Mário quintana 100 anos

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comemoração dos 100 anos de nascimento de Mario Quintana, além de colocar obra e poeta em evidência, é momento adequado para indagações e releituras. Coroado poeta mais importante do Rio Grande do Sul, força avassaladora diante da qual devem se posicionar obrigatoriamente os novos autores e as novas gerações de leitores, sua poética merece respeito e exame, saudação e crítica, única maneira de homenageá-lo sem rapapés e ingenuidades, detestadas por ele. No primeiro livro, A rua dos cataventos (1940), espécie de filme de cenas sucessivas compostas por sonetos, é possível identificar os dois vetores que o levariam a ser um poeta do cotidiano, das pequenas coisas da vida de onde pretende arrancar uma revelação e, função direta de toda poesia, uma maneira nova de sentir o mundo. Para tanto, recusou o isolamento da torre de marfim, o lugar em que deveria ficar o poeta segundo escolas literárias tão voltadas para o respectivo aspecto formal quanto despreocupadas da realidade, como o parnasianismo e, tirante o melhor de Cruz e Sousa, o simbolismo. Assim, a proposta anterior era clara:

Quintana: pra que viver assim num outro plano? “Eu nada entendo da questão social. Eu faço parte dela, simplesmente... E sei apenas do meu próprio mal, Que não é bem o mal de toda gente, Nem é deste Planeta... Por sinal Que o mundo se lhe mostra indiferente! E o meu Anjo da Guarda, ele somente, É quem lê os meus versos afinal... E enquanto o mundo em torno se esbarronda, Vivo regendo estranhas contradanças No meu vago País de Trebizonda... Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças, É lá que eu canto, numa eterna ronda, Nossos comuns desejos e esperanças! (Soneto V)

Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino, escreve! No aconchego Do claustro, na paciência e no sossego, Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua! (A um poeta, Olavo Bilac) Cabe a Quintana o mérito de produzir a antítese disso, no melhor dos seus sonetos:

Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões Horrorizado as mãos em teus ouvidos? Anda: escutemos esses palavrões Que trocam dois gavroches atrevidos! Pra que viver assim num outro plano? Entremos no bulício quotidiano... O ritmo da rua nos convida. Vem! Vamos cair na multidão! Não é poesia socialista... Não, Meu pobre Anjo... É...simplesmente...a Vida!... (Soneto IV) Acontece que essa mesma disposição de aproximar-se do real, aqui tão bem formulada, não era total nem irrestrita, o poeta permanecia preso, e por opção, a determinados temas ou abordagens, negandose a abarcar a totalidade da vida. Colocava fora do campo da sua sensibilidade poética, em assumido a priori declarado em verso, prosa e entrevista, tudo o que fosse social e político. Verdade que muitas coisas são sociais e políticas, e em sentido amplo e humano, tudo, mas quanto ao que ele se referia, por exceção alguma vez se contradisse ao abordar os humilhados sociais, entretanto tais poemas, de acordo com ele mesmo, estão longe de ser os melhores. Independente da preocupação que o cidadão Mario Quintana pudesse ter com os grandes acontecimentos da sua época, ela parecia ser insuficiente para penetrar a sua poesia ou esbarrava na limitação auto-imposta. Diferentemente do que fizeram Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar e outros. Não só porque abordaram uma problemática que afetava nosso modo de viver e encarar o mundo - Segunda Guerra, bomba atômica, questões sociais brasileiras, período ditatorial - diretamente, mas porque as aflições e desejos dos brasileiros e da humanidade estavam subjacentes ao conjunto de sua obra de maneira diversa, não excludente. Não se trata aqui, bem entendido, de exigir que o poeta só se refira a grandes temas ou episódios, menosprezando os outros - uma formiga trazendo o frêmito da vida à página em branco era um poema para Quintana, quanto um mosquito fazendo sombra de lira em outra, para Vinicius - pois ao público e ao leitor interessam muitos temas, abordagens e formas. Ao contrário, o que surpreende é a exclusão voluntária a que o poeta se submeteu, como se isso pudesse atrapalhar a sua poesia ou como se ele não estivesse preparado para abordar poeticamente assuntos tão complexos, superar o mundo provinciano em que estava metido.

LIANE NEVES

Minha rua está cheia de pregões. Parece que estou vendo com os ouvidos: “Couves! Abacaxis! Cáquis! Melões!” Eu vou sair pro Carnaval dos ruídos,

De uma maneira branda, podemos dizer que as esperanças, pelo menos, estão ali, mas de modo insuficiente para negar totalmente o que está dito antes. Quem quer ver o contrário, troca o rigor da análise pela simpatia ao poeta, mas não ajuda a resolver essa questão que ele nos deixou. Um poeta tem o direito de escrever sobre o que ele quiser, embora as suas opções, evidentemente, cobrem um preço. O nome de Mario Quintana, o mais importante poeta gaúcho e seguramente um dos mais destacados da cena nacional, demanda hoje uma série de perguntas, algumas suscitadas no diálogo entre poetas ou acadêmicos, quase sempre de modo restrito, como se ninguém quisesse incomodar a justa admiração que o público lhe devota. Porque tem o tamanho que tem, merece e resiste a toda a reflexão, seu lugar está garantido, o que importa é que outros modos de sentir sejam gerados, consoantes com a demanda da realidade em movimento, junto aos poetas capazes de exprimi-los. Para ombrear com ele, será preciso ir além dele, o mundo não pára. Formuladas de maneira ampla, algumas perguntas se impõem. As opções poéticas que tomou ao longo da vida ampliaram ou limitaram a profundidade da obra? Ao preferir-se à margem das questões sociais e globais, trocadas pelo embate direto com as pequenas e palpáveis coisas da vida, que reflexos isso trouxe à obra, se mesmo do pequeno, o que é plenamente viável, evitava tirar o todo? Essas opções estão ligadas a um certo tom passadista e negativo ante ao progresso, sempre visto como um incômodo, em alguns de seus poemas? É possível concordar com a formulação do crítico Luís Augusto Fischer, segundo a qual Quintana, apesar de poeta nacionalmente importante, não atingiu a esfera dos maiores, ao lado de gente como Carlos Drummond de Andrade e outros, por recusar-se às grandes questões de sua época?

Quintana, entretanto, resolveu muitas demandas para nós, as mesmas que levaram outros a bater cabeça no muro. A assunção do cotidiano como matéria da poesia é uma dessas conquistas. A fluência verbal nos poemas, na poesia em prosa, e inclusive nas formas fixas como a do soneto, é outra: já não se escreve enrolado, de trás pra frente, cuspindo versos. A recusa ao excessivo e ingênuo apego à forma, mais uma, fosse o matiz parnasiano ou concretista, como se pode ler nos livros Espelho Mágico e Do Caderno H, respectivamente: Do cuidado da forma: “Teu verso, barro vil,/ No teu casto retiro, amolga, enrija, pule.../ Vê depois como brilha, entre os mais, o imbecil,/ Arredondado e liso como um bule!”; Trecho de entrevista: “Mas por que falar em poesia concretista?, Diga-se concretismo, apenas, e estará ressalvada a poesia”. E certa narrativa contemporânea de apelo comercial precisaria conhecer Refinamentos, também Do Caderno H: “Escrever o palavrão pelo palavrão é a modalidade atual da antiga arte pela arte”. Mais do que tudo, ele nos legou o seu humor poético - um dado importante que não pode ser reduzido ao simples poema-piada, embora ele também o exercitasse, particularmente nos aforismos -, uma maneira muito sua de se relacionar com os outros e com o real, às vezes escondida como fina ironia dentro dos melhores poemas. Sim, o humor, um modo extremamente salutar de encarar o mundo, um realismo levado às últimas conseqüências, causador de uma grande economia psíquica como observou Freud, por definição libertadora. Até da morte, acreditem, ele conseguia fazer graça: “é quando a gente pode, afinal/ estar deitado de sapatos...” O contato direto do poeta com o público, através da seção Do Caderno H - iniciada em 1943 na Revista Província de São Pedro, da Livraria do Globo, tornada diária no Correio do Povo de 1953 até 1967, e semanal no caderno Letras & Livros do mesmo até 1980 - com certeza contribuiu para o entrelaçamento entre autor e público, ampliando o seu modo simples e elevado de tratar a complexidade da vida e criando um público leitor de poesia no Estado, algo nada desprezível. Tanto que, apesar de hoje se dizer que Quintana é mais conhecido do que sua poesia, a idéia que os gaúchos têm do que seja ou não poesia remete sempre ao que ele realizou, o que se pode comprovar em conversas, nos resultados dos concursos literários e em muitos dos poemas que circulam nos ônibus de Porto Alegre. De resto, acontece o mesmo em outros estados onde houve um poeta dominante, como é o caso de Paulo Leminski no Paraná. Quanto à elevação e simplicidade alcançadas, quem não se deixaria atingir por algo tão singelo, verdadeiro e pra cima como isto: “Os casais que fazem amor estão dando corda no relógio da vida”? Apareceu nova teoria no pedaço, e eu não abordaria o tema se não fosse ele colocado em pauta por um destacado pensador do nosso sistema literário em pública palestra. Mario Quintana homossexual? Bobagem. Teve lá suas namoradas, e a mencionada Eloí Callage, então estagiária do Correio do Povo, é só uma delas. Eu mesmo vi, nas mãos de uma senhora hoje avó, uma quantidade de poemas manuscritos e, entre eles, um bilhete erótico sobre o qual estava colada uma foto de revista, mais arrancada do que recortada, na qual uma bela moça nua apertava entre as nádegas um lírio vermelho. Mais cedo ou mais tarde isso aparece, fiquem tranqüilos, não vou ser eu quem vai entregar o jogo. Sem falar na conhecida paixão do poeta por Cecília Meirelles, mulher casada, nunca correspondida. A oferenda Eu queria trazer-te uns versos muito lindos... Trago-te estas mãos vazias Que vão tomando a forma do teu seio. Estufa Que imaginação depravada têm as orquídeas! A sua contemplação escandaliza e fascina. Vivem procurando e criando inéditos coloridos, e estranhas formas, combinações incríveis, como quem procura uma volúpia nova, um sexo novo... Quintana escreveu algo que nos remete hoje, em homenagem aos seus 100 anos, a ele mesmo e ao significado da vida: “Quando morremos acontece com as nossas esperanças o mesmo que com esse brinquedo de estátuas, em que todos se imobilizam de súbito, cada qual na posição do momento. Mas as esperanças têm menos paciência. E vão imediatamente continuar, no coração dos outros, o seu velho sonho interrompido.” E lá vamos nós.

SIDNEI SCHNEIDER sbs303@terra.com.br


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crônica/depoimentos

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Quem tem medo do humor de Mario? Mesmo em Porto Alegre as “travessuras” de Mario foram às vezes mal-entendidas. Houve quem tivesse se ofendido com elas, houve quem o tivesse censurado por fazer piadas fora de hora. Quando, em 1994, comecei a reunir as historinhas protagonizadas por ele para o livro Ora Bolas, dois de seus velhos amigos se recusaram a participar sob o argumento de que não iriam colaborar com a perpetuação de uma imagem “folclórica” do poeta. Não havia motivo para tanto, o próprio Mario alimentava com prazer sua verve humorística, fazendo a piada e esperando as risadas. Não por outro motivo ele vibrou quando o humorista Guaraci Fraga pediu licença para homenageá-lo na antologia de humor 14 Bis, lançada em 1976. As frases publicadas foram extraídas das colunas de Mario no Correio do Povo e do livro Caderno H. Uma delas: “O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso”. Outra: “A verdadeira couve-flor é a hortência”. Ainda: “Canibalismo é a maneira exagerada de apreciar o seu semelhante”. Mais uma, cheia de reticências: “...ser xifópago deve ser tão incômodo como ser casado...”.

