traves sias
#2
julho
2016
O zine travessias Ê uma produção do Nonada - Jornalismo Travessia www.nonada.com.br nonada@nonada.com.br
editorial Há algo encantador no ato de contar histórias sobre outras pessoas. Trata-se de trilhar caminhos que vão além dos nossos, que são desconhecidos. Talvez a mágica surja exatamente nesse momento de troca, em que compartilhamos lembranças, quase como se realmente a vivenciássemos. Contar é também refletir sobre as próprias experiências. O Zine Travessias #2, então, faz exatamente isso: resgata trajetórias a partir das lembranças de outras pessoas, dando valor à memória - essa grande colcha de retalhos que une a todos. Ao fazer isso, fugimos da falsa objetividade jornalística, tão intrínseca nessa profissão. Mais importa para nós contar do que averiguar se o narrado realmente aconteceu de fato. Desse modo, temos cinco estilos diferentes de texto, que se aproximam e dialogam pela presença constante de um olhar humanizado. Aqui, você, caro leitor, vai encontrar um passado que é remontado a partir dos familiares de um homem com Doença de Alzheimer; a reconstituição do cotidiano de um mineiro na década de trinta a partir de pesquisa histórica e de relatos reais de quem viveu aquele momento; um passeio com o guardião de uma parte histórica de Porto Alegre; reflexões sobre poesia, oralidade e fragmentos da infância de um poeta; e o resgate da viola como um movimento contemporâneo de valorização da diversidade cultural no sul do Brasil. O papel continua sendo o melhor suporte para guardar histórias. Somente fixando a tinta no espaço até então em branco, o tempo começará a ser criado. O sensível traço da ilustradora Lídia Brancher ajuda nessa definição e impõe um caráter ainda mais artístico a esse Zine. Os perfis ganham vida e quase saltam da página. É preciso, caro leitor, perder-se em todos esses caminhos apresentados e diluir as suas lembranças e trajetórias com as que contamos aqui para, depois, contá-las para outras pessoas, do seu modo, da sua forma. E recontar em um eterno ciclo. Agradecemos a todos os nossos financiadores por tornarem a publicação desse Zine possível. Julho 2016, Nonada - Jornalismo Travessia
fiandeiras do passado Priscila Pasko Pode-se dizer que a memória do indivíduo é definida pelo conjunto das recordações que colecionou no decorrer da vida. Entretanto, uma pessoa também se constitui pelo papel que a ela é designado pelos outros. existir é também se reconhecer no olhar de alguém. é preciso apenas estar para ser, onde for.
Em função da doença de Alzheimer, Zelindo Gelati deixou de se reconhecer aos poucos. Levou dezessete anos para apagar as próprias pegadas. Foi tudo muito lento e sutil: desde a desconfiança de Rosa Ester Gelati e de Eli Gema Tomaz Gelati sobre as primeiras alterações de comportamento e a identificação da doença, seguida pela dificuldade de locomoção e, por fim, o esquecimento das pessoas mais próximas. Era o ano de 1999 quando a filha mais velha de Zelindo, Rosa, observou que o pai estava diferente. Os irmãos, Carlos e Jorge, e a mãe pensaram se tratar de mera implicância. No entanto, a alteração de humor no marido também já havia chamado a atenção da esposa Eli. “Fomos a um evento na igreja. Não sei o que estávamos conversando quando ele me respondeu mal. Estranhei, porque ele sempre foi maravilhoso comigo. Fiquei brava e fui para casa. Disse ao Zelindo que eu estava entendendo porque as pessoas se separavam depois de velhas. Briguei, discuti”. Foi então que Rosa compartilhou sua suspeita com Eli. A primeira consulta ao psicólogo exigiu paciência e certo poder de convencimento da parte de Rosa. Moradores do município de Esteio, o trio foi até Porto Alegre consultar um especialista. O esforço valera a pena. Era cedo para afirmar, restava aguardar o resultado dos exames, entre eles, ressonância magnética e muitas entrevistas. Mas o especialista já sabia: Zelindo estava com Alzheimer. Mãe e filha não tinham ideia no que consistia a doença, ainda pouco discutida na época. Sabiam que Zelindo perderia a memória, mas não desconfiaram que, futuramente, ele iria se desfazer das referências de higiene, ou que não distinguiria objetos corriqueiros da rotina. A resiliência que pontua o depoimento de Eli é sólida o suficiente para revelar que foi construída sobre um momento delicado. “É difícil, é
