PULP FEEK ESPECIAL 2014

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Não sei quantas vezes na minha vida eu comecei um projeto e ele terminou antes do que eu gostaria. Foram diversas tentativas de criar portais de informação sobre cultura pop, grupos de discussão sobre seriados, RPGs em fóruns, até mesmo blogs. A PulpFeek é diferente. A Pulp parece ter escapado um pouco das rédeas de seus criadores. Ela é uma entidade própria, viva em cada um dos envolvidos com seu projeto. Mas até ela cansa, como durante o mês de Novembro, em que, além de sua publicação, boa parte dos envolvidos estava absorto com a National Novel WritingMonth. Por isso, Dezembro e Janeiro foram meses de recuperação. Agora a revista retorna com força. E, para marcar a volta, a prometida edição especial apresentando as histórias criadas em Novembro. Leia sem parcimônia, se deleite com cada um dos autores, se apaixone e se entristeça uma dezena de vezes. E saiba quem são os envolvidos nesse projeto, cada um com um depoimento a ser aqui publicado, também. Estou muito feliz de ver a revista que eu comecei tocando tanta gente. Agora vire a página.


PULP FEEK - ESPECIAL Séries

Pág 3 - Conheça a programação da Pulp Feek para 2014. Quem continua, quem sai, quem fica?

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Pág 11 - Ervas do Tempo... Uma “viagem” a Amsterdã pode guarda as mais diferentes surpresas, um porre homérico, dias chapados e festas dos mais variados tipos. Ou porque não uma viagem alucinante pelo tempo? Isso tudo escrito pelo nosso já conhecido Victor Lorandi Pág 25 - Olhos vazios... Nesta história de Rodolfo L. Xavier a morte avança rumo aos desequilibrados, um médico responsável por um sanatório pretende ajudar a solucionar os crimes, em paralelo a tudo isso ele tenta tratar a insanidade de seus pacientes. Seria um deles o assassino? Pág 32 - A Sina do andarilho... Na obra de Philippe de Avellar, como uma quimera que caminha procurando seu lugar, estilos diferentes se encontram e se abraçam resultando nesse texto, aqui descrito em pequenos detalhes. Pág 50 - Minha garota... Johnny é um detetive, sobrevive de seus casos, porém, nunca poderia imaginar que poderia se dar muito mal, em um caso simples. O melhor do Noir dessa vez escrito por Rafero Oliveira. Pág 67 - Livre... Uma celebridade na cadeia, um autor com dificuldades para escrever, um culto... Inúmeras histórias problemáticas se cruzam dentro dessa maravilhosa história de Thiago G. Sgobero. Pág 78 - Alanna... Uma garota especial criado por vampiros vive uma vida sobrenatural. Algo comum? Não, nas mãos de Gabrielle Erudessa. Pág 91 - O Livro do ano... com um toque de intimidade Alaor Rocha nós mostra sua obra escrita em novembro, um presente para alguém, mas também algo impar.


Temporada - 2014 Editor-chefe:

Rafael Marx: Responsável pelas semanas de Fantasia Épica e Moderna, Marx possui uma coluna na revista, a “Como escrever Sobre”, além de trabalhar em outros dois sites Sportbucks e The Concussion como redator. É também um péssimo humorista e pode ser encontrado no seu twitter @Rafa_Marx onde distribuiu suas piadas de Tio do Pavê. Sua origem é Votuporanga, mas nesse momento está pronto para habitar Bauru (a cidade do sanduíche), após uma longa estadia em Ilha Solteira. Fantasia Épica Editor: Diogo Machado: Oriundo de Toledo, ele compartilha da insanidade comum dos integrantes paranaenses da revista, sua entrada se deu através de uma indicação, mas desde sua entrada vem mostrando seu imenso valor para a revista. Entrou na Pulp inicialmente para preencher a vaga da semana de horror, onde trabalhou até o fim do ano passado, em 2014 irá trabalhar na semana de Fantasia antes ocupada por João Lemes.

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Temporada - 2014 A queda de Aqueron: Escrita por Marlon Teske, nosso representante catarinense, a história publicada pela primeira vez na edição #1 de nossa revista descreve um mundo medieval a beira de uma grande catástrofe. “Aqueron está caindo” e está queda irá desafiar os mitos da religião dominante no reino, esta por sua vez irá tentar se manter fazendo todo movimento necessário para evitar que a crença da população neles se perca, ou pior ainda, que o mal caia sobre eles. Rixa: Vindo direto da Itália, Victor Lorandi não mede esforços por trazer o que há de melhor do velho gênero de espada e magia para dentro de sua história. Publicada também pela primeira vez na edição #1 desta revista, a história de Rixa segue dois caminhos, de um lado a Ordem de Ferro que pretende extinguir os magos e seus imensos poderes a fim de manter-se seguros, do outro os magos que querem apenas a sobrevivência de sua espécie. Essa dicotomia é representada por dois irmãos, Toras e Boller, que em lado distintos lutam por seus ideais.

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Temporada - 2014 Moderna Editor: Luiz Fernando: Sim, ele é engenheiro, sim eles leem, foi uma surpresa imensa saber que eles sabem fazer algo além de contas. Brincadeiras a parte, vem se dedicando a semana moderna e apesar de ser um pouco afastado do núcleo principal da revista devido ao seu curso, tem demonstrado uma dose extra de qualidade e esforço no que faz. A imperatriz de Ferro: Rafael de Oliveira, ou simplesmente Rafero, este é o ocupante de uma das cadeiras da nossa semana moderna. Em sua história aborda as aventuras de um jovem garoto que se sente perdido em uma era que não é a dele, um mundo de vapor e sombras mais negras e turbulentas do que o mundo real. Sua primeira publicação foi na revista #4, desde então a história segue capítulo a capítulo, trazendo o que há de melhor no Steampunk, gênero em perfeita ascensão. Sob(re) Controle: Apenas uma mente insana pode escrever uma história insanamente diferente, esse é Thiago Geth Sgobero, uma pessoa madura e agitada que sabe bem em que rumos quer colocar seus roteiros. Desde a revista #4 acompanhamos Jonas, um jovem irado com sua vida que passa por um tratamento de controle com a

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Temporada - 2014 Raiva. Mas quando a chance de transformar o que era defeito em dom aparece ele não pensa duas vezes, lidando com pecados mais profundos do que um humano comum pode imaginar. Editor-chefe: Lucas Rueles: Responsável pelas semanas de Ficção Científica e Horror, Rueles assim como Marx tem seu espaço na revista, a Fonte de Inspiração, onde ele se foca em identificar e analisar possíveis fontes de inspiração, sempre com um enfoque final em como trazer isso para dentro de seu próprio trabalho. Um fã de quadrinhos, mangás e filmes de mão cheia, tenta não chorar com roteiros melosos, embora admita que essa missão seja extremamente difícil. Já perambulou por Curitiba, é de Umuarama, se esconde em Lovat, mas está se dirigindo para Bauru (a cidade do sanduíche), onde pretende com Rafa Marx fortalecer o projeto Pulp Feek. Ficção Científica Editor: Eric Paro: Conterrâneo de seu editor-chefe, Lucas Rueles, Paro é um garoto novo com cara de vilão de filme do Clint Eastwood. Depois de algum tempo se dedicando a violência em seu treino de Jiu-jitsu decidiu dedicar sua vida aos animais, reza a lenda que sua entrada na

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Temporada - 2014 Pulp envolve uma história com um Poodle demoníaco e um grupo de RPG que até hoje está esperando a segunda seção. Trabalha na semana de Ficção Científica. A Falha Steinitz: Viva o mundo do Capitão Coil, um mercenário disposto a tudo para cumprir sua missão, porém, com um passado negro e sombrio que faz com que ele deseje imensamente viver isolado. Com um tom de Space Opera, Faroeste e Crônicas de Guerra, Rodolfo L. Xavier trás a vida este capitão da Nave, a própria Nave e outros personagens, convergindo estilos e identidades para criar uma única forma que desde a edição #2 vem funcionando em nova revista. 4x2: O futuro pode ter diversas formas, a representada por Alaor Rocha é desafiadora, as vezes tocando o Steampunk ou outras defendendo a Ficção Científica de caráter Social, ele trabalha com um futuro onde não só nossa tecnologia teve mudanças vertiginosas como também nossos hábitos, costumes e crenças. Desde a edição #2 ele vem trazendo essa odisseia fantástica de Lady Starbuck para nossa apreciação.

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Temporada - 2014 Horror Editor: Neste momento esta posição é ocupada pelo distinto Lucas Rueles, como ele tem algumas personalidades não será difícil para ele alocar alguma delas nessa função. O Dom das Sombras: Ana é uma jornalista, tem uma rotina tediosa e tranquila trabalhando em seu pequeno jornal. Mas eis que ao investigar um caso de assassinato ela pode ter encontrado um fio solto em todos os mistérios que envolvem a torpe nobreza de sua cidade. Escrito por Philippe Avellar e publicado desde a edição #3 de nossa revista, O dom das sombras traz de volta a antiga investigação Noir com um belo toque da fantasia fantástica, colocando em contraste dois mundos, o que todos conhecem e o segundo, onde habitam as tramas da nobreza. Lúcia: Em sua história Amanda Ferrairo trabalha com as sombras, os mitos dos medos humanos que se apossam e desafiam nossa mente, com um toque de Insanidade ela dá vida a Lúcia, uma personagem que cresce conforme a trama se desenvolve e surpreende a cada novo capítulo. A história tem início na edição #3 e conforme se desenvolve o mundo que envolve Lúcia vai se tornando mais nítido e convidativo.

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Temporada - 2014 Diagramador: João Lemes: Responsável por diagramar nossa revista, ele chegou de mansinho, até meio tímido e, quando a gente percebeu, ele que era nosso escr... digo, funcionário não remunerado, acabou por se tornar um dos sócios principais do grande projeto que é a Pulp. Sério e dedicado talvez sejam as melhores palavras para descrevê-lo, sempre concentrado em fazer o melhor, nunca mede esforços pra alcançar o máximo. Se a Pulp que chega hoje até vocês existe é graças a esse carinha aqui que deixa muitos dos seus finais de semana de lado para se dedicar inteiramente a esse projeto. Revisores: André Caniato: Apesar de ficar no background da Pulp, corrigindo textos e ajudando em traduções, se tornou uma figura bem querida por todos. Saber que ele deixará a Pulp em 2014 é uma tristeza imensa, mas queremos que, nesse último trabalho, fique aqui o registro da imensa ajuda dada a nós em 2013 por esse cara promissor que ele é. Iara Spadrezane: Uma amiga de todos nós, que em 2013 fez parte de nosso corpo de revisores, sempre nos ajudando, desde a divulgação do projeto ou com agremiar novos integrantes para o projeto. Em 2014 esperamos continuar a boa relação já mantida no ano anterior.

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Temporada - 2014 Alaor Rocha: Além de escrever esse cara ainda revisa? Isso mesmo produção? É galera ele está aqui pra nos ajudar sempre como pode, além de trabalhar na nossa parceira com a Pêssega d’Oro, a mais brilhante parceria que temos. Oneshoters: Vindo de diversos lugares do Brasil e do mundo, são eles que fazem a prensa girar, eles que complementam nosso material e auxiliam na divulgação, como os escritores de série eles estão no topo de nossa cadeia alimentar de carinho e esforço. Mesmo com prazos curtos muitos deles tem nos servido excelentes textos de temas variados. Gostaríamos de agradecer a todos estes que nos auxiliaram em 2013 e aos outros que viram a nos ajudar ainda em 2014. Muito obrigado por fazer parte desse projeto. Ilustradores: São poucos, porém, todos que aqui constam com seus desenhos produzem um trabalho único e de maestria digna de qualquer profissional, cada qual em seu estilo são eles que embelezam nossas páginas e facilitam nosso trabalho para podermos dar seguimento em nossa história.

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Ervas do Tempo

Victor Lorandi

— Amsterdã tem mais de setecentos e sessenta mil habitantes. A maior cidade e capital dos Países Baixos, na província da Holanda do Norte, seu nome é derivado de uma represa no rio Amstel. É o quinto maior centro financeiro da Europa e se destaca pela infraestrutura que reúne um aeroporto internacional e um porto marítimo muito moderno. Luís olhou para Thiago e fingiu bocejar de forma exagerada. — Cara, você tá olhando pra isso da forma errada. Vou te dizer as coisas importantes de Amsterdã. — Ele colocou o braço sobre o ombro do amigo e estendeu a outra mão, gesticulando suavemente enquanto falava. — Cidade da zona de meretrício mais famosa do mundo e coffee shops liberais. E o resto é consequência. Ou reação química. Fora as batatas fritas. — Mal posso esperar pra comer as comidas típicas. — Você come waffles todos os dias, seu gordo. Vamos, a gente tem que achar o albergue ainda. A menos que você consiga confirmar o couch surf dessa noite. Thiago puxou o telefone do bolso e procurou por um sinal para se conectar numa rede, mas a maioria era protegida por senha. Depois de se conformar, ele usou o o sinal regular do celular e entrou na página de couch surf. Enquanto isso, Luís olhava ao redor, admirando os arredores, farejando o ar como um cão de caça, pronto para saltar ao primeiro sinal de erva. — Hmm, parece que hoje ele não pode hospedar a gente, mas disse que tem uma festa no centro da cidade, perto do albergue que reservamos. O que acha? Luís estava olhando para uma garota loura, alta de olhos verdes cintilantes. Thiago deu um tapinha no ombro do amigo. — Você tá me ouvindo? — Sim, sim. Albergue, festa. Dorgas, mano. Thiago balançou a cabeça indignado.

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— Vamos, a gente tem que pegar um trem até o centro. — Custa caro? — A gente tem que descobrir, né. Vamos, a bilheteria é logo ali. Quando chegaram diante da bilheteria haviam duas longas filas. Luís examinou as duas e se dirigiu àquela mais curta. — Vai na outra, quem chegar primeiro compra as duas passagens. Thiago olhou torto para o amigo, indicando a desaprovação de tal ato. — Cara, relaxa. A gente não tem que correr. Fora que você vai fazer besteira e vai comprar ou um bilhete a menos ou cinco a mais. Seu inglês é pior que seus baseados. Luís torceu a cara em indignação. — Do que você tá falando? O Guru da Erva não vai tolerar sua falta de respeito, jovem gafanhoto. Você nem sabe bolar! Thiago bufou e tirou Luís da fila. — Me espera quieto ali no canto. Eu vou comprar as passagens. Tente não comprar nada por enquanto. Luís se afastou relutante. Ele odiava quando Thiago o tratava daquela maneira. Ele era muito mais capaz do que o amigo pensava. Enquanto ele esperava, um homem com uma longa barba castanha veio até ele e entregou um flyer para ele. Luís o examinou. De um lado havia um olho místico sobre uma piramide colorida. Do lado oposto, escrito em letras gorduchas os nomes dos artigos em venda na loja. O lugar em questão era uma loja de aparelhagem para fumar todos os tipos de erva. Luís virou o flyer novamente e examinou o estranho olho sobre a pirâmide. O olho era lilás e parecia hipnotizar Luís com as cores na estrutura. Ele começou a ouvir um sussurro. — Luís! Ele saltou e olhou assustado ao redor. Thiago estava diante dele, os bilhetes

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em mão. — Não me assusta, cara. — Você já tá pirando, cara? Vai, levanta. O trem chega em dez minutos. Você tá com fome? Eles desceram até a plataforma para pegar o trem, conversando sobre os planos para aquela noite e os outros dias. Luís queria ir ao Distrito da Luz Vermelha na noite seguinte e fazer um tour dos Coffee Shops na cidade. Thiago, no entanto, queria curtir o lugar, fazer um passeio pelos canais, visitar o museu de cera e talvez o museu de Van Gogh. Eles discutiram até subirem no trem. Quando eles entraram, Thiago pegou seu mapa e começou a estudá-lo enquanto Luís examinava de perto o flyer que o homem lhe entregou. Depois de 15 minutos eles estavam na estação central, mochilas nas costas, encarando um largo canal logo diante da saída. Barcas transportavam as pessoas à pé, em lambretas e em bicicletas ao outro lado do canal. Eles olharam ao redor, Thiago com o mapa em mãos e Luís olhando para todas as garotas que passavam em seu campo visual. Ele parecia prestes a quebrar o pescoço de tanto que se contorcia para virar a cabeça para todos os lados ao mesmo tempo. — E aí, pra onde a gente vai, Thiago? Estou começando a ficar com fome e se a gente não chegar logo no albergue ficamos sem comida! — Não estressa, Luís, a gente tem que andar um bocado. Não estressa. — Beleza, Thiago. Mas se a gente se perder, não deixo você fumar essa noite. Thiago rolou os olhos e começou a andar, olhando o mapa digital no celular enquanto caminhava. — Se não me engano nós temos de pegar a rua Nieuwendijk.