EJCJ - Autores Gaúchos, IEL, 2000

ario Quintana teve seu ingresso na Academia Brasileira de Letras vetado não apenas uma ou duas, mas três vezes! Na última vez que se candidatou, em 1982, perdeu para o jornalista político carioca Carlos Castello Branco. Como se sabe, o candidato deve cumprir um ritual de salamaleques que, entre outras coisas, inclui visitas particulares de beijamão aos acadêmicos. A Academia nunca expõe as razões dos vetos, mas no caso de Quintana é mais ou menos consenso externo creditá-las ao temor dos metódicos (ou caretas) acadêmicos ante as proverbiais “travessuras” do poeta. Não fica bem generalizar, os acadêmicos não são todos metódicos (ou caretas) nem têm pensamento único. Tanto, que Ledo Ivo insistia para que Quintana se candidatasse pela quarta vez. Temos a brincadeira com o ledo (e ivo) engano, mas há, ou pelo menos havia, um invisível fio pautando decisões pelo lado mais conservador, ao qual horrorizam as surpresas, o imponderável. Por mais sério que procurasse ser, Quintana começaria por ridicularizar um símbolo, o próprio fardão. Já nas primeiras visitas protocolares os acadêmicos devem ter confirmado que ali estava um homem avesso às formalidades, um provável causador de dores-de-cabeça. No que estavam certos. A discussões sérias da Academia foram preservadas, ainda que tenham deixado de contar com uma inteligência sagaz e afiada. E Quintana, candidato por insistência de amigos, em 1982 pode confirmar pela terceira vez que aquele não era lugar para ele. Ainda mais aos 76 anos e disposição cada vez menor para sair da rotina de Porto Alegre. Muitos anos antes, na primeira visita ao Rio, já respondera a um repórter que queria saber por que não havia saído do Rio Grande do Sul: “Não saio de lá pelo mesmo motivo que vocês não saem daqui”.

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O talento inato para a frase-gatilho, presente inclusive na poesia séria, é um dos fatores da popularidade de Quintana. O poema se agarra na memória e tanto circula que de repente quase não tem mais autor. Por outro lado, está aí, também, uma das razões para ele não ser visto por alguns críticos como um poeta com a densidade de Drummond e João Cabral, para citar dois outros grandes de sua geração. Coisa perfeitamente discutível. Mas o que eu queria dizer é que o fino humor, privilégio de poucos, nem sempre é valorizado em ambientes como os acadêmicos. Pois depois de a Academia Brasileira de Letras ter recusado Quintana pela segunda vez, virou moda no Rio Grande do Sul, como desagravo, lançá-lo candidato a prêmios nacionais. Em 1981 foi indicado para o Prêmio Juca Pato, da Associação Brasileira dos Escritores, concorrendo com o jurista Dalmo Dallari que acabara de sofrer pressões e constrangimentos do governo militar por sua atuação em defesa dos direitos humanos. Perdeu de novo. Elegante, enviou telegrama a Dallari cumprimentando-o, mas é claro que ficou meio chateado. Percebendo o desconforto, Ivo Stigger, jovem colega da redação do Correio do Povo, que costumava trocar com Quintana idéias sobre cinema, foi consolá-lo. Sugeriu que desautorizasse qualquer pessoa, movimento ou instituição a lançá-lo, sem prévia consulta, candidato ao que quer que fosse. E considerando seu lado piadístico, arrematou: “Se não, um dia desses um grêmio literário qualquer te lança candidato a Rainha das Piscinas”. Mario olhou sério para Ivo, que imaginou ter ido longe demais. Mas colocou a mão em seu ombro e desabafou: “Provavelmente iria perder de novo”. JUAREZ FONSECA jornalista e crítico

Leitores falam sobre a poesia de Mario Quintana O Mario fala com a nossa parte criança, escondida, às vezes assustada... e, incrível, ele sempre acalma essa parte! (Caetano Fenner, psiquiatra) *** Gosto muito de uma frase de um poema dele: “Não corra atrás das borboletas... Cuide do jardim... Para que elas venham até você..” (Pedro Lima, músico). *** Gosto de um frase dele: “O déficit focal do meu conhecimento é a burrice dos outros.” (Fernando Leiria, médico) *** Ingênua e crítica. Superperspicaz, tinha muita coisa escrita por trás. Ele falava que “o mais interessante de bater na porta, é não dizer quem é. Pra ter a surpresa”. (Ricky Bols, artista gráfico) *** Maravilhosa. Ele usava uma temática leve e, com sutileza, transformava a realidade, tornando-a poesia. A maneira como ele manipulava as coisas do cotidiano e as tornava encantadas é linda. E a vida dele era igual a nossa. Sua poesia é irrevente, tem graça, diverte, e, algumas vezes, chega a ser cruel. (Nilda Maciel, comerciária) ***

É a cara de Porto Alegre. Ele tem um olhar incrível sobre as ruas daqui. Mesmo quem não nasceu aqui se identifica com Porto Alegre, através da poesia dele. Ele consegue ser um grande poeta gaúcho sem ter a raiz gaudéria, interiorana, campeira. (Clei Moraes, empresário)

A singeleza lisérgica. Sua poesia fere firme e dói como punhal. “Tiradas” agudas, achados absolutamente perfeitos: “A morte não iguala ninguém”; “O susto que as carolas vão ter quando chegarem no céu e descobrirem que Deus existe!”. Atualmente, estou até compondo uma trilha, para rezar um poema dele, num CD que deverá sair em julho. (Nelson Coelho de Castro, músico e compositor) ***

Amor. Sempre nos mostrava o lado bom da vida, a beleza das pessoas, das ruas e da cidade. Uma pessoa que só trazia o bem para todos nós. Amava a tudo, e a todos. (Cecy Souza, fazendeira) *** Ele escrevia com a pureza de uma criança. Em vez do lápis e da máquina de escrever, era a mão de uma criança que escrevia. (Denise Zelmanovitz, cantora) *** A sua poesia não é passageira. Nós é que somos passageiros de sua poesia. (Myrian Fenner, professora de idiomas e jornalista) ***

Ele conseguia ser um velhinho esperto, sério, brincalhão, criança e sereno. Dono de uma verdade impecável. (Beto Bollo, músico/compositor) *** Ele é tão popular porque escrevia coisas simples, coisas que até as pessoas sem muito estudo entendiam. Adoro uma frase dele: “Se as coisas são inatingíveis, ora, não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos da vida, não fosse a presença mágica das estrelas...” (Karen Baumbach, empresária)

Sua ironia tem um refinamento extremamente precioso, mesmo nos textos corridos. Escrevia tão bem tanto para as crianças quanto para os adultos. Percepção agudíssima, criou uma forma de lirismo mais leve, etérea, espacial, que estava muitos anos à frente de seu tempo. (Gerônimo Carraro, chefe de cozinha) *** Sentei numa poltrona de avião ao lado dele e ele me passou um poema, “Tutuzinho com feijão”, e falou assim: “Põe a música”. Eu fiz a música, e ele falou:”Era bem assim que eu tinha pensado!” Do Quintana eu não acho, vou atrás dele! (Giba Giba, músico e compositor) *** Ingênua e sapeca. Tinha aquele lance do menino safado, do gurizinho sempre aprontando. Aparentemente simples, mas toca fundo. É profunda, mas leve. Singela. Foi a ABL quem o perdeu. (Luíz Antônio Catafesto, fotógrafo e professor de Fotografia e Vídeo da Ulbra) *** Uma formiguinha que atravessava a folha de papel, sua poesia era o frêmito da vida. Não entrou para a Academia, mas é o nosso Imortal. (Ida Katzap, poeta) *** A poesia de Mario Quintana é tão essencial, por trazer à tona a beleza irrestrita do nosso trivial cotidiano. (Ana Paula Bassi, psiquiatra) *** Um dos grandes gênios da literatura brasileira de todos os tempos. (Clóvis Rossi, articulista político da Folha de São Paulo)


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Soneto XIX para Moysés Vellinho Minha morte nasceu quando eu nasci. Despertou, balbuciou, cresceu comigo... E dançamos de roda ao luar amigo Na pequenina rua em que vivi. Já não tem mais aquele jeito antigo De rir e que, ai de mim, também perdi! Mas inda agora a estou sentindo aqui, Grave e boa, a escutar o que lhe digo: Tu que és a minha doce Prometida, Nem sei quando serão as nossas bodas, Se hoje mesmo... ou no fim de longa vida... E as horas lá se vão, loucas ou tristes... Mas é tão bom, em meio às horas todas, Pensar em ti... saber que tu existes!

Dos milagres O milagre não é dar vida ao corpo extinto, Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo... Nem mudar água pura em vinho tinto... Milagre é acreditarem nisso tudo!

Obsessão do Mar Oceano Vou andando feliz pelas ruas sem nome... Que vento bom sopra do Mar Oceano! Meu amor eu nem sei como se chama, Nem sei se é muito longe o Mar Oceano... Mas há vasos cobertos de conchinhas Sobre as mesas... e moças nas janelas Com brincos e pulseiras de coral... Búzios calçando portas... caravelas Sonhando imóveis sobre velhos pianos... Nisto, Na vitrina do bric o teu sorriso, Antínous, E eu me lembrei do pobre imperador Adriano, De su’alma perdida e vaga na neblina... Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano! Se eu morresse amanhã, só deixaria, só, Uma caixa de música Uma bússola Um mapa figurado Uns poemas cheios da beleza única De estarem inconclusos... Mas como sopra o vento nestas ruas de outono! E eu nem sei, eu nem sei como te chamas... Mas nos encontraremos sobre o Mar Oceano, Quando eu também já não tiver mais nome.

De repente

A contrução

Olho-te espantado: Tu és uma Estrela do Mar. Um minério estranho. Não sei...

Eles ergueram a Torre de Babel para escalar o Céu. Mas Deus não estava lá! Estava ali mesmo entre eles, ajudando a construir a torre.

No entanto, O livro que eu lesse, O livro na mão. Era sempre o teu seio!

Poesia Às vezes tudo se ilumina de uma intensa irrealidade E é como se agora este pobre, este único, este efêmero instante do mundo Estivesse pintando numa tela, Sempre...

Tu estavas no morno da grama, Na polpa saborosa do pão... Mas agora encheram-se de sombra os cântaros

O Estranho Caso de Mister Wong E só o meu cavalo pasta na solidão.

Se o poeta falar num gato Se o poeta falar num gato, numa flor, num vento que anda por descampados e desvios e nunca chegou à cidade... se falar numa esquina mal e mal iluminada... numa antiga sacada... num jogo de dominó... se falar naqueles obedientes soldadinhos de chumbo que morriam de verdade... se falar na mão decepada no meio de uma escada de caracol... Se não falar em nada e disser simplesmente tralalá... Que importa? Todos os poemas são de amor!

