Contosdoabsurdo#6 final

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Nov 2013

NESTA EDIÇÃO:

LULLABy - ESCRITORA, CANTORA E COMPOSITORA


índice Capa

André Marsucelli

g. tre ................................Pácia Zé do Caixão - No meu :ven Maurílio Dna - Cor: Rodrigo Gar Texto: Alexandre Winck - Arte

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sonhos (parte 2) ..........Pág.

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...........................................Pág. Pesados Elos ........................ r Reis

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Somniun: O Destruidor de o por Alexandre Winck Conto de André Roméro adaptad Leal com arte de Ronílson Caetano Texto: Pat Kovacz e arte: Cesa

mortos ..............................e.Pág. Viagem ao mundo dosWin ck e arte: Ton Albuquerqu

38

Texto: Alex Mir e Alexandre

g. 50 ..........................................Pá O coveiro .............................. eira Oliv ano Luci o: enh Des do AndradeTexto: Lucas Freitas de Figueire

56 .....................................Páyg. Lullaby (entrevista) ............s:...... Shigaki Danie Vardi - Tratamento: Diod Texto: Alexandre Winck - Foto

...............................................Pág. Entre o mal e a espada enhos: Alex Santos Texto: Alexandre Lobão- Des

64

Pág. 67

....................

................................... Trem do Juíz .....................elli do Amaral Texto e arte: André martusc

.........................Pág. A Noiva do Diabo ............ rcelo Garuffi

79

Texto: Daniel Vardi e arte: Ma

- parte 3 .................................Pág. Anjo Industrial - A origem : Daniel Lucavis

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Texto: Alexandre Winck - Arte

Ilustrações

Pág. 27 Pág. 49 Pág. 43 Pág. 78 Pág. 90

........................................................ DRAG~ÃO: Carlos Henry................. stensen Neto.......................... BERRO DO ZUMBI: Christiano Car Leal........................................ TERROR BRASIL: Ronílson Caetano s................................................... LET’S PLAY (Foto): Felipe Martin lho .......................................... TONINHO DO DIABO: Marcus Coe

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Cenas do Absurdo T

error não é um gênero fácil. As pessoas até se questionam o que nos atrai em um tipo de história cujo objetivo é nos deixar com medo, tensos, perturbados. Às vezes, é difícil até para quem o produz.

Nesta edição, uma cena em particular foi difícil para dois artistas diferentes ilustrar. O primeiro inclusive desistiu da história, pois a cena, indiretamente, tinha uma conotação pessoal desagradável. O segundo conseguiu desenhar e ficou linda, mas admite que teve de rezar antes de produzí-la, pois era “pesada”. Não vou dizer qual é a cena. Deixo para você adivinhar. Talvez ela tenha um efeito semelhante em você. Talvez ela o faça pensar duas vezes antes de ler o resto da revista, ou até das próximas edições. Talvez ela o faça curtir ainda mais a Contos do Absurdo, pois sabe que vamos longe para criar o terror. Ou pode achar até que estou exagerando. Não ver nada que, para você, já não tenha tido equivalentes em outras edições. Ou que, como fá de terror, já não tenha visto mil vezes. Mas acho difícil que ela não te chame a atenção de alguma forma. Veremos. Pessoalmente, acredito que ela teve esse efeito porque não se trata apenas do choque visual. Isso passa logo. Mas se a história e seus temas são legitimamente perturbadores, o efeito é muito mais intenso e duradouro. Mas claro que uma cena é muito pouco para uma revista de 100 páginas. Teremos HQs inéditas de Zé do Caixão e Toninho do Diabo, a continuação das sagas Dragão da Terra, Somnium e da origem do Anjo Industrial, entrevista e um belo ensaio fotográfico com a cantora de black metal e autora de livros de terror Lullaby Enchantress e muito mais. Tenha uma boa leitura… se puder. Alexandre Winck - Editor do Absurdo submissions@contosdoabsurdo.com.br

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Zé do Caixão

No meu ventre

Gêmeos?! Caraca!!

Roteiro:

Alexandre Winck

Desenhos:

Maurílio Dna

Cores:

Rodrigo Garcia Show de bola!!

Na real, é uma forma bem rara. São gêmeos bivitelinos ou fraternos. Eles vêm de dois embriões diferentes, que são gerados por óvulos diferentes.

Ah, já ouvi falar! Podem ser até de pais diferentes, nénão?

Não vão ser idênticos.

Babaca! Acho que vou cortar o sexo uns meses mais cedo...

Bom, Maria, a boa notícia é que são gêmeos... mas é a má notícia também!

Como assim?

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N-não é melhor outro jeito? Fazer um tratamento...

Você tem histórico de hipertensão arterial na família. Pelo que os exames tão mostrando, vai ser uma gravidez de risco.

Eu evito ao máximo fazer essa recomendação, mas, nessa situação... talvez seja o caso de abortar um dos fetos. E bem mais alto por ser de gêmeos.

enhora! Minha nossa s

Seis semanas atrás.

Maria da Graça, eu escolhi você! Seu ventre tem potencial pra gerar a criança perfeita, acima dessa moral cristã falsa e hipócrita!

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Me deixa em paaaz!! Me deixa em paz, tarado maluco!! Me laaaaargaa!! Me laaaaaaargaaaa!!!

Me desculpe, mas nunca acreditei em concepção imaculada.

NÃO!! Nem pense em tirar a criança! pode ter uma surpresa muito desagradável!

Olha, amor, não precisa responder agora. O que você decidir, eu tô junto. Amor? Maria?

Não, José. Não. Aborto... aborto tá fora de questão. Eu vou até o fim. Do jeito que for.

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Seis meses depois.

AGGHHH!!!

AAAAAAAAAA

MARIA!!

Lamento informar...

... foi mesmo aborto natural. Um dos bebês foi asfixiado pelo cordão umbilical. É muito, muito raro acontecer durante a gravidez.

Apesar de tudo, tem boas notícias. Você está fisicamente bem. O outro bebê tá perfeitamente saudável. O resto da gravidez...

Tudo bem. Tudo bem. Se vocês... se vocês não se importam, eu preciso ficar sozinha um pouco.

Amor, tem certeza? Não é melhor...

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Tô bem, tõ bem. Só preciso descansar. É sério.


Quando descobri que tava grávida, fiz de tudo pra me convencer que aquilo foi só um pesadelo horroroso... que nunca aconteceu de verdade...

Seu filho da puta!!! Seu filho da puta do inferno!!

Acredite, Maria. Lamento muito mais do que você pensa...

Você matou meu filho, desgraçado!! Matou meu filho pra salvar tua cria do inferno!!

