Mário Quintana Esconderijos do Tempo

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Esconderijos do tempo Mario Quintana


Eu faço versos

Eu faço versos como saltimbancos Desconjuntam os ossos doloridos. A entrada é livre para os conhecidos... Sentai, amadas, nos primeiros bancos! Vão começar as convulsões e arrancos Sobre os velhos tapetes estendidos... Olhai o coração que entre gemidos Giro na ponta de meus dedos branco! "Meu Deus! Mas tu não mudas o programa!" Protesta a clara voz das bem-amadas. "Que tédio!" o coro dos amigos clama. "Mas que vos dar de novo e de imprevisto?" Digo... e retorço as pobres mãos cansadas: "Eu sei chorar... Eu sei sofrer... Só isto!"

Heróis

As biografias dos grandes homens são feitas de absurdos, estão cheias de acontecimentos incômodos, que atravancam tudo. A vida deles lhes acontece de fora para dentro. Muito mais interior, mais natural, mais humana é atua vidoca, Anônimo leitor, que és o herói sem história do quotidiano. Se pudesses, se soubesses contar-me a tua vida, eu tiraria dela muito mais proveito do que da vida de Napoleão.

Trova

Fosse o mundo um paraíso... - Paraíso de verdade! morrerias sem saber o que é a felicidade...


Madrigal recusado

Não sou mais que um poeta lírico, Nada sei do vasto mundo... Viva o amor que eu te dedico, Viva Dom Pedro Segundo!

Trova

Quem as suas mágoas canta, Quando acaso as canta bem Não canta só suas mágoas, Canta a de todos também.

Maria

Há três coisas neste mundo Cujo gosto não sacia É o gosto do Pão, da água e o do nome de Maria.

Trova

Coração que bate-bate Antes deixe de bater! Só num relógio é que as horas Vão batendo sem sofrer.

O poeta

Venho de fundo das eras, Quando o mundo mal nascia... Sou tão antigo e tão novo Como a luz de cada dia!


Dedicatória

Quem foi que disse que eu escrevo para as elites? Quem foi que disse que eu escrevo para o bas-fond? Eu escrevo para a Maria de Todo o Dia. Eu escrevo para o João Cara de Pão. Para você, que está com este jornal na mão... E de súbito descobre que a única novidade é a poesia, O resto não passa de crônica policial-social-política. E os jornais sempre proclamam que "a situação é crítica"! Mas eu escrevo é para o João e a Maria, Que quase sempre estão em situação crítica! E por isso as minhas palavras são cotidianas como o pão nosso de cada dia E a minha poesia é natural e simples como a água bebida na concha da mão.

Ciranda rodava...

A ciranda rodava no meio do mundo, No meio do mundo a ciranda rodava. E quando a ciranda parava um segundo, Um grilo, sozinho no mundo cantava... Dali a três quadras o mundo acabava. Dali a três quadras, num valo profundo... Bem junto com a rua o mundo acabava. Rodava a ciranda no meio do mundo... E Nosso Senhor era ali que morava, Por trás das estrelas, cuidando o seu mundo... E quando a ciranda por fim terminava E o silêncio, em tudo, era mais profundo, Nosso Senhor esperava... esperava... Cofiando as suas barbas de Pedro Segundo... Minha rua está cheia de pregões.


Parece que estou vendo com os ouvidos: "Couves! Abacaxis! Cáquis! Melões!" Eu vou sair para o carnaval dos ruídos, Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões Horrorizado as mãos nem teus ouvidos? Anda: escutemos esses palavrões Que trocam dois garotos atrevidos! Pra que viver assim num outro plano? Entremos no bulício quotidiano... O ritmo da vida nos convida. Vem! Vamos cair na multidão! Não é poesia socialista...Não, Meu pobre anjo... É... Simplesmente... a Vida!...