Além do controlado Dr. Jekyll e do desrecalcado Mister Hyde, há também um chinês dentro de nós: Mister Wong. Nem bom, nem mau: gratuito. Entremos, por exemplo, neste teatro. Tomemos este camarote. Pois bem, enquanto o Dr. Jekyll, muito compenetrado, é todo ouvidos, e Mister Hyde arrisca um olho e a alma no decote da senhora vizinha, o nosso Mister Wong, descansadamente, põe-se a contar as carecas na platéia... Outros exemplos? Procure-os o senhor em si mesmo, agora mesmo. Não perca tempo. Cultive o seu Mister Wong!

Vida Só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necrópsia.

Da Perfeição da Vida Por que prender a vida em conceitos e normas? O Belo e o Feio... o Bom e o Mau... Dor e Prazer... Tudo, afinal, são formas E não degraus do Ser!

Aventura no Parque No banco verde do parque, onde eu lia distraídamente o Almanaque Bertrand, aquela sentença pegou-me de surpresa: “Colhe o momento que passa.” Colhi-o, atarantado. Era um não sei que, um flapt, um inquietante animalzinho, todo asas e todo patas: ardia como uma brasa, trepidava como um motor, dava uma angustiosa sensação de véspera de desabamento. Não pude mais. Arremessei-o contra as pedras, onde foi logo esmigalhado pelo vertiginoso velocípede de um meninozinho vestido à marinheira. “Quem monta num tigre (dizia, à página seguinte, um provérbio chinês) quem monta num tigre não pode apear.”

Silêncios Há um silêncio de antes de abrir-se um telegrama urgente há um silêncio de um primeiro olhar de desejo há um silêncio trêmulo de teias ao apanhar uma mosca e o silêncio de uma lápide que ninguém lê.

arte JULIO FLASH

A Oferenda Eu queria trazer-te uns versos muito lindos... Trago-te estas mãos vazias Que vão tomando a forma do teu seio.

Hai-kai

Poema da gare de Astapovo

Em meio da ossaria Uma caveira piscava-me... Havia um vaga-lume dentro dela.

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos E foi morrer na gare de Astapovo! Com certeza sentou-se a um velho banco, Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo, Contra uma parede nua... Sentou-se... e sorriu amargamente Pensando que Em toda a sua vida Apenas restava de seu a Glória, Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas Coloridas Nas mãos esclerosadas de um caduco! E então a Morte, Ao vê-lo tão sozinho àquela hora Na estação deserta, Julgou que ele estivesse ali à sua espera, Quando apenas sentara para descansar um pouco! A Morte chegou na sua antiga locomotiva (Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...) Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho, E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu... Ele fugiu de casa... Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade... Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!

Canção da Primavera para Erico Verissimo

Primavera cruza o rio Cruza o sonho que tu sonhas. Na cidade adormecida Primavera vem chegando. Catavento enlouqueceu, Ficou girando, girando. Em torno do catavento Dancemos todos em bando. Dancemos todos, dancemos, Amadas, Mortos, Amigos, Dancemos todos até Não mais saber-se o motivo... Até que as paineiras tenham Por sobre o muros florido!


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O poema Um poema como um gole d’água bebido no escuro. Como um pobre animal palpitando ferido. Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna. Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema. Triste. Solitário. Único. Ferido de mortal beleza.

O Adolescente

Meu bonde passa pelo Mercado

As mãos de meu pai

O que há de bom mesmo não está à venda, O que há de bom não custa nada. Este momento é a flor da eternidade! Minha alegria aguda até o grito... Não essa alegria alvar das novelas baratas, Pois minha alegria inclui também minha tristeza - a nossa Tristeza... Meu companheiro de viagem, sabes? Todos os bondes vão para o Infinito!

As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis sobre um fundo de manchas já da cor da terra - como são belas as tuas mãos pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre cólera dos justos... Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se chama simplesmente vida. E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços da tua cadeira predileta, uma luz parece vir de dentro delas... Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente, vieste alimentando na terrível solidão do mundo, como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento? Ah! como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das tuas mãos! E é, ainda, a vida que transfigura as tuas mãos nodosas... essa chama de vida - que transcende a própria vida ... e que os Anjos, um dia, chamarão de alma.

O poeta canta a si mesmo

A vida é tão bela que chega a dar medo.

O poeta canta a si mesmo porque nele é que os olhos das amadas têm esse brilho a um tempo inocente e perverso...

Não o medo que paralisa e gela. estátua súbita, mas esse medo fascinante e fremente de curiosidade que faz o jovem felino seguir para a frente farejando o vento ao sair, a primeira vez, da gruta.

O poeta canta a si mesmo porque num seu único verso pende - lúcida, amarga uma gota fugida a esse mar incessante do tempo...

Medo que ofusca: luz! Cumplicemente, as folhas contam-te um segredo velho como o mundo:

5 poemas para Quintana

Adolescente, olha! A vida é nova... A vida é nova e anda nua - vestida apenas com o teu desejo!

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Porque o seu coração é uma porta batendo a todos os ventos do universo. Porque além de si mesmo ele não sabe nada ou que Deus por nascer está tentando agora ansiosamente respirar neste seu pobre ritmo disperso! O poeta canta a si mesmo porque de si mesmo é diverso.

Preparativos para a Viagem Uns vão de guarda-chuva e galochas, outros arrastam um baú de guardados... Inúteis precauções! Mas, se levares apenas as visões deste lado, nada te será confiscado: todo o mundo respeita os sonhos de um ceguinho - a sua única felicidade! E os próprios Anjos, esses que fitam eternamente a face do Senhor... os próprios Anjos te invejarão.

ETERNA SAUDADE

RELENDO QUINTANA

FENÔMENO QUINTANA

Ajeito a humildade da casa para te receber Poucos móveis, nenhum tapete, poucos livros, Uma lamparina, entre meus gatos ariscos Que dormem na cama para te aquecer.

Eles passarão, eu passarinho, eles seu quinhão, eu meu caminho, eles morrerão, eu sairei de fininho.

Mario Quintana morou Num tal de Hotel Glória Que não existe mais: Glória efêmera do hotel Mas não a do Quintana

Preparo o teu chá com ervas da casa. Crescem naquele mato que chamo jardim, Em um lapso de bondade que surge em mim, Assim como o crepúsculo que invade a sala. Tirei as folhas do velho plátano Que indica e decora o caminho. Também leva à casa sem vizinho E que me separa do pântano. Esta penúltima te será bem acolhedora. Perto, fica a última, que guarda meu cimério. Que de dia encerra a paz, e à noite o mistério; E essa pequena lembrança me é consoladora. Preparo a casa como a uma sina, Tirando o pó da única cortina. Limpo, como se esperasse a amada, Recebendo-a com a casa arrumada. Fique tranqüilo; preparei o papel Para tuas cartas, teus novos poemas, Pois dos velhos, saudades não tenhas; Estão todos registrados em teu hotel. Hotel que hospedou tua obra, Biblioteca que moraste em vida, Dedicada ao sacerdócio da poesia, Ritual que não volta nada em troca.

LUIS PIMENTEL autor de Calcanhar da memória, ed. Bertrand Brasil, 2004

QUINTANARES O pão para a fome (a outra fome) nasceu de lua in(esperada), da solidão nas esquinas, de um felino na varanda, Nasceu de lâmina cálida como, sempre, foi acesa no hotel Majestic, a madrugada. Dessa matéria in(visível) de silêncio que não cala de sapato velho de criança, de frágeis flores entre sal e pedras, de um copo d’água, às pressas, na Selva, às seis da tarde são teus filhos, sempre, aurora no espelho das águas do Guaíba e o pôr-do-sol, do mesmo rio, o fogo das pa(lavras). E se Alegrete é um trem que ficou na curva da estrada agora, somos nós, Quintana que tomamos chá com teus fantasmas. Há um louva-a-deus no parapeito da janela, indisfarsavelmente verde.

Vejo o Mario voltando Ao seu hotel no alto da Ladeira Após haver perambulado Tarde da noite pelos bares De sua fantasia Mario vem trôpego varando a rua silenciosa Em busca de um ponto de luz E só encontra o toc-toc De uma perna de pau chispando Estrelas numa poça d´água Esse Quintana que sem vir de trem Nem de Alegrete, de repente caiu das nuvens Em plena Rua da Praia num sapato florido De braço dado com a neblina Entre o Café Colombo e a Casa Masson ISAAC STAROSTA raistra@hotmail.com

MARIO QUINTANA Olhem o antípoda olhem o animal da palavra É um dinossauro na cidade de vidro borboleta branca na floresta queimada Respeitem seu andar e desconfiem com temor da sua conversa fiada

Chamei, para te servir, uma velha mucama. Mandei preparar tua cadeira de balanço, Preparei-me para conviver com teu ranço Pela eternidade, meu imortal Quintana.

É preciso ver com os olhos da alma e ter fome, sempre!

Ele é o flagelo do Senhor e vocês não sabem

CHARLES ABEGG autor de Mortalha e outros poemas, 2005

LARÍ FRANCESCHETTO Rua João L. Carvalho, 98 95330-000 - Veranópolis - RS

NEI DUCLÓS autor de No meio da rua e Outubro


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entrevista

Existe alguma pergunta que os jornalistas sempre fazem e que você considera chata? Não. O que existe é uma pedida chata. Há pessoas que dizem, por exemplo: "Seu Mario, faz uma dedicatória bem poética pra mim... Olha, o que eles entendem por poética me deixa horrorizado. Quando foi que a poesia entrou na sua vida? Eu comecei a fazer versos desde que me entendi por gente. Eu acho que ser poeta não é uma maneira de escrever, é uma maneira de ser. Assim, como nascem pessoas de olhos azuis ou pretos, nascem também os poetas. Mas eu só publiquei mesmo o meu primeiro livro muito mais tarde. Os poetas novos tem ânsia de publicar logo, eles deveriam esperar ficar mais amadurecidos pela vida, não é? E assim, iriam amadurecendo também o seu instrumento, que são as palavras. O poeta quando mais velho tem tendência de ficar melhor, com o estilo mais depurado. Viveu mais, não é? Você acha que Mario Quintana já está pronto, é um bom poeta? Olha, eu sou um eterno aprendiz. Porque o poeta que descobre uma fórmula, ganha renome, não quer outra vida, e fica conversando com os amigos sentado em cima do muro sem se espetar, esse está perdido, porque eu acho que a poesia não é mais que a procura da poesia, como acho que também Deus se resume na procura de Deus. Eu publiquei meu primeiro livro aos 34 anos. Foi "A Rua dos Cataventos".

