GENESIS
trabalho final de graduação
rafael igayara da silva ramos orientação: vera pallamin
dezembro/2015
FAUUSP
SUMÁRIO
5. AGRADECIMENTOS 7. 1 MEMÓRIA estúdios 8. interno 10.
14. sexualidade & gênero
teoria 17. 19. 2 GENESIS I 20. II 25. III 29. IV 31. V 35. VI 39. 43. 3 BIBLIOGRAFIA
AGRADEÇO à Ana, minha parceira em todas as coisas, pelo apoio e pela paciência, por me ajudar sempre a melhorar, e por todos os bons momentos que compartilhamos e compartilharemos; aos meus pais, Susana e Marco, por uma vida de afeto e de carinho, pela sensibilidade e o senso crítico, e pelo estímulo constante a seguir meus sonhos; às minhas irmãs Livia e Tais, metades de mim, que me dão sempre tanta alegria e tanta saudade; às amizades, tantas, que fiz e que fortaleci nesses anos de FAU: Jaime, Lorran, Alice, Ligia, Tadeu, Mahfê, Mariane, Laura, Marina, Bruna, Aninha, Denise, Dri, PH, Edu, Bia, Mila, Ju, Rê, Tomás, Rafa, e tantos outros; à professora Karina Leitão, pela sabedoria emocional, que me guiou nos momentos de incerteza; e finalmente à minha orientadora, professora Vera Pallamin, a quem este trabalho deve tanto, pelo contato intelectual tão rico e estimulante, e por expandir meus horizontes de incontáveis maneiras. 5
1 mem贸ria
ESTÚDIOS Quando me sentei para colecionar ideias que poderiam resultar em um tema para este trabalho final de graduação, rapidamente me senti compelido a descrever algumas de minhas insatisfações com o ensino da FAUUSP. Certamente há algo aqui do meu envolvimento (e frustração profunda), nos primeiros anos, com o processo de revisão das disciplinas conjuntamente aos colegas e os professores, tendo no horizonte a reformulação do projeto político pedagógico da faculdade. Difícil dizer precisamente o que me incomodava; certamente algo da persistência do moderno no ethos das disciplinas, mas identificar uma inquietação com as ideias implícitas, não-ditas, certamente é um problema evasivo. Entrei na FAU como completo leigo em relação à Arquitetura, e todo meu contato com a disciplina até aqui se dera do ponto de vista de um estudante de graduação. No início, me confrontei com esta questão: tinha vontade de fazer deste trabalho um exercício projetual, uma vez que tenho interesse em seguir carreira como arquiteto. Entretanto, o formato usual do projeto, principalmente, me incomodava: pouco me animava a perspectiva de propor um programa e um terreno de minha própria escolha, feito por mim e essencialmente para mim, ainda que como simples exercício acadêmico. Naquele momento, em que tive minhas primeiras experiências profissionais em escritórios de arquitetura, minha atenção se voltava para a relação entre o projeto e as contingências do real, para a confluência de habilidades e conhecimentos que possibilitam a construção. Hesitei em me lançar ao que me pareceu um terreno fértil para a auto-referência, quando pretendia antes expandir meu pensamento para além dos limites rígidos do campo disciplinar. Uma saída possível a esse impasse, do projeto ensimesmado, seria a de projetar algum edifício com um programa de usos essencialmente público; localização, programa, caráter e o usuário-destino se resolveriam a partir de um raciocínio urbanístico.
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Foi essa a operação legitimizadora que vivenciei, com poucas exceções, nos estúdios e nas disciplinas de projeto da FAU: grandes terrenos, centenas de unidades habitacionais, edifícios que se fundiam às redes infraestruturais metropolitanas. Mas a quase exclusividade deste tipo de abordagem me sugere uma problematização fundamental: proporíamos uma arquitetura sem autonomia, subordinada e submissa - ainda que em relação de negação - ao seu contexto? Seu caráter público e sua integração à malha urbana seriam suficientes para torná-la relevante? Só assim compreendo a raridade das discussões sobre os projetos, que pareciam sempre fugir dos embates conceituais, e as discussões que tantas vezes recaíam simplesmente sobre a qualidade gráfica das representações. A inquietação inicial, portanto: persiste, nos estúdios, implícita nos problemas a enfrentar, subentendida nas escalas, uma visão sobre a arquitetura que privilegia a abstração à presença localizada, a macroestrutura ao contato humano. É certo que tive contato com essas outras perspectivas sobre a prática da arquitetura ao longo de minha graduação, mas então por que motivo, justamente na hora de projetar, a mão sempre me puxa em direção à “articulação regional”, às linhas de força, à geometria primitiva, à praça vasta e árida? Uma reavaliação crítica dos pressupostos modernos, apesar de urgente, nos estúdios parece permanecer envolta em tabu, talvez por saudade dos tempos de glória da arquitetura brasileira. Minha incursão neste território é pequena, e também bastante pessoal, mas sem dúvida o terreno é fértil: trata-se de levar um pouco mais a sério as críticas formuladas aos métodos modernos, aproximando-nos do estado atual das humanidades; de afirmar a importância de exploração constante da dimensão teórica e conceitual da arquitetura; e ainda, veremos, de acreditar na possibilidade de se renovar um compromisso ético-político em resposta às condições contemporâneas.
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INTERNO Entretive a ideia de que, dentro desta matriz conceitual, tratar do espaço interno em sua especificidade teria alguma qualidade subversiva - ainda que, paradoxalmente, o espaço interno seja tão especificamente arquitetônico. Elegi logo no início o objeto social das relações poliamorosas1 como uma prática contemporânea de intimidades não-ortodoxas que propiciariam, portanto, um olhar diferenciado ou deslocado sobre o espaço doméstico. Entretanto, conforme me aproximei, simultaneamente, desse grupo social e da bibliografia específica que tratava das relações entre sexualidade, gênero e espaço, senti uma dissociação de princípios que no final para mim se tornaram irreconciliáveis. Se me aproximava do campo da filosofia feminista, que sugeria uma desconfiança sobre o papel das normatividades na produção dos sujeitos, o poliamor parecia buscar justamente sua possibilidade de reconhecimento como nova normatividade, sem porém problematizar as opressões, nada novas, que reproduziam nos seus espaços.2 Decidi que me envolver profundamente com essa plataforma social, com a qual não tenho qualquer vivência pessoal, apenas 1 CARDOSO, 2011. Poliamor, ou Da Dificuldade de Parir um Meme Substantivo. Disponível em: http://interact.com.pt/17/poliamor/.
“Poliamor” diz respeito à prática ou aceitação de manter relacionamentos íntimos não-exclusivos, com conhecimento e consentimento de todos os envolvidos. Cardoso oferece uma visão bastante abrangente do nascimento do termo e do grupo social ligado a essa ideia. 2 Meu momento de cisão veio a partir de uma resposta, em um fórum online sobre poliamor, a uma pergunta que lancei sobre experiências e aspirações espaciais no contexto desses relacionamentos. Algo tolerado por aquela comunidade, mas que passou distante dos meus princípios e motivações. Poderia escrever longamente sobre o assunto, mas me contento em citar:
“For many years I’ve had a dream poly living structure [...]. It would be in shape of a pentagon. [...] It would be like a Moroccan-style “riad” with a pentagon shaped exterior wall for extreme privacy and an interior garden and pool in the courtyard. At each of the five vertices of the pentagon would be a small 10
para criticá-la por suas limitações, seria um desperdício de esforços e um desvio das minhas motivações. Continuei, entretanto, pesquisando a bibliografia contemporânea que tratava do espaço arquitetônico doméstico. Identifiquei uma notável interseção entre esta literatura e a teoria feminista em arquitetura, que acessei inicialmente através de duas coletâneas editadas3. Como a associação entre o “feminino” e a domesticidade permeia diversas esferas do pensamento ocidental, muitas das historiadoras feministas que buscaram reconhecer o papel de mulheres na produção do espaço lançaram, também, um novo structure. One would be different, which would be the main entrance to the structure. The other four would be IDENTICAL, separate, independent living quarters for each of my four wives, with sleeping quarters, shower, bathroom, closets, etc., but no kitchen or “living” or dining space. In the center of the pentagon would be the larger main structure with shared kitchen, dining, and “living room” areas below, and then a floor for my living area/bathroom/ closets above, and then on top of it all, the big shared sleeping area, with a pentagon-shaped bed big enough for up to five.” HEYNEN, Hilde. BAYDAR, Gülsüm (orgs.) Negotiating domesticity: spatial productions of gender in modern architecture. Routledge, Abingdon, 2005.