Trecho de um diário

Lumbago. Mal consigo mover-me. - Paciência, paciência... - me diz dona Glorinha, que vem me trazer o café na cama. - O senhor não tem fé? Dedique suas provações a Deus. O engraçado é que ela está falando sério. E a última frase, de tão ouvida e repetida, lhe brota com toda a naturalidade. Mas eu fico pensando que diabo de Deus será esse... Acaso lhe serão gratos os nossos sofrimentos? E relembro eruditamente (?) arrepiado os sacrifícios humanos oferecidos a Moloch. Ah! Dona Glorinha, sabe de uma coisa? Estou ficando muito, muito, muito desconfiado de que, se o Deus mudou, os crentes continuam os mesmos...

Dona Gertrudes

Os seios de dona Gertrudes vão tremelicando como dois pudins de creme carregados numa bandeja... As pernas de dona Gertrudes, torneadas como pernas de mesa de bilhar, também terminam nuns pezinhos ridiculamente minúsculos...


Imagino dona Gertrudes de biquíni e tapo os olhos.

XXVIII

E por falar em péssimo, naquela ainda indecisa mas já histórica manhã de 2 de abril de 1964, ouvi no Largo dos Medeiros, um velho dizer a outro: "A coisa não pode estar boa! Anda muita gente de cara alegre..."

Do caderno de um Peripatérico

Se eu fosse acreditar mesmo em tudo que penso, ficaria louco. O melhor mesmo é pensar apenas imagens: uma sala sem ninguém, Poe exemplo, com gaiolas de passarinhos vazias... Melhor sair para rua...Ou entrar para a rua? Mas se a rua não fosse uma espécie sui generis de lar, porque se diz então "a porta da rua" e não "a porta da casa"?

Bem aventurados

Bem -aventurados os pintores escorrendo luz Que se expressam em verde Azul Ocre Cinza Zarcão Bem aventurados os músicos... E os bailarinos E os mímicos E os matemáticos... Cada qual na sua expressão! Só o poeta é que tem que lidar com a ingrata linguagem alheia... A impura linguagem dos homens!


O conto azul

Agarrado à ponta da estrela, acabou me dando uma dormência, mas afinal consegui sacudir o pé e desprendeu-se um sapato. Foi cais na cabeça do vigário. Ainda bem que ele não se achava no exercício de suas funções.Estava praticando caridade. E a pobre vítima a quem socorria foi presa por agressão e roubo. E como nem o acusado acreditasse na procedência etérea do sapato e o próprio vigário, que voltara a si, era infenso a testemunhar tais implausibilidades - que bem poderiam ser obras do demônio - não houve outra saída, a bem da ordem natural do mundo, senão aquele homem de boa-fé confessar que aquilo pertencia à pessoa que ele assaltara na penúltima vez. E como ninguém encontrasse a tal concluiu-se como homicídio. Agora, só faltava o cadáver. Meu Deus! Esses humanos... Não podiam viver eles sem razões? Ri tanto que me despenquei da ponta da estrela. Com o que, ficou tudo resolvido. Eu era precisamente o cadáver que não tinha sapato! E quando voltar a mim (são muito longos os desmaios dos anjos) todos os personagens e assistentes dessa história já terão desaparecido, e talvez a linda e pequena cidade onde ela aconteceu.

Canção Balet

Ele sozinho passeia Em seu palácio invisível. Linda moça risca um riso Por trás do muro de vidro. Risca e foge, num adejo. Ele pára, de alma tonta. Um beijo brota na ponta Do galho do seu desejo. E pouco a pouco se aconchegam. Põem a palma contra a palma. Mas o frio, o frio do vidro Lhe penetra própria alma! "Ai do meu Reino Encantado, Se tudo aqui é impossível... Pra que palácio invisível Se o mundo está do outro lado:"


E ainda busca, de alma louca, Aquele lábio vermelho. Ai, o frio da própria boca! O amor é um beijo no espelho... Beija e cai, como um engonço, Todo desarticulado... Linda moça, como um sonho, Se dissipa do outro lado...

A vida simples

Ora, Maria! O meu mundo é de temperaturas, tensões, fulgurações... Eu nada tenho haver com os sentimentos humanos! Por que tu não és uma vaca, Maria? Por que? Ficaria tudo mais simples e verdadeiro...

