ZUPI Quadrinistas na Internet

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quadrinistas na internet

ZUPI

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ART issue r$

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50 edição ano 10

made in brazil

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Onde achar a revista

Zupi > #50 > Novembro 2015

www.zupi.com.br/onde_encontrar

CARTAS

Mande suas críticas e sugestões para info@zupidesign.com

conteúdo HQS: da Tinta aos pixels

pág.04

Donos do próprio traço

pág.06

independente em pauta

pág.08

Uma breve viagem pela história dos quadrinhos, desde os primórdios até a era digital

Saiba mais sobre as ferramentas de venda on-line de quadrinhos que alavancaram o cenário independente

Ugra Zine Fest se consolida como importante vitrine e mesa de debate da nona arte

pág.10

faça quadrinhos, não gere tabu

pág.12

Como as webcomics estão se transformando em instrumento de voz para debater temas quentes

pág.16

“Magra de Ruim” e seus dramas vitorianos

pág.18

troféu hqmix e a bomba de machismo

pág.20

Quadrinhos.html

pág.22

Por trás de Armandinho

pág.24

Entenda a polêmica que marcou de forma negativa o prêmio máximo das HQs no Brasil

Um dos personagens mais carismáticos das redes sociais tem pai. Saiba quem é

pág.26

deus é brasileiro e virou webcomic

pág.28

roteiros à máquina, gibis à mão

pág.30

Se compartilhar, credite

pág.33

Para ficar de olho

pág.34

Uma conversa descontraída com dois quadrinistas sobre HQs e cotidiano

Fora da internet, Ziraldo Alves Pinto resiste às transformações do tempo

Direitos autorais mostram que a web é livre, mas não é terra sem lei

Conheça mais alguns quadrinhos que estão na internet e valem um clique

diretor executivo

REdatores

Bianca Custódio, Gustavo Nascimento, Paulo Dias, Lohaine Trajano e Taísa Barcelos

Design

Bruna Pais Alexandre Beck, Bianca Pinheiro, Bruno Maron, Carlos Ruas, Daniel Lafaieytte, Daniel Lopes, Daniela Utescher, Diego Sanchez, Edgar Franco, Gabriela Masson, Cátia Ana, Kris Barz, Laerte Coutinho, Luciana Foraciepe, Maria Luiza de Freitas, Pablo Carranza, Ramon Vitral, Ricardo Coimbra, Sirlanney Nogueira, Toninho Mendes, Ziraldo

Agradecimentos

• www.twitter.com/zupi • www.flickr.com/zupidesign

Esta é uma edição especial da Revista ZUPI elaborada como proposta de Trabalho de Conclusão de Curso dos alunos de Comunicação Social – Jornalismo, da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação da professora Rosinei Naves. É proibida a reprodução total ou parcial de textos, fotos e ilustrações por qualquer meio sem prévia autorização dos artistas, do editor ou dos redatores da revista.

O universo dos quadrinhos na internet

Bate-papo em quadros sequenciados

Conheça a trajetória do criador do quadrinho de sucesso Um Sábado Qualquer

SÍMON SZACHER

• www.facebook.com/zupimag

Sirlanney é novata, mas já se configura como uma das principais quadrinistas brasileiras atualmente

Cátia Ana mostra que HQs na internet podem ganhar vida por meio dos recursos intermidiáticos da web

editor/idealizador

Rosinei Naves, Alexandre Possendoro, Nivaldo Ferraz

artista intinerante

O artista Diego Sanchez compartilha suas experiências no meio editorial

ALLAN SZACHER

Colaboradores

prazer, laerte

A quadrinista fala sobre sua relação com a internet e as mídias digitais

tripulação

Há décadas, os quadrinhos são uma importante fonte de entretenimento e informação. Historicamente veiculados no meio impresso, esse tipo de arte está experimentando uma convergência cada vez mais intensa entre o bom e velho papel, os novos dispositivos digitais e a internet. Antenada, a nova geração de quadrinistas, que experimentou as maravilhas da tecnologia desde cedo, está promovendo uma verdadeira revolução na arte sequencial. Ela tem mostrado ao mundo sua arte usando o alcance e facilidades da internet. Nesta edição especial da Zupi você conhecerá um pouco mais sobre quem são essas pessoas, como vivem, trabalham e criam. Também ficará por dentro do mercado de quadrinhos e como artistas já consagrados há décadas estão lidando com a internet. Você vai reparar que a edição em mãos está um pouquinho diferente. Há mais conteúdo escrito. Trata-se de um passo à frente que andamos para levar a você sempre o melhor conteúdo, tanto em imagens quanto em texto. Vamos lá, folheie a revista, entenda o que mudou e nos escreva contando se aprovou ou não as mudanças. Estamos abertos a te escutar. Por ora, mergulhe no universo dos quadrinhos na internet e suas possibilidades.

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HQS: DA TINTA

AOS PIXELS Inicialmente pensadas como forma acessível de diversão, as histórias em quadrinhos desempenharam diferentes papéis ao longo de mais de 1 século de história. Agora elas aportam na web, onde encontram terreno fértil para se expandirem ainda mais. Se você usa a internet, especialmente as redes sociais, provavelmente já se deparou com eles, os quadrinhos. Surgidos nos Estados Unidos, no final do século 19, as histórias em quadrinhos mantiveram por séculos sua estrutura totalmente voltada ao meio impresso. A situação mudou nas últimas duas décadas, especialmente após a popularização da web. Esse tipo de arte sequencial tem ganhado cada vez mais força e admiradores, tudo ao alcance de um clique.

O início

O pesquisador espanhol Roman Gubern define história em quadrinhos como uma “estrutura narrativa formada pela sequência progressiva de pictogramas nos quais podem integrar-se elementos de escrita fonética”. Foi em 1985 que o quadrinista e pesquisador americano Will Eisner, considerado um dos maiores especialistas mundiais na área, atribuiu à nona arte o termo “arte sequencial”, destacando que o trabalho de um quadrinista tem forte cunho artístico. Narrativas sequenciais existem desde os tempos das cavernas, já que muitas das figuras rupestres buscavam contar uma história através de desenhos seguidos. Mas os quadrinhos, com a linguagem que conhecemos hoje, surgiram em 1894. Naquele período, o artista Richard Outcault criou o personagem Yellow Kid (Garoto amarelo, numa tradução livre). A primeira aventura do pequeno garoto dentuço com traços e aparência orientais foi publicada pela revista americana Truth no final de 1894. O personagem ganhou local fixo, a partir de 17 de fevereiro de 1895, no jornal New York World, onde foi publicado até 1898. Inicialmente, o personagem só se comunicava através de frases em sua roupa. Tempos depois, Outcault introduziu balões nos quadros para demonstrar falas, criando a estrutura básica que caracterizaria a chamada “nona arte”. Apesar de ter durado apenas quatro anos, Yellow Kid influenciou diversos artistas. O que se viu nas décadas seguintes foram quadrinhos com forte teor de humor, na maioria das vezes veiculados em jornais. Os quadrinhos apareceram no Brasil em 11 de outubro de 1905, na revista O Tico-Tico, em uma pequena história sem nome vol4

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por: Paulo Dias ilustrações: Richard Outcault e divulgação

tada ao público infantil. Nos anos 1920, o gênero aventura chegou com força ao universo dos quadrinhos, trazendo consigo histórias longas e folhetinescas. Foi nessa época que surgiram as comic books, ou revistas em quadrinhos. Em nosso país, a produção de quadrinhos ainda era tímida e, na maioria dos casos, reprodução do que se fazia no exterior.

Política, moralismo e subversão

O período entreguerras foi marcado pelo surgimento das gigantes Marvel e DC Comics, que criaram personagem como Superman, Capitão América e Batman, figuras que traziam em suas histórias forte teor político e serviam como instrumento de influência da população, especialmente nos Estados Unidos. Tais quadrinhos foram trazidos ao Brasil em 1945 pelo empresário Adolfo Aizen, pela sua recém-criada Editora Brasil-América. Nos anos 50 e 60, os quadrinhos sofreram com uma onda de moralismo que questionava as histórias, muito devido ao caráter político herdado. Essa onda dá embalo para o surgimento dos quadrinhos independentes e undergroud. Enquanto isso, no Brasil, Victor Civita e sua Editora Abril lançavam os quadrinhos do Pato Donald. Em 1959, o jovem Mauricio Araújo de Sousa criava o que viria a ser o maior sucesso comercial e midiático da história dos quadrinhos brasileiros: a Turma da Mônica. Nos anos 1970 se popularizam nos Estados Unidos os quadrinhos underground. Eram publicações independentes, com histórias mais pesadas, forte teor político e pouca preocupação com estética. Por não serem ligadas a editoras ou veículos de comunicação, tais publicações estavam livres de censura. No Brasil, os chargistas e quadrinistas Glauco e Laerte iniciaram suas carreiras de sucesso também baseando seus quadrinhos em política e questões da sociedade. A ditadura, porém, dificultou muito o trabalho desses quadrinistas que, assim como os demais artistas, foram censurados.