Se não foi você, foi ele!! Teu bebê-demônio matou o meu!!

Eu não matei a criança, eu juro!! Dessa vez, eu não fiz nada!!

Meu bebê não matou o seu, Maria... O seu bebê matou o meu! O-o quê?

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Que-que palhaçada é essa? Que joguinho é esse agora?

Agora eu sei. O potencial que eu vi em você... era o seu filho.

Já tem um forte instinto de sobrevivência e uma inteligência extremamente precoce

De alguma maneira, ele sentiu que o irmão gêmeo colocou sua vida em risco

Agiu sem dúvidas

Sem remorsos

Um pequeno psicopata perfeito

Não... Não pode... Isso não pode...

Você é a mãe. Sabe a verdade. Nem considerou arriscar um aborto. No fundo, sabia que ia ter dois filhos das trevas Não sinta culpa. A ciência até hoje não sabe a causa dos psicopatas de nascença.

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E isso é só o começo!


Vai enganar a polícia durante anos. Não fará nenhuma dessas idiotices dos assassinos de filme. Nada de deixar assinaturas. Nada de seguir “modus operandi”

Quando crescer, ele será um dos maiores serial killers de todos os tempos!

Vai escolher vítimas variadas. Convenientes. Pessoas sem família para cobrar a polícia: Prostitutas de rua, mendigos, viciados.

Um dia, ele vai se cansar de crimezinhos mundanos. Vai mexer com forças mais poderosas...

... Mas já entreguei muito o ouro. Vou te deixar adivinhar o resto.

Ainda não vai ser minha criança perfeita... mas até que chega perto. Claro que, agora que sabe a verdade, pode tentar impedir...

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...Só que vai ter que denunciar ou matar o próprio filho...

Isso é tudo mentira. Tudo. Você só quer me torturar porque perdi teu monstrinho.

Vamos ver. Quando o vir pela primeira vez... Quando enxergar bem no fundo da alma... ... vai saber a verdade.

... e não vai ter coragem!

Falou alguma coisa, amor?

Mais três meses depois.

UAAAAAAAAAAHHH!!!

Não. Não falei nada não.

Tô-Tô com medo de olhar... Não quero...

Calma, amor! Ele tá perfeito! É lindo! Olha só!

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UAAAAAAAAAAHHH!!!


Esse é meu bebê

Pra sempre meu

Querido, eu vou dar de mamar e botar ele pra dormir. Você vai guardando e arrumando tudo?

Suave!

Caraca, acho que não te vi tão animada desde que cê ficou grávida...

Foi todo esse estresse! Mas tá tudo bem agora. Né meu lindo?

Quando o vir pela primeira vez... Quando enxergar bem no fundo da alma...

... vai saber a verdade.

FIM

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NA EDIÇÃO ANTERIOR - Guilherme perdeu o pai por doença e, meses depois, sua mãe e irmão recém-nascido estão à beira da morte, vítimas de um acidente que foi, em parte, sua culpa. Surge, então, uma estranha criatura que lhe promete ajudar a salvá-los.

Somnium Parte 2

O destruidor de sonhos

Conto de André Roméro adaptado por Alexandre Winck

Desenhos: Ronílson Caetano Leal

Até que ponto você tem certeza de que está vivenciando algo real? E até que ponto você tem certeza de que um sonho não é real?

Guilherme, todos morrem. Muitos morrem de doenças, como câncer, Alzheimer ou tuberculose, alguns têm ataques cardíacos ou AVCs, muitos morrem em acidentes de trânsito, outros são assassinados e alguns simplesmente morrem de velhice.

Esse termo “morrer de velhice” é um tanto relativo, afinal, geralmente a verdadeira causa da morte é algum problema de saúde consequente da idade.

Dizem que a única certeza das pessoas é a morte. A verdadeira morte de velhice está além da sua realidade. As poucas pessoas que chegam à terceira idade com saúde e não possuem um “obstáculo” morrem dormindo e essa é vista por vocês como a morte mais tranquila.

A questão é: o que leva uma pessoa a morrer enquanto dorme? Será que o coração simplesmente para de bombear o sangue? Será que a pessoa sente que deve partir? Será que a pessoa sonha com a morte? Um último sonho. Um pesadelo final. E até que ponto a pessoa pode influenciar o próprio sonho? Guilherme, Você alguma vez soube que estava em um pesadelo, mas por se sentir em um perigo tão real quis acordar, e demorou a conseguir isso, como se seu subconsciente quisesse que você vivenciasse aquilo? Até onde você pode confiar na sua própria mente? E até que ponto seus sonhos são frutos da sua mente?

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Aliás, até que ponto você tem certeza de estar vivenciando algo real? Você já parou para pensar na nossa existência? Na nossa realidade? Nós nascemos em um mundo onde as coisas são do jeito que são, mas poucas vezes nos perguntamos: por que as coisas são assim? Por que a realidade existe? Será essa a única realidade? Será que existem outras realidades, sem massa, cor ou espaço, mas com outros elementos que, para vocês, simples mortais, parecem impossíveis de imaginar? Até que ponto essa partícula insignificante do enorme universo (ou, quem sabe, um multiverso) chamada raça humana pode interpretar a natureza da realidade em que vive? Até que ponto a ciência se resume ao que possui uma identidade física?

Será que os sonhos são formas de acessar (ou, quem sabe, criar) realidades paralelas, onde elementos que aqui são considerados essenciais simplesmente não se aplicam?

Será, Guilherme, que antes de tudo isso surgir nada existia, nem mesmo a escuridão e o silêncio? Por que o simples “existir” passou a existir? Como uma pessoa reagiria se fosse para um outro universo onde esse simples “existir” seria completamente diferente? Um universo, Guilherme, que nenhuma pessoa pode imaginar, nem mesmo no sonho mais complexo.

Abra seus olhos

Repare, Guilherme, que estamos em um local bem diferente do que você imaginava.

E repare, também, que não há nenhuma fonte luminosa aqui, mas mesmo assim nós estamos nos vendo perfeitamente.

Eu sei que tudo isso pode parecer muito estranho e assustador para você, principalmente agora que suas mãos estão presas!

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mas você já esteve em lugares piores antes... nos seus sonhos

Eu sou Somnium, o mestre dos sonhos. Eu faço aquilo que vocês acham que é obra das suas mentes: eu faço com que suas noites virem noites de terror.

Quem é você?!

Eu faço com que a dor sentida durante um torturador pesadelo seja sentida durante o sonho e suma ao acordar.

Eu faço, Guilherme, com que um carro vire uma sala escura onde ninguém irá te escutar.

Eu faço com que sua voz suma quando você mais precisa gritar. Eu faço com que seus olhos permaneçam fechados quando você mais precisa acordar. Eu faço com que não haja saída quando você mais precisa escapar.