muito difícil, eu custei a aceitar. Às vezes eu brigava com ele, xingava. Depois pensava, ‘coitado, não tem culpa’”. Daquele momento em diante, as duas, mãe e filha, estudaram, leram, pesquisaram e, principalmente, se apoiaram. Nessa fase, Jorge e Carlos, moravam fora do Rio Grande do Sul. Um na Europa e outro em Santa Catarina, com suas respectivas famílias. Zelindo estava na defensiva, não aceitava a doença. Recusava os remédios. Talvez fosse difícil acreditar que a memória estivesse lhe colocando uma venda sobre os olhos. Logo ele, sempre tão ciente e lúcido de seus atos. Logo ele, profissional da contabilidade, professor de história e conhecedor de geografia. Ele que sabia de cor as capitais dos países mais longínquos. Onde se esconderiam, no futuro, números, cálculos e cidades? De qualquer modo, a família optou por adotar uma postura transparente, sem esconder de Zelindo e dos amigos a doença. Tanto que, quando lhe perguntavam se estava bem, o próprio dizia, “tudo certo, se não fosse esta porcaria do Alzheimer.” Em 2006, Rosa foi morar na Alemanha. Paralelamente a isso, a doença do pai avançava. Eli, que cuidava do marido em casa, entrou em depressão. Em 2009, Rosa retornou para Esteio e não encontrou a mesma pessoa que havia deixado: o pai estava mais quieto e centrado. Já era alguém que precisava ser cuidado. Perdera a iniciativa, como comer e tomar banho. “Ele passou a ser um bebê grande”, diz Rosa, contextualizando a comparação. “É muito diferente tu cuidar de uma criança e cuidar de um velho. Em uma criança, tu vê o progresso, tem alegria. Quando tu cuida de um doente, de uma pessoa idosa, é só ladeira abaixo.” ainda assim, a dupla exigia de zelindo. para cuidar de alguém nessas condições, esclarece rosa, a preguiça não pode ter vez. “eu dizia, ‘pai, tu tem que falar. a língua é um músculo, se tu não falar, vai esquecer as palavras’. ele não sabia totalmente quem a gente era, mas nós sabíamos quem ele era. ele não lembrava quem tinha sido, eu, sim. era o meu pai.”
Contudo, no decorrer do tempo, elas foram abrindo mão de tal rigor, e passaram a auxiliar o pai e marido nas ações básicas: o uso permanente de fraldas, a comida era servida devidamente picada e, mais adiante, entregue na boca. Apenas na fase mais crítica, em agosto de 2015, quando Zelindo precisou ser internado, motivado por uma infecção pulmonar, usou sonda. A complicação se deu por dificuldades de gerenciamento na mastigação e deglutição, problemas comuns aos pacientes de Alzheimer. Em meados de junho, cinco meses antes de morrer, Zelindo disse à esposa que queria casar. Pelo tom da conversa, Eli percebeu algo e perguntou: - Tu quer casar? - Sim, o que a senhora acha? - Quantos filhos quer ter? - Quatro. Mas antes preciso casar. Eli foi adiante e provocou: - Quem eu sou? - A senhora é minha mãe, respondeu Zelindo, rindo da obviedade. Daquele momento em diante, a figura da esposa, de 74 anos de idade, seria substituída pela da mãe. ”Assumi este papel. O que eu iria fazer? Contrariá-lo para quê?”, indaga a mulher, que viveu 54 anos de casamento. Os filhos, por sua vez, passaram a se chamar ngelo, o nome de um dos dez irmãos de Zelindo. Rosa, no entanto, conta que, de todas as pessoas, sabe que foi a última a ser esquecida. Apenas nos últimos meses de vida que o nome Rosa Ester, assim como ngelo, se tornou um substantivo próprio genérico. “Ele demorou muito pra esquecer da gente. Mesmo assim, eu percebia que meus irmãos sentiam uma dor quando não eram reconhecidos”, revela a irmã, destacando que, mesmo longe, Carlos e Jorge ligavam quase diariamente para conversar com o pai pelo Skype. “Acho que a mãe se acostumou mais rápido a não ser lembrada pelo pai”, diz Rosa. Para o psicanalista Jacques Lacan, diferentemente da primeira morte, a biológica, a segunda morte se daria na dimensão simbólica. Nela, haveria um apagamento do indivíduo, sendo sua memória negada. Isso poderia ocorrer tanto com a pessoa em vida como posteriormente. Mesmo que tal teoria não tenha sido discutida pela família Gelati, Eli criou a própria. “Acho que a pior coisa é perder a memória. É tão difícil conviver com a pessoa e ela não lembrar aquilo que fez, como foi e a gente saber disso. Ultimamente, ele não era mais a pessoa com a qual eu me tinha me casado.”
