Um olhar apresentado por Ariadne Iacovino Xavier e Rafael Ghiraldelli sobre o processo geral de produção do curta-metragem / videoperformance dirigida por Rafael Ghiraldelli no primeiro semestre de 2015
Conceitos iniciais
“A última guerra em Canudos” se baseia em um roteiro de Rafael Ghiraldelli, escrito em 2015, cujo enredo se passa em um futuro distópico, no qual o aquecimento global levou à completa desertificação do mundo, inclusive o Brasil. A água torna-se o novo petróleo, e guerras são deflagradas pelo controle das poucas fontes do líquido que restam. Nesse contexto, o enredo gira em torno de Antônio, um velho homem que, junto de sua mulher gravemente doente – Sara –, vive em uma casa improvisada feita de taipa, levantada a partir das poucas paredes que permaneceram em pé de uma das muitas construções em ruínas de uma antiga metrópole brasileira à mercê das ventanias secas que tudo cobrem com densas cortinas de poeira.
Parece mesmo que, nesse futuro, a caatinga domina toda a região na qual o velho casal fora abandonado para morrer, solitário... o Brasil inteiro tornara-se um grande sertão árido, e nenhuma esperança de melhora permanece para os poucos sobreviventes. A ausência de fontes de energia elétrica duradouras e de pessoas capacitadas para reparar antigos equipamentos mecânicos e veículos fez com que a tecnologia recuasse séculos, levando os habitantes daquela extensa paisagem ressacada a viver tal como a época do cangaço. Tanto é que bandidos e mercenários de toda espécie exploram constantemente os mais desprivilegiados, buscando impor suas vontades contra os que os aceitam e sua fúria contra os que lhes oferecem resistência.
Há muito tempo que os filhos do casal deixaram aquele lugar – deixando também seus pais para trás. Agora, o velho senhor dedica seus dias a cuidar de sua esposa moribunda, lendo para ela trechos de velhos romances todas as noites. Dentre eles, um favorito é “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, no qual é mencionada a comunidade de Canudos. Toda a vez que o livro é lido, a história do casal é entremeada por uma reinterpretação particular da narrativa em questão feita na cabeça do velho senhor, compartilhada com o público. Nessa visão, os acontecimentos históricos da Guerra de Canudos são transmutados em lembranças de um passado pessoal de luta. Encarnando uma espécie de novo Antônio Conselheiro, o velho idealiza fatos de quando era moço e resistiu contra o avanço de milícias organizadas que queriam apossar-se de uma das poucas fontes restantes de água da região.
Porém, ao abrigar Helena, uma jovem que carrega consigo arquivos secretos de um certo “Projeto Samarcanda” e é procurada na região pela gangue de mercenários liderada por Fantasma, o velho se depara com uma inusitada ironia feita pelo destino. Com a chegada jovem, cabe ao velho decidir se acredita na palavra dela a respeito da importância de escondê-la (e de encaminhar as informações que ela portava para salvar a vida de muitas outras pessoas) ou se garante a sobrevivência dele e de sua esposa ao entregar a garota para aqueles que a procuram.
ReferĂŞncias iniciais
• “Os sertões”, de Euclides da Cunha, e relatos históricos sobre a campanha de Canudos e os anos iniciais de luta da República Velha contra eventuais focos de resistência ao governo vigente.
• Literatura de cordel – as ilustrações e soluções tipográficas feitas para muitas das histórias criadas dentro dessa linha de tradição literária brasileira fizeram uso de técnicas de xilogravura que conferiam uma estética bem particular a tais obras. • Fatos históricos ou lendários sobre a cidade de Samarcanda – um posto comercial de grande prosperidade que se localizava na antiga Rota da Seda. • O fumetti – nome que se dá na Itália a poéticas afins desenvolvidas a partir da linguagem das histórias em quadrinhos (HQs) que se popularizaram no período de escapismo cultural vivido no país após a derrota na 2ª Guerra Mundial. A nomenclatura em questão faz referência à palavra “fumaça” em italiano – uma alegoria simbólica ao formato particular do balão de fala que era empregado especialmente por quadrinistas que ilustravam histórias de faroeste ou de horror.
• “Malaria” (2013), um curta-metragem dirigido por Edson Oda que explora convergências entre HQs e cinema num campo expandido, performático (vide fotograma abaixo como exemplo).