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RENDELL, Jane. PENNER, Barbara. BORDEN, Iain (orgs). Gender space architecture: an interdisciplinary introduction. Routledge, London, 2000. Gender space architecture delimita um vasto campo de estudo sobre gênero e espaço, partindo de textos fundamentais da filosofia feminista por autoras como Judith Butler, Luce Irigaray, Simone de Beauvoir e Betty Friedan, chegando até enfoques mais específicos sobre espaço e arquitetura, em textos por Rosalyn Deutsche, Denise Scott-Brown, Dolores Hayden e Beatriz Colomina, por exemplo. Os editores Jane Rendell, Iain Borden e Barbara Penner são professores da Bartlett, a faculdade de arquitetura da Universidade de Londres. Já Negotiating domesticity: spatial productions of gender in modern architecture traz um olhar mais específico sobre as relações complexas entre modernidade, modernismo e o espaço, portanto com uma abordagem mais histórica, através de textos sobre práticas espaciais específicas. Hilde Heynen é professora Universidade Católica de Leuven, Bélgica. Gülsüm Baydar é professora na Universidade Yasar, em Izmir, na Turquia. 11
olhar sobre o espaço doméstico, este que o pensamento vanguardista tratava com suspeição.4 Identificar as arquitetas que, por quaisquer motivos, não tenham recebido o reconhecimento devido, e inseri-las na grande narrativa da história da arquitetura - este foi um de seus objetivos, e certamente ainda há muito a se fazer5, como demonstra o prêmio Pritzker concedido a Robert Venturi mas negado a Denise Scott-Brown, apesar da duradoura colaboração profissional entre o casal6. Por outro lado, em certas abordagens, ao reconhecer o papel ativo de mulheres de maneira mais ampla, passando sim pela profissão da arquitetura mas também pelo mecenato, pela produção social, pelo uso e transformação quotidianas do espaço, deslocou-se a ênfase convencional do estudo da produção espacial sobre o objeto construído. O uso do espaço não é mais uma ação passiva, e sua transformação não se trata de simples materialização da agência ativa do arquiteto.7 Um outro espaço de exploração da literatura feminista em arquitetura é a discussão das associações simbólicas no discurso e na prática da profissão. É a partir deste ponto de vista, por exemplo, que Leslie Weisman identificará no arranha-céu o 4 “As its military-derived name suggests, the avant-garde imagined itself away from home, marching toward glory on the battlefields of culture [...] Ultimately, in the eyes of the avant-garde, being undomestic came to serve as a guarantee of being art.”
(REED, Christopher. Not at home. The suppression of Domesticity in Modern Art and Architecture. Apud HEYNEN, Hilde. Modernity and domesticity: tensions and contradictions. In: HEYDEN, BAYDAR, 2005.) 5 No Brasil, o projeto “Arquitetas Invisíveis” é um belíssimo trabalho nesse sentido: http://www.arquitetasinvisiveis.com/
O próprio Venturi admite que não é bem possível distinguir a autoralidade nas obras conjuntas. À época da premiação de Venturi (1991), já colaboravam a duas décadas. A respeito disso, ver: http://www.dezeen.com/2013/03/27/ denise-scott-brown-demands-pritzker-recognition/ 6
Para um exemplo poderoso, ver HAYDEN, Dolores. The Grand Domestic Revolution: A History of Feminist Designs for American Homes, Neighborhoods, and Cities. Massachusetts: MIT Press, 1982.
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ápice da simbologia patriarcal8, e que Diane Agrest criticará o antropomorfismo renascentista por reprimir e substituir a mulher9. Buscaram reafirmar a importância e a potencialidade do feminino e denunciar as associações discursivas e metafóricas entre o cânone da arquitetura e qualidades masculinistas10. Longe, também, de ser uma perspectiva esgotada - frequentemente a assimilação de subjetividades provenientes de fora do eixo he“From the corporate towers of the wizards of industry to the Emerald City of the Wizard of Oz, men have created the built environment in their own self-image. The twentieth-century urban skyscraper, a pinnacle of patriarchal symbology, is rooted in the masculine mystique of the big, the erect, the forceful - the full balloon of the inflated masculine ego.” 8
(WEISMAN, Leslie Kanes. Women’s Environmental Rights: A Manifesto. 1981. In: RENDELL, PENNER, BORDEN, 2010.) 9
O argumento não envelheceu muito bem, mas permanece provocador:
“In Filarete, the architect, a man, gives birth like a woman. In Di Giorgio, the center of the city, based on the configuration of a man’s body, gives subsistence through the umbilical cord from the womb, like a woman’s body, to the rest of the city. (...) Woman is thus suppressed, repressed and replaced. Suppressed, in the analogical relation between body and architecture. it is man’s body - that is, according to the classic texts, the natural and perfectly proportioned body - from which architectural principles and measurements derive. Repressed, in the model of the city. Woman’s unique quality, that of motherhood, is projected onto the male body. Thus woman is not only suppressed, but indeed her whole sexual body is repressed. Replaced, by the figure of the architect. The male, through what I have called before a transsexual operation, has usurped the female’s reproductive qualities in the desire to fulfill the myth of creation.” (AGREST, Diana. Architecture from Without: Body, Logic and Sex. 1988. In: RENDELL, PENNER, BORDEN, 2010.) “Here is a man for you to look at, a virile force, an entire male. It stands in physical fact, a monument to trade, to the organized commercial spirit, to the power and progress of our age, to the strength and resource of individuality and force of character. Therefore I have called it, in a world of barren pettiness, a male, for it sings the song of procreant power, as others have squealed in miscegenation.” - Louis Sullivan, sobre projeto de Henry H Richardson. (apud WEISMAN, 1981)
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gemônico se dá nos termos do dominador, através de conformação e assimilação. SEXUALIDADE & GÊNERO Esta aproximação à bibliografia revelou muitas abordagens diferentes, e às vezes conflitantes, à questão de gênero e sexualidade, o que me instigou a uma aproximação mais profunda à teoria e filosofia. Neste ponto, a obra da filósofa americana Judith Butler11 torna-se parte importante do trabalho. Já estamos em setembro. Abordo aqui dois de seus livros: Gender Trouble: Feminism and the subversion of identity12, publicado originalmente em 1990, e Giving an account of oneself13, de 2005.
11 Judith Butler (1956 - ), filósofa americana, professora do curso de literatura comparada e teoria crítica da Universidade de Berkeley. Tornou-se internacionalmente conhecida após a publicação de Gender Trouble em 1990, que viria a se tornar um dos textos mais lidos, vendidos e traduzidos de teoria queer e feminista contemporâneas.
BUTLER, Judith. Gender Trouble. Feminism and the subversion of Identity. London: Routledge, 1999. 12
É neste livro que desenvolve o conceito de performatividade de gênero, que apresentaremos adiante. O subtítulo já sugere a radicalidade de sua abordagem à questão: tratar criticamente de gênero, como veremos, implica também em subverter a “identidade” como fonte estável da verdade do sujeito. Um projeto nada banal ou simples; lembremos que a homossexualidade deixa de ser considerada patologia apenas 15 anos antes da publicação de Gender Trouble. As ideologias da identidade permanecem presentes nos discursos políticos contemporâneos, e a interpretação de Butler permanece provocadora. 13 BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
Se subvertermos de fato a identidade, se criticarmos a ideia de que é possível um sujeito plenamente consciente e em controle de si, precisaremos questionar qual o lugar da ética e da moral para este sujeito falível, opaco e incompleto. É sobre este problema que Butler se debruçará neste livro, estabelecendo um diálogo talvez não óbvio mas constante com sua obra anterior. Ressalto o recente lançamento desta tradução brasileira, ocorido já no segundo semestre deste ano. 14
Apresento uma breve contextualização14. Por volta do fim dos anos 80, ocorreu uma inflexão importante na filosofia e militância feminista, que viria a ser considerada a “terceira onda” do feminismo. De maneira bastante resumida, a “primeira onda” seria aquela protagonizada pelas sufragettes, a partir da metade do século XIX, que buscou a igualdade de direitos, no regime da lei, entre homens e mulheres - reivindicando o direito ao voto e à propriedade, por exemplo. A “segunda onda” seria aquela que tem início no pós-guerra, que baseou-se na distinção conceitual entre sexo e gênero - o primeiro de origem biológica, o segundo, cultural, portanto possível objeto político. Denunciaram as duradouras estruturas sociais patriarcais e voltaram a atenção para temas como os direitos reprodutivos e a objetificação sexual. A crítica essencial que distancia o feminismo contemporâneo daquelas vertentes que o precederam é a de que estes teriam sido demasiadamente baseados na experiência e nos problemas de mulheres brancas e de classe-média. Reconhecendo-se a importância de dar voz, inclusive dentro da militância de matriz feminista, a mulheres negras, lésbicas, transgêneras, o foco se voltou para a ideia de interseccionalidade entre minorias sociais. É deste ponto de vista que Judith Butler faz uma leitura radical da distinção entre sexo e gênero, conforme inaugurada por Beauvoir. A ideia de que gênero seria a interpretação cultural da essencialidade natural do sexo, argumenta Butler, é em si um constructo discursivo, que oculta os termos de sua construção ao posicioná-la no campo do “pré-discursivo”, numa pretensa superfície politicamente neutra sobre a qual o gênero agiria. Os atributos “naturais” e os atributos “culturais” discursivamente atribuídos ao feminino se suportam mutuamente. Se o gênero é o objeto de um tornar-se, é antes ato do que atributo, é um “estilo corporal”15. Desta maneira, não pode aconteCom base em GARDNER, Catherine. Historical Dictionary of Feminist Philosophy. Oxford: The Scarecrow Press, 2006.