E agora? Isso é real?

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E por que você me trouxe aqui? Tão real quanto tudo o que você já viveu e tão real quanto todos os seus pesadelos. Para mim, existem poucos limites de tempo, espaço ou dimensão. Eu sou apenas eu: um simples mortal com o poder de controlar realidades, inclusive aquelas que surgem cada vez que uma pessoa dorme

Seu pai morreu e sua mãe e o bebê Gustavo estão no hospital!

O quê?!

Você quer que sua mãe morra, Guilherme?

É claro que não!!

Então eu lhe darei uma chance de salvá-la

Você entrará no maior pesadelo da sua vida.

Nesse pesadelo, você terá que destruir seis corações. Em cada coração, estará uma chave. Com todas as chaves em mãos, você terá a chance de salvá-la.

Essa é minha única opção?

Por que, Guilherme? Você quer sair daqui e deixar sua mãe morrer?

O que?!

Não!

Durante o pesadelo, eu não vou interferir nos seus pensamentos, mas eu vou interferir no sonho. E muito.

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Eu acho que você é um covarde. UM COVARDE!!

EU VOU CORTAR SEUS OLHOS PARA QUE VOCÊ NÃO POSSA VER O QUE EU ESTOU PRESTES A FAZER COM VOCÊ!

Não! Eu aceito o desafio! Eu vou pegar as seis chaves!

AGORA JÁ É TARDE DEMAIS! Não se preocupe, você não vai ver nada...

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Que sonho horrível.

Esse foi um daqueles sonhos que são tão ruins, que, ao invés de sentir alívio quando acorda, a pessoa sente agonia, de tão real que foi.

MÃE!!

Que foi, filho?

Eu tive um sonho horrível.

CONTINUA... Fica tranquilo, filho... nossa, você tá suando!

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Pesados Elos Ilustração: César Reis

Conto de Pat Kovacs

N

icolai estava mesmo acabado, esgotado. Davis torceu o rosto numa lamentação silenciosa. Segurou com firmeza o rapaz pelo braço, levando-o ao divã no fundo da sala. O mago estava tão prostrado que sequer teve a mínima resistência. — Você precisa estar bem e lúcido, russo! Procure pôr todo o seu esforço em descansar completamente em duas horas, quando irei acordá-lo para voltarmos ao Plenário. O jovem desabou no divã e adormeceu instantaneamente, fustigado por todos os acontecimentos das últimas horas. Um momento de repouso era principalmente para manter a lucidez e buscar lenitivos para seu espírito esgotado. O seu grande desejo era poder retornar a Lentz, sua cidade natal situada na Rússia Oriental. Desejava retornar na primavera e respirar o ar puro e frio, de vento fresco que vinha da Sibéria. Para ele, não havia lugar mais belo!

E ali ele estava, após longos anos tortuosos. A sua leveza era tanta que poderia flutuar no mais leve impulso de sua vontade. Não era a primavera que tanto desejava, mas o final de um verão manso. Estava tão desejoso de sua terra, que sentia o vento frio em seu corpo e a textura da gramínea em seus pés. Viu a alameda de árvores antigas e seguiu sem receios, encontrando o solar em mármore branco, cujas duas torres terminavam em gotas do mais reluzente ouro. Sua respiração falhou e lágrimas brotaram em seus olhos. Longe por mais de duas décadas, finalmente revia o único lugar que pôde chamar de lar. Revia a residência de seus avós, com quem conviveu os melhores anos de sua existência. Onde nasceu, cresceu e... de onde fora arrancado para um destino cruel. Correu até o solar até chegar frente à grande porta dourada, ornamentada de símbolos. Estendeu sua mão e a porta abriu-se suavemente. Divisou o interior do palácio opulento. O enorme hall de entrada era ornamentado com armaduras antigas, sob tapeçarias que retratavam as cenas de resistência e vitória russa sobre o jugo tártaro, no século 13; o chão era em mármore marchetado; ao centro, uma escadaria igualmente em mármo-

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re, com corrimãos e balaústres dourados. Nicolai não se ateve em qualquer detalhe. Como uma criança que retorna feliz à casa dos avós, subiu correndo a escadaria, na esperança de encontrar algo ainda de seu passado. Chegando ao segundo andar, Nicolai deparou-se com o longo corredor que levava aos quartos. Algo lhe dizia para ser cauteloso. Uma força estranha o guiava para aquele lugar sombreado, em direção à escuridão que se adensava conforme avançava em seus passos. Olhou os archotes, apenas pontos de luz na parede; por algum motivo, as chamas não eram capazes de iluminar o lugar. de antes cedeu ao temor Todos os seus sentidos estavam Adealegria que algo não estava certo. Tomou obrigatoriamente voltados para sua altiva e séria. Cautelosaas terríveis sensações que sen- postura andou para a escuridão tia e, mesmo tendo a consciên- mente, densa do corredor, como que sendo cia de que aquilo era um sonho, guiado para um determinado ponnão conseguiu escapar de volta to daquele lugar. Seus sentidos estavam todos aguçados, inclusive os ao mundo material. instintos felinos que acabaram por impregnar em sua personalidade, após todos esses anos vivendo exclusivamente no corpo de gato. O som, não havia nenhum. Era tudo escuro e silencioso e apenas os baques abafados de seus pés sobre uma longa tapeçaria indicavam que algo vivo ali estava. Finalmente chegou ao final do corredor, parando frente a uma porta larga que, em tempos idos, dava acesso ao grande salão de jogos e leituras. De alguma forma, pressentia que algo terrível se ocultava atrás daquela porta. Fosse por tola coragem, fosse por tola curiosidade felina, o rapaz levou sua mão à maçaneta, fechando com firmeza seus dedos em torno dela. Inspirou fundo e, num rompante, abriu de uma vez a porta. Surpreso, viu que o ambiente estava calmo e levemente iluminado, parecia estar como sempre fora: prateleiras de livros de uma ponta a outra, de alto a baixo, na parede oposta à porta; a lareira crepitante e os estofados ornados e luxuosos ao canto direito da sala; mesa de jogos, cadeiras e poltronas do lado esquerdo sob enorme janela de vitral, com o brasão e armas da família, o clã Donskoi... Desorientado com seus próprios pensamentos e intuição inconvenientes, Nicolai adentrou até o centro do salão, não entendendo o porquê de ter sido atraído para ali, e nem por que a desconfiança de que algo horrendo o aguardava. A porta fechou-se serenamente às suas costas. Somente percebeu isso ao

