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Campanha da Fraternidade e Quaresma

Há mais de sessenta anos a Igreja no Brasil oferece aos pastores e fiéis a criativa oportunidade de viver, no já fecundo tempo da Quaresma, a Campanha da Fraternidade (CF). Como identificada pela própria CNBB, a Campanha da Fraternidade “tornou-se expressão de comunhão, conversão e partilha. Comunhão na busca de construir uma verdadeira fraternidade; conversão na tentativa de deixar-se transformar pela vida fecundada pelo Evangelho; partilha como visibilização do Reino de Deus que recorda a ação da fé, o esforço do amor, a constância na esperança em Cristo Jesus (Cf. 1Ts 1,3) ”.

Na apresentação da Campanha da Fraternidade deste ano, o bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro e secretário-geral da CNBB, Dom Joel Portella Amado, recordou que ela “é o nosso modo de viver a Quaresma, buscando uma conversão pessoal, comunitário-eclesial e sociopolítica”. Conforme o bispo, relação da CF com a Quaresma é irrenunciável: “A Quaresma dá o tom à Campanha da Fraternidade. A Campanha da Fraternidade ajuda a viver a Quaresma. Essa conexão entre as duas está no enfrentamento e na superação do pecado. A Campanha da Fraternidade mostra uma situação que é consequência do pecado, e a Quaresma é o convite para vencer esse pecado e superar essa situação”.

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Fraternidade e Fome

Será a terceira vez que a Campanha da Fraternidade abordará a questão da fome. Em 1975 o lema “Repartir o pão” inspirou as Comunidades para a vivência quaresmal. O tema foi retomado em 1985 e agora em 2023. Uma coincidência que aproxima essas duas últimas datas é que a motivação da CF surge como extensão da celebração de dois Congressos Eucarísticos, o primeiro em 1985 mesmo, o segundo no ano passado ocorrido em Recife (PE) e que teve como lema “Pão para quem tem fome”. A aproximação entre Eucaristia e Fraternidade resta clara, aliás é de uma clareza sem par. A partilha, a reunião para a Ação de Graças gera fraternidade. A Fraternidade é sustentada em sua natureza e missão pelo pão repartido. Em torno da mesma mesa todos somos irmãos.

Contudo, a aproximação das palavras Fraternidade e Fome é, no mínimo, desconcertante. As duas palavras são iniciadas com a letra F e esta deveria ser a única associação possível entre elas. Afinal, são diametralmente opostos os sentidos e toda sorte de reflexões, compromissos e atitudes que delas decorrem. Onde há fraternidade nunca haverá fome. Por isso, o mestre de Nazaré, tendo diante de si os “cinco mil homens, além das mulheres e crianças”, movido por extremada compaixão, ordenou aos seus discípulos “dai-lhes vós mesmos de comer” (cf Mt 14,14-21). A indicação de Jesus elucida verdades que identificam sua proposta de vida: Os que se congregam para ouvir suas palavras e se deixam conduzir por elas tornam-se responsáveis pelo cuidado um do outro; o acúmulo egoísta mata. Entre os discípulos de Jesus a partilha que sacia é regra irrefutável.

A realidade que se apresenta aos nossos olhos revela a contradição geradora de pecado e de morte que há tempos, infelizmente, tem sido nossa marca. A fome deixou de ser identificada como um instinto de sobrevivência para que nosso corpo se mantenha e foi transformada na tragédia gerada pela incapacidade de milhões e milhões de pessoas de terem acesso ao mínimo necessário para se alimentar. Vivemos num país que figura entre os principais produtores de alimentos do mundo; por esses pagos, apesar da crise religiosa, os cristãos podem ser contados em muitos milhões; o nome de Deus é invocado em profusão, inclusive para difundir e justificar escolhas e projetos geradores de desagregação, injustiça e morte. Nesse contexto, se faz urgente viver o tempo da Quaresma e, sobretudo, o dom da Campanha da Fraternidade para buscar conversão, tanto sob o ponto de vista da escolha pessoal, como da forma da sociedade e da Igreja se organizarem. Os quarenta dias que nos preparam para a Páscoa deverão oferecer a oportunidade para a reconciliação entre aquilo que professamos e aquilo que vivemos. Novamente integrados, íntegros, seremos autênticas testemunhas da fraternidade.

Embora sem desprezá-los não deveríamos nos deter nos números e análises estatísticas que indicam o avanço da fome entre as populações vulneráveis. O ambiente poluído dos debates recentes dificulta a reflexão. Sem refletir, sem debater, sem conhecer, facilmente não nos deixamos tocar pelos problemas e, muito menos, pela necessidade de contribuir para sua solução.