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BUTLER, 1999, pg. 177. 15
cer sem que sua corporalização atrite com a norma social que o pretende definir. Butler lança portanto uma dúvida sobre a validade de uma categoria pressuposta de “mulher”, e reivindica o termo “Queer”, inglês para “desviante” ou “estranho”, xingamento ressignificado, para identificar toda sorte de subjetividades deslocadas do universo do “normal”. Butler busca uma teoria crítica que reconheça a complexa relação de subversão-submissão entre o indivíduo e a normatividade, rechaçando assim tanto o essencialismo da natureza quanto a multiplicação de identidades culturais particularistas. Trata-se de uma suspeita profunda sobre a estabilidade de qualquer identidade, mas que antes de incorrer no niilismo moral com que se preocupam alguns, aponta logo para a possibilidade de uma ética baseada na empatia em relação ao “outro”, na aceitação da opacidade mútua que mascara e metamorfoseia parte do “si-mesmo” e do “tu” na cena de interpelação. É a partir desta reflexão que enxergo em Butler a possibilidade de uma reorientação ética e procedimental para a disciplina da arquitetura, assumindo que nosso apego tardio à Ordem e à não-contradição derive da percepção de que para além do império da razão restaria apenas conformismo. Nas palavras de Vladimir Safatle, “[...] Butler pode sintetizar uma crítica do capitalismo enquanto forma social baseada na organização da vida a partir do princípio de identidade que anima a figura do indivíduo. Uma crítica que não se contentará nem com a estratégia de multiplicação multicultural das identidades, nem com alguma forma de retorno a experiências comunais substancialmente enraizadas perdidas pelo processo de modernização capitalista. Na verdade, ela se baseará na possibilidade de constituição de relações intersubjetivas fundadas na desarticulação de um princípio de identidade definido como posse (de atributos, de predicados, de narrativas, de objetos).
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Como se a afirmação da despossessão fosse estratégia maior para toda e qualquer critica do capitalismo como forma de vida. E é na escuta da experiência sexual que aprendemos inicialmente a viver despossuídos.”16 TEORIA Eis portanto uma breve memória do caminho que trilhei para chegar neste trabalho, algo entre um estudo teórico e um manifesto, surgido de minha coleção de aflições e desconfianças colecionadas ao longo da graduação na FAUUSP. Um caminho desviante, mas com foco na possibilidade de agência crítica, urgente para repensar o espaço da arquitetura na contemporaneidade. Apresento, a seguir, um ensaio, que tem na filosofia de Judith Butler seu eixo agregador. Pude estabelecer relações contínuas com o pensamento da autora, enquanto transito por diversos assuntos, porque o que está em debate - a posição do sujeito e as possibilidades de criticalidade, frente às normatividades hegemônicas - afeta, sem dúvida, a todas as áreas do saber. Não quis desenhar um panorama da literatura nem uma leitura completa da extensa obra de Butler, ambos projetos possíveis e, acredito, desejáveis; busquei estabelecer vínculos possíveis, como forma de abrir novos caminhos, entre sua filosofia e os problemas a que a arquitetura deve responder para permanecer instigante e politicamente atuante. Acredito que, por final, chego não a uma conclusão, mas a diversos novos pontos de partida. Somo à produção textual um conjunto de colagens que buscam sensibilizar o olhar, da maneira evocativa que é própria à imagem, aos problemas, sorrateiros, que me propus a estudar. Busquei entre texto e imagem uma relação de transversalidade, mobilizando seus potenciais específicos, através de deslocamentos e referências, e estabelecendo pontos de contato ao longo do texto. Estas imagens cumprem, também, uma função um tanto documental; nelas reverberam algumas das linhas de 16
SAFATLE, Vladimir. Posfácio a BUTLER, 2015, pg. 17
investigação que trilhei e algumas das quais desviei; diversas interpretações e transposições, estéticas, simbólicas e espaciais, daquilo que desenvolvo em texto. Tratar dos problemas formulados pelo feminismo através do eixo teórico é, também, uma maneira que encontrei de me posicionar neste debate em que, não posso deixar de notar, ocupo posição privilegiada, considerando-se a “ordem contemporânea do ser”17 em que a opressão de gênero é pervasiva e inegável. Trago a produção destas pensadoras para o centro do trabalho. Busco com isso, por um lado, dar-lhes visibilidade, no que me compete, instigando outras leituras e aproximações por meus colegas; por outro, como compreendo que a crítica social de origem feminista é abrangente e que não se conforma a ser simplesmente “encaixotada” como uma história menor que se acopla ao cânone para redimi-lo, encontro na obra de Judith Butler precisamente esse fôlego filosófico que desenvolve, partindo dos problemas de gênero, uma reflexão sobre a ética condizente a uma compreensão de humanidade como vulnerável e múltipla. Se trilhei este caminho é porque entendo que as vias usuais que me são oferecidas estão esgotadas e não respondem às minhas inquietações. Se esta aflição é pessoal, se diz sobre as falhas da minha própria formação, ou se é generalizada, uma carência que permeie o cenário arquitetônico brasileiro, não saberia dizer. Sei que reafirmo para mim a importância da teoria que tensione a prática, antes de facilitá-la.
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BUTLER, 2015, pg. 38
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2 GENESIS
I Sobre o corpo sexuado agem forças, discursos, operações simbólicas, estas as responsáveis pela situação social de hierarquização do sexos, de subordinação das mulheres, de desvalorização daqueles comportamentos e predicados associados à esfera do “feminino” - a diferença sexual não é destino, pois entre a fêmea e a mulher, ou entre o sexo e o gênero, há a ação da cultura, e há portanto a possibilidade de ação política. Eis a distinção entre sexo e gênero que foi semeada na famosa frase de Simone de Beauvoir18, em O Segundo Sexo, de 1949, “não se nasce mulher, torna-se”. Observando as estruturas culturais de dominação patriarcal, o movimento feminista pôde ganhar novo fôlego, a partir dos anos 60. Gostaria de chamar a atenção, porém, para interpretações contemporâneas sobre este problema. Judith Butler19 retorna à frase de Beauvoir, mas a mobiliza para uma compreensão bastante diferente da originalmente intencionada pela autora francesa. O que chama a atenção de Butler é, antes de mulher ou nascer, o tornar-se. A constatação de que gênero é constituído ao longo do tempo permite enxergar a questão de formas que, como veremos, dificultam radicalmente nossa abordagem do problema. Butler utiliza o termo performatividade de gênero para descrever essa constituição baseada na repetição de um fazer culturalmente carregado. A constituição de gênero é feita através da repetição de atos estilizados; de fato, talvez pudéssemos esboçar uma definição de Simone de Beauvoir (1908 - 1986), filósofa francesa cuja obra mais influente é o livro O Segundo Sexo, citado adiante, que lhe rendeu entrada ao index librorium prohibitorium do Vaticano ao lado de seu parceiro Jean-Paul Sartre. Curiosamente, e certamente expressão de algum grau de machismo conformando a recepção de sua obra, não se considerava e por muito tempo não foi considerada filósofa, por se dedicar à escrita literária, ainda que seu pensamento tenha sido essencial ao desenvolvimento do existencialismo e da filosofia feminista. 18
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Judith Butler: ver nota 11
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“gênero” como um estilo de existência, uma estilística corporal20. O conceito de sua performatividade21 busca ressaltar, por um lado, essa característica essencialmente fugaz do ato de gênero, e por outro, o papel dessa atuação na construção de uma ilusão de coerência interior. É desta sequência internamente descontínua e contraditória que se constrói a “aparência de substância”22, a ficção dominante de uma identidade extra-corporal que supõe-se estar representada pela corporalidade. Butler olha para a aparente tautologia de uma frase como “I feel like a man” para questionar até que ponto é possível ser um sexo ou uma sexualidade, uma vez que a experiência da disposição psíquica “equivalente” a uma anatomia é um feito digno de nota, uma realização a ser ativamente cultivada para manter-se como tal e para estabilizar-se naquele sujeito23. A noção de que existiriam manifestações autênticas do “masculino” e do “feminino”, quando correspondentes ao “sexo natural”, oculta precisamente a constituição performativa do gênero - fora das matrizes normativas que aqui se pretende expor, os conceitos de “errado”, “falso” ou “distorcido” simplesmente não se aplicariam a essas manifestações. É a partir desta visão que Butler fará a (polêmica) afirmação de que “sexo sempre foi gênero”24 - os constructos de gênero seriam pois uma codificação que não têm sua verdade em si, mas que se apresentam de tal modo por organizar sexo-gênero-desejo dentro de uma cadeia lógica (“natural”), em que cada um deriva dos outros em um sistema internamente coerente, uma “matriz de inteligibilidade através do qual corpos, gêneros e desejos 20
BUTLER, 1999, pg. 177
Por performatividade fazemos referência às reflexões de J. L. Austin e John Searle acerca da capacidade de certos atos comunicativos de não apenas transmitir ou descrever algo, mas de efetivamente consumar uma ação, a exemplo de frases como “eu prometo”, ou na emissão de sentença por um juiz.