• “Era uma vez em Tóquio” (1953), longa-metragem japonês dirigido por Yasujiro Ozu que critica o processo de ocidentalização e de perda dos tradicionais valores familiares do país (que também se encontrava em processo de recuperação socioeconômico após a derrota na 2ª Guerra Mundial e a consequente ocupação norte-americana).
• “O livro de Eli” (2010), longa-metragem norte-americano dirigido pelos irmãos Albert e Allen Hughes cujo enredo gira em torno de personagens que habitam um mundo distópico, pós-apocalíptico, desertificado. • Adaptação em HQ (graphic novel) realizada em 2014 pelo selo Biblioteca Azul, da Editora Globo, para o livro “Grande sertão veredas”, de João Guimarães Rosa (ilustrações de Rodrigo Rosa). • “Lampião e Lancelote” (2006), livro ilustrado de Fernando Vilela publicado pela editora Cosac Naify cuja linha estética se inspira fortemente nas xilogravuras da literatura de cordel
• “Estrelas de couro: a estética do cangaço” (2010), livro organizado por Frederico Pernambucano de Mello e publicado pela editora Escrituras que contém diversas referências visuais detalhadas a respeito da indumentária utilizada pelos cangaceiros e de seus símbolos (tais como as imagens de exemplo abaixo indicam), além de discorrer sobre toda a cultura visual que se construiu a partir dessas figuras já compreendidas como lendárias nas mentes de muitos brasileiros atualmente.
Concepção artística e formato da obra
É possível categorizar o que será feito em “A última guerra em Canudos” como uma videoperformance realizada a partir de peças ilustradas em papéis de diferentes tipos no sentido de construção de uma narrativa de teor cinematográfico – um “livro de cenas” entrará como representativo de planos abertos, enquanto “cadernos de detalhes” o sobreporão após cada transição de cena e servirão para representar planos em close-up, principalmente. Contudo, deve-se ter o cuidado para não encarar esse projeto através do prisma da mera transposição cinematográfica (de uma estética narrativa do tipo) ao meio estático do livro ilustrado, uma vez que realizar tal asserção seria uma forma de limitar as possibilidades de diálogo deste projeto com diferentes linguagens e vertentes expressivas características da arte contemporânea e de suas eventuais associações aos “novos” meios midiáticos (isto é, o vídeo, a computação gráfica, as redes sociais, etc.).
Devido ao fato de que apenas um capítulo da história será ilustrado e filmado (considerando o tempo hábil para concluir as filmagens dentro do período letivo abarcado por este primeiro semestre de 2015), “A última guerra em Canudos” resultará em um vídeo de aproximadamente sete (7) minutos de duração (um curta-metragem), filmado em alta definição (Full HD 1080p) por uma única câmera, posicionada sobre o performer de forma estática (vide esquema abaixo). Essa câmera irá capturar, numa visão de cima, as interações que o performer fará com as ilustrações e os elementos não-gráficos pertencentes ao lado imagético da narrativa a ser contada.
Referências estéticas
ReferĂŞncias para ambiente no qual a filmagem poderia ser realizada
Paleta de cores e texturas
ReferĂŞncias para cenas externas
Referências de acessórios e peças de vestuário para compor figurinos de mercenários
Design de personagens
Nesta etapa, cria-se painéis semânticos – mood boards – para cada ficha de personagem escrita. Trabalhar com a pesquisa e seleção de imagens de referência exigidas pelos mood boards ajuda a conceber visualmente os personagens no que toca seus aspectos fisionômicos, sua silhueta, seu figurino e outras características físicas relevantes, o que levará, consequentemente (depois da realização de vários esboços e croquis que exploram expressões faciais, linguagem corporal, opções de indumentária, etc.), à realização dos estudos de rotação, os turnarounds. Com eles, é possível ter-se um entendimento mais pleno de como a paleta de cores e os itens particulares de figurino e acessórios escolhidos irão contribuir na exteriorização de aspectos psicológicos próprios do personagem, suas crenças e valores pessoais.
Tomando como exemplo o personagem AntĂ´nio, parte-se de sua ficha...
...para seu mood board.
Depois, realiza-se esboços, estudos do personagem em diferentes instâncias de sentir e de agir. Escrevem-se notas para referência posterior onde forem necessárias.
Por fim, o turnaround.
