A Jornada do Herói em The Last of Us

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

A Jornada do Herรณi em The Last of Us: Anรกlise da estrutura narrativa na aventura de Joel e Ellie Pedro Pires Sciarotta

Sรฃo Paulo 2016


Pedro Pires Sciarotta

A Jornada do Herói em The Last of Us: Análise da estrutura narrativa na aventura de Joel e Ellie

Trabalho de Pós-Graduação apresentado à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para a conclusão do curso Comunicação e Práticas de Produção de Imagens: Fotografia e Audiovisual

Orientadora: Prof.ª Fernanda Nardy Bellicieri

São Paulo 2016


RESUMO

Este trabalho realiza uma análise da estrutura narrativa do jogo eletrônico The Last of Us, lançado em 2013 pela produtora Naughty Dog e distribuidora pela Sony Interactive Entertainment. A análise se dá por meio da Jornada do Herói, estrutura descrita por Christopher Vogler em seu livro “A Jornada do Escritor: Estruturas Míticas para Escritores”, que usa como base as pesquisas do mitólogo Joseph Campbell, sobretudo em seu livro “O Herói de Mil Faces”. “A Jornada do Escritor” é a principal base teórica deste trabalho, cujo objetivo é identificar como os conceitos da Jornada do Herói são aplicados em The Last of Us. Isso inclui estabelecer paralelos entre os estágios da estrutura com a narrativa do jogo, além de entender a função arquetípica dos personagens e suas motivações.

Palavras-chave: 1. The Last of Us; 2. Jornada do Herói; 3. Estrutura Narrativa; 4. Christopher Vogler; 5. Análise de Roteiro


ABSTRACT

This thesis aims to make an analysis of the narrative structure of the video game The Last of Us, released in 2013 by developer Naughty Dog and published by Sony Interactive Entertainment. The analysis is conducted by the Hero’s Journey, a structure described by Christopher Vogler in his book “The Writer’s Journey: Mythic Structure for Writers”, that is based on the researches of Joseph Campbell, mainly in his book “The Hero with a Thousand Faces”. “The Writer’s Journey” is the main theoretical basis of this thesis, which aims to identify how the concepts of the Hero’s Journey are applied in The Last of Us. This includes establishing parallels between the stages of the structure and the narrative of the game, besides understanding the archetypical function of the characters and their motivations.

Keywords: 1. The Last of Us; 2. Hero’s Journey; 3. Narrative Structure; 4. Christopher Vogler; 5. Script Analysis


SUMÁRIO INTRODUÇÃO 6 1 A JORNADA DO HERÓI 8 1.1 Conceito de Arquétipo 11 1.1.1 Herói 13 1.1.2 Mentor 16 1.1.3 Sombra 17 1.1.4 Arauto 18 1.1.5 Guardião de Limiar 19 1.1.6 Camaleão 20 1.1.7 Pícaro 20 1.2 Os Passos da Jornada 21 2 A JORNADA DO HERÓI EM THE LAST OF US 29 2.1 Estágio Um – 29Uma Grande Perda 29 2.1.1 Vinte Anos Depois 33 2.2 Estágio Dois – Marlene Chama à Aventura 37 2.3 Estágio Três – As Recusas de Joel 40 2.4 Estágio Quatro – Bill, o Mentor às Avessas 44 2.5 Estágio Cinco – Travessia com Novos Perigos 50 2.6 Estágio Seis – Poucos Aliados, Muitos Testes 53 2.6.1 Outono e a Morte Antecipada 60 2.7 Estágio Sete – A Chegada do Inverno 64 2.8 Estágio Oito – O Confronto Contra David 68 2.9 Estágio Nove – Passeio pelo Zoológico 73 2.10 Estágio Dez – A Jornada Continua 74


2.11 Estágio Onze – O Clímax da Ressurreição 76 2.12 Estágio Doze – O Retorno com Ellie 83 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 87 4 REFERÊNCIAS 92


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INTRODUÇÃO O que torna uma história boa? Essa pergunta certamente é feita por milhares de escritores e roteiristas que desejam ver sua história triunfar sobre as outras. A questão também pode ser posta por aqueles apaixonados por livros, filmes e videogames e que gostam de analisar suas obras preferidas. Então, o que faz uma pessoa gostar (ou não) de determinada história? Claro que existe a subjetividade de cada um, que faz com que o conhecimento e as experiências passadas moldem a visão de mundo e a interpretação sobre uma experiência nova. Porém, essa resposta não é suficiente. As histórias parecem conter algo de universal, que faz com que uma narrativa seja instigante ou deplorável para a maioria das pessoas – o que determina se elas se tornarão obras clássicas ou se serão esquecidas pelo tempo. Christopher Vogler, autor de “A Jornada do Escritor”, também se fez essa pergunta em algum momento de sua vida. A partir dos estudos de Joseph Campbell, que identificou padrões na estrutura narrativa das histórias mitológicas e arquétipos de personagens, Vogler verificou a forma com a qual as histórias atuais poderiam emocionar o público a partir dos conceitos universais do inconsciente humano. A “Jornada do Herói”, nome que Vogler deu a esta estrutura, pode ser vista em boa parte das histórias já produzidas. Não se trata de copiar uma fórmula, mas de usar os estágios da jornada para transformar o protagonista, criar funções definidas para os personagens e contar a história de forma coesa e gradual. O objetivo deste trabalho é analisar como a Jornada do Herói acontece no jogo eletrônico The Last of Us. Lançado em 2013 pela produtora Naughty Dog (e distribuído pela Sony para o videogame PlayStation 3), The Last of Us (abreviado como TLoU) é sucesso de público e crítica como poucas vezes acontece. Considerando como base o site Metacritic, que agrega notas de veículos especializados e do grande público, o jogo possui a média 9,5 em 98 análises da imprensa. Apenas quatro jogos possuem uma nota mais alta entre os jogos de PlayStation 3, mas todos ficam com uma média abaixo se a nota do público for considerada. The Last of Us possui média de 9,1 em análise de 7.401 de usuários, sendo o único jogo com uma nota superior a nove nesse quesito.


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The Last of Us se passa em um mundo pós-apocalíptico em que grande parte da humanidade foi infectada por um fungo. A infecção faz com que as pessoas se transformem em uma espécie de “zumbi”, um tipo de criatura perigosa que perde seu lado humano. O jogo conta a história de Joel, um sobrevivente que, por acaso, conhece uma garota chamada Ellie. A menina é imune à infecção e cabe a Joel levála para os Vagalumes, grupo que buscar salvar a humanidade com uma vacina para a doença. É interessante notar que mesmo com alguns clichês da cultura pop (como o fato de Ellie ser imune ou até mesmo a ambientação em um mundo pós-apocalíptico com “zumbis”), o ponto mais forte de The Last of Us é a sua história. O jogo é impecável em tudo que concerne a sua produção, como a atuação do elenco, modelagem dos personagens, trilha sonora original, etc. No entanto, é a história marcante que fica na lembrança dos jogadores. Prova disso é que boa parte das análises do site Metacritic cita como o enredo do jogo é emocionante e passional. Como a Naughty Dog conseguiu criar uma obra comovente que agrada quase todos os jogadores que viveram essa experiência? A resposta está na transformação de Joel ao longo da jornada e no crescimento da relação dele com Ellie. A forma como a narrativa é construída vai ao encontro da Jornada do Herói. Nada na obra acontece por acaso e basta reconhecer alguns padrões, símbolos e arquétipos para admirar o estudo de Campbell e Vogler. Logo se entende porque Joseph Campbell acreditava que poucas coisas são tão encantadoras quanto a capacidade de análise sobre uma obra. Encontrar padrões e desvendar símbolos que ajudam a dar significado para os personagens e suas ações é tão empolgante quanto conhecer boas histórias pela primeira vez.


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1 A JORNADA DO HERÓI A “Aventura do Herói” (chamada de “Jornada do Herói” por Christopher Vogler) é um conjunto de conceitos observados por Joseph Campbell e descritos em seu livro “O Herói de Mil Faces”, publicado originalmente em 1949. Ao estudar a mitologia de diversos povos, o autor percebeu que todas as histórias de mitos são basicamente iguais. Há um número infinito de variações, mas a estrutura narrativa é quase sempre a mesma. Campbell mostra que os mitos refletem rituais de passagem de tribos primitivas e de grandes civilizações do passado, que tinham como objetivo fazer os iniciados cruzarem limiares que requeriam uma mudança de padrões. Os chamados ritos (ou rituais) de passagem, que ocupam um lugar tão proeminente na vida de uma sociedade primitiva (cerimônias de nascimento, de atribuição de nome, de puberdade, casamento, morte, etc.), têm como característica a prática de exercícios formais de rompimento normalmente bastante rigorosos, por meio dos quais a mente é afastada de maneira radical das atitudes, vínculos e padrões de vida típicos do estágio que ficou para trás. Segue-se a esses exercícios um intervalo de isolamento mais ou menos prolongado, durante o qual são realizados rituais destinados a apresentar, ao aventureiro da vida, as formas e sentimentos apropriados à sua nova condição, de maneira que, quando finalmente tiver chegado o momento do seu retorno ao mundo normal, o iniciado esteja tão bem como se tivesse renascido. (CAMPBELL, 1997, p. 20-21)

A Aventura do Herói, que Campbell também chamou de “monomito”, costuma usar nas histórias mitológicas o mesmo padrão dos rituais primitivos: “um afastamento do mundo, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno que enriquece a vida” (Campbell, 1997, p. 40). É algo universal, que transcende todas as culturas e épocas. Segundo o mesmo autor, o percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula representada nos rituais de passagem: separaçãoiniciação-retorno. Vale destacar que “herói” é o nome dado ao papel do protagonista, sem importar se a história é heroica ou não. Independentemente do tipo de enredo, o protagonista sempre encara uma jornada em que deixa o seu ambiente cotidiano para se aventurar em uma terra incomum. Campbell resume:

Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura em uma região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. (CAMPBELL, 1997, p. 36)


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Décadas mais tarde, usando o trabalho de Campbell como base, Christopher Vogler – autor de A Jornada do Escritor, publicado originalmente em 1992 – adaptou os conceitos da Aventura do Herói (que ele chamou de Jornada do Herói) e mostrou como eles se aplicam nas histórias atuais usando os filmes hollywoodianos como exemplo. O autor resume o significado da Jornada do Herói em uma frase: “Todas as histórias consistem em alguns elementos estruturais comuns, encontrados universalmente em mitos, contos de fadas, sonhos e filmes” (VOGLER, 2006, p. 35). Antes de publicar seu livro, Vogler já lidava com as estruturas similares de narrativas e estudava o trabalho de Campbell. Vogler era contratado de alguns estúdios de Hollywood para analisar histórias de romances e roteiros. Aos poucos, começou a perceber padrões repetidos em situações e personagens, o que o levou a questionar a origem das histórias e os elementos que fazem uma narrativa ser considerada apreciável.

Uma boa história faz a gente achar que viveu uma experiência completa e satisfatória. [...] Terminamos uma história com a sensação de que aprendemos alguma coisa sobre a vida ou sobre nós mesmos. Como é que os autores conseguem isso?”. (VOGLER, 2006, p. 36).

Quando Vogler ainda tateava o assunto, descobriu o trabalho do mitólogo Joseph Campbell ao estudar na Escola de Cinema da Universidade do Sul da Califórnia. Esse fato mudou a sua vida e a sua forma de pensar, já que “O Herói de Mil Faces” explorava por completo o padrão que ele começava a perceber: “Campbell tinha decifrado o código secreto das histórias” (VOGLER, 2006, p.37). Vogler trouxe as ideias de Campbell para o presente e as usou para analisar filmes como “Star Wars” e “Contatos Imediatos de Terceiro Grau” a fim de “entender o incrível fenômeno de repetição” (VOGLER, 2006, p.37): As pessoas iam rever esses filmes várias vezes, como se estivessem em busca de uma espécie de experiência religiosa. Fiquei achando que esses filmes atraíam as pessoas dessa maneira porque refletiam os padrões universalmente satisfatórios que Campbell encontrou nos mitos. Ou seja, eles tinham algo de que as pessoas precisavam. (VOGLER, 2006, p. 37)

Quando Vogler começou a trabalhar como analista de histórias em grandes estúdios de cinema, ele passou a usar os ensinamentos de Campbell para


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diagnosticar problemas de enredo e prescrever soluções. Vogler, portanto, não apenas identificou os padrões narrativos nas histórias contemporâneas, mas ajudou com que eles fossem difundidos e aplicados. Pouco depois de começar a trabalhar na Companhia Walt Disney ao fim da década de 1980, Vogler escreveu um “Guia Prático para O Herói de Mil Faces”, explicando o conceito da Jornada do Herói com exemplos de filmes clássicos e recentes. Ele acreditava que essa técnica narrativa poderia ajudar diretores e produtores a eliminar riscos (como rejeição do público) e gastos ao criar a história para um filme. Com a apreciação de amigos, colegas e executivos da Disney, Vogler transformou o “Guia Prático” em uma palestra que passou a lecionar na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, e em congressos de escritores por diversas regiões dos Estados Unidos. Com o tempo, Vogler percebeu que as ideias de Campbell tornavam-se mais influentes em Hollywood e recebeu pedidos de exemplares do “Guia Prático” de vários departamentos dos estúdios. A divulgação foi ampliada exponencialmente em 1988 – um ano após a morte de Joseph Campbell –, quando uma série de entrevistas do mitólogo para o jornalista Bill Moyers foi exibida pela PBS, canal público de televisão estadunidense. O documentário, chamado “O Poder do Mito”, foi até transformado em um livro de mesmo nome com a transcrição das entrevistas. A publicação foi um sucesso: ficou mais de um ano na lista dos mais vendidos do jornal New York Times e alavancou as vendas de “O Herói de Mil Faces”, publicado quase 40 anos antes. Vogler viu seu caminho aberto. Com maior aceitação e conhecimento em Hollywood sobre o trabalho de Campbell houve o aumento de autores e executivos querendo aplicar as ideias do mitólogo em filmes e roteiros. Adaptando os conceitos de Campbell, Vogler lançou o livro “A Jornada do Escritor: Estruturas Míticas para Contadores de Histórias e Roteiristas” em 1992 e uma versão revisada, “A Jornada do Escritor: Estruturas Míticas para Escritores”, em 1998. Além dos conceitos da Jornada do Herói, Vogler debate em seu livro a utilização consciente desse tipo de estrutura narrativa, rebatendo o temor de alguns artistas e críticos de que se trataria de um formulismo que causa repetições cansativas. O autor tem consciência de que a padronização é uma ferramenta para a produção em massa dos grandes estúdios, mas avisa que o artifício deve ser empregado com parcimônia e sensibilidade em relação às necessidades específicas


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de uma história. De acordo com Vogler, “a percepção consciente desses padrões pode ter resultado adverso, pois é fácil criar clichês e estereótipos descuidados. [...] A utilização proposital e desastrada deste modelo pode gerar algo entediante e previsível” (VOGLER, 2006, p. 19). O uso preguiçoso e superficial dos termos da Jornada do Herói, tomando de forma demasiadamente literal seu sistema metafórico, ou impondo arbitrariamente suas formas em todas as histórias, pode provocar um embrutecimento dos sentidos. Eles devem ser usados como uma forma, não uma fórmula, um ponto de referência e uma fonte de inspiração, não uma ordem ditatorial. (VOGLER, 2006, p. 23)

Para Vogler (2006), o conhecimento da estrutura é útil para identificar problemas de enredo e contar uma história melhor, mas os passos da Jornada do Herói surgem naturalmente em uma boa história, mesmo quando o escritor não está consciente deles.

Em qualquer boa história, o herói cresce e se transforma, fazendo uma jornada de um modo de ser para outro: do desespero à esperança, da fraqueza à força, da tolice à sabedoria, do amor ao ódio, e vice-versa. Essas jornadas emocionais é que agarram uma plateia e fazem com que valha a pena acompanhar uma história. (VOGLER, 2006, p. 52)

Para o autor, os escritores devem usar a Jornada do Herói para criar formas novas e originais a partir de elementos antigos e imutáveis. Segundo ele, a Jornada do Herói se estabelece como uma ideia platônica: um modelo divino no qual cópias infinitas e variadas podem ser produzidas, cada uma repercutindo o espírito essencial da forma à sua própria maneira.

1.1 Conceito de Arquétipo Christopher Vogler acredita que o modelo da Jornada do Herói exerce um fascínio sobre qualquer pessoa porque as narrativas “brotam de uma fonte universal, no inconsciente que compartimos, e refletem conceitos universais” (VOGLER, 2006, p. 49). A estrutura narrativa reflete os problemas humanos, motivo pelo qual o leitor ou espectador se identifica com a história. Aplicar a estrutura da Jornada do Herói em uma narrativa, então, consiste em colocar princípios da própria vida no enredo – como a adversidade e a superação.


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Com o nome de “arquétipos”, esses elementos universais também se aplicam aos personagens, responsáveis por exercer determinadas funções dramáticas na história. O conceito surgiu nos estudos de psicanálise do psicólogo Carl Jung, que definiu os arquétipos como “imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos” (JUNG, 2000, p. 16). Em outras palavras, Vogler interpreta os arquétipos de Jung como “personagens ou energias que se repetem constantemente e que ocorrem nos sonhos de todas as pessoas e nos mitos de todas as culturas” (VOGLER, 2006, p. 49). Os arquétipos andam lado a lado com o conceito de “inconsciente coletivo” criado por Jung, a ideia de que existe uma profunda camada da psique humana em que determinadas imagens (os arquétipos) estão presentes todo tempo e em todo lugar. Jung diferencia o inconsciente pessoal, de cada indivíduo, do inconsciente coletivo:

O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos. (JUNG, 2000, p. 53)

Jung notou a semelhança entre as figuras dos sonhos de seus pacientes e os personagens típicos das histórias mitológicas e concluiu que a relação de ambos deveria ter a mesma fonte: o inconsciente coletivo. Joseph Campbell seguiu na mesma linha ao relacionar mito e sonho: “Os símbolos da mitologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua fonte” (CAMPBELL, 1997, p. 15-16). Assim como Jung, Campbell estabelece uma relação de diferença entre arquétipos e figuras simbólicas.

O sonho é o mito personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da mesma maneira geral, a dinâmica da psique. Mas, nos sonhos, as formas são distorcidas pelos problemas particulares do sonhador, ao passo que, nos mitos, os problemas e


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soluções apresentados são válidos diretamente para toda a humanidade. (CAMPBELL, 1949, p. 27-28)

Portanto, os arquétipos de personagens nas histórias mitológicas – como o jovem herói, o velho sábio como mentor ou o antagonista na sombra – representam as mesmas figuras simbólicas que se manifestam nos sonhos. Segundo Jung, “o arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta” (JUNG, 2000, p. 16). Vogler (2006) reconhece a importância dos arquétipos na Jornada do Herói como uma ferramenta indispensável para se compreender o propósito ou a função dos personagens em uma história. Sob influência da obra de Vladimir Propp, autor que analisou padrões nos contos folclóricos russos, ele vê os arquétipos como máscaras usadas pelos personagens para designar suas funções temporárias na história, e não como papéis fixos ou rígidos. Ou seja, um personagem pode vestir diferentes máscaras ao longo da narrativa e desempenhar a função de mais de um arquétipo. Vogler também julga que os arquétipos de personagens podem representar diferentes facetas da personalidade do herói, assim como Jung sugeriu que o conceito de arquétipo pudesse refletir os diferentes aspectos da mente humana. Dentre a infinidade de tipos de personagens possíveis de serem identificados nas histórias, Vogler destacou os sete arquétipos mais comuns que compõe a Jornada do Herói. São eles: Herói, Mentor, Sombra, Arauto, Guardião de Limiar, Camaleão e Pícaro. Embora eles não sejam obrigatórios em uma narrativa, alguns sempre aparecem em determinados estágios da jornada, seja para trazer uma mudança na direção da história, atrapalhar o avanço do herói ou ajudá-lo a prosseguir.

1.1.1 Herói O herói (independentemente do gênero) é o protagonista da aventura. Na essência da palavra, é aquele disposto a “sacrificar suas próprias necessidades em benefício dos outros” (Vogler, 2006, p. 75). Por esse motivo, em diversas ocasiões o herói é voltado para o grupo, a sociedade da qual faz parte. Nesse caso, sua história geralmente traz “a separação desse grupo (primeiro ato), sua aventura solitária em um lugar remoto (segundo ato) e, muitas vezes, sua reintegração final com o grupo (terceiro ato)” (VOGLER, 2006, p. 85) – é a relação que Joseph Campbell estabeleceu


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entre as histórias mitológicas e os rituais primitivos. Embora a reintegração à sociedade seja comum (principalmente na cultura ocidental), ela não é obrigatória. O herói pode optar por ficar no mundo do segundo ato, elemento mais usual em contos asiáticos e indígenas. Por ser o personagem principal, o arquétipo de herói talvez seja o que tenha mais funções dramáticas, o que faz com que o papel possa ser exercido de diversas formas. Em contrapartida ao herói voltado ao grupo, por exemplo, temos o herói solitário – arquétipo bastante usado em filmes de faroeste. Esse tipo de herói é basicamente uma inversão em relação ao herói orientado ao grupo. O estado natural do protagonista é a solidão e a história começa com o seu afastamento da sociedade. “A jornada é de retorno ao grupo (primeiro ato), aventura dentro do grupo, no ambiente normal do grupo (segundo ato), e retorno ao isolamento na natureza (terceiro ato)” (Vogler, 2006, p. 85). A escolha final também se trata de voltar à origem (de solidão) ou permanecer no mundo do segundo ato (nesse caso, terminando como um herói ligado ao grupo ao optar por permanecer na sociedade). A principal função do herói (pelo menos no começo da narrativa) é fazer com que a plateia se identifique com ele. Para Vogler (2006), os heróis precisam ter qualidades admiráveis para que queiramos ser como eles, já que a história será contada por meio de sua perspectiva. Além disso, eles devem ter motivações que causem empatia:

Os heróis têm qualidades com as quais todos nós podemos nos identificar e nas quais podemos nos reconhecer. São impelidos pelos impulsos universais que todos podemos compreender: o desejo de ser amado e compreendido, de ter êxito, de sobreviver, de ser livre, de obter vingança, de consertar o que está errado, de buscar auto-expressão. (VOGLER, 2006, p. 77)

No entanto, isso não significa que os heróis sejam perfeitos. É até melhor que não sejam: os defeitos humanizam o personagem e ajudam a causar identificação. Assim como as qualidades, o público pode se reconhecer nos defeitos de um herói, como a dificuldade em superar dúvidas internas, sentimento de culpa, trauma do passado ou medo do futuro. Para Vogler (2006), fraquezas, imperfeições, cacoetes e vícios fazem um herói (ou qualquer personagem) se tornar mais real e atraente para a plateia.


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O defeito possui outra função: criar um ponto de partida para o arco do personagem, em que a jornada será desenvolver (ou completar) a si mesmo por meio de uma série de etapas. Um bom exemplo está nos contos de fadas, em que o protagonista quase sempre sofre uma perda ou morte na família durante o início da narrativa. “A subtração da unidade familiar desencadeia a energia nervosa da história, que não vai parar enquanto o equilíbrio não for restaurado pela criação de uma nova família ou reunião da velha” (VOGLER, 2006, p. 81-82). O arco do personagem preenche uma função básica do arquétipo do herói, que é aprender ou crescer. O herói adquire sabedoria ao ultrapassar os percalços da jornada e deve ser o personagem que mais evolui ao longo da narrativa. Da mesma forma, o ideal é que o protagonista seja o personagem mais ativo do roteiro. Segundo Vogler (2006), o herói deve realizar a ação decisiva da história, aquela que exige maior risco ou responsabilidade. Para ele, é um erro o herói ser passivo no momento crítico, sendo salvo por alguma força externa. A exceção é o herói catalizador. Esse tipo de protagonista não evolui muito – sua função principal é provocar a mudança nos outros. Um tipo bem conhecido deste arquétipo é o anti-herói: um protagonista moralmente errado (do ponto de vista da sociedade), mas que sempre cria um vínculo de simpatia e solidariedade com o público. Vogler identifica dois tipos de anti-herói. O primeiro é um personagem ferido, que vive alheio à sociedade. Esses personagens geralmente possuem alto grau de cinismo e são rebeldes, fato que fascina o público pela identificação com as ações que gostaríamos de realizar em nossas próprias vidas. O segundo tipo se aproxima do herói trágico. O personagem pode ter grandes qualidades, mas não consegue superar os seus defeitos e acaba sendo destruído por conta de seus demônios internos. O papel de herói é flexível para expressar diversas possibilidades e pode ser combinado com outros arquétipos ao longo da jornada. Um herói pode vestir até mesmo a máscara de sombra, arquétipo comumente identificado aos vilões, para mostrar um lado sombrio do personagem. Da mesma forma, o arquétipo de herói pode se manifestar em outros personagens, o que gera uma surpresa na narrativa. Outro fator que pode ser identificado em um herói é a sua disposição para a jornada. Enquanto alguns heróis são decididos e automotivados, outros terão dúvidas e hesitações, o que cria a necessidade de personagens que o empurrem para a aventura. No entanto, independentemente do tipo de herói que esteja em uma história, é inevitável que em determinado momento haja um confronto com a morte, mesmo


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que apenas de forma metafórica. Alguns exemplos incluem o herói morrer simbolicamente para renascer transformado, lidar com a perda de alguém próximo ou encarar a morte no sentido mais heroico possível: sacrificar-se por um ideal, uma causa ou um grupo. 1.1.2 Mentor O herói nunca está sozinho, pois ao seu lado há o arquétipo de mentor. “A relação entre Herói e Mentor é um dos temas mais comuns da mitologia, e um dos mais ricos em valor simbólico. Representa o vínculo entre pais e filhos, mestre e discípulo, médico e paciente, Deus e o ser humano” (VOGLER, 2006, p. 56). Em relação ao herói, esse arquétipo é responsável por treinar, proteger ou oferecer conselhos e entregar itens importantes. A figura do mentor é a representação do que o herói pode se tornar caso ele continue em sua jornada. Para Vogler (2006), o mentor muitas vezes é o herói que sobreviveu aos obstáculos do passado e agora compartilha seu conhecimento e sabedoria com alguém mais jovem. A principal função do mentor é ajudar o herói. Na hesitação inicial do protagonista, o mentor é responsável por motivá-lo ou ajudá-lo a superar o medo para embarcar em sua jornada. A função pode ser exercida de diferentes formas. O mentor pode funcionar como a consciência do herói ou servir para lembrá-lo de um código moral a ser seguido. Outro atributo comum aos mentores é a tendência a dar um presente que será útil em um momento decisivo. Não por acaso, alguns mentores podem ser cientistas ou inventores, que entregam um equipamento ou compartilham conhecimento com o protagonista. Geralmente esse presente é entregue no começo da aventura, mas é usado apenas posteriormente:

Essa informação é plantada, e se destina a que a plateia tome conhecimento dela, mas a esqueça, até o momento do clímax em que o truque vai salvar a vida do herói. Essas construções ajudam a amarrar o começo e o fim da história, e mostram que, em algum momento, tudo o que foi aprendido com um Mentor se torna útil. (VOGLER, 2006, p. 94)

Nas análises de contos de fadas, Vladimir Propp (2006) definiu esse papel como o de doador ou provedor – aquele que provém um item mágico (ou conselho


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vital) que será usado no ápice do confronto do herói contra o vilão. Nesse caso, o herói deve passar por algum tipo de teste para que o presente seja merecido. Existem diferentes tipos de mentor. Em um universo com valores invertidos, um anti-mentor pode ajudar um anti-herói a evoluir no mundo do crime ou da máfia. Outro exemplo de inversão acontece quando o mentor se sente inseguro pela possibilidade de ser superado pelo herói e adquire traços do arquétipo de guardião de limiar. Nesse caso, ele se torna um obstáculo e faz o oposto de sua função primordial: cria dúvidas para o herói em vez de motivá-lo. Outro modelo é o mentor caído. Esse tipo de personagem vive uma crise (como envelhecimento ou aproximação da morte) que coloca em cheque a sua capacidade de ajudar o herói. É possível que esse mentor tenha de encarar a sua própria Jornada do Herói para se reerguer e estar apto a fornecer o seu auxílio. Assim como os outros arquétipos, a função de mentor pode ser dividida entre vários personagens – cada qual com uma contribuição diferente para o herói – e se manifestar em personagens improváveis, que ensinem sem querer ou sirvam apenas como exemplo a não ser seguido. Da mesma forma, a função nem sempre precisa ser externalizada. Personagens experientes e calejados – geralmente durões e reclusos, como os heróis de faroeste – podem não precisar de um mentor, mas já trazem o arquétipo internalizado em um código de conduta ou noção de honra. Nesse caso, o herói pode apenas mencionar um mentor do passado ou possuir um objeto que represente essa lembrança.