Traduzido de Raymound Queneau

Meu Deus, que vontade me deu de escrever um poeminho... Olha, agora mesmo vai passando um! Pst Pst Pst Vem pra cá para que eu te enfie na fieira de meus poemas vem cá para que eu te entube nos comprimidos de minhas obras completas vem cá para que eu te empoete para que eu te enrime para que eu te enlire para que eu te empégase para que eu te enverse para que eu te emprose vem cá...


Vaca! Escafedeu-se

Tão simplesmente

Tudo se fazia tão simplesmente: as chinoquinhas pintavam as faces com papel-de-seda vermelho, os negrinhos tocavam pente com papel de seda branco, as mocinhas da casa punham papelotes antes de irem dormir... e aplicava-se a Maravilha Curativa para todas as dores - menos para dores de amores, que já eram as mesmas de sempre!

Da realidade

O sumo bem só no ideal perdura... Ah! Quanta vez a vida nos revela Que "a saudade da amada criatura" É bem melhor do que a presença dela...

A mulher biônica

Eu quero uma mulher biônica Que me ame como uma suspirosa máquina Do mais intenso amor Uma mulher que quase me mate... Mas me livre de todos os ataques! Eu quero, quero uma mulher biônica Para que eu possa, a qualquer momento, Desaparafusá-la...

Monotonia


É segundo por segundo Que vai o tempo medindo Todas as coisas do mundo Num só tic-tac, em suma, Há tanta monotonia Que até a felicidade, Como goteira num balde, Cansa, aborrece, enfastia... E a própria dor - quem diria? A própria dor acostuma. E vão se revezando, assim, Dia e noite, sol e bruma... E isso afinal não cansa? Já não há gosto e desgosto Quando é prevista a mudança. Ai que vida! Ainda bem que tudo acaba... Ai que vida tão comprida... Se não houvesse a morte, Maria, Eu me matava!

Envelhecer

Antes, todos os caminhos iam, Hoje, todos os caminhos vêm... A casa é acolhedora, os livros poucos E eu mesmo sirvo o chá para os fantasmas...

Silêncio. Solidão. Serenidade.

Quero morrer na selva de um país distante... Quero morrer sozinho como um bicho! Adeus, Cidade Maldita, Que lá se vai o seu poeta. Adeus para sempre, Amigos...


Vou sepultar-me no céu! E todos estes que aí estão Atravancando meu caminho, Eles passarão... Eu passarinho!

Surpresa

Sabes? Os cabelos da morte são entrelaçados de flores. Nada de flores mortas como estas inertes sempre vivas, Mas inquietas e misteriosas como os não desfolhados malmequeres Os bravias como as pequenas rosas silvestres. As mãos da morte, as suas mãos não tem anéis, Sua virgem nudez não comporta o peso da jóia, Os seus olhos não são, não são uns covis de treva, Mas cheios de luz como os olhos do primeiro amor. Porque a morte não faz esquecer, mas faz tudo lembrar, Porque a morte não é, não é um sono eterno: Tu vais adormecer como num berço, pouco a pouco, E acordarás de súbito num vasto leito de noivado!

Função

Me deixaram sozinho no meio do circo Ou era apenas um pátio uma janela uma rua uma esquina Pequenino mundo sem rumo Até que descobri que todos os meus gestos Pendiam cada um das estrelas por longos fios invisíveis E havia súbitas e lindas aparições como aquelas das longas tranças E todas imitavam tão bem a vida Que por um momento se chegava a esquecer a sua cruel inocência de bonecas E eu dizia depois coisas tão lindas


E tristes Que não sabia como tinham ido parar na minha boca E o mais triste não era que aquilo fosse apenas um jogo cambiante de reflexos Porque afinal um belo pião dançante Ou zunido imóvel Vive uma vida mais intensa do que a mão ignorada que o arremessou E eu danço tu danças nós dançamos Sempre dentro de um circulo implacável de luz Sem saber quem nos olha atenta ou distraidamente do escuro...