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BUTLER, 1999, pg. 179
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BUTLER, 1999, pg. 29
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BUTLER, 1999, pg. 11 21
são naturalizados”25 como heterossexuais. Gênero aparece, portanto, como o elo de controle e significação social entre o binarismo sexual e o desejo hetero-normativo26; não seria possível elaborar esta crítica sem se criticar o impulso reificador da busca por uma “verdade natural”, que constrói o campo do debate em uma posição mistificada, “pré-discursiva”: “A noção de que pode haver uma ‘verdade’ do sexo, como Foucault27 a denomina ironicamente, é produzida precisamente pelas práticas reguladoras que geram identidades coerentes por via de uma matriz de normas de gênero coerentes. A heterossexualização do desejo requer e institui a produção de oposições discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”, em que estes são compreendidos como atributos expressivos de “macho” e fêmea”. [...] Ora, do ponto de vista desse campo, certos tipos de ‘identidade de gênero’ parecem ser meras falhas do desenvolvimento ou impossibilidades lógicas, precisamente por não 25
BUTLER, 1999, pg. 194
Neste ponto, Butler está em diálogo com as elaborações de Monique Wittig sobre o “contrato heterossexual” e de Adrienne Rich sobre a “heterossexualidade compulsória”, pensadoras da corrente do feminismo lesbianista das décadas de 70 e 80. Consideravam a heterossexualidade ferramenta de dominação patriarcal, defendendo o lesbianismo como extensão necessária do feminismo. 26
Monique Wittig (1935 - 2003), escritora e filósofa francesa, foi uma das principais pensadoras do feminismo lésbico radical a formular o problema da heteronormatividade. Ver, por exemplo, seu artigo The Straight Mind (1980). Adrienne Rich (1929 - 2012), poeta e romancista feminista americana, teve uma carreira largamente premiada e uma longa história de ativismo pacifista. Butler faz referência a seu artigo Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence (1980). Michel Foucault (1926 - 1984), historiador e filósofo francês, cuja obra foi extremamente influente em diversos campos das humanidades. No centro de seu pensamento estavam a relação entre poder e conhecimento, que o puderam levar a formular uma crítica ampla da modernidade. Podemos citar Vigiar e Punir e História da Sexualidade como dois textos amplamente lidos, que informam bastante da obra de Judith Butler.
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se conformarem às normas da inteligibilidade cultural. Entretanto, sua persistência e proliferação criam oportunidades críticas de expor os limites e os objetivos reguladores desse campo de inteligibilidade [...]”28 Para Butler, portanto, o ato constitutivo de gênero não apenas conforma a identidade do ator, mas também a própria “identidade” como objeto de crença possível por parte do elenco/audiência social. Esta elaboração, é certo, vai de encontro a múltiplas concepções teóricas, de matrizes políticas diversas; sem poupar inclusive formulações de vertente feminista, muitas das quais têm na afirmação de identidades particulares marginalizadas seu elemento agregador. Já no primeiro capítulo de Gender Trouble problematiza-se “quem” seriam os sujeitos “legítimos” do feminismo, e se seria possível teorizar uma categoria unívoca de “mulher” para ocupar tal posição. O texto instaurou uma crise no interior do pensamento feminista, até então bastante preocupado com a diferença sexual como eixo de resistência a estruturas patriarcais, e foi um dos principais pontos de partida para sua reorganização subsequente, e para o surgimento do que hoje chamamos de “teoria Queer”29. Butler observa que nos termos do “raciocínio fundacionista”30 assume-se ser necessário que haja antes uma identidade para que se possa, então, elaborar um interesse político; um cogito bem-definido inscrito em um campo cultural estável. Notavelmente, o atributo de gênero ocupa posição privilegiada nessa definição de uma identidade íntegra, como demonstra a angús28
BUTLER, 1999, pg. 23
“Teoria Queer” é um campo amplo da teoria crítica pós-estruturalista, focada nos espaços de “inadequação” de corpos, gêneros, sexualidades, desejos, expressões. Nasce como uma confluência e interseção de correntes dos movimentos feminista, gay e lésbico, justamente por se colocar criticamente frente às políticas identitárias, preferindo identificar os processos de consolidação de identidades e sua relação com a manutenção dos discursos de poder estabelecidos. Vê-se o papel fundante que a filosofia de Judith Butler teve nessa linha de pensamento.
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BUTLER, 1999, pg. 181 23
tia social e as intervenções médicas eticamente questionáveis a que são submetidos os corpos intersexuais.31 Sua posição, sob o prisma da performatividade, é divergente: é a de um interesse em notar de que forma as construções discursivas do “ato” e do “ator” se entremeiam, e em buscar espaços de subversão justamente em sua interdependência significante. Isto significa que há um requinte na formulação de Butler que é muitas vezes simplificado por certas leituras de sua obra, tanto aquelas “prescritivas” quanto as antagonizantes: afirmar que o “sexo natural” é culturalmente construído não significa que haveria uma fluidez absoluta nas performances de gênero, que qualquer identidade estaria ao alcance de um indivíduo político que assim a desejasse assimilar, ou ainda que pudéssemos postular uma “cultura” radicalmente descolada do material. Nossa expressão está sempre regulada, em termos foucaultianos, por um “regime de verdade”, por um campo histórico de possibilidades; o que escapa em absoluto desta matriz resulta não no totalmente subversivo, mas antes no ininteligível. Nem voluntarismo, nem cultura como destino. Safatle situa em Foucault esta compreensão de poder de Butler, que não tanto reprime a verdade interior do sujeito quanto produz um sujeito coerente com suas próprias dinâmicas, citando-o: “O poder se exerce em rede, e nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de serem submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, Intersexualidade é a condição de corpos que, por quaisquer circunstâncias biológicas, não apresentem fenótipo inequivocamente classificável como macho ou fêmea. O termo substitui o anterior “hermafroditismo”, considerado depreciativo. Na angústia de “consertar” estes corpos não facilmente classificáveis dentro da “normalidade” binária, é comum que crianças intersexuais sejam submetidas a intervenções médicas sem consentimento, que acabam por torná-las inférteis ou incapazes de prazer sexual, constituindo uma forma de mutilação praticada mesmo nos países de primeiro mundo. Butler recupera Foucault quando, em História da Sexualidade, faz referência às memórias de Herculine Babin (1838–1868), intersexual, investigando o aparato científico e jurídico circundante a sua vida, terminada tragicamente em suicídio.
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são sempre seus intermediários. Em outras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles [...] O indivíduo é um efeito do poder e é, ao mesmo tempo, na mesma medida em que é um efeito seu, seu intermediário: o poder transita pelo indivíduo que ele constitui.”32 Qualquer tentativa de se posicionar criticamente em relação ao poder terá sempre o próprio poder como referência em alguma medida, e consequentemente, qualquer relação crítica com o poder terá uma dimensão auto-reflexiva: “pôr em questão um regime de verdade, quando é o regime que governa a subjetivação, é pôr em questão a verdade de mim mesma e, com efeito, minha capacidade de dizer a verdade sobre mim mesma”33. Há portanto algum grau de despossessão de si a que precisamos nos lançar quando desafiamos a normatividade, que está implicada em mim.
II A formulação dos problemas de gênero (título) por Butler culmina, como vimos, na subversão da identidade (subtítulo) como o princípio fundante de um sujeito a partir do qual poderíamos formular uma posição política. Pelo contrário, como argumentará em Giving an account of oneself, é justamente nos limites do conhecimento de si que emergem os vínculos éticos principais, pois essa opacidade primária, irrecuperável, é indissociável das relações formativas. Butler desenvolve essa compreensão de ética através do pensamento de Lévinas34 sobre a “invasão primária”, que constrói 32
FOUCAULT, apud SAFATLE, 2015. In: BUTLER, 2015, pg. 187.
33
BUTLER, 2015, pg. 35.
Emmanuel Lévinas (1906 - 1995), filósofo francês, associado ao existencialismo e à fenomenologia. Estudante de Husserl e Heidegger, lecionou em Poitiers, em Paris e na Sorbonne. Autrement qu’être ou au-delà de l’essence, de 1974, é o texto a que Butler faz referência ao resgatar suas ideias sobre ontologia e alteridade, possivelmente através da influência que Lévinas teve em Derrida. 34
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a “pré-ontologia” sobre a qual poderá surgir um “eu” gramatical35. Em outras palavras, a existência de um “eu” que pode responder eticamente a uma interpelação de um outro é produzida sincronicamente, no evento e no contexto dessa interpelação. Laplanche36 fará um argumento similar, ao dar atenção às “re35
BUTLER, 2015, pg. 114.
