Música de Mobília

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MĂşsica de MobĂ­lia Daniel Vilela

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Música de Mobília

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Governo do Estado do Espírito Santo Secretaria de Cultura Programa Rede Cultura Jovem

Daniel Vilela

Música de Mobília Romance contemplado pelos Editais 2011 do programa Rede Cultura Jovem, realização da Secretaria de Estado da Cultura (Secult) em parceria com o Instituto Sincades

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2011, Daniel Vilela Este trabalho está licençiado sob a Licença Attribution-NoDerivs 3.0 Brazil da Creative Commons. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nd/3.0/br/ ou envie uma carta para Creative Commons, 444 Castro Street, Suite 900, Mountain View, California, 94041, USA.

Capa

17/06-14, de Thaís Fernandes

(nanquim e aquarela silk sobre papel)

Orientação e Revisão José Irmo Gonring

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

V695m Vilela, Daniel, 1990Música de Mobília / Daniel Vilela. - Vitória: Rede Cultura Jovem, 2011 p. 72

1. Romance. 2. Literatura Brasileira. I. Título

Programa Rede Cultura Jovem

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CDU: 821.134.3(81)

Rua Abiail do Amaral Carneiro, nº 191, Ed. Arábica, sala 505 Enseado do Suá - Vitória CEP: 29.050-909 Telefones: (27) 3026.2507 | (27) 3026.4507


Para Felipe Morati e Flรกvio Bastos

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O coração, se pudesse pensar, pararia.

Bernardo Soares

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Sumário

Dias ímpares 1. Terça-feira 2. Quinta-feira 3. Domingo

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Dias pares 4. Sexta-feira 5. Sábado

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Dias Ă­mpares

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1. Terça-feira

Esta linha – reta – é o coração de Felipe.

Flutua, apenas, pois Felipe não sabe nadar.

Felipe se coloca nesta linha – reta – que insiste em ser água, areia e espuma. De longe, os barcos enfileirados insistem em fazer frente ao sol. Num bocejo, Felipe engole o verão: é nesse instante, em que põe os pés contra a linha – reta – das ondas, é nesse instante em que nada pode ser salvo, nem o tempo, nem a imagem, nem a alma, nem a camiseta da mancha amarelada, que o sal se deposita sobre as pálpebras; já não se abrem os olhos; os de Felipe, verdes, se tornam amarelados no menor contato com a água – balança os pés e gira os calcanhares contra as ondas, arranha as costas da mão na areia; levanta um turbilhão de poeira que já se aquieta nas dobras de uma concha para então espreguiçar-se contra o sol: deixar-se conduzir, de leve, até a borda.

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Tem umas duas medalhas no fundo da gaveta; pequeno, ainda, participou dos jogos do colégio – com dois ou três – que se deram em tempos preguiçosos: o vento batia rápido, o frio cobria as orelhas. O único que se meteu na água foi Felipe, de ponta a ponta, em vinte minutos. Saiu de lá com o pescoço pesado e o nariz corroído pelo cloro. Desde então, dava-se melhor com o sal. Felipe era campeão de natação que não sabia nadar. E assim alcançaria a ilhota de areia com os calcanhares apoiados num giro leve; dedica-se, porém, aos exercícios da flutuação.

Felipe nada até a ilha e por ali permanece, deitado, até que o nível da água ultrapasse os limites do nariz. Respira o sal, com cuidado, para descolar os pulmões das costelas. Enche-se de ar e flutua, de volta, até a superfície.

Assim o fez pelos dias de maré baixa. Naquele dia, choveu o previsto para um mês.

Nós não sangramos quando não lutamos.

Chovia tanto que o barulho suplantava os pensamentos de Felipe. As ondas, desastradas, avançavam com seus espólios, com suas conchas e suas rochas, tantas e de tal maneira distraídas que terminariam por desenhar um corte – reto – na testa de Felipe.

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E assim eram as pessoas em São Miguel, como ilhas, por todos os lados: impossibilidades. Bancos de areia, se davam aos mesmos contornos, às mesmas conversas, fu-


giam – da mesma maneira – à rotina. Por tudo: limitada, exceto pelas línguas. Eram fronteiras intransponíveis; falavam numa linguagem próxima às placas dos bustos e das estátuas que perfaziam três na pracinha do balneário.

E como ilhas, não se davam às fugas; tinham a imaginação curta. Contra sol, conclamavam o dilúvio. Contra o dilúvio, expiravam todos os desejos de verão. Tudo, na cidade, se desfazia aos poucos, se tornava um pouco mais de areia ou de sal. As coisas definhavam, os bolos solavam, tudo se desfazia as poucos, aos pouquinhos, numas doses homeopáticas que nada serviam, a não ser por amplificar a dor.

O coração de Felipe se desfazia em banho-maria.

Se desfazia cada dia mais rápido. Acontece que São Miguel se coloca contra uns penhascos que se dão por antes da praia, uns morros entrecortados e um balneário que não conta com mais do que um ou dois quilômetros de praia. O vento, incessante, cortava a cidade de Março até Janeiro. E, assim, todas as casas deveriam pôr os fogões em distância segura ao alcance das janelas: a ventania entortava os cabos das panelas, fazia desandar as receitas, corria contra as bocas e lhes atiçava ou apagava o fogo. Por apenas uma semana, com a frente fria, cessavam os ventos.

E, assim, ficavam perdidos todos os moradores. É que, em São Miguel, tudo se faz ao vento: o pó, a poeira, os sussurros, os segredos. Nada poderia ser dito ou feito

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sem que se soubesse pelas próximas quadras, pelos próximos morros, em todas as casas. O vento trazia aos ouvidos todo tipo de boato e de rumores, toda uma imensidão de murmúrios que, com cuidado, deveriam ser guardados à gaveta. Mas, como são criativas as senhorinhas que ali vivem, logo se descobriram piromantes; à inquisição, o pó que chegava – seja do lápis ou do papel arranhado pela caneta – até as soleiras das portas ou ao parapeito das janelas. Dedicavam-se, com certa minúcia, ao fogo branco com que faziam arder todas as orelhas dos desavisados, cujas línguas – mesmo discretas – professavam todo tipo de culpa.

Da antiga vila de pescadores, ainda restam as bússolas e os astrolábios: com as certezas da geografia, cambaleavam as velhas pelas ruas, medindo as pegadas antes mesmo que os ventos pudessem desmanchá-las. De toda calamidade pública, foi decidido – na prefeitura – que mandariam asfaltar toda a estrada que ligava o balneário ao centro, à cidade e aos cursinhos de inglês.

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E, a esses, dedicava-se Felipe em toda segunda e em toda quarta; do início de uma hora até o fim da seguinte, mantinha-se com os olhos entreabertos contra todos os desejos de preguiça e toda a maresia que se fazia às vistas. As velhinhas, poliglotas, tinham em mãos dicionários para entender toda a música, todos os dedos e todos os toques que se davam da janela de Felipe ao vento e, consequentemente, ao mundo.


Segunda-feira, do sol: fez-se o dilúvio por completo: as nuvens instalavam-se sobre aquelas dependências logo nas primeiras semanas de fevereiro, pontuais, de acordo com os antigos calendários de parede. Dali, faziam a primeira oportunidade – e talvez única – colocaram as meias aos pés e os moletons para fora do armário. De tanto sol, qualquer bloqueio fazia tempestade em São Miguel. E assim, dedicavam-se as velinhas a todo tipo de chá e de conversa, conversa alheia, que poderia render mais tempo às latas de biscoito.

Dali pra frente choveu uma semana. Teria chovido, na verdade.

É que distribuem-se assim as precipitações: todas se concentram à abertura da semana, pondo-se preguiçosas até o próximo domingo. Chovia de uma vez, vez única, para então abrir-se o céu às nuvens: e o tempo ficava ali, nublado, até que as horas fossem transpostas. Por ora, davam-se uns trovões e alguns guarda-chuvas perdidos. Felipe, com destreza, conseguia perdê-los por todas as vezes.

E assim, colocava-se às pendências dos resfriados.

Teria escrito, também, o nome dela.

Contra a chuva que lhe chapinhava os ombros, teria escrito – num velho dicionário de português-inglês – o horário de todas as linhas de ônibus que entrecortam São Miguel.