Graphic novels e o início da era digital

A partir dos anos 1980 surgem as graphic novels ou novelas gráficas que, segundo Will Eisner, “são trabalhos mais bem elaborados, edições bem cuidadas, com papel de qualidade, arte refinada e encadernação luxuosa”. Ainda nos anos 80, aqui no Brasil, o cartunista Ziraldo lançou O Menino Maluquinho, outro grande sucesso da história dos quadrinhos brasileiros. Em meados da década de 1980, a digitalização e o computa-


Para ficar por dentro

dor pessoal entraram no universo dos quadrinhos. O gênero, que parecia já ter atingido o ápice no suporte papel, encontrou novos ares e possibilidades no meio digital. Pesquisador e quadrinista, Edgar Franco divide a era dos quadrinhos digitais em três fases: início e popularização do computador pessoal, criação dos suportes de distribuição digital, como disquete e CD-ROM e, por fim, a explosão da web (com seus sites, blogs e redes sociais). Vários especialistas, inclusive Edgar Franco, consideram Shatter – quadrinho criado nos Estados Unidos em junho de 1985 por Mike Saenz e Peter Gillis – a primeira história em quadrinhos feita exclusivamente no computador. Alguns anos depois, em 1990, o quadrinista catalão Pepe Moreno criou Batman: Digital Justice, o primeiro HQ produzido com softwares de computador. Nesse período, a popularização do CD-ROM revolucionou o mundo por possibilitar o armazenamento e a distribuição de uma grande quantidade de dados num pequeno espaço físico. Com os quadrinhos também não seria diferente. Num momento no qual a web ainda não havia se popularizado, quadrinhos digitais distribuídos nesses suportes pareciam tendência. O marco dessa época foi o quadrinho multimídia em CD-ROM Sinkha, projeto do quadrinista italiano Marco Patrito, que começou a ser desenvolvido em 1991 e foi lançado oficialmente em 1995 na Europa. Yellow Kid, o precursor das histórias em quadrinhos, foi o responsável pela estrutura das HQs como a conhecemos hoje

Não há registros sobre produção de quadrinhos digitais no Brasil nesse período. Por aqui chegava o que se produzia no exterior, enquanto quadrinistas do impresso como André Dahmer, Lourenço Mutarelli e Allan Sieber ganhavam importância.

Popularização da internet

Sinkha, de 1995, representou uma revolução na forma como os quadrinhos digitais eram produzidos

Entre o meio e o final da década de 1990 a web começou a ganhar força. Plataformas digitais como sites e blogs viraram tendência. Esse processo se intensificou no começo dos anos 2000 com o surgimento das redes sociais. Os quadrinhos assumem uma nova perspectiva, principalmente no que diz respeito à velocidade da propagação via rede mundial de computadores. Surgem quadrinistas amadores que ganham voz e milhares (em alguns casos, milhões) de seguidores na internet. Brotam, aqui e ali, coletivos on-line de quadrinistas, que se unem virtualmente para discutir quadrinhos. Plataformas de financiamento coletivo como o Catarse deslancham, possibilitando transições entre impresso e virtual (leia mais na página 6). Ao mesmo tempo, grandes nomes dos quadrinhos nacionais, como Laerte e Ziraldo, procuram entender a web e tentam se adaptar aos novos tempos, buscando manter a essência de sua obra, ainda fortemente destinada ao impresso. Seja por profissão, para transmitir uma mensagem social e política, ou pelo simples prazer de veicular seu trabalho, os quadrinistas tomaram conta da internet. Ao longo das próximas páginas, você vai conhecer Carlos Ruas, Sirlanney, Alexandre Beck, Bruno Maron e outros diversos exemplos de quadrinistas que nasceram na internet ou se renderam a ela, atraindo multidões e fazendo dela instrumento de voz, renda e realização pessoal. zupi

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donos do próprio traço Quadrinistas e pequenas editoras de quadrinhos engordaram o mercado editorial independente no país. E muito dessa ampliação se deve à internet, um espaço sem fronteiras, de custo quase zero para divulgação e onde surgem novas ferramentas e formatos de vendas. Enquanto alguns artistas não abrem mão das comodidades de serem assessorados por grandes editoras, outros preferem embarcar na aventura de publicar quadrinhos por conta ou por meio de pequenas editoras. A vantagem apontada por eles é controlar todas as etapas de produção, desde a concepção até o produto final. O paulista Marco Oliveira, autor do blog Overdose Homeopática, é um deles. Seu livro homônimo, que reúne tirinhas postadas na internet e outras inéditas, foi publicado em 2013 de forma autônoma. “Decidi que essa minha primeira publicação tinha que ter a minha cara”, conta. Para ele, a qualidade do produto final das publicações independentes já não fica mais atrás das edições feitas por grandes editoras. Hoje, com a internet acessível a um número maior de pessoas, 6

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por: Gustavo Nascimento quadrinhos: Marco Oliveira e Daniel Lopes

crescem as formas de publicar e distribuir quadrinhos de maneira independente. Nesse sentido, o financiamento coletivo e as facilidades do e-commerce estão revolucionando a cadeia produtiva da arte sequencial e fazendo com que cada vez mais pessoas realizem o sonho de ver seu trabalho saltar das telas do computador para as páginas de um livro.

A explosão do financiamento coletivo

O financiamento coletivo (ou crowdfunding) é uma ferramenta que se popularizou na web nos últimos anos. O site Catarse, lançado em janeiro de 2011, é considerado referência brasileira nesse tipo de negócio. Desde então, ele já recebeu 200 projetos relacionados a quadrinhos para tentativa de financiamento, segundo dados oficiais. Desses, 131 conseguiram atingir a meta. A taxa de sucesso é de 66%, a quarta maior entre todas as categorias da plataforma. É um bom resultado, considerando que a primeira colocação tem 76% de sucesso. Foi lá que o projeto MÊS saiu do papel. Trata-se de uma antologia de histórias divulgadas na página do Facebook Batatas Fritas Murchas, onde um coletivo de autores postava tiras semanais até


Cenário independente

2014. Na caixa, vinham todas as zines lançadas ao longo do ano e duas revistas de histórias já publicadas. “Acho que vários fatores contribuíram para que conseguíssemos financiar o projeto. Éramos mais conhecidos localmente, mas tínhamos um material bem consistente, o que foi legal”, analisa o brasiliense Daniel Lopes, que assina uma das revistas e a capa desta edição da Zupi. MÊS acabou se tornando um selo de publicações sobre quadrinhos, ilustração e artes plásticas. Para 2015, a editora planeja lançar outra coletânea, atualmente no Catarse. A edição segue os moldes da MÊS de 2013, mas com a adição de conteúdo extra, em formato maior e capa dura. “O Catarse é importante, mas quem é que vai ler esses quadrinhos todos?”, rebate o jornalista e editor Toninho Mendes. Ele também acredita que o modelo crowdfunding nem sempre reúne trabalhos de qualidade. “Hoje todo mundo quer fazer Catarse, aí vira um clube de esquina”, complementa Toninho, que tem bastante propriedade para falar de mercado editorial. Afinal, ele foi o responsável pela criação da Circo Editorial, nos anos 80, sucesso de vendas que serviu como vitrine para grandes quadrinistas brasileiros a exemplo de Laerte, Glauco e Angeli.

E-commerce para artistas e pequenas editoras

Outra alternativa de economia criativa nos quadrinhos é o e-commerce, forma mais viável, econômica e lucrativa para quem não pode arcar com o custo de uma loja física. Segundo o relatório Webshoppers, do E-bit, o e-commerce brasileiro faturou R$ 18,6 bilhões no primeiro semestre de 2015, um crescimento de 16% em relação ao mesmo período do ano passado. Carlos Ruas, criador do site de tiras Um Sábado Qualquer (leia

mais na página 28), é um exemplo de artista que decidiu ir além da tela do computador. Aproveitou a enorme popularidade de suas tirinhas e montou uma loja virtual para comercializar, além de coletâneas impressas, objetos como pelúcias, almofadas e canecas. “Quando criei a loja, o site já estava bombando. Ou seja, o espaço foi uma consequência de um trabalho que já estava bem divulgado na internet”. A publicitária Luciana Foraciepe também seguiu o mesmo caminho. Criou, em 2012, a página Maria Nanquim, no Facebook, repostando e compartilhando quadrinhos de autores que gostava. Deu tão certo que o título da página virou, um ano depois, uma loja virtual. Ali, ela vende serigrafias, imãs, bonecos, pôsteres e livros – inclusive os de seu próprio selo, homônimo. Como editora, ela diz que prefere trabalhar de uma forma diferente. “As editoras no mercado costumam pagar 10% do valor da venda. Eu costumo pagar 30%. Acho justo”, relata Luciana. Em certas editoras independentes, a loja on-line também disponibiliza a publicação em formato digital gratuitamente, até mesmo antes da compra. O quadrinista aracajuense Pablo Carranza, por exemplo, costuma reunir num blog as tirinhas de todas as edições de seu livro Smegma, do selo Beleléu. Porém, só faz isso após o lançamento, para não furar o ineditismo da versão impressa. “Eu não acho que o digital atrapalha o impresso. Pelo contrário, incentiva, porque a pessoa esclarece a dúvida da compra ao acessar o trabalho”, avalia ele. Tiago Lacerda, editor e criador da Beleléu, conta que o modelo de pré-venda também alavanca as vendas. “Lá fora, as editoras sempre fizeram isso. No nosso caso, colocamos pouco tempo [de pré-venda], dois ou três meses, mas teve bom retorno. O produto saiu quase pago”, finalizou. zupi