Quando relatam os dezessete anos de doença de Zelindo, o tom usado pela filha e esposa é sempre seguro, forte, pontuado por explicações embasadas. Fica claro para o ouvinte que as duas se negam a desempenhar o papel de injustiçadas. Se o Alzheimer não retrocederia, elas fariam o possível para estancar os efeitos da doença. A lágrima não cede e dá lugar à palavra, à ação. Com o avançar da doença, os cuidados básicos de higiene eram tomados por Eli. Neste momento, Rosa, que acompanhava a entrevista para este texto que o leitor tem em mãos, interrompe a conversa: - Quando ele estava doente, já no final, quando tu trocava a fralda dele, lembrava que o pai era o teu marido, mãe? - Claro, Rosa. - Não. Pergunto se a tua memória lembrava de quando ele era o teu homem. - Sim, Rosa. Como eu iria esquecer? - O filho que ele se tornou, não se sobrepôs ao marido que ele foi? - Como eu poderia esquecer disso? Para mim ele foi sempre bom. a alteridade entre o presente e o passado no relato da filha e da mãe criam um terceiro tempo verbal. seja o tempo do luto, da saudade ou da ausência, zelindo é e era; faz e fazia; está e estava.
Espécie de moiras às avessas, irmãs da mitologia grega responsáveis em ditar o destino de deuses e seres humanos, Rosa e Eli tiveram que aprender a construir o passado de Zelindo, que insistia em se desfazer. Sabiam que fiavam linhas frágeis que logo se romperiam, mas isso pouco importava, para elas, era preciso costurar. Em 2013, quando estavam em sua residência, em Esteio, Zelindo perguntou por que a família não voltava para casa logo: - Pai, se lembra? Esta casa o senhor comprou, era de madeira. Vamos ali fora olhar. - Os donos desta casa não vão vir? Quanto eles estão cobrando para ficarmos aqui? - Foi o senhor que construiu esta casa, pai, foi seu trabalho.
Rosa lembra que foi um exercício imenso, “às vezes levava meia hora para dar três passos”. O pai parecia concordar. “Tu sabe que ele não está lembrando, mas, pelo menos, se acalma, pois pensa não estar na casa dele. Se alguma coisa precisa ser dita para as pessoas que cuidam de doentes com Alzheimer é: não tenha preguiça”, ressalta Rosa. O contato com o drama alheio faz o indivíduo visitar os próprios fantasmas. Desta forma, seria aceitável que Rosa manifestasse o receio de desenvolver o Alzheimer. Perguntou aos médicos se ela e os irmãos correriam tal risco. Queria saber como se prevenir, se haveria algum remédio que pudesse usar. O especialista disse que a questão ainda não é comprovadamente genética. Dos dez irmãos, Zelindo foi o único que teve Alzheimer, por exemplo. “Eu digo que o Alzheimer é pior que câncer. É um vampiro, parece que ele tira a alma da pessoa e as suas referências”. às vezes, quando rosa não consegue lembrar de algo, ela força, força, força para recordar, sente medo. mas, no fundo, acredita que todos têm esses lapsos de memória.