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Naquele dia, como todos os outros que se foram, não lhe disse uma palavra: é porque cochilava, como ele, sem sono; sentou-se do lado oposto – sem óculos – e era como se não tivessem limpado aquele vidro que separa a janela, a porta e de novo a janela para a qual pendia seu rosto. Tinha os olhos entreabertos demais; é que observava das letras dê até agá, descansava os olhos, para então correr do eme até o pê e voltar ao efe para que parecesse suficientemente ocupado com qualquer coisa que não fosse a recontagem que fazia de suas sardas. Ela nem desconfia, mas Felipe odeia aquele cursinho de inglês.

Teria feito por sua causa: todas as segundas e todas as quartas, chegando atrasado, poderia vê-la no ônibus. Ela sentava do lado do sol, mas é porque sentia muito frio. Fechava a janela e punha o casaco. É o mesmo, sempre, meio laranja. Dormia; descia antes do ponto de Felipe. Esticava os cotovelos, se arrastava pelo banco, consertava a barra do vestido. me.

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Ontem, no seu rosto, tinha a marca do anel; unifor-

Na quarta, ainda se lembraria do arabesco, mas já tinha se esquecido de como dormir. Por isso – hoje – sentou-se ao seu lado. A causa não era nem a senhora gorda que ocupava o assento que lhe era comum e o seguinte; não era o atraso da linha; muito menos a ausência de um lugar à janela. Felipe só queria reaprender a dormir, mas ela já não tinha mais sono. Tinha o cheiro bom; cheiro de


coisinha de pôr no travesseiro para sonhar melhor. lado.

Não deu dois pontos e Felipe adormeceu ao seu

Ou, pelo menos, teria encenado essa farsa para roubar-lhe a sombrinha.

Por todas as falhas, fez-se na casa com o moleton tão encharcado que logo transbordaram as pontas, úmidas, sob as cômodas: e todo tipo de papel e de conta, de controle para acesso remoto, de óculos e de copos que – por ora- tornaram-se apenas vidro; como o painel, rachado, que protegia a foto numa moldurinha dourada. Tinha a cabeça baixa e os olhos escondidos por lentes escuras, as mãos ágeis que procuravam algum maço de cigarros na bolsa amarelada.

Ele a achava bonita. E ela, simplesmente, achava.

Encontrou, sem querer, ele. Juntos, falavam dezesseis línguas; nunca a mesma.

No bolso da calça, cinquenta siclos: pegou o primeiro ônibus, um desses de duas portas – em que se separam o motorista e o cobrador para que então todos os passageiros tenham conversa alheia a que se dedicar – com destino ao balneário de São Miguel.

E todas as conversas posteriores não passaram de uma ou duas frases pontuadas por orações coordenadas e,

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no máximo, uma vírgula e um ponto final. Excetua-se a vez em que, ao completar dez dias de Felipe nascido, ele empregou um ponto-e-vírgula tão contrário a si que, então, decidiu partir.

Ela: tinha a boca cheia de bibliotecas. Alguns a chamavam de Babel.

Por definição, não se sabe seu nome exato; se aposta em Bárbara – já que resta unicamente um trecho de jornal velho, datado de sua chegada, com um grifo sobre esse verbete. Parênteses. Largou isso pra trás no dia que refez as malas, que, na verdade, se resumiam a uma pequena bolsa posta sobre o ombro: contavam-se duas blusas, uma calça e uns óculos de sol arranhados.

Ao contrário, todos conheciam o nome e o sobrenome do pai de Felipe.

Ele, contudo, ainda não usava óculos.

Talvez, por isso, ouvisse muito mal: e tanto que, quando Babel se fez palavra, ele teria apreendido nome semelhante; repetiria todas as vezes seguintes. E assim – desde a primeira vez – reparou que Raquel não se apoiava sobre os pés e nem se arrastava pelo chão.

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Raquel flutuava – sutilmente – como um pensa-


mento triste.

É que ela, então, dançava com os desníveis que apregoavam os paralelepípedos, acenando-lhes com o joelho sem, contudo, encontrá-los por completo. Nunca sabia do dia da semana ou do mês; perdia-se nos calendários e não tinha a mínima afinidade com os horários receitados aos xaropes. Pulava páginas e mais páginas, despercebida, de uma série de livros que, agora, restam amontoados num canto. No dia em que se fez ausência, aquela casa contava com apenas cinco livros.

E ela ainda levou três embora.

É possível, ainda, que Raquel reparasse o empréstimo; imagina-se, contudo, que não teve a oportunidade de devolvê-los. Humberto não se recorda da última vez em que viu Raquel. Considera esta, em que a teria repreendido pela tentativa distraída de manchar as páginas daqueles volumes ainda não lidos. Era assim: feita das noites que não dormia e das horas trancadas à cozinha. Não usava brincos – a cartografia de suas orelhas permanece desconhecida – e só crê-se nelas pela necessidade de qualquer cartilagem para acomodar os óculos: nunca puderam falar muito. Se tentasse, ela o induzia a um pequeno festival de breves guloseimas que ocupavam a boca e aquietavam as palavras junto às borboletas do estômago. Quando não pelos gostos, ainda pela língua; por timidez, não o fazia por vontade

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própria, mas do outro. Deixava-se calar e conduzir pelo estalo seco da separação das bocas úmidas.

Mas é que o barulho das separações é maior quando em burburinho.

E, de vez em quando, vem à cabeça que Raquel se enjoou de Humberto; reclamava de seu perfume doce, doce como seus gestos açucarados e o café, que nunca podia se fazer amargo. Ele ainda tem uma foto dela na carteira. Tresporquatro. Nem por isso teve a oportunidade de entendê-la melhor. Dava-lhe alguns apelidos; ela: nenhum. Chamava-o daquele garrancho qualquer que se estendia pela carteira de identidade.

Hum-ber-to. E assim fazia, todas as vezes, para desconcertá-lo.

E ele, inútil, se trancou nos sótãos.

Raquel foi embora num dia de sol, mas é porque gostava de cozinhar. E não se importava com o cheiro de caramelo que se espalhara, um dia antes, pela cidade inteira; como as fofocas, um pouco mais rígido do que as notícias – essas, completamente maleáveis. É que Raquel, assim, se consumiu ao fogo como o sol que se desfaz sem exigir nada em troca. Levou apenas os livros; todos dela, pois o criado-mudo só conta com aqueles que recebiam na contracapa a informação em tinta: Humberto Klutz.

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E dos restos retirou um livro, um manual qualquer, desses em que se coordenam a mecânica e a as artes da


elétrica: na verdade, fazia-se prático aos moldes e ao barro. É que aos domingos trancava-se na cozinha – com o avô – e de lá cosiam o quarto traseiro de um novilho. Intricavam-se, por ele, as folhas e as raízes da hortelã: mais as raízes, porque da terra preta é que se fazem os melhores cordeiros; contrário à etiqueta, o almoço se fazia rápido, aos bocados – poucos –, que terminavam sempre numa areia fina que amortecia o descer dos dentes. Na exatidão dessas páginas, muito antes dos livros de culinária, arruinou-se em toda palavra que não se permite fazer dita: cotovelo, ausência e partida, para então fazer um talho seco entre o pescoço e o fim das costelas.

Ao contrário: era ela ou dela, o quase. Com mão hábil, refez a corrente sanguínea: ela correria por entre conhecido caminho – coração à cabeça – tendo, sempre, ele e uma pequena enxaqueca. A testa lhe pulsaria como uma insistente sinusite. E ela nunca poderia seguir outro peito senão o dele, já em sutura, de outro coração: areia, terra preta, que – desta vez – não se desmancharia. E fez, à sua frente, o nome do Eterno, que é impronunciável. Nos dias seguintes, São Miguel se desfez em ventania.

Ao contrário de Babel, que era de nome próprio e rosto limpo, Raquel – em cópia – se debatia em franjas; e

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contava-se a segunda, a terça e, então, quarta-feira para consumirem-se as quatro letras: aos ossos que apenas a D’us foram encobertos, fez-se a areia entre os dentes de alho esquecidos na cozinha.

Nenhum trabalho deu-se a Humberto: sentado à escada que dava para a rua, tinha apenas os olhos verdes voltados para o nada; mais nada no peito, nem uma gota de sangue, apenas uma muda de hortelã – fresca – que ainda cresce nas pedras úmidas que se esquadrinham de todo interior até o mais íntimo do ventre.