Discutir a gênese do sujeito é aceitar a priori que o momento de articulação do “eu” gramatical é o resultado de um processo. Como abordar, porém, esse momento que precede a própria possibilidade de articulação linguística? Falar em “pré-ontologia” é forma de lembrar que nosso acesso ao mundo dos fenômenos, da exterioridade, só é possível após este processo formativo. A “invasão primária” é essa assimilação do “outro” que antecede qualquer articulação de um “eu”, e que é por esse motivo parcialmente violenta, “persecutória” nas palavras de Lévinas, por ser inescapável e por estar fora do controle ou do arbítrio do sujeito invadido. Três esclarecimentos oportunos: (1) por ontologia entende-se, na origem, o estudo dos caracteres fundamentais do ser, determinações necessárias que todo ser tem e não pode deixar de ter. (2) por fenômeno: “O significado de ‘fenômeno’ vem da expressão grega ‘fainomenon’ e deriva-se do verbo ‘fainestai’ que quer dizer mostrar-se a si mesmo. Assim, ‘faineomenon’ significa aquilo que se mostra, que se manifesta. ‘Fainestai’ é uma forma reduzida que provém do ‘faino’, que significa trazer á luz do dia. ‘Faino’ provém da raiz ‘Fa’, entendida como ‘fos’, que quer dizer luz, aquilo que é brilhante. Em outros termos, significa aquilo onde algo pode tornar-se manifesto, visível a si mesmo. A expressão ‘fenômeno’ tem o significado de aquilo que se mostra a si mesmo, o manifesto. ‘Fainomena’ ou ‘fenomena’ é o que se situa à luz do dia ou que pode ser trazido à luz. Os gregos identificavam os ‘fainomena’ simplesmente como ‘ta onta’ que quer dizer entidades. Uma entidade, porém, pode mostrar-se a si mesma de várias formas, dependendo, em cada caso, do acesso que se tem a ela.” (MARTINS, 1989, pg .21) (3) por alteridade designamos a “outridão”, a condição de ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro. 36 Jean Laplanche (1924-2012), psicanalista, escritor e vinicultor francês; estudou sob Gaston Bachelard e Maurice Merleau-Ponty na École Normale Supérieure, e permaneceu uma figura importante no pensamento filosófico sobre a psicanálise, através do pensamento de Lacan e Freud. Ao final de sua vida esteve envolvido, inclusive, em projeto de nova tradução da obra de Freud para o francês.
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pressões primárias”37 inescapáveis à infância. Nas duas formulações, “a consciência de si é sempre motivada, de maneira bem literal, por uma alteridade que se torna interna, um conjunto de significantes enigmáticos que pulsam através de nós de maneiras que nos tornam permanente e parcialmente estranhos para nós mesmos.”38 Não estamos distantes da noção de poder de Foucault que apresentamos anteriormente. Deste ponto, podemos sugerir um outro deslocamento, entre o indivíduo, um ser no singular, e seu regime de glorificação, o individualismo, como sugerido na seguinte citação de Adriana Cavarero39: “[...] o “tu” é ignorado pelas doutrinas individualistas, preocupadas demais em elogiar os direitos do eu [...] o “tu” também não encontra espaço nas escolas de pensamento às quais se opõe o individualismo [...]. Com efeito, muitos movimentos revolucionários parecem compartilhar de um código linguístico curioso baseado na moral intrínseca dos pronomes. O nós é sempre positivo, o vós é um aliado possível, o eles tem o rosto de um antagonista, o eu é impróprio, e o tu é, obviamente, supérfluo.”40 Ao situarmos nossa aproximação ao reconhecimento em torno do “tu”, ou antes, ao formularmos a pergunta ética como “quem és?”, podemos desvincular o outro (o “tu”) da posição de subordinação ao “eu”; desta posição que ocupa como um espelho, em que enxergar a validade do outro está condicionada a sua Qualquer sujeito tem muito pouca autonomia na infância; a condição de sua sobrevivência é justamente sua manipulação não-consentida, pois não é nem capaz de consentir, pelo mundo dos adultos. Aí está uma despossessão primária de autonomia, que introduz, para Laplanche, o trauma da invasão do outro.
37
38
BUTLER, 2015, pg. 127.
Adriana Cavarero (1947 - ), filósofa feminista italiana, professora de filosofia política na Università degli studi di Verona. Sua obra trabalha principalmente sobre teorias da diferença sexual, sobre Platão e sobre Hannah Arendt.
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CAVARERO, apud BUTLER, 2015, pg.47 27
semelhança a mim. Podemos partir desta ideia de que “o reconhecimento, como argumenta Hegel, consiste em um ato recíproco pelo qual reconheço que o outro tem a mesma estrutura que eu”41 e aterrissarmos na constatação de que precisamente a diferença, a inapreensibilidade do outro para mim funda a necessidade de empatia, de uma cautela ética: “[...] poderíamos considerar uma certa leitura pós-hegeliana da cena de reconhecimento, em que precisamente minha opacidade para comigo mesma gera minha capacidade de conferir determinado tipo de reconhecimento aos outros. Seria, talvez, uma ética baseada na nossa cegueira comum, invariável e parcial em relação a nós mesmos. O reconhecimento de que não somos, em cada ocasião, os mesmos que nos apresentamos no discurso poderia implicar, por sua vez, certa paciência com os outros que suspenderia a exigência de que fossem idênticos a todo momento. Para mim, suspender a exigência da identidade pessoal, ou, mais especificamente, da coerência completa, parece contrariar certa violência ética, que exige que manifestemos e sustentemos nossa identidade pessoal o tempo todo e requer que os outros façam o mesmo. [...] Só podemos reconhecer e ser reconhecidos sob a condição de sermos desorientados por algo que não somos, sob a condição de experimentarmos uma descentralização e “fracassar” na tentativa de alcançar nossa identidade pessoal.”42 Voltamos ao pensamento de Lévinas, à afirmação da primazia da opacidade no sujeito, desse enredamento ético involuntário entre quaisquer sujeitos; Butler vê aí que a origem de nossa responsabilidade ética com os outros é a mesma condição que nos torna vulneráveis à agressão por parte dos outros: a exposição primária à alteridade. A responsabilidade ética não surge, por41
BUTLER, 2015, pg 40
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BUTLER, 2015, pg. 60
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tanto, da pretensa autonomia do sujeito, um sujeito que possa expurgar facilmente o que há de si naquele que condena, mas sim de sua vulnerabilidade, de sua impressionabilidade, ainda que insuportável, à alteridade.
III Neste nosso acesso amplo à crítica do “raciocínio fundacionista”43, daquilo que Butler chama de “metafísica da substância”44, nos aproximamos do pensamento de algumas filósofas que formularam questões adjacentes45. Simone de Beauvoir46 observa como, na tradição do pensamento, o “sujeito” abstrato e desencarnado, “a alma” que controla “o corpo”, é ostensivamente masculino, restando ao “feminino” a posição de “alteridade”, por sua vez ostensivamente encarnada. Monique Wittig47 argumenta que “sexo” (e também o “sexual”) é sempre o feminino, que carrega consigo a marca da diferenciação, permitindo ao 43
BUTLER, 1999, pg. 181
Por “metafísica da substância”, Butler faz referência à pervasiva crença, pelos sistemas filosóficos humanistas, na existência de um “núcleo” universal da pessoa:
44
“Comentando sobre Nietzsche, Michel Haar argumenta que muitas ontologias filosóficas caíram na armadilha de certas ilusões de “Ser” e “Substância”, que são cultivadas pela crença de que a formulação gramatical de sujeito e predicado reflete a realidade ontológica subjacente de substância e atributo. Estes construtos, argumenta Haar, constituem o meio filosófico artificial através do qual a simplicidade, a ordem e a identidade são efetivamente instituídas. De forma alguma, porém, representam uma ordem verdadeira das coisas. Para nossos propósitos, esta crítica nietzschiana torna-se instrutiva quando é aplicada às categorias psicológicas que governam muito do pensamento popular e teórico sobre identidades de gênero.” (BUTLER, 1999,pgs. 27-28) Michel Haar (1937 - 2003), filósofo e tradutor francês; lecionou na Sorbonne, e traduziu e escreveu sobre, principalmente, Nietzsche e Heidegger. 45
BUTLER, 1999, pg. 24
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Simone de Beauvoir: ver nota 18
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Monique Wittig: ver nota 26 29
masculino tornar-se sinônimo do universal. Já Luce Irigaray48, negando a interpretação beauvoiriana de que a assimetria de gênero é produzida por uma carência de reciprocidade no interior do binarismo, defende que o próprio binarismo é uma estrutura monológica, encapsulada pela economia de significação do masculino; para Irigaray o feminino não é um “outro” ao qual o masculino se relaciona, é antes o “sexo que não é um”49, o irrepresentável e informulável através das estruturas ontológicas e linguísticas masculinistas. É possível traçar, portanto, em que pesem as nuances que não abordaremos aqui, uma certa tradição de suspeição, por parte da filosofia feminista, acerca da reciprocidade entre os conceitos de substância e sexo na linguagem hegemônica e da insuficiência das estruturas de representação, incluindo a própria estrutura linguística a partir da qual podemos formular esta crítica, para tratar dos problemas concernentes ao universo do feminino. Abro um parênteses para falar da imagem 1, em que busco suscitar de alguma maneira a força simbólica da espacialidade como representação de uma ordem, ideológica, que mascara sua gênese. Entre aquele corpo que se encaixa perfeitamente, “naturalmente”, ao espaço construído, e aqueles outros corpos deslocados - as imagens de Maria Madalena penitente -, “fora de escala”, a composição das pinturas de origem arruinada pelo enquadramento, emerge aí uma tensão, uma constatação de desigualdades. Mas Madalena não se revolta com o espaço que a confina; antes, admira o corpo que “corresponde” àquela ordem eterna, à própria geometria. Ele é universal, elas, idiossincráticas. Não corresponder compõe um novo item em sua lista de pecados a redimir. Luce Irigaray (1930 - ) filósofa feminista francesa nascida belga, que trabalhou proximamente com as áreas da linguística e da psicanálise. Estudou sob Lacan na École Freudienne de Paris; a diferença sexual é um elemento central a suas reflexões, que buscam tornar possível uma expressão genuína do feminino.