Recordo ainda

Recordo ainda... E nada mais me importa... Aqueles dias de uma luz tão mansa Que deixavam, sempre, de lembrança, Algum briquedo novo à minha porta... Mas veio um vento de desesperança Soprando cinzas pela noite morta! E eu pendurei na galharia torta Todos os meus brinquedos de criança... Estrada fora após segui... Mas, ai, Embora idade e senso eu aparente, Não nos iluda o velho que aqui vai: Eu quero os meus brinquedos novamente! Sou um pobre menino...acreditai... Que envelheceu, um dia, de repente!...

Cruelamor


Um dia, daquela mesa comum de hóspedes, Dona Glorinha me interpelou: - Seu Mário, o senhor ainda não leu o Cruel Amor? Não, em nunca tinha lido o Cruel Amor!... Pois tudo o que falta à minha vida, toda a imperfeição em que ainda me debato, vem de eu nunca ter lido o Cruel Amor... de ter achado ridículo o título...de ter achado ridícula a transcendental pergunta da dona Glorinha...

Tia Élida

Sua alma dilacerada pelas renas da madrugada Enevoa a minha vidraça. "Deixaste mais uma vez a lâmpada acesa!" - diz ela. Essa tia Élida... Tão viva, a coitada, Que eu ainda me irrito com ela!

Arquitetura funcional

Não gosto de arquitetura nova Porque a arquitetura nova não faz casas velhas Não gosto das casas novas Porque as casas novas não têm fantasmas E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações vulgares Que andam por aí... É não-sei-que de mais sutil Nessas velhas, velhas casas, Como, em nós, a presença invisível da alma...Tu nem sabes A pena que me dão as crianças de hoje! Vivem desencantadas como uns órfãos: As suas casas não têm nem porão nem sótãos, São umas pobres casas sem mistérios. Como pode nelas vir morar o sonho? O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso (Como bem sabíamos) Ocultá-lo da visitas (Que diriam elas, as solenes visitas?)


É preciso ocultá-lo das outras pessoas da casa, É preciso ocultá-lo dos confessores, Dos professores, Até dos profetas (Os profetas estão sempre profetizando outras cousas...) E as casas novas não têm ao menos aqueles longos, Intermináveis corredores Que a Lua vinha às vezes assombrar!

Segunda canção de muito longe

Havia um corredor que fazia cotovelo: Um mistério encanando com outro mistério, no escuro... Mas vamos fechar os olhos E pensar numa outra cousa... Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe, Puxando a água fresca e profunda. Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas. Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros, E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões. Nós éramos quatro, uma prima dois negrinhos e eu. Havia os azulejos reluzentes, o muro do quintal, que limitava o mundo, Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas... Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos... As lindas e absurdas cantigas, tia Tulha ralhando os cachorros, O chiar das chaleiras... Onde andara agora o pince-nez da tia Tula Que ela não achava nunca? A pobre não chegou a terminar a Toutinegre do moinho, Que saíam em folhetim no Correio do Povo! A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro. Ia encolhida, pequenininha, humilde.Seus passos


não faziam ruído. E ela nem se voltou para trás!

O chalé da praça quinze

O chalé fazia parte da gente. Me lembro do Bilu, com o seu perfil perpendicular de cegonho sábio,o longo bico mergulhado - não no gargalo do gomil da fábula, não propriamente no canecão de chope, que era de fato o que estava acontecendo - mas no poço artesiano de si mesmo. Me lembro do Reinaldo, redondo, pacato, amável, tão amável, pacato e redondo que até parecia um desses personagens de romance policial que ninguém desconfia que seja o autor do último crime da mala. Me lembro do Cavalcanti, com a sua cara silenciosa e receptiva de mata-borrão. Me lembro de mim, silencioso. Sim, a determinada hora éramos todos silenciosos... essa hora em que não é preciso dizer nada, nem mesmo o verso inesquecível de Valéry : "oh mon bom compagnom de silence!" Este silêncio era apenas quebrado quando chegava o Athos, o Athos centrífugo e pirotécnico. Mas isso não perturbava o nosso silêncio, nem o próprio silêncio do Athos... Pois havia um profundo e misterioso rio de silêncio que corria subterraneamente as nossas palavras. Era o rio da Poesia? O rio da harmoniosa confusão das almas? Agora é apenas o rio do tempo que passou.