1.1.3 Sombra Durante uma narrativa, é habitual que o herói enfrente a força negativa do arquétipo de sombra – geralmente representado pelo vilão ou antagonista, que se dedica “à morte, à destruição ou à derrota do herói” (Vogler, 2006, p. 123). A principal função do arquétipo é trazer um adversário páreo para o protagonista, que, ao ser desafiado e ter a vida ameaçada, é forçado a mostrar o que possui de melhor. É interessante notar que, muitas vezes, a principal figura de sombra da história não se considera uma antagonista. “Um vilão é o herói de seu próprio mito, e o herói da plateia é o vilão dele” (VOGLER, 2006, 127). Por esse motivo, um inimigo humanizado é mais cativante do que um personagem totalmente mau e traz verossimilhança ao enredo. Ao possuir uma qualidade admirável ou mostrar fragilidade quando está próximo a ser derrotado, o vilão é visto como uma pessoa real,


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com suas motivações, fraquezas e emoções. “Matar alguém assim passa a ser uma verdadeira escolha moral, e não apenas um reflexo impensado” (VOGLER, 2006, 127). A função de sombra pode ser combinada com outros arquétipos, o que potencializa o seu poder. Um mentor com máscara de sombra pode exigir demais de um herói em treinamento e levá-lo quase a morte; o arquétipo de camaleão pode trazer um personagem que inicia como potencial par romântico do herói, mas entra no mundo da sombra e desenvolve uma perigosa obsessão psicótica. Até mesmo o herói pode viver momentos isolados na sombra ou possuir um lado obscuro que precisa ser vencido ao longo da jornada.

Quando o protagonista está paralisado pelas dúvidas ou pela culpa, age de modo autodestrutivo, manifesta vontade de morrer, se deixa inebriar pelo sucesso, abusa do poder ou se torna egoísta em vez de se dispor ao sacrifício, está tomado pela sombra. (VOGLER, 2006, p. 125)

Uma representação muito forte do arquétipo de sombra pode vir por meio de sentimentos reprimidos. Um trauma profundo ou sentimento de culpa guardado no inconsciente pode justificar as ações do vilão ou explicar o lado sombrio do protagonista.

A sombra do psiquisimo de alguém pode ser alguma coisa que foi reprimida, negligenciada ou esquecida. A sombra abriga os sentimentos sadios e naturais que alguém considera que não deveríamos mostrar. Mas a raiva sadia ou a dor, se empurrada para o território da sombra, pode acabar virando uma energia perniciosa, que ataca e solapa de maneiras inesperadas. (VOGLER, 2006, p. 128)

Assim, o arquétipo de sombra pode aparecer como uma força externa ao herói – representado por um vilão –, ou ser uma parte reprimida do protagonista. Segundo Vogler (2006), as sombras exteriores devem ser vencidas ou destruídas pelo herói, enquanto as sombras internas são destituídas de seus poderes ao serem trazidas à luz da consciência.

1.1.4 Arauto Na maioria das histórias, o herói vive em sua rotina até receber um chamado para a aventura. Trata-se de uma força que desafia o protagonista e sinaliza a mudança no enredo. Esse é o arquétipo do arauto, cujo nome vem da Idade Média e


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era usado para designar os mensageiros oficiais dos reinos (vale notar que a palavra em inglês, “herald”, ainda hoje é comumente usada em nomes de jornais pelo mundo). O arauto é responsável por fornecer a motivação que tira o herói de sua zona de conforto e o coloca no caminho da aventura. “Uma nova pessoa, condição ou informação desequilibra de vez o herói; daí por diante, nada, nunca mais, será igual. É preciso tomar uma decisão, agir, enfrentar o conflito” (VOGLER, 2006, p. 110). Qualquer personagem é capaz de vestir a máscara de arauto, seja ele uma figura positiva, neutra ou negativa. Um vilão pode atrair o herói para o perigo, enquanto um aliado pode convocar o protagonista a uma aventura necessária para restaurar a ordem do mundo. Também é possível que o arquétipo seja uma força da natureza, como uma tempestade que sinalize uma grande alteração ou algum outro tipo de aviso. Um telefonema ou uma mensagem que afete o equilíbrio do herói e desperte um chamado interior podem bastar para indicar a mudança em sua vida.

1.1.5 Guardião de Limiar Após entrar na aventura, a Jornada do Herói é permeada por obstáculos que devem ser superados. Nessa linha, o guardião de limiar é o arquétipo que representa os personagens cujo principal objetivo é obstruir (de forma temporária) a passagem do herói e testar sua força de vontade. O guardião de limiar não é o antagonista da história (na maioria dos casos), mas pode ser um subalterno importante. Não raro, pode ser o responsável por controlar o acesso à base do vilão. Outras vezes, pode ser um personagem neutro ou até um aliado, que se coloca nessa posição para cumprir a função de testar a capacidade do herói e verificar se ele está preparado para a mudança ou para adentrar o mundo especial. Ou seja, o personagem serve como uma “escada” para o herói provar seu valor. Essa provação pode ser explícita, como resolver um enigma, ou mais sutil, como superar uma adversidade na carreira de trabalho. Para Vogler (2006), existe a tendência de que o guardião de limiar se torne um aliado caso o herói seja plenamente desenvolvido. Nesse caso, o protagonista se compadece de seu adversário e prefere transcendê-lo a destruí-lo. Em vez de ser derrotado, o guardião de limiar é incorporado pelo herói, que absorve seus truques antes de seguir em frente. O guardião de limiar pode assumir diversas formas, desde algo mais próximo ao nome do arquétipo, como o guardião de um lugar ou um sentinela, até um professor


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que aplica uma prova. Assim como os arautos, esse arquétipo não precisa necessariamente estar encarnado em um personagem, podendo ser identificado como uma força da natureza ou um elemento arquitetônico que obstrua o herói.

1.1.6 Camaleão Ao longo da jornada, é possível que o herói se depare com um personagem que pareça estar sempre mudando. Esse é o arquétipo de camaleão, cuja principal função dramática é confundir o protagonista, adicionando dúvida e suspense ao enredo. O camaleão é um personagem instável, que se transforma e se disfarça. Com essa essência maleável, geralmente é difícil dizer de que lado da história ele realmente está. O arquétipo pode aparecer como potencial par romântico do protagonista, justamente por bagunçar a mente do herói com o jogo da conquista. No entanto, quando o camaleão começa a modificar sua identidade (que pode ser notado por uma mudança de aparência ou comportamento), sua fidelidade passa a ser colocada em xeque. Um tipo bastante conhecido do arquétipo é a femme fatale. Trata-se de uma personagem sedutora que usa seu charme para manipular os homens ao seu redor. É comum que ela esconda um segredo perigoso, como ser uma assassina que espera a hora certa para atacar. Também existe o hommes fataux para designar os personagens masculinos nesse estilo, apesar do termo ser menos conhecido. Assim como nos outros arquétipos, diferentes personagens podem usar a máscara de camaleão. Um herói pode se disfarçar para superar um guardião de limiar ou escapar de uma enrascada, enquanto um vilão pode se transformar para ludibriar o protagonista.

1.1.7 Pícaro Outro tipo de personagem bem conhecido é o pícaro. O arquétipo traz dentro de si um desejo de mudança do status quo, a ordem atual do mundo em que vive. Com suas tiradas ou tendência a pregar peças, o pícaro atenta o público para o desequilíbrio ou estagnação da conjuntura. Sua principal função, no entanto, é trazer o alívio cômico para o enredo, essencial até nas histórias mais sérias.


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Uma tensão sem alívio, o suspense e o conflito podem ser exaustivos emocionalmente, e, mesmo nos dramas mais carregados, a atenção da plateia se reaviva com momentos de gargalhada. Uma velha regra do teatro assinala essa necessidade de equilíbrio: Faça-os chorar muito, faça-os rir um pouco. (VOGLER, 2006, p. 130)

O pícaro pode ser um aliado ou criado do protagonista, ajudante do vilão ou agir por conta própria. De forma geral, costuma ser um personagem catalisador, que subverte a ordem e afeta a vida dos outros a sua volta, mas que muda pouco ao longo da jornada. Isso vale para os heróis picarescos no gênero de comédia. Em outros casos, o personagem principal pode usar da máscara de pícaro para enganar um guardião de limiar ou seu antagonista. 1.2 Os Passos da Jornada Joseph Campbell mapeou as histórias de mitos em seu livro “O Herói de Mil Faces” e descreveu o caminho percorrido por todo herói mitológico. Para o autor, o protagonista pode passar por 17 passos, divididos em três atos, em sua aventura pelos mitos ou contos de fadas. Segundo Campbell (1997), alguns estágios podem ser omitidos em certas histórias, mas há poucas variações no plano essencial. O ato inicial é o da partida, que envolve: 1) O Chamado da Aventura; 2) A Recusa do Chamado; 3) O Auxílio Sobrenatural; 4) A Passagem pelo Primeiro Limiar; e 5) O Ventre da Baleia. Esses estágios mostram a saída do herói de seu mundo cotidiano para uma região desconhecida, uma possível recusa ao chamado para deixar sua terra natal, o encontro com uma figura protetora que fornece um amuleto que o protegerá contra as forças que ele virá a enfrentar, o confronto com um guardião de limiar e a passagem para o mundo mágico – uma esfera de renascimento representada pelo ventre da baleia. Em seguida, há o ato de iniciação: 6) O Caminho de Provas; 7) O Encontro com a Deusa; 8) A Mulher como Tentação; 9) A Sintonia com o Pai; 10) A Apoteose; e 11) A Bênção Última. Na nova região, o herói deve sobreviver a uma sucessão de provas (nas quais é ajudado pelo amuleto que lhe foi concedido previamente). Ele encontra uma deusa (representada por uma mulher) e mostra que está apto a obter a benção do amor – quando a personagem é feminina, ela se mostra apta a oferecer o amor, o que simboliza a própria vida. Campbell escreve mais sobre a relação entre herói e deusa:


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Apenas gênios, capazes das maiores percepções, podem suportar a plena revelação do caráter sublime da deusa. Frente a homens de menor expressão, ela reduz seu fulgor e se permite aparecer sob formas compatíveis com os poderes pouco desenvolvidos deles. [...] A mulher representa, na linguagem pictórica da mitologia, a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é aquele que aprende. [...] A mulher é o guia para o sublime auge da aventura sensual. Vista por olhos inferiores, é reduzida a condições inferiores; pelo olho mau da ignorância, é condenada à banalidade e à feiura. Mas é redimida pelos olhos da compreensão. O herói que puder considerá-la tal como ela é, sem comoção indevida, mas com a gentileza e a segurança que ela requer, traz em si o potencial do rei, do deus encarnado, do seu mundo criado. (CAMPBELL, 1997, p. 116-117)

Com o domínio total da vida (após a relação com a deusa), a consciência do herói é amplificada e ele passa a se ver no lugar do próprio pai, que, nos mitos, é visto como uma figura a ser temida. Assim, o reconhecimento por parte do pai é uma das formas de recompensa para o herói. Outro meio de gratificação pode vir por meio da apoteose, ou seja, a divinização do protagonista. O último estágio do segundo ato se dá quando o herói obtém uma fonte de vida: o elixir recuperado no mundo sobrenatural, que representa o núcleo do próprio indivíduo. O ato final estabelece o retorno do herói: 12) A Recusa do Retorno; 13) A Fuga Mágica; 14) O Resgate com Auxílio Externo; 15) A Passagem pelo Limiar do Retorno; 16) Senhor de Dois Mundos; e 17) Liberdade para Viver. Após obter o elixir de sua aventura, o herói deve voltar para casa, onde essa benção pode servir para restaurar, de alguma forma, a comunidade. Porém, o protagonista da história mitológica pode duvidar dessa realização e até permanecer no reino místico. Caso o herói seja encarregado de retornar à terra natal e tiver recebido a benção de algum deus na obtenção do elixir, ele conta com os poderes do seu protetor para o retorno. No entanto, se o triunfo vier com o descontentamento de um guardião, uma fuga pode ser necessária.

[...] se o troféu tiver sido obtido em oposição do seu guardião, ou se o desejo do herói no sentido de retornar para o mundo não tiver agradado aos deuses ou demônios, o último estágio do ciclo mitológico será uma viva, e com frequência cômica, perseguição. Essa fuga pode ser complicada por prodígios de obstrução e evasão mágicas. (CAMPBELL, 1997, p. 198)


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Em outras circunstâncias, pode ser que o herói precise ser resgatado por meio de auxílio externo. Nesse caso, o mundo natural vai ao seu encontro para trazê-lo de volta. Porém, independente da forma como o protagonista deixa a região sobrenatural, ele deve retornar para casa e, na posse do elixir, enfrentar a sociedade. O herói tem de “receber o choque do retorno, que vai de queixas razoáveis e duros ressentimentos à atitude de pessoas boas que dificilmente o compreendem” (CAMPBELL, 1997, p. 213). Após o retorno, o herói, renascido pela jornada, pode ter a liberdade de ir e vir pelos dois mundos (a liberdade para viver). Os 17 estágios da Aventura do Herói não são rígidos para cada história. Os elementos podem ser ampliados, duplicados, fundidos, reprimidos, distorcidos e eliminados. A estrutura básica, no entanto, possui poucas variações. Campbell resume:

O herói mitológico, saindo de sua cabana ou castelo cotidianos, é atraído, levado ou se dirige voluntariamente para o limiar da aventura. Ali, encontra uma presença sombria que guarda a passagem. O herói pode derrotar essa força, assim como pode fazer um acordo com ela, e penetrar com vida no reino das trevas (batalha com o irmão, batalha com o dragão; oferenda, encantamento); pode, da mesma maneira, ser morto pelo oponente e descer morto (desmembramento, crucifixão). Além do limiar, então, o herói inicia uma jornada por um mundo de forças desconhecidas e, não obstante, estranhamente íntimas, algumas das quais o ameaçam fortemente (provas), ao passo que outras lhe oferecem uma ajuda mágica (auxiliares). Quando chega ao nadir da jornada mitológica, o herói passa pela suprema provação e obtém sua recompensa. Seu trinfo pode ser representado pela união sexual com a deusa-mãe (casamento sagrado), pelo reconhecimento por parte do pai-criador (sintonia com o pai), pela sua própria divinização (apoteose) ou, mais uma vez – se as forças se tiverem mantido hostis a ele –, pelo roubo, por parte do herói, da bênção que ele foi buscar (rapto da noiva, roubo do fogo); intrinsecamente, trata-se de uma expansão da consciência e, por conseguinte, do ser (iluminação, transfiguração, libertação). O trabalho final é o do retorno. Se as forças abençoaram o herói, ele agora retorna sob sua proteção (emissário); se não for esse o caso, ele empreende uma fuga e é perseguido (fuga de transformação, fuga de obstáculos). No limiar de retorno, as forças transcendentais devem ficar para trás; o herói reemerge do reino do terror (retorno, ressurreição). A bênção que ele traz consigo restaura o mundo (elixir). (CAMPBELL, 1997, p. 241-242)

Ao identificar os padrões das histórias mitológicas, Joseph Campbell pavimentou o caminho para o estudo das narrativas. O autor foi responsável por “reunir as ideias, reconhecê-las, articulá-las, dar-lhes nome, organizá-las. Foi ele


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quem expôs, pela primeira vez, o padrão subjacente a toda e qualquer história que jamais se contou” (VOGLER, 2006, p. 48). Christopher Vogler, em seu livro “A Jornada do Escritor”, percebeu que as histórias mitológicas possuem o sinal da verdade psicológica, já que os tipos de personagens que aparecem nos mitos são os mesmos que aparecem em sonhos. Assim, histórias que seguem o modelo mitológico são “psicologicamente válidas e emocionalmente realistas, mesmo quando retratam acontecimentos fantásticos, impossíveis ou irreais” (VOGLER, 2006, p. 49). Com base no trabalho de Campbell, Vogler criou a sua própria Aventura do Herói. Sob o novo nome de “Jornada do Herói”, ele adaptou os passos descritos por Campbell para analisar roteiros de filmes contemporâneos. Alguns estágios, exclusivos aos mitos, foram excluídos, enquanto outros foram adequados ao novo tipo de material analisado. Para a sua Jornada do Herói, Vogler identificou 12 estágios divididos em três atos. O primeiro ato, responsável por situar a história, é composto por: 1) Mundo Comum; 2) Chamado à Aventura; 3) Recusa do Chamado; 4) Encontro com o Mentor; e 5) Travessia do Primeiro Limiar. A maioria das histórias se inicia no chamado “Mundo Comum”, que mostra a vida cotidiana do protagonista. Como a premissa básica de uma jornada é levar o herói para um mundo especial, fora de sua realidade padrão, nada melhor do que criar um contraponto ao apresentá-lo em sua rotina ordinária. O “Chamado à Aventura” aparece para acabar com a comodidade do personagem principal. Um problema ou desafio é apresentado ao herói, mostrando que sua vida comum está prestes a mudar. O chamado pode aparecer de diversas formas e varia ainda mais de acordo com o gênero da narrativa. Como por exemplo, um novo caso a ser resolvido em um filme policial ou de detetive, o assassinato de alguém próximo ao herói em um enredo de vingança ou o primeiro encontro com o par em uma comédia romântica. Esse estágio estabelece o motivo da aventura a ser percorrida. “O Chamado à Aventura [...] deixa claro qual é o objetivo do herói: conquistar o tesouro ou o amor, executar vingança ou obter justiça, realizar um sonho, enfrentar um desafio ou mudar uma vida” (VOGLER, 2006, p. 55). É normal que o herói mostre relutância em deixar o Mundo Comum para entrar na aventura. A “Recusa do Chamado” marca a hesitação em sair para o desconhecido. Muitas vezes, é necessária outra influência para que o herói deixe de recuar, como


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“uma mudança nas circunstâncias, uma nova ofensa à ordem natural das coisas, ou o encorajamento de um Mentor” (VOGLER, 2006, p. 56). O mentor, aliás, desempenha um papel importante em qualquer história. Ele é responsável por preparar o herói para o Mundo Especial, seja ao oferecer conselhos, treinamento, orientação, motivação, equipamentos ou itens mágicos. O “Encontro com o Mentor” geralmente se dá como quarto estágio da jornada, embora o personagem que cumpra a função do arquétipo possa já ter sido apresentado ou apareça novamente mais tarde. Segundo Vogler, a aparição de um mentor é uma consideração prática ao âmbito do enredo. “Pode ser necessário, em qualquer ponto da história, a presença de um personagem [...] que possa dar ao herói a informação vital no momento exato (VOGLER, 2006, p. 100-101). A “Travessia do Primeiro Limiar” marca a passagem do primeiro para o segundo ato. É o momento em que o herói decide responder ao Chamado à Aventura e parte para o Mundo Especial. A jornada tem início: “o balão sobe, o navio faz-se ao mar, o romance começa, o avião levanta voo, a espaçonave é lançada, o trem parte” (VOGLER, 2006, p. 57). Enquanto o primeiro ato estabelece a decisão do herói em agir, é no segundo que a ação se desenrola – até por isso, este ato costuma ter o dobro de tempo em relação aos outros dois. Os estágios que compõe o segundo ato são: 6) Testes, Aliados, Inimigos; 7) Aproximação da Caverna Oculta; 8) Provação; e 9) Recompensa (Apanhando a Espada). Após a Travessia do Primeiro Limiar, o herói deve conhecer as regras do Mundo Especial e encarar seu primeiro teste, algo que o preparará para os desafios futuros. Esse é o momento em que o herói conhece os adversários – aqueles que impedem o caminho para o objetivo da jornada –, e os aliados, os que estarão ao lado dele durante a aventura. Bares costumam ser um local propício para esse tipo de interação, principalmente nos saloons de filmes de faroeste. É comum que o forasteiro, novato na região, seja provocado. Isso testa a coragem e determinação do herói e mostra como ele e seus aliados reagem sob pressão, podendo revelar certas características do personagem. Tendo conhecido os outros personagens e as regras do Mundo Especial, o herói segue a jornada em direção ao seu objetivo e faz a Aproximação da Caverna Oculta, lugar que guarda o que ele procura. É comum que esse local seja o quartelgeneral do vilão e o ponto mais ameaçador do Mundo Especial. Não raro, o herói se


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detém diante do portão para se preparar, planejar o acesso ou pensar em como enganar o guardião de limiar. Todas essas etapas envolvem o sétimo estágio da Jornada do Herói. A entrada na Caverna Oculta costuma marcar o segundo limiar da história. Dentro do território inimigo, o herói passa pela “Provação”. Esse é o momento crítico em que o protagonista chega ao ponto principal da Caverna Oculta e enfrenta o antagonista. Nesse estágio, o herói deve se deparar com a morte para renascer em seguida. Boa parte da tensão é provocada pela dúvida do público em saber se o personagem está vivo ou morto.

[A Provação] é uma das principais fontes da magia do mito heroico. As experiências dos estágios precedentes levaram a plateia a se identificar com o herói e seu destino. O que acontece com ele está acontecendo conosco. Somos encorajados a viver com ele esse momento de iminência de morte. Nossas emoções são temporariamente deprimidas para poderem reviver no “quando o herói retorna da morte”. O resultado desse reviver é uma sensação de entusiasmo e euforia. (VOGLER, 2006, p. 61-62)

Nem sempre essa morte significa que o herói esteja (ou pareça estar) morto. Ela pode ser simbólica, como o aparente fim de um relacionamento nas comédias românticas, com o protagonista testemunhando a morte de alguém próximo (que ele sente, dentro de si, como sendo a sua própria) ou com o personagem principal matando alguém e tendo de lidar com o fato. De qualquer forma, essa relação com a morte precisa ser algo de impacto, que altere a essência do herói, para que ele possa renascer transformado. O estágio da Provação marca a crise do enredo: é o auge do embate entre o herói e as forças hostis, que acontece no principal ponto da história, como, por exemplo, quando o protagonista chega no “topo da montanha, ao ponto mais profundo da caverna, ao coração da floresta, ao interior mais íntimo de um país estrangeiro, ao lugar mais secreto de sua própria alma” (VOGLER, 2006, p. 234). A Provação divide a história em duas partes. Após esse momento, tudo o que sucede é o retorno do herói. A crise se dá no segundo ato e é diferente do clímax, que acontece como consequência dessa ação e arremata a história no terceiro ato. Vogler (2006) cita dois exemplos de como a Provação pode ser posicionada na narrativa: a crise central e a crise retardada. A primeira, colocada bem no meio do enredo, possui a vantagem da simetria e concede bastante tempo para os efeitos da Provação se desenrolarem. Já


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o retardamento da crise permite maior duração para os preparativos (a Aproximação da Caverna Oculta) até o grande momento, que se dá ao final do segundo ato. Nesse caso, a crise fica mais próxima do clímax – ou seja, a consequência principal da ação acontece mais rápido do que na crise central. Após ter sobrevivido à Provação, o herói é recompensado. O estágio da Recompensa (Apanhando a Espada) mostra o êxito do protagonista em obter o tesouro que ele estava procurando e serve como um alívio na tensão da história. Vogler (2006) usa a ideia de “apanhar a espada” para representar qualquer objeto, como o elixir que, nos mitos, possui a capacidade de cura. Às vezes, o conhecimento pode levar o herói a expandir sua consciência, o que faz com que a recompensa seja o aprendizado dele durante a aventura. Em outros casos, o prêmio pode ser a reconciliação com o par romântico, com algum membro da família ou mesmo com as forças hostis. Depois de obter a Recompensa, o protagonista precisa voltar para casa. Começa o terceiro ato, que marca o retorno do herói e traz as consequências das ações do ato anterior. Os estágios que compõe esse arco da história são: 10) Caminho de Volta; 11) Ressurreição; e 12) Retorno com o Elixir. O “Caminho de Volta” é o momento em que o herói toma a decisão de voltar ao Mundo Comum. No entanto, os efeitos da Provação vêm à tona. Após a obtenção da Recompensa na Caverna Oculta, o antagonista ou outras forças hostis que ainda habitam o Mundo Especial perseguem o protagonista e dificultam o seu retorno. A seguir, o herói passa pela “Ressurreição” – um segundo momento de vida ou morte. É basicamente uma repetição do estágio da Provação: o protagonista deve se deparar com a morte para ressuscitar purificado e transformado antes do seu retorno para o Mundo Comum. Nesse ponto ocorre o clímax da história – o momento mais importante –, que pode ser representado por uma batalha final ou uma decisão difícil. “É uma espécie de exame final do herói, que deve ser posto à prova, mais uma vez, para ver se realmente aprendeu as lições da Provação” (VOGLER, 2006, p. 64). O último estágio – “Retorno com o Elixir” – traz o protagonista voltando para casa em posse da benção conquistada. “O herói retorna ao Mundo Comum, mas a jornada não tem sentido se ele não trouxer de volta um elixir, tesouro ou lição do Mundo Especial” (VOGLER, 2006, p. 65). Com o objetivo cumprido e de volta para casa, o ciclo da jornada se encerra. O herói retorna com uma benção, que pode ser uma recompensa física, como um


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tesouro, ou algo imaterial, como a reconquista do amor ou da liberdade, a sabedoria da experiência ou o simples conhecimento da existência do Mundo Especial. No entanto, se o herói é tolo e retorna sem aprendizado, ele está fadado a repetir a aventura (tipo de final geralmente usado em comédias). Vogler resume os 12 estágios da Jornada do Herói:

Os heróis são apresentados no Mundo Comum, onde recebem um Chamado à Aventura. Primeiro, ficam relutantes ou Recusam o Chamado, mas em um Encontro com o Mentor são encorajados a fazer a Travessia do Primeiro Limiar e entrar no Mundo Especial, onde encontram Testes, Aliados e Inimigos. Na Aproximação da Caverna Oculta, cruzam um Segundo Limiar, onde enfrentam a Provação. Ganham sua Recompensa e são perseguidos no Caminho de Volta ao Mundo Comum. Cruzam então o Terceiro Limiar, experimentam uma Ressurreição e são transformados pela experiência. Chega então o momento do Retorno com o Elixir, a bênção ou o tesouro que beneficia o Mundo Comum. (VOGLER, 2006, p. 66)

Assim como na Aventura do Herói de Campbell, a estrutura da Jornada do Herói de Vogler é flexível. Apesar de ser um padrão que deve ser preenchido com os detalhes individuais de cada história, a ordem dos estágios pode ser alterada e alguns passos podem ser acrescentados ou eliminados – sempre em benefício da própria história. Para Vogler (2006), o mais importante são os valores da Jornada do Herói, com seus símbolos que representam experiências universais da vida e podem ser mudados de forma infinita.