Lauro dedica-se, dia e noite, a esses ramos.

Do primeiro casamento ainda restam as vidrarias.

Quando jovem, designado como boticário da região, chegou a esta cidade com a primeira mulher. Não deu dois meses e Léa morreu de desgosto. Lauro casou-se mais uma vez. Também as panelas em que Lauro macera e cozinha a hortelã.

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Nos primeiros anos, dedicava-se aos barbitúricos e aos antipiréticos. O cheiro – insuportável – agia contra as suas pálpebras, tomava-lhe o sono e o fazia preferir o mofo dos livros de farmácia acumulados no sótão ao quarto em andar superior à cozinha. Lauro, que se fazia insuportável ao jogo de esconde-esconde, dedicou-se à seguinte proporção: um litro de alfazema em tacho quente para cada vinte miligramas de solução produzida.


As economias de Lauro, defasadas, acabaram se dando mais ao perfume do que aos remédios.

Assim, todas aquelas senhorinhas de cheiro similar davam-se à sua porta para buscar os remédios de hipertensão, as balas que poderiam salivar à inexistência de açúcar e um litro de colônia: separado em sete frascos, um para cada banho, tornavam o sobrado de Lauro inodoro, mas empesteavam o resto da cidade. Então Lauro, envelhecendo: e à idade somam-se a altura diminuída e os bolsos alargados. As mãos, trêmulas, substituídas por garras; sabia-se que o único pé de alfazema da cidade escondia-se por trás dos muros do cemitério. Este, coberto por buganvílias.

Lauro contratou, um por um, os moleques da cidade: dava-lhes o pequeno alicate e umas moedas; em troca, a trouxa repleta de flores, folhas e de galhos inteiros. Mesmo à preguiça – reiterada pelos cascudos do velho – a alfazema é uma dessas plantas que se usa por inteiro, num óleo grudento, que demora dias para escorrer pia abaixo. O interesse do boticário, no entanto, residia nas buganvílias: é que essas flores-de-papel têm espinhos e os espinhos desencadeavam reações alérgicas. Sabe-se que resistem bem por até três dias e – se fosse dada a sorte para Lauro – seriam contaminados os moleques, as mães e as lavadeiras. E assim, Lauro dissipava as prateleiras e enchia os bolsos.

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Uma única vez suplantaram, os frascos de alfazema, a galeria de remédios. Lauro, assim, casou-se uma segunda vez: alinharam-se a cidade e um parque, gentilmente posto num terreno baldio, e todas as mulheres correram aos carrosséis e às maçãs de amor; numa meia hora, acabaram as colônias. Se não tivessem um cheiro tão ruim teria vendido, também, toda a gama de remédios coloridos e de inibidores, todas as vitaminas e os comprimidos efervescentes. Apenas uma moça teria ficado sem e, por ela, teria Lauro se apaixonado. Na impossibilidade dos perfumes, Lauro lhe arrendou o coração.

Tiveram Humberto e Humberto, a Felipe.

E Felipe, por sua vez, não tivera bons pulmões: mesmo com todas as aulas de natação, logo teria Lauro que destruir o tacho e tacar fogo às buganvílias e à alfazema. A fumaça, erguida ao céu, fazia-se em linhas de fuga; contra a incontinência do incêndio, desenhavam-se nuvens de chuva e fuligem nas janelas. Outra fumaceira só seu deu quando o parque voltou à cidade.

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Concomitantemente à frente fria, fazia-se na praça: ajeitava-se por entre os bancos e os bustos, por todos os senhores que ali insistiam em deixar levar o sono pelo vento; aquele dia, porém, pouco se pode dormir. Não que


o vendaval, de todas as vezes, amplificasse o ruído dos parafusos: pelo contrário, o barulho constituía-se de longe, numa roda gigante que insistia em se levantar contra o farol, todo tipo de carrossel e uma montanha-russa, a menor montanha-russa que seria possível ao mundo; esta, tão trabalhosa e tão barulhenta, fez acordar as senhoras que tiravam, nessa semana de poucos ventos, cochilos em suas orelhas. E logo se fez fila para os unguentos de Lauro: toda a poeira que subia e logo se acomodava pelos canais lacrimais daquelas velhas, tão duros e ressecados que logo se fizeram cimento, e, por dois dias, teriam ficado sem dormir. Mas tão antes e tão depressa procuraram o boticário que ele só poderia ter-lhes receitado paciência. Por quanto mais tentassem chorar e fingir desespero, pior lhes ficava a situação das pálpebras.

Puseram-se, então, a uma conta e um cálculo tão exato, tão certo, que lhes poderia render um certificado de engenharia: fazia-se, o parque, trinta anos atrasado. Para cada atraso, faziam-se dois mil parafusos. Desses, extraviara-se boa parte. E se os olhos já não funcionam, a imagem constrói-se na língua: e de tanto falar e de tanto insistir, a noite de estreia constrangeu-se num fiasco imenso, de poucos pés a ressonar o piso de metal. Eram tantas recomendações e tantas perguntas, para tanta má vontade de respostas, que logo se interditaram os filhos e os netos de pôr as moedas no balcão e solicitar qualquer tipo de bilhete ou de informação – coagidos às ameaças e aos ultimatos de desabamento.

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Não se sabe como, mas permaneceu ali o parque por cinco dias.

O contador, advertido, pôs-se a reclamar pelo segundo dia; as velhas, no entanto, de tão cansadas e de tão inchadas que se puseram as línguas, dedicaram-se aos colírios de Lauro e a todo o tipo de sono, sono bruto, que – enquanto durasse – fazia-se eternidade.

Teriam dormido por uns dois dias.

E, por dois dias, pôde São Miguel aproveitar o rangido dos maquinários.

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2. Quinta-feira É que Solidão tinha umas nuvens de vapor em volta dos olhos e não era só quando fervia a água do café: era sempre e, por sempre, entenda todo o tempo. Enxergava embaçado, franzia os olhos e guardava, numa caixinha, uns óculos velhos que colocava vezenquando. Era velha, de música, feita de madeira e uns detalhes dourados – devidamente rabiscados pelos parafusos que sobravam à armação.

Solidão, ontem, usou os óculos por todo o dia.

Por isso, põe os óculos. Porque os óculos foram feitos para a gente não en-

A única recomendação do oftalmologista que se recusava a seguir era de que retirasse os óculos quando chorasse. É que, então, condensavam-se os vapores e ficava impossível manter o metal sobre o nariz; tarefa difícil, também, de desembaraçar os raios desordenados pelas placas de chuva e de ferrugem que se formavam. Mas Solidão, quando chora, nada quer ver; nem espelho, nem pessoa, nem possibilidade.

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xergar melhor.

Seu pai, por exemplo, faz todas as contas e anotações no livro-caixa com uns óculos largos sobre o nariz. Talvez, assim, erre tanto os cálculos e sempre tenha que rasurar o papel; tão fino e tão transparente que, assim, já preveja os gastos futuros.

Se alguém pudesse dizer qualquer coisa sobre Solidão, e aqui não há quem possa, diria que tem entre vinte e cinco e trinta anos; não consta, porém, se o que convém chamar de pai é, de fato, seu pai ou qualquer outra possibilidade entre irmão, tio, padrinho ou marido.

Chamam-se, apenas, por senhor e Solidão.

Alguma ciência – inexata, porque é feita por homens de óculos muito grandes – que se dedicasse a qualquer comprovação diria que são pai e filha, ainda que esta apresente certo grau de miopia e alguma coisa de astigmatismo e, aquele, enxergue ainda que de olhos fechados. Não se pode ignorar, de fato, a ausência de uma mãe e desta, por sua vez, não se sabe qualquer hereditariedade.

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Ambos trabalham no parque: ele, pela manhã; ela, à noite. Cedo, ela dorme. Possui uma elegância matinal – ainda que nunca vista –, mas porque se imagina pela sua habilidade em esconder as olheiras. Dizem que, quando próxima do sal, a nuvem de vapor que tem ao redor dos olhos se converte em maresia e, esta, faz os favores de maquiagem: corrói as manchas, as expressões menores e torna as lágrimas hipertensas.


Solidão chorava todo tipo de desidratação. Ontem, por exemplo, sabia-se que não era dia de chuva.