Enquanto isso, ela cria sua “reserva”: estuda, lê em outra língua, usa o mouse com a mão esquerda, joga xadrez, muda a rota para ir ao trabalho ou à sua casa. Após sair do hospital, em setembro de 2015, Zelindo ficou em uma clínica para idosos. Os cuidados que ele exigia se sobrepunham às oferecidas por Rosa e Eli. Ele não se erguia sozinho e precisava de atenção contínua. Recebia a visita da filha e esposa quase diariamente, que percebiam sua evolução e bem-estar. Até que em uma madrugada de novembro, a enfermeira de plantão viu, pelo monitor da clínica, Zelindo se levantar da cama sem ajuda. Foi até o seu quarto. O paciente dizia que queria tomar café porque iria embora naquele dia. A enfermeira o acalmou, dizendo que mais tarde o ajudaria. Às seis e meia da manhã, durante a ronda, Zelindo, de 78 anos de idade, havia morrido. Foi em uma das primeiras manhãs frias de outono de 2016 que Eli e Rosa recriaram, durante esta entrevista, não apenas o passado do marido e do pai, mas o próprio. Em nenhum momento se colocaram no lugar de vítimas, apesar de sofrerem consequências nem tão sutis do destino. Pelo contrário, se dizem pessoas de sorte pelo pai ter sofrido tão pouco, sorte por terem pessoas tão cuidadosas e competentes ao seu lado, sorte por saberem ter dado o seu melhor. Moiras às avessas, elas tecem com os fios das próprias lembranças e vivências a memória. E costuram, costuram, costuram sem parar.
josué, o mineiro que se agigantou Rafael Gloria Josué era baixinho. Quando tinha quinze anos de idade parecia ter muito menos. E quando você tem muito menos que os outros, sempre deseja muito mais. Especialmente para ele, crescendo em uma cidadezinha que não lhe dava nenhuma oportunidade no interior do Rio Grande do Sul no início da década de 30. Os outros ainda tiravam sarro porque além de ser baixinho era corpulento. Foi por essa época que ganhou o apelido de “tronco”. Mas a troça ficava por aí. Como não tinha muitas oportunidades, com o passar dos anos acabou tendo o mesmo destino do pai, trabalhando como agricultor, ajudando na lida da roça. Foi ganhando força, foi ganhando vontade, foi ganhando consciência do que poderia fazer. Mas o campo oferecia pouco e não demorou a oferecer nada. Em uma época de estruturação do capitalismo no Brasil, na primeira Era Vargas, a indústria do campo também acabou se modernizando, equipando-se com maquinários, e necessitando cada vez menos de mão de obra. Mas Josué nem sabia nada disso. Como consequência de algo muito maior que ele, acabou sem trabalho na agricultura e sem perspectiva. E o primeiro filho estava por vir. Finalmente tinha conseguido casar depois de trocar muitos olhares com a vizinha por quem tinha um carinho especial desde que eram crianças. Quando via Elenara, sentia que queimava por dentro. Não sabia explicar muito bem o que era esse sentimento, mas estava lá. Foi em um desses bailes antigos da comunidade de sua cidade natal onde acabou finalmente tendo a oportunidade da dança. E depois todo o resto veio de um modo rápido e muito natural. Como fora antes com o seu pai e o seu avô. Parecia certo: ambos se assemelhavam muito. Além de serem baixinhos, almejavam outro tipo de vida, queriam sair daquele “fim de mundo”. Não teriam futuro lá, muito menos o filho João que já se exibia em uma crescente barriga de cinco meses. Era para nascer em dezembro, e a mente dos dois já começava a fervilhar, pensando se deveriam ou não viajar para Porto Alegre. Josué ouviu boatos de operário que ganhava até 11 mil réis pela
diária nas Indústrias Renner. Imagina, ganhar tudo isso por mês. Era outro mundo. Era o que eles precisavam. Mas foi Elenara que chegou com a grande novidade em casa depois de voltar de uma ida rápida à venda local. Um grupo de três pessoas havia montado uma barraca improvisada no centro da praça e divulgavam o que parecia ser a solução do problema: um trabalho que pagava 14 mil réis pela diária. Mais que em Porto Alegre! O trabalho, ela até não entendera muito bem, porém a possibilidade de mudar de vida tomou o seu corpo e fez as suas pernas correrem de volta para Josué, cujas pernas também se empolgaram com a notícia e o levaram ao encontro do grupo no centro da praça. A conversa foi promissora, até que rápida, porque ele tinha exatamente o perfil que eles buscavam para o trabalho. Seus 1,63 m compensaram. O que se sucedeu também foi rápido, dentro de alguns dias tomavam o caminho