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2 A JORNADA DO HERÓI EM THE LAST OF US 2.1 Estágio Um Uma Grande Perda O primeiro estágio da Jornada do Herói é o Mundo Comum. Essa parte é responsável por apresentar o herói em seu ambiente natural, dar o tom da história e fornecer o contexto da trama. Os desenvolvedores de The Last of Us optaram por criar a atmosfera da obra com um prólogo, parte que precede o corpo principal do enredo. O jogo tem início em 2013, com Joel, o protagonista, falando ao telefone celular com o irmão mais novo, Tommy. Isso acorda a pequena Sarah, filha de 12 anos de Joel, que está dormindo no sofá. Ele desliga o telefone. São 23h50 e ela fica feliz com o fato de que o dia ainda não acabou. É aniversário de Joel. Sarah entrega uma caixinha com um relógio de pulso, presente que escolheu pelo fato de o pai “sempre estar reclamando do relógio quebrado”. Joel mostra seu lado divertido e diz que o relógio está parado, para desespero de Sarah – que logo vê se tratar de uma brincadeira. O pai pergunta onde ela arranjou dinheiro para comprar o presente e Sarah também mostra o seu lado cômico dizendo “eu vendo drogas pesadas”. Joel apresenta seu traço de personalidade espirituoso mais uma vez: “Que bom, você pode ajudar com o aluguel, então”. Segundo Vogler (2006), uma boa ideia para uma narrativa é fazer com que o Mundo Comum seja o mais diferente possível do Mundo Especial, para que o herói e o público experimentem uma mudança dramática ao cruzarem esse limiar. O Mundo Comum mostrado no prólogo de The Last of Us traz um ambiente diferente do resto do jogo, que Joel começaria a conhecer ainda naquela noite, e serve como base de comparação. Para Vogler, o Mundo Especial de uma história só se torna especial se puder ser contrastado com o mundo cotidiano, no qual ocorrem as questões do dia a dia e do qual o herói é retirado. Assim, o Mundo Comum representa o passado e o contexto em que o herói vivia antes de a jornada ter início. Joel leva a filha no colo e a coloca para dormir no quarto dela. A cena seguinte mostra Sarah sendo acordada, algumas horas depois, com o toque do telefone da casa. É novamente Tommy, que agora traz uma voz de urgência para falar com Joel. A ligação é interrompida e o jogador pode controlar um personagem pela primeira vez – no caso, Sarah.


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Para a história prosseguir, Sarah deve descer a escada da casa em que vive com o pai em Austin, no estado do Texas, Estados Unidos. Antes disso, o jogador pode explorar o andar de cima e encontrar algumas mensagens que servem de arautos, anunciando grandes mudanças prestes a ocorrer. Um jornal no banheiro traz uma manchete em letras garrafais: “As internações em hospitais aumentaram 300% por conta de uma infecção misteriosa”. Ao entrar no quarto de Joel para procurá-lo, Sarah vê a televisão ligada no noticiário, que fala sobre agressões de pessoas infectadas e um vazamento de gás na região. Nesse momento, ocorre uma explosão, que Sarah pode ver tanto na televisão quanto pela janela do quarto. Ela desce as escadas e vê carros de polícia passando em alta velocidade pela rua. Sarah encontra o celular de Joel na cozinha, com várias ligações perdidas de Tommy e a mensagem de que está vindo para a casa deles. Ela avança para o escritório e vê Joel entrar por uma porta de correr que leva ao quintal. Joel está agitado, perguntando se Sarah está bem e se alguém entrou na casa. Enquanto fala, ele pega um revólver em uma gaveta. Sarah pergunta o que está acontecendo e ele diz que os vizinhos parecem “estar doentes”. Nesse momento, Jimmy, o morador da casa ao lado, invade o cômodo quebrando a porta de vidro. Com Sarah protegida atrás de si, Joel grita para ele se afastar. Ao perceber que seria atacado, ele atira. Sarah fica assustada com a situação. Joel, segurando a garota pelos ombros para ter sua atenção total, explica que algo terrível está ocorrendo e que eles precisam ir embora. Tommy chega e estaciona seu carro na entrada da casa. Joel e Sarah vão imediatamente para lá. O irmão mais novo pergunta onde Joel esteve e se ele tem noção do que está acontecendo. Tommy diz que “metade das pessoas da cidade estão loucas” por conta de “um parasita ou algo do tipo”. Os três entram no carro e Tommy começa a dirigir para longe dali, em direção a uma rodovia. Sarah pede para Tommy ligar o rádio, e ele percebe que a transmissão – assim como os celulares – já não funcionam. No entanto, antes de chegar à casa de Joel, ele ouviu que o exército estava montando barreiras na rodovia. Tommy avisa que outras cidades estão lidando com a mesma situação. Em um dado momento, eles veem um casal com uma criança na beira da estrada. Tommy faz menção de parar para ajudá-los, mas Joel prefere não correr o risco e fala para ele seguir dirigindo. Sarah fica ressentida por não terem parado. Uma das funções do Mundo Comum é apresentar o herói à plateia e estabelecer um vínculo entre o herói e o público. Tommy e Sarah ajudam no propósito


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de mostrar Joel como uma pessoa normal, integrante de uma família. O herói deve sempre ser reconhecido como semelhante, para que o público aceite “entrar na pele do herói e ver o mundo com seus olhos” (Vogler, 2006, p. 148). Também é importante apresentar Tommy (e sua relação com Joel), já que ele reaparecerá mais tarde na história. Ao chegarem na saída para a rodovia, o trio percebe que muitas pessoas tiveram a mesma ideia: o tráfego está parado devido à quantidade de veículos. O motorista do carro em frente deixa o veículo para reclamar e é atacado por dois infectados. Joel manda Tommy sair dali; o irmão usa a marcha ré e começa a procurar uma rota alternativa. Em um cruzamento, o carro deles é atingido com força por outro veículo e a tela fica toda preta. A cena seguinte mostra Joel desacordado no carro virado de lado. Sarah, no banco de trás, acorda o pai, que vê o motorista infectado do outro carro atacando o passageiro (o que explica o acidente). Sem ferimentos graves, Joel percebe a urgência da situação e, agora sob comando do jogador, quebra o vidro da frente para sair do veículo. Assim que se levanta, é atacado por um infectado, mas Tommy – que já estava fora do carro – o acerta com um tijolo na cabeça. Joel ajuda Sarah a deixar o veículo e passa a carregar a garota nos braços devido a um ferimento na perna dela. Tommy avisa que eles precisam correr: a área está cheia de infectados e pessoas fugindo deles. Joel entrega seu revólver para Tommy e pede que ele garanta a segurança. A situação é caótica: humanos sendo atacados pelas criaturas, carros batidos em todos os lugares e locais pegando fogo. O trio segue por um beco e Tommy lida com infectados que aparecem. Eles encontram um restaurante e entram rapidamente, mas Tommy não consegue fechar a porta por conta das criaturas que tentam entrar. Ele diz para o irmão seguir em frente até a rodovia, já que Joel está carregando Sarah, enquanto ele pode correr mais rápido que os infectados se for o caso. Joel avisa que esperará por Tommy e sai pelo outro lado do restaurante. Sendo perseguido por dois infectados, Joel corre para uma ponte pela qual a rodovia passa. Ao se aproximar do local, as criaturas são abatidas com disparos de um soldado que protege a passagem. Joel diz que precisa de ajuda e que Sarah deve estar com a perna quebrada. O guarda diz com veemência para ele parar de avançar e Joel avisa que eles não estão doentes. O soldado transmite por rádio a informação de que dois civis estão no perímetro. Após receber a resposta, que nem os


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personagens nem o jogador podem ouvir, o homem tenta argumentar (“Senhor, há uma garota pequena”), mas acaba acatando a ordem e atira. Joel se vira para tentar proteger Sarah – ainda em seus braços –, mas os dois caem. O soldado se aproxima para matar Joel. No entanto, próximo a efetuar o disparo fatal, ele leva um tiro na cabeça dado por Tommy. Joel não está ferido, mas o jogador pode ouvir gemidos de sofrimento por parte de Sarah. O pai logo percebe o que aconteceu e se aproxima na tentativa de estancar o sangramento causado pela bala. Joel coloca a garota em seu colo, tentando confortá-la de que tudo ficará bem. Sarah morre nos braços de Joel. Apesar de ter uma participação pequena (mas decisiva) na história, esse soldado é um guardião de limiar, exemplo de personagem responsável por impedir a passagem do herói. Nesse caso, porém, ele não representa um desafio que deve ser superado por Joel, mas realiza a ação que será determinante para moldar a personalidade do protagonista no restante da narrativa. O personagem principal de The Last of Us se encaixa no conceito de “herói ferido”. Como será visto no decorrer da história, Joel passa a ter uma profunda ferida psicológica por conta da morte de Sarah. Tal fato humaniza o personagem, igualandoo à maioria das pessoas, já que quase todos possuem uma “velha dor ou machucado em que não pensam a toda hora, mas está sempre ali, vulnerável, em algum nível da consciência” (Vogler, 2006, p. 151-152). A ferida ajuda a dar ao herói um sentido de história pessoal e realismo, pois todos trazemos cicatrizes de humilhações passadas, rejeições, desapontamentos, abandonos e fracassos. Muitas histórias têm como tema a jornada que é percorrida com o propósito de curar uma ferida e restaurar a peça que faltava em um psiquismo quebrado. (VOGLER, 2006, p. 153)

Joel também se vale do conceito de “carência do herói”, usado principalmente para os heróis de contos de fadas, em que o protagonista possui carência de algo – muitas vezes, de um membro da família que perdeu. Isso cria um vínculo automático de solidariedade da plateia, que deseja o sucesso do herói na luta por esse complemento que falta em sua vida. A morte de Sarah cria o ponto de partida para o arco do personagem, cuja jornada será restaurar o equilíbrio familiar. Segundo Vogler (2006), todo herói bem desenvolvido precisa de um problema interno e outro externo. Para ele, “personagens que não têm um problema interno


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parecem chatos e superficiais, por mais heroicos que sejam em suas ações” (Vogler, 2006, p. 146). Mais do que lidar com o ambiente caótico que surge com a epidemia do fungo e a sua futura jornada de transportar Ellie em segurança (problema externo), Joel terá que lidar com a dor pela morte de Sarah e reaprender a se importar com outra pessoa além de si mesmo; reaprender a demonstrar amor (problema interno). Ou seja, para um personagem ser interessante, ele precisa ter um problema íntimo, uma falha de personalidade ou um dilema moral. Isso é válido para The Last of Us: por conta da dor que prefere suprimir, Joel é arrogante e egoísta, fato que vai sendo diluído com a progressão da história. Com o vislumbre do mundo caótico por conta da pandemia e a morte da pessoa mais querida de Joel, o prólogo do jogo serve ao propósito de trazer informação essencial sobre o passado da trama e sugerir o tema da história, “alertando a plateia para as questões que os personagens enfrentarão” (Vogler, 2006, p. 140). Nesse caso, o fato de as pessoas terem de sobreviver em um mundo hostil e perderem entes próximos. The Last of Us faz do seu prólogo o Mundo Comum, o primeiro estágio da Jornada do Herói, que traz indícios das batalhas e dilemas que virão pela frente. O jogo acompanha a ideia de Vogler de que o Mundo Comum deve dar início à história de forma impactante. “Sacudir a percepção normal da plateia pode deixá-la em um espírito mais receptivo, o que a leva a suspender a descrença e entrar mais facilmente no Mundo Especial da fantasia” (Vogler, 2006, p. 142).

2.1.1 Vinte Anos Depois Após a cena final do prólogo, os créditos de abertura aparecem sobrepostos a ampliações de imagens microscópicas da infecção enquanto relatos jornalísticos são narrados sobre a condição atual do mundo. Essa montagem informa o caos que se sucede após a eclosão da epidemia. O enredo avança vinte anos no tempo e inicia-se o arco do verão. Sem considerar o prólogo, a história de The Last of Us acontece aproximadamente no período de um ano e é dividida em quatro arcos, cada um representado por uma estação do ano. Além de marcar a passagem de tempo, a sucessão das estações indica o ciclo de desenvolvimento de Joel. Na definição de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, autores do Dicionário dos Símbolos (1982), as estações simbolizam a alternância cíclica e os perpétuos reinícios, ilustrando assim o mito do eterno retorno.


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Em 2033, cerca de 60% da população mundial já foi atingida pela Infecção Cerebral do Cordyceps (ICC). A infecção – comum em insetos e invertebrados – sofreu uma alteração e começou a afetar o sistema nervoso dos humanos, transformando-os em criaturas que perdem a humanidade. A origem da doença nunca foi descoberta, mas ela se espalhou devido a plantações contaminadas. Duas décadas após o surto pandêmico, o sistema de organização da sociedade mudou muito. Após a Organização Mundial da Saúde falhar na tentativa de criar uma vacina contra a infecção do Cordyceps, a Agência Federal de Resposta a Desastres (FEDRA) assumiu as forças militares dos Estados Unidos e decretou lei-marcial, onde não existe nenhuma outra forma de governo. Em diversas cidades foram criadas zonas de quarentena comandadas com rigor pela FEDRA, com autoritarismo militar sobre a entrada e saída de pessoas, regulação de comida para os civis e controle para evitar pessoas infectadas nas imediações. Em contrapartida, foi criada uma organização rebelde chamada Vagalumes, com intuito de derrubar a FEDRA do poder e reestabelecer a ordem padrão. Contra a tirania militar, eles realizam ataques às zonas de quarentena com o intuito de enfraquecer o novo governo. Os Vagalumes existem em grupos espalhados pelos Estados Unidos e possuem outro grande ideal: buscar uma cura para a infecção, objetivo não descartado apesar das tentativas frustradas de se criar uma vacina. Joel agora vive na zona de quarentena de Boston com Tess, sua parceira. Os dois fazem negócios juntos: saem ilegalmente da cidade para trocar e vender recursos com outros sobreviventes. Como o dinheiro não faz mais sentido no mundo pósapocalíptico, cartões que valem ração de comida na zona de quarentena costumam ser usados como moeda. A primeira cena nesse novo cenário é Joel sendo acordado com batidas na porta de seu apartamento. Tess entra. Apesar de ainda ser manhã, ela se serve do uísque que está em cima da mesa. Tess avisa que traz notícias interessantes e Joel, impaciente, pergunta onde ela estava. A mulher diz que foi ao distrito de West End, onde eles tinham uma entrega para fazer. Joel se queixa que ela foi sem ele e Tess responde “você queria ficar sozinho, lembra?”, indicando uma briga anterior entre os dois. O tipo de relação entre Joel e Tess nunca fica muito claro na história. Os dois são muito parecidos: são durões – o que julgam ser necessário para sobreviver –, não hesitam caso precisem matar alguém, não falam de sentimentos e não mostram afeto.


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Apesar de confiarem um no outro para os negócios e estarem sempre juntos, não é explícito se a relação deles também é amorosa. Tess está machucada no rosto e Joel, irônico, acredita que a entrega deu errado e o cliente fugiu sem pagar. Tess fala que deu tudo certo e mostra os cartões de comida obtidos na troca. Joel então pede para explicar o machucado e ela diz que foi atacada por dois homens. Joel passa a limpar as feridas de Tess e pergunta, de forma indireta, se ela matou os sujeitos. Tess dá uma resposta evasiva (que pode ser entendida como “óbvio que matei”). Joel pergunta, então, se ela sabe quem eram os homens. Ela diz que isso não interessa; o que importa é que eles foram mandados por Robert, um negociante de armas que prejudicou Joel e Tess – fica subentendido que ele não entregou armas pelas quais a dupla pagou. Tess sabe onde Robert está escondido e ela e Joel decidem ir atrás dele. Nesse momento, sabemos muito pouco sobre o que aconteceu durante o intervalo de vinte anos que se passou na história. O período compõe a história pregressa, o conjunto de informações sobre o passado do personagem. Segundo Vogler (2006), é melhor colocar o público direto na ação e deixar que ele venha adivinhando as coisas à medida que a história se desenrola. The Last of Us faz isso muitas vezes, sem uma narração ou personagem para explicar o que aconteceu, deixando o jogador explorar o mundo e entender por si mesmo fatos passados que levaram ao momento atual.

A plateia se envolverá mais com a história se tiver que trabalhar um pouco para deduzir a história pregressa, a partir de pistas visuais ou de uma exposição que irá se revelando enquanto os personagens estão perturbados emocionalmente, ou agindo em um determinado sentido. A história pregressa, então, pode ir sendo destilada aos poucos, gradualmente, no decorrer da história, ou ser entregue aqui e ali, de maneira relutante. Muita coisa se descobre pelo que as pessoas não fazem ou não dizem. (VOGLER, 2006, p. 155)

Após o diálogo de abertura entre o herói e Tess, o jogador começa a guiar Joel pela zona de quarentena e é apresentado aquele novo mundo. Os primeiros comentários dos personagens já dão indícios da natureza do lugar: Tess diz que o ponto de controle, comandado pela FEDRA, ainda está aberto e Joel lembra que faltam algumas horas até o toque de recolher. É possível ver filas de pessoas para receber uma porção do racionamento de comida e civis sendo executados quando militares descobrem – por meio de um aparelho – que eles estão infectados. Foi esse


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tipo de atitude que levou os rebeldes a criarem os Vagalumes – e a consequência das ações do grupo é vista a seguir. Ao tentar passar pelo posto de controle, um ataque dos Vagalumes faz um veículo militar explodir e a saída é fechada. Joel e Tess são forçados a usar um túnel que passa por fora da cidade. No caminho, Tess encontra um amigo que avisa que o túnel está limpo, sem patrulha militar ou infectados. Ela e Joel também descobrem que Marlene, a líder dos Vagalumes, é outra à procura de Robert. Apesar de o jogador estar apenas conhecendo esse universo pós-apocalítico, a zona de quarentena também representa um Mundo Comum para Joel. Dessa vez não está sendo mostrado o passado do herói, como sabe-se agora que o prólogo representa, mas o Mundo Comum da maior parte da história, no qual se passam as ações cotidianas do personagem. “Na vida, passamos por uma sucessão de Mundos Especiais que, aos poucos, vão se tornando comuns, à medida que nos acostumamos com ele” (VOGLER, 2006, p. 143). Joel está totalmente adaptado a essa realidade. Joel e Tess entram no túnel e pegam seus equipamentos (mochilas e armas), que estavam ali desde a última vez que utilizaram o local. Na travessia, precisam colocar uma máscara de gás para não se contaminar com esporos – expelidos por cadáveres de infectados – e conversam sobre Bill, um sujeito que arranja carregamento de suprimentos para eles com certa frequência. No meio dos esporos, Joel enfrenta seu primeiro dilema moral. Um homem caído, preso embaixo de um armário, avisa que sua máscara quebrou e pede para que Joel e Tess não deixem ele se transformar em um infectado. Joel pode atender o pedido e matá-lo ou ignorar e seguir pelo túnel. A decisão do jogador não influencia a história, mas dá o tom de que muitas vezes não há uma escolha fácil (ou maniqueísta) a ser tomada nesse mundo. Em seguida, o jogador deve enfrentar, pela primeira vez, criaturas infectadas. São “corredores” – estágio um da infecção –, seres com a visão ainda intacta, extremamente rápidos e que geralmente vivem em bandos. Joel e Tess se livram da situação e chegam a outro ponto da cidade. O local é “barra pesada” e quase acontece uma briga quando um homem encara Joel para evitar sua passagem. No entanto, o sujeito relaxa ao ver que ele está acompanhado de Tess. A seguir, ela paga outro homem com cartões de comida para saber se Robert passou pela área e ele avisa que o negociante de armas está no cais. Essas duas situações ajudam a mostrar o papel de Tess na história: ela serve de suporte para reforçar a dor psicológica do herói pela morte de Sarah. Tess é quem


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toma as decisões e atitudes da dupla: foi ela que fez uma entrega sozinha, mantém boas relações com as pessoas e consegue informações. Isso ressalta a introversão de Joel no contato humano desde os eventos do prólogo. É como se Joel seguisse os passos de Tess por inércia. A dupla encontra alguns capangas de Robert, que os ameaçam e falam para eles irem embora. Tess diz que o assunto deles é com Robert, mas o adversário se mostra intransigente. Ao perceber que a conversa não levaria a lugar nenhum, Tess mata o sujeito com um tiro. O jogador, controlando Joel, enfrenta inimigos humanos pela primeira vez e deve derrotar os outros capangas. Por se tratar de um jogo eletrônico, o começo no Mundo Comum também serve de tutorial para apresentar as mecânicas básicas que serão utilizadas ao longo da experiência – correr, atirar, usar coberturas para se proteger, criar kits médicos para recuperar vida, coletar peças para criar armas e utensílios, matar inimigos de forma furtiva e assim por diante. Depois de derrotar mais capangas, Joel e Tess encontram Robert. Ele tenta fugir, mas acaba encurralado. Nesse momento, a dupla mostra como é implacável. Tess acerta as pernas de Robert com um cano e ele cai no chão. Robert tenta negar qualquer mal-entendido e Tess pergunta onde estão as armas. O negociante diz que “é complicado” e começa a enrolar. Joel dá um chute em seu rosto e se prepara para quebrar seu braço. Robert admite que vendeu as armas e pede uma semana para consertar a situação. Tess diz que poderia considerar isso se ele não tivesse mandado capangas para matá-la e pergunta quem está o armamento. Ele diz que não pode responder e Joel quebra seu braço. Tess pergunta novamente e ele diz que está com os Vagalumes. Em uma última atitude de desespero, Robert propõe se aliar com Joel e Tess para atacar os Vagalumes e recuperar as armas. Tess diz que essa é uma ideia idiota e, sem hesitar, mata Robert com dois tiros. Joel pergunta o que eles devem fazer a seguir. Tess responde que eles devem ir atrás da mercadoria e tentar recuperá-la de alguma forma: “Vamos procurar um Vagalume…”.