Ainda que o céu, à noite, caminhasse nublado, Solidão chapinhava em poças d’água. Tinha, no braço, um guarda-chuva azul – muito grande – com um fecho dourado igual aos óculos que teimava em usar. Ela respirava fundo, em soluços, engolindo todo o tipo de escuridão necessária para facilitar a vida dos postes de energia. Solidão era amiga de todos eles. Conhecia-os pelos nomes, desde segunda, quando se instalou aqui com o parque. Contavam-lhe tudo. Ou assim se dizia, porque até mesmo as lâmpadas queimadas teimavam em acender quando ela passasse. Para a cidade, Solidão era uma desimportância a ser desvendada no próximo vendaval.

Talvez, para ela, o vento fosse mesmo necessário. Não havia confissão a ser feita pela hora das rezas e de todo o tipo de prece; Solidão permanecia calada da hora em que levantava à hora que ia dormir. Não se ouviu sua voz, mas era porque os ouvidos eram preguiçosos demais à espera do vento que cortasse o paredão de pedra e trouxesse, às casas, a conversa da peixaria, da praça e dos altares. Em São Miguel é tudo diário, anotação e caderno de receita; tudo o que se teme à borracha se esconde nas gavetas e nas estantes. Para Solidão, o conforto estaria em dissipar a nuvem que tem aos olhos. Pra enxergar melhor.

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Porque Solidão não tem diário e nem guarda nada além da caixinha dos óculos; devia ser uma caixinha de música velha, sem importância, que teria parado de funcionar. Durante esses dias, Solidão teria aberto a boca vinte e três vezes.

Quase todas na presença de Felipe.

A seu favor, Solidão tem afixada uma placa pequena com todos os preços e suas variações. As perguntas são respondidas pelos indicadores, sempre que possível, quando não: pelo declive da cabeça. As respostas, sempre negativas. Às duas da manhã, dirigia-se a cada brinquedo e apagava as luzes. É claro, às duas da manhã não há alma viva nas ruas de São Miguel; Solidão, no entanto, há. Ainda não repousa. A luz de seu trailer permanece acesa até que surjam os primeiros barulhos dos motores, das bicicletas e da gente na rua. Aí Solidão dorme.

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Era assim que Solidão dormia: todos os dias, cedo, pegava o primeiro ônibus. Sentava-se na última cadeira, fechava a janela e se deixava ir – atribulada – até o ponto final. Nos primeiros dias, o cobrador a teria incomodado. Abriu os olhos, desejou boa noite e voltou a sonhar. Era a primeira vez que teria aberto a boca na ausência de Felipe. E não importavam as lombadas, os sinais e as freadas bruscas: ela se acostumou a dormir com as estradas e a cozinhar com o fogo em movimento.


Solidão era mulher cuspideira de fogo. Ou assim ele a imaginava.

Mas cuspideiras de fogo se fazem em circos e ela era filha do dono do parque. Ou esposa. Talvez irmã. Mas era ela que aparecia à noitinha e ligava as luzes. Tinha vinte ou vinte e cinco, nunca se pode saber. Só se sabe que se chamava Solidão. No primeiro dia, ainda sem chuva, seu pai se instalou à porta do trailer e gritou seu nome. Doeu no coração da cidade inteira. As boas senhoras dizem que seu nome não anda desacompanhado. Deram-lhe o nome de Maria, Maria da Solidão. As cruéis que têm, por acaso, uma fita métrica a impedir que a boca se feche diziam que seu nome era outro, outros inúmeros, mas nenhum era Solidão porque era impossível à Solidão andar sozinha. Entretanto, na rivalidade entre os jornais e essas velhas, ganham as últimas: se tivesse, por razão, alguma companhia, essa seria a de Felipe.

É que Solidão o achava tão bonito. Talvez, por isso, passasse tanto tempo com ela.

E talvez, de fato, não fosse a companhia de Solidão, mas a ausência de todas as outras companhias; por mais que Felipe, de fato, fosse bonito ou belo ou qualquer possibilidade de adjetivo, fazia-se invisível aos olhos dos outros como toda a mobília de uma sala sem uso. Sentava-se ao carrossel, apegava-se à sustentação e esperava – devagar – que tudo girasse calmamente, em ordem, como gira a

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Terra em torno do dia, do mês e do ano. Solidão observava tudo quase de longe. E então ele dizia umas duas palavras; obtinha – dela – meias respostas. Assim, fraudavam-se todas as melodias, todas as luzes do parque; faziam-se duas da manhã e Felipe continuava lá, perdido, no carrossel, firme, com os braços apoiados no eixo de sustentação. Solidão tinha ido dormir. A cidade inteira já tinha ido dormir. Mas ele continuava ali, parado: ou quase, porque se faz tanto vento em São Miguel que se fazia, assim, força motriz. Imperceptível, claro, mas todo giro é imperceptível até que se inventem esquadros e réguas. Era assim com o dia e foi assim com o tempo, que não era nada, mas de tanto ser nada, recortado em tantos pedaços, acabou em hora e minuto – de sincronia imperfeita – às linhas imaginárias que recortam o planeta.

Se, por qualquer razão, considerarmos que essas linhas também nos recortam, fazemos de nós: mapas. Os olhos são cartógrafos hábeis. E Felipe era feito de todos os países que já não existem mais, de todos os meridianos que caíram em desuso, das cartas de navegação que já não valiam mais. As senhoras que decretam falência à velha imprensa, sabe-se também que todas as coxas, os tornozelos e os pés pequenos, nenhum deles se faz rota à navegação dos olhos de Felipe.

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Era como se, por acaso, tivessem recortado um atlas velho da estante – estante qualquer, tão imperceptível quanto a própria eternidade – e de seus fascículos, algum tipo de inúmeras iugoslávias ou impérios desfeitos, as ilhas da Granada e as suposições de um novíssimo mun-


do. Felipe era feito de recorte de jornais e seus suplementos mais inúteis, das explicações comuns, das páginas que, na agenda, representam os meses de janeiro, julho e cinco dias em fevereiro.

Sobra, para Felipe, todo tipo de malas, bagagens, carros, ônibus lotados e passagens extraviadas. As cinzas, todas a ele. Sobrava apenas uma foto em dores, tirada pela polaroide de uma menina muito alta, tão alta que parecia soprar as nuvens de frente do rosto, capturada por entre dois sorrisos contidos e um cordãozinho de ouro que já está no outro pescoço, no pescoço errado, no que resta, no aguardará, impacientemente, que se desfaça janeiro. É claro, Solidão não era alta – exceto de pernas – e nem trazia qualquer tipo de cordão, brinco, anel ou restante de esmalte. E nesse giro, de ponta de bússola, já se prometia o sábado que segue a sexta-feira, ainda que seja sábado, mas se apregoe sexta; é que, como dito, o tempo – que não é nada – resolve fazer de todo objeto alegria, tristeza e desejo.

E, nessa ordem, passam-se os dias. Ou deveriam, ao menos.

Porque toda ordem do tempo possui a equivalência de um carrinho de bate-bate: e assim correr por entre as grades arredondadas, dando-se aos acidentes – porque não podem ser as horas mais do que acidentes de tempo – e a todo tipo de confronto, de barreira, que lhe faz recuar dois ou três passos para então fazer-se novamente probabilidade de encontro.

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Se não há engano, seria a mesma utilidade das bicicletas: tropeçar. Pelas pedras, sem exceção, porque são elas – exatamente arredondadas – que se colocam sobre os olhos de quem já não pode mais abrir a garganta e espiar o universo. Ou assim teria ensinado Lauro a Felipe. Porque Felipe, quando se faz febre, dá-se a enxurradas de sorvete.

De todas as dores e nervos, daqueles que por azar nascem em março, desde criança lhe incham as amígdalas e lhe fecham a garganta. Não seria grande problema, talvez, se seu avô – por acaso – não tivesse comentado que é num ponto qualquer da faringe que se pode ver o universo. Em poucas tentativas: colocar-se em frente ao espelho, boquiaberto, procurando algo mais que as glândulas vermelhas, de irritadas, que se dissolvem por entre uma cosmologia de estelas, caminhos de lente e um pequeno fio de sangue que escorre das gengivas.

