dia, bem ou mal. É uma questão de época. Por isso, certo estava o Vinícius de Morais ao dizer que o


amor é eterno enquanto dura, posto que é chama. É a infinitude na finitude das coisas dos sentimentos. A angústia, essa fiel companheira de todas as horas, nunca te deixará! E, sem sombra de dúvidas, é mulher! Ruim, com elas; pior, sem elas!

Índice Analítico RESUMO MODO DE CITAÇÃO APRESENTAÇÃO SUMÁRIO CONTO 86 - QUADRO DE KELSEN CONTO 87 - CAFÉ DA MANHÃ CONTO 88 - CENTELHA DA MADRUGADA CONTO 89 - BEDUÍNOS DO DIREITO CONTO 90 - LIQUIDANDO A TEORIA E A PRÁTICA CONTO 91 - MUDANÇA DE NOME CONTO 92 - VÍTIMA DA HORA CONTO 93 - DESEJO DE CONTAR CONTO 94 - RESPOSTA SÓLIDA CONTO 95 - SIMBIOSE CONCEPTIVA CONTO 96 - GENIALIDADE CONTO 97 - MODELO RESOLUTIVO CONTO 98 - GENEALOGIA DO DIREITO CONTO 99 - RECONSIDERANDO OPÇÕES CONTO 100 - GÊNIO DO RIO CONTO 101 - QUADRINHOS DE ZOË CONTO 102 - PARECIA UM SONHO CONTO 103 - CRITÉRIO DA ELEGÂNCIA CONTO 104 - ERRO DE IDENTIDADE CONTO 105 - RISCOS DESNECESSÁRIOS CONTO 106 - QUESTÃO DE ADAPTAÇÃO CONTO 107 - FRIO NA BARRIGA ÍNDICE ANALÍTICO

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Acesso

, desde 15 de março de 2009.


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