2.2 Estágio Dois Marlene Chama à Aventura “Vocês não precisam procurar muito longe”, diz Marlene, a líder dos Vagalumes, que aparece ferida (possivelmente durante o ataque ao posto de controle) procurando por Robert. Tess logo avisa que as armas fornecidas pelo vendedor não


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eram dele e as pede de volta. Marlene diz que as coisas não funcionam assim, já que ela pagou pelas armas. No entanto, faz uma oferta: pode devolver as armas com acréscimo de equipamento se eles toparem o trabalho de levar “algo” para fora da cidade. Joel questiona como ele e Tess podem ter certeza de que ela está com as armas. Marlene diz que pode mostrar. Nesse momento, é ouvido um aviso para os militares “vasculharem a área”. Marlene diz que precisa sair dali e os dois a acompanham. Após atravessar prédios abandonados e lutar com alguns guardas, eles chegam ao esconderijo de Marlene. Joel e Tess descobrem que a proposta de contrabandear algo para fora da cidade envolve Ellie, uma garota de 14 anos que Marlene quer levar até o Congresso, onde outro grupo da organização a espera. Para Vogler (2006), uma vez que o personagem principal foi apresentado, é necessário algum evento para ligar o motor e dar partida na história. Muitas vezes, esse evento vem por meio de um personagem que é a manifestação do arquétipo de Arauto, que serve para “desencadear o movimento da história, apresentando ao herói um convite ou desafio para enfrentar o desconhecido” (VOGLER, 2006, p. 164). Marlene cumpre esse papel no Chamado à Aventura, o segundo estágio da Jornada do Herói. É graças a ela que Ellie aparece na história, o que indica uma mudança significativa no trilho da narrativa. Tess comenta que o Congresso não é muito perto. Marlene responde que eles são capazes e oferece o dobro de armas em relação ao que Robert vendeu. Tess quer saber a localização das armas – que não estão no esconderijo – e Marlene fala que elas estão no acampamento dos Vagalumes. Joel se cala e mostra uma postura defensiva, cruzando os braços – um indicativo do estágio seguinte da Jornada do Herói, “A Recusa do Chamado”. Tess diz que eles só aceitam o trabalho se virem as armas. Marlene diz que eles podem seguir para o seu acampamento, onde é possível que eles analisem as armas e ela pode cuidar de seu ferimento, mas com uma condição: Ellie não deve se arriscar cruzando a cidade até o acampamento. A líder dos Vagalumes propõe que Joel tome conta da garota enquanto Tess verifica as armas. Joel e Ellie protestam sobre a decisão, mas aceitam após um breve diálogo com suas respectivas duplas. Ellie pergunta como Marlene conheceu os dois. Ela responde que conhecia Tommy, o irmão de Joel, que havia participado dos Vagalumes e era confiável. Do outro lado, Joel se mostra desconfortável em aceitar o


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trabalho de levar a garota. Tess sugere que ele vá com Ellie para um túnel ao norte e espere por ela. De lá, eles poderão sair da cidade e seguir para o Congresso. Tess reforça que este é somente um trabalho: “É apenas carga, Joel”. Decisão tomada, Joel parte com Ellie enquanto Tess segue para verificar as armas com Marlene. Joel questiona Ellie sobre como uma simples garota conhece a líder dos Vagalumes. Ellie diz que Marlene era amiga de sua mãe e agora cuida dela. “Então, em vez de ir à escola, você decidiu se juntar aos Vagalumes?”, pergunta Joel, assumindo que a garota se uniu ao grupo rebelde. Ellie responde que não pode contar o motivo de estar sendo “contrabandeada”. Joel dá uma resposta curta e grossa, dizendo que não precisa saber e que não se importa com Ellie. É importante destacar essa primeira conversa entre Joel e Ellie, os dois personagens principais da história. Joel se mostra indiferente, algo que aos poucos será alterado conforme ele avança pela sua jornada interior. Os dois chegam a um pequeno apartamento no túnel norte. Joel deita em um sofá para passar o tempo e diz para Ellie procurar algo para fazer. Nesse momento, a garota comenta que o relógio de Joel está quebrado e vemos que o protagonista ainda mantém consigo o presente que ganhou de Sarah vinte anos antes, quando o seu relógio anterior também estava quebrado. De forma simbólica, é possível entender que Joel ainda leva consigo a dor pela perda da filha e não superou o seu trauma, motivo pelo qual se tornou defensivo e sem mostrar sentimentos. O fato de o relógio estar quebrado é significativo, pois metaforiza a condição do próprio Joel: ele também está “quebrado”, parado no tempo, e agora Sarah não está mais viva para lhe dar um relógio novo. Joel precisa passar pela Jornada do Herói para que possa ser "consertado", ou seja, para que o herói consiga superar a dor pela perda da filha e reaprenda a demonstrar sentimentos e se importar com mais alguém. Após um determinado tempo, Joel acorda no sofá. Ellie, que aparentemente não dormiu, observa a noite chuvosa pela janela e tenta puxar assunto. Ela conta que Joel falava enquanto dormia. “Odeio sonhos ruins”, conclui a garota, e Joel concorda. A seguir, ela comenta que nunca esteve tão perto de sair da cidade e pergunta se lá fora pode ser pior do que a parte de dentro. Joel fica quieto até perguntar “o que diabos os Vagalumes querem com você?”, o que contraria a afirmação anterior de que ele não se importava em saber. Antes que a garota possa dar uma resposta, Tess chega sozinha ao local. Ela diz para Ellie que Marlene ficará bem e conta para Joel que há bastante mercadoria pela realização do


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serviço. Tess confirma se Joel quer fazer o trabalho. Ele responde um “sim” sem animação e a dupla segue com Ellie. 2.3 Estágio Três As Recusas de Joel “É natural que, de início, a reação dos heróis seja a de tentar evitar a aventura” (VOGLER, 2006, p. 172). O personagem principal tende a hesitar diante dos riscos de uma jornada pelo desconhecido. A incerteza de Joel em levar Ellie já mostra sua tendência em querer recusar a aventura. Mas, principalmente por conta da proatividade de Tess, aceita que eles escoltem a garota. Tess conta que outros membros dos Vagalumes devem estar esperando-os no Congresso. Ela indaga sobre o tamanho da operação e pergunta a Ellie se ela é “filha de alguém importante ou algo assim”. Ellie, evasiva, responde apenas um “algo assim”, evitando revelar o verdadeiro motivo. O trio deixa o apartamento e segue por um túnel até chegar em ambiente externo. Porém, logo são capturados por dois soldados de uma patrulha. Joel, Tess e Ellie são colocados de joelhos e com as mãos na cabeça. Os soldados cumprem o papel de guardiões de limiar, atrapalhando os protagonistas antes que a aventura comece de fato. Pode-se analisar que eles servem para mostrar se os heróis (principalmente Ellie, que demonstra ímpeto e coragem) estão preparados para o desafio. Enquanto um soldado chama reforços para buscar o trio, o outro começa a escaneá-los para ver se estão infectados. Ele examina Tess e Joel e se aproxima de Ellie. Porém, no instante em que usa o aparelho na garota, Ellie rapidamente pega uma faca e acerta a perna do soldado. Ele reage e mira o revólver nela, mas Joel derruba o homem e o mata com um tiro – Tess atira no outro guarda. Em seguida, Tess pega o aparelho do chão e vê que ele marca “positivo”. Joel pergunta se Marlene tentou armar para cima deles ao entregar a tarefa de contrabandearem uma garota infectada. No entanto, Ellie diz que não está infectada e pode explicar a situação. Ela mostra uma mordida em seu braço e diz que já se passaram três semanas, quando o normal é uma pessoa se transformar em dois dias. Ela é imune. “Eu não acredito”, responde Joel de imediato, mostrando mais uma vez sua tentativa de recusa ao Chamado à Aventura. A situação de levar Ellie se mostra cada


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vez mais perigosa e Joel quer se livrar desse problema. O terceiro estágio da Jornada do Herói cumpre uma função dramática importante: mostrar que a aventura possui riscos e ameaças. Antes que o trio possa debater mais sobre a situação de Ellie, o reforço de soldados se aproxima do local e cria uma situação de emergência. Joel fala para Tess correr e segue na frente. Tess acode Ellie para acompanhá-los. O trio segue de forma sorrateira por caminhos alternativos. Em uma longa travessia por prédios abandonados, eles desviam de diversas patrulhas (embora o jogador possa optar pelo conflito) e conseguem escapar. Em um momento de calma, Tess quer saber qual é o plano de Marlene. Ellie explica que os Vagalumes possuem uma zona de quarentena própria com médicos que ainda procuram a cura para o Cordyceps. Para Marlene, Ellie seria a chave para uma vacina, já que a infecção não afetou a garota. Joel se mostra cético (“Já ouvimos isso antes, não é, Tess?”) e ironiza as falas da garota. Ellie se irrita com Joel e diz que não pediu por nada do que está acontecendo. Joel rebate dizendo que ele também não, mostrando a insatisfação de ter que levá-la, e questiona Tess sobre estarem seguindo em frente. “E se for verdade? Já chegamos até aqui. Vamos até o fim”, responde Tess, para incredibilidade de Joel. “Preciso lembrar você do que há lá fora?”, pergunta ele, recusando a jornada mais uma vez por conta dos perigos da aventura. Para Vogler (2006), a recusa persistente é uma das marcas do herói trágico que, relutante, tem de ser chamado muitas vezes, pois tenta evitar a responsabilidade. “A recusa pode ser um único degrau próximo ao princípio da jornada ou pode estar em cada degrau do caminho, dependendo da natureza do herói” (VOGLER, 2006, p. 179). Tess diz conhecer os perigos e, sem dizer mais nada, toma a dianteira e segue em frente, com Ellie em sua cola. Joel é mostrado sozinho na imagem, vencido, sabendo que irá acompanhá-las mesmo sem concordar. Isso reforça o que aprendemos no Mundo Comum da zona de quarentena: Tess é quem toma as decisões da dupla e se comunica com as outras pessoas, enquanto Joel tenta evitar as relações humanas. Para Vogler (2006), muitas vezes os heróis não percebem que há algo de errado e que precisam mudar. Eles podem estar em um estado de negação, seguindo adiante graças a um arsenal de muletas, vícios e mecanismo de defesa. Joel se encaixa exatamente nesse perfil e não enxerga (ou tem medo de perceber) que a relação com Ellie pode ser a chave para a sua mudança. Além disso, ele não se


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importa com a possível cura para a infecção, pois se tornou egoísta e pensa que, para sobreviver nesse mundo, é necessário cuidar apenas de si mesmo em detrimento do resto da humanidade. O trio segue a caminho do Congresso e passa por cenários destruídos. Ellie pergunta o que aconteceu e Tess explica que os militares bombardearam as áreas ao redor das zonas de quarentena para matar o maior número de infectados, mas isso funcionou somente por um tempo. Em um prédio abandonado, eles encontram “estaladores”. Essa criatura cega é o resultado de anos de infecção e configura o estágio três da doença (o segundo estágio só é encontrado mais adiante na história). O nome desse tipo de infectado vem do barulho de estalo que eles emitem para se guiar pelo som e encontrar suas presas. Ao abrir uma porta, Joel é atacado por um deles, mas Tess mata o estalador com dois tiros na cabeça. O trio encontra mais criaturas – junto com corredores, o estágio inicial da infecção – e mescla despistá-los andando de forma furtiva ou enfrentá-los em combate com facas, pedaços de madeira, canos ou escassos tiros de revólver. Enquanto progridem, Joel e Tess conversam sobre planos futuros. “Quando a gente voltar, pode descansar um pouco”, diz ela, indicando uma pausa nos contrabandos. Joel diz que “só acredita vendo”, já que Tess sempre corta essa ideia quando ele a propõe. É possível analisar que a principal função desse diálogo seja fazer o jogador imaginar um futuro tranquilo entre o casal, o que aumenta o impacto quando se descobre que isso nunca poderá acontecer. Alguns presságios já indicam que algo ruim se aproxima: o trio encontra membros dos Vagalumes mortos. Embora não sejam o grupo do local de encontro, eles também estavam indo para o Congresso. Além disso, Ellie elogia Joel e Tess sobre suas habilidades para lidar com os infectados, mas Joel, sempre pessimista, responde que “isso se chama sorte e vai acabar”. Após escaparem de mais infectados, Tess inicia uma conversa e pergunta para Ellie como ela foi mordida. A garota conta que fugia do colégio interno militar para explorar a cidade e estava no shopping quando um corredor a mordeu, o que a levou a pedir ajuda para Marlene e os Vagalumes. Ellie sempre anda mais próxima à Tess do que Joel. Essa distância (não apenas física, mas também no sentido de amparo à garota) é evidenciada quando Ellie, sem querer, faz barulho ao quebrar um vaso de porcelana em um museu abandonado, onde se encontram nesse momento. A reação de Joel é dizer “Tess…”


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de forma impaciente e sem vontade, como que pedindo para ela tomar conta de Ellie. É interessante notar como Joel evita se dirigir diretamente à garota e faz questão de não se envolver, deixando sempre Tess encarregada de acompanhá-la. Os heróis seguem pelo museu, mas Joel se separa de Ellie e Tess após um desabamento obstruir uma porta. Ele passa por alguns estaladores e reencontra as duas sendo atacadas por um grupo de corredores. Após se livrarem dos infectados, Joel conversa com elas para saberem se estão bem e todos seguem para o telhado do prédio, no qual já é possível ver o Congresso. Eles encontram um longo pedaço de madeira e o usam como ponte para atravessar para o telhado seguinte. Talvez pelo risco de vida que Ellie e Tess correram, Joel começa a mostrar o mínimo de preocupação com a garota, falando para ela tomar cuidado ao andar pela tábua – mas Ellie faz uma cara de descaso e atravessa facilmente. Então acontece algo diferente: Joel inicia uma conversa com Ellie. A garota olha encantada para os prédios do centro da cidade – ela sempre viveu dentro da zona de quarentena – e se surpreende com a vista. Tess atravessa e diz para eles seguirem em frente. Ellie logo obedece e sai de enquadramento, enquanto Joel é mostrado olhando em direção a garota – como se a tivesse notado pela primeira vez – e depois para baixo – ou, mais precisamente, para o seu relógio quebrado. É possível entender essa cena como o momento inicial em que Joel se abre, minimamente, para uma relação com Ellie. O encantamento da garota com a vista faz Joel lembrar de sua filha, simbolizado pelo fato de olhar para o relógio (presente de Sarah). Mesmo que Joel ainda não perceba, Ellie será o caminho para reconstruir sua capacidade de amar e superar o trauma guardado por conta da morte da filha. Joel fica envolto em seus pensamentos e Tess chama a atenção para ele continuar andando. Ela ainda o repreende (“Estamos quase lá. Não se distraia”), o que indica descontentamento de Tess e que Joel estava mesmo com a cabeça em outro lugar. Essa primeira ligação de Joel com Ellie fica mais evidenciada nessa cena por conta da trilha sonora suave, que inicia com a conversa entre os dois e termina com a repreensão de Tess. O trio chega ao Congresso, mas a situação não é boa: os Vagalumes estão mortos. Tess se desespera e vasculha os corpos em busca de algum mapa que indique o local do laboratório do grupo. “Até onde vamos com isso?”, Joel pergunta descrente. Tess responde com emoção: “Até onde for preciso”. Joel não se convence: “O que estamos fazendo aqui? Nós não somos assim”.


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“O que sabe sobre nós? Sobre mim?”, responde Tess, indicando que a relação entre os dois sempre foi fechada. Ela questiona os atos deles em todos esses anos, se julgando como pessoas ruins. “Não, somos sobreviventes”, racionaliza Joel, evitando ter sentimentos sobre suas ações. Ela tenta argumentar “Essa é a nossa chance…”, mas Joel explode. “Acabou, Tess!”, grita ele. “Nós tentamos. Vamos para casa”. Tess diz que não vai a lugar nenhum e entra na defensiva. Ellie entende a situação e comunica: Tess está infectada. Joel pede para ver o ferimento. Tess mostra e o compara com a mordida de Ellie: “Eu fui mordida há uma hora e já está pior”. Ela acredita que a imunidade de Ellie é real e sugere que Joel escolte-a para Tommy – o irmão dele –, que havia participado dos Vagalumes e deve saber para onde levá-la. Joel rechaça de imediato (“Não, essa era a sua cruzada. Eu não vou fazer isso”), tirando o corpo fora ao julgar que foi Tess quem aceitou levar Ellie, embora ele tenha concordado e seguido adiante. Tess apela para a emoção (“Existe o suficiente entre nós para que você sinta alguma obrigação comigo”) e insiste que Joel leve Ellie para Tommy. Nesse instante, um grupo de soldados se aproxima do Congresso. Tess diz que pode ganhar tempo para os dois, mas eles devem correr para sair dali. Joel e Ellie não querem deixá-la sozinha, mas Tess argumenta que não quer virar uma criatura infectada. Joel ainda tenta ficar e Ellie mostra sentimento de culpa (“Desculpem, eu não queria que fosse assim”), mas Tess bate o pé e os dois vão embora. No estágio da Recusa do Chamado, é comum que o protesto do herói continue até a recusa ser superada por uma motivação mais forte. Ao se deparar com o grupo de Vagalumes mortos, Joel entende que a missão terminou e se recusa a continuar a jornada de levar Ellie, mas é movido pelo pedido de Tess antes de ela se sacrificar. Tess veste a máscara de dois arquétipos nessa cena. Primeiro, de mentora, ao dar a motivação e empurrar Joel para jornada que ele tanto tentou recusar. Segundo, de heroína, ao se sacrificar para que a dupla tenha a chance de escapar do prédio. Joel não pode mais recusar a jornada e segue adiante com Ellie.

2.4 Estágio Quatro Bill, o Mentor às Avessas “Não acredito que fizemos isso. Deixamos ela para morrer”, lamenta Ellie, culpada pelo sacrifício de Tess. Joel se nega a conversar sobre isso e pede apenas


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para que ela fique quieta. Tiros são ouvidos e o corpo de Tess pode ser visto quando os personagens avançam pelo andar de cima do Congresso. Enquanto enfrentam ou desviam de um grupo de soldados, é possível notar uma quantidade maior de diálogo entre Joel e Ellie. Como Joel agora é o responsável pela garota, ele a protege pedindo para que fique próxima, avance ou abaixe. Os dois conseguem sair do prédio e avançam para uma estação de metrô. Há esporos do Cordyceps na estação subterrânea e Joel coloca a sua máscara anti-gás. Ele pergunta como Ellie consegue respirar sem esse tipo de equipamento e ela responde que não estava mentindo sobre ser imune. Essa é uma comprovação que dá a Joel a garantia para confiar na garota. A seguir, eles precisam passar pela linha do metrô, que está alagada. Ellie revela não sabe nadar e Joel diz que eles darão um jeito. Ele entra na água e encontra uma plataforma de madeira. Ellie sobe e Joel leva-a até o outro lado em segurança. Por sua vez, a garota coloca uma escada para Joel subir. Esse momento mostra o nascimento de uma crescente relação de Joel como mentor de Ellie. A garota é frágil e precisa ser ajudada ou ensinada, o que desenvolve (ou melhor, recupera) o sentimento de proteção paternal de Joel. O fato de ajudá-la em sua inaptidão para nadar – elemento que se repetirá ao longo do jogo – também estabelece a conexão do jogador com Ellie, que passa a se preocupar com a garota da mesma forma que Joel, reforçando a identificação no personagem controlado. O fato da garota “retribuir” colocando a escada também indica que a relação não será de mão única, mas que Joel também poderá contar (e aprender) com Ellie. Após saírem da estação de metrô e se encontrarem em local seguro, Ellie começa uma conversa sobre o que aconteceu com Tess. Joel se mostra irritado e logo corta o assunto. “Olha só, as coisas vão ser assim: você não fala da Tess. Nunca”, diz ele, antes de falar que acha melhor os dois não conversarem sobre suas histórias. Essa negação em lidar com a morte de pessoas próximas mostra como Joel se protege de seu trauma. “Os ferimentos e cicatrizes de um herói marcam as áreas em que ele se resguarda, é defensivo, fraco e vulnerável. Um herói pode também ser superforte em algumas áreas como uma forma de defesa para as áreas machucadas” (VOGLER, 2006, p. 152). Enquanto Joel é extremamente eficaz em sobreviver no mundo pós-apocalíptico, ele é defensivo sobre a morte de Sarah e de Tess. Ao evitar falar sobre suas feridas psicológicas, Joel é humanizado pela dor, evitando que o personagem seja um homem incrível, sem defeitos, que sobrevive em ambiente


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caótico e perigoso. Para Vogler (2006), a ferida ajuda a dar ao herói um sentido de história pessoal e realismo; sua jornada será restaurar a peça que falta desse psiquismo quebrado. Joel se mostra autoritário e manda Ellie nunca contar sobre ser imune e sempre fazer o que ele manda. Ellie, sem opções, se mostra condescendente e aceita. O jeito brusco do herói mostra que ele ainda não está preparado para se abrir e talvez até culpe a garota por rememorá-lo à dor de seu trauma, apenas pelo fato de estar com ela e mesmo que de forma inconsciente. Os dois seguem para o norte, onde Joel acredita que Bill – o homem que comercializava recursos com ele e Tess – pode arranjar um carro, algo necessário para levar Ellie até Tommy. Após uma elipse de tempo, Joel e Ellie atravessam um cenário idílico, com árvores e pequenos animais, como garças e esquilos. Ellie se encanta com a paisagem e diz que nunca andou por um bosque. Essa nova experiência mostra a garota como criança em seu senso de descoberta e estreita a visão paternal de Joel (e do jogador) sobre ela. Além disso, ao pensar que Ellie vê um lugar desses pela primeira vez, o jogador é levado a imaginar como foi a vida da garota, que já nasceu no mundo pós-apocalíptico e cresceu sem nunca ter conhecido o mundo anterior. A conversa muda de rumo. “Por que você não me leva de volta para Marlene?”, pergunta Ellie. Joel rebate com outra pergunta: “Se ela pudesse cumprir a tarefa, por que te deixaria conosco?”. Ellie justifica que Marlene pode estar melhor de seu ferimento agora, mas Joel diz que a chance de sobrevivência dos Vagalumes nunca foi muito alta. Ele ainda diz que, na verdade, isso não importa, porque pensa que os dois não conseguiriam entrar de volta na cidade. “Acredite, eu gostaria que houvesse outra opção”, finaliza. Do ponto de vista de enredo, esse diálogo serve para justificar a continuação da jornada após a morte de Tess. Joel poderia simplesmente desistir, mas já se preocupa com Ellie o suficiente para se convencer de que não existe alternativa a não ser continuar com ela. Suas justificativas provam isso, pois baseiam-se em considerar a si mesmo um melhor protetor para Ellie do que os Vagalumes. Mais do que real ausência de outra possibilidade, fica a sensação de que Joel começa a apreciar a companhia de Ellie, mesmo dizendo que “gostaria que houvesse outra opção”. Os heróis se aproximam da cidade de Bill. O único jeito de entrar no local é pulando um portão alto que está trancado pelo outro lado. Ellie pede para ser impulsionada – como Joel fazia com Tess –, mas Joel se preocupa em mandá-la


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sozinha para o lado de lá. Ellie argumenta que não conseguiria empurrá-lo e ele acaba cedendo. Ela, então, abre o portão. Essa é outra mecânica que se repete ao longo do jogo e funciona da mesma forma como a plataforma de madeira para levar Ellie pela água. A garota precisa de Joel para sobreviver e avançar, o que é simbolizado na ajuda para impulsioná-la. Ao mesmo tempo, Ellie abre a passagem para Joel, mostrando que ela também é necessária para ele. Um precisa do outro. Joel e Ellie avançam pelo lugar, repleto de sistemas de defesa criados por Bill. Esses são alguns indícios de como o homem é paranoico com a sua segurança, já que há inúmeras barricadas e armadilhas explosivas para manter longe os infectados e os invasores. Joel reforça essa ideia com um alerta para Ellie, dizendo que Bill não é um cara muito estável. O protagonista diz para a garota deixar que ele próprio explique a situação quando encontrarem o sujeito, já que Bill não gosta de estranhos. O diálogo cria expectativa no jogador em conhecer esse personagem, que mora sozinho em uma cidade inteira. No caminho, Joel encontra um arco-e-flecha. Ellie diz que é uma boa arqueira e pede para usar, justificando que, com os dois armados, um pode cobrir o outro. Joel nega e mantém o arco para si, mostrando que ainda não confia tanto na garota. Ao abrir uma porta, Joel cai em uma armadilha de Bill. Seu pé fica preso em uma corda e, com uma geladeira como contrapeso, ele fica pendurado de cabeça para baixo. A situação fica tensa: enquanto Ellie tenta ajudá-lo, Joel deve protegê-la acertando tiros nos infectados que se aproximam. Quando ela consegue libertá-lo e Joel está no chão novamente, uma criatura o ataca. Ele é salvo por Bill, que decapita o infectado com um facão. Correndo para fugir dos infectados, Bill guia os dois até seu local seguro. Ellie agradece pelo heroísmo e se apresenta, mas o anfitrião não mostra tanta gentileza. Bill prende Ellie a um cano com uma algema e aponta uma arma para Joel: ele quer se certificar de que os dois não foram mordidos. O ponto de virada da cena acontece quando Ellie consegue soltar o cano da parede e acerta uma pancada em Bill. Joel a contém. Bill se zanga (“Vocês entram na minha casa, detonam as armadilhas, quase quebram meu braço bom”), mas Ellie mostra seu lado agressivo. Dizendo palavrões – algo natural para ela, por ter crescido em um mundo com valores apenas de sobrevivência –, Ellie explica que eles estão ali por conta de favores que Bill deve a


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Joel. Embora o jogador nunca saiba o que levou Bill a ter essa dívida, Joel, diante das negativas iniciais de Bill, argumenta que os favores anteriores valem a dificuldade de conseguir um carro. Bill avisa que o único jeito para que ele possa tentar consertar um veículo é coletar peças espalhadas pela cidade. O trio parte nessa busca. A aparição de Bill na narrativa cria uma tensão imediata entre ele e Ellie, o que leva Joel a se tornar mais protetor em relação à garota. O fato de Bill e Ellie lidarem de forma agressiva um com o outro faz com que Joel (e o jogador), emocionalmente, tenha de escolher um lado nessa disputa de personalidades. Naturalmente, a escolha (inconsciente) recai sobre Ellie, aquela que devemos proteger na jornada. A parte final dessa cena simboliza isso: Joel retira a algema que Bill colocou em Ellie. A tensão entre os dois se repete em vários momentos desse estágio. Bill usa um tom irônico ao saber que Joel está escoltando Ellie e repreende a garota quando ela mexe em algumas revistas, por exemplo, mas a garota nunca deixa barato e sempre responde de forma grosseira. Bill pergunta por Tess, mas Joel evita contar a verdade, dizendo que ela “está ocupada”. Bill sugere que há algum problema no relacionamento entre os dois e Joel apenas concorda para encerrar o assunto. Mais uma vez, o protagonista mostra o seu sentimento de negação ao lidar com a morte de pessoas próximas. Quando o trio chega em um porão com armas (para se preparar para a tarefa de buscar as peças do carro), Bill retoma o assunto e pergunta como Tess concordou com a “missão suicida” de escoltar Ellie. Joel, sem contar que ela está morta, diz que a ideia foi dela. O fato de atribuir a responsabilidade da missão à Tess e não a si mesmo demostra que Joel ainda não admite estar na jornada por escolha própria. A função de Bill no estágio de Encontro com o Mentor começa a se estabelecer nesse momento, embora ele não tenha a intenção de se encaixar nesse arquétipo. Bill sugere que Joel leve Ellie de volta ou largue-a no mundo. Na tentativa de convencêlo, conta que havia uma pessoa com quem ele se importava e que precisava proteger, mas que essa relação só serviu para aumentar as chances de ele morrer e isso o fez perceber que deveria ficar sozinho. “Se você continuar bancando a babá por muito tempo, vai acabar se dando mal”, avisa Bill. Em suas respostas, Joel expressa que não pode simplesmente deixar Ellie e não concorda com a visão radical de Bill sobre a solidão. Ao posicionar-se assim, Joel parece estar finalmente assumindo sua jornada ao lado de Ellie, mesmo negando mais uma vez que a garota leve uma arma consigo.