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ouvir o clique da fechadura. Neste instante, um mal-estar tomou conta dele. Sentiu um peso sobre sua cabeça, em cima do chakra coronário, como se fosse uma mão gigante a pressioná-lo para o chão. Um calafrio percorreu seu corpo. Abraçou-se na inútil tentativa de amenizar aquelas sensações. Quis correr dali, mas seu corpo não lhe obedecia. Quis gritar qualquer coisa, mas a voz saiu arrastada e quase nula. Quis enxergar melhor e com mais precisão, mas o ambiente mergulhou numa penumbra disforme. Foi então que viu aquilo de que sua intuição lhe advertia: vultos, como se fossem mantos negros esfarrapados, rodopiando nervosos por todo o salão! As chamas da lareira crepitaram mais forte, elevando suas labaredas que serpenteavam nervosas. Nicolai, sob o peso opressor de fluídos negativos que tentavam o envolver por completo, centrou sua atenção naquelas chamas que lhe pareciam dubiamente terríveis e salvadoras. Tentou em vão se arrastar até elas, mas o peso invisível fazia com que seu corpo pesasse inconcebíveis toneladas. Todos os seus sentidos estavam obrigatoriamente voltados para as terríveis sensações que sentia e, mesmo tendo a consci-

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ência de que aquilo era um sonho, não conseguiu escapar de volta ao mundo material. Então soube, como por instinto, que aquilo não era meramente um sonho fantasioso criado pelo subconsciente durante parte do sono, e sim uma invasão e ataque mental de ocultos e esquecidos verdugos que acumulou ao longo da vida milenar de seu espírito de trevas, que somente agora buscava ardentemente elevar-se para a luz redentora. A força da pressão prostrou-o de joelhos no chão. Nicolai usava toda a sua força para não sucumbir e ser dominado inteiramente pelas trevas. Mantinha a custo a fronte erguida, não desviando seus olhos das labaredas. Foi então que dois vultos pararam à sua frente, transfigurando-se em duas formas que, embora deformadas, Nicolai não teve dificuldade para reconhecer: seu pai e sua mãe! Arregalou os olhos e suas lágrimas fluíram abundantemente com o que via. Seus pais pareciam formas lamacentas e havia sangue, muito sangue espalhado por seus corpos deformados. Suas expressões eram de ódio e loucura. E seu pai falou, numa voz gutural, mas cujo timbre era o mesmo de Dmitri Donskoi em idos tempos. — Filho traiçoeiro e ingrato! Vil, torpe, indigno! Maldito infeliz! Você nos traiu! Traiu aos seus próprios genitores, que lhe deram a vida e tudo que eras! Nicolai estava aturdido, incrédulo, pasmado. Não conseguia pronunciar nada além de um som arrastado e quase inaudível. Ainda lutava penosamente contra a força invisível que o subjugava. Somente as lágrimas abundantes de dor se manifestavam. Sua atenção foi desviada para a figura de sua mãe, tão deformada quanto à de seu pai. O miserável espírito pôs-se a chorar convulsivamente, em desespero, o que só aumentou o ódio de Dmitri. Tentou se aproximar de Nicolai, mas uma outra força invisível o impediu. — Maldito sejas, Nicolai, filho promíscuo e ingrato! Por sua covardia e traição, o Lorde nos mandou impiedosamente para o Vale da Morte! Por sua culpa, filho maldito, nossos planos foram destruídos, nossas vidas foram roubadas e fomos jogados neste umbral tétrico de trevas eternas! - Vociferava Dmitri. — Não... - Nicolai falou debilmente, entre as lágrimas de terríveis dores morais que pareciam dilacerar seu peito. Nicolai baixou a fronte, fechando fortemente seus olhos. A dor moral o estraçalhava por dentro. Tentava uma forma de sair daquele lugar, de despertar, de conjurar uma magia qualquer que o libertasse daquele

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pesadelo terrível! Precisava de força para isso, mas uma força oposta: uma força de Luz, de fluídos positivos. Mas como conseguir isso?! Ele era um mago negro, não conhecia outras armas além das Trevas! E apenas as forças opostas se anulam. — Pai! Misericórdia! - Conseguiu expelir, entre soluços. Imediatamente, o peso sobre sua cabeça cedeu e as sombras e vultos começaram a se dispersar. Conseguiu então erguer a fronde e viu que seus pais afastavam-se velozmente, flutuando, e seus rostos estavam lívidos e temerosos. Foi então que Nicolai sentiu como se um manto quente o envolvesse, desoprimindo seu peito e deixando-o gradativamente mais leve, até que braços de luz o erguessem do chão. Assustado - mas profundamente grato por aquele refrigério -, olhou para o vulto esbranquiçado que o envolvia maternalmente em seus braços e encontrou um par de olhos dourados, ternos e tristes, que pareciam ver dentro de sua alma. A entidade abraçou-o fortemente e o rapaz encontrou-se com longos, finos e lisíssimos cabelos brancos que escorriam feito seda por seu rosto... — Vó?!!

Lembrou-se amarguradamente de seus pais, numa sensação extremamente dolorosa.

Nicolai abriu seus olhos, olhando aturdido para o etéreo que ainda se fazia visível. Aspirou o ar abafado daquela sala sisuda do tribunal, como se tivesse corrido milhas até chegar ali. Seu coração estava descompassado, estressado, e seu corpo suava frio. Levantou-se de súbito, levando as mãos à testa, sem saber exatamente o porquê daquela aflição. Tentava em vão recordar o que havia sonhado, mas apenas a sensação de trevas e luz mantinha-se em sua mente. Lembrou-se amarguradamente de seus pais, numa sensação extremamente dolorosa. Lembrou-se por fim de sua querida avó, a Matriarca Maria Ivanóvna, como se fosse o calor do sol no inverno. Nicolai mergulhou em suas conjecturas. Seja lá o que tinha sonhado, não era um simples sonho, e sim um ataque psíquico-espiritual. Dor, angústia, decepção, tudo se misturava na incerteza em que se encontrava e do futuro que o aguardava. Apenas havia-lhe uma certeza: — Preciso sair dessas trevas. Preciso sair daqui!

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O

à DRAG

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Viagem ao Mundo dos Mortos

Alex Mir & Alexandre Winck Roteiro

Ton Albuquerque Arte

vamos iniciar, télio. sua meta é ir além do que foi na última vez.

tenho medo de ir muito longe e...

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...sabe, não conseguir voltar.

Adaptado do conto “Viagem ao Mundo dos Mortos” de Alex Mir, publicado originalmente no livro Moedas para o barqueiro - Andross Editora.


qualquer problema, suspendo a viagem e trago você de volta.

Estarei acompanhando seus sinais vitais daqui.