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49 Faço referência ao título de seu livro mais famoso, Ce sexe qui n’en est un (1977)
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Estas suspeições aproximaram vertentes do feminismo a correntes filosóficas pós-estruturalistas, de um ponto de vista peculiarmente objetivo - denunciar a ocultação da carga de gênero/sexualidade subjacente aos modelos universalizantes do sujeito. Podemos considerar que, nesta aproximação, a ideia de “desconstrução” adquire o significado político específico de se posicionar criticamente acerca desses conceitos, interiorizados e pressupostos, que excluem certas identidades, corpos, desejos da possibilidade de existência, de questionar a “naturalidade” das estruturas ideológicas implicitamente hierarquizantes. Neste sentido, o uso do termo “desconstruir” no ativismo feminista contemporâneo é bastante revelador.
IV A prática arquitetônica foi notavelmente insuficiente em suas tentativas de lidar com este re-enquadramento da posição do sujeito. Mesmo quando buscaram inspiração direta na obra de filósofos como Derrida50, no caso do “desconstrutivismo”, o objeto da desconstrução foi a própria materialidade: deformações complexas mas calculadas dos elementos compositivos e das superfícies arquitetônicas, que permaneciam porém coerentes com a obra característica daquele arquiteto específico, este que, por sua vez, serve como dublê de corpo para equipes de numerosos profissionais, convenientemente agrupáveis sob um sobrenome. Desconstrução arquitetônica, pois, como estará descrita nos cânones, não foi a desconstrução do sujeito. Quero afirmar, rapidamente, que esse movimento específico não esgota a problematização do racionalismo funcionalista, justamente porque, confortavelmente, não a abordou em determinados aspectos. Ainda assim torna-se possível afirmar, sem muita polêmica, algo como uma definição de pós-modernismo Jacques Derrida (1930 - 2004), filósofo francês nascido na Argélia; bastante conhecido por seu método de análise que chamou de “desconstrução”, fundamental ao desenvolvimento de diversas vertentes do pós-modernismo e do pós-estruturalismo. Colaborou de perto com o arquiteto Peter Eisenman.
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sendo “o momento em que se perdeu a vergonha de criar geringonças vulgares” em um artigo de opinião no caderno de Cultura da Folha de São Paulo51. Pode-se notar como que a percepção de que essa produção “é” a própria pós-modernidade serve para descreditar qualquer tentativa de reavaliação crítica da Razão de dentro do campo da arquitetura. Novamente Butler recorre a Foucault quando se opõe a “uma forma de chantagem que busca igualar toda a crítica da razão à negação da própria razão, ou ameaça castigar a crítica como uma forma de irracionalismo”52. Chantagem como as que fazem todos os regimes de verdade, não só aquele do Esclarecimento, o que apenas reafirma a hipótese da historicidade da Razão. Confesso, pois, que há uma certa dimensão estratégica de minha parte em abordar o tema do racionalismo através da crítica feminista. Esta aproximação confere uma dimensão política à questão que, acredito, dificulta àqueles indispostos à crítica dispensá-la como apologia da submissão. Penso que esta corrente de pensamento é suficientemente coerente e robusta a ponto de não estar vulnerável a acusações de “vulgaridade”, permanecendo em fluxo e em franca expansão de suas fronteiras na cena contemporânea. Em troca, a abordagem suscita questões ainda pouco elaboradas em sua espacialização acerca do corpo, da normatividade e do poder. Acredito que possamos derivar desta leitura algumas abordagens positivamente desestabilizadoras para a arquitetura. A primeira provocação que gostaria de sugerir é a possibilidade de se repensar a posição do profissional arquiteto, compreendido como consciência exteriorizada que ordena e controla a produção do espaço, sob a lógica geométrica e albertiana, a cujo produto “nada se pode adicionar , retirar ou alterar” sem “Nova obra faraônica mostra como Frank Gehry perdeu a mão”. Folha Ilustrada, 04/11/2014. Disponível em: http://folha.com/no1542613
51
Matéria sobre o projeto recente de Frank Gehry para o museu da Fundação Louis Vuitton, inaugurado em outubro de 2014. 52
BUTLER, 2015, pg. 151.
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que disso resulte uma indesculpável mácula. Vimos aqui como essa exigência de coerência completa que resiste a quaisquer mutações, no tempo ou na interpelação, não responde à relação formativa que nós, sujeitos, estabelecemos com a alteridade, a ponto de Butler considerá-la uma “violência ética”. Entretanto, espera-se justamente essa integridade de uma produção espacial que possa almejar o título de “autêntica”. Não se trata nem ao menos de defender um antipragmatismo, pois a própria prática profissional arquitetônica enfrenta quotidianamente as contemporizações e adaptações que as condicionantes econômicas, sociais e produtivas exercem sobre o “conceito” monolítico do projetista53. A arquitetura resiste à integridade, e a pessoa que a concebe é uma das várias peças no cenário da construção civil. Percebo até um certo humor quando Silke Kapp54 nos lembra que o argumento de São Tomás de Aquino para a existência de Deus se baseia precisamente na crença de que, para existir um sistema organizado, deve existir um organizador externo55 (Deus, para ele, ou o arquiteto em nosso caso). Não se trata de exigir um pouco menos de narcisismo por parte do arquiteto-Deus, mas de questionar se há uma possibilidade de atuação sobre o espaço que não se dê a partir dessa chave da coerência exteriorizada, considerando que nossas formas de organização técnica e social reafirmam a todo momento esse sistema.
Ecoo a resposta de Butler à resistência enfrentada por seu reposicionamento do sujeito: “Mas essa morte, se de fato o for, é apenas a morte de certo tipo de sujeito, um sujeito que, para começar, nunca foi possível; a morte de uma fantasia do domínio impossível, e por isso uma perda daquilo que nunca se teve. Em outras palavras, uma aflição necessária.” (BUTLER, 2015, pg. 88.)
53
54 Silke Kapp (1966 - ) é arquiteta e professora da Escola de Arquitetura da UFMG, onde leciona sobre teoria crítica e arquitetura. Coordena o grupo de pesquisa Morar de Outras Maneiras (MOM), acessível em: http://www.mom. arq.ufmg.br/mom/index.html 55 KAPP, Silke. Contra a Integridade. In: MDC. Revista de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, p. 8-11, 2006.
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Na imagem 5 faço uma pequena ironia sobre a abstração; a abstração que, Bourdieu nos lembra56, é uma simplificação necessária ao empreendimento de se considerar o espaço físico em estado bruto. Uma ferramenta, digamos, que porém glorificamos como virtude. Confrontada com a barbárie resultante de uma produção racionalizada e eficiente de objetos arquitetônicos autônomos (uma montagem com fotos publicitárias e jornalísticas de empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida), a abstração emerge como negação57. Aquele corpo resiste a se conformar àquela perspectiva distópica, e nesta resistência subverte o próprio sistema de representação perspéctico: espaço e imagem se confundem. Kapp contrapõe o ideal de integridade à noção de auto-organização: “um processo de incremento espontâneo na organização de um sistema, sem que haja controle pelo meio circundante ou por um outro sistema externo”58. A aproximação pode parecer um pouco insólita, mas acredito que o conceito de performatividade de gênero dialogue precisamente com este modelo de regulação e metamorfose intra-sistêmica. Trata-se de reconhecer o caráter produtivo das normatividades, mesmo em suas materializações excludentes, como fundamento para uma prática crítica. Podemos traçar um paralelo interessante com o pensamento de Stan Allen59 sobre a espacialidade em “campo”: 56 “O espaço, tal como nós o habitamos e como o conhecemos, é socialmente marcado e construído. O espaço físico só pode ser pensado como tal por meio de uma abstração (geografia física); ou seja, ignorando-se decididamente tudo o que ele deve ao fato de ser um espaço habitado e apropriado (...)” (BOURDIEU, Pierre. Espaço físico, espaço social e espaço físico apropriado. Estudos Avançados, São Paulo , v. 27, n. 79, 2013, pg. 136. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142013000300010&lng=pt&nrm=iso)
No sentido Freudiano, a insistência em não aceitar o fato, apesar das evidências, por ser muito desconfortável; “denial” em inglês ou “Verneinung” em alemão.
57
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KAPP, 2006, pg. 10.
Stan Allen (1956 - ) é arquiteto e teórico da arquitetura americano; foi dean da Escola de Arquitetura da Universidade de Princeton entre 2002 e 2012, e
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“Se pensamos a figura não como um objeto demarcado, lido sobre um fundo estável, e sim como um efeito que emerge do próprio campo - como momentos de intensidade, picos ou vales dentro de um campo contínuo -, então é possível imaginar uma relação mais íntima entre figura e campo. O que pretendemos aqui é examinar atentamente a produção da diferença em escala local, mantendo ao mesmo tempo relativa indiferença à forma do todo.”60 Vislumbro aqui a possibilidade de emergência de um instrumental para tratarmos do projeto e da construção do espaço de uma maneira contemporânea. Um instrumental que já nasce auto-crítico - pelas palavras dos próprios autores, “as condições de campo não podem pretender criar uma teoria sistemática da composição ou da forma arquitetônica”61, diz Allen; “Não se trata de reproduzir, pela plasticidade escultural, por um avançado programa de computador ou por qualquer outro expediente, lógicas fuzzy, fractais e outros processos da natureza pós-newtoniana”62, diz Kapp. Não buscamos, portanto, simplesmente prescrever novas matrizes formais;63 o desafio é transcender a autonomia do objeto construído e da genialidade do sujeito arquiteto como paradigmas fundantes da arquitetura ocidental.