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E então, como pretendem as horas, as distrações: vem à bicicleta, de esquecer os pedais para levantar o queixo, espiando pelos retrovisores a linha reta entre o nariz e o pescoço. E, por isso, contra as cicatrizes do joelho: fazer girar – ao contrário – os pés e, num descuido, arriscar alguns ossos contra o giro sobre o giro, nas rotações e translações de perna.


Para isso servem: para rasgar a roupa e facilitar os dias que se seguem, facilitar os desencontros e rebobinar os espelhos.

Felipe, então, compreendera – aro por aro – que, para além da garganta, o universo se escondia atrás dos joelhos, concêntrico às rodas e à lama chapinhada nos calcanhares. Mas já não importa, porque Felipe pouco sabe das correntes e do guidão: não pode mais andar de bicicleta. Teria esquecido: não são os pés, mas a própria garganta que impulsiona a trivialidade, o ciclo, o giro, as voltas; presa, agora, num pote – qualquer –, às exposições de anatomias, de tamanhos minúsculos, tal qual o universo.

Eram necessárias, no entanto, duas ou três velhas para dar conta do pedaço minúsculo que ocupava, nele, São Miguel: e a favor de todas as previsões, sacudiram-se as senhorias para que acordassem; e de tão grossas as remelas, duas ou três espátulas para dar conta de abrir os olhos. De contrapartida, foram-se também os cílios. Correram, por outra vez, à casa de Lauro e não obtiveram outra resposta senão a mesma, que lhe era a única possível: paciência. Despencariam, assim, os faturamentos do parque. Porque se deram a fiscais: no primeiro choro do primeiro acidente – que, por motivos estranhos, chamavam erroneamente de contratempo – prenderam os ves-

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tidos contra as pernas e deram-se aos carrinhos, numa corrida inútil; ou quase, já que os cabelos ralos pouco importam à cabeça e sustentam a queda, sem querer, de um parafuso quase solto na grade de sustentação.

E logo anunciaram todo tipo de tempestade elétrica e de trovões indecisos que tomariam a arena num corte reto, por todos os perigos, e da alta velocidade que os carrinhos poderiam tomar frente aos riscos iminente de colisão; não que fossem rápidos, pelo contrário, de tantas manutenções, não eram mais velozes do que uma pessoa andando. Aviso. Não se levam em consideração as velhas, neste cálculo.

Tinham um andar modorrento que tomava as calçadas de preguiça: e tão logo avistassem alguém com menos idade – e assim toda a cidade, porque junta não alcançava metade dos anos que somavam três ou quatro delas – colocavam-se como empecilho e pelos dizeres da boa educação obrigavam a qualquer um não ultrapassá-las.

Assim, o carrossel lhe parecia muito perigoso. E, de fato, girava mais rápido do que o comum.

Esse, o brinquedo predileto de Solidão: os giros – que não causavam qualquer dano aos frequentadores – lhe davam ânsias.

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É que todos os carrosséis são parte das conversas inacabadas; concêntricos a todos os relógios, dão-se da


mesma matéria que as palavras perdidas. E, de fato, ainda tentavam as pessoas manter qualquer tipo de diálogo mesmo que uma delas fosse às rotações e a outra permanecesse como ponto de referência. Diziam meias palavras, escutavam meias respostas. Com uma pequena vassoura, Solidão providenciava amontoados de sílabas. Há quem diga que Solidão só se pronuncia por esses enxertos: de tudo, é boato. No parque, há uma pequena seção escondida por detrás da dispensa em que se encarceram as coisas perdidas; e de lá soam essas palavras dispostas entre os saquinhos de pipoca – desses que ficaram por comer – e uma maçã do amor, mordida, que se fez tragédia em pedido de casamento. Perderam-se pelos anos, mas Solidão guarda tudo para que alguém venha buscá-los por engano.

Mas há algo que Solidão guarda tão bem escondido que já não pode ser visto; exceto se, por acaso, fixem-se os olhos pelo giro do carrossel. E ali, depositadas, todas as suas lembranças.

Por isso, deve-se sempre posicionar o carrossel à frente dos bancos vazios: para que possa interrompê-la o senhor e tomar-lhe posto; e ela, então, dirigir-se aos assentos vazios e dali suturar todas as memórias, que lhe são – de pronto – liquidificador.

E, nessa ordem, passaram-se os anos.

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3. Domingo

Eram tão poucos os talentos contábeis do senhor que se pôs logo a convocar os caminhões e fazer, do ponto de chegada, outra partida; de todos os brinquedos, apenas três permaneceram intactos às fugas dos parafusos. E já se sabe por antemão que são irrecuperáveis: porque não se mostram ao chão ou sequer marcam-se aos rastros que ficam por esta cidade quando se esvai de vento. Seguia-se, a arrumação, pela seguinte ordem: as articulações da menor montanha-russa que já pode ser vista no mundo, de tão pequena que nem a gravidade poderia suplantar o peso dos bastões de segurança; todos os carrinhos de bate-bate que se dão em jus aos desastres; as gaiolas da roda-gigante que aprisionaram duas senhoras ao alto tal qual os pássaros na soleira das portas; o carrossel de giro tão curto que apregoava ânsias a todos os que olhavam em obstinação a não cavalgá-lo; não consta, nesse registro, qualquer tipo de quinquilharia, lembrança ou insistência a ser posta por entre as bagagens no translado. As únicas recordações que Solidão guardava eram aquelas que se encontravam perdidas.

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E, assim, enchia uma caixa de sapatos, dum número não muito alto, que não suplantava sequer metade do espaço disponível; tinha, ali, um vestido velho com um rasgo generoso nas costelas, uma coleção de chaveiros enferrujados, dois livros de receitas que – por algum erro de impressão – mantinham apenas a lista dos ingredientes e nunca o modo de fazer; dois ou três recortes de jornais com palavras cruzadas iniciadas, porém nunca resolvidas. Mantinha às escondidas, posto num armarinho – metálico – do qual pendia, logo acima, um espelho que lhe rachava o rosto em dois.

O rosto de Solidão era o estado que as coisas assumiam em esquecimento. E assim Solidão assumia-se como um risco: o de, mais uma vez, desintegrar-se em toda espécie de lembrança, de memória e de amnésia.

Triste é tornar-se recordação: foge-se à cabeça de quem se quer fazer lembrança; escapa à consciência; perde-se pelas horas da tarde, em contraluz, para pôr-se nos momentos de preguiça que se dão os olhos ao amanhecer. Por apenas uma vez, Solidão queria se fazer de fotografia: porque as fotografias são o prenúncio do juízo final.

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Solidão, enquanto negativo, divide-se em poderia ter sido, tarde demais e adeus.


Talvez não fossem precisos mais do que três quatro parafusos perdidos para construir uma máquina fotográfica: e tinha preferência pelas antigas, por aquelas que se mantinham todo o tempo do mundo à exposição da luz; e a Solidão, proibia-se o sol porque ele era o único capaz de lhe assinalar a permanência do tempo no corpo numa mancha avermelhada que lhe tomava o rosto em múltiplos assaltos.

E assim, num único, seu coração tomava-se de preguiça. Porque partir exige trabalho; e o seu coração não aguentava mais desfazer-se em cacos.

O coração tem o formato de uma romã, mas é porque cria raízes; à Solidão, no entanto, fazem-se estes pés, pequenos, dos quais se extrai a caixa de sapato.

Daqui a dois dias, as árvores entram num novo ano. Por daqui a dois meses, perdem as folhas.

Tudo o que Solidão era raízes que lhe trancassem os pés e lhe consumissem o espaço dos dedos; mas tem mãos, mãos livres para que possam se desfazer de cuidados aos outros. A isso, porém, não se dá a perceber: já não há mais parque. E Felipe. Só uma trilha pela estrada de terra firme. Tudo culpa dos pés que ainda pensavam mais do que as mãos. Pensam que são capazes de resolver tudo e estão cheios de si desde que a menina voltou pra casa pelos sapatos. Pior do que os pés são as pernas e os joelhos.

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Nada seguram e pouco suportam. Ainda assim, ela deu mais utilidades às coxas – para manter-se uns segundos a mais pelo balneário de São Miguel – do que aos cotovelos. Naquele dia, teria dito – nesta ordem – as palavras que faltam.

Mas só deu ouvido às canelas e se foi.

Presumia-se, ao menos, um coração. E tinha: era como um barômetro.