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Mais tarde, ao explorar a cidade, é possível encontrar o corpo de Frank, antigo parceiro de Bill. Ele se enforcou após ser mordido por infectados. Ao lado do cadáver há um bilhete em que Frank diz ter se cansado do jeito de Bill e que preferia morrer a continuar ao lado dele. Assim, entendemos a motivação de Bill para tentar dissuadir Joel da jornada com Ellie: perder uma pessoa querida, como quando Frank fugiu, fez com que ele se fechasse ainda mais para o mundo. O bilhete serve de aviso para Joel, mostrando que Bill serve apenas como um exemplo a não ser seguido. O jeito arrogante e sem se preocupar com os outros de o levou apenas à destruição (tanto das pessoas próximas quanto de si mesmo) e indica que Joel terá o mesmo caminho se não souber lidar com seus problemas internos. O mentor, muitas vezes, é o herói que já viveu a sua jornada e agora possui experiência o suficiente para ensinar os outros. Bill passa por um trauma semelhante ao que Joel viveu – reforçando a relação entre herói e mentor –, mas dá o conselho ruim de que o protagonista deveria ficar sozinho em vez de tentar reaprender a se importar com outra pessoa. Uma das funções do mentor é motivar o herói a seguir sua jornada. Nesse caso, Bill se mostra um mentor às avessas ao tentar dissuadir Joel. “A derrocada de um Mentor enfraquecido e tragicamente cheio de defeitos pode mostrar ao herói as armadilhas que deve evitar” (VOGLER, 2006, p. 95). Antes de deixarem o porão, Bill mostra um lado mais tradicional do arquétipo de mentor ao dar um presente para Joel. O herói recebe uma “bomba de pregos”, arma que serve para retalhar inimigos que se aproximam do objeto, e uma escopeta. Prontos para a missão, Bill conta o plano: recuperar a bateria de um caminhão militar que foi atacado por infectados algumas semanas antes. O trio atravessa diversas áreas com infectados e chega até uma escola na qual está o veículo que procuram. No entanto, a bateria foi retirada do caminhão. Infectados ameaçam os personagens, que entram no colégio para se proteger. Na quadra da escola, eles enfrentam um Baiacu, quarto e último estágio da infecção, uma criatura enorme que já está infectada há muitos anos. Após derrotá-lo, o trio deixa o local e se abriga em uma casa próxima. Lá eles encontram Frank enforcado e descobrem um carro com a bateria que procuravam (que havia sido levada por Frank) – é neste momento que o jogador pode entender o que aconteceu entre Bill e seu parceiro. Bill diz que o veículo na garagem deve funcionar caso seja empurrado para dar a partida. Joel deixa Ellie encarregada de dirigir o veículo enquanto ele e Bill empurram. De forma tímida, Joel mostra afeição por Ellie dizendo que ela está fazendo um bom


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trabalho e a garota responde que não irá decepcioná-lo. Joel e Bill empurram o carro e, após alguns confrontos com infectados, conseguem fazer o veículo pegar no tranco e escapam. Em segurança, Ellie estaciona o carro para que Bill possa voltar à cidade enquanto ela e Joel seguem viagem. Em sua despedida, Bill reafirma que Joel “não vai conseguir”, mas logo depois entrega um equipamento para que o herói possa retirar gasolina de outros veículos. Esse momento resume bem o papel de Bill: ao mesmo tempo em que cumpre a função de mentor às avessas, tentando desestimular Joel e servindo como mau exemplo, o personagem, no fundo, parece se preocupar e entrega ferramentas úteis para a jornada.

2.5 Estágio Cinco Travessia com Novos Perigos O carro acelera e a “Travessia do Primeiro Limiar” tem início: a jornada da relação de Joel e Ellie começa para valer. Joel está na direção enquanto Ellie, no banco de trás, comenta sobre alguns itens que pegou escondida de Bill. A primeira é uma revista de história em quadrinhos. Ela diz ter adorado, mas se queixa de que a história continua em outra edição. Essa cena justifica a procura por esses itens coletáveis, que podem ser encontrados ao explorar o mundo do jogo a partir desse momento, unindo a mecânica de exploração com a lógica da narrativa. Em seguida, Ellie entrega uma fita cassete para Joel. A música (que começa a tocar de fato na parte final da cena) é “Alone and Forsaken”, de Hank Willians. A canção, do gênero country e em tom sombrio, fala sobre um homem que se sente “sozinho e abandonado” (tradução do nome da música) por conta de um amor que foi embora. O eu-lírico observa como isso afetou o mundo a sua volta: antes, os pastos eram verdes e os prados eram dourados; depois, as rosas desapareceram, os pássaros pararam de cantar e a grama começou a morrer. A música pode ser facilmente relacionada a Joel. Assim como na canção, a vida feliz do personagem acabou quando ele perdeu alguém próximo. O seu mundo foi destruído, tanto de forma externa e literal, com a eclosão da epidemia que devastou todas as cidades, quanto de forma interna e figurada, com a perda de Sarah. O último item que Ellie roubou de Bill é uma revista pornográfica com fotos de homens pelados, que ela analisa com comentários cômicos. Joel não sabe bem como


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reagir, mas diz que aquilo não é para crianças. Ellie mostra o seu lado pícaro pela primeira vez e pergunta por que as páginas grudam. Diante da hesitação de Joel em não saber o que responder, Ellie admite que estava apenas brincando e, de maneira divertida, joga a revista pela janela do carro. Com exceção de Sarah e do próprio Joel durante o prólogo, Ellie é a única personagem em The Last of Us que carrega as características do arquétipo de pícaro, cuja principal função dramática é trazer o alívio cômico para a narrativa. Além da brincadeira no carro, a garota exibe o seu lado espirituoso em outras oportunidades, como, por exemplo, ao ler piadas de um livreto que possui (em diálogos opcionais que podem ser ativados pelo jogador em momentos pré-estabelecidos). Segundo Vogler (2006), é comum que os personagens pícaros sejam catalisadores. Ou seja, afetam a vida dos outros, mas eles mesmos pouco mudam. É interessante notar que Ellie se encaixa nesse perfil. Apesar de ela evoluir em certo grau ao longo da jornada, a garota causa muito mais influência em Joel do que o contrário; Ellie é responsável por alterar de forma fundamental a vida do protagonista. Após jogar a revista pela janela, Ellie sai do banco de trás e se senta no lugar do passageiro. Essa é uma mudança simbólica que indica que a garota não será uma mera coadjuvante, mas terá um papel primordial na história. Sua função na narrativa requer que ela esteja ao lado de Joel e não atrás dele. Joel pergunta por que Ellie não tenta dormir um pouco. Ela desdenha e diz que nem está cansada, mas, no instante seguinte, aparece dormindo. Essa é uma construção de humor criada pela montagem da cena. Mantendo a câmera na mesma posição e ângulo, há uma elipse de tempo entre os dois momentos (identificada pelo vidro molhado de chuva que dá lugar à iluminação pelo sol e a posição levemente alterada dos personagens – Joel é mostrado com uma mão na cabeça e o braço oposto conduzindo o volante e Ellie está com a cabeça abaixada e os olhos fechados). Assim, a garota pode ter dormido muito tempo depois de dizer que não estava cansada, mas a graça é criada pela rápida contradição entre a fala e a imagem. Apesar de o humor, nesse caso, não estar diretamente relacionado à personagem, essa montagem ajuda a estabelecer Ellie como personagem cômica que cria um contrapeso à austeridade de Joel. A Travessia do Primeiro Limiar marca a passagem do Mundo Comum para o Mundo Especial. Conforme deixa a cidade de Bill, Joel está entrando em um território desconhecido. Uma placa na estrada indica que os heróis se aproximam da cidade de


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Pittsburgh e, a partir daí, continuarão cruzando os Estados Unidos por áreas que Joel desconhece – ainda mais após a destruição causada pelo fungo. Apesar de o Mundo Especial não se contrastar tanto com o Mundo Comum anterior no que tange a ambientação, nesse caso, ele se justifica ao trazer perigos que até então não haviam sido enfrentados. No entanto, o Mundo Especial de Joel pode ter um sentido mais figurado, sem uma barreira física, que seria a própria relação com Ellie. A intimidade do diálogo e das brincadeiras dentro do carro já estabelece uma proximidade maior que se difere do tratamento anterior entre os dois. A jornada de Joel diz respeito a recuperar a sua capacidade de se importar com outro ser humano. Logo, o Mundo Especial do herói é estar com Ellie e tentar protegê-la de um jeito que não foi possível com Sarah. Joel e Ellie apenas contornariam Pittsburgh, mas um bloqueio de carros abandonados na estrada faz com que eles sejam obrigados a passar por dentro da cidade. Um sujeito, aparentemente ferido, aparece e pede ajuda. Joel percebe se tratar de uma emboscada e não hesita em acelerar o carro. Muitos homens surgem para atacar e empurram a carcaça de um ônibus por uma rampa em direção ao veículo, que é acertado de raspão e bate. Sem tempo para escapar, um homem captura Ellie enquanto outro tenta matar Joel empurrando a sua cabeça contra um pedaço de vidro. Com um Quick Time Event (mecânica de apertar rapidamente o botão demonstrado na tela), Joel escapa e vê Ellie sendo atacada por seu raptor (com um símbolo vermelho indicando que a garota está “perdendo vida”). Existe somente uma solução nessa oportunidade: aproximar-se para atacar o inimigo, algo que o jogador faz instintivamente e de forma veloz para proteger Ellie. Ao chegar perto dos personagens, uma cena rápida é ativada: Joel acerta o homem com um chute e o mata de forma violenta ao bater sua cabeça contra um móvel. Situações como essa ajudam a fomentar o sentimento da necessidade de proteger Ellie, estreitando a emoção do jogador com o protagonista. Na Jornada do Herói, o Mundo Especial é protegido por guardiões de limiar, seres que tentam impedir a passagem do herói. Em The Last of Us, o arquétipo se manifesta nesses homens conhecidos como “Caçadores”, um grupo hostil de sobreviventes que mata outras pessoas (que eles chamam de “turistas”) em busca de suprimentos. A chegada de Joel e Ellie na nova região também configura o que Vogler


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(2006) descreve como uma “aterrissagem difícil”, quando o protagonista chega ao Mundo Especial de forma brusca. Após se livrarem dos inimigos restantes e continuarem a jornada a pé, Joel e Ellie encontram uma sala com pessoas mortas pelos Caçadores. Esse ambiente serve para mostrar os perigos do Mundo Especial – até então, apenas os infectados ameaçavam a vida dos protagonistas. Ellie pergunta como Joel soube da emboscada logo de cara. Ele responde que “já esteve dos dois lados”, o que indica que também fazia emboscadas. A garota entende dessa forma e pergunta se ele já matou muita gente inocente, mas Joel desconversa. Assim como o favor para Bill, que nunca sabemos do que se trata, esse passado obscuro de Joel faz parte da história pregressa do personagem e só é possível especular sobre o que realmente aconteceu. No entanto, é interessante notar que Joel, além de servir como mentor para Ellie, é mentor de si mesmo em boa parte da aventura, caracterizado em um personagem calejado que já internalizou esse arquétipo por conta de suas experiências anteriores.

2.6 Estágio Seis Poucos Aliados, Muitos Testes A Travessia do Primeiro Limiar em The Last of Us só terminará ao final da sequência dos eventos em Pittsburgh, mas essa etapa na cidade já apresenta elementos característicos de Testes, Aliados e Inimigos, o sexto estágio da Jornada do Herói. A própria recepção intensa dos inimigos no novo mundo se estabelece como o primeiro teste de Joel, que precisa se adaptar com Ellie às novas regras do Mundo Especial. Se o primeiro ato da história é a preparação da jornada, o segundo expõe a ação em si. Essa parte de The Last of Us traz muitos confrontos contra inimigos, em que é necessário atacar diretamente com armas de fogo ou se espreitar para pegálos desprevenidos. Antes do combate, geralmente é possível ouvir os Caçadores conversando sobre suas rotinas, algo que os integra ao mundo do jogo e cria uma personalidade básica para os inimigos. Na tentativa de chegar até uma ponte que leva para fora da cidade, os heróis passam por dentro de um hotel e precisam atravessar o fosso de um elevador. Joel impulsiona Ellie para cima, mas a plataforma despenca antes que ele possa subir e


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ele cai para o andar mais baixo do hotel. Conversando à distância, Joel manda Ellie esperá-lo lá em cima enquanto ele procura um caminho para voltar. Essa seção parece servir a dois propósitos: o herói volta a enfrentar infectados nessa parte escura e alagada do prédio, lembrando que eles ainda estão presentes como um dos perigos do Mundo Especial; mais significativo, no entanto, é a separação de Joel e Ellie. Enquanto é necessário enfrentar inimigos e encontrar uma maneira de retornar para os andares de cima, pode-se pensar que a ideia dos desenvolvedores tenha sido criar, tanto em Joel como no jogador, a constante preocupação em saber se Ellie está segura. Joel volta para a área principal do hotel, mas é abordado por um dos Caçadores. Os dois brigam corporalmente e disputam uma pistola que cai próxima a eles, mas é Ellie quem aparece e realiza um disparo na cabeça do inimigo. A garota se sente abalada por ter matado uma pessoa pela primeira vez, mas Joel parece não se importar ou estar agradecido por ter sido salvo. “Por que você não esperou como eu disse?”, diz ele com aspereza, tomando a arma da mão de Ellie. A garota, no entanto, sabe que sua atitude salvou a vida do companheiro e evita o conflito em um primeiro momento: “Ainda bem que eu não esperei, né?”, responde, com a expectativa de receber algum tipo de reconhecimento. Mas Joel é implacável: “Ainda bem que minha cabeça não foi estourada por uma pirralha”. Fora o estresse da situação, é possível analisar que Joel se irrita por sentir uma perda de sua independência, mesmo que essa percepção seja inconsciente e ainda não racionalizada. Ele começa a entender que precisa de Ellie para sobreviver, o que vai contra tudo o que acredita desde sua circunspecção com o mundo pela morte de Sarah. Ellie não aceita a rispidez de Joel e confronta o herói pela primeira vez. “Sabe de uma coisa? Não. Que tal: ‘Ellie, eu sei que não foi fácil, mas era ele ou eu, obrigado por salvar a minha vida. Por que não me diz algo assim, Joel?”. Joel pensa por um momento, mas responde apenas que eles têm que seguir em frente. Esse diálogo mostra como a garota também possui sentimentos, emoções e dores próprias, mas Joel se tornou alheio aos outros por conta de seu trauma e se nega a conversar sobre o assunto. Os momentos seguintes mostram como Ellie fica triste ao se abrir com Joel enquanto ele se recusa a fazer o mesmo, o que demonstra pouca confiança na garota. Joel explora o cenário e Ellie espera sentada de forma cabisbaixa. Ela passa a aceitar ordens sem contestação ou com ironia (“tem certeza que confia em mim com isso?”).


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Além disso, uma conversa opcional serve para reforçar a posição dos dois na relação. Ellie se justifica: “Eu não estava querendo te desobedecer. Você estava demorando muito e eu pensei ‘Talvez ele esteja com problemas’”, mas Joel é implacável e responde que “Não importa o que você pensou. Você precisa me escutar”. A garota diz que escuta, mostrando que respeita Joel, mas desiste de prolongar a discussão. No entanto, a cena seguinte mostra que Joel levou em consideração a ação corajosa de Ellie. A dupla alcança uma varanda para uma área externa cheia de inimigos e encontra um rifle. Joel propõe que ele desça para tentar acabar com os adversários de forma silenciosa enquanto Ellie garante a sua segurança com a arma. Joel se redime de sua aspereza ao ensinar Ellie os princípios de como usar o equipamento e dá o conselho “faça os tiros valerem a pena”. É um momento em que o protagonista cumpre sua função de mentor em relação à heroína aliada. Antes de se separarem, Joel mostra que Ellie estava certa na discussão anterior e abre uma pequena porta de confiança na garota. “Para esclarecer o que aconteceu antes: era mesmo ele ou eu”, diz o herói, mostrando gratidão por ter tido a vida salva. Essa confiança é reforçada na cena seguinte, após vencer os inimigos dessa área. Joel entrega uma pistola para Ellie e permite que ela a leve consigo. Mesmo com as preocupações e avisos paternais de que “é só para emergências”, a confiança de entregar a arma para a garota simboliza o avanço da relação e traz uma diferença prática, com a ajuda de Ellie sendo mais efetiva em combate. Durante esse capítulo, nota-se uma interação cada vez maior entre Joel e Ellie. Há mais linhas de diálogo conforme eles exploram novos cenários, como o gosto de Ellie pela leitura ao se deparar com livros ou comentários sobre cartazes de propagandas e filmes. Esse estágio da Jornada do Herói serve para criar um vínculo duradouro entre o herói e um companheiro, um aliado próximo, que se estabelece na relação crescente entre a dupla. Ellie ainda se encaixa no papel de “companheira cômica”. Mesmo em momentos de tensão, ela encontra o humor com a leveza de sua personalidade, como ao pedir uma suíte no balcão do hotel abandonado. A situação em Pittsburgh fica mais tensa quando Joel e Ellie veem os Caçadores matando turistas fugitivos a poucos metros de distância. Eles usam um veículo militar com uma metralhadora montada e a dupla precisa ser sorrateira para não ser identificada. No entanto, o jogador é surpreendido quando Joel é agarrado por um homem ao entrar em um prédio pela janela. Os dois brigam e Joel começa a levar a melhor, mas Ellie avisa para ele parar: um garoto está com a arma apontada para o


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herói. A situação se acalma porque o homem, Henry, vê Ellie e percebe que os dois não são bandidos, já que crianças não são aceitas entre os Caçadores. Ele e o irmão menor, Sam, são sobreviventes de um grupo maior que se separou por conta de uma emboscada e também tentam escapar da cidade. Ellie sugere que eles andem juntos e Henry concorda. Apesar de uma certa desconfiança de Joel, todos seguem para um esconderijo conhecido dos irmãos. Segundo Vogler, o estágio dos testes cria a oportunidade para que se formem equipes. Esse é o único momento na história em que pessoas fora do círculo de Joel acompanham a dupla. Por serem desconhecidos, já se cria a dúvida se eles são confiáveis ou não, uma ideia que será trabalhada mais para frente. A formação da equipe, no entanto, não será duradoura. The Last of Us é sobre a relação de Joel e a Ellie e outros personagens não podem ficar no meio do caminho. No trajeto para o esconderijo, o quarteto passa por uma loja de brinquedos. Sam pega um pequeno robô, mas Henry fala para ele jogar fora. Sam argumenta que sua mochila está vazia e o robô é leve, mas Henry é rígido. “Qual é a regra de pegar coisas?”, ele pergunta ostensivamente. “Só pegamos o que precisamos”, responde Sam, de forma resignada, e joga o brinquedo fora. O jeito austero do irmão mais velho remete ao comportamento de Joel com Ellie, mas parece ser ainda mais agressivo por se tratar de personagens que acabamos de conhecer. Como jogadores, somos impactados de forma negativa pela rudeza de Henry e sentimos que não é assim que queremos tratar Ellie, intensificando o senso de proteção e cuidado entre o jogador e a garota. Assim como Bill, que serviu como mau exemplo por evitar relações pessoais e se fechar em seu mundo, Henry cumpre um papel parecido, mas do lado oposto dessa linha. Ele é tão protetivo em relação ao irmão que torna a relação sufocante. O grupo chega ao esconderijo, um escritório em um dos prédios da cidade. Ellie e Sam logo conversam de forma animada em um canto. Henry comenta que fazia tempo que não ouvia a risada do irmão e diz que Ellie nem parece se preocupar com a situação caótica em que vivem, expondo a personalidade leve e divertida da garota (essencial como contrapeso de Joel). O protagonista pergunta o motivo de os irmãos ainda estarem na cidade. Henry explica que eles estão esperando uma boa oportunidade para escapar e mostra que Caçadores guardam o portão que leva à ponte de saída. Depois, planejam encontrar os Vagalumes e se filiar ao grupo. Joel desdenha sobre a esperança que todos colocam nos Vagalumes e questiona o plano de Henry de atravessar o país com Sam sem saber a localização exata do grupo.


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Henry se mostra agressivo com a descrença em seus cuidados com o irmão menor, mas Joel pede calma e diz que eles também procuram os Vagalumes. Henry conta que seu grupo, separado pela emboscada, havia combinado de se encontrar em uma torre de rádio próxima no dia seguinte caso algo acontecesse e planeja escapar durante a noite, quando há menos guardas. Joel topa o plano e eles descansam até o momento de sair. Durante a escapada, o quarteto é perseguido pelos Caçadores e usa uma escada para subir em um caminhão. Porém, ela se quebra e deixa Joel para trás. No momento de pressão, Henry vai embora com seu irmão mais novo. Ellie volta para ficar com seu companheiro. Os dois escapam por um caminho lateral e conseguem chegar à ponte de saída da cidade, mas são encurralados. Ellie considera que a única opção é saltar para o rio, mas Joel diz que a distância é muito grande e a garota não sabe nadar. Os Caçadores se aproximam no veículo armado. Ellie não vê outra escapatória e salta. Joel a segue. Os dois são levados pela correnteza. Joel segura Ellie para mantê-la flutuando, mas bate com força em uma pedra. A tela se apaga em preto, mas logo em seguida mostra Joel acordando do desmaio na margem do rio. Segundo Vogler (2006), os testes do começo do segundo ato costumam ser obstáculos difíceis, mas sem a característica de vida ou morte dos eventos posteriores. A tela se apagar após a colisão de Joel poderia representar o primeiro momento de morte do herói (comum ao estágio da Provação), mas não parece ser o caso. Além de momentos críticos acorda surgirem mais tarde na história, a tensão se dissipa muito rápido quando Joel acorda na cena seguinte e a reação do protagonista prova que ele não renasceu “transformado”. O uso da transição de cena parece servir mais para reapresentar Henry e Sam, que estão junto com Ellie na margem do rio. Ao ter sua confiança traída, Joel se levanta irritado. A primeira coisa que faz é apontar uma arma para Henry, acusando-o de ter deixado ele e Ellie para morrer. Henry argumenta que voltar colocaria a vida de Sam em risco e questiona se Joel não faria o mesmo se a situação estivesse invertida. Além disso, ele diz que salvou os dois, pois haviam engolido muita água e estavam desacordados. Ellie confirma a versão e Joel cede. Essa cena mostra Henry e Sam como personagens que vestem a máscara do arquétipo de camaleão. Os irmãos trazem um ar de incerteza para a história, apresentando a dúvida sobre eles serem confiáveis ou não. A atitude da dupla parece


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estar sempre mudando de lado, o que confunde Joel e faz com que a lealdade e sinceridade deles seja posta em questão. Com os ânimos menos exaltados, o quarteto segue junto à procura da torre de rádio e passa a caminhar por dentro de uma rede de esgoto. Ao abrir uma porta, Joel ativa uma armadilha que serve como alarme. Não há reação, mas os personagens percebem que havia pessoas morando naquele local. Isso fica mais claro quando quadros de regras e brinquedos de criança podem ser vistos pelo cenário. Além disso, infectados aparecem. O jogador pode encontrar cartas pelo cenário que contam como se deu a queda do lugar. Ao abrir outra porta, Joel ativa uma nova armadilha. Um portão de segurança é fechado e separa o quarteto. As duplas mudam: Joel fica com Sam e Henry acompanha Ellie. Para Vogler (2006), é comum que a essa altura da história o herói caia em armadilhas ou ative alarmes – a maneira como ele lida com a situação faz parte dos testes. A iminência de infectados faz com que os personagens desistam de tentar abrir o portão e sigam com seus novos parceiros. A intenção dos desenvolvedores parece clara: separar Ellie da proteção do herói (e do jogador). Joel e Sam trocam alguns diálogos, mas a situação é estranha e desconfortável. A preocupação está em imaginar se Ellie está segura, o que cria a conscientização do laço emocional criado com a garota. Após atravessar uma sala com infectados, Joel e Sam reencontram Ellie e Henry. O grupo corre para fugir de mais criaturas e escapam para um ambiente ao ar livre. O quarteto caminha por um bairro de subúrbio e consegue ver a torre de rádio no horizonte. Joel pergunta como Ellie está se sentindo. Ela conta que matou alguns infectados sozinha quando acompanhava Henry e pensa que Joel “ficaria orgulhoso”, o que reporta à relação paternal crescente entre os dois. Joel concorda sem muita convicção, já que ainda não foi transformado pela jornada. Em uma área mais aberta do bairro, alguém atira de longe tentando acertar o quarteto. Joel pede para os outros esperarem – como distração – enquanto tenta chegar ao atirador. No caminho, mata os Caçadores que estão pela área. O herói elimina o atirador e usa o rifle de longo alcance para proteger Ellie, Henry e Sam, que fogem de mais inimigos. O veículo armado dos Caçadores reaparece, mas pela última vez. Quando o piloto sai da blindagem para lançar um coquetel molotov, Joel aproveita o momento para acertá-lo e incendiar o veículo. A situação parece se acalmar, mas um grupo de infectados ataca Ellie, Henry e Sam. Joel elimina o perigo, mas um


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exército de criaturas aparece. O trio foge e Joel se junta a eles. Todos seguem para a torre de rádio. A cena seguinte traz uma passagem de tempo e já mostra Joel, Henry e Ellie conversando confortavelmente no local. Não havia outros sobreviventes por lá. Joel compartilha uma história quando ele e Tommy pilotaram motos potentes e Henry se mostra entusiasmado sobre o assunto. Esse é um momento raro de segurança e bemestar no mundo caótico de The Last of Us, que possibilita Joel estar mais aberto do que o usual. Ellie deixa os dois conversando e segue para encontrar Sam em outra sala. O garoto pergunta se ela veio a pedido de Henry para ver se ele não estava fazendo nada errado, o que indica a relação sufocante entre os irmãos. Em seguida, os dois dialogam de forma mais íntima. Sam pergunta do que Ellie tem medo. Ela começa de forma mais divertida e diz “escorpiões”, mas então revela que teme ficar sozinha, o que cria no jogador uma vontade maior de acolhê-la. Sam conta que tem medo dos infectados. Em tom mais filosófico e religioso, eles se questionam se ainda existe alguma humanidade dentro das criaturas e mostram descrença sobre a possibilidade de as pessoas infectadas estarem no Céu. Antes de Ellie ir embora, ela ainda realiza um ato de bondade. Ela entrega para Sam o robô de brinquedo pelo qual ele havia se interessado na loja de brinquedos, mas que Henry não permitiu que ele pegasse. Esse ato mostra como Ellie se preocupa com as outras pessoas e busca criar laços humanos. Quando a garota deixa a sala, Sam joga o brinquedo no chão. Logo entendemos sua raiva: ele levanta a barra de sua calça e vemos que ele foi mordido por um infectado na canela. É possível especular que Sam não contou a ninguém sobre sua situação por conta da relação estrita com o irmão. Mesmo sendo vítima, é provável que o garoto se sentisse culpado por ter sido mordido e não desejava compartilhar sua “falha” com Henry. Na manhã seguinte, Ellie vai acordar o garoto, mas ele já está transformado e ataca. Joel tenta pegar uma arma em sua mochila, mas Henry dá um tiro de aviso e o ameaça com o revólver apontado. Joel prefere assumir o risco e faz nova tentativa de pegar uma arma para salvar Ellie, mas o próprio Henry atira no irmão. Sem acreditar no que fez, Henry aponta o revólver para a sua cabeça e se suicida. Se Bill foi um mau exemplo para Joel por se recusar a criar laços humanos, a relação abusiva de Henry com Sam serve para mostrar que o excesso asfixiante de proteção não significa estabelecer um vínculo positivo (nem obter êxito na


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sobrevivência). Joel precisa encontrar um meio termo em comparação aos personagens que conheceu para ter um relacionamento saudável com Ellie.