Aquele estranho animal

Os do Alegrete dizem que o causo se deu em Itaqui, os de itaqui dizem que foi no Alegrete, os outros juram que só poderia ter acontecido em Uruguaiana. Eu não afirmo nada: sou neutro. Mas, pelo que me contaram, o primeiro automóvel que apareceu entre aquela brava indiada, eles o mataram a pau, pensando que fosse um bicho. A história foi assim como já lhes conto, metade pelo que já ouvi dizer, metade pelo que inventei, e a outra metade pelo que sucedeu às deveras. Viram? É uma história tão extraordinária mesmo que até tem três metades... Bem, deixemos de filosofança e vamos ao que importa. A coisa foi assim, como eu tinha começado a lhes contar. Ia um piazinho estrada a fora no seu petiço - tropt, tropt, tropt - (esse é o barulho do trote)- Quando de repente ouviu - Fufufupubum! Fufufupubum! Chipum! E eis que a "coisa" até então invisível, apontou por detrás de um capão, bufando que nem touro brigão, saltando que nem pipoca, se traqueando que nem velha coroca, chiando que nem chaleira derramada e largando fumo pelas ventas como a mula-sem-cabeça. "Minha nossa senhora!"


O piazinho deu meia volta e largou numa disparada louca rumo da cidade, com os olhos do tamanho de um pires e os dentes rilhando, mas bem cerrados para que o coração aos corcoveios não lhe saltasse pela boca. É claro que o petiço ganhou luz do bicho, pois no tempo dos primeiros autos eles perdiam para qualquer matungo. Chegado que foi, o piazinho contou a história como pôde, mal e mal e depressa, que o tempo era pouco e não dava para maiores explicações, pois já se ouvia o barulho do bicho que se aproximava. Pois bem, minha gente: quando este apareceu na entrada da cidade, caiu aquele montão de povo em cima dele, os homens com uns porretes, outros com garruchas que não tinham tido tempo para carregar de pólvora, outros com boleadeiras, mas todos de a pé, porque também nem houvera tempo para montar, e as mulheres umas empunhando as suas vassouras, outras as suas pás de mexer marmelada, e os guris, de longe, se divertindo com os seus bodoques, cujos tiros iam acertar em cheio as costas dos combatentes. E tudo abaixo de gritos e pragas que nem lhes posso repetir aqui. Até que enfim houve uma pausa para a respiração. O povo se afastou, resfolegante, e abriu-se uma clareira, no meio da qual se viu o alto emborcado, amassado, quebrado, escangalhado, e não digo que morto, porque as rodas giravam no ar, nos últimos transes de uma teimosa agonia. E quando as rodas pararam, as pobres, eis que o motorista, milagrosamente salvo, saiu penosamente engatinhando por debaixo dos escombros de seu automóvel. - A la pucha! - exclamou então um guasca, entre espantado e penalizado - o animal deu cria!

Poesia e peito

Qual Ioga, qual nada! A melhor ginástica respiratória que existe é a leitura, em voz alta, dos Lusíadas.

Esporte O único esporte que pratico é a luta livre com meu Anjo da guarda

Trecho de entrevista

- Os anjos existem? - Devem existir, por certo, em vista da insistência com que aparecem em meus poemas.

Anjo

Ser celestial metediço na vida terrena, uma espécie de Relações Públicas de Nosso Senhor.


Apontamentos para uma elegia

O meu anjo da Guarda é dentuça, Tem uma asa mais baixa que a outra. Impressionador assunto para um desenho poema ... um anjo dependendo...

As ilusões perdidas

Fumar é um jeito discreto de ir queimando as ilusões perdidas daí, esse ar entra aliviado e triste dos fumantes solitários. Vocês já repararam que nenhum deles fuma sorrindo?

Arte de fumar

Desconfia dos que não fumam: esses não têm vida interior, não tem sentimentos.O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar...