Doutor fausto, será que eu vou encontrála?

se não for nessa viagem, será na próxima.

agora Vou aplicar o emulador. é uma versão mais forte. Você sentirá seus olhos ficarem cada vez mais pesados. Apenas relaxe e deixe fluir.

“o mundo ao meu redor escurece, mas continuo consciente.”

“a sensação é de cair em queda livre, como se tivesse pulado de para-quedas no breu total. Não vejo nada, mas sinto.”

“Detesto essa sensação. nunca me acostumo.”

“Mas é necessário. Preciso ver minha amada pela última vez.”

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“e aqui estamos de novo.”

“e cada vez esse lugar parece mais assustador.”

“vamos lá. Não tenho tempo a perder.”

“Caraca. Eles acham que eu sou guia ou algo assim?”

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O-olha pessoal... Eu, tipo, eu não sou como vocês... Eu não tô... Não tô...

Deixa pra lá. É perda de tempo tentar explicar.

“Minha missão aqui é outra. A cada viagem chego mais longe, mas ainda não é o bastante.”

“Devo ir além. Tenho que encontrá-la dessa vez.”

Moço, pra onde a gente tá indo? Moço, por favor, diz onde está minha mãe.

Qual seu nome, pequenina?

Iara.

Você lembra o que estava fazendo antes de acordar aqui?

Iara, vamos continuar andando, tá bom? Tenho certeza que depois que atravessarmos o rio, tudo vai melhorar.

Minha mãe vai estar lá? Depois do rio?

Humm... Nadica de nada.

vamos torcer que sim, iara.

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“acabo de cruzar o limite”

“da última vez, vim até aqui.”

“fiquei observando ele...”

“Ele sempre escolhe a dedo seis pessoas em cada viagem.”

“caronte.”

“se as lendas forem verdadeiras, o que eu trouxe me dará a passagem para atravessar o rio.”

ei!

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Voce... voce esta vivo!

Por favor, me leve com você! Quem e voce?

eu sou Télio E preciso ter um último momento com minha noiva, suzana.

Mas você precisa me ajudar! Sei que tem um jeito. Vim até aqui para vê-la sem nem mesmo ter morrido. Isso tem que valer alguma coisa!

Se não me levar, vou nadando!

Garanto que nao chegara ao outro lado.

Então me ajuda! Olha essa corrente de ouro. É dela. Fica com você em troca da minha passagem.

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É ouro puro. Pode ver!

Desgraçado! Devolva a corrente! É só o que tenho da Suzana!

Você vai me levar?

Nao. Fique aqui. Voce nao pode seguir.

“Não vou desistir. Não agora, tão perto de encontrar Suzana.”

“Vou ficar. O tempo que for preciso.”

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Suzana!

ha! ha! não acredito! é você mesma?

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Você veio ficar comigo? Que saudade de você!

Estou num lugar tão horrível, télio! Espero que me deixem aqui com você.

Você não sabe o quanto esperei por esse momento! Mas não posso continuar e nem tirar você daqui. Eu não morri. Estou vivo! Não tenho tempo para te explicar como cheguei aqui.

Só preciso que me dê uma informação.

Que informação?

Lembra quando o Jaques não queria deixar a poeira baixar e teimou em pegar logo a parte dele no roubo do banco? Discutimos, teve um tiroteio e vocês dois morreram.

Só você sabia onde o dinheiro estava escondido. Me diz, onde está?

Está... Lembro que peguei a grana e coloquei... Está enterrada em Goiânia.

Eu... eu não lembro... Você só veio aqui por causa do dinheiro?

Que lugar de Goiânia? Não. Também vim te ver, mas preciso muito dessa grana. Se você me ama mesmo, me diz onde está.

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Na casa da minha prima. Lembra dela? Claro que lembro!


valeu!

ei!

onde você... seu

desgraçado!

desculpa, amor, mas tem um mundo de dinheiro me esperando no mundo dos vivos. um dia a gente se vê. espero que demore bastante.

ha! ha! pode demorar o tempo que for, télio, estarei te esperando, seu idiota!

Hmmm...

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Acorda, Télio, acorda! E aí, como foi?

Eu consegui, doutor! Está enterrado na casa da prima dela em Goiânia. Tá perto. Vamos lá e...

O que... tô ficando com sono de novo... Doutor...?

Adeus, Télio. obrigado pela informação.

vamos ver Que horas sai o próximo vôo pra Goiânia...

“Suzana?” “estava te esperando, Seu filho da puta!”

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fim? não, apenas o início do tormento de télio.


BI

UM DO Z O R BER

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O Coveiro

Ilustração: Luciano Oliveira Conto de Lucas Freitas de Figueiredo Andrade

“Eterno companheiro/ Da morte, quem matou-te o coração?” Augusto dos Anjos – O Coveiro

É

em noites como essa que me lembro de como era linda a minha pobre Bernadete. Ela era uma linda flor que nasceu e morreu no árido deserto de minha vida. Ela foi o meu primeiro e único amor. Ela era o meu Sol, era o ar que enchia meus pulmões. Ela era minha vida. Mesmo nesta noite terrível em que só os mortos me fazem companhia, e mesmo após tantos anos desde sua partida, basta apenas que eu pense em seu belo rosto para que as trevas se dissipem e os mortos se tornem a melhor das companhias.

Todavia, é uma sensação fugaz, pois lembranças não revivem os mortos e a dor que vem com a morte é o único sentimento que pode acompanhar um coveiro. Ainda assim, as memórias de nós dois, juntos, enamorados – e que belos enamorados! – e unidos por tão forte amor conseguem até mesmo vencer a lugubridade inerente ao ofício. Nos conhecemos ainda meninos, mas amantes apenas na vida adulta. E, por cinco belos e maravilhosos anos, vivemos no mais perfeito paraíso, com anjos e querubins louvando e

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invejando nossa perfeita união. Alegria e êxtase eram o nosso alimento – muito melhor do que qualquer outro obtido com o exíguo salário de um mísero coveiro. E assim tudo correu até o sexto ano. Foi nesse maldito ano que o paraíso foi perdido.

nei um fantasma-vivo assombrando um cemitério. A dor era um cancro negro em minha alma, crescendo dia após dia após dia. Eu procurei ser forte, contive o máximo possível aquele sentimento. E por um bom tempo eu consegui, até que num belo dia eu a vejo pelas grades do A inveja dos anjos e queru- cemitério nos braços de outro bins finalmente envenenou homem. aquilo que um dia foi sagrado Deus! Ó, Senhor dos desgraçados! Qual não foi a minha dor ao testemunhar essa cena. Não era uma dor normal – nem sequer se comparava à dor da rejeição –, era algo dilacerante. Eu senti como se e, assim, em um triste dia de meu coração estivesse sendo abril, ela se foi. Se foi sem arrancado de meu corpo. Mas nem olhar para trás, sem não foi uma dor passageira, dizer sequer um adeus, me muito pelo contrário. Ela se deixando na mais completa espalhou pelo cancro, fazendesolação, dominado pela dor do-o doer dez vezes mais. Eu e pelo sofrimento. Eu me tor- pensei que não fosse possível

Não era uma dor normal – nem sequer se comparava à dor da rejeição –, era algo dilacerante.