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independente em pauta

por: Taisa Barcelos fotos: Taisa Barcelos

Criada por acaso há cinco anos, a Ugra Zine Fest reúne as principais publicações independentes atualmente. A Zupi foi conferir a edição deste ano. Também ouviu dos criadores a história e o futuro do evento. Centenas de artistas, quadrinistas e leitores se reuniram nos dias 19 e 20 de setembro na 5ª edição da Ugra Zine Fest. O evento anual, organizado pela editora Ugra, aconteceu no Centro Cultural São Paulo e proporcionou ao público palestras, oficinas gratuitas e uma feira de publicações. Seu principal objetivo é traçar um panorama do universo dos quadrinhos e publicações alternativas. Busca também ser um espaço para fomentar e discutir assuntos relacionados ao segmento. 8

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A primeira edição da feira aconteceu em 2011. Douglas Utescher, que na época cursava pós-graduação em Design Gráfico, resolveu pesquisar sobre zines. Animado com o que descobriu, uniu-se a seu amigo Leandro Márcio Ramos e juntos fizeram uma convocatória para tentar reunir quem fazia esse tipo de publicação. Tiveram uma surpresa quando receberam mais de 100 exemplares de zines. Dessa pesquisa e parceria surgiram a editora Ugra e o anuário de zines, feito até hoje. Para comemorar o lançamento da publicação e da editora, Diego e Leandro fizeram uma festa de lançamento, reunindo publicações e expositores. Nascia então a Ugra Zine Fest, com oficinas temáticas, bate-papos e muita música. Desde


Cenário independente

então, a feira acompanha a movimentação e o retorno das zines e das publicações independentes e o aumento de fãs e pessoas interessadas.

sante, mas não essencial. “A web para mim é uma ferramenta, não um objetivo. Acho a leitura no digital desconfortável se comparado ao impresso”, comentou durante sua palestra no evento.

A partir da resposta surpreendentemente positiva do público, a Ugra Zine Feste passou a ser realizada todos os anos, com números de vendas e expositores sempre crescente. “Na primeira edição tivemos dez expositores e na última edição foram cerca de 120 stands. Isso mostra como a repercussão tem sido boa”, constata Daniela Utescher, esposa e sócia de Douglas Utescher.

Opinião diferente tem o designer, editor e quadrinista Tiago Lacerda. Na mesa Quadrinhos independentes no Brasil, ele opinou que “cada vez menos as pessoas se importarão com a questão do físico. O que elas querem é ver o trabalho dos quadrinistas, independentemente do suporte. Nesse sentido, a internet é uma ferramenta essencial para os artistas independentes, principalmente na captação de público e interação com ele”.

Em 2013, o evento recebeu uma indicação ao troféu HQMix na categoria de melhor evento, como prova de que a Ugra Zine Fest está se expandindo cada vez mais. A edição de 2015 contou com convidados importantes no mundo da arte sequencial, que participaram de palestras e bate-papos. Como é o caso da quadrinista Laerte Coutinho (ver matéria na página seguinte), que integrou o bate-papo Machismo, representação e feminismo nos quadrinhos e atraiu um grande público. A internet e as mídias digitais são assuntos recorrentes nas edições da Ugra Zine Fest. Em 2015, também foram mencionadas em praticamente todas as palestras do evento. O quadrinista Marcatti, que está na carreira há mais de 38 anos, considera a internet interes-

Os idealizadores da Revista Animal, publicação underground da década de 90 e que foi uma das inspirações da dupla fundadora da Ugra, também estiveram na feira. Eles participaram do batepapo O legado da Revista Animal, com a mediação do quadrinista e fundador do prêmio HQMix, Alberto Costa. Para 2016, a Ugra Zine Fest promete uma reformulação em seu formato, mas manterá sua tradicional feira de zines, HQs e publicações independentes. “Em sua próxima edição, o evento precisará crescer um pouquinho, com temas mais contemporâneos e focados no que está rolando de mais atual”, finaliza Daniela Utescher. zupi

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atitude

prazer, laerte por: Paulo Dias foto: acervo pessoal

quadrinho: Laerte > uol.com.br/laerte/

“Estou em crise com os quadrinhos de humor. Eles têm me feito repensar muita coisa. Sempre retratam travestis com pernas peludas. Mas diga vocês, qual travesti vocês conhecem que deixa a perna peluda?”. E foi assim que Laerte iniciou a conversa, arrancando risos das cerca de 100 pessoas que foram até o Centro Cultural São Paulo para ouvi-la falar sobre feminismo, quadrinhos e internet. “Gosto muito das redes sociais, acho uma ferramenta fantástica! Mas preciso me policiar para não passar muito tempo por lá, principalmente dando atenção a quem não merece; pessoas que só estão lá para fazer comentários idiotas, por exemplo. Acho que a internet e as redes quando usadas para propagar mensagens importantes e bacanas, além de úteis, são interessantes”, diz. Laerte Coutinho tem 64 anos, é paulistana e trabalha com quadrinhos desde a década de 1970. Fundou a empresa Oboré, em 1979, e foi uma das criadoras da revista em quadrinhos Balão, ao lado de Luiz Gê. Publicou em veículos como O Bicho, O Pasquim, O Estado de S. Paulo e Folha de São Paulo, onde ainda é colaboradora. Criou e editou a revista Piratas do Tietê, em 1990, que deu origem às tiras diárias publicadas até hoje nas versões impressa e digital da Folha. Participou da redação dos programas TV Pirata, TV Colosso e Sai de Baixo.

“Gosto muito das redes sociais, acho uma ferramenta fantástica! (...) A internet e as redes quando usadas para propagar mensagens importantes e bacanas, além de úteis, são interessantes”

Em 2004, os holofotes se voltaram para Laerte quando ela assumiu sua transsexualidade. Desde então, ela tem sido frequentemente chamada para debater assuntos como feminismo, sexualidade e gênero, temas que também aborda em seus quadrinhos. Em 2014 ganhou uma retrospectiva de sua obra no Itaú Cultural, na chamada Ocupação Laerte. “Sempre fui gay, comecei minha vida sexual como gay, mas entrei em pânico e bani isso pra baixo do tapete. Só depois de muito tempo me entendi como uma pessoa bissexual. Foi transformador aceitar viver o inesperado, isso me levou a transgeneridade”, disse em entrevista ao portal iGay em março de 2014, às vésperas de estrear sua ocupação. Essa inquietação consigo mesma parece ser uma constante na vida de Laerte. Os quadrinhos a ajudam a lidar com essa overdose de pensamentos e reparti-los com o público a torna cada dia mais querida. Laerte tem um site no qual publica uma tira nova por dia e uma página no Facebook com cerca de 120 mil seguidores onde compartilha reflexões, matérias e, é claro, quadrinhos.

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Questões sociais

Faça quadrinhos, não gere tabu Na web, pessoas dizem o que pensam para um público vasto. E, não raro, os assuntos mais sérios causam alvoroço. Fique por dentro das HQs que encontraram na web espaço para abordar esses temas sem deixar de lado o humor.

por: Paulo Dias e Lohaine Trajano fotos: acervo pessoal quadrinhos e ilustrações: Krisagon Barz e Gabriela Masson

Nem só de entretenimento vivem os quadrinhos na internet. Não raro, utilizam-se do humor e do cotidiano para tratar de temas sérios como feminismo, sexualidade e política (caso do quadrinista Bruno Maron, abordado na página 26). Se no impresso eles já cumpriam esse papel social, na internet observa-se uma segmentação e alcance ainda maiores. Não há assunto – por mais tabu que seja – que não possa render ao menos uma tira, que é postada e compartilhada centenas, milhares de vezes, suscitando diversas reações. Não são raros os exemplos de quadrinistas que usam o espaço conquistado para tratar de assuntos que tornam-se recorrentes. Conheça dois deles: Kris Barz e Gabriela Masson.

Quadrinhos em sete cores

“Eu vou te processar por me usar como inspiração!”. Foi assim que, aos risos, um leitor explicou ao carioca Kris Braz o quanto se via representado em suas histórias em quadrinhos. Naquele momento, Kris entendeu a real dimensão do universo que criou. Krisagon Barz tem 30 anos. É jovem de idade e de espírito. Nascido em Valença, Rio de Janeiro, é gay assumido, ama viajar e já morou em diversas cidades do Brasil. Formado em Design Gráfico pela Universidade Estadual de Londrina (Paraná), atualmente vive no Rio de Janeiro e, como a maioria dos conterrâneos, adora caminhar, andar de bicicleta, praticar ioga, e jogar vôlei na praia. Apesar de usar bastante a internet, prefere o lápis e papel, pois é onde desenvolve melhor a criatividade. zupi