Cautela Os fantasmas não fumam porque poderiam acabar fumando-se a si mesmo.

Viagem O fim do cigarro tem uma tristeza de fim-de-linha...

Crônica

Ah, essas pequenas coisas, tão cotidianas, tão prosaicas, às vezes, de que se compõe meticulosamente a tecitura de um poema... Talvez a poesia não passe de um gênero de crônica, apenas: uma espécie de crônica da eternidade.


Coincidência

Ás vezes a gente pensa que está dizendo bobagem e está fazendo poesia. Quem faz um poema abre uma janela. Quem faz um poema salva um afogado

A poesia é necessária Sim, todos devem fazer versos. Contanto que não venham mostrar-me.

Diálogo ultra-rápido

- Eu queria propor-lhe uma troca de idéias... - Deus me livre!

Dos chatos

O maior chato é chato perguntativo. Prefiro o chato discursivo ou narrativo, que se pode ouvir pensando noutra coisa...

A Amiga Ele chegou ao bar pálido e trêmulo. Sentou-se. -- Por enquanto, nada. - desculpou-se ao garçom. Estou esperando uma amiga. Dali a dois minutos estava morto. Quanto ao garçom que o atendeu, esse adorava repetir a história, mas sempre acrescentava ingenuamente: -- E, até hoje, a "grande amiga" não chegou!

De leve Será que uma verdadeira sociedade precisa mesmo de uma cronista social?


Perversidade

Alguém me disse, com a voz embargada, que agora, sim, estava convencido da existência de Deus, porque os trabalhos psicografados de Humberto de Campos eram evidentemente dele mesmo. - Mas isto não prova a existência de Deus... Prova apenas a existência de Humberto de Campos. Uma das coisas que não consigo absolutamente compreender são os que se convertem a outras religiões. Para que mudar de dúvidas?

Dos grilos

Toda a noite os grilos fritam não sei quê. A madrugada chega, destampa o panelão: a coisa esfria... Os únicos poetas que os sobreviventes entenderão São os que hoje ainda falam no cricrilo dos grilos. Os grilos são os poetas mortos...

Noturno arrabaleiro

Os grilos... os grilos...Meu Deus, se a gente Pudesse Puxar Por uma Perna Um só Grilo, Se desfiariam todas as estrelas!

Para os amigos mortos

Gadêa... Pelicheck... Sebastião... Lobo Alvim... Ah, meus velhos camaradas!


Aonde foram vocês? Onde é que estão Aquelas nossas ideais noitadas?

Fiquei sozinho... Mas não creio, não, Estejam nossas almas separadas! Ás vezes sinto aqui, nestas calçadas, O passo amigo de vocês...E então

Não me constranjo de sentir-me alegre, De amar a vida assim, por mais que ela nos minta... E no meu romantismo vagabundo

Eu sei que neste céus de Porto Alegre É para nós que inda S.Pedro pinta Os mais belos crepúsculos do mundo!...

A Mario Quintana Augusto Meyer

Um Schlichte, poeta, o inverno vai chegar: a gente sente no ar um arrepio finíssimo... a andorinha que partiu ninguém sabe se um dia há de voltar.


Mas não faz caso, não, isto é do frio, caprichos da vesícula biliar. Na vidraça garoenta desse bar namoro o meu reflexo vago e esguio.

Passam lá fora os meus apressados. passam e apagam meu reflexo vago, mas eu não vou fazer comparações.

Pra quê? Ó meus cigarros apagados, bem sei que eu mesmo, eu mesmo é que me apago... Dedico este soneto aos meus botões.

Saudade

Que me dizias, Augusto Meyer, naquele tempo que não passa, na mesa, junto à vidraça, naquele bar que era um barco? Por ela passavam mares, passavam portos e portos, ali que os ventos ventavam, dos quatro cantos do mundo!

O que dizíamos? Sei lá! não falemos em nossas vidas... nem, por nós, se salvou o mundo...


Mas, amigo, eu sei que tenho - naquelas horas perdidas o meu ganho mais profundo!