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para alguém suportar tamanha dor. Por um momento, esperei que a dor me matasse, eu rezei por isso, mas a morte não veio. Eu fiquei vivo, completamente destruído, mas vivo. A noite foi um verdadeiro inferno. A cada vez que eu fechava os olhos, era assombrado pela imagem dela. Ela nos braços de outro homem. Ela beijando outro homem. Ela dormindo com outro homem. Quando por fim consegui fechar os olhos – graças ao cansaço – já era hora de iniciar o meu trabalho e prontamente abandonei os lençóis que ainda tinham o cheiro dela.

Eu a chamei para o cemitério, precisava conversar desesperadamente com ela, mas a quantidade de trabalho não me deixaria sair muito cedo. Ela veio - relutante e desconfiada -, mas veio. Eu a levei até uma área afastada, mais ou menos embaixo de uma velha árvore morta que ainda permanece no cemitério. Era uma bela caminhada da entrada até lá, e isso daria tempo para que escurecesse e

Passaram-se semanas e essa mesma cena noturna sempre se repetindo, até que por fim eu me cansei. Eu precisava de paz, precisava acabar com aquela dor de uma vez por todas e, numa úmida tarde de abril, a terra lamacenta que sujava minhas botas me deu uma ideia, uma ideia que enfim me traria paz...

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nos deixaria longe de toda e de terra. Ela caiu como que qualquer interrupção. adormecida e, pela última vez, eu pude senti-la em meus Não estava muito escuro braços enquanto a levava quando chegamos lá, mas era para seu caixão. Deitei-a ali o bastante para que não fôs- dentro e, antes de fechá-lo, semos vistos e, fortuitamente, beijei pela última vez aqueles uma bela chuva começou a lindos lábios vermelhos que cair. Eu me lembro de que ela eu tanto amava. Fechei a tamficou irada e linda, ela sem- pa e desci aquele caixão rosa, pre ficava linda quando se feito por minhas próprias mãos, para dentro daquele sepulcro e, mal tendo deitado Aqui Jaz ao chão, lancei a primeira pá de terra enquanto lágrimas O Meu Primeiro Amor desciam pelos meus olhos.

8 De Junho De 1984 31 De Outubro De 2013

E assim foi, pá após pá, enquanto a chuva lavava minha alma de toda a dor irritava, e começou a gritar que ainda restava. comigo sobre o que eu queria e sobre como minha “loucu- Ainda hoje, minha amada ra” poderia fazer com que ela Bernadete continua onde está. se resfriasse. Eu nada falei e Seu sumiço foi sentido, mas apenas apontei para frente nunca puderam provar nada dela. Ela seguiu meu dedo e contra este pobre coveiro. E seu belo rosto corado subita- todas as tardes e noites, quanmente ficou pálido ao ver do a tristeza do meu trabalho uma pequena lápide de um vem para incomodar-me, eu sepulcro aberto ao lado de um lhe faço uma visita e, por caixão rosado. Ela dizia: horas sem fim, conversamos sem sermos interrompidos por ninguém. Enfim, ela é Ela voltou para mim um olhar minha, e só minha. de medo, mas não foram meus olhos que ela encontrou, e sim Ah, foi por isso que me fiz o frio metal de minha pá suja coveiro!

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O Encanto das TREVAS Por Alexandre Winck

N

unca pergunte a Lullaby Enchantress seu nome de batismo. Ela o odeia e não repete de jeito nenhum. Desde criança dizia à sua mãe o quanto o detestava e que um dia o mudaria. A única pista que ela dá é que sua mãe era muito católica, então nomes como Maria, Aparecida e Fátima são bons palpites. “De que adianta você colocar o nome de Jesus no seu filho e ele virar, tipo, um assassino?”, questiona. Sua inspiração para Lullaby veio do poema homônimo do norte-americano Alfred Tennyson. “Achei que, para

uma música pesada, com tema oculto, o nome que quer dizer canção de ninar tem algo meio cínico, é de música para crianças, mas na verdade não tem nada de infantil”. Já Enchantress foi uma sugestão de um colaborador que trabalhou no seu quarto CD. Ironicamente, parte de sua motivação foi ter um nome próprio, que ninguém mais tivesse, mas muita gente acabou roubando sua ideia. Isso não mudou sua atitude como autora de terror com nove livros publicados, nem como cantora e compositora de black metal, de sempre seguir sua própria inspiração.

Fotos de Daniel Vardi e tratamento Diody Shigaki 46


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SEM MEDO DOS DEMÔNIOS

O

nome, no entanto, está longe de ser o aspecto da personalidade de Lullaby que mais incomodou a mãe religiosa. Desde criança, o universo do oculto e dos demônios a segue. Ainda criança, ela tinha pesadelos em que era perseguida por um monstro peludo. Ao ver filmes de terror, mais velha, se deu conta de que a criatura que via era igualzinha ao demônio Asmodeus. Também já sonhou que estava deitada em sua cama e um demônio andou sobre seu corpo. E esse tipo de manifestação surgiu também para a Lullaby adulta. Ela garante que, acordada, viu uma enorme cabeça chifrida surgir em seu quarto, à noite, e crescer cada vez mais em sua direção até desaparecer de repente. Outra visão ocorreu ao visitar uma prima. Ela garante ter visto um estranho homem de bigode aparecer no quarto, aproximar-se da cama onde ela estava, agachar-se e desaparecer. Depois sua parente relatou que ela parecia estar falando do falecido marido de uma moradora dali que supostamente aparecia o tempo todo para pedir perdão pelos males praticados contra a esposa, sem sucesso. “Ela quis me mostrar uma foto dele e eu disse, ‘ de jeito nenhum, vou ver isso pra ter certeza de que era ele mesmo? Prefiro ficar na dúvida”. Mesmo assim, de uma maneira geral Lullaby garante não temer demônios nem outras manifestações que costumam assustar os outros. Ela discorda da visão cristã de que Lúcifer seja uma encarnação do mal. “Para mim, ele é aquele que castiga, como você tem a figura do juiz, do policial. Para existir o céu, precisa haver o inferno, se só houvesse o céu para onde iriam os que praticam o mal?”, questiona. Critica, inclusive, aqueles que usam a figura do diabo como um bode expiatório para suas falhas humanas. “Quem faz o mal é a própria pessoa, não o diabo”. Para ela, a existência de demônios e de Lúcifer também significa que existem anjos e Deus, que todos são entidades. Aliás, ela