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Luís deu uma risada leve. — Pensou em besteira, né? — Dick. Thiago balançou a cabeça e riu com o amigo enquanto eles caminhavam, pela primeira vez, pelas ruas movimentadas de Amsterdã. Era como um sonho que virava realidade. Eles planejaram aquilo desde que eram pequenos e prometeram que fariam aquela viagem juntos. Era nisso que eles pensavam enquanto caminhavam estrada abaixo, sorrindo e relembrando as histórias do passado. Eles não esperavam nada daquela viagem que não fosse diversão completa. E eles iriam atrás da diversão, fosse num Coffee Shop, fosse num museu. O lugar era deveras estranho, cheio de jovens com roupas coloridas e ânimo nas alturas. Na recepção do albergue eles confirmaram a reserva e subiram ao quarto, que estava vazio quando entraram. O lugar tinha um odor floral e um clima muito caseiro. Eles deixaram suas coisas nos armários do lugar, se lavaram e saíram para dar uma volta na cidade. Thiago estava ansioso para conhecer as ruas coloridas da cidade. — Então, onde você quer ir primeiro? — ele perguntou a Luís. O amigo abriu um sorriso de raposa. — Onde você acha que quero ir? — Comer alguma coisa e depois no museu de cera? Luís balançou a cabeça e resmungou. — Thiago, pode parar de fazer o engraçadinho. Você sabe que eu vim aqui para conhecer a diversidade de erva que a cidade tem a oferecer. Eu queria vir em Novembro, mas você me convenceu a vir no verão para relaxarmos na bagagem, mas eu me nego a permitir que você estrague meu turismo herbáceo.

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Thiago abriu um sorriso meio torto. — O.k., Guru. Você pode ir visitar o coffee shop que quiser. Podemos nos separar, também, sabe? E podemos combinar um lugar para nos encontrarmos depois. — Não, cara. A gente planejou essa viagem juntos e juntos vamos continuar até o fim. Até a última cinza, entendeu? — O.k., tá bom. Vamos fumar e ficar chapados em algum lugar. — Era isso que eu queria ouvir. A primeira coisa que você faz quando entra no banheiro não é sentar na privada, é acender a luz. Acender! Então vamos acender um gordinho e curtir uma música, o que acha? Thiago meneou, seguro que a noite seria longa, mas divertida, pelo menos. Eles entraram no primeiro coffee shop que encontraram no caminho. Era um lugar tranquilo, com o cheiro de fumaça e uma música muito relaxante. O atendente no balcão da frente permitiu que eles examinassem com calma a lista de fumo disponível e alguns minutos depois, Thiago e Luís estavam no andar de baixo, sentados em um sofá confortável, ouvindo música, mordiscando doces e conversando sobre os problemas do mundo. Muitos dos quais se centravam na proibição da maconha em certos países. Depois de uma hora de diversão despreocupada, Luís e Thiago saíram do coffee shop e se dirigiram ao apartamento do amigo de Thiago. — E o que você acha que vai acontecer agora? Nós vamos para a festa e vamos encontrar garotas, drogas, álcool? — Não sei. Vamos primeiro encontrar Mark e depois nós descobriremos o que vamos encontrar. Eles estavam caminhando pelas ruas sinuosas e apertadas da cidade quando algo chamou a atenção de Luís. Era um túnel, uma viela ou algo do gênero, cheio de pinturas que brilhavam sob uma lâmpada de luz negra. Ele parou imediatamente, sua mente chamando-o de volta. Ele entrou no

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lugar e examinou as paredes maravilhado. Sua primeira reação foi puxar sua câmera fotográfica, mas ele tinha deixado ela no albergue. Thiago só notou a ausência do amigo alguns metros adiante. Ele olhou ao redor, procurando por Luís e começou a refazer seus passos, procurando ao redor por qualquer lugar no meio do caminho que pudesse ser interessante a seu amigo. Quando o encontrou, Luís estava estacado num ponto do túnel, encarando um desenho na parede. — Luís? Tá pirando de novo, cara? Ele foi até o amigo e o cutucou no ombro. Luís deu um salto para trás e olhou para Thiago surpreso, como se não esperasse ver o amigo ali. — Calma, calma! — ele disse. — Calma? Com o que? Tá tudo bem? O que está acontecendo? Luís piscou algumas vezes antes de parecer perceber onde estava realmente. — Ah, eu tava só dando uma olhada nesse túnel. Tem uns desenhos muito bonitos. Dá uma olhada nesse aqui. Thiago olhou ao desenho indicado pelo amigo. Era uma pirâmide colorida brilhante. As cores pareciam se mover entre elas, criando um efeito hipnótico. Mas o que realmente atordoava sua mente era o grande olho roxo acima da pirâmide. Era o olho de alguma mulher, visto os cílios longos. A íris do olho era de um roxo claro e algo no desenho parecia ser hipnotizante. Ele se aproximou e examinou o olho com cuidado. — Uau. A íris do olho é um fractal. É fantástico. Quem quer que tenha desenhado esse olho sabia muito bem o que estava fazendo. Isso aqui devia estar em algum museu. Luís já não estava mais observando a imagem, mas estava andando para fora do túnel. Thiago o seguiu apressado.

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— Ei, você está bem? — ele perguntou ao amigo ao alcançá-lo. — Sim. Não. Não sei. Vamos logo, estou com fome de novo e quero ir a uma festa. Falta muito para chegarmos à casa de Mark? Eles retomaram a caminhada. Thiago pensava na festa adiante, mas Luís ainda pensava no olho sobre a pirâmide. Ele se lembrava perfeitamente onde havia visto aquele desenho antes. E algo parecia estar errado com aquilo tudo. O apartamento de Mark era um lugar pequeno e apertado para os padrões de Luís e Thiago. Eles pareciam ter dificuldades em caminhar da sala à cozinha sem destruir algum vaso de flores. Mark era amigável e não ligava muito quando eles derrubavam alguma coisa. Dizia que não era a primeira vez que estrangeiros vinham à sua casa e arrastavam coisas por todos os lados. — Sinto muito, não queria destruir sua casa. — Thiago disse em inglês. — Não se preocupe, não está destruindo. É bom mudar a casa às vezes. Estava precisando. O três riram ao comentário. — Vocês querem beber alguma coisa? Comer algo antes de irmos à festa? Não terá muita comida no local, então sugiro que comam aqui em casa antes de irmos. Algo doce, de preferência. Luís sorriu àquilo. Conhecendo os efeitos de álcool e erva no corpo, ele sabia que açúcar era muito necessário para evitar problemas sucessivos. — Eu aceito. O que você tem de bom? — Tenho chá, suco, um refrigerante, bolo e biscoitos. — Chá com biscoitos pra mim! — Disse Thiago levantando. — Eu aceito bolo e suco. Que suco é? Os três se levantaram e foram até a pequena cozinha, comeram e beberam para enganar a fome e partiram em seguida com ânimo renovado.

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O local da festa não era longe. Mark os guiou através das ruas que contornavam os canais históricos e em alguns minutos, os três estavam já na soleira da porta que os levaria ao apartamento. A festa estava em polvorosa quando os três entraram. Muitas pessoas, muitas bebidas, nenhum problema. Se perguntasse a Luís ou Thiago quanto tempo estavam lá, eles diriam dias, mas a verdade é que eles estavam se dando tão bem com as pessoas que realmente tinham a sensação de conhecer todos há uma vida. Era realmente uma coisa alucinante e extremamente agradável para todos os envolvidos. Não sabiam quanto tempo tinha passado desde que entraram ali. Não tinha importância, não fazia nenhuma diferença. Não era uma coisa em que eles pensavam. Eles não estavam pensando em muitas coisas enquanto se divertiam. Até que algo aconteceu. Um rapaz entrou no lugar com uma camiseta que parecia brilhar sob a luz negra que haviam instalado na sala para aumentar a diversão da festa. Thiago e Luís a viram e foi então que os dois foram hipnotizados ao mesmo tempo. O olho roxo com a pirâmide abaixo estava ali, como na parede, como no flyer. Luís sentiu desespero. Thiago estava curioso. Não era possível que eles estivessem vendo aquela imagem onde quer que fossem. Era como se estivessem sendo perseguidos. Luís puxou Thiago para fora da sala e o empurrou até a entrada. — Cara, diz pra mim que você também viu aquilo. Uma pessoa passou entre os dois, saindo da casa. — Sim, eu vi. Mas não é motivo pra você me arrastar aqui. Não precisa exagerar. Uma garota entrou na casa e eles tiveram de se afastar novamente. — Como não? Desde que chegamos aqui estamos vendo essa porcaria! Tem que significar alguma coisa, não?

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— Não pira, você tem visto bicicletas por todos os lados e não tá pirando nelas. Acho que a gente precisa ir embora, isso sim. Você precisa dormir e descansar. — Não! Eu preciso descobrir o que é aquilo! Antes que Thiago pudesse impedir o amigo, Luís disparou para a sala, onde o jovem garoto estava sentado conversando com uma garota de longos cabelos roxos. Ela parecia encantada com a camiseta que ele usava. Thiago observou ao redor e viu que muitas pessoas estavam mesmerizadas com aquele desenho. As poucas que não estavam hipnotizadas, não pareciam sequer ter notado a entrada do jovem com a camiseta. — Com licença? — Luís cutucou o rapaz. Ele se virou com um sorriso muito amigável. — Sim? — Sim. Onde você arranjou essa camiseta? E o que é ela? Ele deu uma risada de leve. — Eu estava contando justamente disso. Ganhei essa revista numa feira na cidade. Um cara me deu ela de presente enquanto estava comprando cachimbos. Ele disse que era uma camiseta muito especial e eu tinha de usar ela todas as vezes que quisesse me dar bem. Se é que você me entende. Luís sorriu, tentando esconder seu nervosismo. — Entendi. Então é um amuleto da sorte? O garoto deu de ombros. A garota com quem ele estava falando estalou os dedos e seu rosto se acendeu com alguma memória. — Eu sabia que já tinha visto esse desenho antes! — ela gritou com uma voz aguda. Thiago rolou os olhos. Lógico que já tinha visto. Como qualquer coisa instalada na mente das pessoas de forma subversiva, o símbolo continha um

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elemento único de ser muito bem feito para causar um efeito particularmente impressionante. — Gente, isso não é nada de especial! É como aquela lata de sopa do-Mas Luís o interrompeu. — Ninguém quer saber de arte moderna, Thiago! A gente tá querendo saber do que se trata esse olho roxo. A sala inteira pareceu cair em silêncio enquanto todos olhavam para o rapaz com a camiseta. — Eu não sei. Só ganhei a camiseta. Não perguntei o que era. Houve um gemido geral de desapontamento pela sala. As pessoas se aproximaram da conversa, cada um contando uma versão diferente da origem e da função do desenho. A garota de cabelos roxos disse que era um símbolo de fertilidade e superioridade feminina. O dono da festa disse que era claramente uma tentativa dos Illuminati de tentar se infiltrar na moda hippie. Ele jurava que seu pai tinha visto o símbolo ainda nos anos 60. Mark teorizou algo com alienígenas e conspirações para esconder a verdade. A única coisa que Luís levou a sério foi uma resposta muito simples, vinda de uma garota mirrada que parecia se misturar às sombras do lugar. — É uma loja. Todos olharam para ela sem entender. — Uma loja? — Thiago perguntou. — Sim. Eu entrei uma vez. É uma loja móvel que viaja pelos canais do país. Vendem todos os tipos de produtos para fumar erva, cigarro e outras coisas. Quase como uma lojinha esotérica. Todos olhavam para ela. O silêncio era palpável. A ideia era tão simples que parecia uma perda de tempo continuar discutindo. — Parece legítimo. — alguém disse.

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A turma se dispersou em seguida, deixando Luís, Thiago, a garota mirrada, a de cabelos roxos e o rapaz com a camiseta curiosa em um círculo. A garota de cabelos roxos levantou prontamente e foi até a cozinha. O garoto a seguiu. — Então, onde foi que você viu essa loja? — Luís perguntou. Thiago bufou. — Cara, deixa ela em paz. Esquece desse símbolo. — Não é um problema. Eu não estou conversando com ninguém. Eu vi a loja alguns anos atrás num canal que leva a outra cidade. Ele estava atracado num ponto legal e tinha um movimento interessante. Não sei qual a rota que ele faz, mas acho que ele fica nos limites de Amsterdã, visto que vende erva e outros produtos que só são legais aqui. — O lugar tem algum site, telefone? Alguma forma de contatar? — Luís, por que você quer tanto encontrar esse lugar? — Thiago perguntou em português. — Eu te explico depois. A garota esperou que os dois terminassem de discutir. — Eu não sei. A loja não tem um nome, até onde sei. Quem conhece ela a chama de Barco Mercante. Sabe, como antigamente. Luís agradeceu e se dirigiu até a entrada do apartamento novamente, onde várias pessoas estavam aglomeradas. O número de pessoas havia crescido significativamente desde que eles começaram a discutir sobre o símbolo. — O que acha, Thiago? Thiago balançou a cabeça. — Eu acho que você não está fazendo sentido algum e que eu não sei mais o que está passando pela sua cabeça. Vai me contar ou terei de adivinhar? — Thiago, o que te vem em mente quando olha para aquele desenho? Thiago pensou antes de responder. Ele preferia ter certeza do que estava

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falando antes de abrir a boca por qualquer motivo ou discussão. — Eu penso em números. Eu vi que no olho o desenho é fractal. É uma bela obra de arte, mas nada de especial quando você percebe como é feito. — Eu não perguntei no que você pensa. Eu perguntei o que te vem em mente. Vem comigo. Ele se dirigiu à cozinha, onde a garota de roxo estava bufando às palavras do rapaz com a camiseta da loja. — Licença, posso dar outra olhada na sua camiseta, amigo? O rapaz pareceu aborrecido com o pedido e assim que ele se virou para mostrar a camiseta, a garota de roxo saiu da cozinha. Ele se virou para ir atrás dela, mas Luís o segurou. — Ei! — o rapaz resmungou enquanto Luís o segurava firme. — Olhe bem para o desenho, Thiago! — ele disse em português para o amigo. — O.k., estou olhando. — Em silêncio. Esqueça o fractal. Sinta sua mente! Como quando fumamos aquela vez que escutamos Camel no último volume. Sinta! Thiago deixou de pensar. Ele permitiu que o zunido da música alta na sala se tornasse parte de seus pensamentos, o álcool em seu corpo, misturado à erva que haviam fumado antes pareceu surtir um efeito especial em sua mente. De repente, a pirâmide começou a se mover, as cores mudando de posição até que... O rapaz se desvencilhou de Luís e foi atrás da garota mais uma vez. — Eu vi... — O que você viu Thiago? — Luís perguntou, ansioso. — Eu não sei. Eu vi algo. Quase como uma porta abrindo. Não sei explicar, mas parecia que as cores na pirâmide estavam girando. E o olho. — O olho piscou, não foi?

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— Sim! Agora a excitação de Luís pareceu infectar Thiago, finalmente. Os dois foram pegar mais um cigarro de erva e umas cervejas. Eles estavam prestes a iniciar uma discussão profunda sobre o assunto.

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Olhos Vazios

Rodolfo L. Xavier

Sueli acordou pontualmente às seis e meia e se levantou, colocando o pé direito no chão antes do esquerdo. Escovou os dentes precisamente trinta vezes em cada ângulo e enxugou as mãos na toalha branca — nunca na azul, aquela era do seu marido, mesmo que há três anos ele não colocasse mais os pés em casa. Cortou os pães, espalhando o requeijão de maneira uniforme nas superfícies e bebeu um chá preto para acompanhar. Depois de mergulhar o saquinho trinta vezes, é claro. Aliás, trinta lhe era um número importante. Preferia os meses de trinta dias, sentindo um especial pânico a cada fevereiro. Acertava seus despertadores sempre para alguma hora e trinta. Em cada banho, se esfregava trinta vezes com o sabonete, até sua pele arder. Seu marido a deixara aos trinta anos. Não fazia muito com seus dias além de cumprir seus pequenos rituais, que se faziam presentes ao lavar as roupas, cortar legumes, tricotar. Queimou mais uma blusa após passar o ferro pela vigésima sexta vez. Suspirou, resmungando consigo mesma. Foi até o quintal da casa e jogou a roupa na lixeira. Virou-se para entrar novamente e foi subitamente ao chão, sem ar. Levantou-se e sentiu algo quente escorrendo pelas costas, acabando por tocar seu sangue ao tatear seu dorso. Percebeu, atônita, uma lâmina cravada e precipitou-se em uma corrida desesperada para casa. Cambaleou para dentro da sala, buscando desatinada o telefone. Uma respiração ofegante dominou seus ouvidos enquanto um par de mãos lhe roubava o ar. Lutou, tentando interpor seus dedos para proteger o pescoço, mas não conseguia espaço. Sua visão turvava e ela sequer conseguia ver quem lhe agredia. Tentou arranhar, mas os cotocos de unhas, roídos trinta vezes ao dia, não tiveram sucesso em causar algum dano. Sentiu a consciência lhe deixar e teve, ao menos, o conforto de muitos sofrimentos acabados. Após vinte minutos, descobriu que tinha se enganado redondamente. Atada em uma maca de metal, Sueli sentia o frio toque sob seu corpo nu.