para a nova comunidade, uma tal de São Jerônimo, que prosperava graças ao carvão. A situação mudaria, eles pensavam, a promessa era de moradia, alimentação, assistência médica e religiosa, lazer e créditos pela empresa carbonífera. Tudo isso para ficar debaixo da terra. No subterrâneo O espaço é pequeno. O túnel que liga as galerias em uma mina é muito estreito, quase não cabe uma pessoa. É preciso percorrer vários quilômetros em linha reta, muitas vezes em plena escuridão. E o calor. Ah, o calor. E ainda as pedras encravando na pele, deixando tudo um pouco mais sofrido. Ser mineiro não é fácil, mas Josué segue na labuta diariamente, com pressão de todos os lados. A família agora aumentou, depois do João, veio o Matheus e tem mais um na barriga. Tomara que seja menina, ele pensa. Bem que podia ser menina, ele fala, enquanto conversa com o colega, em uma das poucas folgas. A rotina não é nada animadora, já sente as contas na venda acumulando. O alto salário era rapidamente descontado pela cooperativa mantida pela empresa de carvão. No fim, a promessa não se cumpria. O sistema era quase que fechado, viviam em uma vila isolada, com a empresa fornecendo habitação, alimentação e todo o resto. Um sistema sem abertura para sair.
Em 1936, ser mineiro é não ter certeza de nada. Elenara em casa se prende em rezar para Santa Bárbara, a padroeira universal da profissão. já são três anos trabalhando seguido, os pulmões começam a complicar. o medo da bronquite é estridente. todo dia o beijo de despedida, que termina sempre com a promessa de proteção da santa, como se o embalasse em um invólucro composto por prece.
Josué aprendeu com os mais velhos que só há duas garantias quando se está lá embaixo. A primeira é analisar o ambiente, normalmente o local era tomado de ratos gigantes, que roubavam a comida dos mineiros. Com o tempo, entretanto, acabavam se acostumando, e as espécies faziam companhia uma à outra. O segredo era ficar atento ao movimento das inúmeras baratas: elas acabavam tomando conta dos prumos de madeira que seguravam a galeria. Se corressem e se espalhassem desordenadas, era sinal de uma possível enchente ou desmoronamento. Já tinha acontecido algumas vezes com colegas. Com Josué ainda não. Nenhum acidente nesse tempo de trabalho embaixo da terra. Reza boa, diziam. A segunda garantia era a cumplicidade, a parceria entre os mineiros, porque todos dependiam um do outro, caso acontecesse algum problema. Eles dividiam até uma espécie de trote de iniciação para os novos que chegavam para trabalhar. Aplicavam brincadeiras, davam apelidos e realmente azucrinavam os camaradas. Uma válvula de escape para não se perder na escuridão. Josué ainda se lembra da pegadinha que fizeram quando apareceu pela primeira vez para trabalhar na mina. Estava meio perdido e ainda se adaptando. Sempre fora um agricultor, acostumado a trabalhar no campo, a respeitar os caminhos da natureza. Sentiu um baque quando teve que descer a uma galeria pela primeira vez. A escuridão, a falta de noção do tempo. Logo nesse primeiro dia, já chegaram o intimando a pegar uma “lebreira”. Mas o que era uma lebreira? Aprendeu da pior forma: tratava-se de uma caixa com roda que transportava carvão com rolamento, corria de modo muito danado. Os colegas pregaram uma peça justamente no medo de todo o conteúdo da lebreira cair sob as suas cabeças. Ficou brabo de início, mas entendeu o espírito e rapidamente foi se adaptando. Nada conseguia ser melhor do que o fim do turno puxado. Quando conseguia voltar para casa, tirava o habitual boné de couro da cabeça e abandonava aquele ar carregado de carvão das minas. Tinha um pouco
de lazer com um ocasional baile local, ou as partidas de futebol no fim de semana, mas as preocupações...essas nunca cessavam. A dívida com a cooperativa só aumentava e ele não via outra possibilidade a não ser fazer horas extras. Produzir mais carvão para ganhar mais. Procissão de cinzas Por volta das quatro horas da tarde do dia 10 de setembro todos os mineiros foram saindo pouco a pouco das galerias, parando o trabalho. tal como uma procissão, eles marchavam de modo lento. as velhas roupas espalhavam cinzas e restos de carvão por onde passavam deixando um rastro. quietos, desanimados, incomodados. de repente, na pequena multidão, aponta um corpo desfigurado. rle é carregado por vários braços. não importa de quem. todos são mineiros. todos mortos naquele momento.