Talvez, se tivéssemos mais braços e menos pernas, tudo daria um pouco mais certo do que geralmente dá.

Porque já não se sabe se faz-se parque ou frente fria como referencial; conquanto chore Solidão, assim faz o céu. Seguem-se apenas. E, pelas tempestades, desbotavam-se seus os olhos num cinza triste de previsões pluviométricas. E tão logo esvaziava-se que era preciso trançar as pernas por entre os soluços para que os ventos não a arrastassem.

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Num deles, engoliu uma caixa inteira de agulhas.

Alojaram-se ao peito nuns chiados curtos que pouco cessaram após as infusões de poejo; de início, fizeramse úteis às goteiras do coração. Dobraram-se inúmeros tampões e rolhas de cortiça, numa malha fina que impedia toda a mágoa de escorrer pelas rachaduras finas que escapavam aos esparadrapos.


Pois logo se desmanchariam os nós. Porque se partiria de novo.

É que, por ali, lhe fugiriam todas as mágoas.

Até os olhos, quando então, transbordavam. E disso, ocupavam-se os jornais.

E como tais, imprevisível. Hoje, no entanto, fazem-se certeiras.

Guarda uma radiografia antiga: é que, por vezes, Solidão faz um mimeógrafo do seu peito; e tão logo se observe, em tanto contraluz, pode-se constatar que o metal – em nó – já não poderia ter outra forma senão uma torneira. E como todas as torneiras – que são mais inúteis que os óculos – se fazem aos vazamentos, ocorria todo tipo de gotejo e posologia pelo coração: tão logo desciam-lhe pela espinha e faziam, ao acúmulo, em caminho inverso, de pés, canelas, coxas, tronco, pescoço.

Caso haja procura, num canto qualquer por entre as páginas finais, há sempre todo tipo de gráfico que se faz necessário à agricultura; tão logo, ali, fazem-se os olhos de Solidão. Dava-se, sempre, por entre as tábuas de maré.

Mas não se percebe: é domingo e já não funcionam os correios para que se lembrem, todos, do giro do mundo.

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Dias pares

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4. Sexta-feira A impossibilidade se faz em descrever a geografia do rosto de Felipe; não é feio, nem vulgar. É comum: mas desse comum, perfazem-se os olhos. Não se olha a eles desde a última quarta-feira de cinzas, a que se conta quase uma volta completa às folhas do calendário.

O rosto de Felipe era uma fotografia antiga guardada na carteira. Aos fotógrafos, talvez, se estabeleça a linha que circula os adivinhos. Àquelas de impressão rápida, feita a máquinas polaróide, lesse o futuro mais que as outras. Amarelam mais fácil, é verdade, não por conta da insolubilidade do produto químico – que a água não teria escoado –, mas pelo futuro, enquanto ideia, que ali permanecia.

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O rosto de Felipe era o futuro adivinhado.

Dedicada aos baralhos, e ainda mais às apostas, a senhora que toma conta da pequena peixaria de São Mi-


guel – fazedora de moqueca, moqueca de cigana, dessas que evaporam pelo ar e tomam o dia para uma neblina morna – tinha por ele profunda tristeza e comiseração. Sua mãe, ainda ao balneário, teria levado o filho no terceiro dia de nascido para que ela lesse sua sorte. Baixou a cabeça, mordeu os lábios e bateu o pé por três vezes: teria dito que não lhe era possível ler o futuro nas cartas, porque este já se estendia de uma orelha a outra. Teria o avô, tempos depois, recorrido às suas mesas para dobrar os recursos poupados a canto de bolso. Ao carteado, mantinham-se as melhores possibilidades – e sem fraude – quando do rei de espadas lhe teria saído o rosto de Felipe. Contava, o neto, com três anos; o arcano, trinta décadas. Mas era o rosto: e deixando para trás um pé do sapato – e, da mão, as apostas – correu ao berço para conceber a semelhança. Os dedos de Lauro teriam deixado duas marcas ao baralho.

Diziam, por exatidão, as duas marcas: a da aposta, vencida, já que não poderiam ser suplantadas aquelas cartas por outras; a do suor, que lhe desceu à espinha e o fez patinar no piso até calçar os sapatos e se colocar numa direção – reta – até que se fizesse quarto e verossimilhança. De tão exato se perfaziam os narizes perfilados, as bocas – apertadas como as de Babel – e as manchas desiguais nas mãos que Lauro, por três dias, manteve-se calado. Ao telefone, insistente, fazia-se na outra linha a senhora e as tentativas de pôr aos bolsos de Lauro todas as

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moedas que teria ganhado; honesta, ainda, mesmo que se fizesse incrédula às próprias previsões, manteve-se sob o capacho um bom tempo, com os pulsos contorcidos – às costas da mão – batendo três vezes exatas na porta de madeira.

Lauro teria demorado exatas vinte e sete batidas.

E antes que se calcule qualquer tipo de fortuna ou de infortúnio relacionado a esses números, tirou da bolsa uma pequena luneta – aro dourado – de arabescos tão feios que mais lhe pareciam rabiscos. Tão breve a teve Lauro em mãos: a senhora lhe disse meia dúzia de considerações, deu as costas e saiu.

De tão frágil, tão torta: cabia-lhe apenas, à vista, a metade do olho; devia ser para espiar as coisas inacabadas, os restos vestigiais do universo e os embaraços de nata que se perfaziam na Estrada de Santiago. De nenhuma coragem tomou-se Lauro e pouco pôde conjugar a lente de seus óculos com as amplitudes de pequeno aumento; encomendou, ainda assim, um desses anuários de estrelas que se põe pelos desenhos para que possa identificar no céu – pela data e pela hora que se marca – as estrelas e os corpos celestes que saltam aos rascunhos. Por Lauro, toda a preguiça: adquiriu os livros para que lhe fizessem o serviço da luneta.

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E talvez fossem mais úteis: porque atropelam os dias e interpelam as horas; fazem todo o tipo de inquisição – como a meteorologia – e arrancam do nada todas


as possibilidades; é que todo boticário se faz afeiçoado às medidas certas e elas permaneciam, exatas, pelas páginas. Talvez, se possível fosse, Lauro riscaria o céu com giz para facilitar o andamento da lua.

Mas logo se teria o advento das folhinhas e dos calendários de se pôr atrás das portas e nas geladeiras: e com eles, todas as previsões de ciclos lunares. A senhora que lhe fazia o favor de dar jeito nos cabelos – que, por um acaso, era a mesma que se dava aos baralhos de sorte – discordava veementemente das previsões e lhe enxotava das tesouras sob as ameaças de raspar-lhe as bordas da barba. E apenas quando já despontavam em Felipe é que se deu uso à luneta. Por dentro, embaçada: como se, por tanto tempo, tivesse a maresia perfurado as lentes finas e se alojado por entre os desníveis da ferrugem. Ao céu, pouco se via – apenas uns borrões coloridos, alaranjados, de estrelas que se colocam no todo dos postes, porque já era impossível apontá-la ao céu e não se ver negrume. E logo, por todos os dias de chuva, Felipe a apontaria contra a praça – em plena nebulosa – cartografando os riscos que lhe arranham as janelas, os pequenos guarda-chuvas que entrecortavam o concreto e as ruas de areia; dos paralelepípedos, os vincos que logo se preenchiam de água e lições de afogamento.

Da luneta, podia-se ver o passado.

E que fique claro: não por suas lentes, improduti-

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vas, mas por todo tipo de curiosidade que se faça tão logo se pôs Felipe a procurar os mapas celestes e as suas medidas angulares, numa arqueologia única em que se dava à escavação da poeira e de todo tipo de pó e teia de aranha que se acumulavam pelas prateleiras sem uso. Os livros de astronomia lhe teriam apontado: Aldebarã. Aldebarã era um homem de poucos gastos e muita gula.

Contudo, não era ele o pai de Solidão.

Há trinta anos, Aldebarã chegou a São Miguel e ali instalou seu parque. Era enorme e tão volumoso que, talvez, a palavra gordo já não lhe caiba. Sentava numa frágil cadeira dobrável – metálica – e contabilizava cada moeda e nota que entravam por aquele caixa. Metade: convertiase em economias e pés-de-meias. A ele, restava um par; amarelas, listras negras, mantinha-as sempre metidas numas chinelas turcas peladas pelo tempo. Certo dia, num almoço, de tão corrido: devorou o próprio coração. Desde então, seu irmão – gêmeo – administra o parque.