MARIO QUINTANA Aliás, eu não gosto de Academia e jamais quis pertencer a ela porque a gente perde um tempo enorme recebendo visitantes estrangeiros de valor muito suspeito. Se pensa que ser estrangeiro é grande coisa, que ser francês ou inglês é uma raridade e não é bem assim. Depois, na Academia, se começa a discutir quem vai ser o sucessor de quem, se recebe impressões de toda a parte para se votar e eu acho que isso atrapalha a vida do camarada, não é? Eu acho que ultimamente a Academia virou um depósito de ministros e com o perdão de alguns amigos que eu tenho lá, um asilo de velhos. Mas eu não tenho nada contra a Academia. De fato não há contradição minha em lamentar que não tenha sido eleito porque eu tensionava fazer tudo pela Academia, se fosse eleito. Acho que, antes de tudo, ela deveria ter muita gente jovem. Eu acho que já seria uma renovação e acabava com aquela coisa. Na academia, já não gostaram muito de mim porque dois anos antes da minha candidatura eu tinha dito que a Academia era uma espécie de sociedade recreativa e funerária (risos). DULCE HELFER

O que você acha da velhice? Eu acho que é uma pena. Só que eu queria ter nascido 40 anos antes, e não oitenta anos antes (risos). Tudo isso eu já vivi, sabe? Quando o diabo me chamar eu já estou pronto. Você já viveu oitenta anos. O que é que mudou em Porto Alegre desse período pra cá? Olha, naturalmente o que mudou foi a arquitetura, não é? Eu vejo sempre uma cidade dentro da outra e lembro aquela cidade antiga. Mas pra me lembrar dela eu tenho que fechar os olhos (risos). Porto Alegre, antigamente, era muito mais calma. Não havia tantos assaltos, tanta violência... eu nasci no tempo das vacas gordas. Antes, o leiteiro deixava o leite na porta de casa e ninguém roubava. Hoje roubam até as galinhas dos despachos. Os tempos mudaram, os costumes, mas a vida continua a mesma. Eu não sou como aqueles velhos que dizem: "Ah, os bons velhos tempos..." eu tenho vontade de dizer para eles: "Olha seu moço... seu moço, não, seu velho. Os tempos são sempre bons, o senhor é que não presta mais... “ (risos). Você continua a escrever poesia com freqüência? Publicará algum livro este ano? Olha, eu não sei fazer outra coisa na vida. Este ano vou publicar dois livros: Um diário poético, com pensamentos sobre cada dia. No dia universal da mulher, por exemplo, eu escrevi o seguinte: " De cada dois gambás - eu não sei se na Paraíba se usa a palavra gambá para se definir um bêbado - um é porque não tem mulher e o outro é porque tem.” (Risos). Já se tentou três vezes colocar o seu nome na Academia Brasileira de Letras e não se conseguiu. Qual é, agora, a sua relação com a Academia? As minhas relações com a Academia foram sempre boas, eu sempre me dei com gente de lá. Não estou dizendo que "as uvas estão verdes", mas, na verdade eu nunca quis pertencer à Academia. O pessoal de mentalidade futebolística não se satisfazia com apenas um nome gaúcho no time e achavam que devia ter outro lá. Resolveram me candidatar. Quando me candidataram da primeira vez, eu recebi o recado de um senador, que estava tudo preparado para entrar o Portela, os votos já estavam prontos e que eu deveria desistir... e eu disse para ele, por telefone, que não haveria de desistir porque o pessoal iria pensar que era covardia minha. E seria muita desconsideração de minha parte.

Mario, você fala muito do amor nos seus poemas. Mas você não se casou, não teve filhos. Como explica isso? Talvez porque não tenha tido tempo. Eu andei muito. Antes eu trabalhava em Alegrete, cidade onde nasci. Ali fui prático de farmácia. Mas quando estava esquentando uma coisa eu mudava para outra. No quarto ano do colégio eu fui reprovado porque só estudava Português, Francês e História. O resto eu nem abria e um dia meu pai disse: "Olha, você não quer estudar. É uma pena, mas, vagabundo não te quero. Vais trabalhar na minha farmácia. " E eu fui prático de farmácia por cinco anos. Depois quando ele faleceu, eu fui fazer a única coisa que eu gostava: fui trabalhar de jornalista no Estado do Rio Grande. Quando as coisas estavam esquentando de novo o Governador mandou fechar o Estado do Rio Grande. Era o Flores da Cunha. Ele era um velho caudilho (risos). Aí fui trabalhar na Gazeta de Notícias, no Rio. Isso em 1936. Estive lá dois anos e aí fui trabalhar na Livraria do Globo. E sempre andando de um lado para o outro. E aí não tive tempo. Como é que vou saber porque é que não casei. Deve ter sido por causa dos astros, né? Vamos culpar os astros (risos). (Joana) - Casou com a poesia? (Lau) - Não, a poesia não é um casamento. É um caso, não é? Ah... a poesia é um caso mesmo!

Como é o dia-a-dia de Mario Quintana? Bem, eu acordo de manhã, vivo de dia e durmo de noite. Não tem nada de especial. Eu escrevo, ando, visito amigos... Mario, cita dois ou três poetas brasileiros que você considera bons. Olha, eu não gosto de citar. Eu só citarei um para evitar, depois, omissões inadvertidas ou divertidas. Eu citarei o Carlos Drummond de Andrade que é um dos poetas mais complexos do nosso País.

Quantos livros você traduziu? Eu traduzi para a Livraria do Globo, cento e trinta e oito livros. No tempo em que eu era criança, o francês era moda e a minha mãe era professora de francês. Então, quando a gente, por exemplo, não queria que os empregados soubessem o que a gente estava dizendo, aí se falava em francês. Grande parte da revolução de 23, por exemplo, foi preparada em francês, porque se reuniam as senhoras dos oficiais para tomarem chá e comunicavam as coisas todas em francês. Imagine que na minha terra, em Alegrete, se fez revolução em francês. Que barbaridade! Naquele tempo as comunicações com a Europa eram bem mais fáceis que hoje. A França era a capital literária do mundo. Eu, quando estava na farmácia do velho, tinha conta numa livraria francesa. Eles mandavam os boletins e eu encomendava. Tudo vinha direto de Paris para Alegrete. *entrevista concedida a LAU SIQUEIRA e JOANA BELERMINO em janeiro de 1987, e publicada no jornal O Norte. (www.lausiqueira.blogger.com.br)

Bibliografia do Poeta A Rua dos Cataventos (1940), Canções (1946), Sapato Florido (1948), O Batalhão de Letras (1948), O Aprendiz de Feiticeiro (1950), Espelho Mágico (1951), Inéditos e Esparsos (1953), Poesias (1962), Antologia Poética (1966), Caderno H (1973), Pé de Pilão (1975), Apontamentos de História Sobrenatural (1976), Quintanares (1976), A Vaca e o Hipogrifo (1977), Prosa e Verso (1978), Na Volta da Esquina (1979), Nova Antologia Poética (1981), Esconderijos do Tempo (1980), Nova Antologia Poética (1982), Lili Inventa o Mundo (1983), Mario Quintana, Coleção Melhores Poemas (1983), Sapo Amarelo (1984), Nariz de Vidro (1984), Primavera Cruza o Rio (1985), Diário Poético (1985), Nova Antologia Poética (1985), Baú de Espantos (1986), 80 Anos de Poesia (1986), Da Preguiça Como Método de Trabalho (1987), Preparativos de Viagem (1987), Porta Giratória (1988), A Cor do Invisível (1989), Antologia Poética de Mario Quintana (1989), Velório Sem Defunto (1990), Sapato Furado (1994), Anotações Poéticas, Mario Quintana (1996), Antologia Poética (1997), Água, Os Últimos Textos de Mario Quintana (2001), Poesia Completa (2005). Quintana traduziu Proust, Conrad, Voltaire, Virginia Woolf, Papini, Maupassant, Balzac e vários outros autores relevantes da literatura universal.


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carta/poesias

Carta a Mario Quintana

M

Uma vez, iluminado, um amigo me contou que esta vida, a nossa vidinha terrestre, também é sobrenatural; Guimarães Rosa vive o mistério de aquém-túmulo; Bandeira pensa que tudo é um milagre, menos a morte. Teus quintanares, poeta, são dessa mesma linha: não decifram, denunciam o mistério. O aprendiz de feiticeiro acabou envolvido pela feitiçaria, assim como o aprendiz de realidade, o cientista, acabou envolvido pela antimatéria. Acho a tua poesia a mais asiática da lírica brasileira:

O mundo é frágil E cheio de frêmitos Como um aquário... E quando dizes de Camões: Seu nome retorcido como um búzio. Ou quando riscas uma linha despojada: Havia no arco do aljibe trepadeiras trêmulas. Esses riscos puros dos chineses e persas antigos, refazem a novidade dos objetos: é por intercessão de tua poesia que posso ver uma haste ou uma andorinha com os olhos maravilhados dos homens que viram subir ao céu os primeiros balões. provável fotógrafo: Rubem Braga

EU CARO poeta: No dia 30 de julho fizeste 60 anos. Não venho dar os parabéns a ti, mas a mim e a todos os convivas de tua poesia. Imagina que em uma galáxia remota estejam reproduzidas todas as formas terrestres - a antimatéria de que falam esses descabelados românticos da realidade, os físicos modernos. A tua contra-imagem se acha nesse espaço incerto do cosmo e vai repetindo de certo modo os teus gestos terrestres. Quero dizer-te o seguinte: a tua poesia me parece uma tentativa de reprodução da tua antimatéria, da tua contra-imagem, do teu retrato cósmico. Dizes que tens pupilas assustadas de ave noturna. A gente olha e vê que é verdade. Mas onde descobriste esta verdade? Não foi no espelho claro de teu quarto: foi no espelho turvo do infinito poético. É desse abismo que vais há tanto tempo copiando a outra imagem de ti mesmo e as outras imagens de todas as coisas. Os objetos que te impressionam são comuns: a caneta com que escreves, os telhados, as tabuletas, a vitrine do bric. Teus animais são os próximos do homem: boi, cavalo. As sensações que te fazem pulsar são as mais cotidianas: como a de um gole d'água bebido no escuro. Os sons que te empolgam são os ritornelos de infância ou o fundo suspiro que se some no ralo misterioso da pia. Os mitos que te assombram são os mais familiares: Anjo da Guarda, Menino Jesus, Frankenstein, Sindbad, Jack o Estripador, Lili, Tia Élida, o Major Pitaluga, o retrato do Marechal Deodoro proclamando a República. Como fazer desses elementos uma grande poesia? Só há um jeito: deles reproduzindo, não o traço descritivo, mas o contorno de uma crontra-imagem. E isso é a tua poesia.

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Meu Quintana, os teus cantares Não são, Quintana, cantares: São, Quintana, quintanares. Quinta-essência de cantares... Insólitos, singulares... Cantares? Não! Quintanares! Quer livres, quer regulares, Abrem sempre os teus cantares Como flor de quintanares. São cantigas sem esgares, Onde as lágrimas são mares De amor, os teus quintanares. São feitos esses cantares De um tudo-nada: ao falares, Luzem estrelas e luares. São para dizer em bares Como em mansões seculares Quintana, os teus quintanares. Sim, em bares, onde os pares Se beijam sem que repares Que são casais exemplares.

Drummond, Vinícius, Bandeira, Quintana e Paulo Mendes Campos

Era adolescente, aí mesmo em Porto Alegre, quando achei teus poemas. Mudei de cidades, de bairros, de casas: teus livros mais antigos sempre me acompanham. Alguns de teus poemas e muitos de teus versos não precisam estar impressos em tinta e papel: eu os carrego de cor e, às vezes, brotam espontaneamente de mim como se fossem meus. De certo modo, são meus, e hás de convir comigo que a glória melhor do poeta é conceder essas parcerias anônimas pelo mundo. Pois a poesia é de quem se apossa dela. De minha parte, confesso-te, eu me orgulho de tua poesia. Havia um corredor que fazia cotovelo: um mistério encanado com outro mistério no escuro... Na surpresa desses dois mistérios encadeados, te envio o meu abraço de aniversário.

PAULO MENDES CAMPOS

E quer no pudor dos lares, Quer no horror dos lupanares, Cheiram sempre os teus cantares. Ao ar dos melhores ares, Pois são simples, invulgares, Quintana, os teus quintanares. Por isso peço não pares, Quintana, nos teus cantares... Perdão! digo quintanares.