2.6.1 Outono e a Morte Antecipada O desfecho do período com Henry e Sam marca o fim da travessia do primeiro limiar. A tela se apaga e mostra a palavra “outono”, indicando uma elipse de tempo com a mudança de estação. Joel e Ellie aparecem em Jackson County, um condado próximo de onde vive Tommy, o irmão mais novo do protagonista. Os personagens caminham pela natureza e trocam diálogos sobre a história pregressa de Joel e Tommy. Eles ainda passam por um túmulo com um ursinho de pelúcia. Ellie deseja conversar sobre a morte de Henry e Sam, mas Joel se recusa – assim como havia ocorrido com Tess. “As coisas acontecem e nós continuamos”, ele diz, o que prova que ainda há alguns estágios da Jornada do Herói pela frente. Joel e Ellie encontram a usina hidrelétrica na qual Tommy mora com um grande grupo de sobreviventes. Após uma recepção hostil, o irmão reconhece Joel e os heróis são bem recebidos. O caçula apresenta Maria, sua mulher, e conta que vivia na cidade de Jackson, mas o grupo se mudou para a usina com o intuito de reativá-la. Eles chegaram a fazê-la funcionar para usar a eletricidade, mas uma das turbinas pifou. Os irmãos seguem para verificar o equipamento. Ellie, acompanhada de Maria (e apreensiva por sair do lado de Joel), segue para se alimentar. A usina elétrica desempenha o papel do que Vogler (2006) chama de “lugar para beber água”. Após a longa travessia do primeiro limiar, o herói precisa restaurar as forças em um “um local natural de reunião, um bom ponto para observar os outros e obter informação” (VOGLER, 2006, p. 209). O local também pode prover situações que coloquem os personagens sob pressão, o que revela o verdadeiro caráter deles. É comum que o “lugar para beber água” seja um bar, onde é possível fazer amigos, encarar inimigos e ouvir fofocas. Apesar de esse não ser o estabelecimento visto em The Last of Us, é interessar notar que o lugar seja representado por uma usina hidrelétrica, em que a água é o elemento principal do ambiente. Tommy conta para Joel que voltou ao Texas no ano anterior e entrega uma foto de Joel e Sarah, quando a garota venceu um campeonato de futebol. Joel rejeita a fotografia, o que mostra que seu trauma ainda não foi superado. Ele muda de assunto rapidamente e diz que eles precisam conversar sobre algo. Antes, seguem para


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verificar a tentativa bem-sucedida de reativar a usina e Tommy conta como eles trabalham para tornar o lugar autossustentável. Joel explica porque veio de tão longe. Ele conta que Ellie é imune e precisa levá-la para os Vagalumes. No entanto, Joel não está atrás de informações sobre a localização do grupo de Marlene. Ele oferece que Tommy termine o trabalho de levar Ellie e colete todo o pagamento. Em troca, quer apenas equipamentos suficientes para ir embora. Entretanto, Tommy recusa responsabilizar-se por Ellie. Ele não está envolvido com os Vagalumes há muitos anos e se preocupa com a sua família. Joel se exalta. Para ele, seu pedido é simples: basta qualquer um levar Ellie para os Vagalumes. Tommy explica que todos ali possuem famílias. “É assim que você me paga por todos esses anos que cuidei de nós?”, exaspera Joel. De forma egoísta, o herói parece acreditar que possui o direito de exigir que os outros cumpram o que ele deseja. É possível especular que a irritação venha porque a morte de Sarah impossibilitou que Joel tivesse a vida confortável em família que os outros vivem na usina. Os irmãos ficam perto de brigar fisicamente, mas um alarme toca. Bandidos invadiram a usina. Joel e Tommy começam a se livrar dos invasores. Maria avisa pelo rádio que os bandidos chegaram ao prédio em que ela está com Ellie e a comunicação é interrompida, o que cria a preocupação sobre a segurança da garota. Joel e Tommy chegam ao local e elas estão a salvo. Ellie conta empolgada para Joel sobre tudo o que aconteceu, o que mostra seu laço estreito com Joel. Enquanto ele tenta se livrar de sua missão e deixar a garota, Ellie se mostra totalmente adaptada à relação com o herói. Tommy conta para Maria o plano de Joel quando a situação se acalma. Apesar de ter recusado a proposta antes, ele diz que levará Ellie para os Vagalumes, estimulado pela esperança de se criar a cura da infecção. Maria discute sobre o risco de perdê-lo na missão, mas Tommy diz que precisa fazer isso. Como é comum a este estágio, a pressão da situação revela o âmago do personagem. Ellie pergunta para Joel o que está acontecendo e se Tommy contou onde fica o laboratório dos Vagalumes, mas o herói responde que conversará com ela mais tarde. A garota parece entender a situação e fica magoada por Joel não dar a mínima para o laço criado entre eles. De fininho, Ellie rouba um cavalo e foge da usina. Joel e Tommy pegam outras montarias e seguem o rastro de Ellie. O herói conta para o irmão que a garota nunca fez nada desse tipo e que não sabe o que


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levou ela a fazer isso, o que mostra que Joel ainda não possui a percepção de como o relacionamento entre os dois é importante para Ellie (e para si mesmo). Os dois veem o cavalo de Ellie em um rancho abandonado e Joel encontra a garota no segundo andar da casa. Ellie está lendo o diário de uma menina e se questiona sobre as preocupações mundanas da vida antes da epidemia. Joel ignora e diz para ela levantar para eles irem embora. “E se eu disser ‘não’?”, interpela Ellie. “Você sabe o que a sua vida significa?”, responde Joel, dizendo que ela correu muitos riscos ao fugir da usina. A fuga de Ellie manifesta o arquétipo de sombra. Para Vogler (2006), mesmo os heróis podem ter um lado sombrio, que serve para captarmos aspectos que não se manifestam de forma clara – Joel é a grande prova disso. Quando um protagonista age de modo destrutivo, como a fuga inconsequente de Ellie, ele está tomado pela sombra. A garota continua a conversa dizendo que “Então estamos os dois decepcionados um com o outro”, revelando que sua ação foi resultado da atitude de Joel em querer deixá-la. Joel tenta justificar dizendo que Ellie estaria mais segura com Tommy, mas a garota sabe que não há verdade nisso. “Do que você tem medo? Que eu termine como Sam?”, questiona a garota, dizendo que não pode ser infectada e que sabe cuidar de si mesma. Joel responde com uma pergunta: “Quantas vezes nós quase morremos?”, o que indica que a vontade de se separar de Ellie está atrelada ao medo de perdê-la (mesmo que ele não admita nesse momento), algo que remete ao seu trauma pela perda da filha. Ellie entende o que se passa com Joel e diz que ela não é Sarah (Maria a contou sobre a menina). O protagonista a interrompe de forma brusca e diz para Ellie que este é um assunto delicado. A garota diz que sente muito pela perda de Sarah, mas que ela também perdeu pessoas. No entanto, Joel é egoísta em sua dor e diz que Ellie não faz ideia do que é perder alguém. Ela justifica que todos com quem se importava morreram ou a deixaram, menos Joel. Ellie não aceita que Joel diga que ela estaria mais segura com outra pessoa, porque ela teria muito mais medo se não estivesse com ele. Essa é a primeira vez (provavelmente desde a morte de Sarah) que alguém confronta Joel diretamente em sua ferida psicológica. Ellie tenta mostrar que a dor e a perda de Joel são naturais, o que não o torna mais especial que os outros – e a percepção disso seria o caminho para superar o trauma. Joel, no entanto, se sente


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acuado por ter a sua angústia exposta e dá uma resposta implacável. “Você tem razão… Você não é minha filha e eu com certeza não sou seu pai”, reafirmando que os dois devem seguir caminhos separados. A tensão da discussão acaba quando Tommy chega e avisa que bandidos invadiram a casa. Joel elimina os inimigos e o trio começa a seguir de volta para a usina, com cada personagem em um cavalo. Os produtores usam algumas cenas para mostrar o retorno. Em um enquadramento específico, Ellie é mostrada no primeiro plano com um semblante triste. Ao fundo, Joel é visto olhando para ela e depois para baixo, o que indica que está reflexivo sobre a conversa que tiveram – é possível analisar que ele está arrependido pela forma como agiu e em processo de aceitação de que precisa mudar. Próximos à usina, Joel pede que Ellie devolva o cavalo para Tommy para que os dois sigam juntos em apenas uma montaria. A discussão surtiu efeito. Assim como quando Ellie afrontou Joel e sua ingratidão após salvar a vida dele no hotel em Pittsburgh, o protagonista se abre emocionalmente após o enfrentamento da garota. Tommy argumenta para eles conversarem sobre a situação na usina, mas Joel se mostra seguro: “Você me conhece. Já me decidi”, diz ele calmamente. Podemos pensar que o sentimento paterno adormecido de Joel foi despertado quando Ellie expôs que se sentia mais segura ao seu lado, o que o fez readquirir o senso de família. Prova disso é a sua vontade de que Tommy volte para a usina em vez de se arriscar na jornada com Ellie, que ele demonstra primeiro em tom de brincadeira (“Sua mulher me assusta. Não quero ela vindo atrás de mim”) e depois como um conselho sábio (“Cuide da sua mulher”). Joel pede coordenadas para o irmão, que diz que o laboratório dos Vagalumes fica no prédio de ciências da Universidade do Leste do Colorado. Tommy lembra que há lugar para ele na usina e se despedem. Vale destacar que as influências de Tommy e Ellie como mentores servem para mudar o comportamento de Joel nessa parte da história. O irmão mais novo mostra que é possível reconstruir valores familiares mesmo em um mundo caótico, enquanto Ellie confronta o trauma de Joel (o primeiro passo para que ele o supere) e se mostra como o laço emocional do herói para essa reconstrução nele como pessoa. A cena seguinte traz Joel e Ellie chegando no campus da universidade. É possível notar que a relação entre os dois está bem próxima e eles conversam com mais frequência, seja sobre amenidades (regras de futebol americano, a escolha de Ellie ao nomear o cavalo como Callus, o sonho da garota de ser astronauta ou até o


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antigo desejo de Joel ser cantor) ou sobre temas profundos que eram evitados anteriormente. Ellie pergunta se Joel já esteve em uma universidade, ao que ele responde que não porque teve Sarah quando era muito novo. A garota também começa a respeitar os limites de Joel: ele diz que foi casado por um tempo, mas não quer falar sobre o assunto. Essa relação mais estreita se encaixa em outra proposta do estágio de Testes, Aliados e Inimigos, na qual os personagens passam a se conhecer melhor. Conforme Joel e Ellie vasculham a universidade, fica claro que ela foi abandonada pelos Vagalumes. A certeza vem quando Joel encontra o gravador de um pesquisador dizendo que eles foram para Salt Lake City (o laboratório foi comprometido quando macacos infectados que serviam como cobaias foram soltos). Nesse momento, a dupla é surpreendida por outros sobreviventes. Na tentativa de escapar, Joel é derrubado para um andar inferior e cai em cima de uma barra de metal que atravessa sua barriga. Com o herói extremamente debilitado e sangrando, Ellie fica responsável por eliminar os inimigos e ajudar seu companheiro a caminhar até o cavalo. Eles escapam, mas quando Ellie diz que estão seguros, Joel não resiste ao ferimento e cai desmaiado. A garota se desespera e mostra sua dependência do protagonista (“Você precisa me dizer o que fazer”). A tela se apaga.

2.7 Estágio Sete A Chegada do Inverno O estágio da Aproximação da Caverna Oculta começa quando a palavra “inverno” aparece na tela, assinalando uma passagem de tempo que se evidencia no novo cenário de uma floresta coberta por neve. Ellie é vista caçando sozinha. Ela mata um coelho com uma flecha e se lamenta que o alimento não durará muito. O fato de a protagonista matar um animal “fofinho”, sem hesitação, mostra firmeza. Essa atitude contrasta com o tormento de Ellie na cena anterior, o que aponta que aquela situação já foi superada. Em seguida, a garota vê um cervo e quer aproveitar a chance de caçálo. A cena termina. O comando do jogo volta ao jogador e há uma grande surpresa: estamos no controle de Ellie! O fato de Joel não aparecer após seu desmaio induz a suspeita sobre o protagonista estar morto, o que é potencializado pelo controle de um outro


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personagem. Esse sentimento de dúvida sobre a morte de Joel é uma antecipação do estágio da Provação, no qual o herói enfrenta a possibilidade da morte e “ficamos em suspense e tensão, sem saber se ele vive ou morre” (VOGLER, 2006, p. 60). Esse é um momento crítico em qualquer história. É uma Provação em que o herói tem de morrer ou parecer que morre, para poder renascer em seguida. É uma das principais fontes da magia do mito heroico. As experiências dos estágios precedentes levaram a plateia a se identificar com o herói e seu destino. O que acontece com ele está acontecendo conosco. Somos encorajados a viver com ele esse momento de iminência de morte. Nossas emoções são temporariamente deprimidas para poderem reviver no “quando o herói retorna da morte”. O resultado desse reviver é uma sensação de entusiasmo e euforia. (VOGLER, 2006, p. 61-62)

Em The Last of Us, a relação do jogador com a morte do herói acontece sobretudo pela omissão de informações, já que controlamos Ellie sem nenhum indicativo do paradeiro de Joel. A garota continua a caçada e acerta duas flechas no cervo. Então, segue o rastro de sangue deixado pelo animal para encontrá-lo caído em uma pequena vila abandonada. Nesse momento, dois homens aparecem. O mais velho se apresenta como David e o jovem chama James. Ellie os ameaça com o arco-e-flecha e pergunta o que eles querem. David se mostra calmo e relata que fazem parte de um grupo maior de sobreviventes, com mulheres e crianças. Ellie mente dizendo que também vive com uma comunidade de pessoas. David diz que seu grupo sofre com a falta de comida e ele propõe uma troca da carne do cervo por algo que “o grupo” de Ellie possa precisar, como armas, munição ou roupas. A garota aceita a proposta com um pedido enfático por remédios. Como ela não parece ferida, a requisição por antibióticos é um indicativo de que Joel possa estar vivo. O estágio da Aproximação da Caverna Oculta serve como uma zona intermediária entre os testes do Mundo Especial e a Provação que acontece no acampamento do vilão. É o passo que precede o confronto com o arquétipo de sombra. “Os heróis, depois de se adaptarem ao Mundo Especial, agora seguem para o seu âmago. Passam por uma região intermediária, entre a fronteira e o próprio centro da Jornada do Herói” (VOGLER, 2006, p. 213). David sugere que eles sigam para o seu acampamento, mas Ellie prefere que James busque os remédios enquanto ela espera com David. A garota toma a arma do sujeito e a mantém apontada para ele de forma hábil. David propõe que eles se


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abriguem do frio em uma das cabanas próximas e Ellie o faz carregar o cervo morto para dentro. O sujeito faz uma fogueira e tenta puxar assunto. Ele diz que ela não deveria sair sozinha, pergunta o nome da garota e diz que sabe que não é fácil confiar em estranhos. Ellie se mantém fechada. David ainda mostra empatia porque percebe que a heroína se importa com “quem quer que esteja machucado” e diz que tudo ficará bem. Como descobriremos depois, David é o vilão principal da história. Nesse momento, ele utiliza a máscara de camaleão em cima do seu arquétipo de sombra para tentar atrair Ellie para o perigo com a sua bondade dissimulada. No entanto, a heroína se mostra inflexível e desconfia de David. Utilizando de seus aprendizados com Joel, como manejar o rifle, ela toma os cuidados necessários para se proteger e não fornece nenhum tipo de informação ao sujeito. Infectados aparecem quando Ellie e David estão na cabana. O sujeito mata um estalador com uma pistola que manteve escondida, o que pesa em favor da lealdade duvidosa do camaleão. Os dois agora devem trabalhar juntos para manter as criaturas afastadas. David diz para Ellie fazer “os tiros valerem a pena”, mesmo conselho de Joel para a garota anteriormente. Isso pode fazer com que o jogador pense que David é confiável, novamente criando um sentimento de dúvida em relação ao personagem. Após superarem uma longa e difícil seção de combate, David diz que eles formam uma boa equipe. Ellie responde que eles deram sorte, mas o sujeito acredita que “tudo acontece por um motivo”. David então revela que, de certa forma, já conhecia Ellie. Ele conta que enviou um grupo de homens para procurar comida algumas semanas antes (na universidade), mas poucos voltaram. Os outros foram “assassinados por um louco”, que estava acompanhado de uma garotinha. “Percebe? Tudo acontece por um motivo”, conclui. Ellie se sente ameaçada e reage apontando o rifle para David. No entanto, o sujeito se mostra compreensivo em vez de vingativo. “Não é sua culpa. Você é apenas uma criança”, ele diz, aparentemente culpando somente Joel pela morte de seus companheiros. Em seguida, David pede para James abaixar a arma. Um movimento de câmera mostra que o jovem retornou do acampamento e estava preparado para atirar em Ellie. “Não, David. Não vou deixar ela escapar”, ele responde. David é incisivo: pede novamente que ele abaixe a arma e entregue o remédio para Ellie. “Os outros não vão gostar disso”, diz James. Esse diálogo indica que o grupo de David já


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estava atrás de Joel e Ellie, responsáveis pela morte de pessoas de companheiros deles. David tenta atrair Ellie mais uma vez sob sua máscara de camaleão, agora com a justificativa de que pode oferecer proteção à garota. “Você não vai durar muito lá fora. Eu posso proteger você”, diz. Ellie recusa, pega o remédio e corre para o seu cavalo. Ela segue até uma casa na qual deixou Joel deitado em um colchão no porão. Apesar de não abrir os olhos, é possível perceber que ele está vivo por conta de alguns movimentos da boca. Joel ainda está muito ferido, mas temos a prova de que o herói não morreu, o que causa alívio e contentamento. Ellie mostra para o herói que conseguiu antibióticos e levanta a blusa de Joel para analisar o ferimento. A imagem mostra que o corte na barriga foi costurado com pontos, algo que só poderia ter sido feito por Ellie apesar de não haver referências a isso. Usando a seringa, a garota aplica o remédio no braço de Joel e o cobre novamente com um cobertor. “Você vai sobreviver”, ela diz, verificando se ele está com febre. Ellie deita no chão ao lado de Joel, usa sua própria mochila como travesseiro e coloca a mão sobre ele para confortá-lo. Uma das funções do estágio da Aproximação da Caverna Oculta, segundo Vogler (2006), é recalibrar a equipe. Nesse momento, os personagens, além de se encorajarem, “confirmam que estão todos de acordo com os objetivos da missão e determinam quem serão as pessoas certas para as funções certas” (VOGLER, 2006, p. 225). Embora em The Last of Us não haja uma disputa entre os personagens pela posição de protagonista, é interessante notar que Ellie ganha mais destaque nessa parte da história (evidenciado por ser controlada pelo jogador) e mostra sua determinação em continuar a jornada. O fato de Ellie ter uma importância maior a partir desse momento segue a forma do sétimo estágio da Jornada do Herói. “Pode tornar-se indispensável mudar as máscaras de alguns arquétipos à medida que se torna necessário que os personagens venham a desempenhar outras funções” (VOGLER, 2006, p. 224). Ellie deixa de ser apenas uma aliada e companheira e se torna uma verdadeira heroína. Durante a transição entre outono e inverno, Ellie precisou se adaptar à nova realidade de cuidar de Joel, em uma inversão de papéis que exigiu seu amadurecimento. Se no final do capítulo anterior a garota se mostrava assustava por não saber o que fazer, agora ela zela e protege o companheiro com destreza e naturalidade. O ato de aplicar o antibiótico é simbólico: Ellie é a responsável por fazer o herói “renascer da morte”,


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assim como ela é a chave para que Joel supere seu trauma e atravesse sua jornada interna. Ellie acorda após algumas horas e vê pela janela que alguns homens estão a procurando. Cai a máscara de camaleão de David: o fato de ele deixar Ellie seguir com o remédio provavelmente foi apenas para que seus companheiros pudessem segui-la e encontrar Joel. Com a intenção de afastá-los do esconderijo, Ellie monta no cavalo e deixa o local prometendo voltar para o herói. Ela logo é agarrada por um capanga, mas mata-o com um golpe de canivete. A garota passa a ser alvo de tiros inimigos, mesmo com uma hesitação inicial por conta de David querer que ela seja capturada viva. Ellie se afasta em cima do cavalo, mas um tiro acerta e mata o animal. Ela segue a pé e enfrenta adversários em outros cenários do vilarejo, como um resort de inverno. Ao tentar despistar os inimigos e retornar para Joel, Ellie é agarrada pelo próprio David, que a sufoca até desmaiar. Mesmo nesse momento David faz parecer que está realizando uma boa ação: “Calma, estou te mantendo viva”, em referência ao fato de que seus capangas ignoraram a ordem para não a matar. Esse é o início do momento de morte de Ellie, algo que precisa acontecer durante a jornada. “Por mais que os heróis tentem escapar a seu destino, mais cedo ou mais tarde as saídas se fecham e é preciso enfrentar a questão de vida-ou-morte” (VOGLER, 2006, p. 226). A tela se apaga.

2.8 Estágio Oito O Confronto Contra David Ellie acorda e se vê presa em uma cela no acampamento de David. Ela se encontra no “aposento mais profundo da Caverna Oculta” (VOGLER, 2006, p. 229), como é característica própria da Provação, o oitavo estágio da Jornada do Herói. A garota logo descobre estar em outro Mundo Especial, com regras e valores diferentes, ao ver James cortando pedaços de um corpo humano – o grupo de David é canibal. James avisa o chefe que Ellie acordou. David aparece e oferece um prato de carne, mas a garota questiona a procedência do alimento. Ele diz ser carne de cervo. “Com um pouco de humano para acompanhar?”, ironiza Ellie. David garante que é apenas cervo e a garota começa a comer, mas o chama de “animal”. “Você está julgando muito rápido”, defende-se David. “Considerando que você e seu amigo


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mataram… Quantos homens?”. Ellie argumenta que eles não tiveram escolha, mas David rebate. “E você acha que nós tivemos escolha? Vocês matam para sobreviver. Nós também”, ele diz. “Temos que cuidar dos nossos. Seja como for”. David se encaixa na ideia de Vogler (2006) de que os vilões são heróis de suas próprias jornadas. “Mesmo que algumas Sombras gostem e orgulhem-se de serem más, muitas delas não se consideram malvadas. Em sua opinião, estão certas e são heroínas de suas histórias” (VOGLER, 2006, p. 242). Por mais que as atitudes de David sejam questionáveis e cruéis, o personagem acredita agir do modo correto e necessário para sobreviver. Além disso, não é coincidência que suas atitudes antagonizem com os protagonistas. O vilão e o herói possuem arcos de histórias espelhados: um momento escuro para o herói é um momento luminoso para a sombra e vice-versa. Ellie pergunta se David vai “cortá-la em pedacinhos”. Ele diz “esperar que não” e pergunta novamente o nome dela, mas a garota se irrita por acreditar que ele está mentindo. David jura estar sendo honesto e fala que agora é a vez de Ellie se abrir. Segundo ele, só assim ele poderá convencer os outros membros do grupo de que ela pode se arrepender dos danos causados a eles. Em seguida, o vilão mostra a real intenção por trás de suas ações. “Você é corajosa. Você é leal. E você é especial”, ele diz enquanto pega carinhosamente na mão de Ellie pela grade da cela. O gesto possui conotação sexual e sugere o propósito de David com a menina, no qual fica subentendido que essa “troca” seria o preço para mantê-la viva. Ellie finge entrar no jogo, mas ataca David para tentar pegar as chaves da cela em seu cinto. O sujeito reage batendo Ellie contra a grade e se afastando. “Garota idiota. Assim vai ser muito difícil manter você viva. O que eu vou dizer aos outros agora?”, questiona David. A heroína demonstra toda sua coragem diante de uma situação tão adversa. “Diz para eles que Ellie é a garotinha que quebrou seu dedo”, ela responde. O vilão indica que ela será morta no dia seguinte. “Como você tinha dito? Pedacinhos? Vejo você de manhã, Ellie”, diz David antes de ir embora. Enquanto isso, Joel acorda repentinamente no vilarejo. Ainda com dores e dificuldade para caminhar, ele percebe que Ellie não está no local e levanta para procurar a garota. O controle do jogador volta para Joel. Esse momento marca a superação da morte pelo protagonista, o que segue a lógica de Vogler (2006) de que os heróis têm que morrer para renascer.