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Em 2012, começou a dar forma a um projeto que já ansiava desenvolver: quadrinhos com personagens gays discutindo temas ligados a esse universo. Foram dois anos de trabalho antes de lançar no Facebook, em setembro de 2014, o Torta de Climão. “Queria criar quadrinhos que tivessem homens gays como personagens principais, baseados no que eu conhecia da realidade de amigos, conhecidos e situações pelas quais passei ou que me contaram. Algo que fosse leve, educativo, mas que também abordasse de maneira informal assuntos tabus ou que não eram tratados em quadrinhos com temática LGBT”, conta. Os quadrinhos de Kris passaram um ano sendo divulgados apenas no Facebook, que tem atualmente cerca de 20 mil seguidores. Em setembro de 2015, no primeiro aniversário da página, Kris lançou o site do Torta de Climão e, desde então, tenta fazer com que ele seja a principal vitrine de seu trabalho. Ele explica: “Minha página alcança média de 200 mil pessoas por mês, mas tenho notado que o próprio Facebook está diminuindo o alcance das publicações. Paciência, eles são uma empresa, é direito deles. Por isso meu esforço maior é para promover o site.” Protagonizado por Bruno, Juca, Lino, Tomas, Mari, Ana e Joana, os quadrinhos do Torta de Climão geralmente são curtos e bem-humorados, embora também toquem em assuntos como homofobia e o preconceito velado que muitos gays enfrentam. Tratam de assuntos e piadas que podem soar estranhos a quem não conhece ou frequenta o meio gay. Mas tratam de amor, carreira e cotidiano, assuntos comuns a todos nós. Justamente por isso, o artista não acredita que seus quadrinhos sejam excludentes: “Prefiro dizer que faço algo que envolva reflexão, gerando discussão acerca daquilo sobre o que as pessoas não pensam muito, seja sexualidade ou questões mais filosóficas como felicidade e a vida.” Kris explica que recebe diariamente várias mensagens de leitores, a maioria de gays e jovens entre 18 e 24 anos, que gostam de seus quadrinhos. “As mensagens são de apoio, crítica (na maioria das vezes construtivas), sugestões e histórias pessoais. Eles se veem representados e são muito carinhosos. Percebo pelo tom das mensagens quando o meu trabalho realmente teve um impacto na vida deles e isso é bem gratificante”, diz empolgado.

> www.tortadeclimao.com.br

Kris lançou, em 4 de novembro, a primeira coletânea impressa das histórias do Torta de Climão. Para o futuro, o artista quer ampliar ainda mais o alcance do seu trabalho. Pretende dar corpo a um sonho antigo: criar uma graphic novel voltada ao público LGBT. “Vivo constantemente na busca por uma vida feliz e positiva. O que espero é continuar a fazer coisas diferentes, desde que prazerosas.”

Sexualidade feminina em quadrinhos

Quem frequenta feiras de quadrinhos independentes, provavelmente já a viu a figura de dreads rosas, óculos de armação retrô e tatuagens pelos braços. A personagem é Gabriela Masson, de tem 24 anos e aluna de licenciatura de Artes Plásticas na Universidade de Brasília. 14

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Questões sociais

Na web, Gabriela é conhecida como Lovelove6. É considerada uma das maiores quadrinistas representantes do feminismo no Brasil. A paleta de cores dos seus trabalhos, bastante característica, varia de tons vibrantes a pastéis. A técnica favorita da artista é o desenho com grafite em tipos de papéis mais encorpados. Como toque final, usa canetas “fine” de diferentes espessuras, além de retocar digitalmente os trabalhos. Lovelove6 desenha desde os nove anos de idade. De Pokémon ao anime japonês Mahou Tsukai Tai, suas primeiras referências foram os mangás. Ela conta que passou boa parte da adolescência consumindo apenas revistas em quadrinhos japonesas. Até que descobriu Sandman, HQ americana escrita por Neil Gaiman. “Desenhei mangá durante muito tempo, mas não tinha paciência. Só comecei a fazer quadrinhos mesmo no começo de 2013”, conta. Desde suas primeiras tiras, a brasiliense aborda tabus como a sexualidade feminina, aborto e masturbação. Seu primeiro trabalho foi a zine Ética do Tesão na Pós-modernidade I e II. Nele, Lovelove6 coloca em prova a essência amor-sexo-corpo. No meio de 2013, criou a personagem Garota Siririca. “Com 20 anos, quando entendi como orgasmos funcionavam, percebi que muitas amigas nunca tinham gozado”, diz. Todas as histórias eram publicadas às sextas-feiras, na revista on-line Samba. Com elas, o público podia acompanhar a trajetória de uma personagem viciada em masturbação. Para Gabi, o tema é bem mais complexo do que parece: “É uma história sobre sexualidade e sobre amizade entre mulheres. A ideia é mostrar a masturbação feminina como algo natural. Buscar opor-se às representações estereotipadas, negativas e superficiais de mulheres nas histórias em quadrinhos.” O feminismo é usado como tema essencial para a produção dos quadrinhos de Lovelove6. A quadrinista quer desconstruir mentalidades opressoras ou discriminatórias: “Só de fazer uma história que não reproduz uma série de mentalidades recorrentes da pornografia, sem machismo, sexismo, racismo, transfobia, lesbofobia e homofobia, já vira algo muito diferente do que estamos acostumados a ver por aí”, explica. Com um público fiel, em fevereiro de 2015, a brasiliense decidiu levar o Garota Siririca para a plataforma Catarse. O objetivo foi captar recursos para publicar o livro da personagem. Conseguiu e alguns meses depois o livro ficou pronto. “Foi uma experiência superintensa e eu estou colhendo muitas oportunidades a partir dela”. A relação com os leitores também é positiva: “Em geral, o feedback é muito bom. Muitas meninas vêm e falam das próprias experiências! É mais uma barreira sendo quebrada.”

> www.lovelove6.com

Para o futuro, Gabriela Masson pretende continuar a produzir quadrinhos relacionados à masturbação feminina, sexo e relacionamentos. A artista ainda conta que quer incentivar cada vez mais outras garotas e mulheres a explorarem, sem culpa, a curiosidade em relação ao próprio corpo. zupi

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Traço & Obra

Artista itinerante Da internet ao financiamento coletivo, do crowdfunding à editora. Diego Sanchez conta sobre sua obra e as experiências editoriais que teve ao longo de sua breve – porém já consistente – carreira. Lá estava Diego Sanchez. Sentado na banca da editora Mino, na Ugra Zine Fest 2015, o quadrinista parecia concentrado, autografando Hermínia, sua obra mais recente. Esse carioca de 26 anos começou a desenhar muito cedo, sob a influência do irmão e da mãe, professora de educação artística. Entrar para a faculdade de Belas Artes foi natural para ele. “Lá comecei a desenhar sério”, conta. Diego explica que sempre gostou de HQs. “Os quadrinhos foram uma resposta para um mistério que me perseguia: o que eu quero fazer para sempre?”. Problemas pessoais o levaram a não concluir a faculdade, o que não o impediu de continuar fazendo quadrinhos. Em parceria com amigos, começou a postar sua produção numa página do Facebook. Ganhou visibilidade e conquistou fãs. “Foi ótimo porque começou a dar resultado. Alcançamos um público novo e criamos laços com ele”, conta empolgado. Em 2013, aos 23 anos, o acúmulo de ideias o levou a publicar o seu primeiro livro, Perpetuum Mobile, por meio do site de financiamento coletivo Catarse. Ele precisava de R$ 2.000 e conseguiu R$ 9.000. Nas 100 páginas em preto e branco, Diego Sanchez conta a história de uma pessoa normal com seus relacionamentos afetivos e sua vida profissional: “Eu sentia o dever de colocar todas as ideias e o máximo possível do que me viesse, para justificar a compra de um livro meu. Foi uma primeira sessão de terapia”. Já em 2014, Diego Sanchez publicou seu segundo livro, Pigma-

por: Taísa Barcelos ilustrações: Diego Sanchez foto: acervo pessoal > diegomas.tumblr.com

leão. Dessa vez lançado por uma editora, a Circuito Ambrosia. Depois de toda expressividade do livro anterior, e com a experiência adquirida por ter sido o próprio editor, a criação da obra foi tranquila. “A experiência da produção do livro foi muito similar a sensação que o livro passa, bem calma e silenciosa, cheia de caminhadas pelo Arpoador de madrugada sozinho.” O álbum em quadrinhos tem um clima onírico, com linguagem rápida. Nele, Sanchez narra o reencontro de um jovem casal em crise. Em setembro de 2015, Diego Sanchez lançou o seu terceiro livro de quadrinhos, Hermínia, pela Editora Mino. “A experiência com o Hermínia foi bastante diferente. Pela primeira vez, as sugestões da editora tiveram muita importância para o produto final. Foi um processo exaustivo, mas gratificante.” Para compor seus quadrinhos, Diego Sanchez usa como inspiração sua própria vivência e inquietações. “A ideia surge a partir de algo que vivi e descubro o personagem enquanto estou desenhando. O próximo passo é esboçar o roteiro. Vou escrevendo, desenhando e começo a entender mais do que se trata a história”, explica. Talvez essa fluidez entre inspiração, vivência e pensamentos explique como o livro Hermínia se tornou um dos pontos mais altos de uma carreira recente. Em 88 páginas, Diego Sanchez mostra o quanto seus quadrinhos ganharam ao explorar de forma plena certas possibilidades da narrativa sequencial. O livro evidencia o lado mais eficaz e fascinante desse jovem quadrinista. Mesmo tendo lançado seu último livro há pouco, Sanchez já pensa no próximo trabalho. Apesar de estar focado no meio impresso, a relação entre o artista e a internet é de gratidão. Afinal, foi por meio dela que a carreira do carioca deslanchou. zupi

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Questões sociais

“Magra de Ruim” e seus dramas vitorianos por: Lohaine Trajano ilustrações: Sirlanney foto: acervo pessoal