Manuel Bandeira, saudando Mario Quintana em sessão da Academia Brasileira de Letras, em 25 de agosto de1966.

* publicado no livro “O anjo bêbado”. Ed. Sabiá, 1969

QUINTANA’S BAR

LIANE NEVES

Num bar fechado há muitos, muitos anos, e cujas portas de aço bruscamente se descerram, encontro, que eu nunca vira, o poeta Mario Quintana. Tão simples reconhecê-lo, toda identificação é vã. O poeta levanta seu copo. Levanto o meu. Em algum lugar-coxilha? montanha? vai rorejando a manhã. Na total desincorporação das coisas antigas, perdura um elemento mágico: estrela-do-mar - ou Aldebarã?, tamanquinhos, menina correndo com o arco. E corre com pés de lã. Falando em voz baixa nos entendemos, eu de olhos cúmplices, ele com seu talismã. Assim me fascinavam outrora as feitiçarias da preta, na cozinha de picumã. Na conspiração da madrugada, erra solitário - dissolvese o bar - o poeta Quintana. Seu olhar devassa o nevoeiro, cada vez mais densa é a bruma de antanho. Uma teia se tecendo, e sem trabalho de aranha. Falo de amigos que envelheceram ou que sumiram na semente de avelã. Agora voamos sobre tetos, à garupa da bruxa estranha. Para iludir a fome, que não temos, pintamos uma romã. E já os homens sem província, despetala-se a flor aldeã. O poeta aponta-me casas: a de Rimbaud, a de Blake, e a gruta camoniana. As amadas do poeta, lá embaixo, na curva do rio, ordenam-se em lenta pavana, e uma a uma, gotas ácidas, desaparecem no poema. É há tantos anos, será ontem, foi amanhã? Signos criptográficos ficam gravados no céu eterno - ou na mesa de um bar abolido, enquanto, debruçado sobre o mármore, silenciosamente, viaja o poeta Mario Quintana.

Carlos Drummond de Andrade Claro Enigma, obra completa, Ed. Nova Aguilar


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crônicas

“Descobri outro dia que o Quintana na verdade é um anjo disfarçado de homem. Às vezes, quando ele se descuida ao vestir o casaco, suas asas ficam de fora”. Erico Verissimo, em texto de abertura de “Pé de Pilão”, 1ª edição, Ed. Globo, 1975.

O último unicórnio (A Metafísica, os Caracóis e o Lirismo)

1 Caracol é caracol, Lesma é lesma. O Caracol tem aquela casinha pra morar, levando-a consigo pra todo lugar. A Lesma não carrega casinha com ela. Esta, a principal diferença entre os dois e que se pode facilmente observar. Uma coisa é uma coisa (o Caracol), outra coisa (a Lesma) é outra coisa. Todo Caracol solta gosma, nem toda gosma é do Caracol. A Lesma também é gosmenta. A mesma coisa não é a coisa Lesma. O Boi não solta gosma, o Boi baba. Quem solta gosma é o Caracol. E a Lesma. A baba do Boi é uma coisa diferente da coisa gosma. Vamos seguir esse raciocínio, lentamente. Quando alguém pisa no Caracol, inadvertidamente, o Caracol deixa de ser algo que solta gosma e passa a ser uma gosma só - o que vem a ser outra coisa, é claro! Dito isto, aceito por você e por mim, chegamos à pergunta que nos interessa: Por que os Caracóis andam devagar? Ausência de pressa, calma demasiada, cansaço físico ou mental? Somente a poesia nos leva a descobrir a resposta e a explicação corretas: “Os Caracóis andam devagar porque são eles que fazem a Terra girar”. E como diria uma menina de sete anos que conheci em uma escola por aí: Óbvio, óbvio!

Portanto, não se deve jamais, em hipótese alguma, tirar o Caracol de seu caminho, muito menos pisar (inadvertidamente) sobre ele. Isto é o fator causador de cataclismos e tragédias ecológicas de proporções muito grandes: terremotos, vendavais, maremotos, e outras convulsões inaceitáveis. Podemos constatar, com uma simples e direta observação: nas proximidades de um Caracol há sempre um outro, pousado em alguma folha ou pedra, pronto a ocupar rapidamente (o rapidamente dos Caracóis... não o nosso, é óbvio!) o lugar daquele, no caso de alguma pisadela distraída. No entanto, dentro da fração de tempo desigual entre um rapidamente e outro é que acontecem as grandes perturbações em nosso meio ambiente. Infelizmente. Quintana? Calma, já vamos falar dele.

2 “... E agora sonhamos as palavras que o poeta Quintana acordou”. Carlos Nejar, em Discurso sem Método (ou como conversar com os poemas de Quintana).

NATANAEL DE OLIVEIRA

3 “... A poesia é o brinquedo das cismas. Os poetas foram crianças sós e pobres que adoravam se divertir com os próprios devaneios, substituindo com vantagens, para o desenvolvimento de sua criatividade, as programações estandardizadas dos jardins de infância e os discutíveis brinquedos pedagógicos, não obstante o primeiro impacto de sua engenhosidade. Entregue a si mesma, sua imaginação recebe e emite aladas mensagens, através do resplendor mágico que anima de gradações de arco-íris o suceder de seus dias”. Cyro Martins, em “Nota sobre Mario Quintana”.

Alguém poderá argumentar, com toda a razão: “Todos os caracóis não caminham na mesma direção! Facilmente encontramos caracóis andando em direções diferentes, até mesmo opostas”. Óbvio, óbvio! Por certo, andassem eles no mesmo rumo, a rotação da Terra seria de tal forma que sequer estaríamos nós aqui, examinando com dedicação e cuidado a natureza dos caracóis e das lesmas. Voaríamos pelo espaço, a velocidades estonteantes.

Existe gente, vejam só, que come Caracóis. Outros, ainda, usam Lesmas como alimento. Ambos os casos, uma barbaridade que ocasiona terríveis e constrangedoras situações na história da vida em nosso mundo. Muito embora, para a nossa sorte, não se tenha ouvido falar de quem coma Caracóis com Lesmas, o que vem a ser um consolo.

Eles, os Caracóis, distribuem-se pela superfície do planeta de modo a fazer com que o mesmo gire suave e delicadamente. Há um equilíbrio, uma harmonia nisso tudo, nessa movimentação aparentemente aleatória. E silenciosa. Caracóis e poetas movem-se em silêncio, quase sempre. Os fantasmas e as crianças também.

o papel na MÁQUINA

E não me conformo em não saber. Essa dúvida maltrata-me o juízo. Como um juiz maltrata o martelo, a mesa, o réu e a consciência. O que mais poderia registrar aqui, nessa página em branco? Esse branco olha-me com cara de analista. Como eles cobram caro hoje em dia! Sabe quanto o papel em branco me cobra? O preço de expor-me ao ridículo diante de vocês. Preciso revelar, abrir as gaiolas, soltar os passarinhos. Não suporto mais a cara de alma penada desse papel a olhar-me de frente. Tenho que dizer-lhe algo. Mas o que, meu Deus? Se o que realmente gostaria de dizer voou-me das mãos instantes atrás. Porém, preciso dizer algo. Sinto uma vontade incontrolável de escrever. Sou um escritor! Um predestinado! Um pobre coitado! Um eterno prisioneiro das palavras...

arte sobre foto de Cláudio Carijó

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Botei

omeço de uma forma totalmente diferente da que pretendia. Não sei se essa, ou qualquer uma outra que imaginei antes, é a melhor maneira de começar essa crônica.

Arre! O que quero dizer. Ou o que queria. Só que com outras palavras. É que sou plenamente de acordo com o que Mario Quintana traduziu, adaptou, ou adotou, sem data venia, do novelista e poeta francês Raymond Queneau:

Pode-se imaginar um indivíduo, de cócoras ou agachado, catando esses animaizinhos (tão importantes e significativos) pelo chão? Caracóis e Lesmas são sensíveis e muito suscetíveis. Poetas e crianças também. Um ato violento pode gerar transtornos profundos que serão transmitidos geração após geração, geneticamente sim, é óbvio, também possuem DNA e outras coisas que poderemos analisar mais detalhadamente em estudos e pesquisas futuras. Mas isso somente quando falarmos da significação de Caracóis e Lesmas na dinâmica do sistema solar e no conjunto das normas e conformidades cósmicas, ufa! Mas isto, é óbvio, já é outra coisa! Agora podemos falar do paradigma, do paradoxo, do párachoque, do pára-brisa. E do Mario. O Malaquias. 4

Mario Quintana é um Unicórnio, pode ser também que seja um Centauro. Dos primeiros guarda a naturalidade inimitável de um velho baú esquecido no fundo do mar de nossa memória lúdica. Dos segundos possui a riqueza da sintaxe brejeira da água da chuva bebida nas conchas das mãos. Podia ser o que quisesse. Tem e tinha esse poder. Tornar simples o complicado, diria Charles Mingus, o músico. Fazer a gente olhar pra dentro e acordar, diria Carl Jung, o sonhador. Quintana é mestre, craque nisso: falar aos homens e mulheres no que ainda há de pureza e delicadeza dentro deles, tocar a criança de cada um com o olhar firme e certeiro de um dragão que solta fogo pelo rabo ou de um navegador de estrelas cadentes. Escreveu para crianças, imprescindível. Mas pode ser lido em qualquer momento, em qualquer condição. Qualquer título, inevitável. Enquanto pais, doutores, outros autores olham para a tromba e as orelhas, ele sempre chamará a atenção para o rabo de barbante do elefante. Quintana era mais que gauche, era um torto. Misterioso, porém claro como um olho aberto. Cheio de estilo, um Centauro arpoador de sentidos. A crina de Unicórnio enfeitada de anêmonas e manhãs. “Poeta das quinta-essências humanas” escreveu alguém, não lembro quem, Quintana importa ao pequeno leitor por ser um amansador de gente grande. Alguém que pode falar com alegria aos nossos fantasmas e circular por nossos jardins e em nossas vidas com a grandeza incandescente de um Meteoro, de um Caracol, de uma Lesma.

MARIO PIRATA www.ailha.com.br/mariopirata

“Meu Deus, que vontade me deu de escrever um poeminho... Olha, agora mesmo vai passando um! Pst pst pst vem para cá para que eu te enfie na fieira de meus outros poemas vem cá para que eu te entube nos comprimidos de minhas obras completas vem cá para que eu te empoete para que eu te enrime para que eu te enritme para que eu te enlire para que eu te empégase para que eu te enverse para que eu te emprose vem cá... Vaca! Escafedeu-se”.

CLAÚDIO PORTELLA autor de Bingo!, ed. Palavra e Mutação clautella@ig.com.br


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crônica

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enhum outro poeta do Rio Grande do Sul conseguiu na vastidão de nosso país ser tão estimado, tão amado sim em todas as regiões, quanto o introvertido Mario Quintana, cujo primeiro centenário de nascimento transcorreu no dia 30 de julho.