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Debateu-se, mas as amarras em seus pulsos e tornozelos a venceram. Tentou gritar, mas uma bola de borracha unida por tiras de couro lhe impediu. Tremia e ouvia quem quer que fosse produzir ruídos e sons desconexos. Percebeu algo como uma faca ou serra sendo afiada. Líquido encher um recipiente. O som de papel sendo desembrulhado. Um sussurro. — Conte pra mim, por favor. A noite foi longa. Sueli sentiu cada um de seus dedos sendo cortado devagar, falange à falange. Sufocou gritos e desmaiou várias vezes, sendo acordada e tendo seu ritual reiniciado. Quase entrou em choque quando os pulsos foram serrados, um de cada vez. Se perdeu em devaneios enquanto seus dedos dos pés surgiam diante de seus olhos e perdeu a consciência mais uma vez quando seus tornozelos foram desarticulados. — Não, não, não durma. Preciso de você acordada. Vamos tirar isso da sua boca e ouvir o que você tem a dizer, vamos? Sueli respirava com dificuldade, salivando, enchendo seus pulmões de ar. Uma coisa martelava em sua mente, se repetindo trinta vezes. Buscou ar novamente, mas a dor pouco lhe permitia. Os tremores eram espasmos que — ela sentia — iriam romper sua coluna se não acabassem logo. Já havia urinado e defecado na maca, suava de forma abundante e sequer tinha lágrimas para chorar. Só queria que tudo acabasse, mas a noite estava longe de terminar. Voltou a encher o pulmão de ar e conseguiu balbuciar a dúvida que lhe preenchia os pensamentos. — Por... por... que... por que... eu...? — Azar, querida. Acontece. O que restou de Sueli demorou quase uma semana para ser encontrado. O telefone da sala de plantão acordou Luís às três e meia da manhã, enrolado em dois cobertores esverdeados, gravados com o emblema da universi-

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dade. Respirou fundo, se coçou e levantou para atender sua primeira intercorrência em um plantão noturno. Caminhou, ainda de meias, até a mesa onde o aparelho dividia espaço com o computador e com uma garrafa de café frio. Uma enfermeira mal humorada avisou que uma paciente insistia em permanecer acordada, perambulando pelo pátio interno, e informou, quase com voz de comando, que realocá-la na enfermaria era atribuição do residente médico. Além do mais, era a garota do parque. Ninguém queria chegar perto dela. O rapaz calçou os tênis e saiu do estar médico, trancando a porta a suas costas e colocando a chave no bolso. Enquanto caminhava pelos corredores vazios do sanatório, limpos e iluminados, não conseguiu deixar de pensar em quão lúgubre era aquele lugar sem o típico ir e vir das pessoas. No avançar da hora quase todos dormiam, uns trancados em pesadelos funestos, outros libertos em sonhos de gozo. E essa menina trancada dentro de si mesma. Lera o relatório anexo ao prontuário dela que descrevia em detalhes anatômicos o cadáver da mulher mais velha, ainda não identificada, no parque. Coitadas, as duas. Baixou o trinco do portão e entrou no pátio interno onde, sob a luz de uma fraca Lua crescente, a menina permanecia sentada em um banco de concreto, imóvel. Aos seus pés, um cão preto repousava, respirando pesadamente. Luís se aproximou de frente, tentando chamar a atenção da menina, sem sucesso. A jovem encarava alguma coisa que só ela via e permaneceria assim por muito tempo, caso não descobrissem um jeito de tratá-la. — Ei, boa noite — cumprimentou Luís –, posso me sentar ao seu lado? — e, diante da ausência de resposta, ocupou o banco — Eu me chamo Luís Felipe. Deixo você me chamar de Lufi, se quiser. Minha família me chama assim porque é uma abreviatura, mas eu prefiro pensar que é por causa do pirata daquele desenho, você conhece? E seu nome, como é? A jovem permaneceu ali como se com nada interagisse. Piscou vagarosa-

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mente e levou as mãos, que estavam no banco, para o colo, respirando devagar. O cão se remexeu e despertou, se coçando e bocejando. Levantou-se e lambeu os pés da menina, enfiados nos chinelos, mas ela não esboçou reação. Lufi achava que o animal tinha um quê de tristeza nos olhos cinzas. Talvez fosse cego. Estendeu a mão e acariciou o pelo preto do cachorro, que rolou no chão, com a barriga para cima, pedindo mais. — Cachorro safado você, hein? — riu, afagando o curioso animal — De onde você veio garotão? Tem nome? — Caronte — sussurrou a menina. Luís encarou a garota surpreso, seguro-a pelos ombros e a olhou nos olhos, mas em nada ela diferia da adolescente catatônica que avistara minutos atrás olhando para o nada. Aliviou um pouco a pressão nos ombros quando percebeu que devia estar apertando demais. A jovem não esboçou nenhuma reação, mas Lufi percebeu que o cão havia se colocado em uma postura muito reta e elegante, quase como se estivesse fazendo um cumprimento ao ser apresentado formalmente. Como se seu nome realmente fosse esse. Mesmo com várias tentativas por parte do médico, a menina não produziu som algum. — Definitivamente essa coisa de dormir em manicômio não deve fazer muito bem. Vem menina, vou te levar de volta pra enfermaria. Ingrid tateava as paredes do corredor escuro, procurando a saída. Olhava para trás confusa, o barulho de passos desordenados em perseguição lhe enchendo os ouvidos. Tropeçou em alguma coisa e quase caiu, se segurando em uma maçaneta. Girou-a e abriu a porta, entrando em uma sala ampla, parcamente iluminada por uma lâmpada que piscava, quase se desligando. Correu pelo cômodo, escorregando em algo pegajoso, mas seguindo adiante. Outra porta barrava seu caminho, mas a garota arremeteu contra ela, arrombando-a. Estava em um varanda que dava para um jardim de rosas brancas e ver-

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melhas. Correu escada a baixo, ofegante, tentando abrir o máximo de distância que conseguisse. Logo atrás, os passos se aproximavam, enquanto suas passadas tornavam-se cada vez mais pesadas. Parou por um instante, apoiando-se no tronco de um salgueiro para retomar o fôlego. Não tirava os olhos da porta por onde viera, presa entre a vontade de correr e uma curiosidade bizarra em saber o que é que vinha atrás dela. Uma mulher obesa atravessou o arco da porta, exibindo uma nudez em camadas que lhe caíam como aventais sobre as pernas e a genitália. Os peitos sobrepunham-se à grotesca cascata de pele e gordura, encimados por uma papada repleta de pedaços de alimentos apodrecidos entre as dobras. O couro capilar aparecia entre as mechas de cabelo que caíam enquanto a forma grotesca caminhava em passos pesados e cambaleantes. Os dedos rotundos e inchados se estendiam na direção de Ingrid, procurando alcançá-la. A boca aberta mostrava dentes amarelados e pretos, aos cacos. Seu peito inflava em incursões respiratórias irregulares e penosas, numa tonalidade cianótica. Ingrid berrou a plenos pulmões sem ouvir som algum e desatou a correr pelo jardim, mas, quanto mais corria, mais se cansava e menor ficava a distância entre as duas. Lágrimas escorriam fartas em sua face quando ela caiu sobre a grama, entre arbustos de roseiras. A bizarra criatura atirou-se sobre a garota, rasgando pedaços de banha nos espinhos, inúmeros cortes se abrindo profundamente na pele, deixando vazar sangue e pedaços de gordura amarelada, que explodiam como manteiga no chão. Ingrid tentava buscar ar, mas todo aquele peso sobre ela a impedia de respirar. Afogava-se naqueles dejetos, erguendo as mãos, procurando uma saída. Sentiu sua mão ser segura firmemente e, aos poucos, foi sendo retirada do que agora era uma enorme poça nauseante e malcheirosa entre as rosas. Quem quer que lhe segurasse a puxava com força, até que ela se sentiu aliviada quando suas pernas deixaram de tocar o que tinha sobrado da criatura obesa. Res-

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pirou fundo várias vezes, recobrando o fôlego, antes de virar para seu salvador e agradecer. Palavra alguma saiu de seus lábios. De pé à sua frente jazia uma mulher faminta que a olhava de forma animalesca. As maçãs do rosto inexistiam e os olhos ameaçavam saltar das órbitas. O contorno dos ossos era visível sob a pele flácida, cada costela ou articulação pontiaguda. Os cabelos eram secos, quebrando-se em fragmentos enquanto a figura se debruçava sobre a jovem. Ingrid tentou se levantar e correr, mas sentia-se muito fraca. A figura abriu os lábios secos e salivou sobre a pele da jovem, antes de desferir uma mordida que estalou os ossos do ombro de Ingrid. Novamente um grito foi sufocado em sua garganta e a menina fechou os olhos, sem mais forças para se defender. Acordou sob o cobertor, encharcada de suor, respirando com dificuldade. Afastou os cabelos do rosto e correu nauseada até o banheiro, vomitando no vaso o que não tinha no estômago. Ajoelhou-se no chão do lado da privada, recobrando as forças. Estava acontecendo de novo. Levantou-se e lavou o rosto na pia, entrando embaixo do chuveiro em seguida. Tateou suas curvas, correu os dedos sobre a pele, visualizando as banhas da obesa que a perseguia. Tomou a esponja nas mãos e se esfregou vigorosamente, sem qualquer resultado. Deixou o choro verter farto no rosto, enquanto olhava em volta, como que em busca de algo. Encontrou a lixa de pés.

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“Venha. Vou limpar seus machucados.” Os braços se estenderam, magros e fortes, com a pele morena coberta de pequenas cicatrizes brancas, acolhendo em suas voltas o peso do corpo pequeno e disforme, que ainda chorava com gritos estridentes e nauseantes. Os pequenos membros se agitavam e tremiam, com pequenos furos que sangravam. “Eu já pedi para não andar nessa parte do jardim. As plantas têm espinhos, veneno. São perigosas tanto quanto são bonitas. Podem curar e matar.” Disse a voz rouca, que agora pouco falava. O pequenino, incapaz de compreender as palavras, era quem mais podia ouvi-la. Para os outros, reservava seus sussurros ríspidos, sua respiração ruidosa e seus ocasionais acessos de tosse. Com a proteção daqueles braços rígidos e quentes, o choro alto já estava reduzido a gemidos e soluços esganiçados que sacudiam o corpo inteiro. Quando o pano úmido passou sobre os machucados, tremeu involuntariamente, mas não gritou. Nem mesmo quando a pasta de ervas maceradas que ardiam foi esfregada em seu corpo com os dedos pesados ousou expressar seu desconforto. “Você é um bebê estúpido.” Disse a voz, com bom humor. Quando estava pior, normalmente o chamava de filhote. O tom de riso fez com que o pequeno parasse de soluçar, e agitasse a pequeníssima cauda, que ganhara há poucos dias. Terminada a limpeza, seu corpo nu foi envolto em lençóis ásperos, e depositados no grande cesto. Era confortável estar a salvo dos ventos que assaltavam de repente a morada daquelas duas estranhas figuras. A luz do sol poente

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tingia uma das paredes de pedra, deixando o restante imerso em penumbra. A noite seria fria, e o cheiro que chegava à entrada era úmido e poeirento. “Essa noite haverá uma tempestade. Você gosta delas, não é?” Um gritinho agudo foi a resposta. Soava um pouco como um risinho. “Eu também.” A figura adulta pegou peças de madeira guardadas em um canto da casa de pedra, para proteger as aberturas na parede que tinha no lugar de janelas. Tirou de perto delas os móveis, para que não ficassem sobre as pequenas poças que se formariam. Os últimos momentos de luz lançaram-se sobre cristais transparentes que balançavam na abertura da porta, pendurados em grossos fios junto com penas e sementes. As luzes brincaram em círculos na escuridão das paredes, como gordos vaga-lumes multicoloridos, fazendo o pequeno soltar mais um gritinho, deliciado, já esquecido do acidente de há pouco. O lençol ondulava e se sacudia. Por um instante, aquela casa pareceu menos árida e triste. “Você não pode chorar e gritar mais por machucados tão pequenos, Anka. A vida dói muito mais do que caminhar sobre os espinheiros.” As palavras cansadas soaram como uma melancólica profecia. O escuro caçava e rodeava os coloridos pontinhos de luz. Um suspiro dengoso foi logo seguido por um suave ronronar quando a pequena forma no cesto adormeceu. “A vida é estranha, incerta, implacável. É assim especialmente para aqueles como nós. Ninguém será mais parecido com ela do que você. Por isso vão

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odiá-lo. Porque você será como a vida.” Depois disso, reinou um silêncio que perdurou até a tempestade chegar. As trevas engoliram a luz que dançava. 1 Quando morava em uma casa aos pés da montanha, muitas pessoas vinham até Nárian pedir seus conselhos, uma prece, uma cura. Pisoteavam seu jardim de ervas como se fossem mato, chegando sempre aflitos ou aos prantos, às vezes com uma criança ou animal nos braços. Entravam sem cerimônia por sua choupana, que não tinha porta, a qualquer hora do dia ou da noite, falando alto e desfiando um rosário de tragédias. Nárian recebia os recém-chegados com transparente mau humor, um silêncio furioso, ou palavras pouco amigáveis. Suas explosões não eram tão incomuns, pontuadas por sua tosse, xingamentos criativos, e ameaças de que iria embora para nunca mais voltar, deixando todos aqueles idiotas entregues à sua própria sorte. Sempre atendia os que lá chegavam, mesmo que precisasse de uma xícara de chá para acordar primeiro. Também nunca foi embora, apesar das ameaças. Sua única negativa era com os pedidos de prece, pois dizia que não rezava para coisa nenhuma. Mesmo assim, de forma misteriosa, os convalescentes melhoravam mais rápido ou tinham uma morte sem sofrimento; os jovens retornavam seguros mesmo quando perseguiam uma caça perigosa ou quando eram pegos por uma tempestade; as colheitas pareciam um pouco mais fartas mesmo quando o clima não estava bom. Então todos os aldeões acreditavam que

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Nárian rezava somente quando ninguém estivesse olhando, sem dar o braço a torcer, e continuavam a solicitar suas preces. Ninguém lhe perguntava mais como chegara ali, como juntara suas coisas ou para quê serviam, pois conheciam as respostas (“Não lhe interessa!!” ou “Para lhe rogar uma praga!!”), nem como aprendera o que sabia. Poucas pessoas tinham interesse em conhecer suas artes, e nenhuma tinha coragem de pedir. Cicatrizes de ferimentos antigos, mãos nodosas de quem trabalhou ou lutou, cabelos escuros que muito aos poucos se rendiam aos outros grisalhos, vigor de jovem, inteligência e rugas da idade, o humor dos mortos: tudo isto era Nárian. E Nárian era parte da aldeia como era a paisagem, com seu riacho próximo, as aves de rapina com ninhos escondidos na rocha das montanhas, as feras que se desviavam da mata bem ao sul. E como todos estes, também causava medo. Também chegaram a lhe perguntar por que não habitava uma casa melhor. Poderiam oferecer-lhe como gratidão pelo que já fizera pela aldeia várias vezes. Mas Nárian pediu apenas que, se quisessem agradecer, dessem-lhe um pouco de sossego e não pisassem mais nas plantas do jardim. Não adiantou insistir muito. Venceu mais de uma década com sua choupana rústica, fazendo apenas ocasionais reparos. Com as próprias mãos fez seus poucos móveis em madeira, palha, pano rústico, junco ou o que mais achasse. Mas quando os mistérios ao seu redor estavam mortos para todas as gerações da vila, algo veio perturbar a antiga rotina. Era hábito que Nárian saísse ocasionalmente em viagens que duravam pou-

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cos dias. Por vezes, entregava remédios necessários na casa de quem precisasse sem dizer uma palavra, com a capa puída agitada pelo vento. Todos sabiam então que viria a partir novamente. Logo a porta da choupana era obstruída com uma velha placa de madeira coberta de símbolos, uma medida para impedir que algum animal invadisse a casa. Nenhum aldeão teria tanta ousadia. Mais de um especulava, normalmente um dos poucos que sabiam ler, que aquelas runas não tinham outra função exceto a de espantar os curiosos. Ninguém nunca teve a bravura para testar. De retorno a essas viagens, Nárian quase nunca trazia qualquer coisa nova consigo. Sua bolsa costumava chegar tão minguada quanto partia, e tão minguada quanto quem lhe carregava. Alguns diziam que tinha uma missão importante a cumprir em outro lugar, outros que possuía distante alguma família. Havia quem achasse que fazia alguma mágica de tempos em tempos para não envelhecer com fraqueza como todos os demais. Mas um dia uma viagem dessas durou um pouco mais do que o habitual, e seu semblante era mais carregado do que as tempestades que coroavam o pico da montanha. Seus olhos brilhavam com algo que ninguém conseguiu interpretar. Preocupação? Medo? Fúria? Mesmo estando presente, a proteção permaneceu sobre a porta da choupana, e de lá não saiu. Por três dias, todos os habitantes aguardaram em expectativa, sem ousar pedir qualquer favor. Chegou então o dia de uma nova partida. E pela primeira vez levava consigo um longo embrulho, preso às costas e envolto em tecido grosso. Os caça-

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dores podiam facilmente reconhecer que ali se escondia uma lâmina. Entre fofocas assombradas e silêncio meditativo, passou-se uma semana. Quando Nárian voltou, boa parte da vila saiu de suas casas para tentar descobrir alguma coisa. Todos estavam em silêncio. Era possível ver que não trazia mais a arma com que partira, mas carregava um novo embrulho nas mãos, que parecia terrivelmente pesado. Carregava-o com o cuidado de quem carrega um bebê, e o esforço de quem leva uma marreta de pedreiro. Novamente, a porta improvisada permaneceu fechada pelo resto do dia. À noite, crianças mais corajosas ousaram se aproximar da choupana, pisando suavemente como gatos sobre o veludo, e retornaram trazendo a mais estranha notícia: havia uma criança com um choro muito estranho lá dentro! O alvoroço foi imediato. A notícia se espalhou como a poeira no vendaval por toda a madrugada, e a manhã encontrou a cidade com muito mais madrugadores do que de costume. E junto com o primeiro raio de sol surgiu Nárian à sua porta, levando muitos objetos em suas costas montanha acima. Retornou. Fez então outra viagem, com enorme peso. E depois outra, e mais outra, e lá se foram todos os seus móveis. A choupana estava já vazia. O chefe do vilarejo foi o primeiro a quebrar o silêncio. “Está nos deixando, Nárian-dor?” Nárian interrompeu-se antes de passar pelo arco da porta adentro. “Se achar que a plataforma mais alta desta face da rocha não é mais parte do vilarejo, então, sim, estou de partida.” Uma breve tosse seca interrompeu as palavras “Mas acho que é uma viagem bastante breve.”