> www.sirlanney.com

Sirlanney saiu do interior do Ceará com o sonho de ser escritora. Mas foi na web e no traço que se encontrou, tornandose um dos principais nomes femininos dos quadrinhos nacionais. “Espera aí, quero um ângulo bom!”, exclamou Sirlanney minutos antes de posar para a foto. Já estava em seu segundo dia de participação na feira de quadrinhos independentes da Ugra. Ao lado de exemplares de seu livro, o Magra de Ruim, a artista posou com ar de distraída. A entrevista começou da forma mais descontraída possível. Sirlanney Nogueira (e não Sirlannêy, como costumam chamá-la) tem 30 anos. É natural de Morada Nova, região do Vale do Jaguaribe, no Ceará. Aos doze anos, sonhava em ser escritora e já publicava seus textos no jornal da escola. A paixão pelos textos foi crescendo até que, aos 16, decidiu criar seu blog. Não se sentindo realizada, mudou-se para o Rio de Janeiro, em 2008. Era hora de perseguir o sonho de viver escrevendo. Ao chegar em terras cariocas, Sirlanney começou a trabalhar em uma livraria. Foi lá que entrou em contato com os quadrinhos autorais. “Quando li Persépolis, da Marjane Satrap, percebi que ela fazia a mesma coisa que eu, só que com desenhos e quadrinhos”, conta. A artista, que não havia concluído a faculdade de moda, resolveu prestar vestibular para graduação em Artes Plásticas. O objetivo era aperfeiçoar seu traço. Ingressou na faculdade e, aos 22 anos, quis dar uma cara nova a seu blog. Batizou-o de Magra de Ruim. O espaço, onde antes só existiam contos, passou a abrigar quadrinhos feitos por Sirlanney. A transição não foi difícil. A quadrinista manteve a mesma personagem e as histórias autobiográficas de seus contos. Sexo, términos de relacionamentos, feminismo e questões cotidianas, tudo virava tiras. Em 2012 a cearense criou uma página no Facebook, preservando o nome de seu blog. “No começo tinha pouca repercussão. Passei um ano com mais ou menos duzentas curtidas”, relembra. Paralelo a isso, uniu-se aos quadrinistas Diego Sanchez e Felipe Portugal para criar a página Quadrinhos Insones. Era uma espécie de coletivo, no qual os três publicavam suas obras. Enquanto isso a página do Magra de

Ruim crescia cada vez mais, numa média de cinco mil novas curtidas por mês. Sirlanney resolveu testar o poder de mobilização da internet e, ainda em 2012, criou o primeiro projeto de financiamento coletivo no Catarse. Por meio dele, Sirlanney publicou uma zine (pequeno livro de quadrinhos com traços mais livres e menos preocupados com a estética). Ao notar que a plataforma realmente funcionava, ela se uniu a outras quadrinistas mulheres para tentar viabilizar o projeto Zine XXX. A ideia principal era dar visibilidade para as obras de quadrinistas mulheres que já publicavam ou que estavam começando a postar conteúdo no meio on-line. A expectativa era arrecadar R$ 11.000, mas elas conseguiram atingir R$ 28.000. “Com esse projeto, conheci muitas meninas que estavam criando ou tentando fazer quadrinhos experimentais na internet. Foi legal porque eu senti que dava para fazer quadrinhos para além dos meios tradicionais.” Já havia se passado um ano desde o sucesso da Zine XXX. Sirlanney percebeu que era hora de tentar realizar seu maior sonho: publicar o próprio livro em quadrinhos. “Eu já tinha bastante material, mas não era considerada quadrinista, acho. Faltava eu ter algo impresso”, comenta. Sem dinheiro para arcar com os custos, ela recorreu novamente à plataforma Catarse. “Foi muito trabalhoso, mas deu tão certo!”. No total, mais de 400 pessoas apoiaram o projeto. A meta de arrecadar R$ 18.000 foi superada. Ela conseguiu quase R$ 24.000 para seu livro, lançado em 2014. Sirlanney comenta que o mais gratificante é o carinho recebido de seus leitores. “Minha relação com eles é intensa, algo lindo. Não sei nem como agradecer.” A página Magra de Ruim no Facebook também se tornou um sucesso, fazendo de Sirlanney um dos maiores nomes femininos dos quadrinhos nacionais. Hoje são cerca de 100 mil seguidores e uma média de duas mil curtidas por postagem publicada. “A internet foi fundamental porque eu não precisei passar por nenhuma editora. Foi o público que gostou dos meus quadrinhos. É algo lindo. Esse trabalho é muito maior que eu.” zupi

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A polêmica peça publicitária gerou debates acalorados nas redes sociais e trouxe à tona a discussão sobre machismo e feminismo nos quadrinhos

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Questões sociais

Troféu HQMix e a bomba de machismo por: Lohaine Trajano foto: reprodução

Em 3 de setembro de 2015, quadrinistas tupiniquins mobilizavamse contra a organização do HQMix, considerado o prêmio mais importante dos quadrinhos brasileiros. O protesto tomou conta da página do troféu no Facebook. A polêmica começou quando os organizadores publicaram um convite eletrônico do evento. Tratava-se de uma foto da modelo Renata Molinaro usando biquíni, de costas, em pose insinuante. Junto à peça, estava o logo de campanha da premiação – uma bomba – e a frase “Venha Bombar”. A postagem ficou no ar por apenas quatro horas, mas foi tempo o suficiente para despertar a ira de muitos, especialmente das mulheres, alegando tratar-se de um conteúdo extremamente machista. Jal José Alberto Lovetro, organizador do prêmio, surpreendeu-se com a mobilização e emitiu uma nota oficial na qual dizia que a peça não passava de conteúdo de cunho humorístico: “Fomos chamados de machistas por uma postagem de campanha humorística sobre o próximo troféu HQMix. Essa postagem foi mal interpretada por várias pessoas. Estamos sendo bombardeados como se não houvesse passado, como se bastasse qualquer fato para apagar tudo o que foi feito por uma vida. Se houve alguém se sentiu desrespeitado, posso garantir: não foi nossa intenção.” O pronunciamento, no entanto, não acalmou os ânimos. “Eles quiseram nos silenciar. Quando Jal se pronunciou, parecia uma carteirada, como se ele julgasse conhecer mais sobre feminismo que nós, mulheres”, diz Sirlanney, quadrinista criadora da Magra de Ruim. Ela destaca o ano de 2014 como muito importante para as quadrinistas mulheres. Tal acontecimento pode ser visto como uma sabotagem. Em carta aberta divulgada pelo coletivo Mulheres em Quadrinhos, artistas afirmaram que a peça gráfica foi intolerável: “Há anos, mulheres envolvidas na produção e consumo de histórias em quadrinhos lutam por mais espaço e representatividade. É inadmissível que um prêmio tão importante para o reconhecimento e valorização das HQs brasileiras, produza uma campanha desrespeitosa como essa, invisibilizando e ridicularizando a articulação das mulheres quadrinistas e outras agentes”, diz um trecho da carta. Gabriela Masson, responsável pelos quadrinhos Garota Siririca, avalia que o episódio colocou em xeque todo o esforço e recriminação que as mulheres enfrentam no cenário dos quadrinhos: “Essas meninas são esquecidas na hora de ganhar prêmio ou serem convidadas para eventos. São hostilizadas e ridicularizadas pelos outros quadrinistas. Um homem faz uma tirinha boa sobre feminismo e ganha prêmio. Já uma mulher... nada!”. Nenhum outro pronunciamento foi feito pelos organizadores do HQMix. O assunto foi abafado, mas deixou uma mancha na história da premiação e provavelmente voltará à tona sempre que se falar na relação entre feminismo e quadrinhos brasileiros. O prêmio foi entregue em 12 de setembro de 2015, no teatro do Sesc Pompeia, em São Paulo.

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Quadrinhos.html por: Gustavo Nascimento quadrinhos: Cátia Ana foto: acervo pessoal

> www.odiariodevirginia.com

Saiba mais sobre a artista que aproveitou os recursos da web para fazer uma HQ autobiográfica. Isso em meio a debates sobre qual é, de fato, o conceito que define a linguagem da nona arte.

da webcomic O Diário de Virgínia. Trata-se de uma série dividida em capítulos que abordam situações relacionadas ao cotidiano da personagem (e, até certo ponto, de todos nós).

Em 2010, a paulistana Cátia Ana amargava um período bastante infértil em sua vida. Havia perdido a mãe no mesmo momento em que se formava em Design Gráfico pela Universidade Federal de Goiás. Não sabia muito o que fazer com o diploma, e menos ainda com o sentimento de perda.

Para publicar a história, Cátia Ana optou por explorar o máximo que pôde os recursos da web. O resultado disso é que cada episódio da série traz elementos gráficos próprios da linguagem html, como tela infinita, sons e gifs.