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mesma se considera uma. “Acredito que, do outro lado, serei dominante, terei muito mais poder do que neste mundo”. Garante que não teve medo nem quando ela e alguns amigos realizaram uma missa negra. O grupo incluía fãs de black metal, como ela, mas também adeptos de um rock mais tradicional. Todos entoaram cânticos, acenderam velas e invocaram o demônio. “Falaram de coisas estranhas, de um vento muito forte lá fora, vimos demônios, outras pessoas ficaram com raiva, com medo, saíram dali, mas eu sabia que não ia acontecer nada de mau”, relata. Lullaby mantém a mesma atitude sem medo diante de outras situações que assustam a grande maioria das pessoas. Uma vez, ainda criança, esteve diante de uma cobra preta, que ergueu a cabeça e fitou seus olhos. “Meu irmão chorava, mas eu não 49


fiquei com medo, para que fugir se eu não estava fazendo nada pra cobra? Ela só desceu e foi embora”. E essa não foi a única experiência desse gênero. Ela e o irmão tinham o hábito de ir visitar uma velha mina. “Meu irmão tinha a mania de ir beber água lá, até que um dia notei que tinha uma cobra ali e ele não viu. Puxei ele e falei, ‘não tá vendo essa cobra ali?’ e ela foi embora”.

OVELHA NEGRA

C

omo era de se esperar, a família religiosa estranhava muito o comportamento e atitudes de Lullaby, seu fascínio com o oculto e o demoníaco. “Eu era a diferente, a ovelha negra, não tinha ninguém como eu. Minha mãe se assustava porque eu era fascinada com a morte, me questionava o que existia do outro lado, até escrevia para a morte”. Religiosos extremos já a perturbaram diversas vezes, inclusive com ameaças. Mas ela conta que sua mãe passou a aceitá-la mais quando começou a se envolver com música, na adolescência, pois viu que a filha estava canalizando esses interesses para criar arte. Lullaby tentou montar bandas, mas acabou desistindo e partindo para a carreira solo. “O problema com banda é que sempre tem um fofoqueiro.Uma menina ficava falando de mim pelas costas, que só eu queria ter ideias, mas aí não vinham apresentar ideias”. Lullaby compõe de ouvido todas as suas músicas e letras. Conta que teve a sorte de logo encontrar um selo quando teve músicas prontas para mostrar. Seus álbuns, cantados em inglês, chegam aos mercados norte-americano e europeu. Alguns definem seu som como black metal, outros como gótico, ou mesmo uma mistura dos dois, mas ela mesma o considera black metal. Cita como grandes influências Black Sabbath e Venom. “O Ozzy é meu ídolo, adoro tudo que ele faz”, derrete-se. Característica de sua música é seu vocal gutural, baixo e grave,

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quase sussurrado. “Teve homens que me contaram que tentaram imitar meus vocais e não conseguiram”. Da mesma maneira, desde cedo se interessou por literatura, também com foco no oculto e no terror. “Eu ia fazer um trabalho sobre um texto na escola e escrevia do meu jeito, a minha própria versão. Uma professora disse que tinha certeza de que eu iria me tornar escritora”. Não cita nenhum autor como influência em seu trabalho, embora goste de Anne Rice, por exemplo, mas a formação musical parece definitivamente ter surtido efeito sobre sua literatura. Seu texto tem um ritmo que lembra os versos de uma letra de canção. Conta que, no início, teve dificuldades em conseguir editoras por causa dos altos custos, mas hoje em dia a internet facilitou bastante colocar seus lviros à venda.

TERROR E AMOR

C

omo passou sua infância num sítio, sem televisão, Lullaby acabou só descobrindo os filmes de terror na adolescência. Mas de cara os vampiros tornaram-se sua grande paixão dentro do gênero. “Também vejo os de lobisomem e tal, mas os vampiros têm essa mistura do terror com o erotismo e o romantismo, a sedução, isso me fascina. Já imaginou viver para sempre? Isso seria legal”. Seu favorito é de longe Christopher Lee e seu famoso “olhar de sangue”, embora também goste de outras versões, como a de Francis Ford Coppola e Drácula 2000. Apesar disso, ela nunca fez parte propriamente da tribo dos vampiros. Durante a juventude, teve uma fase de se vestir a caráter no estilo gótico, de preto, usando braceletes, etc. Hoje em dia, no entanto, prefere vestir-se normalmente. Claro que ela se identifica com vampiras, mas não com as noivas passivas, escravas do nosferatu masculino que se vê na

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maioria dos filmes. Uma de suas personagens, aliás, é uma vampira que se recusa a obedecer aquele que a transformou, depois de seduzí-la e tirar vantagem dela. “Ela é transformada. mas consegue manter sua alma, sua essência”. Ao ver suas fotos, seu olhar, sua sensualidade, é fácil imaginá-la como uma perfeita vampira de filme, embora ela nunca tenha trabalhado como atriz. “Acredito que eu conseguiria, vem de dentro, como quando você escreve ou canta. é algo que está na sua mente, que faz parte do que você acredita”. O tema do poder e independência femininos dentro do terror é constante em sua carreira. Uma de suas músicas fala da história de Lillith, a primeira noiva de Adão, nascida do bairro, rejeitada por ter se recusado a ser obediente, que preferiu unir-se aos demônios e adotar a forma de serpente para seduzir Adão com a maçã. Para Lullaby, ela é a primeira mulher moderna, independente. Assim como ela mesma segue sempre seu própriao caminho, na vida e na arte.

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Assim que abri os olhos e vi que Alicia não estava na cama, tive certeza de que havia algo errado.

Corri até o quarto de Emmanuelle e, quando vi o símbolo pintado em sangue na cabeceira, meu coração congelou.

Eu sabia que não tinha um segundo a perder. Vesti a cota de malha,

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busquei minha espada e meu escudo, empoeirados pela falta de uso

e corri para os estábulos.


Cavalguei em disparada até a antiga abadia, sabendo que, como vinte anos atrás...

Eu precisaria resgatar inocentes que estavam...

...Só que, desta vez, seriam minha esposa e minha filha!

entre o mal e a espada

Alexandre Lobão Roteiro

Alex Santos Arte

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Enquanto refaço os mesmos passos, minhas preces são perturbadas pelo medo do que vou encontrar no antigo covil dos seguidores de Satã.