Roteiro, storyboard e decupagens
Uma vez que se têm tanto um delineamento geral da história a ser escrita como de seus personagens em mente, pesquisar referências de todo tipo que a fundamentem tal narrativa dentro da linha estética desejada (realista, no caso de “A última guerra...”) é essencial. Com isso, é possível escrever o roteiro, devidamente formatado, com os aspectos gerais do enredo melhor definidos e os diálogos entre personagens já todos detalhados. A seguir, partindo do roteiro pronto, o storyboard é desenvolvido. Nele, as cenas e os planos, da maneira como o roteiro indicou, podem ser visualizados e ter suas respectivas composições e ângulos de câmera estudados em prol do melhor efeito estético ou impacto narrativo. Como este curta fez uso de um grande número de efeitos visuais práticos (como, por exemplo, portas que se abrem cortando o desenho com uma tesoura, alguma quantidade de areia ventilada sobre as ilustrações com a intenção de simular uma ventania, etc.) em decorrência de seu formato aproximado a de uma videoperformance, o storyboard também se provou um recurso muito útil para visualizá-los de antemão e coordená-los da melhor forma possível com a sequência de ilustrações a serem folheadas diante da câmera.
Do roteiro para o storyboard.
Para auxiliar na concretização de aspectos próprios ao visual da obra previstos pelo roteiro e pelo storyboard, fazem-se decupagens que irão listar em pormenores os itens necessários para fechar um dado figurino de personagens, os objetos e props que farão parte de uma dada cena, etc. Abaixo, uma página do da planilha de decupagem de figurinos utilizada para a filmagem do capítulo “A barganha” de “A última guerra...”). A última guerra em Canudos / Decupagem de figurinos (geral) Figurino Descrição
Personagem
Observações
Óculos de proteção de lentes escuras (para proeteger contra a claridade intensa, mormaço ou a poeira levantada pelos ventos da Grande Caatinga); anel (aliança de casamento improvisada); túnica improvisada sem capuz marrom-clara / ocre de algodão cru ou material semelhante (com remendos); camiseta creme de tecido leve (como gola F_ANT_01 aberta para se amarrar), calça marrom-escura (com remendos); par de botas bem gastas ANTÔNIO (idoso) de cano alto de couro sintético preto (sem amarras); cajado de madeira improvisado; cantil; cinto de couro preto; bolsa de cintura para guardar acessórios pequenos (como alimentos, equipamentos eletrônicos de monitoramento remoto da saúde de Sara, bússola, etc.)
Consultar referências visuais em figurinos de mestres samurais em filmes de Akira Kurosawa, de personagens na série de jogos para PC "Fallout", e do personagem Obi-Wan Kenobi (velho) na cinessérie "Star Wars".
Colete tático preto de partes intercambiáveis de kevlar; joelheiras e cotoveleiras táticas pretas; camisa e calça de brim camufladas (estilo "operações militares no deserto) de tons ocres, marrons e cinzas; cinto de utilidades de neoprene ou tecido impermeável sintético F_FAN_01 FANTASMA de textura semelhante; par de coturnos de cano alto pretos (sem amarras, do mesmo material que o colete); uma arma pesada (rifle tático) guardado em grande coldre ás costas.
Consultar referências visuais em figurinos de personagens da trilogia de jogos para PC "Mass Effect".
Cordão marrom-escuro de nylon ou outro material elástico para amarrar cabelo; túnica improvisada sem capuz ocre de algodão cru ou material semelhante; camisa e calças largas creme; echarpe marrom-clara bem gasta (a qual pode ser levada ao rosto para cobrir nariz e boca e filtrar parte da poeira levantada pelos ventos da Grande Caatinga); F_HEL_01 cinto largo de couro marrom-escuro com bainha para faca; uma faca grande com cabo enrolado por tiras de couro, embainhada (por baixo da túnica); uma faca pequena escondida dentro de uma das botas; cantil; par de botas bem gastas de cano longo de couro sintético marrom-escuro (sem amarras).
F_SAR_01
Camisola longa ocre; anel dado por Antônio (aliança de casamento improvisada); vários equipamentos eletrônicos de monitoramento de saúde ligados ao corpo.
HELENA
Consultar referências visuais em figurinos de personagens das séries de jogos para PC "Fallout" e "Mirror's Edge".
SARA (idosa)
Como ela estará enferma (de cama) durante grande parte de suas cenas enquanto idosa, nenhum outro item de figurino se faz necessário.