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Chama-se Abrachaléus Kupfer.

Para que se encurtem as dúvidas – ainda que, por


agora, sejam impossíveis de recurso – estabelece-se na figura magra e malcosida o pai de Solidão. É claro, se possíveis fossem os cálculos e estabelecida sua idade, tão mais fácil seria definir se a figura que se ergue entre a barba quasibranca e a quasausência de cabelo seria de fato irmão ou pai ou marido ou, ainda, sobrinho – já que contam, do gêmeo Aldebarã, a juventude e a insaciedade de um adolescente. Instalado o parque, bem como os anos que já se contam trinta, Abrachaléus senta-se à mesinha metálica dobrável e de lá desdobra-se em calculadoras e contas. De tudo, arranca metade: em moedinhas, das menores, enfia no bolso furado. Perde todas. Reúne-as. Dá-se, novamente, à contabilidade. Talvez, se tivesse afinidade à costura – já que se mostra à linha como ao livro-caixa –, já teria posto a agulha entre os dedos e resolvido todos os débitos, das entradas às saídas.

Nos óculos, Abrachaléus carrega um pequeno rosto. Tem um olho verde; o outro: acastanhado. Talvez fosse isso: um grau é tão distante – por pequenos desvios – que se faça, das lentes, a seguinte ampliação: de um lado, sete graus, estende-se a convergência da íris à pupila; o outro, no entanto, incontável – e se ampliava tanto, e de tal forma, que só se colocava ali o canto mais tímido da pupila, de tão envergonhado, desfeito às cores. Do pai, teria herdado os dedos curtos e a caneta prateada. A Aldebarã, restaram o estômago – alto – e um livro velho, encardido, emaranhada a capa pelo couro de cabra curtido. O parque, a ambos.

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Acontece, no entanto, que Abrachaléus era tão pequeno e insignificante que as velhas linguarudas de São Miguel – restritas, à época, a moças faladeiras – não notaram sequer sua presença. Preocupavam-se com os mimos a Aldebarã, de barba espessa e negra, de olhos ágeis e carteira cheia. Por agora, todas se dão graças e comentam – entre os aparelhos de surdez – a sorte plantada pelo destino: a elas, Aldebarã tinha se convertido em Abrachaléus. Era como uma doença, um escorbuto qualquer, algumas dessas mandingas feitas pelos ciganos. Como se fosse possível, aquele homem devorou-se de dentro para fora, cujas sobras são – hoje – os restos que ficam metidos ao trailer.

A salvo, sempre, do vento e da ventania.

Dois dias depois, chegaram os caminhões. E logo despontava, aos céus, a roda-gigante.

Não que fossem, de fato, estrelas. Eram descuidos.

À comitiva do parque, Abrachaléus teria se adiantado; apegou-se a uma lona colorida, castigada pelo vento, e esqueceu-se das cordas. Deu-se como aos balões de gás: despontando, no céu do entardecer, ensaiou um pouco discreto num terreno baldio.

De todo bruxismo, rangia – preguiçosa – num giro lento de cortar o céu pela barriga; reclamariam, logo, as senhorinhas do barulho que faziam as estrelas ao espatifarem-se no chão.

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Das idéias de Felipe: é que logo fez-se a vontade de conservar a luneta por entre os dedos para que – na proximidade –, pudesse lhe cobrir de serventias.

Não, de todo, por sua causa: num baque, interrompia-se a rotação; e se voaram os sapatos das senhorinhas descuidadas, de Felipe nada custaria para escapar-lhe o coração pela boca.

Desfez-se a lente por uma nebulosa. E os cacos, deram-se às ranhuras.

O barulho acordou toda a cidade: e o próprio Felipe, que se dava, sempre, aos cafés da manhã; porque a todo momento amanhecia e logo sorria pelos espaços vazios que mal lhe preenchem os cantos da boca. Perfazem, os dentes, degraus: e ele os range muito pela manhã; e, por isso, já não dorme Lauro. Por isso, quando se espatifou a luneta: Lauro, acostumado aos barulhos de demolição, apenas abriu a janela, espiou com os olhos fechados e voltou a dormir.

Mas esqueceu-se de fechá-la.

Quem, no devido momento, se encontrasse no apogeu do giro teria visto que, pela sala, estendia-se uma longa estante de madeira velha que acomodava – em fileira – todo tipo frasco, manual e conhecimentos farmacêuticos. A porta, velha, empenava-se contra a entrada, tendo um molho de chaves acobreadas pelas costas. Fazia-se ainda

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uma cômoda alta enquanto altar, onde colocava-se todo tipo de correspondência, de fotografias – que já não eram de família – e por pouco tempo fez-se à umidade das sombrinhas. Então Lauro teria adquirido um móvel de compleição frágil por duas ou três notas. Tinha três pernas e uma caixa oca que não lhe permitia qualquer trinco ou fechadura: posta, ali, a ocupar espaço; desta, distinguia-se um apetrecho metálico que lhe vazava por uma borda até atingir, num semicírculo inexato, a mesma face. Ainda lhe pendia uma antena ou coisa do tipo, mas sempre unida à caixa sem uso já que bastava, por todas as horas, o inoportuno espaço ocupado.

De tudo, apenas a antena que burlava a utilidade: da caixa, logo se fez um pano de centro e todo tipo de garrafa e porta-retratos e vaso e todas essas quinquilharias sentimentais que acumulam os velhos quando já lhes falta a devida memória. Para a borda metálica, pregam-se os cabos das sombrinhas e dos guarda-chuvas, que lhe fazem exato à curvatura aproximada das mãos.

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Junto às sombrinhas, estendia-se o fio da tomada.

Quando em circuito de eletricidade, o móvel se fazia – pelas mãos – em todo tipo de ruído; as de Felipe, que por um acaso eram pequenas e míminas, davam-se em todo tipo de concerto. Não que se estabelecesse, de fato, um: todos os barulhos eram próximos ao da queda da luneta, das batedeiras que já se encontram cansadas e dos


liquidificadores cuja a tampa não se pode mais encontrar.

Lauro comprara o móvel das mãos de um russo que mais lhe parecia um fugitivo.

E da mesma forma, fugiam os sons pelos dedos de Felipe; por todas as vezes que tentou pôr-se às vibrações – e por isso, entenda, uma única vez – conseguiu tirar apenas uns dois ou três silêncios em meio a uma algazarra de chiados e microfonias que lhe tampou os ouvidos por quatro semanas. E, desde então, Felipe se tornou alvo para as bicicletas.

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5. Sábado Ele, sem querer, esbarrou em seu cotovelo. Ela, então, se foi.

Por vezes, não poucas, Felipe manteve-se como único a embarcar pelos carrinhos – generosamente pintados de verde – daquela montanha-russa. Diziam: era a menor montanha russa do mundo e, por isso, tão única; de clientes, única. E toda singularidade cabia a Felipe. Passava por entre as barras de ferro, de travas inúteis, e colocava-se ao primeiro banco como um gigante. De fato, era um pouco alto. Pouco, não muito. Mas as pernas, longas, colocavamse em incômodos e, sem querer, esbarravam nos joelhos. Posto que começasse a subida, uns dois ou três metros, para então fazer a curva e mergulhar em distância ínfima. A montanha-russa realizava três voltas. Todas em mesma composição: subiam-se dois três metros. Curva. Mergulho.

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De todos os brinquedos e todos os defeitos que o parque possuía – ou era dito possuir – a montanha-russa era o mais relevante: não pela sua incapacidade de se dar aos altos e baixos, porque sequer nem emoção poderia suscitar, mas pelos parafusos que caíam e as travas que se soltavam; a barra, de ferro, que insistia em trabalhar no sentido contrário. Colocava-se próxima aos pulmões na subida, e seu peso suplantava a gravidade, para então pôr os cotovelos num ângulo obtuso de descida e, distraída, retratava-se num ângulo – reto – à curva. Por todos os dias, Felipe adquiriu um bilhete. Por todas as vezes, destacou três ou quatro parafusos do chão.