O melhor a fazer para homenagear um escritor, principalmente em se tratando de um verdadeiro poeta, é reeditar-lhe a obra, e não criar um prêmio com seu nome ou erigir uma estátua sua em praça pública. Felizmente, reeditar toda a obra de Quintana é o que está fazendo com desvelo a Editora Globo. Como a maioria dos estudantes, entre 1960 e 1969 vivi em Belo Horizonte com orçamento curto (curtíssimo é a expressão mais correta). Não poderia adquirir em livrarias. Comprei em um sebo uma edição bastante usada, quase se desfazendo, de “A rua dos cataventos”, o primeiro livro de nosso poeta, lançado pela mesma Globo em 1940. Em um dos sonetos, o autor confessa que, ao escrever, “vão começar as convulsões e arrancos” (...) na tentativa de conseguir captar, sem repetir os outros, a vida que é sempre inédita. Ele me conquistou como leitor para sempre, com sua honestidade, com sua natural singeleza, com a absoluta ausência de vaidade e pretensão. O que ele nos transmite no Soneto XXXV:

As torturas lentas

da expressão Dizem que sou tímido. Nada disso! Sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros? Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Verissimo que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.” Em entrevista a Lau Siqueira “- Olha, eu sou um eterno aprendiz. Porque o poeta que descobre uma fórmula, ganha renome, não quer outra vida, e fica conversando com os amigos sentado em cima do muro sem se espetar, esse está perdido, porque eu acho que a poesia não é mais que a procura da poesia, como acho que também Deus se resume na procura de Deus. Eu publiquei meu primeiro livro aos 34 anos. Foi A Rua dos Cataventos". Aí está o que disse a Lau Siqueira em Porto Alegre, em janeiro de 1987. A entrevista foi publicada pelo Jornal O Norte, de João Pessoa/PB, no dia 25 de janeiro daquele ano (leia na pág. 6). Palavras que dispensam comentários. LIANE NEVES, acervo CCMQ

“Quero é ficar com alguns poemas tortos Que andei tentanto endireitar em vão... Que lindo a Eternidade, amigos mortos, Para as torturas lentas da Expressão!”...

Tenho à minha frente, hoje, a esmerada edição de “A rua dos cataventos” que comemora o centenário de Quintana (S.Paulo: Globo, 2005). Em papel pólen print 120-G, por certo durará pelos próximos séculos, ao contrário daquela que me coube quando estudante em Belo Horizonte. Como deve ser, abre a Coleção Mario Quintana, com organização, plano de edição, fixação de texto, cronologia e bibliografia aos cuidados da competência de Tânia Franco Carvalhal. Toda a obra de Quintana está sendo otimamente reeditada, incluindo “80 anos de poesia”. Seria, no entanto, trair o poeta ficarmos tão somente nas aparências e no que é comemoração, ignorando o que ele sempre teve e tem a nos dizer: “Se alguém acha que estás escrevendo muito bem, desconfia...O crime perfeito não deixa vestígios.” Texto escrito por Quintana em 14/11/1984 para a revista IstoÉ: “Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade. Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro, o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz.

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A vida é indivisível. Mesmo A que se julga mais dispersa E pertence a um eterno diálogo A mais inconseqüente conversa. Todos os poemas são um mesmo poema, Todos os porres são o mesmo porre, Não é de uma vez que se morre... Todas as horas são horas extremas... (de “Apontamentos de História Sobrenatural”, de 1976, quando MQ completou 70 anos) O saudoso crítico Fausto Cunha, entre outros que se debruçaram sobre os poemas de MQ, deixou registrado que sua poesia é “difícil, porque intensamente alusiva e de um humor sutil, irredutível.” ( “ A Luta Literária”, Rio de Janeiro, Ed. Lidador, 1964, p. 159). Muito mais ficamos sabendo a respeito, por meio do fascinante livro “Mario Quintana”, de Márcio Vassalo (Ed. Moderna, 2006) para o público infantil (e também para o adulto). Um dia, depois de observar que a esposa de Érico Veríssimo (sob a direção do qual trabalhou na Editora Globo) vivia fazendo meias de lã para ele, lançou: “Acho que a Mafalda pensa que sou uma centopéia.” Mesmo já idoso, gostava muito de caminhar, só ou acompanhado, pelas avenidas, ruas, becos, bares e travessas de Porto Alegre. Erico Verissimo comentava que “Mario sobrevoava as noites da cidade”. Mario sobretudo procurava e gostava de viver uma solidão intensa, como registrou o escritor Armindo Trevisan: “Era quase impossível ter uma conversa linear com Mario. Ele vivia em outro mundo, um mundo de espirais intelectuais. A sua presença neste mundo era ocasional...” Ficou conhecido como poeta-bruxo, inclusive por causa de muitos de seus inigualáveis poemas em prosa. Faz-nos pensar esta minimáxima retirada de seu “Caderno H” ( S.Paulo: Ed. Globo, 2005, 10a. ed., p. 42):

O poeta das coisas simples e do mundo adverso O poeta Mario Quintana não se preocupou com os falsos ouropéis da fama. Jamais aborreceu alguém para que escrevesse e elogiasse qualquer de seus livros. Fez poesia porque sentiu invencível necessidade, conforme suas palavras. Jamais cometeu a vilania de correr atrás de júris e de meros premiozinhos literários que em nossos dias os poetastros laureados em Xapetuba alardeiam em trombone como se fossem prêmios nacionais ou internacionais. E o que dizer das singelas menções honrosas que os desonestos tentam fazer passar por premiação? Para tanto, quem melhor haverá de auxiliar-nos será outro poeta, também digno, José Paulo Paes, no “Prefácio” que escreveu para seu próprio livro de ensaios curtos, “A Aventura Literária” (S.Paulo: Companhia. das Letras, 1990, 1a. ed., p. 8): “A explicação é simples: leitor apaixonado de prosa de ficção, sou no entanto incapaz de escrevê-la. As poucas tentativas que fiz nesse sentido deram infelizmente em nada. Uma delas recebeu até menção honrosa num concurso nacional de contos, o que equivaleu à pá de cal definitiva: não há nada mais desonroso que uma menção honrosa”. Da mesma forma, Quintana jamais apregoou suas próprias excelências nem as fez dizer por terceiros. É congênita nos verdadeiros poetas a honestidade para consigo mesmo e para com os seus leitores, algo que faz parte de seu fascínio e de sua arte, isto que nos leva a aceitarmos, sem restrições, como se fossem também nossas, as experiências que seus poemas transmitem como em: Pequeno poema didático

“E o que há de mais triste nesses poetas de equipe é que eles naufragam todos ao mesmo tempo.” Sabemos que a obra do poeta Mario Quintana, esta não naufragará. A ele acaba de ser conferida uma das máximas honras que se pode prestar a um escritor brasileiro. Sua produção reunida entrou para a plêiade exclusiva dos nossos grandes autores que têm suas “Obras Completas” lançadas em papel bíblia pela Editora Nova Aguilar. Se ele de fato puder ouvir-nos e inteirarse do que aqui se passa, não duvidem, seu comentário será repetir aqueles versos do Soneto XXXV de seu primeiro livro: “Quero é ficar com alguns poemas tortos Que andei tentanto endireitar em vão... Que lindo a Eternidade, amigos mortos, Para as torturas lentas da Expressão!”... E vamos encerrar com : DA OBSERVAÇÃO Não te irrites, por mais que te fizerem... Estuda, a frio, o coração alheio. Farás, assim, do mal que eles te querem, Teu mais amável e sutil recreio...

ARICY CURVELLO O tempo é indivisível. Dize, Qual o sentido do calendário? Tombam as folhas e fica a árvore, Contra o vento incerto e vário.

poeta, ensaísta e tradutor. Entre seus livros mais conhecidos estão “Mais que os Nomes do Nada” (São Paulo, Editora do Escritor, 1996, poesia); “Uilcon Pereira: no coração dos boatos” (Porto Alegre: Ed. AGE / S.Paulo: Editora Giordano, 2000, ensaios); o poema longo (sobre a Amazônia) “O Acampamento” já traduzido para o espanhol, o italiano e o francês, neste último idioma em livro lançado por Les Presses Littéraires, em tradução de Jean-Paul Mestas.


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resenha/crônica

Porto Alegre que Mario Quintana habitou era uma província ainda muito ligada à vida interiorana, sendo, em última análise, uma extensão de sua Alegrete atemporal, que ele trouxe consigo para a capital do estado, sem nunca se afastar demasiadamente dela. Não estou querendo dizer, com isso, que Porto Alegre e Alegrete se equivaliam, e sim que a maneira de viver de Mario Quintana permaneceu, em essência, inalterada na passagem de uma cidade para a outra. Sua sensibilidade foi formada no interior e não sofreu modificações profundas ao longo das décadas que viveu na capital que, rapidamente, foi se expandindo. Desde o início, a sua cidade íntima foi invariavelmente a mesma e a sua percepção idiossincrática deste espaço urbano em processo de modernização gerou alguns equívocos críticos, responsáveis pela falsa idéia de que Quintana é um poeta vinculado a valores passadistas. Seu primeiro livro, A Rua dos Cataventos (1940), tinha um lirismo simbolizante que se chocava com as ousadias modernistas, já em franco desgaste, e nos livros que se seguiram continuou havendo uma defasagem entre a produção do poeta e as palavras de ordem do lirismo nacional. Quintana permaneceu sempre o mesmo, ao ponto de, em seus últimos livros, incluir poemas que datam de sua adolescência (“O que fazes hoje é o mesmo poema / que fizeste em menino” (Antologia poética seleção de Sérgio Faraco, L&PM, p. 97). Assim como viveu sempre em um espaço mítico, em sua cidade natal, transportada em sua mitologia afetiva e dilatada pelas amizades e descobertas que ia fazendo, o seu tempo era de ordem também interior e, por isso, estático. Isso, biograficamente, pode ser explicado pelo fato de o poeta ter ficado solteiro, sem dar continuidade à sucessão de gerações, dinâmica cronológica por excelência, mas pode também conter uma razão mais profunda: é que ele descobriu, já de início, a sua voz, que lhe deu uma identidade que permanece invariável em toda a sua trajetória. Uma voz em que ecoa um universo à margem dos grandes burburinhos urbanos. Daí o preconceito, em alguns círculos, contra sua poesia, tida como pouco moderna em função de o autor se recusar a vesti-la pelos figurinos metropolitanos. Nacionalmente, a estatura de Quintana não é reconhecida pelo culto cego da novidade que leva poetas ainda imaturos a uma busca desenfreada do último modismo. Tentar entender as suas opções, muito mais do que definir o seu merecido lugar na poesia de língua portuguesa, é alertar para os perigos de uma entrega à crença no experimentalismo como fim em si.

Sentindo-se deslocada historicamente, a poesia moderna do Brasil, enquanto conjunto, tem sido um esforço para conquistar uma maneira de ser/escrever cosmopolita. Assim, na geração de Mario Quintana, e mesmo hoje, o que se espera de um poeta moderno, nascido na periferia, é que ele vá de seu universo local ao centro do mundo, funcionando como um elemento atualizador de linguagens. Para Quintana, Porto Alegre devia ser apenas um acidente de percurso que o levaria para o Rio de Janeiro e, depois, para Paris. Esta era a viacrúcis dos provincianos. Mas Quintana plantou-se em Porto Alegre, fiel ao seu mundo matinal, e fez desta permanência a sua grande matéria lírica.

Em A Rua dos Cataventos se dá uma verdadeira adesão ao habitat provincial, tanto pelo ritmo sereno e crepuscular, típico das pequenas cidades, quanto pela aceitação de que o eu poético é parte constitutiva desta paisagem de bairro, desta rua de gente humilde, de uma Porto Alegre periférica, que supre as carências nostálgicas deste desterrado do interior. Simbolicamente, no soneto XV, dedicado a Erico Verissimo, o poeta mostra sua opção por este mundo que ele sente esvanecer e que, por isso mesmo, fica fortalecido em seu interior: “Pus meus sapatos na janela alta, / Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta / Pra suportarem a existência rude! // E eles sonham, imóveis, deslumbrados, / Que são dois velhos barcos, encalhados / Sobre a margem tranqüila de um açude...”