Agora não tem patrão para mandar continuar o trabalho, não tem apito para comandar o horário da mina. Josué vê toda a cena, chegara há pouco tempo no local. Se dá conta de que poderia ser ele a ser carregado pelos camaradas e tenta se informar de todo modo para saber o que aconteceu. Esbarrou em um conhecido mais revoltado que cabisbaixo, cumprimentou o companheiro e foi logo perguntando o ocorrido. Afrânio, o tal colega, relatou gesticulando de modo alterado o acidente fatal. Segundo ele, o falecido estava em um turno direto de 24 horas e já não tinha mais os mesmos sentidos. O mineiro trabalhava em uma galeria de saída de ar, no fundo da mina, e acabou tendo parte do corpo desfigurado por um tronco de madeira forte, usado para manter as estruturas. Parece que agonizou por um tempo, até morrer de verdade. Ser mineiro é ter a morte como companhia, não podia se esquecer disso. E Josué já sabia o procedimento. Quando acontecia algum desastre, os mineiros decretavam feriado. Enquanto o companheiro não
fosse sepultado, as atividades não eram retomadas. Era a única maneira de chamar a atenção dos patrões: parar a produção. Acabou voltando para casa e encontrou uma Elenara ainda mais aflita do que o normal. Explicou rapidamente o que aconteceu, sem dar mais detalhes para não enjoar a esposa. Mas a figura do corpo ensanguentando não saía da sua cabeça. Em breve, seria ele também fazendo turno de 24 horas sem sair da mina para ganhar mais dinheiro e poder pagar os gastos com a cooperativa. O sangue no chão do companheiro também lhe pertencia, assim como as cinzas espalhadas pela procissão e a fome dos filhos. O que poderia fazer? Deveria continuar trabalhando em um esquema desse tipo? Não poderia sair agora, já devia muito. Começava a se dar a real conta da situação. A vila dos operários, também mantida pela empresa, não era grande coisa. Várias casinhas iguais, de madeira, uma pequena área...Uma ilusão de liberdade. Uma prisão, um cativeiro, uma dívida crescente e eterna. Onde ele foi se meter? Não conseguiu ficar parado em casa, sabia que precisava estar com os outros mineiros. Precisava correr de volta, correr por mais possibilidades. Chegando lá percebeu um grande grupo que começava a se reunir. Alguns gritavam palavras de protesto. Os acidentes não poderiam continuar, alguma coisa deveria ser feita. a sensação era a mesma e tomava a massa de mineiros. uma sensação de medo, uma sensação de insegurança mas também uma sensação cheia de vontades, antes abafadas. agora elas saíam pela boca, tímidas, ou altas, em bom som. conversavam e se articulavam. juntos tentavam pensar melhor.
Se eles davam a possibilidade de extrair energia para os outros usufruírem, por que eles não poderiam usufruir um pouco disso também? Esse pensamento passava pela cabeça do baixinho Josué e o estimulou a subir em um pequeno palanque improvisado formado por uma grande pedra. Começava a se agigantar em seu discurso. Descobria que tinha voz. Cada vez mais, cada vez maior, suas palavras eram escutadas e seguidas por um silêncio pequeno seguido de gritos de apoio. Sim, se ninguém nos escuta, eles vão ter que sentir. Se ninguém se importa, que saibam que nos importamos. Sim, era preciso lutar. É preciso lutar.