A primavera chegou na vida de Cátia quando ela conheceu Retalhos, graphic novel autobiográfica assinada pelo quadrinista norte-americano Craig Thompson. Ela conta que se apaixonou “pelos traços, pela história, pela possibilidade de lidar com problemas pessoais e pelas belíssimas metáforas visuais que o autor utilizava para isso.” Retalhos fez com que Cátia, então com 26 anos, voltasse a desenhar como maneira de exorcizar seus fantasmas. Nesse processo surgiu Virgínia, seu alterego nos quadrinhos e protagonista 22

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Quem lê O Diário de Virgínia mal pode imaginar o trabalho que dá para embarcar em experimentações desse tipo. A começar pelo processo criativo. Segundo Cátia, às vezes as ideias vêm soltas à cabeça. Em outras, as imagens e cenas vêm prontas. “Quase sempre faço também uma pesquisa visual de imagens, pessoas, lugares ou objetos que possam se relacionar com a história.” Este estudo, para ela, desperta outras possibilidades que melhoram o final imaginado. A etapa seguinte é sentar e pôr tudo no papel. “No início eu esboçava, finalizava o traço a nanquim, digitalizava, coloria e mon-


Traço & Obra

tava tudo no Photoshop. Mas os últimos capítulos que fiz foram desenhados e coloridos à mão, com lápis aquarelável em papel tamanho A4.” As páginas recebem texto logo após serem digitalizadas. Então, Cátia monta a página infinita no Photoshop. Cria um novo arquivo em baixa resolução. Fatia a imagem em vários pedaços e exporta para a web. Monta tudo cuidadosamente como num quebra-cabeça, se certificando de que o produto está bem encaixado em dois navegadores, no mínimo. Por fim, ela posta a página finalizada no servidor e a divulga no perfil da série no Facebook e Twitter. A labuta acabou por influenciar a periodicidade da série. No início, era um post por mês. Mas foram ficando mais e mais espaçados. “Criar e montar os capítulos consome muito tempo e, principalmente, muita energia física e mental”, mas dá um bom retorno. O Diário de Virgínia já foi indicado por duas vezes ao HQMix, prêmio máximo dos quadrinhos nacionais, na categoria webcomic. A leitura favorita de Cátia é Bianca Pinheiro, outra quadrinista que usa algumas animações em sua webcomic Bear. “Faço a página normalmente apenas colocando animação no quadrinho específico”, conta Bianca. “O próprio Photoshop tem esse recurso, então é bem tranquilo. Embora minhas animações sejam simples”. Ainda assim, o formato intermidiático da obra gera polêmica por passar longe – como dizem os mais conservadores – da linguagem característica às HQs. Lá fora, esse formato é chamado simplesmente de webcomic, como NAWLZ, do australiano Sutu. Aqui no Brasil, ele é frequentemente chamado no meio acadêmico de HQtrônica, termo cunhado pelo pesquisador e também quadrinista, Edgar Franco. Em 2004, o mineiro havia acabado de lançar o livro HQtrônicas: do suporte papel à rede internet, quando veio palestrar na USP

sobre o assunto. Foi retaliado. “A ideia era mostrar que estava surgindo algo novo, mas acreditaram que minha intenção era desfazer um paradigma”, disse ele, que produz quadrinhos impressos até hoje. Mas também se aventura por essa nova linguagem. Sua HQtrônica NeoMaso Prometeu foi menção honrosa no 13º Videobrasil - Festival Internacional de Arte Eletrônica, realizado no Sesc Pompeia, em 2001. O jornalista Ramon Vitral, autor de reportagens sobre quadrinhos para grandes veículos, além de seu próprio blog, o Vitralizado, acredita que a falta de consenso sobre a definição de quadrinhos é constante entre críticos e estudiosos. Até mesmo quando se trata de sua linguagem tradicional. Quando entrevistou Scott McCloud, um dos maiores quadrinistas e teóricos do tema, Vitral questionou justamente esse assunto. McCloud respondeu que era uma discussão muito ampla e objetiva, mas extremamente mutável. O jornalista acrescenta: “É como o cinema: não era preto e branco? Não era mudo? Colocaram cor e fala. Continua sendo cinema? Claro!” A verdade é esta: sem os recursos próprios das HQtrônicas, O Diário de Virgínia não teria a mesma graça. Cátia Ana defende o conceito deste novo meio como mais uma opção narrativa para o artista. Portanto, desacredita que o impresso morrerá um dia. “Os dois meios vão coexistir, cada um com suas peculiaridades, vantagens e desvantagens”. Aliás, Cátia parece ter conhecido uma das desvantagens da web. Pouco tempo após a entrevista, a autora revelou no YouTube que O Diário de Virgínia seria descontinuado, porque seu objetivo terapêutico fora finalmente alcançado. Como o site da série é pago, o término do contrato desaparecerá com o lar de Virgínia. Cátia, por sua vez, continua aberta a experimentações e está sempre em busca de mais histórias para serem escritas. Sua página sairá do ar, mas ela sabe: histórias são eternas. zupi

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por trás de Armandinho por: Paulo Dias quadrinhos: Alexandre Beck foto: acervo pessoal > facebook.com/tirasarmandinho

Criação de Alexandre Beck, Armandinho nasceu no jornal impresso para crescer entre os usuários das redes sociais. Hoje, figura como uma das páginas de tiras de maior sucesso no Facebook. Homem sério, de voz calma e sorriso convidativo. Esse é Alexandre Beck, catarinense de 43 anos que atualmente vive em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Pai da Fernanda e do pequeno Augusto, Beck é o homem por trás de um dos personagens mais queridos e populares das redes sociais brasileiras: o menino Armandinho. Apesar de cultivar o interesse por quadrinhos e pela arte de desenhar desde pequeno, Alexandre Beck quase tomou um rumo completamente diferente na vida. Isso porque sua primeira formação universitária foi em Agronomia. “Eu tinha 16 anos quando prestei vestibular. Na época, achava que era o certo a fazer”. Mesmo estudando Agronomia, Beck não deixou as ilustrações de 24

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lado. A paixão por desenhos cresceu a ponto de ele voltar para a faculdade, anos depois, para cursar Comunicação Social com habilitação em Publicidade. Foi o passo que faltava para emergilo de vez no universo das ilustrações e dos quadrinhos. Quando terminou o curso, em 2000, ingressou no jornal Diário Catarinense como ilustrador. Dois anos depois, foi convidado pelo jornal para fazer tirinhas, função que desempenhou até deixar o veículo, em 2005. Quatro anos mais tarde, Beck voltou à equipe do jornal produzindo tirinhas, desta vez como colaborador. Uma de duas primeiras demandas foi elaborar um conjunto de três tiras que ilustrassem uma matéria sobre pais, filhos e economia doméstica. “Os personagens que eu já tinha não serviam, e não havia muito tempo para produzir novos. Não queria recusar a proposta, foi então que usei o desenho pronto de um menino, e fiz rapidamente dois pares de pernas para representar os


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pais”, conta Beck. Nascia aí o pequeno Armandinho, menino de espírito curioso e contestador, chamativos cabelos azuis, cabeça desproporcionalmente grande e que tem um sapo como animal de estimação.

buscar ver as coisas de maneira mais pura, menos contaminada pelas falsas verdades dos adultos. Às vezes, não enxergamos o óbvio, e um olhar de criança pode nos lembrar do que já fomos: curiosos e questionadores”.

O nome Armandinho veio através de um concurso promovido pelo próprio jornal. “As pessoas sugeriram e deram a justificativa. Armandinho, segundo o leitor que venceu, é porque ele sempre está armando algo”, explica Beck.

Alexandre Beck usa a internet como ferramenta de trabalho e, portanto, navega com moderação. “Não estou sempre conectado e procuro reduzir esse tempo ao mínimo necessário. Pra você ter uma ideia não tenho nem internet no telefone. Prefiro olhar as árvores”, revela.

Armandinho foi publicado exclusivamente no impresso desde sua criação até meados de 2012. No começo de 2013, Beck produziu uma tira homenageando as vítimas do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, e reproduziu na internet. A tira ganhou as redes numa proporção que Beck jamais poderia imaginar e apresentou Armandinho ao Brasil inteiro. “Aquele foi um dia longo e triste. Mas quando caiu a noite, veio uma lua cheia linda e um céu estrelado. Fiz a tirinha e publiquei no Facebook. Não foi para o jornal. Era um desabafo nosso [meu e da minha família].” Hoje, Alexandre Beck tem quase 800 mil seguidores no Facebook, seis livros do Armandinho publicados e uma média de dez mil curtidas e dois mil compartilhamentos a cada nova postagem. Apesar de ser uma das páginas de tiras de quadrinhos mais compartilhada da internet, Beck sente receio da palavra sucesso, pois acredita que ela pode ser mal interpretada. “Se eu conseguir provocar pequenas mudanças de comportamento das pessoas no dia a dia, dos pais para com os filhos, por exemplo, já fico muito satisfeito”, responde o quadrinista. De onde vem o espírito questionador e ao mesmo tempo ingênuo de Armandinho? Beck diz que é resultado de “um esforço em

É justamente por tratar a internet como meio de trabalho, que Beck lida com parcimônia em relação ao feedback que recebe dos internautas. Ele considera importante ouvir os leitores, mas admite: “Muitas das tiras que gosto não coincidem com as que têm o maior retorno dos leitores da rede social. Não quero cair na tentação de agradar os outros e deixar de fazer aquilo que julgo importante”. Apesar do sucesso na internet, Beck não sai do impresso. Continua publicando suas tiras no jornal e já lançou seis coletâneas impressas das tiras de Armandinho. Ao comentar sobre seus livros, ele explica: “Eu creio que é muito importante não criar expectativas para evitar decepções. Faço os livros como se fossem apenas para mim. Como gostei do resultado, já me dou por satisfeito”. O próprio Beck diagrama, edita, revisa e envia os livros à gráfica. A Editora Matrix, de São Paulo, faz a distribuição nacionalmente. Para o futuro, Alexandre Beck quer investir em outros projetos, como quadrinhos com fins educativos. Mas nem pensa em deixar Armandinho de lado, tanto é que já trabalha na tradução das tiras para o espanhol. O pequeno e curioso garoto de cabelos azuis está fazendo as malas para ganhar o mundo. zupi