Quintana foi, sem dúvidas, o primeiro poeta de quem ouvi falar. O primeiro escritor foi meu bisavô Walter, mas o primeiro poeta foi Quintana. E não me pergunte com que idade li seu primeiro verso, não saberia responder, ocorre que desde que me conheço por gente minha mãe tinha um pano de prato do Zaffari com o verso Eles passarão Eu passarinho E eu passava pela cozinha, muito pequeno, sou de 1982, talvez alguém lembre dessa promoção zaffariana, de quando é? enfim, eu passava na cozinha e ficava pensando naquela frase. O que significava? Como assim, eu passarinho? E de certo imaginava homens voando, ou o poeta se transformando em passarinho. Sem saber, estava bebendo da fonte da poesia. Quando Quintana morreu eu ainda estava mil vezes mais ligado em Comandos em Ação e Mega Drive do que em literatura, então só vim a adquirir um exemplar do poeta, conhecer melhor o poeta depois deste ter se transformado em personagem. Foi quando descobri o título, “Poeminha do Contra”, e os outros dois versos

Os sapatos, esses instrumentos de partir, sonham-se barcos encalhados. O que o poeta decide não é abandonar o seu território, mas povoá-lo ternamente. O movimento retratado pelo poema não se dá numa perspectiva horizontal, a da viagem, mas na vertical, a da espiritualidade: os sapatos são postos numa janela alta. O sapato é uma das imagens centrais de sua obra e funciona como um elemento de lirismo e não como objeto prático. Daí, inclusive, o título de um de seus livros: Sapato florido. Mas não são os sapatos/barcos, que levam para longe, e sim os que desvendam os segredos das ruas de sua cidade, percorridas pelo poeta em busca de um reconhecimento de sua urbe íntima, habitada por seres simples e marcada pelos acontecimentos mais cotidianos. É nesta viagem pedestre por Porto Alegre que Quintana fortalece a identidade temática e estilística de seus poemas. Se ao longo deste século, da poesia se exigiu uma incorporação da velocidade das máquinas, que acelerou a linguagem, vista como metonímia da vida em tempos tecnológicos, Quintana foi sempre um cultor da medida humana, das caminhadas ou do trenzinho que segue lentamente, reverenciando os pequenos vilarejos: “nasci na Era da Fumaça: trenzinho / vagaroso com vagarosas / paradas / em cada estaçãozinha pobre” (p.77). Dentro desta mesma valorização, Porto Alegre, em “O mapa”, é definida como “cidade de meu andar / (deste já tão longo andar!)” (p. 68). A percepção vagarosa do espaço é fruto de um amor pelas figuras humanas com quem convive, uma vez que o poeta não quer a velocidade que tudo apaga e sim o deslocamento compassado que lhe permite anexar as realidades imediatas. Grande parte de seus temas nascerá desta maneira de percorrer a província que está no aqui e na memória. E até o seu estilo tem a mesma origem. Se ignorarmos a separação escolar de verso fixo e verso livre, veremos que todos os poemas de Quintana possuem uma única espécie de ritmo, o ritmo despreocupado das caminhadas. Não há inversões, construções rigorosas, extremismos dramáticos ou malabarismos, é sempre o mesmo compasso descontraído, sem rumo muito certo, que vai conduzindo o leitor no ritmo do acaso. Esta andadoria espontânea, sem forçar uma aceleração, está sintonizada com sua maneira de habitar interioranamente Porto Alegre, fazendo dela um centro do mundo: ponto de confluência do que vem das metrópoles e das cidades pequenas. Porto Alegre é o umbigo do mundo para Quintana, e esta concepção lhe permite abdicar de qualquer desejo de partida. Assim, a questão da viagem vai ter sempre um sentido espiritual em sua obra. Ele não quer fugir de Porto Alegre rumo aos grandes centros. Viajar é deixar a dimensão terrena e conquistar a celestial. Mas ele não é um espiritualista convencional que projeta no além o paraíso. Poeta pedestre, confortável em seu universo provinciano, ele cria uma imagem do céu que é uma réplica da cidadezinha comum, com seu coreto e sua banda uniformizada (“Um céu comum”). Habitante pleno de uma paisagem periférica, Quintana foi sempre o menino deslumbrado com o seu mundo pequeno, do qual ele extraiu uma grandeza ímpar, dando-lhe espessura histórica, sem precisar se valer de gritos e uivos. Daí ser, em uma era tempestuosa, um porto de serenidade.

MIGUEL SANCHES NETO escritor e crítico literário * Texto publicado na Gazeta do Povo (14/08/2000) e cedido pelo autor

O poeta passarinho Todos estes que aí estão Atravancando o meu caminho, Eles passarão. Eu passarinho! Alguém já disse que o poema é um símbolo da ironia de Quintana, mas também é um genial epitáfio, uma bela premonição. De fato Quintana virou passarinho, sua poesia voou, voou e cá está ainda mais forte depois de sua morte. Hoje Quintana merece reedição por grandes editoras nacionais, figura nas antologias canônicas do século XX e por vezes é comparado, enquanto poeta do cotidiano, a Drummond. Quintana se transformou em Casa de Cultura, em prêmio, em referência para carpinejares. Enfim, passarinho. E que os atravancantes aprendam a lição.

MARCELO SPALDING / msmidia@msmidia.com

LEANDRO DÓRO

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Percorrer poeticamente Porto Alegre

JORGE VIANNA

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Qual foi sua intenção ao publicar Mario Quintana Desconhecido? Os Centenários de Nascimento se prestam a acertos e equívocos. Freqüentemente, tais centenários derivam, em se tratando de escritores, para frufrus e lantejoulas, quando a verdadeira razão deles é incitar o público à leitura de suas obras, ou à releitura, que na minha opinião é o melhor de tudo. No caso de Quintana, nem havia essa possibilidade, antes de a Tânia Carvalhal organizar a Poesia Completa (RJ, Nova Aguilar, 2005). Eu mesmo, que estudo a poesia de Quintana há mais de 20 anos, só pude ter uma visão realmente panorâmica dela mediante essa obra. Vendo, porém, que a mídia estava divulgando com muita frequência o lado piadista, até mesmo efeitista, do Poeta, fiquei com medo de que a coisa degringolasse. Resolvi fazer um acerto de contas comigo mesmo. Depois de 37 anos de amizade com Quintana, estava na hora de avaliar a sua pessoa, e sobretudo a sua obra. Foi o que fiz. O livro é um olhar sincero, lúcido e carinhoso sobre ambos. Não é um livro acadêmico, embora eu respeite os acadêmicos. Afinal, eu também o sou, em determinados livros. Por que o Sr. acha que a personalidade de Mario Quintana se sobrepôs à sua obra? Porque Quintana era carismático, mesmo que pudesse não dar essa impressão. Havia certo exotismo na sua pessoa. Quintana foi um boêmio, “um boêmio esquisitão” como o definiu Augusto Meyer. Teve sua fase inconvencional, da qual se redimiu maravilhosamente, dando a todos um exemplo de que não existe droga que não possa ser vencida, e transformada em produção social. Depois, Quintana não era casado, nem teve filhos, netos... Tudo isso contribuiu para criar em torno dele uma auréola folclórica. Além disso, era um piadista inesgotável. Transformar a piada em poema requer o mesmo talento que o de um joalheiro que transforma um diamante bruto numa peça valiosíssima. Quintana fazia isso...mas nem sempre! O público, às vezes, pensava que uma piada de Quintana já fosse um poema. Não era. Os poemas de Quintana são poemas. E seu humor atinge a qualidade de poema porque Quintana trabalhava a sua forma com extremo cuidado. Foi ele quem disse que até desejava o Céu para poder se dedicar “às torturas lentas da expressão”. Essas palavras só poderiam ser ditas por um poeta. A personalidade de Quintana, graças à mídia, se sobrepôs muitas vezes à sua pessoa e à sua obra. O Quintana chegou a passar por naïf, quando na verdade possuía excelente cultura geral e cultura literária refinada. Imaginem, um indivíduo que traduziu Balzac, Proust, Joseph Conrad, Giovanni Papini, Merimée, Voltaire, Maupassant, Aldous Huxley, Graham Greene, ao todo aproximadamente 138 versões... É verdade que ele detestava e ironizava a pseudoerudição! Mas não era burro para desprezar a verdadeira erudição, da qual existem amostras nos seus livros. A que o Sr. atribui a ausência de poemas de Quintana na antologia nacional organizada por Manuel Bandeira e José Guilherme Merquior para a Editora Sabiá? À arrogância dos críticos que gostam de pontificar. Só eles é que sabem o que é literatura boa, o que são obras-primas! Um Guilherme Merquior, que organizou a secção dos poetas vivos daquela antologia, e que até pessoalmente me favoreceu com referências à minha poesia, não chegou a descobrir o verdadeiro valor de Quintana. Por quê? Por autosuficiência, qualidade que tem sido generosa para com os críticos e políticos... Em poesia toda humildade é sempre pouca. O crítico tem que desnudar-se para atingir a própria sensibilidade, sem a qual poderá falar de tudo, de romances, novelas, contos, etc mas não de poesia. A poesia exige nudez, e ninguém gosta de aparecer nu, até porque quando nu o sujeito não tem como se defender contra sua própria desimportância. Que livro do Quintana resiste a releituras? Muitos! Entre eles, só me referindo a meu gosto pessoal: A Rua dos Cataventos, Sapato Florido, Aprendiz de Feiticeiro, Apontamentos de História Sobrenatural, Esconderijos do Tempo, Baú de Espantos, A Cor do Invisível. Também: Do Caderno H. O próprio Velório sem Defunto, que inicialmente não valorizei, hoje me parece muito superior ao que eu pensava quando ele o publicou. O melhor, a aventura mais impressionante é ler, de ponta a ponta, a Poesia Completa. Até as repetições de Quintana que, no começo, me desconcertavam, hoje me parecem interessantes. São como ladainhas que precisam se repetidas para a gente compreender o profundo significado delas!

entrevista

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ARMINDO TREVISAN arquivo pessoal

É por essa razão que dou pouco valor às piruetas dos Irmãos Campos que, à parte suas traduções e ensaios, contribuíram para o desprestígio e inapetência poética das novas gerações. Quintana sempre as desdenhou, e com razão! O que ele trouxe de vivo e permanente para o século XX foi uma poesia nascida dentro de um corpo e de uma alma pessoais, com uma forma que tem sabor de Camões e sabor de aqui e agora, que tem surrealismo mas não se perde em jogos fúteis, que tem um apuro no coloquialismo que só lhe vejo um companheiro: Manuel Bandeira. Ou Fernando Pessoa, em certos momentos.