os encarregados de lembrar Julia Dantas Seu Paulinho atravessa o quintal do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo devagar, em direção a um amontoado de pitangueiras. A grama está alta, ele reclama, cresce muito rápido nesses dias de chuva e o DMLU não dá conta de cortá-la mais que duas vezes por mês. Fala e continua caminhando para as árvores, parece que não sabe aonde vai, mas quando alcança os primeiros ramos, estende o braço direito e, como quem abre uma passagem secreta, revela o velho bonde amarelo escondido atrás das plantas e (pouco) protegido por uma estrutura de madeira que, assim como o bonde, já viveu dias melhores. O porteiro do museu vira para trás, tu não pegou os bondes, né?, e vai se metendo entre as árvores, lamentando a deterioração da carcaça de metal. Aquela época era boa, ele continua, a gente nem pagava a passagem, era só sair pela porta de trás porque ia bem devagarinho. O bonde já esteve exposto no pátio do museu, perto de onde hoje está uma escultura de bronze feita por Vasco Prado (Égua bebendo água fica, apropriadamente, dentro da fonte). Ao mesmo tempo que seu Paulinho lamenta a remoção do bonde, ele reconhece que as visitas diárias de estudantes vinham prejudicando o veículo: as crianças entravam, pulavam, não sabiam cuidar, ele repreende. A infância não é mais como antigamente. O museu é destino comum entre as escolas da região metropolitana. O horário oficial de abertura é às nove, mas desde às sete e meia, seu Paulinho, ou Bernardino Paulo da Rosa Bernardes, está no prédio. Vem do morro Santa Tereza, faz café assim que chega – às vezes traz um bolinho – e abre as portas da memória da cidade. Não é de falar de si mesmo. A muito custo, arranca-se dele apenas que já é bisavô, o que seria bastante difícil de acreditar não fossem os cabelos inteiramente brancos. Começou a trabalhar no museu como porteiro vinte e três anos atrás. Conhecer o lugar com o tur particular de quem viu o museu se mudar ao solar da rua João Alfredo significa escutar um longo histórico do itinerário percorrido pelos departamentos entre as salas do prédio. A fototeca já esteve aqui, depois ali e agora está lá no canto. A biblioteca já esteve ali em cima, passou por aqui e agora está pra cá. O térreo já
foi senzala, já teve música, agora é da arqueologia. O auditório também já teve suas andanças até estacionar às costas da construção principal, onde hoje recebe reuniões de diversas secretarias municipais. Enquanto preserva o passado, a história do Museu vai se transformando a cada novo governo. Parte da equipe são cargos de confiança da prefeitura o que resulta em uma troca de gestão a cada quatro anos. Seu Paulinho acompanha com a saudável desconfiança pelas atuações políticas. Eles sempre mudam tudo, conta, têm que mostrar serviço. E assim se transformam os espaços e as programações culturais. As mais de duas décadas dentro de um órgão público devem ter contribuído com o discurso diplomático de seu Paulinho. Todos os anos foram bons, ele garante, enfático, subindo as escadas para o primeiro andar, e bastam os poucos passos até a sala de acervo para que conte como detestava o emprego no início. Quando a portaria ficava nesse andar, ele relembra, eu precisava ficar sentado em uma mesa enorme que ficava bem aqui ó, e eu não gostava de ficar parado. O problema se resolveu depois que a entrada usada pelos funcionários passou para o térreo, deixando seu Paulinho, ele declara faceiro, livre para voar. Se hoje ele gosta do trabalho? Acostumou. E comemora a boa companhia dos atuais colegas. Talvez como fuga das perguntas pessoais, seu Paulinho conduz à escada que leva ao torreão, hoje fechado aos visitantes. lá em cima, a salinha tem todas as paredes cobertas por pilhas de caixas de papelão. bem no centro, ainda resta o suporte de uma luneta, que já não está mais lá. daqui lopo gonçalves costumava olhar os barcos, ele diz, e a frase parece um embuste quando da janela para fora há apenas pavimento e cidade.
Mas até 1956, o Guaíba adentrava o bairro até poucos metros do antigo solar. As fotos do acervo mostram o rio onde hoje está a Borges de Medeiros. Se não soubéssemos da criação do aterro, poderíamos tomá-las por montagens.