V A busca por inserções críticas produtivas que reconheçam a complexidade das “redes de poder” suscita algumas desiluhoje dirige o escritório SAA.
ALLEN, Stan. Condições de Campo. 1999. In: SYKES, A. Krista (org). O Campo Ampliado da Arquitetura: Antologia Teórica 1993-2009. São Paulo: Cosac Naify, 2013. pg. 98.
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ALLEN, 1999, pg. 93
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KAPP, 2006, pg. 10
Incidentalmente, ambos fazem referência explícita ao conceito de beleza em Alberti.
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sões e algumas outras potencialidades. Há sem dúvida algum otimismo latente a desmistificar quando percebemos que um espaço concebido para a liberdade não será condição suficiente para que aconteça a liberdade; em outras palavras, o espaço físico não tem o poder (mágico) de evocar práticas culturais, o que pareceria desnecessário enunciar se o pensamento não subsistisse entre os arquitetos. Mas principalmente, um segundo ponto talvez menos óbvio: não há uma “liberdade” transcendental, à qual possamos conceber um espaço físico que lhe corresponda - “Liberdade é uma prática”, diz Foucault64, e os projetos de definir uma espacialidade inequivocamente libertária inevitavelmente tropeçarão em alguma carga normativa de gênero, raça, classe, até geração, de filosofia, não por sua má essencialidade, mas por sua apropriação contingente dentro de um espaço social hierarquizado. Este segundo ponto me parece não ter sido suficientemente respondido pelas interpretações contemporâneas apologéticas do modernismo arquitetônico como “projeto inacabado”65. Por outro lado, essa percepção também suscita em mim alguma esperança, precisamente talvez nos pontos cegos do pensamento para a integridade. Lembremo-nos que estar inserido na rede de poder não precisa significar consentimento pleno; o poder flui pelos indivíduos, mesmo aqueles nas posições de vulnerabilidade exacerbada, permanecendo sempre a possibilidade de inserções críticas de dentro da matriz normativa. Uma suscetibilidade à intervenção politicamente consequente, à teoria crítica66.
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FOUCAULT apud ALLEN, 1999, pg. 101
faço referência a HABERMAS, Jurgen. Modernity versus Postmodernity. New German Critique, no. 22, 1981. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/487859
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“Teoria Crítica” compreendida no sentido proposto por Max Horkheimer em seu artigo “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, de 1937: uma teoria que procure se orientar para a emancipação no tempo presente (HOKHEIMER, Max. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1980) 66
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O incômodo que busquei sugerir na imagem 2 talvez sirva de bom compasso para medir o posicionamento do leitor frente a essas questões: incomoda a profanação daquele espaço, concebido da melhor genialidade que a arquitetura moderna pôde oferecer, pelos usos vulgares e objetos alienantes? Ou incomoda mais a inadequação do espaço a essa forma de uso, em outras palavras, a forma de uso que está implícita no espaço? O incômodo é com a realidade brutal, ou com a brutalidade da utopia? Há algo de desumano na cena, mas o quê? Pensar nas relações entre “arquitetura e poder” costuma nos levar a considerar o ostensivamente monumental, os centros cívicos, ao espaço da esfera pública, talvez aos espaços punitivos, mas nessa chave consideramos uma espacialidade socialmente positivada ou, pelo menos, consensuada do poder. O espaço do quotidiano tem, em igual medida, suas dinâmicas próprias de poder; entretanto, elas são comparativamente menos perceptíveis, nesse aspecto até menos criticáveis, protegidas sob a ótica das dinâmicas sociais. Um impulso que poderíamos chamar, quase literalmente, de domesticizante. Dessa maneira, o espaço doméstico oferece um considerável incômodo para a disciplina, pois torna-se cristalina a função ativa que a edificação cumpriu, e cumpre, na manutenção de sistemas patriarcais quando lemos, pelo mesmo Alberti de antes, em de Re Aedificatoria, que: “[...] certamente, para mim, qualquer lugar reservado a mulheres deve ser tratado como se dedicado à religião e à castidade; e eu reservaria às jovens moças e senhoritas apartamentos confortáveis, para aliviar suas mentes delicadas do tédio do confinamento. A matrona deveria ser acomodada onde ela pudesse efetivamente monitorar o que todos os outros estivessem fazendo.” 67 A casa emerge como mecanismo de domesticação. A interioridade pertence às mulheres, imobilizadas, em função do aliALBERTI, Leon Battista. De Re Aedificatoria, 1452, apud WIGLEY, Mark. Untitled: The Housing of Gender. In: COLOMINA, Beatriz. Sexuality and Space.
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nhamento oportuno entre a honra, a opinião dos antigos, e a ordem natural: “Eu concordo, pois partilhas, precisamente, da opinião dos antigos. Eles costumavam dizer que os homens são por natureza de uma mente mais elevada do que as mulheres [...] o caráter dos homens é mais forte do que o das mulheres e pode suportar melhor os ataques dos inimigos, pode suportar melhor o esforço, é mais constante sob pressão. Portanto, os homens têm a liberdade de viajar com honra em terras estrangeiras. Mulheres, por outro lado, são quase todas tímidas por natureza, macias, lentas, e portanto mais úteis quando ficam paradas e vigiam as coisas. É como se a natureza tivesse, assim, providenciado para o nosso bem-estar, garantindo que os homens tragam coisas à casa e que as mulheres as guardem. A mulher, enquanto permanece trancada em casa, deve vigiar as coisas mantendo-se em seu posto, com cuidado diligente e atenção. O homem deve guardar a mulher, a casa, sua família e seu país, mas não permanecendo parado.”68 Faço referências, nas imagens, a essas relações de poder, com conotações de gênero, que mediam as condições da produção e manutenção da interioridade. Na imagem 1, as virgens (Maria, na cena da Anunciação) e a mãe (Maria, em imagem da Sagrada Família) ocupam no topo a posição segura, ilhadas, mas visíveis; Madalena, a pecadora, ocupa o interior, longe dos olhares. A distribuição espacial recria a construção discursiva dos valores, sexuados, que aquelas mulheres simbolizam; valores que, lembremo-nos de Irigaray69, definem a mulher por sua utilidade ao New York: Princeton Architectural Press, 1992, pg. 332. Tradução nossa. 68
ALBERTI, Della Famiglia, apud WIGLEY, 1992, pg. 334. Traduçao nossa.
“Mother, virgin, prostitute: these are the social roles imposed on women. The characteristics of (so-called) feminine sexuality derive from them: the valorization of reproduction and nursing; faithfulness; modesty, ignorance of and even lack of interest in sexual pleasure; a passive acceptance of men’s
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homem, em uma matriz de significação que reverbera sombriamente na mitologia cristã. Na imagem 4 talvez esteja a referência mais direta à ideologia que se expressa na citação acima; sugeri um deslocamento na posição do “sujeito”, que se debruça na janela não mais para admirar a paisagem, mas para apreciar, melancolicamente, a partir da externalidade, o interior. A stasis feminina se torna impressa no espaço doméstico e passa a compor a própria estrutura física, sob a forma da cariátide. Sua posição é um tanto dúbia - há submissão, sim, mas há também a força desapreciada que estrutura precisamente a possibilidade da externalidade ostensiva do sujeito. Talvez estejamos no espaço mental, na recolecção sempre falha do espaço passado, em um onirismo que reconstrói o simbólico mas que não serve à descrição precisa da geometria.
VI O olhar de Butler para o corpo em Gender Trouble talvez tenha sido o principal ponto de contenção em sua teoria. Certamente o corpo sexuado ocupa um lugar privilegiado na militância feminista, pela crítica da violência nas intervenções médicas, pelos direitos reprodutivos e de soberania sobre o corpo, pelo amparo à violência física e psíquica implicada na cultura do estupro e da violência conjugal. Em que pese sua crítica radical à ideia de “sexo natural”, Butler não sustenta que não exista a materialidade do corpo; antes, seu argumento é que a materialidade corporificada nunca é puro fenômeno, e que a nossa cognição do corpo sexuado é sempre feita através do prisma de sua significação cultural: gênero. Precisa“activity”; seductiveness, in order to arouse the consumers’ desire while offering herself as its material support without getting pleasure herself.. . Neither as mother nor as virgin nor as prostitute has woman any right to her own pleasure.” (IRIGARAY, Luce. This Sex Which is Not One. New York: Cornell University Press, 1985, pg. 186) 39
mente as construções normalizantes permitem a apreensão cultural do corpo, e dessa maneira, “definem” sua materialidade70. Ao naturalizar a inteligibilidade de certos corpos privilegiados como “a humanidade”, ativa e comparativamente delimitam-se as outras populações como “menos do que humanas”71: essa “violência normativa”72 ontologiza essa vulnerabilidade do corpo na própria definição daquela identidade. O que suscita, por sua vez, a necessidade de “uma insurreição no nível da ontologia”73 para responder às implicações políticas de sua definição. Abre-se, a meu ver, uma via para uma consideração dramaticamente política do corpo da qual permanecemos ainda conceitualmente distantes na arquitetura. De fato, em certos contextos Butler faz um uso provocador da palavra “corpo”74, substituindo o que normalmente chamaríamos de “indivíduo”, “sujeito”, LLOYD, Moya. Judith Butler. In: Jon Simmons (org.) From Agamben to Zizek: Contemporary Critical Theorists. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2010, pg. 84.