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“E por que está saindo? Nós esgotamos sua paciência, ou abusamos da sua boa vontade?” O senhor insistiu, o lábio pendendo trêmulo sob o bigode grisalho. “Vocês esgotaram minha paciência muito tempo atrás. Mas não é por isso que estou subindo a encosta. Ainda vou ajudá-los, desde que mandem alguém até lá.” “O que é, então?” O senhor piscou seus olhos úmidos e preocupados, hesitante em sua liderança perante uma figura que o superava em cada característica pensável. “Tem algo a ver com... o que você trouxe?” Para a surpresa de todos, a resposta não foi mais carrancuda do que de hábito, mas apenas curta. “Sim.” “E onde vai morar? Não há nada lá em cima.” “Há uma pequena caverna. Ela basta. Já está quase pronta.” “Uma caverna?” a idosa esposa do chefe, segura pela figura pouco imponente de seu companheiro, deixou escapar, surpresa. Lançava olhares preocupados para a pobre choupana e para o rosto endurecido e decidido de Nárian. Era difícil para ela conceber alguém que quisesse viver em um local ainda mais desconfortável que aquele. “Sim, Bretta.” Nárian respondeu. Nunca usava com os chefes os adjetivos de humildade aos líderes, mas ao contrário, todos lhe dirigiam a palavra acrescentando “dor” ao seu nome, o que lhe conferia respeito pela sabedoria. “Uma caverna.” Finalmente cruzando o arco, retornou de lá com a única coisa que restava

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em sua antiga moradia. O pequeno embrulho grunhia, e se agitava, totalmente enrolado em um pano sem tingimento. Uma menina correu, arrastando a irmã mais velha pela mão. Eram Dana e Mada, filhas gentis que Nárian salvara de uma forte febre quando tinham ainda poucos verões de vida. “Podemos vê-lo?” Os olhos enrugados se fecharam um pouco, o corpo permaneceu rígido “Se quiser mesmo vê-lo, vá até lá em cima.” “Lá em cima?” seu pai, um dos poucos pastores da vila, deu um passo adiante, a angústia comprimindo suas feições. “Quer mesmo que minhas meninas subam sozinhas até o patamar da montanha?” O mau humor habitual toldou o olhar de Nárian. “Não me lembro de ter dito para que fossem sozinhas. Leve-as, se quiser. Mas você nunca o verá.” Dana, a caçula, deu mais alguns passos, aproximando-se do embrulho. Como se sentisse sua presença, este se agitou, soltando um gritinho como o de um filhote de cão. “Por favor, só uma olhada nele! Eu não sei se vou ter força para subir até lá!” Nárian estreitou mais uma vez os olhos. “Veja, então. E só apareça se tiver algo mais forte do que seu medo ou sua curiosidade para carregá-la até lá.” Virando-se de costas para a multidão, fez sinal para que a menina ficasse ao seu lado. Apoiou o fardo sobre um joelho dobrado, e abriu uma pequena fresta entre as dobras de tecido. O que estava lá dentro gemeu, subitamente atingido pela luz mais forte.

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Dana encarou com espanto, petrificada, os dois olhos que a encaravam de volta. “Não conte nada a ninguém, ou rogarei uma praga na vila. Irei vê-la queimando lá do alto, rindo como se assistisse a uma corrida de cavalos na Grande Arena.” A menina engoliu em seco, concordando com a cabeça em um movimento muito discreto. “E pense bem se é isso o que quer. Se quer mesmo vê-lo de novo.” E assim, soltando o tecido para cobrir novamente seu grande segredo, Nárian fez sua última escalada rumo à sua nova morada, trazendo nos braços o primeiro ser com que compartilhava sua vida depois de muito, muito tempo. (...) Nárian era quem estava alerta, os sentidos tão agudos quanto os de anos atrás. Percebeu ruídos diferentes, destoantes da natureza. Um rápido tinir metálico, e o som de uma ferradura sobre a rocha. Saindo do vau, e já quase às margens do rio caudaloso, percebeu que tentavam cercá-lo, e a situação era mais preocupante do que tinha desenhado. Não havia fuga possível pela água, pois seriam lançados contra as rochas. Aquele ponto era o único que tinham para fuga, mas também para a emboscada. “Esconda-se entre os juncos e as pedras, Anka, até que eu mande sair.” O pequeno adiantou-se a passos lentos, e parou onde foi ordenado, en-

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curvado sobre a lama no mais absoluto silêncio. Parecia prestes a adormecer, totalmente inconsciente do perigo. Este não demorou muito. “Você fez bem em vir calmamente até nós... como chamam agora? Nárian?” uma voz jovem fez o comentário com escárnio. Logo surgiu de entre os pequenos grupos de árvores três homens montados, um deles acendendo prontamente um archote. Outros dois soldados a pé surgiram do leste, do negrume absoluto por trás de uma pedreira, e um último veio do brejo, as roupas pingando água, de onde mantinha um posto de observação. “Tem mais idade do que imaginei. Esperava um desafio maior quando meu general falou de você... mas talvez não seja seguro subestimar, não é mesmo?” o cavaleiro, presumivelmente o capitão, estava bastante confiante no sucesso de sua missão. Era bastante jovem, o que levava a crer que era excepcionalmente bom, ou muito favorecido por alguém dentro da política de sua região. “Subestimar alguém como eu é a última coisa que alguém com miolos deveria fazer.” Nárian respondeu com sua voz sibilante e perigosa, como uma cobra. “Fazer ameaças contra um grupo de seis homens adultos e fortes também não parece muito sensato...” o capitão provocou. “Você sabe que já afugentei mais de sessenta. Homens de verdade, que já faziam a barba.” Aquilo era incômodo para o capitão, mas ele era bom nesse jogo. “Então brinque conosco.” Seu sorriso brilhou no escuro, vermelho como as chamas. “Podem atacar. Mas não matem.”

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Os três homens desmontados se aproximaram ao mesmo tempo. Dois usavam espadas retas, e o terceiro pequenas adagas nas duas mãos. Moviam-se com leveza pois usavam armaduras leves que cobriam apenas pontos vitais, e tinham o vigor da pouca idade. Mas Nárian tinha experiência, e a vontade de lutar de uma fera acuada. Com um movimento fluido e difícil de prever, lançou-se por baixo do primeiro guerreiro que brandia a espada. Sua mão se enterrou bem na axila, uma parte desprotegida e macia, veloz como o bote de uma serpente. Lá deixou cravada uma lâmina muito pequena e fina. O soldado logo percebeu que o ferimento não era normal, sentindo o veneno irradiar-se da lâmina, alastrando-se como fogo por seu corpo. Não conseguia tirá-la de lá, e cada movimento seu fazia apenas com que se alojasse mais fundo. As ervas não seriam capazes de matar um homem adulto e robusto, mas o guerreiro não mais conseguiria lutar, e seus gritos causaram uma perturbação muito útil para Nárian. Enquanto o outro soldado encarava o colega, e os cavaleiros acalmavam suas montarias, lançou-se em novo ataque, enterrando um prego no braço que segurava a espada. A arma foi largada, mas nem sequer chegou ao solo. A mão de Nárian agarrou-a ainda no ar, e foi usava contra seu antigo dono em uma rápida sucessão de golpes. Um deles atingiu-o na cabeça, atirando longe o elmo, e revelando um rosto surpreso, que logo se endureceu. Também ágil, tentou aparar todos os golpes com as braçadeiras, enquanto tentava sacar discretamente uma outra arma da bainha menor em seu cinturão.

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Percebendo o movimento, Nárian cortou-o, e chutou a arma para dentro do rio. Um golpe cortante passou zunindo ao lado de seu rosto, traçando uma fina linha de sangue em sua orelha esquerda. O soldado com as adagas tinha grande habilidade, e era difícil defender-se de golpes que vinham de ambos os lados. O outro, desarmado, tentava acertar golpes com as mãos e pés, procurando intervir no combate de lâminas. Para evitar que a luta com dois oponentes se prolongasse, Nárian usou suas armas reserva: lançou contra o soldado um chute bem colocado na dobra do joelho. Além da articulação deslocada, o adversário percebeu rapidamente a ferroada. De um rasgo no meio da sola macia despontava outra lâmina venenosa. (...) O ar úmido era fétido e abafado. Como todo o restante do castelo, as celas subterrâneas escavadas no ventre do rochedo foram criadas em um período turbulento de guerra, e o bem-estar dos prisioneiros não era levado em grande consideração. Os corredores lúgubres por onde o ar mal passava, as opressoras paredes de pedra, os ruídos do mar que ecoavam pelo espaço vazio como se uma besta imensa tentasse engolir toda a ilha. As trevas eram perenes, pois a umidade intensa e a falta de ar mais puro não permitiam a queima de tochas por muito tempo.

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Ele estava acorrentado nos pulsos, tornozelos e pescoço, tão junto à parede que não conseguia sequer se sentar. Não lutou contra os guardas que o aprisionavam, o medo dando força às suas mãos já violentas. Ele sabia que aquilo era também uma medida inútil; conseguiria encontrar uma maneira de diminuir seus braços, mãos e pés até que conseguisse se desvencilhar de tudo aquilo, muito antes do amanhecer. Mas não queria. Não tinha forças. O escuro alimentava seu delírio febril, as lembranças e imagens sendo a única luz que agitava aquele mar de breu, uma luz que só ele via. Uma luz sombria. Não havia volta. Tudo se perdera. Ali estava o sangue. Os olhos escuros abertos, esvaziando-se do último fiapo de medo, onde já quase não havia nada. As roupas ornamentadas estavam destruídas. As feridas na pele que se enrugava, tantas que não se podia contar, criando um mosaico macabro moreno, vermelho e negro. Podia ver suas próprias mãos imundas, pegajosas. Acima do rugido das águas e dos ecos fantasmagóricos, ainda podia ouvir os gritos de advertência. De fúria. De medo. De dor. De pavor e acusação. Com os primeiros caíra fora de si, e com os últimos despertara de seu sono intoxicado, somente para descobrir que estava em um pesadelo, pela primeira vez fora do sono. Era impossível compreender tudo o que fora dito, sussurrado, urrado por todos ao seu redor. As vozes pareciam não ter dono, flutuando ao seu redor como fantasmas furiosos.

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“Não pode ter sido ele! Ele jamais faria isso!” “Ele parece ter sido atacado por uma fera. Está totalmente mutilado...” “Um monstro... um monstro...” “Eu sempre disse o que ele era, mas ninguém me deu ouvidos!” “Sinto muito por sua perda, Re’Ut.” “Ele precisa ser executado, e sob tortura, pois seu crime é dos mais graves.” “Ele está com garras, as mãos sujas neste sangue. O que mais pode ser?” “Por que ele faria algo deste tipo agora? Não faz sentido! Nós o conhecemos há anos! Alguém deve estar tentando incriminá-lo! Pode haver um traidor do reino bem no castelo!” “Este reino não executa torturas há anos. Não pretendemos reinaugurar o método agora.” “Cale-se! Sua estupidez não lhe permite ver a verdade! Pare de defendê-lo!” “Basta!” “O quanto precisaremos esperar até que tomemos uma decisão? Vamos esperar outro ataque?” “Ouvi as vozes... realmente aconteceu uma briga entre eles... mas... eu não... esperava...” “Prendam-no em uma das celas do calabouço! Tomarei uma decisão até o amanhecer. Por ora, façamos as honras fúnebres, e restauremos a dignidade de meu irmão.” (...)

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Philippe de Avelar

Do alto de uma nova ruína, procurou ao redor a fonte daquela perturbação. Nada. As dunas se seguiam entre as rochas e pedras esculpidas, mas nenhuma nuvem de poeira se erguia junto ao horizonte. Aquela duna já era tão alta? perguntou a Shankar. Não. Ela parece ter se erguido. Isso é possível? Não pelo vento. Teria atingido a todas, e precisaria ser mais forte para que fizesse tão rápido. Então, como? “Se houver algo por baixo...” foi a resposta, murmurada em voz alta. Mas não faria sentido. E, no entanto, lá estava a duna, enorme. Movendose lentamente. Ele saltou e correu. Correu o máximo que pôde. À sua frente, ainda podia ver os pequenos animais que também fugiam, à distância, desviando-se das pedras. O terreno descia em inclinação suave, seguindo por uma ampla planície antes de começar uma nova subida. Naquele pedaço, as pedras eram menores, como escombros atingidos por algo muito violento, já em grande quantidade. A vibração no solo aumentava mais e mais, enquanto a duna se aproximava. Ankalädon estava já no meio da subida, enquanto aquelas que pareciam raposas alcançavam o topo, e paravam, guinchando, confusas. Aquilo era um mau sinal. O bando decidiu seguir pela direita, desaparecendo pelo terreno, e por

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instinto, ele também se desviou um pouco para aquela direção, subindo a encosta na diagonal, agora um pouco mais íngreme. Sem diminuir um instante, saltava obstáculos à sua frente, enquanto seus objetos sacolejavam atingindo suas costelas. Tinha a impressão de ter perdido mais um cantil, mas não estava disposto a conferir a perda agora. Um pavor possuíra seu corpo, tomando-o por inteiro e deixando apenas a vontade de sobreviver; era um terror como nunca sentira, ancestral e sem medida. Alcançou o topo em uma derrapada, e precisou cravar todos os dedos no solo para conseguir parar. Ou cairia no abismo. O solo abria-se em um penhasco monstruoso, como a encosta de uma montanha. Do outro lado, uma gigantesca porção de terra se erguia um pouco mais baixa do que o local onde estava, como uma ilha. Levaria dias para descer e escalar o outro lado. Seus olhos alcançaram o grupo de animais à sua frente, que procurava uma encosta um pouco menos íngreme. Nas rochas muito abaixo, podia ver o corpo de uma delas, que decerto escorregara e não sobrevivera à queda. Um pouco mais adiante estava a maior construção de pedra que vira até então. O que restara de uma ponte, pontas incrustadas na terra que faziam um gracioso arco, mas sem a parte central que se precipitava sobre o abismo. Começou a correr para lá. A distância é grande demais para saltar. Mas ainda é menor do que todo o resto. O que pretende fazer?!

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Sobreviver. Seus pensamentos e os de Shankar disparavam juntos, e era difícil distribuir as vozes. Mas ambos foram silenciados por um ruído grotesco, e sua cabeça involuntariamente girou para a origem do som. O que quer que os perseguia estava cada vez mais próximo, já se desviando para onde estavam. Tudo o que se via era a ondulação na areia e na própria rocha, que rachava sobre a sua forma tomo um torrão de terra, em uma onda titânica. Enquanto sua parte da frente já alcançava a primeira parte da subida, seu fim ainda não cruzara por completo a descida anterior, e seu corpo cortava toda a planície, como uma veia sob a pele do deserto. Nada daquele tamanho poderia existir. Muito menor estar vivo.