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Bate-papo em quadros sequenciados Bruno Maron e Ricardo Coimbra conseguiram realizar-se no mundo dos quadrinhos começando pelo formato de blog. Num boteco de Perdizes, em São Paulo, eles contaram à nossa reportagem como isso se deu. Maron e Coimbra têm 37 anos. Moram há cerca de três anos na capital paulista. Foi aqui também onde se conheceram. Desde o primeiro contato, notaram uma infinidade de coisas em comum, especialmente a paixão pelos quadrinhos. Logo se tornaram grandes amigos, e ao lado de Calote, Bruno di Chico e Luciana Foraciepe (vulgo Maria Nanquim e noiva de Maron), formam o quinteto que criou a Xula, revista de quadrinhos independente. Bruno Maron é formado em Design Gráfico pela PUC-Rio. Já trabalhou como ilustrador nos jornais O Globo e Jornal do Brasil. Atualmente colabora com veículos como as revistas TRIP e Cult, e como o caderno Ilustríssima da Folha e o jornal Le Mond

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por: Gustavo Nascimento e Paulo Dias fotos: Gustavo Nascimento Ricardo Coimbra > vidaeobrademimmesmo.blogspot.com.br Bruno Maron > dinamicadebruto.wordpress.com


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Diplomatique. É criador do Dinâmica de Bruto, projeto que rendeu até o momento um blog, uma página no Facebook e um livro impresso. Ricardo Coimbra é formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É mineiro de Recreio, cidade de dez mil habitantes. É criador do blog Vida e Obra de Mim Mesmo. [Zupi] Quando seu blog surgiu, Ricardo? [Ricardo] Meu blog surgiu em 2009, embora eu já desenhasse antes. Vim aqui em São Paulo pra trabalhar. Logo em seguida fiquei desempregado e foi aí que eu fiz o blog. [Zupi] E O Dinâmica de Bruto, Bruno? [Bruno] O blog em si surgiu em 2008 em parceira com um amigo do RJ. Mas não era um blog de quadrinhos, era de manifestações diversas, frases, vídeos, contos, etc. Foi então que em 2010 eu cheguei para ele e falei que queria fazer e divulgar quadrinhos no blog. Ele acabou saindo e eu assumi sozinho. [Zupi] De onde vem o nome de seu projeto? [Bruno] Aconteceu em 2000. Na época, eu fiz uma dinâmica numa entrevista de emprego para trabalhar no núcleo de produção gráfica e videográfica de uma emissora de televisão. Em algum momento da dinâmica, cada um teve que fazer uma pergunta para a outra pessoa. Para mim, era para desarticular o concorrente. Algumas pessoas jogaram pesado. Voltei para casa, “esfrangalhado” por causa da entrevista, aí veio a ideia do Dinâmica de Bruto, porque quem vence, é bruto. É o cara que consegue aniquilar o outro por uma brutalidade não-física. [Zupi] E como é o seu processo de criação de quadrinhos, Bruno? De onde surge o texto, o desenho, as ideias? [Bruno] Sempre ando com um Moleskine para todo lado, fazendo anotações, sempre atento. Eu tenho o costume de digitalizar e arquivar todas as minhas anotações. Fazer uma espécie de arquivo de ideias, mesmo que vagas. Com o tempo eu olho para aquelas ideias soltas e começo a estabelecer conexões, formo uma espécie de cartografia, e de repente percebo que isso constitui uma história. Eu desenho no papel e digitalizo no computador. Lá eu trato, edito e dou cor aos desenhos num programa, para então publicá-los. [Zupi] E com você, Ricardo, é a mesma coisa? [Ricardo] Também vou anotando num bloquinho, num guardanapo que seja, e guardo. Depois eu passo a limpo num arquivo, e quando quero fazer, pego alguma ideia e rabisco, escaneio, coloro com o baldinho do Photoshop e pronto. [Zupi] Vocês recebem críticas negativas em relação a seus quadrinhos e as mensagens presentes neles? Como vocês reagem? [Bruno] Sim, diversas vezes. Eu acho interessante quando algo que eu faço deixa alguém revoltado. Mas já foi pior, hoje em dia raramente recebo críticas, acho que estou mais cauteloso. Na verdade, acho que estou mais preocupado em não causar

polêmica gratuitamente, coisa que eu fazia bastante no começo. Hoje, foco em recolher informações e tento ser menos preconceituoso e menos ácido. Ou talvez eu só esteja à procura de um novo tipo de acidez, porque a acidez tradicional não está colando, as pessoas não estão aceitando mais. [Zupi] Explique melhor isso. [Bruno] Os quadrinhos que me inspiraram a criar meu blog, entre 2008 e 2010, atingiram o ápice de sacanagem e zoação. Isso deixou as pessoas enjoadas desse tom. Nesses últimos cinco anos muita coisa mudou em nosso país, principalmente nas pessoas e na atenção que dão para tudo, inclusive para os quadrinhos. É nesse sentido que tento não ser polêmico gratuitamente, não gerar burburinho desnecessário. [Ricardo] Acredito que as pessoas são muito reativas. É característico na internet as pessoas entrarem nas páginas para brigar. Mas, no humor, os quadrinistas perderam a coragem de provocar. Tem que provocar, causar desconforto numa certa medida. Este é o meu esforço. No final das contas, as pessoas gostam porque são meio masoquistas. E, de uma certa forma, elas lembram mais de quem não gostam se comparado a quem gostam. [Zupi] Como foi o processo de produção das obras impressas? [Bruno] A ideia surgiu em 2014, numa conversa com a Lulu (Luciana Foraciepe). Eu já tinha um volume considerável de quadrinhos. Publiquei de forma independente com o selo da Maria Nankim. Foi bem legal, tanto que já estou produzindo a segunda coletânea. A primeira incluiu trabalhos meus de 2010 a 2012. Essa segunda edição terá trabalhos de 2013 até 2015. Vendi mais ou menos 200 livros até agora. Lançamos em março deste ano e está vendendo uns três livros por semana. [Ricardo] Ah, a minha foi meio que uma picaretagem, porque eu reuni as tirinhas já publicadas. Tipo um greatest hits, sem os greatest... E sem os hits também [risos]. É como se fosse uma banda lançando o primeiro disco só com sucessos, porém sem ter sucessos. [Zupi] O número de quadrinistas na internet aumentou bastante nos últimos tempos. Mas e em relação à qualidade, melhorou também? O que pensam a respeito? [Bruno] A qualidade não acompanha quantidade, é fato. A cada dia devem nascer uns vinte quadrinistas vagabundos no Brasil. Mas é aquela coisa, o tempo filtra tudo, o que não for realmente bom surge e some. Sinto que existe uma moda. Está na moda ser quadrinista, ainda mais com a facilidade da internet. Mas é como eu disse, é moda, surge e some. [Ricardo] A internet tem disso: expande o alcance, mas aumenta também a possibilidade de conteúdo ruim publicado. E tem outra coisa: o lugar onde você publica determina a maneira com que você vai criar a obra. O quadrinista nem sempre faz uma coisa porque ele acha demais. Faz porque pensa em quem vai curtir. Mas não acho totalmente ruim, principalmente porque na minha época não existiam muitas formas de divulgar o próprio pensamento. Quem se expressava era gente com grana pra publicar suas ideias. A internet mudou isso. Aliás, eu só me tornei quadrinista por causa da internet.

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Deus é brasileiro... e virou webcomic por: Bianca Camargo quadrinhos e ilustrações: Carlos Ruas > www.umsabadoqualquer.com