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O movimento dramático que a plateia mais gosta, acima de qualquer outro, é o de morte e renascimento. De algum modo, em toda história os heróis enfrentam a morte ou algo semelhante: seus maiores medos, o fracasso de um empreendimento, o fim de uma relação, a morte de uma personalidade velha. Na maioria das vezes, os heróis sobrevivem, magicamente, a essa morte e renascem – literal ou simbolicamente – para colher as consequências de terem derrotado a morte. (VOGLER, 2006, p. 230)

A escolha dos desenvolvedores em fazer Joel acordar de forma súbita quando Ellie está em perigo parece ter sido feita para indicar que o laço entre os dois personagens se tornou mais forte: Joel sente que a companheira precisa de ajuda. Essa ligação diz respeito ao fato de que o herói não apenas sobrevive à morte, mas renasce transformado. “Essa experiência muda dramaticamente o personagem, fazendo com que fique mais sensível às necessidades dos outros e mais consciente de que faz parte de um grupo” (VOGLER, 2006, p. 231). No vilarejo, Joel enfrenta homens de David que ainda rondam a região. Eles podem ser encarados como guardiões de limiar, já que essa é a Aproximação da Caverna Oculta sob o ponto de vista de Joel. O protagonista agora precisa entrar no território adversário para salvar Ellie. O rapto da aliada é uma complicação dramática para o herói. O revés serve para testar a determinação de seguir adiante, além de acentuar a urgência e a qualidade de vida ou morte da situação. Joel é agarrado por dois dos capangas. No entanto, ele vira a situação, desbanca os agressores e os leva para dentro de uma cabana próxima. Na cena seguinte, um dos homens está amarrado a uma cadeira de costas para o outro, que é espancado por Joel no canto oposto da sala. Depois, o herói pergunta para o que está sentado na cadeira se “a garota está viva”. O sujeito finge não saber do que se trata. Joel se irrita e não hesita em cravar uma faca no joelho do capanga. O homem então admite que ela está na cidade e que é o “novo mascote de David”. Joel ordena que o capanga marque o local em um mapa e avisa: “É melhor que seja no mesmo lugar que seu amigo apontar”. O sujeito identifica o ponto, mas mesmo assim Joel o mata quebrando seu pescoço. “Ele disse o que você queria! Não vou te falar nada!”, diz o outro capanga, assustado. “Não tem problema. Eu acredito nele”, responde Joel antes de acertá-lo com um pedaço de metal na cabeça. Essa cena exibe Joel com uma violência que nunca vimos antes. O herói sempre foi bruto para sobreviver no mundo pós-apocalíptico contra infectados ou adversários humanos, mas a tortura e os assassinatos a sangue frio mostram que o


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protagonista chegou a um novo nível. Como um pai protetor, Joel “renasceu da morte” disposto a fazer qualquer coisa para salvar Ellie. Sua personalidade velha foi abandonada e deu lugar a alguém que não mede as consequências de seus atos para proteger quem ama. Como os estágios anteriores levaram os jogadores a se identificar com o herói e torcer por ele, é natural que a atitude feroz do personagem nem seja questionada. O objetivo final de Joel justifica os seus meios – afinal de contas, também queremos salvar Ellie, custe o que custar. A cena seguinte volta a exibir Ellie. A garota é acordada por James e David para ser colocada na mesa de corte. Na disputa, ela morde o líder do grupo, mas os dois conseguem segurá-la. Quando está prestes a levar uma facada, Ellie avisa que está infectada – e blefa que David também está, por causa da mordida. O homem levanta a manga da roupa dela e vê que é verdade. James e David ficam surpresos e debatem a veracidade da ferida. Ellie aproveita o momento para escapar. Ela pega o facão e golpeia o pescoço de James. Em seguida, foge da sala por uma janela antes que David possa acertá-la com um tiro. Ellie volta a ser controlada pelo jogador, que precisa guiá-la pela cidade no meio de uma nevasca. Diálogos podem ser ouvidos em que David alerta os outros homens sobre o fato de Ellie estar infectada e avisa que ela deve ser caçada, além de retirarem as pessoas desarmadas do lugar (o que indica que talvez houvesse mulheres e crianças realmente). Conversas de outros capangas questionam a liderança de David. A garota passa pelos guardas e entra em um restaurante vazio, mas David aparece e toma um revólver que a garota adquiriu no caminho. No confronto, velas caem próximas à entrada e começam a queimar a estrutura do lugar. Decidido a dar um fim na garota, David tranca a porta de saída. “Como você fez aquilo?”, questiona David. “Eu sei que você não está infectada. Nenhum infectado luta tanto para ficar vivo”, ele argumenta. Ellie se esconde atrás das mesas e os dois fazem um jogo de “gato e rato”: enquanto David procura a garota, Ellie se movimenta para acertá-lo por trás. A garota consegue cravar seu canivete no sujeito, mas ele reage jogando Ellie no chão e ambos caem desmaiados ao mesmo tempo em que o fogo se alastra pelo restaurante. A tela se apaga. O controle do jogador volta para Joel, que chega ao local em que o grupo de David vive. Ele ouve diálogos de capangas que procuram Ellie e encontra a mochila da garota no abatedouro em que outros cadáveres humanos são mantidos. Ao sair pela porta, vê o restaurante em chamas.


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A cena seguinte mostra Ellie e David recobrando os sentidos. A garota se recupera e rasteja para alcançar o facão de David que está caído embaixo de uma mesa. No entanto, o sujeito levanta e a acerta com um chute na barriga. David a desafia a continuar lutando. Ellie não se entrega e avança um pouco mais em direção ao facão. O vilão dá um novo chute e monta em cima da garota, em uma possível tentativa de estupro (embora a cena seja ambígua). David a ameaça dizendo “não saber do que ele é capaz” e começa a estrangulá-la. A garota estica o braço e consegue pegar o facão. Ellie mata David acertando diversos golpes com raiva e violência. Joel chega ao restaurante e segura Ellie para ampará-la. A garota, emocionalmente abalada, tenta se afastar. Ao perceber que se trata de seu companheiro, ela começa a contar o que aconteceu (“Ele tentou…”), mas Joel a abraça e ela se acalma antes de completar a frase. São notáveis o carinho paternal do herói e a sensação de proteção que Ellie desenvolve na presença de Joel. A situação de vida ou morte leva os personagens a ficarem mais próximos. “O herói não precisa morrer para que o momento de morte faça efeito. Ele pode ser uma testemunha da morte ou, até mesmo, o causador” (VOGLER, 2006, p. 239). O ápice do “momento de morte” de Ellie é a situação em que ela causa a morte do vilão e é impactada por sua ação. É interessante notar como isso afasta a personagem da temática de “donzela em apuros”. Joel não é o herói que mata o “dragão” e salva a “princesa”, mas é a própria Ellie, com sua determinação e coragem, que vence o embate contra seu raptor. O momento tenso do aniquilamento de David também vai de acordo com a ideia de Vogler (2006) de que a morte do vilão deve ser realista, não apenas uma conveniência do enredo. Por consequência, esta nunca pode ser uma tarefa fácil para o herói. A violência e o desespero de Ellie no embate com David deixam claro a intensidade da situação. O confronto com o vilão marca a crise do enredo, quando as forças hostis estão no estado mais tenso de oposição. Este é o principal acontecimento do segundo ato – diferente do clímax, o grande momento da parte final. É comum que a crise seja central, dividindo a história ao meio. The Last of Us, no entanto, é construído em cima do retardamento de crise, quando o pico dramático do segundo ato acontece apenas em seu final, provendo mais tempo para os testes preparatórios e menos para as consequências da Provação. Entretanto, a duração menor dos estágios posteriores e a morte do vilão não significam que o resto da jornada será tranquilo. “O herói ainda


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pode ter que se confrontar com outras forças, outras Sombras, antes que a aventura chegue ao fim” (VOGLER, 2006, p. 241).

2.9 Estágio Nove Passeio pelo Zoológico Depois que a tela se apaga após os eventos do capítulo anterior, a palavra “primavera” aparece, indicando uma nova passagem de tempo para o estágio da Recompensa, o nono da Jornada do Herói. A primeira cena mostra Ellie olhando para a pintura de um cervo na parede. É natural imaginar que a garota esteja imersa em pensamentos sobre os acontecimentos anteriores da história, no inverno, quando tudo começou com a caça de um animal do mesmo tipo. Ellie está distraída até ser chamada por Joel. Os dois agora caminham por uma rodovia, um cenário luminoso no qual a neve deu lugar à vegetação e carros abandonados. O herói mostra uma placa que indica o caminho para o hospital de Salt Lake City, onde os Vagalumes supostamente se encontram. Um indício de que Ellie está absorta no passado recente é o diálogo que se segue à cena inicial. Joel diz que, em um dia de brisa como o que vivem, ele costumava se sentar na varanda para tocar violão. “Quando terminarmos com isso, vou ensinar você a tocar violão. Acho que você gostaria. O que você acha?”, pergunta. Ellie, no entanto, se mantém quieta. Para obter uma resposta é necessário apertar um botão que ativa a conversa opcional. Nesse caso, Joel chama a atenção da garota, que dá apenas uma resposta curta e sem vontade dizendo que “seria ótimo”. É interessante notar como os papéis se inverteram. Joel está mais extrovertido e faz planos para o futuro com Ellie quando a jornada terminar, enquanto ela se mantém introspectiva como era o herói no começo da aventura. Joel até comenta que a garota está “muito quieta”, mas ela apenas pede desculpas, sem explicar seus motivos. No entanto, pode-se analisar que o recolhimento de Ellie faz parte do processo de recuperação após o encontro com a morte. Outra explicação é a incerteza sobre o êxito da jornada. Com tantos percalços para encontrar os Vagalumes, Ellie pode estar apreensiva de chegar ao hospital. Um indício disso é outra conversa opcional. A garota sonhou que estava em um avião caindo. No meio das pessoas desesperadas, Ellie conta que seguiu até a cabine e viu que não havia piloto. Ela tenta controlar a aeronave sem sucesso e acorda logo antes


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da colisão. Uma possível análise sobre o sonho da personagem seria entender que o avião cheio de pessoas e sem piloto representa a humanidade, sem rumo após a epidemia do fungo Cordyceps. Ellie é a esperança de cura, mas falha em pilotar o veículo, o que representa a sua insegurança e apreensão em ser a responsável por salvar a civilização. Dentro de um prédio em Salt Lake City, Joel impulsiona Ellie para alcançar uma escada. A garota entrega o objeto para o companheiro, mas some de vista ao soltar uma exclamação – ela viu algo que não sabemos o que é. A preocupação inicial dá lugar à curiosidade quando Joel sobe para a varanda do andar superior. “Você precisa ver isso!”, diz Ellie animada. É necessário seguir a garota para descobrir do que se trata, o que atiça o interesse do jogador. Após percorrer um trecho curto, os personagens se deparam com uma girafa comendo folhas no mesmo nível em que eles estão. Joel se aproxima para afagá-la e encoraja Ellie a fazer o mesmo. Quando o animal vai embora, Ellie, encantada com a situação, corre para o topo do prédio. Ela e Joel observam uma família de girafas passeando pelo cenário. Segundo Vogler (2006), o estágio da “Recompensa” traz momentos tranquilos, de reflexão ou intimidade. “Essas passagens mais calmas e líricas são importantes para criar um vínculo com o público” (VOGLER, 2006, p. 258). Além disso, elas são importantes porque permitem que a plateia se recupere após uma batalha emocionante ou uma provação difícil. Depois dos altos riscos no capítulo do inverno, a sequência das girafas é um momento tocante que aumenta a ligação emocional do jogador com os personagens. No geral, é comum que a “Recompensa” seja uma celebração, obtenção de algum objeto ou a clareza de novas percepções sobre a vida. Joel e Ellie não ganham poderes ou comemoram o fato de estarem vivos, mas apenas desfrutar de um momento de paz – como um passeio de pai e filha pelo zoológico – é o bastante para eles no mundo caótico de The Last of Us.

2.10 Estágio Dez A Jornada Continua Depois de apreciarem as girafas, Joel se aproxima da porta que leva para os andares inferiores do prédio, mas se detém antes de abri-la. “Não temos que fazer


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isso. Sabe disso, não é?”, diz ele quando Ellie se aproxima. “Qual é a outra opção?”, questiona a garota. Joel cogita que eles podem voltar para a usina de Tommy e abandonar a procura pelos Vagalumes, mas Ellie se apoia nos eventos anteriores da história para justificar o progresso da jornada. “Depois de tudo que passamos? De tudo o que eu fiz? Não pode ser em vão”, conclui. O Caminho de Volta, décimo estágio da Jornada do Herói, marca a transição do segundo para o terceiro ato da história. É interessante observar que o diálogo de Joel e Ellie acontece diante de uma porta, que representa justamente a travessia entre limiares. Este é o momento em que, após a Recompensa, os heróis voltam a dedicar à aventura. Nesse estágio, o herói enfrenta a decisão de ficar no Mundo Especial ou iniciar a jornada de volta ao Mundo Comum, que pode ser um regresso ao ponto de partida ou a continuação da jornada para uma destinação final. Se pensarmos no Mundo Especial como a própria relação entre Joel e Ellie, a sugestão do herói é uma tentativa de evitar o retorno ao Mundo Comum (quando não a conhecia) ao querer manter a garota próxima de si e não entregá-la aos Vagalumes. No entanto, Ellie toma a decisão de prosseguir. Para Vogler (2006), quase toda história necessita de um momento em que o herói tome consciência de que está prestes a terminar a aventura e uma motivação se faz necessária para que ele continue a jornada em vez de ficar no Mundo Especial. Depois de finalizar o diálogo dizendo que a jornada até esse ponto “não pode ser em vão”, Ellie toma a dianteira e atravessa a porta. Joel observa a última girafa sumir de cena ao seguir sua família antes de ele mesmo respirar fundo e seguir a garota, em uma construção sutil que mostra ambos acompanhando seus pares. Joel e Ellie continuam conversando enquanto descem as escadas do prédio. “Eu sei que você tem boas intenções, mas não há meio termo aqui. Quando terminarmos, vamos para aonde você quiser, tá?”, diz Ellie. “Bom, eu não vou te deixar, então vamos acabar logo com isso”, responde Joel. Esse diálogo é um contraponto ao início da jornada e mostra como a relação entre os personagens cresceu. O herói declara abertamente que não possui a intenção de abandonar Ellie, atitude oposta de quando tentava recusar a aventura ou se livrar da garota. Além disso, é Ellie quem toma a decisão de prosseguir, algo inimaginável quando a relação era unilateral e a garota apenas obedecia.


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Outro exemplo demonstra como o herói está mudado. Ao entrar em uma área de triagem, Joel conta suas lembranças de quando a epidemia eclodiu: “Em toda parte havia famílias destruídas. Parecia que o mundo inteiro estava do avesso de um dia para o outro”. Ellie pergunta se isso foi depois que ele perdeu Sarah, um assunto antes tratado com delicadeza, mas Joel responde que sim sem se alterar. A garota então mostra compaixão pela dor do herói. “Não consigo imaginar perder alguém que você ama tanto. Perder tudo o que você conhece. Sinto muito, Joel”, diz. Pouco tempo depois, Ellie entrega a Joel a fotografia dele com Sarah, que ela roubou na usina de Tommy. Dessa vez, o herói se mostra receptivo. “Bem, não importa o quanto você tente, acho que não dá para fugir do passado. Obrigado”, ele diz. A reaparição dessa fotografia no estágio do “Caminho de Volta” pode ser um jeito simbólico de registrar o ponto de partida da jornada, quando Joel estava em seu primeiro Mundo Comum com Sarah. Além disso, a abertura de Joel mostra uma clareza maior sobre seus sentimentos, o que pode ser identificado como uma Recompensa por ter sobrevivido à morte. “Os heróis, finalmente, conseguem ver quem eles são realmente e como se encaixam no esquema geral das coisas” (VOGLER, 2006, p. 263).

2.11 Estágio Onze O Clímax da Ressurreição Joel e Ellie chegam a um túnel alagado e repleto de infectados. O combate é difícil e coloca à prova os aprendizados da jornada. Após vencê-los, os heróis encontram uma área cheia de água, com muita correnteza, e seguem por cima das carcaças de veículos abandonados. Momentos antes, Ellie havia dito que seria uma boa ideia Joel ensiná-la a nadar depois que a aventura terminasse. Quando estão passando por cima de um ônibus, o veículo se movimenta e Joel não consegue alcançar a plataforma do outro lado. O protagonista tomba para dentro da carcaça e Ellie volta para tentar ajudá-lo. Ela consegue abrir a porta do veículo, mas, após um novo movimento súbito do ônibus, a garota cai na água e Joel fica submerso. O herói nada para fora do veículo e encontra Ellie desacordada embaixo d’água. Ele a leva para a superfície e tenta recuperá-la do afogamento usando massagem cardíaca. Dois homens armados – guardiões de limiar – aparecem e mandam Joel colocar as mãos para cima. Ele argumenta que Ellie não está respirando


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e continua tentando salvá-la. Um dos sujeitos se aproxima e aplica uma coronhada em Joel, que desmaia. A tela se apaga. O estágio da Ressurreição, décimo primeiro da Jornada do Herói, é responsável por apresentar o último e mais perigoso encontro com a morte. “Para que uma história fique completa, a plateia precisa experimentar mais um momento de morte e renascimento, parecido com a Provação” (VOGLER, 2006, p. 281). O afogamento de Ellie e o desmaio de Joel por conta dos guardiões de limiar dá início a esse processo – que será ainda mais grave para a garota. Joel acorda no hospital ao lado de Marlene, a líder dos Vagalumes. Ela dá boas-vindas e pede desculpa pelo ataque de seus homens. A primeira reação de Joel é perguntar sobre Ellie, mas ela informa que a garota está bem. Marlene pergunta com surpresa como Joel conseguiu chegar até a base dos Vagalumes. Vale lembrar que o encontro entre os dois em Boston se deu quase um ano antes e a tarefa de Joel nunca foi encontrá-la em Salt Lake City. É provável que Marlene já dava como perdida a causa de usar Ellie para criar uma vacina. “Foi ela. Ela lutou demais para chegar até aqui”, responde Joel referindo-se a Ellie e as superações da jornada. “Talvez fosse o destino”, completa. Marlene elucida que perdeu “praticamente tudo”, incluindo boa parte do seu grupo ao cruzar o país para chegar até ali, e concorda com Joel. “Então você aparece e encontramos vocês bem a tempo de salvá-la. Talvez fosse o destino”. No entanto, Marlene logo revela intenções diferentes em relação ao herói. Joel pede para ver Ellie. Marlene diz que ele não precisa mais se preocupar com a garota, mas ele responde que se importa e repete seu pedido. A máscara de sombra começa a ficar evidente na líder dos Vagalumes. Após dar uma olhada para o sentinela que guarda a sala, ela responde que Joel não pode ver Ellie, justificando que ela está sendo preparada para a cirurgia. “Como assim cirurgia?”, indigna-se o herói, que agora se levanta da cama. Com a tensão crescente, o sentinela – o homem que aplicou a coronhada em Joel – se aproxima de prontidão, o que indica que o resultado do diálogo não agradará o protagonista. Marlene conta que, segundo os médicos, o Cordyceps que cresceu em Ellie sofreu um tipo de mutação e esse é o motivo de ela ser imune. “Quando ele for removido, eles poderão fazer engenharia reversa e criar uma vacina”, explica Marlene com brilho nos olhos. Joel se mostra desconfiado ao lembrar que o fungo cresce por todo o cérebro e Marlene concorda de forma reticente.


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Joel não se conforma com a ideia de que Ellie terá que morrer para se criar uma vacina. Irritado, manda Marlene encontrar outra pessoa para a cirurgia, mas ela responde que não existe mais ninguém. Joel se aproxima para exigir ver Ellie, mas o sentinela aplica um golpe e derruba o herói no chão. Marlene manda o subordinado parar e racionaliza sua decisão. A líder dos Vagalumes argumenta que a situação é pior para ela do que para Joel, pois ela conhece Ellie desde que a garota nasceu. Além disso, Marlene prometeu à mãe de Ellie que tomaria conta da menina. “E por que você vai deixar isso acontecer?”, questiona Joel. “Porque isso não é sobre mim. Ou mesmo sobre ela”, responde Marlene, o que mostra todo o seu comprometimento com a causa e o seu desejo de criar uma vacina a qualquer custo. “Não existe outra opção”, ela conclui. Joel ainda se mostra cético e inconformado (“Continue falando essa bobagem para si mesma”), mas Marlene tomou sua decisão e não está aberta para argumentos. Ela pede para seu subordinado tirar Joel do hospital e avisa: “Se ele tentar alguma coisa, atire”. Depois, voltada para Joel, diz para ele “não desperdiçar o presente”, no sentido de ir embora agradecido por estar vivo. Marlene, o arauto que apresentou a aventura para Joel no começo da história, agora se coloca como antagonista para o clímax da jornada. Ela é uma sombra humanizada: a líder dos Vagalumes não é essencialmente má, mas acredita fortemente em sua visão de mundo e está disposta a fazer o que for preciso pela sua “causa maior”. Marlene configura um tipo perigoso de vilão, em que a pessoa está tão convencida da importância de sua causa que os fins justificam os meios e nada pode detê-la. Vale notar a diferença técnica entre “vilão” e “antagonista”. Para Vogler (2006), os vilões dedicam-se à morte, destruição ou derrota do herói, como David no estágio da Provação. Já o antagonista não precisa ser tão hostil e geralmente discorda do herói quanto a alguma tática, podendo até mesmo ser um aliado. “Antagonistas e heróis em conflito são como cavalos numa parelha, que puxam em direções diferentes, enquanto vilões e heróis em conflito são como trens que avançam um de encontro ao outro, em rota de colisão” (VOGLER, 2006, p. 123-124). Marlene parece caminhar entre os dois conceitos. Sua argumentação com Joel mostra a discordância sobre como lidar com a situação de Ellie ser imune ao mesmo tempo em que ela se mostra disposta a matar Joel caso ele tente atrapalhar seus planos. O sentinela manda Joel levantar, ameaçando-o com uma arma, e o acompanha para fora. O herói demora e o guardião de limiar avisa que basta uma “desculpa” para


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matá-lo. Joel segue em frente, mas para de andar repentinamente após passar por um balcão onde está a sua mochila. O sentinela empurra Joel com a arma para que ele continue andando, mas o herói aproveita esse momento para contra-atacar. Ele pega a arma do guarda e pergunta a localização da sala de operações, onde Ellie se encontra. Com a demora da resposta, Joel diz que “não tem tempo para isso” e acerta dois tiros no quadril do sujeito. O sentinela conta que a sala fica no final do corredor do último andar e Joel o elimina com um tiro na cabeça. O herói recupera sua mochila e percebe a movimentação de outros Vagalumes, que ouviram os tiros e aparecem para procurá-lo. Joel parte em busca de Ellie e enfrenta uma difícil batalha contra dezenas de inimigos pelos andares do hospital. A Ressurreição é o estágio que define o clímax da história. “É um momento explosivo, o ponto mais alto de energia ou o último grande acontecimento de uma obra” (VOGLER, 2006, p. 288). Nesse momento, é importante que o herói seja ativo e realize a principal ação do enredo. Para Vogler (2006), o protagonista até pode receber um auxílio inesperado, mas é melhor que ele seja o autor do golpe decisivo contra o medo ou a sombra. O impacto não seria o mesmo se fosse Ellie quem salvasse Joel nesse ponto da história porque o maior propósito dramático da Ressurreição é mostrar, por meio de atitudes e ações, que o herói realmente mudou. Joel não queria se aproximar de Ellie no começo da jornada, mas agora se arrisca e luta contra tudo e todos para tentar salvá-la. No caminho, o jogador pode encontrar três gravadores com mensagens que adicionam informações ao background da história. Dois são de Marlene e reforçam a humanização da Sombra. No primeiro, a líder dos Vagalumes revela que acabou de conversar com o cirurgião e descobre não há maneira de retirar o parasita sem eliminar o hospedeiro – ou seja, Ellie deve morrer. Ela se mostra insegura, mas cede por estar exaurida após anos em busca de uma cura para a infecção. O sacrifício de Ellie representa o fim da jornada de Marlene. “E agora eles estão pedindo minha permissão. Os testes ficam cada vez mais difíceis, não é? Estou cansada. Estou exausta e só quero que isso acabe… Então que seja”, relata. O segundo registro é mais pessoal e traz uma mensagem para Anna, a falecida mãe de Ellie. Marlene conta que protegeu a garota durante todos esses anos, como havia prometido. Em seguida, ela coloca o sacrifício de Ellie em perspectiva. “Temos uma chance de nos salvar… Salvar a todos nós. Isso era o que queríamos… o que você queria”, diz Marlene, o que sugere que Anna também fazia parte dos Vagalumes.