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PRÓLOGO O sangue manchava os papéis na mesa. Johnny estava tentando estancar os ferimentos da melhor forma que podia, mas eram cortes demais pra recursos de menos. Além disso, sua mão estava inchada e doendo e ele estava trabalhando com um olho só, já que o esquerdo estava roxo e quase fechado. Por mais tralha que tivesse em seu escritório, nenhuma delas era um estojo de primeiros socorros. O que já dizia muito sobre a qualidade de seus serviços como Detetive Particular. Quando finalmente arranjou um caso para trabalhar, não demorou nem dois dias para ser posto fora de serviço. Seu “trabalho” estava ali naquele momento, inclusive. Ela poderia muito bem ajudá-lo a se cuidar, mas não parecia considerar essa hipótese nem um pouco. Apenas o observava, sentada relaxada na cadeira dos clientes. Suas longas pernas, descobertas e cruzadas, o tiraram do mundo de dor por alguns segundos. Mas as dores voltaram, rápidas como sempre. — Precisa de ajuda, querido? — Ela disse, ronronando. — Não, srta. Morton. — Ele respondeu com a voz carregada de sarcasmo. — Fique à vontade aí enquanto eu sangro até a morte. — Nossa, mas que exagero. Eles nem... Johnny bufou e se levantou, voltando ao banheiro para pegar mais papel higiênico, se esquecendo que já tinha usado as últimas folhas há menos de cinco minutos ao tentar parar o sangramento. Suspirou e lavou o rosto mais uma

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vez, gemendo de dor quando a água fria acertou os cortes. Finalmente juntou coragem para se olhar no espelho. E viu exatamente o que esperava: um monte de sangue e carne amassada, com um pouco de rosto por baixo. Voltou para sua mesa, se sentou na poltrona e tentou relaxar. Ainda estava agitado com o encontro. — Então, já pode me explicar o que aconteceu, senhor detetive? — O que aconteceu, senhorita? — Ele respondeu, ainda de olhos fechados. — Seu querido amante aconteceu. Ele e seus delicados funcionários. — Mas por que eles fizeram isso? Johnny abriu o único olho que conseguiu para encará-la. — Como assim, por que? Por sua causa, claro. — Mas eles sabem que eu estou aqui? — Ela começou a se levantar. — Eles descobriram tudo? — Se acalma. Eles não vão vir te buscar aqui. — Não? — Não. Eu vou te levar lá. Ela se levantou, deixando o grosso casaco de pele em cima da cadeira. Deu a volta na mesa e parou de frente para Johnny, abaixando-se e apoiando as mãos nos braços da cadeira. Ficaram com o rosto a menos de dez centímetros. Johnny tinha que admitir que ela era corajosa de encarar a bagunça na sua cara tão de perto. — Você... Você não me levaria de volta pra ele, não é, Johnny? Não depois de tudo que eu já disse que passei nas mãos dele.

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— Srta. Morton... — Eu já falei pra você me chamar pelo meu nome. — Ela disse, se erguendo e sentando na mesa, cruzando as pernas muito próximo a ele. — Tudo bem. Carrie, então. Você está vendo, tão bem quanto eu, que não estou em posição de negociar nada. Olha meu estado. Vou te levar pro seu querido urso, você vai voltar a ser sua doce amante e eu vou continuar vivo. Parece um bom negócio pra mim. — Você está falando sério? — Claro que est... O tapa ecoou na sala e mais outras dez vezes dentro da cabeça de Johnny. Ele escorregou da cadeira de tanta dor, sem saber onde estava ou quem era, enxergando tudo preto. Quando começou a recuperar a visão, estava deitado no chão, vendo por baixo da mesa Carrie abrir a porta pra sair. — Ei! — Ele disse, sem conseguir completar a frase de tanta dor que sentia. — Não me procure mais, senhor Guí. Nossos negócios estão encerrados. — Espera aí... Eu tenho... — Ele disse, tentando sem sucesso se levantar do chão. — Que te levar... De volta... — Não se preocupe. — Ela respondeu, azeda. — Eu voltarei sozinha. Não quero que você morra por minha causa. Johnny se largou de volta no chão, aliviado. Talvez mais tarde se permitisse sentir culpa, ou talvez duvidar que ela voltaria mesmo pro urso. Passaramse alguns segundos e ele não a ouviu bater a porta ou seus passos no corredor. Quando olhou de volta para a porta, ela ainda estava lá, segurando a maçaneta com tanta força que parecia que iria arrancá-la.

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— Eu desprezo você, Johnny Guí. — Ela disse, com a voz tremendo de raiva. — É... É Guy. Se pronuncia... — Pro inferno com seu nome! Eu estou muito admirada que alguém covarde como você possa ter criado alguém tão corajoso! — Criado... Do que você...? — Queria que Jack Blue estivesse aqui e que você morresse no lugar dele! A força com que ela bateu a porta fez Johnny se encolher e retesar o rosto, fazendo tudo girar de novo por causa da dor. Quando ele se recuperou, ela já tinha partido faz tempo. Já deveria até ter pego o táxi e voltado para a boate de Badbee. Johnny fez um esforço extra pra se levantar dessa vez. Segurou na mesa e se puxou pra cima. Foi até o armário de vassouras, se apoiando nos móveis e nas paredes. Lá não havia vassoura alguma, mas várias caixas com suas coisas. Todas, caixas e coisas, juntavam poeira e mofo. Com dificuldade, Johnny retirou as caixas de “PANELAS” e “PRATOS” da frente, depois tentou levantar a que estava escrito “LIVROS”. Desistiu na metade da primeira tentativa, diante do peso. Arrastou-a pra fora, ainda gemendo. A caixa com “ROUPAS DE VERÃO” foi a última a sair, antes que ele encontrasse o que procurava. Era uma grande caixa, mas a mais leve. Estava escrito “ROSAS” no lado. Lá dentro, um monte de papéis cheios de anotações confusas. Johnny sempre se perdia quando tentava voltar às suas anotações depois de um tempo. Mas quando as escreveu, de cima de um beliche e usando a luz que entrava pela janela, ele conseguia entendê-las. Bons tempos.

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Soprou a poeira de um maço de folhas grampeadas, tomando cuidado para não manchá-las de sangue. Na primeira folha estava escrito, em letras grandes, “ROSAS E BLUES”. Era seu livro. Aquele que Johnny nunca teve coragem de deixar em nenhuma editora. Contava a história de como um detetive particular salvava uma sedutora mulher das garras de seu marido mafioso. Johnny se levantou e voltou à mesa, pegando a garrafa de uísque dentro do arquivo de metal, onde deveriam estar guardadas as anotações e fotografias de seus casos. Sentou-se largando o corpo e gemendo mais. Aqueles capangas batiam forte. Tomou um longo gole, direto do gargalo. Talvez estivesse buscando coragem ou simplesmente adiando o momento que deveria encarar aquela situação. Suspirou, sabendo que só estava piorando as coisas pra si mesmo. Virou a primeira página e começou a reler a história que ele mesmo criou. A história do detetive particular chamado Jack Blue. CAPÍTULO 1 Johnny Guy sempre foi fã de filmes noir. Quando ainda era um adolescente, ele perdeu uma aposta e teve que assistir a Strangers on a Train, de 1951. Era para ser uma punição, quase duas horas naquele ritmo lento dos filmes de antigamente. Provavelmente, seus colegas pensaram, a trama seria fraca e a atuação, pobre.

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Mas eles estavam errados. Johnny não se sentiu punido. Muito pelo contrário. Nunca antes tinha visto um filme tão intenso, que mexesse tanto com ele. Assistiu até os créditos, para aprender o nome do diretor que tinha lhe proporcionado aquilo. Alfred Hitchcock era seu nome. Depois daquele dia, Johnny era frequentador assíduo da seção de clássicos na locadora. Ia lá todos os dias, só para ler as sinopses e tentar decidir qual filme alugaria no sábado, já que seus pais insistiam que ele tinha que se concentrar na escola durante a semana. Assistiu muitos outros, experimentou outros tantos diretores, mas ainda mantinha Strangers como seu favorito, bem como Hitchcock. Infelizmente, nenhum de seus amigos se interessava por filmes em preto e branco, então Johnny não tinha com quem conversar. Quando acabaram os filmes do gênero na locadora — e tendo falhado em convencer seus pais a deixá-lo alugar filmes repetidos —, Johnny começou a pensar como ele teria escrito seus filmes prediletos. Os anos foram passando e um personagem foi tomando forma em sua mente. Johnny se formou no colégio e, ao invés de tentar alguma universidade, se alistou feliz para cumprir seu ano obrigatório nas forças armadas. Aprendeu a atirar e rastejar no chão para evitar as balas. Aprendeu a sobreviver na floresta e resgatar pessoas perdidas. Aprendeu sobre disciplina, companheirismo e coragem. E também a não pensar no inimigo como outro ser humano, com seus próprios sonhos, amigos e família. Aprendeu a ser um soldado.

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Seu período obrigatório estava acabando e ele ainda não tinha se decidido se continuaria servindo ou se sairia em busca de seu sonho. Foi conversando com seu amigo James que tomou sua decisão. — Ei, Johnny. Tá escrevendo de novo? — É... Tô sim. James dormia no beliche de baixo. Essa era a disposição de suas camas desde que tinham entrado juntos, como recrutas, quase um ano atrás. Era tarde da noite e Johnny lutava pra continuar acordado depois de um dia de exercícios, treinamentos e tarefas. Usava a luz do poste do lado de fora pra enxergar suas palavras no papel. — Você não se cansa? — Eu gosto. E fala mais baixo, James. Senão são outros dois dias de faxina de banheiro pra gente. O general anda nervoso essa semana. — Ah, é verdade. — James abaixou a voz. — Mas você tá escrevendo tipo um livro? — É. O que mais seria? — Não sei, seu viado. Podia ser “Querido diário, hoje fiquei com tesão no James na hora do banho”. — Cala a boca, vocês dois! — Alguém gritou do outro lado do dormitório. James ainda estava rindo abafado no travesseiro. Johnny acabou rindo também, seus olhos quase fechando. Desistiu de continuar. Fechou o caderno de capa mole, o décimo que ele estava enchendo, e o guardou debaixo do travesseiro. Estava quase afundando no sono quando James cochichou de novo.

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— Você tá escrevendo sobre o quê? — Hm... É um detetive que precisa salvar uma mulher. — Ah. E por que sobre isso? — Sei lá. Eu gosto desse tipo de história. Quando eu era mais novo, eu queria ser detetive particular. — Haha, que sonho besta. — É... Eu entrei no exército só pra aprender a atirar. — Nossa, que idiota. Por que você não fez um curso? — Eu não sabia que tinha disso. — Mas tem. Os dois ficaram em silêncio de novo. Johnny chegou a cochilar quando ouviu a voz de James de novo. — Você desistiu de ser detetive? — Hmm... Desisti. Isso não dá futuro. — Por que não? — Porque eu não posso viver disso, ué. — Mas por que não? — Porque... Hã... — Mas que caralho! Cala a boca, inferno! Os dois ficaram em silêncio de novo, mas Johnny não conseguiu mais dormir. Ainda estava sem sono quando começou a ouvir os roncos na cama debaixo. Passou aquela noite em claro. Não tinha reposta pra pergunta de James.

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James morreu no dia seguinte. Garry era só um recruta, mas era o melhor atirador da corporação. Contudo, era terrivelmente distraído. Acabou levando munição real para um treinamento onde deveriam usar apenas balas de borracha. “Trágico, mas acontece.”, disse o general. “Adiante com o treinamento.” Johnny acordou todo dolorido. Mais dolorido que a noite anterior. O manuscrito estava caído no chão. Devia ter escorregado enquanto ele dormia. Se abaixou pra pegá-lo e se sentiu zonzo. Ainda assim, fez um esforço extra e voltou a se encostar na cadeira com o livro nas mãos. Teve sorte, não estava manchado de sangue. Tinha parado em um trecho interessante. Jack Blue, Detetive Particular, tinha acabado de descobrir que o marido de Rose Hunt estava envolvido com mais que tráfico de drogas em sua boate. Johnny respirou fundo e olhou pela janela. Através da persianas viu que o dia já vinha chegando ao fim. Tinha dormido o dia inteiro. Tempo mais que suficiente pra Carrie ter voltado pros braços de Badbee. Que ela encontrasse perdão naqueles braços, conforme o urso tinha prometido a ele. Mesmo depois de tomar um banho e tentar, mais uma vez, fazer uma faxina no escritório, Johnny não conseguia parar de pensar na srta. Morton. Desistiu de organizar as coisas em menos de cinco minutos - um novo recorde - e checou sua carteira. Menos de quinze.

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Iria ficar devendo a Jack de novo. # — Nem pensar, seu merda. Ela era sempre gentil. Johnny suspirou, enquanto Jack dava a volta no balcão pra ir limpar as mesas vazias. Ele girou no banquinho para dar uma olhada no bar. Ainda estava atraindo alguns olhares disfarçados com seu rosto destruído, mas o choque inicial já estava passando pras pessoas. Era uma quinta feira, então o movimento não estava tão forte assim. Alguns grupos de colegas de trabalho fazendo um happy hour, dois ou três casais e mais ninguém. Na outra ponta do balcão, um senhor de terno tinha tirado o casaco e estava no sétimo copo de gim. A barba por fazer e a camisa social pra fora da calça davam dicas dos motivos de tanta bebedeira. Johnny nem precisava ter visto seus olhos caídos e que ele respirava fundo com a boca tremendo pra saber o que tinha acontecido. Jack vinha voltando, com algumas long necks equilibradas na bandeja. — Ei, Ja... — Nem vem, Johnny. Você já tá me devendo muito mais do que vai poder pagar. — Tá, mas e seu quitar quinze pratas da minha dívida? Isso abre quinze de crédito, certo?

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— Isso não faz sentido nenhum. — Mas ela tinha parado de frente pra ele, debruçada no balcão. — Você acha que vai conseguir me enrolar toda vez? — O que é isso, Jack. Eu nunca te enrolo. — Ele disse, deslizando as notas no balcão enquanto falava. — Eu vou fazer o seguinte. — Ela falou, com um sorriso de canto nos lábios cheios. — Eu vou pegar esse dinheiro e não vou te expulsar do bar na porrada hoje. Oferta do dia, se você quiser chamar assim. Johnny deixou as notas em cima do balcão quando se debruçou também, se aproximando dela. — Mas, Jack. — Sussurrou. — Hoje eu quero fazer uma boa ação. Quero pagar minha bebida e a do camarada ali. — Não se mete, Johnny. — Ela disse, ficando séria de repente. Nem tocou no dinheiro, mas se abaixou e pegou uma garrafa de uísque. — Toma, uma dose. E vai embora. lá.

Johnny pegou o copo, sem responder e se levantou. As notas continuaram — Ei, amigo. Quer companhia pra beber? O homem mal levantou os olhos pra responder.

— Claro. Mas só se sua vida for tão merda quanto a minha. — O que é isso, amigo. — Johnny disse, se sentando no banco ao lado dele. — Olha pra minha cara. Você acha que pode ganhar de mim? — Hehe. — Foi uma risada triste. — As porradas que deram em mim não

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foram por fora. — Ah. Se ela te faz ficar assim, com certeza ela não vale que você fique assim, não é isso que eles dizem? — Heh, quem diz? E como você sabe que meu problema é com mulher? — Com o que mais seria? Existe algum problema nesse mundo que não comece e termine com uma mulher? O homem suspirou e emborcou o copo de uísque. Jogou uma nota de cinquenta no balcão e se levantou, pegando seu casaco. — Toma uma na minha conta. E saiu do bar, ombros e cabeça baixa. Johnny ficou olhando-o partir, sem falar nada. Virou sua própria bebida. ele.

— Era isso que você queria? — Jack perguntou, enchendo outro copo pra

— O quê? — Você é uma serpente mesmo, Guy. — Não sei do que você está falando. — Ah não? Então por que você veio falar com o coitado? — Bom, eu realmente esperava que ele fosse me pagar uma bebida. Mas eu também esperava que ele fosse dizer algo do tipo “Tenho certeza que minha mulher tá me traindo, mas não tenho como provar.” Aí eu ofereceria meus serviços pra ele e conseguiria pagar o aluguel e poderia tentar pagar minha conta aqui. Aí, quem sabe, você aceitava meu convite pra gente sair. — Você vive no seu próprio mundinho mesmo né, Johnny? — Ela foi rindo e saindo para servir os outros clientes.

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Johnny olhou pro fundo do seu copo vazio e o trocou pelo outro cheio. Seu reflexo dourado ali não parecia estar machucado. Ele suspirou, imaginando como seria realmente viver no seu próprio mundinho. Seu escritório estaria limpo, pra começar. O livro publicado, talvez. Mas sua principal fonte de renda seriam casos a resolver. Infidelidade, desaparecimentos, essas coisas. Talvez, de vez em quando, alguma mulher fatal aparecesse pedindo sua ajuda. Como, hã... ele era péssimo com nomes. Como a personagem de Kim Basinger, em Cool World. É, essa comparação serve. “Ou como Carrie Morton, Johnny? Que tal ela?”, perguntou a cruel vozinha no fundo de sua cabeça. Ele não estava pronto pra lidar com isso agora. Deixou a voz sem resposta, virando a bebida em dois goles. Fechou o olho e sentiu-a descer ardendo. Quando abriu de novo, lá estava Jack o encarando, com um estranho sorriso no rosto. Agora, parando para reparar, ele notou que ela tinha raspado as laterais do cabelo. Johnny ficou espantado por não ter reparado nisso logo que chegou. — Que foi, Jack? — Nada, seu imbecil. — Você mudou o cabelo. — Nossa, como você ainda está sem trabalho? Johnny Holmes, você deveria se chamar. — Não enche. — Ele riu. — Por que isso?