O que a obra de Quintana trouxe de novo e permanente para a poesia brasileira do século XX? Por que arvorar o novo como padrão de qualidade? A coisa mais nova no mundo é uma criança que nasce, e um homem ou uma mulher que morrem. Isso é eterno, porque nosso destino é único. Quintana é novo porque faz aparecer o permanente, os sentimentos e emoções que acompanham a humanidade desde o Homem de Cro Magnon. O resto é pretensão. Novidade só existe nas loucuras pessoais dos homens, nas suas ambições, nas suas descobertas científicas e nos seus inventos tecnológicos. Também: nas suas atrocidades e momices ideológicas e políticas. Ora, isso é matéria para ficcionistas. O romance pode ser novo, até certo ponto, dessa novidade pavorosa e frívola, que dura quanto dura um século, ou meio século... Quem de nós não daria o que pudesse para que Hitler, Mussolini e Stalin não houvessem existido? O romance trata de fatos, de ocorrências, de estados psicológicos e psicanalíticos, efêmeros, que interessam enquanto os indivíduos tais estão vivos. A não ser que o romancista tenha alma de poeta, como Dostoievsky e outros. O poeta procura mergulhar no que o homem tem de permanente, nos seus sentimentos e emoções, que podem ser personalizados, subjetivos, mas que no fundo são de toda a gente. A poesia só pode ser nova na forma, e esta, para não desandar em samba de crioulo doido, deve ser inteligente, ter algum nexo com a tradição, e sempre honesta, ligada ao povo, à oralidade vigente.

O Sr. foi amigo de Quintana, a quem dedica seu livro, agradecendo-lhe seus ensinamentos de Mestre. Como foi isso? Fui amigo de Quintana durante 37 anos. Ele me ensinou muita coisa, diria que ele me ensinou o principal. Foi meu Mestre. Custava a tratá-lo por tu! Como tratar por tu um Mestre? Agora, tenho muitas saudades dele! E isso que nunca pude me considerar seu “íntimo”! Quintana não fazia questão da intimidade. Contentava-se com a amizade, com o carinho que ele descobria na gente. Fez-me, certa vez, uma confidência, uma única. Jamais a revelarei. E só. A vida de Quintana está na sua poesia. Se o sujeito não for capaz de descobri-la ali, desanime. Foi um homem puro, difícil, irascível em certos momentos (graças a Deus, não experimentei em mim essa dimensão de seu temperamento), bom, essencialmente bom, até mesmo generoso coisa que descobri no fim de sua vida, nos últimos 15 anos... Considera-o um gênio? Respondo com uma frase do poeta: “Às vezes...” Há gênios de tempo integral e dedicação exclusiva. São raros, raríssimos. Por exemplo, Camões, Dante, talvez Baudelaire... E há gênios parciais, que compuseram uma obra genial, mas cuja produção em bloco não pode ser considerada genial. Por exemplo, no Rio Grande do Sul, temos, na minha opinião, três gênios literários: Simões Lopes Neto, Erico Verissimo e Mario Quintana. V

entrevista a FERNANDO RAMOS

O poema que vamos comentar é o último da coletânea Esconderijos do Tempo. Minha escolha recaiu nele por me parecer que reúne em si três elementos: um elemento subjetivo, um elemento emotivo e um elemento simbólico, o que faz com que esta pequena obra-prima lírica possa ser lida tanto na cidade de Alegrete como em Pequim ou numa geleira da antártida. O poema, para uma melhor apreciação do conteúdo, pode ser dividido em duas partes. Na primeira parte, Quintana refere-se a uma experiência concreta: o aspecto físico das mãos de seu pai, isto é, as veias de suas mãos que são grossas como cordas azuis sobre um fundo de manchas já da cor da terra. Mais especificamente, o ponto de partida do poema são duas cores, que sugerem a velhice pela saliência das veias e o enrugamento da pele. A cútis das mãos do pai não é a de mãos jovens, mas a de mãos que sofreram o eclipse da idade, o desgaste do trabalho cotidiano. A seguir, Quintana refere-se à funcionalidade manual, às atividades dessas mãos que foram instrumentos para o trabalho, veículos para o amor e meio de defesa. Notemos os termos cuidadosamente selecionados: mãos que lidaram, acariciaram (carícias de carinho e carícias eróticas), e fremiram da nobre cólera dos justos... Por último, o poeta evoca um detalhe dos derradeiros anos do pai: o entardecer (que, sendo o final de um dia, pode, também, simbolizar o final de uma existência), quando suas mãos repousam nos braços de sua cadeira predileta.

Mario Quintana Desconhecido, de Armindo Trevisan, com fotos de Dulce Helfer, 2006. BREJOeditora (51-32327897, www.editorabrejo.com.br)

A segunda parte do poema é de uma sutileza psicológica admirável. Sugere que o pai, mesmo solitário (na terrível solidão do mundo), não desanimou, mas lutou até o fim para ficar vivo. O poeta recorre a uma imagem da fronteira, a do fogo no galpão, quando, suposto o minuano a infiltrar-se pelas frestas das tábuas, a pobre chama - recém-acendida corre o risco de extinguir-se. Agradame, particularmente, por sua simplicidade, a imagem que acompanha os versos citados: como quem junta gravetos e tenta acendê-los contra o vento...

A conclusão do poema reserva ao leitor uma surpresa. Com verdadeiro passe de mágica, o poeta descobre, nas veneráveis mãos de seu pai, um milagre. Que milagre? O de ter feito os gravetos arderem, fulgirem, conseguindo, com isso, que vida, que transfigura as mãos nodosas de qualquer velho, faça aparecer nelas a chama que transcende a própria vida. Que chama, meu Deus? Nestas alturas, o poeta mostra seu dedo de gigante: a chama (...) Que os Anjos, um dia, chamarão de alma. Há um sabor à Dante nesses últimos versos! As mãos de meu pai, um dos treze capítulos do livro publicado pelo poeta Armindo Trevisan com a intenção de “aproximar mais o leitor, se possível, do Mestre”, pois “há um Quintana a ser descoberto, ou antes, existem vários Quintanas sob a fisionomia de um único autor”.


Ou como “Ah, sim, a Velha Poesia..': “... a Poesia faz uma coisa que parece que nada tem a ver com os ingredientes, mas que tem por isso mesmo um sabor total: eternamente esse gosto de nunca e de sempre”. Como “O Poeta começa o dia”: “...Acabo de trocar / - em meio aos risos da rua - / todas as jubas do Sol / por uma trança da Lua!”. E também como “Quando eu Morrer”: “...Eu levarei comigo as madrugadas, / Pores-de-sol, algum luar, asas em bando, / Mais o rir das primeiras namoradas...” E como tantos outros... Felizes aqueles que conheceram Quintana de perto – eu não tive essa felicidade – pois certamente esses privilegiados podem ver, ainda, Quintana passeando, sereno, pelas ruas da sua Porto Alegre velha... Outros poetas, aprendizes, como tantos, passarão. Você, menino Quintana, o maior lírico dos nossos poetas, poesia viva e eterna, você apenas passarinho... Você e a sua obra continuarão vivos, enquanto houver poetas e enquanto houver amantes da poesia...

QUINTANA, O POETA ETERNO

D

ois mil e seis é o ano do centenário de nascimento do poeta Mario Quintana. O nosso menino Quintana, dos seus eternos cantares, completaria, neste ano, cem anos de vida. O que todos nós sabemos, na verdade, é que ele não morreu: se a poesia é Quintana, se Quintana é a poesia e a poesia não morre, ele está por aí, em todo o lugar onde houver poesia: no céu, no sol, nas estrelas, num sorriso cristalino, nas asas de um passarinho, nas asas da liberdade, nas pétalas de uma flor. Fala-se bastante, ultimamente, de Quintana, o poeta da simplicidade. Sim, também, mas só pela simplicidade um poeta não viria a se tornar tão grande, universal, imortal – ele não entrou para a Academia Brasileira de Letras, mas é muito mais imortal, se é que é possível se dizer isso, do que muito acadêmico. A simplicidade é importante, sem dúvida, mas a poesia de Quintana tem muito mais do que isso: ela tem conteúdo, tem ritmo, tem lirismo, tem musicalidade, tem sentimento, tem emoção. Tem verdade, tem universalidade. “Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão.” – Isto, dito pelo próprio poeta, quando pediram para falar de si, diz tudo sobre ele, deixa bem claro que ele está mais vivo do que nunca nos seus poemas, na sua poesia, seja ela em verso ou prosa.

Quintana, este mágico artista das palavras, construtor de emoções, também disse que “poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras poesia é a luta amorosa com as palavras.” Por isso nosso velho menino jovem, nosso menino eterno tem a obra-prima que tem, como “O Auto-Retrato”, por exemplo: “No retrato que me faço / - traço a traço - / às vezes me pinto nuvem, / às vezes me pinto árvore...”(...)

LUIZ CARLOS AMORIM é natural de Corupá (SC), formado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Juinville, fundador e coordenador do Grupo Literário A ILHA. Tem 20 livros publicados. Publica artigos, crônicas, contos e poemas em várias revistas e jornais pelo Brasil e exterior. Edita o portal de poesia e literatura do Grupo Literário A Ilha: http://geocites.yahoo.com.br/prosapoesiaecia

AS BORBOLETAS DE MARIO QUINTANA utono no Sul do Mundo. Estou numa ilha ancorada no Oceano Atlântico, e uma cigana tenta me vender tapetinhos que não quero, que nada têm a ver comigo. Como não vou querer mesmo, imagino que ela vá me amaldiçoar quando se for, como as ciganas fazem muitas vezes. Não creio em maldições de ciganas - creio, sim, na bênção leve que vem das asas das borboletas. Tenho um mundo povoado de borboletas, não importa aonde ande, mas parece que aqui nesta Ilha, em dias de Outono e céu azul, as borboletas fiquem mais visíveis. É como se elas revoluteassem à minha volta, lindas e coloridas, e cada uma me trouxesse uma prenda, uma alegria. Talvez porque elas pensem que esta ilha é um navio que vai singrando mares tão desconhecidos quanto os de Goneville - mas como elas podem pensar tal coisa se este é um mar de Sol e Outono, e não o Mar das Brumas?

LEANDRO DÓRO - http://leandrodoro.zip.net

"(...) O segredo é não correr atrás das borboletas ... é cuidar do jardim para que elas venham até você" Mario Quintana

É

Disse Quintana que o segredo é não correr atrás das borboletas, e penso: Quintana viveu a menos de 500 quilômetros daqui. Poderia ir até à terra onde ele viveu, remando numa canoa. Talvez nem precisasse remar, talvez surgissem grandes borboletas que, voando, puxassem a minha canoa como os cavalos puxam as carruagens. Não seria a mesma coisa que

correr atrás das borboletas - elas me levariam a reboque por vontade própria até lá na terra onde havia um poeta que escreveu um regulamento de vida para que elas e os humanos se entendessem direito. As borboletas neste dia de Outono, nesta Ilha! Elas me circundam e me encantam, e recendem à maresia! Talvez haja tantas aqui porque descobri o segredo de Quintana, e trato de cuidar do jardim para que elas um dia venham pousar, caso quiserem. E se nunca pousarem? Obedeço a Quintana, não corro atrás delas! Se nunca pousarem, vou saber que a vida valeu a pena, porque elas sempre estão por perto, e ainda mais por este dia nesta Ilha, quando, confundidas, elas não distinguem muito bem se isto é Ilha ou Navio, e indiferente a ciganas e suas maldições, me abençoam por todos os lados, leves, coloridas, luminosas e mágicas, quase como se fossem feitas de eflúvios de perfume de tangerinas, e são tão parecidas com o meu amor! Florianópolis, 05.05.2006 - Mercado Público URDA ALICE KLUEGER urda@flynet.com.br





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