“Tudo está interligado”

A afirmação de que o ser humano, bem como todos os demais seres do universo, é composto de “poeira cósmica” ainda é lida com algum estranhamento. No campo filosófico o senso holístico figura entre as balizas de diferentes Escolas e, embora não totalmente assimilado, não soa novidadesco. O pensamento religioso, desde há muito, se deixa inspirar pela intuição que aponta na direção de uma convivência harmoniosa entre todo ser criado. A percepção de que o mesmo impulso criador fez surgir tanto o vermezinho que rasteja, como a estrela mais brilhante, garante o sonho da integração cósmica possível. A convicção de que a humanidade forma uma só família inspirou e continua a inspirar projetos mis- sionários que aproximam culturas e povos no mundo inteiro. As campanhas de ajuda humanitária que extrapolam fronteiras e geram o espírito de solidariedade universal também são motivadas por esta inspiração. Portanto, o caminho feito pelos cristãos, pela Igreja, pela Ordem Franciscana, isto é, a herança e o itinerário por nós percorrido, sustenta nossa ousadia de fazermo-nos, como São Francisco de Assis, guardiães e promotores da fraternidade universal.

A partir desta visão devemos acolher e ler a Encíclica Laudato Si’ (2015), um presente do Papa Francisco à Igreja e ao mundo. O escrito do Papa propõe o conceito de ecologia integral e apresenta um novo paradigma de justiça, em que a preocupação com a natureza, a equidade para com os pobres, o compromisso com a sociedade, são inseparáveis: “Tudo está interligado”. A partir da inspiração do Papa Francisco, homens e mulheres do mundo inteiro, passaram a ser promotores e cuidadores do relacionamento com Deus, com o próximo e com a terra, fulcralmente ligados entre si.

Embora sem conhecer o pensamento do Papa, por pura incompatibilidade temporal, um participante da Romaria promovida pelo Movimento dos Atingidos pelas Barragens (MAB) ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida, em Campos Novos (SC), no início dos anos 2000, assim ensinava: mesmo que sua propriedade não tenha sido atingida pela construção de barragem de alguma usina hidroelétrica, ainda que sua família não tenha sido desterrada ou forçada a se deslocar sem a justa indenização ou amparo, a causa do MAB é sua também; a causa do MAB merece a atenção solidária de todos. A partir deste alerta não podemos permitir que o conforto trazido pela energia elétrica nos torne surdos às dores de tantos. Devemos considerar que a escolha por um modelo de geração de energia elétrica, que supõe o alagamento de grandes áreas de mata e florestas e elimina sua fauna e flora, ofende e traz danos à nossa irmã, a Mãe Terra. Por isso, além de promover formas alternativas para obtenção de energia elétrica, devemos cultivar um jeito mais cuidadoso no seu uso. Não se trata de voltar ao tempo dos candeeiros ou lampiões; contudo, cada vez que acionarmos um interruptor em casa ou no ambiente de trabalho, cada vez que plugarmos algum equipamento numa tomada tenhamos presente a transformação do ambiente natural e o drama do deslocamento de muita gente. Assim, o ato corriqueiro de acionar um interruptor poderá se converter em uma prece e compromisso de solidariedade.

A lição de Campos Novos pode iluminar nosso pensamento nestes dias em que, novamente, nos são apresentadas as agruras da fome. A recente revelação da situação dos indígenas Yanomami causou diferentes reações. As abordagens do drama de um dos mais emblemáticos povos originários, chegados à América do Sul há mais de 15.000 anos, além de gerar revolta e indignação, além de promover uma mobiliza- ção da população e governos para responder com presteza ao urgente descalabro, tristemente, revelou também uma cruel incapacidade de compreensão de que “tudo está interligado”.

A invasão das terras demarcadas que, protegidas, poderiam garantir a subsistência dos seus legítimos ocupantes resultou em fome e morte. Invasão que rasga a integridade da Mãe Terra para transformar em ouro seu sangue; invasão que mata o rio, a planta e o bicho com a intenção de deixar vivo e ainda mais feroz o bicho que se alimenta do lucro desmedido, da ganância, da violência e do poder. Invasão que rompe com o natural equilíbrio entre todos os entes que compõem o universo da floresta. Invasão que escancara o desastre dos relacionamentos interpessoais. O desfile de corpos famélicos e a evidente ameaça da morte de crianças e adultos não foram suficientes para implodir a insensibilidade daqueles que argumentavam não se tratar de “índios do Brasil”, senão da vizinha Venezuela, como se a fome tivesse nacionalidade, como se os donos do poder pudessem escolher os que podem viver e os que devem morrer, como se a eliminação de pessoas pudesse ser tida como butim dos vencedores de uma luta desigual. A fome e a morte que grassa em Rondônia, ameaça e fere de morte a cada um de nós.