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Marlene parece justificar seus atos como uma tentativa de eximir sua culpa – sentimento que pode ser percebido em seu tom de voz. “Duvido que eu tivesse escolha, pedir minha permissão era mais uma formalidade”, ela analisa sobre a cirurgia de Ellie. Todos no grupo dos Vagalumes sempre lutaram e perderam pessoas próximas ao buscar uma vacina. Se Marlene recusasse a única chance de se descobrir uma cura por conta de seu afeto pela garota, tal fato provavelmente não seria bem aceito. Marlene ainda justifica o fato de não ter matado Joel: “Eles me pediram para matar o contrabandista. Não vou matar o único homem neste hospital que talvez entenda o peso dessa decisão. Talvez ele possa me perdoar”. Com essa declaração, Marlene busca se distanciar de seus colegas – que querem chegar ao objetivo da vacina independentemente dos meios para alcançá-lo – e se colocar ao lado de Joel, considerando-o como alguém que poderia entender a dificuldade de sacrificar a garota por um bem maior. O terceiro gravador, feito pelo cirurgião-chefe, comprova essa ideia. Ele se mostra animado com a possibilidade de descobrir uma vacina para o Cordyceps, sem mostrar pesar pelo fato de que Ellie tem que morrer. “Vamos atingir um marco na história humana igual à descoberta da penicilina.”, ele relata. “Depois de anos vagando em círculos, estamos prestes a voltar para casa, fazer a diferença e colocar a raça humana de volta ao controle de seu próprio destino”. É possível analisar que a decisão de manter Joel vivo seja movida pelo fato de Marlene ter empatia com a dor que ele está sentindo e por seu sentimento de culpa pelo sacrifício de Ellie – ou talvez até por um desejo escondido de que a garota poderia ser salva. Para Vogler (2006), essa humanização faz com que o vilão deixe de ser uma mosca a ser esmagada e apareça como um ser humano de verdade, com fraquezas e emoções. “Matar alguém assim passa a ser uma verdadeira escolha moral, e não apenas um reflexo impensado”. (VOGLER, 2006, p. 127). O caminho para a sala de cirurgia não é fácil. Joel enfrenta diversos adversários com armamento de alto calibre e bem protegidos atrás de coberturas. Segundo Vogler (2006), o estágio da Ressurreição pode representar um último confronto com a morte, mas com a diferença de que agora o perigo surge em uma escala muito maior em relação aos eventos anteriores da história. “Não se trata apenas de uma ameaça ao herói, mas ao mundo inteiro” (VOGLER, 2006, p. 284) É interessante notar como isso


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funciona de forma inversa em The Last of Us: Ellie representa a possível cura para a humanidade (elixir), mas o herói deseja impedir que isso aconteça. Joel chega à sala de cirurgia, onde estão o cirurgião-chefe e dois enfermeiros. Ellie está desacordada em uma maca. “Eu não vou deixar você levá-la. É o nosso futuro… Pense em todas as vidas que vamos salvar”, diz o médico. Ele pega um bisturi e aponta para Joel. Essa fala mostra como Ellie é apenas um meio para atingir um objetivo maior e levanta a questão: vale a pena trocar uma vida pela possibilidade de salvar mais pessoas? Do ponto de vista de Joel, certamente que não por conta de sua ligação emocional com a garota. Este é um momento crítico. Joel se aproxima do cirurgião e crava o bisturi em sua garganta. Diante da iminência da situação, o jogador também poderia ter atirado e nem saberia que Joel usaria o bisturi para matar o médico caso chegasse perto dele. Esta é a primeira vez que Joel mata um civil desarmado e que não representa uma ameaça direta. Como jogador, sentimos o peso de matar um médico, uma profissão fundamental para a sociedade e escassa no mundo de The Last of Us. No entanto, o envolvimento com o jogo nesse ponto é tão alto que sentimos a necessidade de realizar essa ação, pois é o único jeito de salvar Ellie – o objetivo acima de qualquer outra coisa (tanto de Joel quanto do jogador). Para Vogler (2006), um clímax deve provocar a sensação de catarse. “Essa palavra grega, na verdade, significa “vomitar” ou “purgar”, mas a usamos para designar uma liberação emocional purificadora ou uma expansão emocional” (VOGLER, 2006, p. 290). A catarse é o clímax lógico do herói em seu arco de personagem, que inclui as etapas graduais da transformação, as fases do crescimento e os pontos em que ele muda de direção. A história de The Last of Us pareceria incompleta se Joel aceitasse a operação de Ellie e simplesmente fosse embora do hospital. O clímax lógico é que Joel lute por ela com todas as suas forças, após ter sido transformado pela jornada. Além disso, The Last of Us acerta em fazer com que a transformação de Joel seja gradual. Vogler (2006) considera que a mudança abrupta de um personagem por conta de um único incidente é uma falha dos escritores de roteiro. “O mais comum é que as pessoas mudem aos poucos, crescendo em estágios graduais, da intransigência para a tolerância, da covardia para a coragem, do ódio para o amor” (VOGLER, 2006, p. 292). Após matar o cirurgião, Joel pega Ellie em seus braços. Ele corre em busca do elevador do prédio enquanto é perseguido pelos Vagalumes. Joel expressa


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mensagens de força para Ellie e uma trilha sonora comovente toca ao fundo. Esse momento é simbólico, pois funciona como um espelho do começo do jogo. Durante a eclosão da epidemia, o herói carregou Sarah no colo para fugir dos infectados. Agora, a situação se repete de forma parecida com Ellie no lugar da filha. Joel desce com Ellie para a garagem do hospital, mas ele é surpreendido por Marlene. “Você não pode salvá-la”, ela diz apontando uma arma para o herói. Marlene argumenta que mesmo que Joel conseguisse tirá-la do hospital, Ellie poderia morrer a qualquer momento no mundo pós-apocalíptico, seja por infectados ou humanos hostis. Joel rebate que não cabe a Marlene decidir sobre a vida da garota. Essa cena manifesta um quê de duelo, outro aspecto possível do estágio da Ressurreição. “O herói e o vilão estão frente a frente, em um jogo final em que o risco é o maior possível: vida ou morte” (VOGLER, 2006, p. 285). A líder dos Vagalumes tenta convencer Joel de outra forma. “É o que ela gostaria. E você sabe disso”, diz Marlene referindo-se a um possível desejo de Ellie. O herói se mostra pensativo e fica calado. Marlene diz que Joel ainda pode fazer a coisa certa. Ela levanta os braços e deixa de ameaçá-lo com a arma. “Ela não vai sentir nada”, garante Marlene para convencer Joel de que Ellie não irá sofrer e que esta é a decisão correta. No momento seguinte, Joel aparece dirigindo um carro. Ele está aparentemente sozinho, já que a câmera mostra apenas o herói durante alguns longos segundos. O jogador fica atônito, imaginando o que pode ter acontecido. A seguir, o barulho de alguém acordando é ouvido e Ellie é mostrada deitada no banco de trás. “O que diabos estou usando?”, pergunta a garota referindo-se ao roupão do hospital. Joel fala para ela não fazer muito esforço, pois ela ainda está sob efeito dos remédios. Ellie questiona o que aconteceu. Joel diz que eles encontraram os Vagalumes, mas mente para a garota: “Existem vários outros que nem você, Ellie. Pessoas que são imunes. Dezenas, na verdade”. Joel clama que, apesar disso, não foram obtidos bons resultados com os exames e os Vagalumes pararam de procurar uma cura para o Cordyceps. “Vou nos levar para casa”, diz o herói referindo-se à usina de Tommy. Ellie não fala nada, apenas vira para deitar com as costas voltadas para Joel, o que demonstra seu desapontamento com a situação. “Desculpe”, lamenta Joel. Em flashback, vemos a continuação da cena na garagem do hospital (que começa de forma intercalada com o diálogo entre Joel e Ellie, o que indica que o herói estava se lembrando dos acontecimentos). Marlene se aproxima de Joel, mas o


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protagonista atira com uma pistola que estava escondida atrás do corpo Ellie. Joel coloca a garota no banco traseiro do carro e volta para Marlene. A líder dos Vagalumes implora por sua vida. “Você viria atrás dela”, diz Joel antes de matar Marlene com um tiro na cabeça. Essa cena é um retorno simbólico para o início da jornada. Joel, com Ellie nos braços, está em situação similar à que viveu com Sarah. Marlene funciona como um guardião de limiar e cumpre a mesma função do soldado que matou a filha do herói. No entanto, a líder dos Vagalumes também representa a voz pelo rádio que ordenou que o militar atirasse. Sua decisão de sacrificar Ellie para obter uma chance de restaurar a humanidade equivale à escolha de matar uma garota inocente para proteger a sociedade quando a epidemia eclodiu. Se Joel aceitasse entregar Ellie para a cirurgia, ele estaria concordando com a decisão que matou sua filha vinte anos antes.

2.12 Estágio Doze O Retorno com Ellie Após alguns segundos com a tela apagada, inicia-se o estágio final da Jornada do Herói, o Retorno com o Elixir. Na primeira cena, Ellie aparece de forma introspectiva olhando para a lesão do Cordyceps em seu braço. A imagem indica que ela está pensativa, algo reforçado quando a garota responde de forma monossilábica aos diálogos que seguem. Enquanto isso, Joel verifica o motor do carro e diz que eles devem seguir a pé – uma placa mostra que os personagens já estão na cidade de Jackson, próxima à usina de Tommy. Tendo sobrevivido a todas as provações e passado pela morte, os heróis regressam a seu ponto de partida, voltam para casa ou continuam a Jornada. Mas prosseguem com a sensação de que estão começando uma nova vida, que, por causa do caminho que acabaram de percorrer, jamais voltará a ser como antes. (VOGLER, 2006, p. 303)

Joel começa a andar na frente e a movimentação de Ellie fica a cargo do jogador. Diferentemente da vez anterior, quando o controle de Ellie tinha como objetivo causar o impacto pela “morte” de Joel, agora é possível entender esse elemento como um reflexo para o início do jogo. A primeira personagem que controlamos no prólogo foi Sarah, portanto controlar Ellie no epílogo que completa a


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história funciona como forma simbólica de voltar ao ponto de partida da jornada. Para Vogler (2006), o Retorno com o Elixir pode ser circular de um modo visual ou metafórico, com a repetição da imagem inicial, de alguma linha do diálogo ou de uma situação vivida no primeiro ato. “Essa é uma maneira de amarrar os fios e fazer com que a história pareça estar completa” (VOGLER, 2006, p. 306). O fato de controlar Ellie simboliza que ela assumiu a função de Sarah e completou o vazio emocional de Joel, mas não significa que o protagonista esqueceu a filha. “Acho que eu nunca te contei, mas eu e Sarah fazíamos caminhadas assim”, diz Joel enquanto ele e Ellie passam por uma trilha pelas montanhas. “Ela era boa. Eu tinha que correr para acompanhá-la. Acho que vocês duas teriam sido boas amigas. Acho que você teria gostado dela. Eu sei que ela gostaria de você”, completa o herói. Por meio da jornada, Joel consegue trazer à luz os sentimentos reprimidos e obscuros que permeavam a escuridão do seu inconsciente (arquétipo de sombra). Com o trauma superado, o herói fala de Sarah naturalmente, sem a angústia e o tormento que sofria pela perda da filha. O fato de acreditar que Sarah teria gostado de Ellie (e vice-versa) mostra como Ellie acolhe o mesmo carinho que Joel guarda pela filha, afinal ela foi a responsável para que o herói aprendesse a amar e se importar com outra pessoa novamente. Joel e Ellie se aproximam da usina e podem vê-la à distância. Joel escala uma parte do terreno e espera para puxar Ellie, algo que se difere do restante da aventura. Durante toda a história, Joel sempre impulsionava Ellie e a garota encontrava uma escada ou algo do tipo para que o herói subisse. Agora, Ellie, sob controle do jogador, impulsiona a si mesma. Esse é um detalhe interessante que simboliza a mudança dos personagens após as provações e o fato de que a vida nunca mais será como antes. Joel continua a andar, mas Ellie chama a atenção do herói. Ela possui algo importante para dizer, o que justifica seu comportamento fechado durante o epílogo. “Lá em Boston, quando eu fui mordida, eu não estava sozinha”, começa Ellie. A garota conta que estava com sua melhor amiga, Riley Abel, que também foi infectada. As duas não sabiam o que fazer, mas decidiram apenas esperar tudo acabar: “ser poéticas e enlouquecer juntas”. “Eu ainda estou esperando a minha vez”, desabafa Ellie. Joel tenta interrompêla, mas a garota segue dizendo que sua amiga foi a primeira a morrer. Depois veio Tess e então Sam. Joel diz que nada do que aconteceu é culpa de Ellie. A garota diz que Joel não entende, mas o protagonista explicita a sua visão de mundo de que


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sempre é necessário encontrar um motivo para seguir em frente. “Eu tive que lutar muito para sobreviver”, começa Joel. Um detalhe sutil é que o personagem coloca a mão em seu relógio quebrado após dizer essa frase, o que remete essa linha de diálogo à Sarah. “E não importa o que aconteça, você sempre encontra algo pelo qual lutar”, continua. “Eu sei que não é o que você quer ouvir agora, mas…”. Ellie interrompe e pede para Joel jurar que tudo o que ele disse sobre os Vagalumes é verdade. Joel hesita por um instante, mas olha para Ellie profundamente e crava: “Eu juro”. Com um enquadramento fechado no rosto de Ellie, a garota é mostrada pensando por alguns segundos com uma cara enigmática. Ela olha levemente para baixo, retoma o contato visual com Joel, faz um pequeno aceno com a cabeça e responde apenas “okay”. Sobem os créditos. “Um Retorno pode levantar novas questões – é até desejável que isto ocorra – , mas todas as antigas devem ser retomadas” (VOGLER, 2006, p. 305). No começo de sua fala, Ellie relembra o momento quando foi infectada e descobriu sua imunidade ao vírus. Apesar de esse fato não ser mostrado diretamente na história, é um evento culminante que retoma o início da jornada em Boston. Em seguida, Ellie lembra de Tess e de Sam, citações que fazem o jogador recordar essas passagens da aventura. Para Vogler (2006), esse tipo de fala faz com que a plateia disponha de um fator de comparação. “Dá-se a medida de até onde avançou o herói, de como ele se transformou e como o mundo velho parece diferente agora” (VOGLER, 2006, p. 306). Segundo Vogler (2006), o elixir que o herói traz do Mundo Especial é o elemento chave do estágio final da jornada. “É a prova de que ele esteve mesmo lá, serve de exemplo para os outros e, principalmente, demonstra que é possível superar a morte” (VOGLER, 2006, p. 311). O elixir pode ser literal, como um remédio que cura, ou metafórico, como o amor, a paz, a felicidade, o conhecimento, o dinheiro, ou qualquer coisa que leve o herói à aventura. Em The Last of Us, Ellie funciona tanto como elixir literal, por ser imune ao Cordyceps e possuir o potencial de curar a humanidade, como metafórico, por ser a razão que levou Joel a superar o seu trauma. Ellie representa o elixir do amor, pelo qual Joel teve que sacrificar sua velha personalidade pela recompensa de amar novamente, e também o elixir da responsabilidade: Joel desiste de sua condição solitária e assume seu comprometimento paternal com a garota. Em sua fala, o herói diz que não importa o que aconteça, sempre se deve encontrar algo pelo qual lutar. Ellie é o motivo que Joel encontrou para continuar lutando pela sobrevivência.


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O diálogo final do jogo cria incertezas. Por que Joel sustentou sua mentira sobre os Vagalumes? Ellie realmente acreditou em Joel? Apesar dos elementos prévios de narrativa circular, essas questões estabelecem The Last of Us como uma história de final aberto. “Desse ponto de vista, a narrativa da história prossegue, mesmo depois de a história ter chegado ao fim – pois continua na mente e no coração do público, nas conversas e discussões das pessoas” (VOGLER, 2006, p. 308). Nos finais abertos, a conclusão moral fica a cargo do jogador, espectador ou leitor, já que a história não termina com a resposta e as soluções dos enigmas, mas apresentando novas perguntas. Para Vogler (2006), os finais abertos sugerem um mundo ambíguo, um lugar imperfeito que contrasta com os finais felizes em que todos os problemas se resolvem. “Para histórias mais sofisticadas, com tintas mais fortes e realistas, o final aberto parece ser mais adequado” (VOGLER, 2006, p. 308).


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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O final de The Last of Us cria duas perguntas principais: 1) Por que Joel mentiu para Ellie sobre o que aconteceu no hospital? e 2) Ellie acreditou em Joel ou sabe que ele está mentindo? Como o jogo possui um final aberto, as perguntas não possuem uma resposta definitiva. No entanto, é possível analisar indícios para formar uma conclusão e, para isso, é preciso recapitular a jornada. A história começa com Joel, o protagonista, perdendo a sua filha Sarah, morta por um soldado durante a eclosão da epidemia do fungo Cordyceps. Esse momento é chave para que Joel torne-se uma pessoa fechada e amargurada, o que abre caminho para que a sua Jornada do Herói possa fazê-lo superar o trauma. A história continua vinte anos depois, no arco do verão (assim como os dias durante essa estação são longos, esse arco representa a maior parte do jogo). Joel, vivendo ao lado de sua parceira Tess, conhece Ellie, uma garota que deve ser escoltada pela dupla. Durante boa parte da história, Joel rejeita se aproximar de Ellie pelo medo de sofrer novamente do mesmo modo como aconteceu com Sarah. Concomitantemente, Ellie busca a aceitação de Joel. A garota cresceu sem ninguém para acolhê-la, já que sua mãe morreu um dia após o parto e Marlene, a líder dos Vagalumes, cuidava dela à distância. Joel e Ellie criam uma relação cada vez mais próxima ao longo das provações, como no arco do outono, com a “morte” de Joel, e no inverno, o período mais difícil da jornada. Do começo ao fim, The Last of Us é uma história sobre Joel e Ellie. “Enquanto a história evoluiu e tomou caminhos diferentes, o que sempre esteve presente foi Joel e Ellie. Por conta disso, quase todo o resto foi criado em cima dessa relação”, explica o diretor criativo do jogo Neil Druckmann no documentário Grounded: The Making of The Last of Us. O produtor conta que o pensamento inicial foi criar Ellie como filha de Joel, mas isso já criaria uma ligação entre os dois e não haveria muito espaço para desenvolver os personagens. Segundo Druckmann, o objetivo de The Last of Us foi se aproximar do sentimento de amor mais intenso que existe – entre um pai e seu filho –, mas sem que eles tivessem essa relação direta. O tipo mais intenso de amor que existe é entre um progenitor e sua criança. Isso é algo natural, biológico. [Nos perguntamos] “O quão próximo podemos chegar disso com esse jogo?”. No começo do jogo,


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esses personagens mal se conhecem – nem gostam um do outro –, e, no final, possuem um amor intenso e estão dispostos ao maior dos sacrifícios para resgatar um ao outro. (DRUCKMANN, Neil. Vídeo Conversations with Creators with Wil Wheaton)

O fato de Joel e Ellie não se conhecerem no começo da história cria outro impacto: a experiência de Joel com a garota é a mesma do jogador. “Partindo do zero, o jogador e Joel possuem a mesma relação com Ellie”, diz Druckmann. “Assim, pudemos construir aos poucos a relação entre esses personagens e, se fizemos direito, o jogador sente o mesmo crescimento que Joel. Estamos refletindo a relação emocional entre os dois”. O diretor do jogo, Bruce Straley, também fala no documentário Grounded: The Making of The Last of Us sobre o processo de criação na produtora Naughty Dog para que o jogador tenha a mesma sensação de Joel: Acreditamos que a mídia interativa possui o potencial pouco explorado de tocar os sentimentos do jogador. A conectividade de estar dentro do mundo e participar do que está acontecendo na tela cria uma vantagem para se sentir conectado com o que está acontecendo. O que tentamos fazer na Naughty Dog é parear a história e o gameplay. Se podemos fazer o jogador se sentir junto dos personagens nessa jornada, em teoria, os sentimentos são os mesmos que os deles, pelo fato do jogador ter investido seu tempo na história e nos personagens. (STRALEY, Bruce. Vídeo Grounded: The Making of The Last of Us)

Após a provação e o confronto com a sombra no período do inverno, a relação com Ellie (tanto de Joel como do jogador) floresce de vez no arco da primavera. Nesse ponto, já está claro que Ellie assume o papel de Sarah no psicológico de Joel – não no sentido de que Joel esqueceu a morte de sua filha, mas que o protagonista soube aceitar o que aconteceu e que Ellie foi a chave para esta aceitação. No fim da jornada, Joel está disposto a fazer qualquer sacrifício para proteger Ellie, assim como foi um dia com Sarah. O fato de realizar a principal ação da história e ser o personagem que mais muda reafirma Joel como o principal herói da aventura, enquanto Ellie é uma heroína catalisadora – a personagem que provocou a mudança em Joel. O clímax da jornada no estágio da Ressureição prova como Ellie se torna importante para Joel. De maneira interessante, The Last of Us subverte a Jornada do Herói clássica ao fazer com que a jornada interna de Joel entre em conflito com a jornada externa da história. A jornada interna do protagonista (superar seu trauma e reaprender a amar alguém) entra em conflito com a jornada externa (levar Ellie até os Vagalumes na esperança de salvar o mundo) quando Joel descobre que Ellie terá que


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morrer pela chance de se criar uma vacina. A jornada pessoal fala mais forte do que a universal e Joel acaba com a esperança de se descobrir uma cura, pois prefere que Ellie continue viva. Essa decisão levanta um questionamento sobre a validade da jornada: Joel reaprende a se importar com alguém e faz tudo para proteger Ellie ou existe um egoísmo em não deixar que a garota realize o sacrifício pela humanidade, o que mostraria que o herói não aprendeu tanto assim? Uma coisa é garantida: Joel possui o aval de pessoas que possuem filhos. Em uma entrevista para o site Kotaku, o diretor de criação Neil Druckmann diz: “Acredito que pessoas que não são pais ficaram divididas em 50/50 sobre concordar ou não com a decisão de Joel no final. Mas eu não ouvi um único pai ou mãe dizer que discorda da decisão de Joel”. Joel resgata Ellie do hospital e segue com a garota para a usina de Tommy. O final funciona de forma subvertida: na estrutura clássica da Jornada do Herói, Joel faria o retorno com o elixir para que pudesse salvar o mundo. Em The Last of Us, Joel retorna com o elixir – Ellie – logo após evitar a chance de se criar uma vacina que salvaria a humanidade da epidemia do fungo. No entanto, outra leitura é possível: a relação afetuosa entre Joel e Ellie pode ser vista como o verdadeiro elixir capaz de restaurar a humanidade. Ao longo da história, a maioria dos sobreviventes eram hostis e mostravam como os humanos podem ser tão cruéis quanto os infectados. Além disso, em nenhum momento existe uma garantia de que sacrificar Ellie realmente renderia algum resultado positivo para salvar um mundo já perdido. Assim, a decisão de Joel em salvar Ellie mostra que a relação verdadeira entre os dois poderia ser um sinal de esperança para a reconstrução da humanidade. Essa interpretação vai de encontro com o que Vogler (2006) discorre sobre o estágio do Retorno com o Elixir, em que, se os protagonistas são heróis de verdade, eles devem retornar do Mundo Especial com algo capaz de curar a terra ferida e que possa ser compartilhado com os outros. Depois da provação final, Joel mente para Ellie dizendo que seu sacrifício não foi necessário porque os Vagalumes encontraram mais pessoas imunes. Isso leva a garota a questionar Joel na cena final da história quando Ellie demonstra um forte sentimento de “culpa do sobrevivente” por ainda estar viva e sentir que não fez o suficiente para salvar os outros, citando Tess, Sam e sua amiga Riley. Ao longo da jornada, Ellie sempre mostra disposição em ajudar os outros. Ela se preocupa em deixar Tess sozinha após a mulher ter se infectado, pega o brinquedo para Sam quando Henry o proíbe e se arrisca diversas vezes para ajudar Joel, quando tenta


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despistar os capangas de David ou no túnel alagado, quando deixa a segurança de uma plataforma para tentar ajudar o protagonista. Após se afogar e chegar ao hospital pelas mãos dos Vagalumes, Ellie é encaminhada direto para a sala de cirurgia e não escolhe se quer dar a sua vida pela chance de se criar uma vacina (o que é indicado pelo fato de ela não saber o motivo de estar usando uma roupa de hospital quando acorda no carro). No entanto, Marlene talvez estivesse certa quando disse para Joel que Ellie “gostaria” de ser sacrificada em prol da humanidade. Ao longo da história, a garota sempre mostra disposição para o sacrifício, o que é evidenciado pela sua “culpa do sobrevivente”. Apesar do discurso de Ellie na cena final – em que ela pressiona Joel para saber se ele está realmente contando a verdade –, o protagonista ratifica sua mentira. Ele entende o sentimento da garota e mente para que ela não se sinta culpada por ser imune e não carregue o peso de não ter salvado a humanidade. Joel mente para proteger Ellie. Com a balela de que mais pessoas imunes foram encontradas, Ellie pode continuar a sua vida sem nenhum peso na consciência por não saber o que aconteceu de fato no hospital dos Vagalumes, incluindo a morte de Marlene. Mas… Ellie acredita na mentira de Joel? Como o final de The Last of Us é aberto, a intenção é deixar essa dúvida no ar. No entanto, certos indícios sustentam que Ellie sabia que Joel estava mentindo. Uma declaração do diretor criativo Neil Druckmann para o site Kotaku revela a intenção por trás da cena. Ele diz que a ideia original para o final da história seria fazer algo mais esperançoso, com Ellie acreditando totalmente na mentira de Joel e os dois chegando na usina de Tommy, onde haveria a sensação de que tudo ficaria bem. No entanto, esse final não faria mais sentido conforme Ellie foi se desenvolvendo como personagem. Ela sempre foi boa em detectar quando havia alguma coisa errada ou tentavam enganá-la, logo deixou de parecer sincero que ela acreditasse facilmente na mentira. A narrativa de The Last of Us comprova a análise de Druckmann. Ellie é observadora para entender os acontecimentos ao seu redor e hábil em compreender as pessoas. A garota compreendeu que Tess estava infectada antes de ela revelar que havia sido mordida, teve a percepção que Joel a abandonaria na usina e desconfiou de David no primeiro encontro entre eles. No epílogo, o fato de Ellie ainda estar pensando se o que Joel disse sobre o hospital ser verdade e questioná-lo a respeito já mostra suas dúvidas quanto à veracidade dos fatos.


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O toque final é a expressão de Ellie no momento que encerra o jogo. Ela ouve Joel jurar sobre a mentira e demora alguns segundos pensando e olhando para baixo antes de retomar o olhar e dizer “okay” em um tom de “vamos seguir em frente”. É possível identificar na expressão de Ellie que ela sabe que Joel está mentindo, mas aceita a mentira. Uma frase de Joel nessa cena – de que não importa o que aconteça, deve-se encontrar algo para continuar lutando – vai de encontro com um bilhete da mãe de Ellie, único item que a garota possui de Anna (que está na mochila de Ellie e pode ser lido quando o jogador controla a personagem). Anna diz que a vida vale a pena ser vivida e aconselha Ellie a encontrar o seu propósito no mundo e lutar por ele. Ellie entende que se Joel mentiu é porque se importa com ela e quer protegê-la, em uma relação de afeto que Ellie sempre buscou em sua vida. Ellie sabe que Joel está mentindo, mas aceita a mentira porque, no fim das contas, tudo o que eles têm é um ao outro.


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4 REFERÊNCIAS Livros VOGLER, Christopher. A Jornada do Escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Pensamento, 1997.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo / CG. Jung; [tradução Maria Luíza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva]. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos / Jean Chevalier, Alain Gheerbrant. Rio de Janeiro: José Olympo, 2015. MCKEE, Robert. Story – Subtância, Estrutura, Estilo e os Princípios da Escrita de Roteiro. Curitiba: Arte & Letra, 2013.

PROPP, Vladimir. Morfologia do conto Maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

Sites Agents of Guard Disponível em: http://www.agentsofguard.com/the-disappointing-ending-for-the-lastof-us/ Acesso em: 19h30, 15/01/2016

Kotaku Disponível em: http://kotaku.com/the-last-of-us-climactic-moments-could-have-beenvery-600685013 Acesso em: 20h30, 04/03/2016

Metacritic Disponível em: http://www.metacritic.com/game/playstation-3/the-last-of-us Acesso em: 17h30, 26/03/2016


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Vídeos Grounded: The Making of The Last of Us Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yH5MgEbBOps Acesso em: 15h00, 15/01/2016

Conversations with Creators with Wil Wheaton (Naughty Dog) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SFxSz8Yqy9w Acesso em: 17h00, 15/01/2016


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