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“less than human”, em Bodies that Matter (1993).
“Como vemos, “tornar-se humano” não é tarefa simples, e nem sempre é claro quando nos tornamos humanos ou se o conseguimos. Ser humano parece ser o mesmo que estar em uma situação impossível de ser resolvida. Na verdade, Adorno deixa claro que não pode definir o que é o humano. Se o humano for alguma coisa, parece ser um movimento duplo, em que afirmamos as normas morais ao mesmo tempo que questionamos nossa autoridade para fazer tal afirmação.” (BUTLER, 2015, pg. 134) Butler usa o termo “violência normativa”para designar a capacidade das normas e dos contextos sociais em determinar quem pode ser considerado um sujeito. (LLOYD, 2010, pg. 85.)
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73 Ou seja, batalhar sobre a possibilidade de ser, sobre o que é ser humano; sobre a distribuição desigual e ideológica entre as qualidades de “ameaçado” e “ameaçador”, introjetadas às próprias identidades; e à ordem que reitera essas atribuições, como forma de estabilizá-las. (BUTLER, apud LLOYD, 2010, pg. 86.) Acredito que seja precisamente a batalha que os ativismos feminista e queer vêm travando, e por isso têm ganhado tanto espaço no cenário cultural e universitário contemporâneos.
A exemplo de sua recente participação no I Seminário Queer, realizado pelo SESC em parceria com a Revista Cult, em Setembro deste ano, no SESC Vila Mariana. Vídeo disponível em: https://youtu.be/S7g22OlSFK4
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“pessoa”. Ao falar em “corpo”, não fica claro nem ao menos se estamos falando de algo vivo, e Butler o lança logo à posição de protagonista da cena política. Bastaria olhar para o amplo espectro de consequências punitivas implicadas em corporificar gênero “da forma errada” - o bullying, a perseguição, a intervenção médico-jurídica, o assassinato - como prova do potencial subversivo do ato corporal. Uma crítica às normatividades do corpo expressas na teoria da arquitetura talvez seja o principal elemento de ligação entre as imagens que apresento neste trabalho. Na imagem 2, a profanação daquele “estilo internacional” se dá consideravelmente pela subversão silenciosa promovida pelos corpos. O mote da imagem 3 talvez tenha sido precisamente ridicularizar o corpo idealizado, colocando-o num local “heróico”, numa exterioridade gloriosa mas parcialmente paradoxal, pois estruturada rigidamente em “quatro cantos” como imaginamos o espaço interno. A construção antiga evoca a solenidade própria à boa Humanidade, mas eis que o próprio corpo resiste à idealização, pela necessidade fisiológica, que não tem muito espaço naquelas pretensas “sínteses”, em verdade sistemas esquematizantes. A “normalização” do corpo foi um empreendimento fundamental do racionalismo, mas que não sofreu tanta pressão crítica a se reavaliar quanto, por exemplo, a setorização funcional do espaço urbano. Kapp nos lembra que o “Neufert” é o best seller da arquitetura do século XX no mundo75, pois não falta à prateleira de um arquiteto sequer. Não se trata, entretanto, de representar uma “mulher vitruviana” e de encontrar uma ordem cósmica KAPP, Silke. Por que Teoria Crítica da Arquitetura? Uma explicação e uma aporia. In: Maria Lúcia Malard. (Org.). Cinco Textos Sobre Arquitetura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, v. , pg. 115-167. Disponível em: http:// www.mom.arq.ufmg.br/mom/05_biblioteca/acervo/kapp_por_que_teoria. htm
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O livro em questão é “A Arte de Projetar em Arquitetura”, de Ernst Neufert, assistente de Gropius na Bauhaus; um grande manual de layouts, detalhes, dimensões e ergonomia de arquitetura, obra de referência para a prática quotidiana, e que já se encontra em sua 39a edição em alemão. 41
que una a via láctea ao átomo reverberando na geometria do útero (ainda que reverbere); não me contentaria tampouco se reduzíssemos o modulor76 de seus hiperatléticos 1,83m para, digamos, algo em torno dos 1,60m. Lembro, aliás, que a escala “errada” entre modulors e o espaço, inconsistente entre as diversas imagens, é um dado importante daquilo que quis comunicar nas imagens 3, 4 e 5. Ora é maior que a coluna, ora mal alcança o parapeito; ora é pura ideia, ora é bicho. Quis talvez, com essa série, satirizar o empreendimento de Corbusier, colocando aquelas figuras em situações de melancolia, apreensão, desconforto; retirando o verniz de heroísmo através de sua espacialização contraditória. Há margem para se ponderar se a contradição está no sujeito ou fora dele, mas é certo que aquele sujeito, sozinho, não será capaz de resolvê-la. Gostaria de concluir com uma frase de Adorno que Butler menciona e analisa na ocasião, um tanto absurda, de um pequeno artigo77 escrito para se defender de acusações de que sua escrita seria desnecessariamente complicada: “Homem é a ideologia da desumanização”. Nesta frase, pela interpretação de Butler, Adorno faz referência à forma como a palavra “Homem” é usada por seus contemporâneos como a abstração de um indivíduo, buscando isolá-lo de seu contexto para só então encontrar sua verdade. Mas a desumanização, para Adorno, é a própria privação de contato e contexto. “Homem”, enunciado assim, tomado como figura generalizante, o mesmo “homem” do nosso humanismo e do nosso racionalismo78, é - tanto quanto uma cela solitária, talvez - forma desumanizante de abordar nossa condição. O Modulor é uma escala antropométrica desenvolvida por Le Corbusier, com a intenção de sintetizar visualmente as medidas métrica e imperial; Corbusier o codificou em escritos e o utilizou em diversos de seus projetos.
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77 BUTLER Judith. A “Bad Writer” bites back. Artigo no New York Times de 20/mar/1999. Disponível em: http://nyti.ms/RPzrZx 78 Que é ostensivamente Homem no sentido sexuado, eu adicionaria, e que está pressuposto nessas formulações mesmo quando não aparece claramente enunciado no discurso.
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composto em Gentium Book Basic e Bebas Neue.
Western architecture is, by its very nature, a phallocentric discourse: containing, ordering, and representing through firmness, commodity, and beauty; consisting of orders, entablature, and architrave; base, shaft and capital; nave, choir and apse; father, son and spirit, world without end. Amen. Jennifer Bloomer
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Big Jugs. In: RENDELL, PENNER, BORDEN, 2010.
When you asked me to speak about women and fiction I sat down on the banks of a river and began to wonder what the words meant. They might mean simply a few remarks about Fanny Burney; a few more about Jane Austen; a tribute to the Brontës and a sketch of Haworth Parsonage under snow; some witticisms if possible about Miss Mitford; a respectful allusion to George Eliot; a reference to Mrs Gaskell and one would have done. But at second sight the words seemed not so simple. The title women and fiction might mean, and you may have meant it to mean, women and what they are like, or it might mean women and the fiction that they write; or it might mean women and the fiction that is written about them; or it might mean that somehow all three are inextricably mixed together and you want me to consider them in
imagem 2
that light. But when I began to consider the subject in this last way, which seemed the most interesting, I soon saw that it had one fatal drawback. I should never be able to come to a conclusion. I should never be able to fulfil what is, I understand, the first duty of a lecturer—to hand you after an hour’s discourse a nugget of pure truth to wrap up between the pages of your notebooks and keep on the mantelpiece for ever. All I could do was to offer you an opinion upon one minor point—a woman must have money and a room of her own if she is to write fiction; and that, as you will see, leaves the great problem of the true nature of woman and the true nature of fiction unsolved. I have shirked the duty of coming to a conclusion upon these two questions—women and fiction remain, so far as I am concerned, unsolved problems. Virginia Woolf excerto de A Room of One’s Own (1929)
Isso funciona em toda parte: às vezes sem parar, outras vezes descontinuamente. Isso respira, isso aquece, isso come. Isso caga, isso fode. Mas que erro ter dito o isso. Há tão somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina-órgão é conectada a uma máquina-fonte: esta emite um fluxo que a outra corta. Deleuze & Guattari
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sobre as “máquinas-desejantes”, em O Anti-Édipo (1973)
Ó nostalgia dos lugares que não foram Bastante amados na hora passageira Quem me dera devolver-lhes de longe O gesto esquecido, a ação suplementar. R M Rilke
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apud BACHELARD, 1996, pg. 70
“O econômico é político” é uma afirmação central ao desafio que a esquerda coloca ao liberalismo. Paralelamente, as teóricas feministas, focando o gênero e argumentando que poder e práticas políticas e econômicas são estreitamente relacionados às estruturas e práticas da esfera doméstica, expuseram o quanto a dicotomia entre público e doméstico, também reificada e exagerada pela teoria liberal, serve igualmente a funções ideológicas. O slogan feminista correspondente é, obviamente, “o pessoal é político”. Susan Moller Okin
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excerto de Gênero, o Público e o Privado (1989)