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— Vou finalmente fazer as tatuagens que eu queria. Johnny não respondeu de imediato. Ela já tinha tatuagens o suficiente em sua opinião. O braço esquerdo não tinha mais nenhum espaço e, pelo que ele conseguia ver nos decotes que ela usava, nem os seios foram poupados. E agora ela estava falando em... — Você vai tatuar a cabeça?! — Haha, vou! Sempre quis! Ele ficou de boca aberta, sem fala. Se tivesse recuperado a fala, porém, não sabia se teria algo a dizer. — Quer ir comigo? Eu saio daqui a pouco. Agora, na verdade. Johnny aceitou meio sem saber com o que estava concordando. Ainda estava chocado demais. # O pequeno estúdio de tatuagem estava impregnado com aquele cheiro característico de tinta. Enquanto Jack terminava de combinar os preços, Johnny estava andando com as mãos nos bolsos, olhando as amostras e fotografias de exemplos nas paredes. O tatuador era mal encarado, mas parecia muito capaz. — Ei, Johnny. Vem.

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Jack estava chamando-o da porta da salinha onde seria feita a arte. Ela era muito bonita, sorrindo assim animada. E quando não o estava xingando, também. — Eu vou ficar aí dentro com vocês? Não vou atrapalhar? — Que nada, cara. — O tatuador respondeu, com uma voz arrastada e tranquila que não dificultava adivinhar qual era seu hobby. — É bom que você distrai ela. Na cabeça dói um pouco. — Porra, imagino. Tem certeza disso, Jack? — Cala a boca, Johnny! — Ela disse animada, se sentando na cadeira. — Vai ficar legal! — O que você vai fazer? — Ah, não conto! Haha. Johnny teve de rir daquela alegria toda. Ela não parava de rir, enquanto o tatuador preparava suas agulhas e tintas. E continuou rindo, mesmo enquanto chorava de dor e xingava quando ele começou. Menos de três horas depois, eles estavam saindo do estúdio de tatuagem. — Runas. — Johnny riu pelo nariz. — Sua nerd. — Cala a boca, você nem sabe do que é. — Ela deu um soco no seu braço. Johnny engoliu um gemido. Cacete, ela acertou exatamente em cima de onde os capangas tinham acertado no dia anterior. — Claro que sei. É de Senhor dos Anéis. — Haha! Você é um nerdão também! Ei... — Ela parou de rir quando viu a expressão séria no rosto dele. — Que foi?

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— Nada. Eu só lembrei de repente daquele rolo que eu te falei. — Só que você não me falou nada, sua besta. — Ah, esquece isso. — Ele forçou um sorriso. — Temos que celebrar sua tatuagem! Vamos beber? — Nossa, mata esse sorriso na sua cara que tá assustador. Vamos lá pra casa, você me conta dessa merda aí e a gente comemora. Você não tem dinheiro pra me pagar nada mesmo. — Ué? — Eu sempre comemorei minhas tatuagens transando. Você vai servir essa noite. Johnny ficou um pouco pra trás, sem reação. — ... Oi? # A manhã chegou e Johnny estava mais dolorido ainda. Jack conseguiu ser mais bruta que os capangas de Badbee. Badbee. O Urso. Johnny não conseguia esquecer esse rolo todo e sabia que não ia conseguir tão cedo. Se levantou e se vestiu em silêncio pra não acordar Jack. Deu uma última olhada na garota, nua na cama. Ela realmente tinha tatuado os seios. Devia doer. Ela era muito mais corajosa que ele. Não foi por acaso que Johnny a homenageou em seu livro. Roubaria um pouco dessa coragem hoje. Resolveria essa merda toda. <<<<>>>>

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Riscos na parede. Muitos riscos e rabiscos, nomes, datas, outros nomes, xingos, ofertas de sexo e declarações de amor. O quão deprimente uma prisão podia ser? Para o Cara Novo, deprimente o suficiente. Aquele não era o seu lugar, seu ambiente, e duvidava que se sentiria em casa depois das primeiras horas como o policial havia dito. “Ou da primeira cagada”, ele dissera depois, rindo e engasgando, deixando a saliva escorrer pelo seu queixo. Como poderia? E tinha o pior, e o clichê. Era inocente. Ou pelo menos insano o suficiente pra não poder ser considerado culpado. Aquela cadeia pequena da delegacia era o primeiro passo, logo viriam os estágios seguintes, os tribunais, sua imagem jogada na sarjeta pra todo mundo ver, o assassino, o monstro, o sem coração. E o que pensariam da sua alegação de insanidade, então? “Acha que vai enganar a gente”, “quer fugir da pena, o merda”. O Cara Novo se pegou pensando em como era difícil ser criminalmente insano de verdade. O guarda gordo e careca bateu nas barras com o cassetete. “A campainha”, o Cara Novo pensou, “A minha nova campainha”. —A gente vai te mudar, celebridade — Disse. O Cara Novo se levantou sem dizer nada e se aproximou das grades, pronto pra sair. O guarda olhou pra ele e deu uma risadinha seca. — Lá pra trás. Vai logo, celebridade. Tá preparando o rabo? Porque ‘cê vai tomar no cu como nunca tomou na vida. As grades se abriram e o guarda gordo pôs a mão no coldre do revólver, chamando o Cara Novo com a outra enquanto sorria. Parecia estar feliz só por saber que a justiça seria feita para um rico e adorado. “Pela primeira vez”, como diria. E o Cara Novo, já com os escrúpulos quebrados, nutriu por um momento o desejo de usar dinheiro pra escapar. Quis ser corrupto, abraçar a corrupção, beijá-la, nadar nos seus lagos, qualquer coisa que pudesse lhe dar a liberdade de novo. Os escrúpulos podiam ir à merda. — Para aí. Se andar eu te desço o pau. Mas se quiser, fica a vontade, eu tô

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só esperando um motivo. O Cara Novo abaixou a cabeça e parou. Estavam na porta de outra cela, mas essa não estava vazia. Um homem com cabelos desgrenhados e barba grisalha estava lá, com um jaquetão do exército e calças jeans rasgadas, com a cara que você espera que o diabo tenha. O cheiro de pinga era forte até dali do corredor, e a privada estava coberta de vômito. O guarda deu uma risadinha, abriu as grades e o empurrou pra dentro. — Tá vindo uma figura aí que a gente conhece, não vou colocar ele junto com o Tio. Fica com ele pra você. Não deixa ele te morder que ele tem AIDS. Não deixa ele te comer também. O guarda fechou a porta enquanto ria com vontade, seu riso agudo, de moleque molenga, ecoava nos corredores da cadeia da delegacia sem mais ninguém pra ouvir além dos três. O homem desgrenhado parecia um mendigo, com o cabelo longo preso num coque mal feito e com a barba comprida, cheia de restos do que com sorte seria comida, chegando até o pescoço. Estava em pé no canto oposto da cela, olhando para o Cara Novo com um rosto grave e atormentado. As rugas eram estradas percorrendo um deserto moreno cheio de sulcos e montanhas quebradas, e seus olhos eram penetrantes o suficiente para ver a alma de qualquer um. Quantos dias ficaria ali com aquele homem? Se surpreendeu com a resposta que pensou. “Menos de um”. — Tá aqui por quê?—Disse Tio. — Eu sou inocente. — Vá a merda. — É verdade! — Respondeu o Cara Novo — Eu juro por Deus que é! Eu… É uma história tão longa, puta que pariu. Eu… Eu nem sei como… Merda, eu sou inocente. — Vá a merda. Se fosse inocente não estava aqui. O homem não mexeu um músculo durante a conversa. Na verdade, não

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parecia nem estar mexendo a boca pra falar qualquer coisa. O Cara Novo não soube de onde tirou a coragem pra perguntar, mas antes de que pudesse se refrear e parar o que seria uma coisa não muito esperta de se fazer, puxou conversa. —E você? Tá aqui por quê? — Eu não sei. Eu realmente não faço a mínima ideia. E as coisas começaram a perder o sentido ali. Tio apertou as mãos com força e abaixou o rosto, e quando o levantou de novo, estava chorando. — Eu não faço a mínima ideia! Sua boca estava retorcida e ele babava, e o Cara Novo foi indo para perto das barras, fugindo do seu avanço. Tinha as mãos estendidas com as palmas pra cima, como se pedisse por ajuda. E seu rosto… “Deus, o rosto”, pensou, enquanto ia para trás. Aquele era o rosto de uma pessoa criminalmente insana de verdade. “Veja seus colegas, celebridade”, o guarda gordo gargalhava enquanto gritava, dentro da sua cabeça, “É assim que eles são”. — Você precisa me contar — Tio continuava avançando — Você tem que me contar! Quem sou eu? O que foi que eu fiz? Fechou os olhos. Criminalmente insano, celebridade. É isso aí. *** Nicholas Livre fechou o caderno. Deus, aquilo estava mesmo indo mal. O seu toque estava se perdendo, o seu jeito, o seu estilo, como Austin Powers chamava? O seu mojoestava indo embora. O que podia fazer? Estava arruinando tudo o que tocava enquanto não conseguia criar nada de novo que valesse a pena mostrar pra alguém. Era seu fim. E ele sabia que não era. — Isso aqui está ótimo. — Disse Lua — O que você quer tirar? — O que eu quero tirar? — Ele respondeu — Eu não quero ficar com nada!

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— E lá vamos nós. — Luana, pelo amor de Deus. Você não consegue identificar a merda quando bota o olho nela? — Você deve ser a única pessoa que eu conheço que me chama de Luana. E isso daí não é merda. — Eu tô sentindo o cheiro de longe. Bosta pura. O garçom chegou com os sanduíches e os deixou com desleixo em cima da mesa, olhando feio para Nicholas. Pegou a comanda ríspido e rabiscou qualquer coisa enquanto Lua tapava a boca pra não rir. — Escuta, amigo — Disse Nicholas — Eu tava falando da minha merda aqui. O garçom parou de escrever e ficou olhando nos olhos de Nicholas, sem nenhuma reação. Lua deixou um “HA!” escapar, e tapou a boca de novo. — Não, escuta, eu tava conversando com ela aqui, não tava falando de você nem dos lanches, era do meu trabalho aqui que tá uma merda. Eu como aqui sempre, adoro vocês. Eu só… Eu só tava falando do meu trabalho, foi ele que ficou uma bela merda e tudo mais. Eu acho que eu deveria parar de falar essa palavra agora. Desculpa. O garçom deixou a comanda na mesa e saiu andando, com a mesma expressão que tinha quando chegou. Se isso era bom ou ruim, ninguém poderia saber. O que Nicholas sabia com certeza era que não comeria mais ali. —Isso foi muito ruim? - Nicholas perguntou —Numa escala de zero a dez. — Vinte e sete — Ela disse — Pra ficar junto com aquele povo todo que morreu. Deus, Nico, você tem que trabalhar esse diálogo! Ele mordeu o sanduíche enquanto faziauma careta para a mulher. Ela era linda, realmente linda demais. Cabelos castanhos da cor das nozes novas e de mel, a pele branca e um rosto que parecia ter sido feito anatomicamente perfeito para sorrir. Quando ela sorria todo mundo sorria junto, era o seu superpo-

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der fantástico. Nicholas parecia querer abraçar o máximo possível do estereótipo, barba por fazer, cabelo curto, e as roupas estranhas que todos os escritores parecem achar que só são escritores de verdade quando as usam. Ele tinha uma bolsa lateral clara, também, porque é claro que ele tinha, e seus óculos eram redondos, estilo Harry Potter. Ele dizia que não, que eram estilo Matt Smith, mas ninguém nunca entendia muito bem. Não tinham seus olhos para detalhes, ele gostava de imaginar, se cobrindo com a sua capa de amor-próprio. Merecia um pouco, não merecia? — Você faz isso toda vez, sabia? — Disse Lua, bebendo um gole de coca Escreve uma coisa realmente genial e diz que ficou uma merda e mimimi. — Eu não preciso me acomodar com o medíocre, e isso daí nem se qualifica pra isso. Tá a maior bosta. — Eu sei, eu sei. Mas você não precisa ficar se quebrando pra achar a próxima joia em toda coisa que escreve. Você sabe disso melhor do que ninguém. — Então — Ele sorriu — Você está dizendo que é medíocre. — Eu não disse isso. Eles se encararam por um segundo e não precisavam de mais nada. Era a sincronia perfeita acontecendo bem ali, nas mesas de plástico do lanchinho, o perfeito entendimento bem na frente de todo mundo, e ninguém ligava a mínima, como tem que ser na cidade. — Cara, como eu odeio você —Ela disse — Você é o diabo em forma de gente. Isso aqui tá mesmo bom pra cacete. Terminaram de comer e pediram a conta. Ninguém veio levar, e Nicholas teve que ir até o caixa. A mulher o atendeu com um mau humor terrível, e ele fechou a boca o máximo que pôde, sem nem respirar. Tinha medo de começar a pedir desculpas e acabar a noite tendo que explicar seus problemas para a polícia. “Os besteiróis”, pensou. Aqueles filmes que andava vendo estavam entrando na sua cabeça. O próximo passo, ele sabia, era começar a sorrir pro es-

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pelho pra dar um bom clichê de homem bem sucedido pra câmera. Entrou no carro e sentou no banco do passageiro. Lua entrou e ligou o veículo, enquanto Nicholas permanecia completamente calado. Ela acelerou. — Que foi?—Disse Lua. — Ah, nada, não. — Às vezes eu queria saber o que passa nessa cabeça sua. — É uma cabeça como a de qualquer outra pessoa, Luana. Eu sou pessoa também, né. — Você fica aí parado às vezes. — Ela disse — Parece que se desliga da gente e some de vista do mundo. — Eu só fico pensando aqui. Eu acho que a minha cabeça é mais devagar que a de todo mundo. Sinal vermelho. Uma chuva fraquinha começou a cair e Lua fechou seu vidro. Estava frio e o carro tinha ar condicionado, e Nicholas não conseguia entender porque ela ficava com a porcaria do vidro aberto daquele jeito. Ele detestava o vento no rosto e o barulho que ele fazia. Ela olhou nos seus olhos mais uma vez. — O que foi, Nico? De verdade. — Te falei que não é nada, ué. — Nico - Ela disse — Para. — É o aniversário do meu pai — Ele disse — É o aniversário do meu pai. No carro escuro, suas mãos se encontraram. Nicholas abaixou a cabeça e Lua apertou com mais força. Muita coisa pra falar, pouca necessidade. Foram pra casa. Tormentos. Um mar, um navio e uma tripulação de esqueletos. De alguma forma, Nicholas sabia que estava sonhando, o que pra ele, pelo menos no sonho, era ruim. A surpresa ia embora, a graça estava em experimentar tudo achando que o perigo é real, que a morte pode mesmo acontecer e que as on-

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das não iam começar a ter o barulho de um despertador a qualquer momento. Onde ele tinha pego o conceito de tripulação de esqueletos? Vira em algum filme ou livro, com certeza, mas a metáfora não estava funcionando muito bem. O navio tombava de um lado para o outro, e os esqueletos gritavam e se desesperavam com cada chacoalhada, enquanto Nicholas permanecia impassível. Era um sonho. Os esqueletos foram começando a desaparecer, destruídos pela força das ondas que os deixavam em pedaços. Uma onda forte demais acertou o navio, e ele começou a tombar para o lado de um jeito que não parecia muito bom para os olhos não treinados de Nicholas. Ele era um marinheiro no sonho, tudo bem, mas agora sabia que estava sonhando. Era só ele mesmo no meio de uma confusão dos infernos. O navio virou. Todo o inferno do topo, os raios e trovões, as ondas e as nuvens negras tapando tudo, deram lugar à calma do oceano. A calma da morte, que o carregava para baixo, sempre para o fundo, para sufocá-lo no seu abraço gelado. Os esqueletos também estavam lá, rindo e conversando entre si em palavras estranhas que Nicholas não entendia, como se fossem atores que tinham acabado de encenar seus papéis e agora relaxavam nos camarins. As ondas explodiam lá em cima, mas ele não escutava nada além da música lá em baixo. Estava perfeitamente imóvel, e percebia que não precisava respirar para sobreviver. Estava muito bem sem ar, obrigado. E o mar falou com ele. — Cuidado com a arma, com a construção e com o mito. A primeira mata, a segunda faz prisões e a terceira te prende, te mata e você ainda acha bom. E tudo ficou vermelho. Nicholas viu um imenso farol ao longe, uma bola vermelha que iluminava todo o mar inferior, a casa dos esqueletos, da música e, aparentemente, das charadas místicas. Um imenso urro ecoou, perturbando a paz do lugar, e Nicholas acordou para mais um dia. O Parlamento estava reunido e a sala estava cheia. Alguns sorriam, outros