Ele transformou um de seus hobbies em sua principal fonte de renda e conquistou milhares de fãs. Conheça a história de Carlos Ruas, criador do blog Um Sábado Qualquer, sucesso de público na web. Se para a maioria dos quadrinistas os quadrinhos são um hobby que deu certo, para o carioca Carlos Ruas as histórias são uma valiosa fonte de renda. Formado em Design, Ruas é o criador do site e da página no Facebook Um Sábado Qualquer. Bem-humorado, o jovem de 31 anos mostra irreverência em suas histórias ao falar de maneira bastante cômica sobre um dos assuntos mais polêmicos do mundo: a religião. O site no qual posta suas histórias é um dos mais acessados do país no gênero, com cerca de 47 mil acessos diários. Um Sábado Qualquer traz como personagens centrais Deus e Luci (alusão à Lúcifer). Segundo Ruas, a ideia para criar os quadrinhos surgiu de sua fixação por estudar religião e mitologia. Carlos Ruas começou a desenhar seus quadrinhos em 2008, ainda no papel. O que era um passatempo eventual, aos poucos passou a ocupar os fins de semana e noites do designer. Antenado, ele acabou optando por expor suas histórias na internet. Foi uma explosão: a página do Facebook já ultrapassa os 2,5 milhões de seguidores, com cerca de 20 mil curtidas por postagem. A popularidade de seus personagens e o grande número de acessos em sua página na web levou o designer a repensar sua carreira. “Quando o trabalho de qualquer artista começa a dar certo, surge a necessidade de empreender. Não é uma tendência natural. Não é que você queira virar empreendedor, é uma necessidade”, conta. No entanto, o caminho para o sucesso teve os seus desafios. Carlos decidiu sair do emprego em uma agência de publicidade para investir na carreira de quadrinista. A popularidade de seus personagens o levou a criar uma marca, desenvolvendo produtos

que vão desde canecas até bichos de pelúcias. Porém, como aumento da demanda, Carlos precisou de reforços para conseguir atender aos pedidos e continuar com as histórias. “No início tentei me aventurar sozinho, mas comecei a perder muito dinheiro por desinformação. Sem contar que a loja estava preenchendo meu tempo de criação e isso não podia acontecer”, lembra Ruas. Atualmente, seis anos após a criação do blog e com uma equipe de quatro pessoas, Carlos Ruas divide sua atenção entre dois projetos. Além de Um Sábado Qualquer, ele também dedica seu tempo à produção da série Cães e Gatos. Criados em agosto de 2015 e publicados semanalmente no site e no Facebook, os quadrinhos que narram as aventuras de um cão e um gato já são mais um sucesso na carreira de Ruas: têm cerca de de 150 mil curtidas no Facebook. Carlos não para. Após conquistar a internet, ele quer um novo público: o dos usuários de celular. Pensando nisso, criou um aplicativo para mobiles. Lançado em meados de 2015, já possui mais de 1,5 mil usuários. O principal objetivo do aplicativo é compartilhar diariamente tiras de quadrinhos com os usuários e proporcionar maior agilidade na compra de produtos da marca. O humor ácido, aliado à visão empreendedora, faz de Carlos um exemplo de sucesso profissional. Seu Um Sábado Qualquer foi agraciado com o prêmio Troféu HQMix, em 2012, e já ganhou versões em inglês (Once Upon a Saturday) e em francês (Un Samendi Quelconque).

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Traço & Obra

Roteiros à máquina, gibis à mão Em meio aos avanços tecnológicos, o quadrinista Ziraldo Alves Pinto mantém suas histórias e personagens afastados do meio digital. Ainda assim, ele continua arregimentando fãs de todas as idades.

por: Bianca Camargo quadrinhos e ilustrações: Ziraldo foto: acervo pessoal

Os leitores mais novos de Ziraldo já devem ter se perguntado porque as aventuras de seus personagens ainda não estão presentes na web. Teriam O Menino Maluquinho, O Pererê e outros célebres personagens infantis de suas histórias resistido aos avanços das novas tecnologias? Parece que sim. E o motivo é simples: redes sociais, sites e blogs não fazem parte da realidade do quadrinista mineiro. Ziraldo recebeu a reportagem no quarto de hotel em que estava hospedado, na zona oeste de São Paulo. Homem de voz serena e sorriso amigável, alertou de imediato que provavelmente pouco poderia contribuir com o tema. “Eu tenho a cabeça de um nascido no século 19. Não sei quase nada sobre internet. Se tem algo na internet sobre as minhas histórias, certamente não fui eu quem as colocou lá!”, comenta soltando uma gargalhada. Ziraldo Alves Pinto é cartunista, quadrinista, escritor e jornalista. Nascido em Caratinga, interior de Minas Gerais, tem 82 anos, dos quais mais de 75 anos são de dedicação aos quadrinhos e à literatura brasileira. Publicou seu primeiro desenho em um jornal local quando tinha apenas seis anos de idade. Desde então, suas obras conquistaram fãs pelo Brasil e pelo mundo. zupi

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Apaixonado por máquinas de escrever, Ziraldo ganhou a sua primeira em 1960 e diz que “não abre mão da velha e boa máquina”. Faz uso dela para compor suas histórias, mas conta com o auxílio de sua equipe para transcrevê-las no computador. O processo de desenho também é parecido: ele traça à mão e seus colaboradores transferem os desenhos para modernos programas de computação. As aventuras de seu personagem mais marcante, o Menino Maluquinho, surgiram em 1980. Trata-se de um garoto esperto de dez anos, reconhecido facilmente por sua inseparável panela na cabeça, usada como chapéu. Ainda hoje, o personagem cativa crianças e adultos atraídos por sua tagarelice, inocência e pelas aventuras que desbrava. Tanto é que os fãs foram responsáveis pelo pontapé inicial da inserção da obra de Ziraldo na internet. Eles criaram duas páginas no Facebook: uma dedicada ao Menino Maluquinho e outra dedicada à Professora Maluquinha. Estreada em janeiro de 2012, a do Menino possui cerca de três mil curtidas é administrada de maneira colaborativa, na maioria das vezes alimentada por meio da digitalização de quadrinhos do personagem. A da Professora segue a mesma linha e tem cerca de 32

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quatro mil curtidas. “Eu não sabia que meu trabalho estava lá [no Facebook]”, surpreende-se Ziraldo. “Não fiz perfil, não entendo como funciona, e mesmo assim eu e meu trabalho estamos lá!”, comenta admirado. Embora não marque presença oficial na internet, Ziraldo admira as ferramentas e possibilidades da web. “Em 1964, decidi criar a primeira revista de histórias em quadrinhos brasileira: a Turma do Pererê. Não tive quem divulgasse meu trabalho, era tudo boca a boca. Hoje em dia é bem mais fácil para os que estão começando pois existe a web”, opina. Ziraldo é movido a desafios. Seus personagens já conquistaram as telas dos cinemas, os palcos de teatro e até a televisão. Por mais receoso que esteja em relação a web, parece que é questão de tempo até que o Menino Maluquinho e seus amigos entrem oficialmente no universo da internet. “Há conversas sobre o assunto, há planos, mas não há prazos”, esclarece. De todo modo, Ziraldo segue fazendo o que sabe fazer de melhor: encantar crianças de todas as idades com suas histórias. Até porque, nas palavras do próprio, “um trabalho bem feito sempre será prestigiado, seja no impresso ou na internet”.


Traço & Obra

Se

compartilhar,

credite por: Taisa Barcelos

Não é só na música ou na literatura que se discutem direitos autorais. No universo dos quadrinhos, a questão também é levantada há alguns anos, tanto no Brasil quanto no mundo. Contratos abusivos impostos pelas editoras em relação aos quadrinistas e roteiristas, ascensão da internet e das redes sociais e plágio de ideias são algumas das polêmicas suscitadas na área. Basicamente, duas questões são apontadas pelos quadrinistas e roteiristas como fundamentais quando se discutem direitos autorais: créditos aos criadores dos quadrinhos em todas as obras publicadas (no impresso) e compartilhadas (no digital) e o pagamento de royalties referentes aos personagens. Segundo a advogada Maria Luiza Egea, especialista em direito autoral, diretora da Associação Brasileira de Direito Autoral (ABDA) e membro da Comissão de Direitos Autorais da OABSP, o Brasil não tem uma lei que enquadre especificamente os quadrinhos, mas a legislação geral sobre direitos autorais contempla esse tipo de obra tanto quanto livros, músicas e outras artes. É a Lei Federal n º 9.610/98, que explana dois aspectos: patrimonial e moral. “O aspecto moral aplicado aos quadrinhos implica que qualquer pessoa desejosa de reproduzir tais obras precisa creditar o quadrinista ou roteirista autor da mesma. Ninguém pode copiar, divulgar, reproduzir a obra dele sem a autorização”, esclarece Maria Luiza. A advogada explica que “o aspecto patrimonial diz respeito ao direito do autor sobre sua obra. Só ele pode dispor e autorizar sua utilização ou fruição por terceiros, seja economicamente ou não, por meio de reprodução, comunicação ao público ou por distribuição, entre outros”. Assim, o direito de reconhecimento e remuneração é obrigatoriamente para o criador da obra. Em cada utilização por terceiros, quer seja de representação ou reprodução, deverá haver autorização prévia e explícita do quadrinista/roteirista. A exceção à regra diz respeito aos casos de obras que caem em domínio público. Ter o direito autoral assegurado no Brasil independe da formalidade de registro desde que, de alguma maneira, o quadrinista/ roteirista prove legalmente que ele é o autor da obra. Isso pode ser feito através de publicações em jornais, revistas de quadrinhos, sites e outros. O que se vê atualmente em relação aos quadrinistas da internet é uma flexibilidade em relação ao assunto. Eles sabem que o ambiente on-line é caracterizado pela reprodutibilidade e compartilhamento. Por isso, na maioria das vezes apenas pedem para que sejam creditados em todas as reproduções de seus quadrinhos em páginas que não tenham fins lucrativos. É o caso do quadrinista Alexandre Beck, criador do personagem Armandinho. Ele explica: “Não me importo que reproduzam minhas tiras, internet é isso mesmo. Só fico de olho se eles me creditam. Se assim o fizerem, está tudo bem”. zupi

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PARA FICAR DE OLHO

Ana Recalde e Denis Melo > www.petisco.org/beladona/

Cadu Sim천es, Will, Ricardo Marcelino, Vinicius Visentini > www.homemgrilo.com

Daniel Lafayette > www.ultralafa.wordpress.com

pedro leite > www.quadrinhosacidos.com.br 34

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