Testes
Para prosseguir com a produção de material que faria parte do “livro de cenários” e dos efeitos práticos que nele intervirão, além das ilustrações dos “cadernos de detalhes” (closes em personagens), uma série de testes se fez necessária. Tais testes diriam respeito a experiências com chroma key através do software específico a ser empregado na edição do áudio e do vídeo para o filme (Adobe Premiere), bem como experiências com aspectos mais “concretos” do projeto (tais como o efeito de terra rachada que se buscava simular a partir de argila espalhada na mesa sobre a qual o “livro de cenas” será apoiado, possibilidades de encadernação do “livro de cenas” com uma capa de courino, entre outros).
Fotograma de vídeo-teste com chroma key ativado pelo software Adobe Premiere (à direita), comparado à ilustração original (à esquerda). Nota-se como o efeito reflexivo do plástico empregado para fazer às vezes das lentes do óculos de proteção de Antônio se manteve mesmo com a cor de fundo original substituída na edição pela imagem passageira de uma paisagem urbana em ruínas.
Estudos sobre formas de se gravar / desenhar sobre o courino (material da capa do “livro de cenas�).
Testes com técnicas de encadernação de folhas soltas (costura japonesa) e capa de courino. Por fim, optou-se por uma técnica de encadernação com cola, para permitir uma ação mais fácil de folheamento do “livro de cenas”.
Teste com argila craquelada sobre base de madeira, deixada para secar à temperatura ambiente, realizado com o intuito de se obter o efeito de terra seca desejado para a superíficie sobre a qual o “livro de cenas” (e as demais ações da performance, consequentemente) será filmado.
Teste de posicionamento de “balão de fala” sobre ilustração que retrata um closeup em Helena de um dos “cadernos de detalhes”.
Ilustrações – personagens em “cadernos de detalhes“
Do rascunho à lápis grafite até o desenho finalizado, com lápis conté sépias e pretos e pastéis secos sobre papel cartão.
Montagem dos “cadernos de detalhes� #1 (acima) e #2 (ao lado).
Confecção dos “balões de fala” a serem utilizados nas cenas com diálogos entre personagens.
Ilustrações finalizadas do “caderno de detalhes” #2.
Cenรกrios e
props
Desenhos de personagens individualizados, recortados de papel kraft, que serão colados sobre o suporte dos cenários (cada uma das páginas do “livro de cenas”).
À esquerda, foto documenta parte do processo de gravura sobre caixa de leite utilizando a técnica conhecida como criblé – originalmente, uma técnica de calcogravura na qual ranhuras fundas o bastante são feitas sobre a matriz de metal, de modo que se possa entintá-la e imprimi-la tal como uma xilogravura. À direita, uma amostra dessa forma de impressão, a qual foi empregada para representar as construções da cidade em ruínas dos cenários constituintes do “livro de cenas”.
Esboรงos (roughs) sobre papel kraft, comparados aos estudo posteriores de peรงas ilustradas de papel coladas sobre o suporte em questรฃo.
Carimbo utilizado em um dos planos, no qual AntĂ´nio passa a ser visto como um traidor para uma Helena muito magoada.
Utilização de faca em cena (manipulada pelo performer). A bainha e o cabo da faca foram trabalhados a partir de tiras de courino (couro sintÊtico).
Encadernação
Etapas da técnica específica de encadernação de folhas soltas com cola empregada na confecção do “livro de cenas”. Primeiramente, abrem-se ranhuras com o arco de serra, nas quais serão inseridos pedaços de barbantes embebidos em cola. Antes (e, opcionalmente, depois também), se passa uma demão de cola com um dedo por todo o comprimento da lombada, para garantir uma boa liga entre as folhas a serem encadernadas entre si.
Processo de produção do desenho da capa do “livro de cenas”. Os rascunhos foram feitos com carvão, e o desenho final com canetas marcadoras sépia.
Após a realização da colagem da lombada, procura-se dar um acabamento menos rústico colando uma medida de courino sobre ela. Aproveita-se tal courino extra para se fazer as guardas do livro (coladas ao verso das primeira e quarta capas).
Para se encontrar uma forma eficaz de colar o courino à lombada de modo a se ter um comprimento suficiente do mesmo para se fazer as guardas do livro, foram feitos testes iniciais com um livreto encadernado através da mesma técnica empregada no “livro de cenas”.
O “livro de cenas” pronto.