Ao destruir a seita, não só salvei Alicia, com quem me casei, mas também ganhei as terras do feudo de seu pai...

Mas nunca consegui me livrar da sensação de que eles continuavam por perto, planejando sua vingança.

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Certas vezes, odeio estar certo.

Phillip! Alicia! N達o se preocupe!

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É fácil perceber que não é um cavaleiro, mas um camponês qualquer.

O primeiro dos acólitos avança de maneira displicente, com a guarda aberta.

Passado e presente se confundem, lembranças antigas se fundindo...

...com as reações instintivas do presente.

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Mas o tempo cobra seu preço.


O braço da espada pesa,

a agilidade já não é a mesma,

Mas, ao fim, costelas quebradas ou não, ainda sou um cavaleiro.

e mesmo contra camponeses, se não fosse a cota de malha, já estaria morto.

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Calma, meu amor, agora está tudo bem.

Oh, Phillip! Nossa filha!

Emmanuelle? Você pode ouvir, minha filha?

Senhorita? Você está bem?

Urgh!

Malditos!

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O quê?

Cof... Por que? Phillip, querido... Urgh... por que envelhecer e morrer se tudo o que preciso...

São seis sacrifícios... Urgh!... realizados por uma alma sem maldade...

Obrigada... por me ajudar...

...pela segunda vez!

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IL

BRAS ROR R E T

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Let's

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Play


DESTA NOITE NÃO PASSA!

O CHIFRUDO ME ENGANOU, MAS VOU TER MINHA VINGANÇA!

DEVIA TER CASADO QUANDO TEVE A CHANCE SUA CABRITINHA SAFADA!

agora é tarde!!!

está tudo pronto para o ritual e...

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...eu não vou ser nada ‘GENTILI’ velas...

sangue...

pentagrama...

uma calcinha usada. SNIFF! ainda dá para sentir o cheiro da vadia!

onde ela está não vai precisar mais mesmo!!!

agora vou ter a minha vingança e vou roubar uma succubus do inferno! mas não vai ser uma diabinha ordinária do inferno, não!

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A NOIVA DO

TONINHO DO DIABO TEXTO: DANIEL VARDI - ARTE: MARCELO GARUFFI

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TUT SALAK ETHAN MORTHUS...

CONSEGUI!!!! EH! EH! EH! vou ficar com você, até ele aparecer e me dar tudo o quê me prometeu. TUDO!!! vamos ver se ele gosta tantao assim de você!

MARITUS SACRUM EST... ...IMPLORO

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e acredite, gostosa assim, a gente vai se divertir...


vou descontar em você todas as porradas que eu levei.

todas as humilhações que eu sofri...

e todas as vezes que alguém me enganou....

hoje eu não vou ser a vítima desse mundo podre, fedido e de filhos da puta.

hoje eu vou ser o DONO DO MUNDO!!! HOJE, eu vou ter tudo o que eu mereço!

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Você devia ter mais cuidado com o que deseja. seu cão fedido!

GLUP! Que susto!

Então você queria me chamar, e para isso raptou uma das minhas noivas. Um grande Erro!

isso era ‘apenas’ um teste! você não presta, não faz nada na vida, vive se drogando, roubando e abusando de mulheres

nunca consegui nada do que me prometeu. achei que tinha me abandonado!

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quando fizemos nosso acordo, você queria dinheiro, queria ser famoso e nunca ficar velho! quem te disse que no inferno fazemos caridade para judar vagabundos!!! Pense nisso, otário!


Agora já que é um teste!

vamos ver como vai se sair no ‘ENEM DO INFERNO’!

você fisgou minha pequena ‘hertha’, a minha quinta noiva!!! quer se divertir com ela?

não, por favor!!! Deveria levar ela ao cinema. ela adora filmes!!!

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não faça isso, você vai soltá-la!!!

esqueça os jantares românticos! não precisa das velas! mas é claro que vou!

hummm! slapt!

afinal, não pode manter uma succubus gostosa como essa como prisioneira!

mas vou deixar ela apresentar a sua verdadeira face! que é muito mais bela!

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UAAAAAAAAAAHHH!!!

que é isso???

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aproveite e nรฃo vรก mijar nas calรงas!!!

UUPPPFFF!!!

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você deveria saber que tudo tem seu tempo!

e todos tem seu merecimento, mas não queria nunca o que não é seu!!!

Venha minha querida!

Vamos encontrar as outras...

afinal, com diz o ditado: - o que é do diabo, o homem não come!!!

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ho Tonin

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iabo do D


Num futuro próximo, as grandes cidades estão inundadas de lixo. A misteriosa Belle entra numa fábrica abandonada que lhe parece

ROTEIRO: ALEXANDRE WINCK

o último lugar “sem gente, sem lixo”. Ela não escuta avisos de que ali mora uma fera, mas surge uma ameaça pior: uma gangue.

DESENHOS: DANIEL LUCÁVIS

!!!! L A R AA AA A W L G Anjo Industrial - A Origem Parte II

RIU!!! A P E U Q A PUT

! ! ! H H A AAAA

GAAA

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Vira isso pra lรก!! Que nojo!!

P-por favor... Nรฃo me machuca... Por favor...

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!


Ai, Jesus... Tรก amarrado... Chama o pastor!!

Filho da p...

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Não sei por que o sigo. Nem por que não estou mais com medo.

O-o que você quer comigo?

Talvez nem queira saber.

Ele me mostra desenhos que fez na parede. Sem palavras.

Se estou entendendo direito, ele está contando sua história pra mim.

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continua...


Presente de Natal 2013 #7

Criador Mario Mancuso Publisher Daniel Vardi Editor-chefe Alexandre Winck Conselho editorial: Alexandre Winck, Bira Dantas, Carlos Henry, Daniel Vardi, Francisco Tupy, Mario Mancuso e Rodrigo Garcia Diagrmação e letras: Igor Santos Projeto Gráfico: Publigibi sob projeto inicial de Isabella Sarkis Tratamento de Imagens: Diody Shigaki Todos os direitos autorais pertencem aos respectivos autores, não podendo ser reproduzida sob quaisquer aspectos sem a devida autorização dos mesmos. As opiniões e fatos aqui expressos são totalmente de responsabilidades dos autores, não significando necessariamente a opinião da revista. www.contosdoabsurdo.com.br Rua João Moura, 1088 Vila Madalena 05412-0002 São Paulo - SP (11) 2366-8880 www.publigibi.com.br contato@publigibi.com.br facebook.com/publigibi

Participe!

Mande o seu trabalho - pode ser desenho, conto, roteiro para HQ, ilustra, matérias e ensaios fotográficos - para: SUBMISSIONS@CONTOSDOABSURDO.COM.BR 87



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