A grande crise

A incapacidade de cultivar empatia, a negação da solidariedade, a transferência da culpa para a própria vítima da agressão, entre outros tantos sinais, denota que estamos sendo assolados por uma grande crise. Assusta-nos a crise climática; gera medo a multiplicação de conflitos armados; desconcerta-nos as crises migratórias; ainda não superamos a crise trazida pela pandemia. Todas essas crises são reais e estão imbricadas, uma alimenta e promove a outra. Contudo, há uma crise ainda maior, mais destrutiva e que nem sempre recebe nossa atenção, embora contenha o condão de interromper todas as demais crises. Pode soar clichê, pode parecer argumentação desprovida de crédito entre os analistas, feitos especialistas em tudo, que ocupam todos os espaços de debate. Contudo, a crise que dá força a todas as demais crises é a crise de humanidade, crise de empatia, de solidariedade, de fraternidade, numa palavra, crise de amor. Sem amor vamos dando corpo ao comportamento que não se importa com outro, não enxerga a dor das pessoas que sofrem; comportamento que promove o desprezo e mesmo ódio em relação aos demais.

O pedido urgente do Papa Francisco em recente entrevista quando voltava da visita à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul ressoa como alerta: “Todo o mundo está em guerra, em autodestruição, vamos parar”. O próprio Papa já havia proposto um caminho de cura para a crise da falta de amor. A encíclica Fratelli Tutti (2020) apresenta um itinerário para o surgimento de um mundo orientado não pela competitividade excludente e egoísta, mas pela fraternidade com a marca da integração e do cuidado; um mundo aberto ao bem, à verdade e à beleza.

Falta fome

A Frente de Solidariedade para com os Empobrecidos, em assembleia celebrada recentemente, congregou irmãos dos diferentes Regionais da Província e elegeu como um dos objetivos para as Fraternidades neste triênio a seguinte proposição: “Promover ações diretas de alimentação e sensibilização contribuindo para o combate à fome”. A Frente definiu ainda algumas ações prioritárias: 1. Mapear, articular e valorizar ações realizadas pela Província; 2. Incentivar e promover ações diretas de combate à fome. 3. Produzir e difundir informações e conhecimento sobre a fome e suas causas. Tanto o objetivo como as estratégias vêm na esteira daquilo que os irmãos vivem desde o início do movimento franciscano. A partilha dos bens, a amizade e proximidade com os que sofrem são constitutivos da forma de vida dos que se deixam inspirar por São Francisco de Assis.

Todo esforço que fizermos para aplacar a fome dos mais de 33,1 milhões de brasileiros que não têm garantido o que comer (Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, 2022, Agência Senado) ainda será pouco. Mesmo assim, lembrados da lição da gota que, faltando, deixa incompleto o oceano, haja empenho de todos nesta tarefa. Além disso, estejamos atentos e evitemos a delegação da tarefa do cuidado dos pobres aos agentes de pastoral, aos componentes de movimentos eclesiais que recolhem e distribuem alimentos em nosso nome.

Adélia Prado, entre tantos nomes poetisa, nos presenteou com a seguinte inspiração “Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome”. Este pensamento encontra ressonância nas palavras do salmista “Minha alma tem sede de Deus” (Sl 41). A Quaresma e a Campanha da Fraternidade sejam vividas como oportunidades de reencantar a vida e a vocação de cada um de nós. A preparação para a Páscoa leve-nos a redescobrir a fome de nossa alma ansiosa pelo céu, não aquele já preparado pela misericórdia do Pai, mas aquele experimentado na comensalidade que une e transforma os corações, traduzido na partilha dos dons.

Nosso dom mais precioso, nosso tempo, seja empenhado na vivência dos exercícios quaresmais. Haja tempo para nosso encontro pessoal com o Senhor, através da oração; haja tempo para uma restauradora revisão de vida, através do jejum e, sobretudo, nossa disposição à esmola nos faça dedicados ao cuidado pelos que conosco convivem e conosco desejam experimentar a verdadeira fraternidade.