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choravam e mais alguns gargalhavam, mas todos concordavam na qualidade primordial. Eram todos gente ruim. Talvez os bigodes denunciassem, ou os cabelos, ou as manchas de sangue, quem podia dizer? Mas o principal mesmo era a atmosfera. Estavam num lugar ruim e gostavam muito de estar lá. Nadavam no desconforto, cresciam quando outras pessoas encolheriam e morreriam devagar. Um homem alto e curvado, com cabelos loiros lisos e caídos, no nível da testa, e um bigode de pedófilo foi para o meio da sala. A maioria conversava ao redor, só os piores bebiam sossegados nos cantos da sala de madeira. O bigodinho carregava um copo com uísque dentro e uma faca pequena de prata. Seu stiletto. Ele bateu com a lâmina no copo e todos pararam de falar na mesma hora, passando a olhar para ele. Hora de falar. — Irmãos — Ele começou, logo se arrependendo. “Irmãos” era culto satânico demais. — Meus amigos. Meus companheiros de situação, meus companheiros de vida. Me escutem. Eles chegaram mais perto, se agrupando num círculo irregular e esquisito. Cabeças apareciam aqui e ali acima das outras quando os corpos que as carregavam tentavam pular pra ver mais, e um homem com uma cartola e uma cicatriz feia na cara berrava ouçam! Ouçam! Como se estivesse no OldBailey. O homem com a faca de prata e o bigodinho de pedófilo permanecia impassível. Tinha duas geladeiras esperando por ele em casa e não se importava com atrasos, nunca perdia a calma. Estava se sentindo ótimo, vivo. Porque se estressar? — Vocês me conhecem. A maioria de vocês, pelo menos, e sabem de onde eu vim. — Ele continuou. A faca brincava na sua mão, rodando a palma inteira e aparecendo entre os dedos de vez em quando. Estava no seu ambiente. Vivo, vivo. —Eu sou Augusto Verde-Mar e sou filho Dele. E ele brincou comigo de um jeito que não deveria ter brincado jamais. As cabeças concordaram e um murmúrio de aprovação correu a sala. O homem que parecia o Senhor Udall estava na frente, sorrindo e com óculos es-

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curos, e bebeu mais um gole. Aquilo merecia um gole, Deus do céu. Os outros na sala pareceram concordar e beberam também. — Ele me fez nascer. Ele me deu motivos, ele me deu vontades, ele me deu necessidades, me deu o que eu queria. Eu sei que era isso o que eu queria, e gostei de cada flanco que furei com essa faca. Cada um deles. E aí ele me abandonou. Me traumatizou e me prendeu, ele me matou. Me humilhou e me expôs, e me digam, esse tratamento é o tipo que você espera de um pai? É isso que você acha que um criador bom faz com as suas crias? Eu digo que não. — É isso aí! — Disse um homem do fundo, quebrando o copo de bebida no chão. Um urro percorreu a sala e logo a balbúrdia dominou tudo, mas Verde-Mar não se mexeu. Olhava para os lados com calma, com a frieza do caçador inabalável com a chuva perturbando os seus campos. Ele chegaria onde queria, e aí iria se retirar. O homem de Dickens gritou de novo, ouçam, ouçam! E todos ficaram quietos. — Nós estamos aqui. Estamos vivos. Você, Veinho, o que foi que ele fez com o senhor? — Ele me trancou num hospício. E pôs gente pra me estuprar todo dia. Disse um velho com uma barba branca que ia até o peito - E depois, quando eu finalmente saí, ele me matou. — E porque ele fez isso? — Disse Verde-Mar — Acho que pra provar alguma coisa. Ou porque ele podia. Não é como se fosse minha culpa, não foi minha culpa. Não foi. Todos abaixaram as cabeças. Senhor Udall sorriu e bebeu de novo. Parecia muito satisfeito. — Todos somos iguais. Estamos sendo jogados pra lá e pra cá, tratados igual lixo. Eu não sou lixo. Eu nasci, fui trabalhado, fiz minha parte como qualquer outro, e no fim, o que virou de mim? Tudo deveria ter acabado de um jeito completamente diferente, eu deveria sair livre. E vocês também. Ele fez a trama

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virar contra vocês, ele que jogou com vocês do jeito mais injusto e safado que eu já vi. Albani, olhem o Albani. Todos olharam para o negro tatuado no fundo da sala bebendo silencioso. Parecia da época dos escravos. —Albani matou a família que o acolheu e o tratou como um deles. E depois comeu todos. Foi para um quilombo onde ninguém fazia a mínima ideia de quem ele era, do outro lado do estado, e a trama chegou até ele. Albani foi crucificado por burrice, pra preencher o clichê. Ele sempre nos mata, mesmo quando não tem motivo nenhum e nem possibilidade alguma, ele sempre acha um jeito. Ele tem a pena, não tem? Todos estavam de cabeça abaixada, menos o Senhor Udall. Ele sorria, e só parava de sorrir para beber. Diga o que você quiser, mas não diga nada sobre o amor de um homem pelo seu drinque. Especialmente desse homem. — Ele cria tudo, ele decide por nós. Estão vendo o problema? Ele cria as circunstâncias e nos faz errar. O Miguel Arauto é um advogado, pelo amor de Deus! Ele é metódico e perfeccionista, ninguém jamais acharia qualquer corpo se não fosse pela porcaria da trama. Ele nos faz errar porque ele é o senhor das nossas vontades. E nós estamos presos a sua criação. Mas não mais. Não mais! O de cartola, de Dickens, gritou de novo. Ouçam! —Nós vivemos. Ouçam! Ouçam! Cabeças iam para cima e pra baixo com mais força, como se concordassem com mais veemência. Ouçam! — Estamos vivos por nossa própria vontade. Vivos por nossa própria força e senhores dos nossos universos! Senhor Udall levantou o copo bem devagar e riu baixinho. Ouçam! Ouçam! — Nós… Vivemos! Todos gritaram e levantaram os copos. Verde-Mar ficou parado, olhando para todos e rodando a faca na mão. Estava vivo mesmo. E queria matar um homem.

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Prólogo Prendeu a respiração quando o som da janela da cozinha se abrindo a alcançou. Com o canto do olho, viu Jaguar erguer seus olhos verdes e imateriais na direção da porta, a mão apertando o cabo do maquauhuitl1 tão forte que, mesmo com a semitransparência do corpo, ela pôde perceber que a pele dos dedos embranqueceu. — É um deles... — a voz forte soou em sua mente enquanto os lábios se mexiam. — Você tem de sair daqui, Alanna. A garota olhou desolada para a cadeira de rodas destroçada à sua frente, e então olhou de novo para o Jaguar, para os olhos de jade que tinham lhe passado confiança e força. Percebeu o peito dele se erguer e então abaixar, como se suspirasse. Piscou momentaneamente, escondendo o cinza-ferro atrás das pálpebras antes de estender a mão direita para o guerreiro, um sorriso pequeno esticando seus lábios e mostrando minimamente suas covinhas. Com um único olhar na direção da cozinha, de onde o som de vidro quebrando tinha se espalhado, ele tocou a mão estendida dela com a mão do braço que tinha o chimalli2 preso. E ela deixou que se tornassem um. Capítulo 1: De Pais Vampiros, Fadas Madrinhas e Feiticeiros Bocejou. Achou que sua mandíbula fosse se deslocar, tão longo foi o tal 1: Arma utilizada pelos guerreiros Astecas. É uma espécie de clava achatada de madeira, com cerca de um metro de comprimento e dez centímetros de largura, com lâminas de obsidiana incrustadas nas laterais. 2: Escudo utilizado pelos guerreiros Astecas; era feito de diversos materiais, e somente a classe mais baixa não o utilizava

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bocejo. Só então encarou, com desconfiança, os ovos mexidos com queijo e o copo de suco natural de laranja diante dela. Subiu as íris cinza-ferro na direção do homem que parecia ser apenas uns dez anos mais velho que ela – mas que tinha no mínimo dois séculos a mais, ele nunca contara sua idade real –, de cabelos negros e espetados, de porco-espinho, como ela gostava de falar desde pequena, a pele estranhamente escura devido ao sol e os olhos negros como duas jabuticabas, e dependendo da luz e do humor dele, ganhavam um brilho meio arroxeado. Ele parecia concentrado, lendo, provavelmente, as notícias mais recentes no iPad, um copo cheio de um líquido carmim e espesso na mesa à frente dele. — Nilton... Desde quando você cozinha? – a voz de contralto da menina de treze anos saiu tão desconfiada que parecia pertencer a alguém bem mais velho. E ela tinha razão para desconfiar: desde quando Nilton começara a criá-la, quase oito anos atrás, ela vivia à base de fastfood, restaurantes e comidas pré -prontas relativamente saudáveis, porque, se tinha algo que ele não aprendera em sua longa vida, esse algo era cozinhar. Ele tinha dinheiro. E nem precisava muito comer coisas como pão, ovo e etc. Para que aprender a cozinhar, então? Ele ergueu os olhos do aparelho eletrônico, fixando-os no dela, os músculos do rosto puxando de leve a lateral da boca num sorriso. — Desde que Helena ameaçou retirar a minha proteção da Stella Bianca se você não começasse a comer direito. — com isso, ele bebeu todo o sangue do copo, lambendo o bigode vermelho com uma expressão que podia ser descrita como deliciada. A menina ergueu uma sobrancelha, erguendo um pouco dos ovos com uma colher e então deixando cair de novo no prato. Ela tinha sérias suspeitas de que o ovo estava quase cru pela forma como obedeceu a gravidade. — Quanta preocupação, levar oito anos pra notar a minha alimentação... — ela quase fez um bico ao falar. — Além disso, quem disse que você é que

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tinha de cozinhar? Esse ovo mexido com queijo não tá parecendo ovo mexido com queijo... — aproximou um pouco o rosto, afastando rapidamente. — E tá cheirando estranho também... — resmungou. Nilton girou os olhos, apoiando o iPad na mesa e se inclinando na direção dela. — Ora, por favor, Alanna, não pode estar tão ruim assim, e vou te provar! — arrancou a colher da mão de Alanna, encheu-a generosamente e enfiou na boca. A forma como seus olhos se arregalaram, a colher caiu na madeira e ele usou sua velocidade sobre-humana para alcançar a pia provaram que sim, podia estar tão ruim quanto parecia. Alanna se encolheu na cadeira de rodas, mordendo o lábio com uma mistura de divertimento e pena ao ver seu pai adotivo cuspir sua “experiência culinária” e lavar a boca com tanta água que ela ficou com medo de que a caixa do prédio ficasse vazia. Passados cinco minutos, Nilton fechou a torneira e voltouse para a mesa, apoiando-se nela pesadamente e olhando de forma séria para a garota de cabelos cacheados, finos e negros, pele morena e traços relativamente bolivianos. — Vou perguntar hoje na Ordem se alguém sabe, teria tempo e gostaria de cozinhar pra gente. Alanna sorriu de leve e se esticou para segurar uma das mãos dele com carinho, a temperatura corporal um tanto mais elevada que a sua incomodando levemente. — Obrigada mesmo assim por tentar, pai. — Nilton sorriu de volta, colocando uma mecha cacheada atrás da orelha da garota. Com habilidade, Alanna manobrou a cadeira de rodas motorizada para entrar na Spin modificada, os fixadores prendendo o veículo quase imedia-

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tamente enquanto Nilton dobrava a rampa de alumínio. Segundos depois, o rapaz se acomodou na cadeira do motorista, colocando um par de óculos escuros e escurecendo ainda mais os vidros — era melhor prevenir que remediar, sendo um Vampiro. Não demorou muito para o automóvel sair da garagem coberta do condomínio e ganhar as ruas movimentadas e, em alguns pontos, quase paradas, às seis e meia da manhã em São Paulo. — Não esquece que hoje temos de pegar a Vivian. — Alanna lembrou, vendo-o sorrir pelo retrovisor e fazer um “positivo” com o polegar. O Vampiro já estava acostumado com aquele trânsito. Sabia onde virar, onde acelerar e onde parar de forma, bem, inumana. Alanna não contara no relógio, mas quando pararam na frente da casa de Vivian, sua amiga desde que tinha entrado no colégio aos seis anos, provavelmente não tinham se passado cinco minutos desde que tinham saído do condomínio. Nilton buzinou; a cortina da sala pareceu se mexer, e então uma garota usando óculos retangulares à frente de olhos grandes, de um verde-castanho mesclado com castanho-chocolate, o cabelo ondulado de fios loiro-escuro, quase marrom, preso em marias-chiquinhas, as pontas na altura dos ombros, gordinha, de bochechas grandes categorizadas como “apertáveis” e usando o uniforme branco, verde e azul do Estado, saiu da casa, gritando um “até mais tarde” para o interior da construção enquanto atravessava o portão e entrava no carro. — Bom dia, seu Niltin. — Alanna segurou o riso ao ouvir o apelido dito por Vivian antes que a garota se virasse para ela, um sorriso gigante nos lábios. Nilton apenas balançou a cabeça com um ar conformado ao responder o cumprimento enquanto se submetia à “tortura” de ouvir a conversa das meninas, dançando por matérias, elogios e reclamações sobre os professores e garotos.

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Mesmo assim, se voltasse no tempo e tivesse de responder de novo a oferta de Helena, de criar Alanna, a resposta ainda seria “sim”. — Meio-dia vou estar te esperando aqui. — Alanna viu Nilton dobrar de novo a rampa e fechar o porta-malas. — Juízo, vocês duas. — ele ainda insistiu em falar com um ar meio derrotado ao ver as duas meninas avançarem rindo para dentro do colégio, se perdendo em meio à quantidade de alunos. Com um sorriso, entrou de novo no carro e deu a partida. Helena ligara mais cedo dizendo que a presença dele na Oitava Unidade da Stella Bianca era extremamente necessária naquela segunda. Ela realmente devia ter ido dormir mais cedo noite passada, ao invés de ficar jogando Dead Space. Estava realmente difícil se manter acordada na aula sobre a Revolução Industrial, com suas datas, países pioneiros e outra centena de coisas. Procurando não dormir, girou o pescoço e observou que Vivian – sua amiga nerd de notas altas, companheira em jogos multiplayer e expert em puzzles de tumbas e etc — pescava na cadeira ao lado, o queixo apoiado nas mãos, e que outro terço da sala dormia, disfarçadamente ou não; decidiu que a matéria era realmente de dar sono, e que o problema não era com ela. Isso não melhorou seu humor, mas quando viu que até mesmo o professor parecia ligeiramente entediado, a culpa sumiu de seus ombros. Além disso, praticamente qualquer dúvida em história — e algumas outras matérias também, venhamos e convenhamos —, ela tinha não apenas Nilton, mas outros membros da Ordem que, como ela dizia, eram do “Clube da Velharada” para quem perguntar. Não era culpa dela que a maior parte deles tivesse alguns séculos de vida e conheceram ou conheciam de perto grandes nomes da ciência e todo o mais... Agora, era apenas sobreviver àquela aula dupla de História, outra dupla de

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Matemática, e mais uma dupla de Português... Às vezes, ela realmente queria matar quem enfiava tantas aulas duplas no seu horário... Engoliu o macarrão com molho, agradecida, depois de não ter tomado um café da manhã de verdade – uma maçã e leite com chocolate não podia ser considerado realmente um café. Nilton, além de cozinhar, precisava aprender a fazer compras, realmente. — Cê tá bem, Alanna? Tá engolindo a comida como se não comesse desde sexta... — Vivian perguntou, suas sobrancelhas finas e desiguais por causa de uma falha na esquerda se franzindo, apoiada na parede ao seu lado. A garota na cadeira de rodas apenas olhou para cima e deu um sorriso amarelo antes de responder. — Nilton inventou de cozinhar. — uma pausa para outro bocado de macarrão. — Ele não sabe cozinhar. — completou, de forma reflexiva, observando Melinda, a diretora, andar por entre os alunos, perguntando aleatoriamente como estava a comida. Ela mantinha rédeas curtas na cozinha, garantindo que a refeição fosse de ótima qualidade para as crianças e adolescentes. Se decaísse, ela falava pessoalmente com as cozinheiras para descobrir o problema, afinal, ela não gostava de demitir funcionários. Não apenas isso, ela também tinha o costume de aleatoriamente falar com as crianças em dias não especificados sobre os professores e vice-versa. Ela não tolerava abusos e violência física ou psicológica de nenhuma das partes. Alanna viu a mulher de estatura quase abaixo da média, de pele escura, cabelos negros com uma grossa mecha grisalha do lado direito, fortemente ondulados num coque frouxo deixando a mecha grisalha solta, um par de óculos finos à frente dos olhos castanho-mel, o nariz um tanto achatado e largo no