O baú

Como estranhas lembranças de outras vidas, que outros viveram, num estranho mundo, quantas coisas perdidas e esquecidas no teu baú de espantos... Bem no fundo,

Uma boneca toda estraçalhada! (isto não são brinquedos de menino... alguma coisa deve estar errada) mas o teu coração em desatino

te trás de súbito uma idéia louca: é ela, sim! Só pode ser aquela, a jamais esquecida Bem-Amada.

E em vão tentas lembrar o nome dela... e em vão ela te fita... e a sua boca tenta sorrir-te mas está quebrada!

Canção do amor imprevisto


Eu sou um homem fechado. O mundo me tornou egoísta e mau. E a minha poesia é um vício triste, Desesperado e solitário Que eu faço tudo por abafar.

Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada, Com o teu passo leve, Com esses teus cabelos...

E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender nada, numa alegria atônita...

A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil Aonde viessem pousar os passarinhos!

Solau a moda antiga

Senhora, eu vos amo tanto Que até por vosso marido Me dá um certo quebranto...

Pois que tem que a gente inclua No mesmo alastrante amor


Pessoa, animal ou cousa Ou seja lá o que for, Só porque os banha o esplendor Daquela a quem se ama tanto? E sendo dessa maneira, Não me culpeis, por favor, Da chama que ardente a brasa O nome de vossa rua, Vossa gente e vossa casa

E vossa linda macieira Que ainda ontem deu flor...

Canção para uma valsa lenta

Minha vida não foi um romance... Nunca tive até hoje um segredo. Se me amas, não digas, que morro De surpresa... de encanto... de medo...

Minha vida não foi um romance, Minha vida passou por passar. Se não amas, não finjas, que vivo Esperando um amor para amar.

Minha vida não foi um romance... Pobre vida... passou sem enredo...


Glória a ti que me enches a vida De surpresa, de encanto, de medo!

Minha vida não foi um romance... Ai de mim...Já se ia acabar! Pobre vida que toda depende De um sorriso...de um gesto....um olhar...

Viver

Quem nunca quis morrer Não sabe o que é viver Não que viver é abrir uma janela E pássaros pássaros saíram por ela E hipocampos fosforescentes Medusas translúcidas Radiadas Estrelas-do-mar...Ah, Viver é sair de repente Do fundo do mar E voar... e voar... cada vez para mais alto Como depois de se morrer!

A flor e o ar Cecília Meireles


A flor que atiraste agora, quisera trazê-la ao peito; mas não há tempo nem jeito... Adeus, que me vou embora.

Sou dançarina do arame, não tenho mão para flor: Pergunto, ao pensar no amor, como é possível que se ame.

Arame e seda, percorro O fio do tempo liso. E nem sei do que preciso, de tão depressa que morro. Neste destino a que vim, tudo é longe,tudo é alheio. Pulsa o coração no meio só para marcar o fim. Sempre

Sou dono dos tesouros perdidos no fundo do mar. Só o que está perdido é nosso para sempre. Nós só amamos os amigos mortos E só as amadas mortas amam eternamente...

Nem tudo está perdido


enquanto nossos lábios não esquecerem teu nome: Cecília... Só tu soubeste achar-me...e te foste!

O rio

A morte é um rio onde a gente Embarca de olhos fechados Se queres partir contente Nada deixes deste lado. É deste lado de cá Que moram nossos cuidados. Penas que amor nos deixou São penas que o vento trouxe São pelo vento levadas. Fecha os olhos bem fechados Basta de tanta rima em "ados" Dorme o teu sono profundo Longe, cada vez mais longe Deste mundo e seus cuidados.


Outra canção

Não me deixem ir tão só, Tão só, transido de frio... Eu quero um renque de vozes Por toda a margem do rio! Como alguém que adormecendo E umas vozes escutando, Nem soubesse que as ouvia, Nem soubesse que as ouvia Ou se estava sonhado, Eu quero um renque de vozes Por toda a margem do rio: Vozes de amigo calor Na lenta e escura descida Como lanternas de cor E aonde mais longe eu me for (Quanto mais longe da vida!) A borboleta perdida Da tua voz, pobre amor...


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