Frei Paulo Roberto Pereira, OFM

Ano Da Regra De Vida Dos Frades

Menores

RB II: “DOS QUE QUEREM ABRAÇAR ESTA VIDA E DE COMO DEVEM SER ACEITOS”

1. COMO É BOM

Ter Uma Regra

A fé cristã é um fazer memória. E não é porque vivemos “de passado”. Mas na recordação de um feito buscamos o atualizá-lo, na sede de manter vivo o sentimento daquilo que é lembrado. Por isso é um casamento daquilo que foi com o que se vive para motivar o que vem a seguir. E somos ruminadores do antigo não porque o atual é sem graça: no exercício do reencontro com o passado, o hodierno ganha ainda mais sentido. E nessa dança entre o que foi, o que é e o que será bailamos nos embalos da música do mistério que se revela, se esconde, se mostra, se retrai. É antigo e sempre novo!

Neste sentimento, a Ordem quer reviver a emoção da aprovação da Regra. Mesmo 800 anos depois, numa empreitada assaz pretensiosa, os frades querem fazer memória e sentir na pele o como é bom ter uma Regra (e vivê-la). Logo no início, a diretriz deixa claro os passos que devem ser dados pelos corajosos que aceitam o desafio de “avançar para águas mais profundas” do seguimento de Cristo ao modo de Francisco de Assis. E é sobre este segundo capítulo da Regra que vamos aprofundar nossa reflexão, entendendo-o a partir do prisma vocacional, sendo corroborado pelo Ano Vocacional da Igreja no Brasil e da nossa Província.

2. “DOS QUE QUEREM ABRAÇAR ESTA VIDA

E DE COMO DEVEM SER ACEITOS”

Até o período Neolítico, na pré-história, o ser humano era basicamente nômade. Sua vida girava em torno de questões de subsistência: alimentação e defesa. Entretanto, percebendo que era possível desenvolver meios agrícolas, aos poucos, a humanidade se sedentarizou. Surgiram as ferramentas, as aldeias. Entretanto, algo ali chama a atenção: prorrompem os primeiros indícios de elementos que não tinham uma finalidade apenas pragmática, mas que possuíam mais cuidado na fabricação: arte. Com o tempo se desenvolve o senso de cultura, de estética, de subjetividade diante de um objeto ou situação, que passa a adquirir um sentido maior do que simplesmente uma ferramenta, e torna-se um símbolo.

Com isso, paulatinamente, a sobrevivência não se limitou apenas à caça de alimentos e proteção, mas uma “caça” de sentido de vida. Castilho assevera que

“nós humanos somos humanos porque possuímos uma capacidade simbólica e somos capazes de expressar nossas experiências simbólicas”[1].

Tais vivências crescem também com a adesão a certos costumes, tradições e modos de vida. Alguns surgem até como figuras a serem imitadas pelo exemplo. Eles suscitam nos outros o desejo de pretender viver um modo de vida específico, com suas simbologias próprias. Apresentando um itinerário, uma reflexão, aguçam o desejo humano, não só por alimento, mas por “norte”, por sentido, por objetivo.

E é aos desejosos de viver evangelicamente que Francisco escreve a Regra, asseverando que a ninguém é impreterível fazer isso: “Dos que QUEREM abraçar esta vida”. Estes almejam no fundo do seu coração, a partir de sua liberdade, ganhar o prêmio do Reino Eterno à medida que se configuram a Cristo. Isto é o seu simbólico. No entanto, primeiro experimentam um hiato entre a crise do que deverão vir a ser e, por outro lado, a certeza do que querem (discernimento).

E o elemento que faz a ligação entre essas duas realidades é o desejo. Sobre ele, o Papa Francisco afirma:

“O desejo, todavia, não é a vontade do momento. A palavra italiana vem de um termo latino de-sidus, literalmente ‘a falta da estrela’, do ponto de referência que orienta o caminho da vida; ela evoca um sofrimento, uma carência e, ao mesmo tem- po, uma tensão para alcançar o bem que falta. Então, o desejo é a bússola para compreender onde estou e para onde vou. (...) Obstáculos e fracassos não sufocam o desejo; pelo contrário, tornam-no ainda mais vivo em nós”.[2]

Os que estão fascinados por esta vida se tencionam para poder exercê-la. Como afirmou Castilho, a partir das experiências simbólicas o ser humano as expressa: ingressar na Ordem Franciscana, por exemplo, é uma expressão deste simbólico vivido. E assim tem a continuação do título da Regra: “De como devem ser aceitos”. Os que querem abraçar esta vida, a partir do mais puro desejo, precisam de um itinerário para o ingresso. Uma passagem: entre o incerto e o certo.