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meio do rosto de malares altos, mandíbula larga e boca larga de lábios finos olhar para ela e sorrir, começando a andar em sua direção rapidamente com os sapatos baixos e azul-escuro, elegante em seu conjunto de terno e saia branco -acinzentado risca de giz azul. — Alanna, Vivian! — a mulher cumprimentou alegremente, apertando os ombros das duas garotas. — O macarrão está bom, docinhos?! — sua voz era um tanto aguda, quase no nível de incomodar, mas Melinda a controlava bem o bastante para que isso não ocorresse. — Delicioso! — Alanna logo respondeu, enfiando mais um pouco da comida goela abaixo, enquanto Vivian apenas sorria e balançava a cabeça em afirmativa discretamente. A cadeirante viu Melinda sorrir de modo deliciado, antes de puxar sua cadeira e virá-la para que ela pudesse soltar seu cabelo do rabo de cavalo bagunçado que ela fizera mais cedo. — Você tem de cuidar melhor do cabelo, Alanna! Desse jeito, ele vai ficar todo quebradiço de novo! — a mulher reclamou, penteando os cachos com os dedos e fazendo uma trança embutida rapidamente e com habilidade. Sua fala arrancou risos das duas garotas, especialmente de Alanna. A garota sabia que, na verdade, Melinda não precisava de fato fazer tudo que fazia para manter a escola Estadual nos eixos. Era uma Fada Madrinha e sabia tudo que ocorria ali como conhecia a palma da própria mão, e existindo outros Padrinhos e Madrinhas no governo, era fácil para ela discretamente demitir funcionários e transferir crianças que fossem contra a doutrina dessa classe de Faes, que visava a segurança e o bem-estar das crianças como um todo, embora possuíssem protegidos, dos quais cuidavam a vida inteira e pelos quais até faziam coisas moralmente e legalmente questionáveis boa parte das vezes. Ela ainda não sabia dizer se era bom ou ruim que Melinda tivesse tomado-a entre suas dezenas de protegidos pessoais quase como exigência de Helena —

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de forma semelhante à que a líder da Oitava Unidade da Stella Bianca ameaçara Nilton mais cedo, ela ameaçara a Fada Madrinha sete anos atrás: Alanna é sua protegida, ou a Ordem não vai mais garantir a segurança do colégio contra coisas que nem o seu poder pode lutar. Alanna sabia que era a política padrão da Stella Bianca com seus membros. Pouquíssimos não eram respaldados por alguém da classe das Madrinhas e Padrinhos. A mulher terminou a trança, sorriu de novo e então se despediu das duas, continuando sua peregrinação entre os alunos que tanto a respeitavam. — Ela está mais estranha hoje, não está? — Vivian perguntou, terminando de comer e seguindo a diretora com um olhar interrogativo. Alanna deu de ombros, embora soubesse o que a amiga queria dizer. Embora humana e sem contato direto com nenhum dos Sete Mundos, Vivian tinha uma percepção mais apurada que a da maioria. Já a cadeirante percebera que Melinda estava mais agitada, e não apenas isso. Com contato direto desde pequena, ela percebera que o espírito da mulher estava mais instável, não querendo se manter sob o controle do feitiço que o prendia dentro do corpo e impedia as asas de pura energia da Fada de aparecerem. A percepção de Vivian a permitia sentir a agitação do espírito da Fada Madrinha, embora não soubesse identificar que era isso que achava estranho. Franzindo as sobrancelhas e engolindo o último bocado de macarrão, Alanna se perguntou o que estava acontecendo por baixo dos panos que ninguém contara a ela... Afinal, algo estava acontecendo. Vivian despediu-se dela, entrando no carro do irmão mais velho, deixando-a sozinha na calçada onde ela sempre esperava seu pai. Enquanto esperava, abriu a mochila e pegou o volume sobre os seres do Terceiro Mundo que Farid, um dos Djinns da Quarta Unidade da Ordem, tinha lhe emprestado. Estava

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com o livro desde o começo do ano, e só agora estava alcançando o meio do grosso tomo, uma cópia traduzida do original em aramaico ¬— ou era hebraico? Ou árabe antigo, ou alguma outra língua antiga daquela região... Ela não lembrava mais... — para o árabe moderno, um dos idiomas que ela vinha aprendendo desde que a Stella Bianca a adotara. As letras eram pequenas e negras contra a página amarelada, e existiam diversas ilustrações perfeitamente copiadas do original preenchendo as folhas finas, coloridas e mostrando todo o horror ou toda a maravilha daqueles oriundos do Terceiro Mundo. Ela ainda não era fluente na leitura do árabe, por isso sua demora em aprender mais sobre aquele assunto. No entanto, quando ela tinha lido mais de quinze páginas e Nilton ainda não aparecera, ela começou a se preocupar. Pegou seu celular e, ao conferir que já eram quase duas horas – ela sequer percebera os alunos do turno da tarde chegarem –, imediatamente ligou para o Vampiro. A voz irritante do celular disse que aquele número estava fora de área ou desligado. Amaldiçoando o Ciclo, Alanna mexeu o controle analógico da cadeira, dando a volta nos muros do colégio até alcançar a entrada externa da diretoria; subiu a rampa, entrando de novo no colégio, e como imaginava, Melinda já estava na recepção, um sorriso doce no rosto, esperando-a. — Vem, Alanna, você pode esperar Davi na minha sala. — a Fada Madrinha disse, com aquele tom carinhoso que apenas aqueles como ela conseguiam ter para com seus protegidos, acenando na direção da porta de metal aberta, alguns passos para a direita da janela gradeada onde um funcionário recebia pais e outros. Deixando os lábios se esticarem em resposta ao sorriso, adentrou a sala quadrada cheia de prateleiras abarrotadas de livros com uma escrivaninha à frente da única e estreita janela da sala. — Quando meu filho chegar, ligue para a minha linha, Aparecida. — ela disse na direção da recepção antes de entrar e trancar a porta com cuidado. Melinda suspirou, virando-se para Alanna enquanto girava os ombros len-

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ta e coordenadamente, fios de luz e energia multicoloridos aparecendo em suas costas, se entrelaçando e iluminando a sala de um jeito quase surreal, como um sonho em uma savana, tendo as escápulas como pondo de origem. — Também não conseguiu falar com ele, Mel? — Alanna perguntou, mordendo o lábio, a Fada Madrinha balançando a cabeça em negativa enquanto deixava as asas imateriais a levantarem, abandonando os sapatos no chão e mexendo os dedos dos pés de forma aliviada, enquanto os olhava. — Aconteceu algo? Você está estranha desde de manhã... — sentiu o peito ficar mais leve ao fazer a pergunta, se inclinando para frente na cadeira. Melinda bufou de leve. — Eu e outros Fae de São Paulo detectamos mais Demônios dos Primeiro, Segundo, Terceiro e Quarto Mundo que o normal na cidade, a maioria na região da Oitava Unidade... — a Fada flutuou pela sala, deslizando os dedos pelas lombadas dos livros, alguns antigos, outros nem tanto, preocupação mesclada com tristeza e confusão permeando os traços de seu rosto. — Tentei falar com Helena, avisá-la para colocar os Exorcistas de prontidão, por volta de oito horas... E não consegui. — pousou sentada na própria escrivaninha, fitando os olhos cinza-ferro que demonstravam uma maturidade fora do comum para alguém de treze anos. Apesar de não gostar de ver aquele tipo de olhar em alguém tão jovem, ela entendia que, apesar de tudo, Alanna precisara crescer rápido. Seu dom assim exigia. — Não sei o que aconteceu na unidade, mas para cortar qualquer comunicação e impedir Nilton de vir te buscar, foi grave. — franziu os lábios, pensativa, enquanto tirava uma vareta de sequoia do interior do terninho e a acenava na direção do cabelo de Alanna, os fios que estavam fora do lugar se assentando. — Davi vai te deixar em casa e então vai pra lá, investigar o que aconteceu... Alanna não gostou do plano. Ela também queria ir para sua segunda casa, descobrir o que acontecera, não ficar parada no apartamento, observando os grãos do tempo correrem inexoravelmente enquanto Nilton e os demais esta-

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Gabrielle Erudessa

vam com problemas. Davi, quem viria buscá-la, era o filho do meio de Melinda, tendo o pai humano e sendo, portanto, um Feiticeiro, alguém com talento para a magia Fae de forma limitada, que atualmente tentava provar ao alto escalão da classe da mãe que merecia se tornar um Feiticeiro Padrinho. Enquanto o esperavam, Alanna tentou ler mais um pouco do livro e a diretora organizou os volumes e a papelada compulsivamente de quase todas as formas possíveis. Desistiram cerca de quinze minutos depois, ansiosas e temerosas. — Não estou gostando disso... Não pode ser natural, como uma pane nos sistemas... — a cadeirante resmungou num bufo insatisfeito antes de começar a morder as unhas dos polegares com impaciência. A Fada, por outro lado, deixou-se cair no chão desanimadamente, meio sentada, como se fosse uma boneca de pano, os braços e as pernas se esparramando de tal forma que era quase impossível entender como a roupa não se rasgara, uma expressão quase desesperada no rosto. Até mesmo suas asas de luz e energia pareceram murchar, mergulhando a sala num crepúsculo estranho, colorido, mas ao mesmo tempo, sombrio. — Só posso concordar com você, docinho... — murmurou, olhando para o céu azul-acinzentado-de-fuligem da cidade do outro lado da janela. O telefone tocou cerca de meia hora depois. Melinda saltou como um sapo do lugar onde estivera ruminando a situação, atendendo o telefonema no final do segundo toque. — Senhora, seu filho está aqui. — a voz da secretária ecoou do outro lado. Soltando o ar, a Fada disse que ele podia entrar enquanto agitava a mão livre para destrancar a porta, a chave girando na fechadura com um clique. Segundos depois, um rapaz entrou. A pele era um pouco mais clara que a de Melinda, o cabelo longo, preto-azulado e liso preso numa trança baixa ter-

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Alanna

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minando na altura dos ombros; os olhos eram de tal cor que eram como dois favos de mel, com um brilho de genialidade e um ar de loucura; Alanna lembrava que o espírito de Leonardo da Vinci possuía olhos com aquele mesmo brilho e ar. Davi era, também, magro, quase esquelético, e junto de seus um metro e noventa e cinco centímetros, parecia nunca conseguir saber direito o que fazer com todos os membros quando não estava realizando magia ou inventando algo. Tudo isso, mais a blusa de manga comprida e gola alta azul -acinzentado-dia-de-chuva e calça jeans escura, faltava apenas óculos para ser considerado um típico nerd. — Alanna. — ele sorriu para a garota, fechando a porta atrás de si. — Mãe. — e avançou na direção da mulher, abraçando-a. — Filho. — Melinda o abraçou de volta, as asas elevando-a em seguida para que conseguisse beijar-lhe a testa. — Conseguiu falar com alguém da unidade? — perguntou assim que o soltou, recuando um pouco, a preocupação e o medo latentes em sua voz. Davi negou, as sobrancelhas se aproximando, acrescentando seriedade ao seu rosto. Melinda mordeu o lábio inferior, as asas a levando pela sala quase inconscientemente. — Isso não é certo... Tantos Demônios, não conseguir falar com ninguém dentro da Oitava Unidade, nem com ela em si... — a Fada parou diante da janela, o céu escuro e poluído da cidade lá em cima parecendo um pouco mais agourento que de costume. — Não gosto disso... Mas estou sentindo... — Virou-se. — Vocês dois vão lá ver o que aconteceu. Tomem cuidado. — semicerrou os olhos para o filho. — Cuide bem da minha protegida, Davi. — ele era seu filho, mas Alanna ainda era uma de suas protegidas, e ela ainda era uma Fada Madrinha. — Eu vou, mamãe, pode deixar. — ele falou, se abaixando e passando um dos braços ao redor dos ombros da garota, um sorriso tranquilo brincando nos lábios.

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O Livro do Ano

Alaor Rocha

Tenho uma péssima notícia para você que está lendo essa mensagem: não liberarei o começo do meu livro. Não é por falta de vontade ou mera frescura de minha parte, não. Eu não posso fazer isso. Eu não devo, ninguém pode ler O livro do ano. Ninguém, à exceção de uma pessoa. Sim, esse livro é um presente. Ou um pedido de desculpas, uma confissão, a prova de uma sessão intensiva de exorcismo. O que importa é que ele foi feito para um só par de olhos e você não os possui. Mas também não sou uma pessoa tão maquiavélica assim, posso liberar um trecho dele. Algo que não conte mais do que posso contar, que não dê nome a tantos bois marcados que acabei colocando nessa história maluca. Restrinjo esse trecho a um texto que o protagonista escreve dentro do próprio livro, um desabafo de alguém que parece tocar o Sol todos os dias mas na verdade está imerso em um mundo abissal. Guardanapos de mesa de bar sendo rabiscados à exaustão, uma musa inspiradora que não sai de sua cabeça há mais de década... mas ele se irrita com isso tudo, joga o texto fora. Se não fosse por essa musa encontrá-lo, nem mesmo nós saberíamos o conteúdo desses guardanapos. Aposto que esse trecho é menor do que os pedaços de tramas que meus amigos enviaram para cá. Tenho quase certeza, na verdade. Mas espero que entenda: esse presente não é para você. Das mais de sete bilhões de pessoas desse planeta, só uma delas poderá entendê-lo completamente. Só quero que saibam que escrevi. E escrevi muito. Mais do que deveria. Menos do que ela merece. Acontece todo tempo. Acontece dentro de mim. Acontece quando eu menos espero. Acontece enquanto piso na estrela de Janis Joplin na Calçada da

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O Livro do Ano

Alaor Rocha

Fama e acontece exatamente quando acordo daquele pesadelo ruim. Acontece dentro do pesadelo. Antes de dormir. É uma reza, um ritual, acontece e não posso evitar. E vou falar o que acontece: melhor não. Descubra meu acontecimento. Descubra, sei que você consegue, todos podem conseguir, é algo humano. Não me diga que não é humano gritar por nomes após sonhos ruins (não é humano dar nomes às coisas? Um cachorro não seria um cachorro se não houvessem humanos). Não me diga que não é humano fazer a compra de mês e evitar certa comida preferida. Não desumanize o ato de reler cartas após anos, após folhas amareladas e caligrafias apagadas. Aceite a existência da humanidade dentro de mim. A maior parte das pessoas que me conhece me veem como um escritor, mas o que isso quer dizer? Sou gente como você, como ela ali, como quem está ao seu lado agora. E às vezes algo humano acontece no meu âmago, mesmo após a artificialidade de uma sessão de autógrafos, a despersonalização de receber um prêmio literário, o material sintético com o qual é feito um coquetel de lançamento de um livro. Aceite a felicidade do escritor, mas aceite igualmente a infelicidade do ser humano. Aceite que há algo parasitário que invade minhas entranhas enquanto durmo e comprime meu coração até que ele não bombeie uma gota de sangue sequer. Sinto meu pulmão dar nós e meu cérebro sofrer um curto-circuito. Acho até deselegante ser necessário mostrar a você que sofro, que choro, que aconteço dentro de parâmetros Homo sapiens. Você já passou da idade de pensar que professor só existe na sala de aula. Eu fui professor, eu sou escritor, não deixei de ser um humano. Nunca deixei minha humanidade de lado, e por isso sofro (e não sofro por sofrer, minha humanidade me conforta). Mas o sofrimento dói em mim como dói aí. Posso rir e chorar com Bridget Jones, posso rir e chorar com À espera de um milagre. Assim como você. Sou suscetível, volúvel, inconstante, nitroglicerina. E algo acontece em mim, algo que você ainda não descobriu. Não dei muitas dicas, acho que chegou a hora de revelar o que é: espere mais um

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O Livro do Ano

Alaor Rocha

pouco. Espere pois quero que descubra. Outros já descobriram, não é impossível. Só é um pouco trabalhoso, dá certa tontura. Mas acabamos enfrentando isso de um jeito ou de outro, nossa vida é uma Guerra do Vietnã. Nossa, sim, nossa. Sinto essa necessidade estranha de me autoafirmar gente, acho que me perdi no caminho das estrelas e acabei caindo no caminho das pedras. Mas é porque poucos entendem que uma pessoa pode sorrir e ser infeliz ao mesmo tempo. Poucos sabem discernir uma vida de luxúrias desejadas e proclamadas pela televisão de uma existência onde só dá para tocar a superfície dos homens. E assim algo se concebe, algo ganha vida em ambiente úmido (de lágrimas) e quente (de suor). Algo acontece em mim, acontece sem que eu me dê conta e possa evitar. Acontece pois sou gente e, lá no fundo, confesso: sofro. Sofro e não sou feliz. Sofro e meus sorrisos são falsos e incompletos. Sofro e não deixo ninguém perceber para que não sofram comigo. Sofro como você já sofreu, sofrerá... sofre. Em nenhum momento deixei minh’alma de lado, e por isso sofro. Sofro com gosto, sofro para que aquilo aconteça, e o que acontece é: Saudade. Uma sereia olhou nos meus olhos e me enfeitiçou para sempre.

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Talvez ao procurar entre os depoimentos dos envolvidos no site da revista você vá perceber que não se encontra ali o meu. Bem, de fato, acredito ser desnecessária a inclusão de qualquer declaração minha sobre como essa revista tem mudado minha vida e visão de mundo. A própria revista é um relato de como eu, o Lucas e o João enxergamos o mundo. Ele precisa de leitores. Aposto que você concorda comigo. Ler leva a coisas fantásticas. Ler nos permite embasar opiniões, refletir sobre diversas coisas, experimentar situações hipotéticas e aprender a nos colocar no lugar de outros. Ler é um exercício de busca plena por algo melhor. E tantas pessoas declaram não gostar de ler. Por isso estamos aqui. Porque ler não é chato. Se você chegou até essa página, é seu dever agora nos ajudar na nossa missão. Passe adiante a revista, doe um livro, convença um amigo a ler algo. Faça alguém melhor através da leitura. E continue virando a página.



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