Mas, antes que se faça necessário o desejo de devolução, guardou nos bolsos. Não nas gavetas, mas nos bolsos. Explica-se: é que nas gavetas, põe-se a roupa limpa; os parafusos, de graxa, mantinham-se sujos. Ao cesto, destinavam-se os tecidos ao sabão e às mais diversas temperaturas de água – de acordo, claro, com o posicionamento dos botões. À maresia, somava-se a ferrugem, e tudo o que Felipe não queria era que os parafusos se tornassem inúteis. De inúteis já bastavam todas as ciências de engenharia.

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Do momento em que se erguem, dos galpões e dos laboratórios, atestam as mais diversas soluções de mesmo intento: ganhar um tempo que, por ora, era perdido. A Felipe, inúteis: os vencedores se colocavam às bulas e aos tra-


tados de tordesilhas, dividindo e atravancando as parcelas de horas que escorriam pelos ralos das invenções. Ganhar tempo presume ocupar-se, e tudo o que Felipe podia fazer, no momento, era destinar-se às recém-iniciadas aulas de inglês. Colonizados, os segundos burlam-se em milésimos e empurram os ponteiros do relógio.

Perder tempo, ao contrário, significa recuperá-lo: fazem-se, das horas, teimosia. E assim persistem as nuvens, os locais, as baratas aos bueiros e Solidão ao parque. Já era domingo e domingo era o dia de recolher todos os brinquedos, ensacá-los e enfileirá-los aos caminhões. Pelas contas erradas que fazia o senhor e pai de Solidão – mesmo que não se ateste paternidade ou qualquer tipo de afeto que se coloque como fraternal ou parental – já era hora de retornar pela estrada velha, engarrafar-se com os ônibus e deixar São Miguel pelos próximos trinta anos.

Restavam, a Felipe, trinta horas.

Por sorte, de todos os livros relegados por Babel, constituía-se uma disciplina completa: a das fórmulas de álgebra, da geometria analítica, dos cálculos mais imprecisos para as curvas de tijolos em linha reta. Mais que um dia, necessário, às horas ocupadas: voam. E assim, pela precariedade, teria Felipe composto a máquina do tempo. Funcionava, a máquina, da seguinte maneira: planejava-se que, próxima ao peito, seguiria os batimentos cardíacos; uma luz fraca indicava a operação em anda-

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mento. Mantinha-se nessas breves noções de engenharia, esboços em pequenos cadernos: apoiava-se em ângulos que escapavam, aos poucos, de serem retos.

As paralelas, desiguais, se encontravam num infinito próximo.

Teria assim entendido o tempo.

O tempo é um pensamento triste.

Para Felipe, o tempo corria por entre os narizes avermelhados. Não de sol, mas de gripe. O tempo corria por dentro da gente, próximo aos nossos olhos, mas tão próximo que se fazia em pontos cegos. Por vezes, entendese que essa dor – estendida por baixo das sobrancelhas e pela linha do nariz – perfaz algum tipo de inflamação. Apenas a das horas. Na verdade, o que escorre por entre os nossos narizes nada mais é do que tempo, tempo em seu estado mais puro. E antes que possam ocupar-se de tristeza, os relógios recompõem-se em tempo. Organizam os minutos por grau de intensidade, pela incapacidade que se dá à respiração: o tempo dos relógios é o tempo dos xaropes, dos remédios, de todo tipo de invólucro que guarda, em si, poeira de tempo.

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Os relógios são faxineiras. Antes que as senhorinhas possam reclamar e invocar suas rugas, limpam o pó que se desgarrou dos chinelos dos segundos.


O tempo, na verdade, é o tapete que se ergue às suas vassouras.

Quando gripados, temos um lenço no bolso.

O lenço, como o tapete, é o próprio tempo. Quando gripados, invocamos o pano tido ao bolso para interceder por nossos narizes; devolvemos, em seguida. E assim, como a menor montanha-russa, organiza-se o dia numa rotina monótona: põe-se o lenço ao bolso e logo depois já se tem em mãos. Diz-se: monótona, mas é porque assim entendem os relógios. Os relógios entendem de vassouras, de chinelos, de senhorinhas e de rugas. Não entendem de tempo. Se entendessem, teriam narizes. Em toda sua existência, Felipe jamais reconheceu – num relógio – o seu nariz.

Era mais ou menos assim: agitava, suavemente, algumas experiências. Escolhia, sem querer, alguns pontos, uns nós, uma dessas protuberâncias que se dão entre as linhas sobrepostas do que lenço que se tem no bolso. A quantidade deve ser exata a de experiências e, portanto, não deve ser – por ora – calculada. Limpava o nariz e guardava-o no bolso. Era neste momento em que corriam os segundos: não em linha reta, mas numa corrida de Alice. Correm para escapulir às secreções nasais, para secarem os dedos dos pés e evitarem as frieiras cronológicas. Retira o lenço do bolso e desarma-se a ordem estabelecida: ainda que pudessem ser metrificadas as distâncias entre os pontos destacados, as experiências se embolavam, colocavamse em nova ordem, recodificavam-se entre abismos, entre

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dobras e entre os inúmeros bordados.

Dos bordados: a mulher de Lauro dedicava-se à vitamina efervescente e ao crochê para dar conta da febre e da coriza de Felipe. No fim do domingo, dava-se aos termômetros: e aos panos úmidos, por álcool, que se avolumavam aos pescoços de toda a casa.

E então Felipe engolia o remédio num só gole. Fazia, do copo, poça d’água.

Despejava, assim, a cartela ao copo.

E dedicava-se às bulas e a todo tipo de manual de instruções; riscava, à caneta hidrocor, as letras desta ou de outra posologia; como nomes impróprios, que se acostumavam a tomar a cabeça contra a timidez da pergunta, dedicava cada pedaço de papel a uma dobra exata, cujos vincos perfaziam o quadrado exato dos comprimidos. E de lá tomava todas as soluções: dormiria e deixaria os papéis ao sereno da madrugada, para que desabrochassem apenas aqueles que fossem úteis. Uns eram mais resistentes que os outros, feitos de cartolina ou da capa de velhas revistas, palavras inteiras condicionadas à navegação, a servirem de bússola e astrolábio àquelas decisões que não se dão na vazão das horas.

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Das soluções possíveis – de um conjunto complexo ou irracional – o copo teria revelado aos olhos de Felipe, inúteis à abertura do dia, o menor dos papéis: aberto, em solução diluída e esverdeada, tensionava a superfície da


água. Antes, a pergunta: o que faria Felipe contra a partida de Solidão?

A resposta pouco se sabe. O mormaço, por ora, secará o piso frio.

À bicicleta, Felipe não pôde carregar as instruções de uso para a máquina do tempo. Desenharam-se como uma régua improvisada: a lombada de um daqueles volumes que Babel deixou à escrivaninha no dia em que partiu. Era um livro de cálculo e de probabilidades estatísticas.

Todo coração é um livro de cálculo: da incerteza de todas as probabilidades; em área, geométrico; no peito, todos os defeitos e algorritmias dadas no momento em que Felipe desponta pelos olhos até os olhos de Solidão em linhas de fuga, nunca retas. É que a distância, entre eles, se põe em linha curva: como gráficos despreparados em variáveis e integrais, ele calcula – em rápidas batidas – a simetria dos rostos em incontáveis segundos que se sucedem, um mais um, até a partida. Permitia a máquina, ao portador, que cada dedo contabilizasse uma lembrança. Das condições apregoadas, uma única: cada recordação deveria, no máximo, possuir um segundo. E assim, pelos dedos, restava a Felipe e a Solidão apenas uma dezena de memórias que escorriam pelo espaço das mãos unidas, numa membrana fina, uma mortalha de tempo que escapuliria – dali – ao esquecimento.

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A máquina, no entanto, se faz de um longo defeito: nos termos de sua construção, se faz a prerrogativa de que os envolvidos jamais se exponham a qualquer câmera ou daguerreótipo; é que as imagens, quando se fixam, atualizam o eterno, partem dos destroços para construir novas ruínas. E, de tudo, não é proibição de tão difícil: basta apenas evitar os aniversários de crianças pequenas, as formaturas filmadas e os espelhos das padarias.

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Em tudo, hipótese. Porque Felipe nada contou a Solidão.

E no dia seguinte, retornaram os ventos.


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A quem possa interessar, esta obra foi editorada nos dias 14 e 15 de Novembro de 2011, composta de tipologia Cambria de corpo 6 a 12 e Candara de corpo 14 a 30.

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