3. PRIMEIROS PASSOS (HÁBITOS) DE PENITÊNCIA E OBSERVÂNCIA DA CATOLICIDADE

O vocacionado a ser frade menor, desejoso de corresponder ao convite do Senhor, expressa esse simbólico por meio de uma nova vida. Mas esse processo acontece aos poucos, de penitência em penitência. Por isso necessita ser casmurro para construir novos hábitos. Para tal finalidade o hábito lhe é oferecido no ano da provação: para ser sinal de sua nova busca, para ser símbolo do seu primeiro passo e fazer memória constante da sua vocação, que não é apenas impulso pessoal, mas resposta

Permanente

Formação contundente ao amor de Deus. Acerca da resposta à Graça de Deus, Konings afirma: “A consciência da fé cristã não é voluntarista, ávida de auto-afirmação. É agradecida, cheia de recordação e atenção. Pensa a partir da fonte da qual brotou: o amor de Deus que se manifesta em Jesus”[3].

Nos tempos modernos, o candidato já faz uma penitência durante o acompanhamento vocacional: nesta época, onde tudo deve ser instantâneo, a gradualidade, a gradatividade é penitência. O tempo de ir provando (acompanhamento vocacional) acontece com parcimônia para que a pessoa vá assimilando o novo modo de vida desejado, evitando assim que “engula quente” a experiência, não se saciando e degustando o momento verdadeiramente.

A penitência, aos poucos assumida para sempre, se torna via para abrir mão de qualquer coisa que possa desvirtuar o caminho, a fim de abraçar o que realmente conduz à plenitude da vocação franciscana. A pessoa despreza o pensar apenas em si mesmo (negação da autorreferencialidade) e assimila que a sua felicidade é fazer os outros felizes através da minoridade, da pobreza, da fraternidade e do serviço. Este é o seu novo hábito, que ora é mais fácil de vestir, ora mais exigente, mas nunca desprezível para quem quer se fazer frade menor. “A renegação jamais é um fim ou um ideal em si mesma. A coisa mais importante não é a apódose: ‘negue-se a si mesmo’, mas a prótase: ‘Se alguém quer vir após mim’.

Dizer não a si mesmo é o meio, dizer sim a Cristo é o fim”[4].

Observar a catolicidade do candidato, como manda São Francisco, pode ser a busca por perceber se aquele chamado do irmão é uma resposta ao amor de Deus ou qualquer outra coisa que depois não sustenta sua vocação. É tomar o desejo da pessoa nas mãos e tentar com ela identificar se o mesmo é factível a partir daquilo que se torna evidente: se nasce de um Encontro com Jesus. Se a pessoa tem primeira eucaristia ou crisma passa a ser algo óbvio, pois seu desejo de ingressar é fruto da experiência eclesial que realiza. E se esperou demais ou assumiu outro compromisso na vida ou possua algo que a impede de ser religioso também é notório que ser frade não é o caminho: para cada realidade há a sua medida. Não é o provincial nem o animador vocacional que diz sim ou não. É a própria pessoa que apresenta a sua idoneidade e responde a si mesma. Cabe às instâncias clarear isso.

4. É TEMPO DE FAZER MEMÓRIA!

A profissão que realizamos é o assentimento ao simbólico que nos motiva. Fazer memória da Regra é ter a certeza de que assumimos um caminho porque queremos estar nele! Neste Ano Vocacional da Igreja do Brasil e de nossa Província, queremos restaurar as nossas motivações para aquilo que professamos. Queremos sentir na pele de novo, viver a memória da escrita e aprovação da Regra. E sonhamos espalhar este sentimento a mais corações desejosos por responderem ao chamado do Senhor e desejam fazer isso de modo franciscano.

Nós, confrades do Serviço de Animação Vocacional, por vezes ouvimos que somos os responsáveis por suscitar vocações. Pode ser que utilizemos de diferentes ferramentas (e devemos aprimorar muito isso) para estar no mundo dos jovens, apresentar o nosso carisma e provocá-los. Além disso, podemos nos qualificar para acompanhar estes casos. Mas cada irmão pode sempre incitar o convite, por palavras e atos, mostrando a vivacidade daquilo que professamos. O nosso fazer memória da Regra é uma sempre viva Tradição que nos impulsiona ao que vem à frente, uma vez que aderimos com o mais profundo desejo de corresponder ao chamado do Senhor a esta vida de penitência.

[1] CASTILHO, José M. A humanidade de Jesus. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 21.

[2] https://www.vaticannews.va/pt/papa/ news/2022-10/papa-francisco-audiencia-geral-discernimento-desejo.html

[3] KONINGS, Johan. Ser cristão: fé e prática. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 98.

[4] CANTALAMESSA, Raniero. Pastores e pecadores: retiro espiritual para bispos, sacerdotes e leigos engajados São Paulo: Ave-Maria, 2021, p. 33-34.

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