As fotos são verdadeiras, mas registram apenas as grandes mudanças do ambiente. Às vezes mais marcantes são as pequenas perdas do cotidiano. Quando sai para o pequeno átrio a céu aberto do museu, a voz do porteiro ganha melancolia. Aqui tinha um jardim, ele diz e depois sacode a cabeça completando resoluto: melhor assim, com o calçamento, fica mais limpo, fazem evento aqui também. Mas pelo menos mais três vezes, sempre que sai do prédio ou se aproxima da janela, seu Paulinho baixa de novo a voz e comenta, em tom de novidade, aqui tinha um jardim, como se pudesse resgatá-lo. Coisa parecida acontece quando fala da pracinha infantil que existiu onde hoje é o estacionamento para os funcionários. Ele estende os braços em direção ao vazio, pedindo um pouco de imaginação para quem olha, quem sabe ainda é possível enxergar os balanços? Seu Paulinho fala de histórias e acontecimentos, mas quando é para contar do que sente falta dos outros tempos, desconversa. Fica mais à vontade falando do concreto. Na sala 2, por ora interditada por estragos da chuva, uma fileira de antigos rádios de válvula aguarda a restauração do telhado. Além dessa pequena coleção de objetos antigos, há um grande depósito de velhas máquinas nos fundos do terreno, onde nem mesmo seu Paulinho costuma entrar. Ele lembra das de costura, as de escrever, diversos aparelhos que foram retirados das salas de exposição quando o museu deixou de ser uma casa de antiguidades para se transformar em memorial da cidade. Orgulhoso, mostra as paredes de estuque – um quadro deixa à mostra as camadas de barro e folhas de palma –, bate com os nós dos dedos na janela, olha o peso disso aqui, hoje em dia não tem mais janela desse jeito, bah, não tem nem mais madeira desse jeito, tudo pega cupim. Não se fazem mais casas como antigamente. Ele aponta para o tamanho da porta, que parece grande até mesmo nesse edifício de alto pé direito. Debruçado à janela que dá para a rua João Alfredo, ele mostra a magnólia, “uma árvore tão antiga quanto a casa”, cuja copa passa da altura do segundo andar. puxar o fio da memória de seu paulinho é um desafio. ele resiste, e é necessário descartar a primeira informação, deixar que se crie um momento de silêncio, para então ver as lembranças virem à tona.
Primeiro ele dirá que o bairro está igual a sempre, olha ali as casinhas preservadas. Depois ficará quieto, sem constrangimento no silêncio. Enfim, ele se contradiz: é, tudo mudou muito nesses anos. *** Ao longo da visita é impossível para mim não lembrar da batalha da minha mãe, junto a outros muitos moradores do bairro Petrópolis, para salvar da demolição uma antiga caixa d’água, sem uso há décadas. É apenas uma torre em uma pracinha, uma batata quente jogada entre os escritórios da SMAM, do DMAE e do IPHAN. Sem serventia alguma, era difícil argumentar em favor da permanência da estrutura. Foi preciso ir atrás de urbanistas e arquitetos para aprender termos como paisagem afetiva, entender o significado de patrimônio imaterial. Apenas sonhadores se dão o trabalho de tentar frear os avanços do todo-poderoso progresso. Não saberia dizer quantas assinaturas em abaixo-assinados e quantos trâmites burocráticos foram necessários até que os moradores ganhassem o direito de preservar a caixa d’água, aquele pedacinho de memória. agora, enquanto tento pescar as lembranças de seu paulinho, penso que seus suspiros pelo jardim, assim como as panfletagens de minha mãe, assim como a própria existência desse museu são todas vozes de um mesmo coro que tenta nos bater no ombro e dizer ei, isso aqui é importante: não podemos mais fazer progresso como antigamente.
*** Seu Paulinho e eu estamos conversando no pátio quando se aproxima uma turma de estudantes de um colégio municipal de Canoas. Serei honesta: ele já tentou me mandar embora duas vezes. Primeiro quando saímos ao átrio – aquele, onde tinha um jardim –, ele acendeu um cigarro e disse é isso que eu posso contar, mas eu já tinha aprendido que o silêncio logo o faria continuar; depois, quando voltávamos do bonde abandonado, ele dando às
pitangueiras a nova classificação botânica de inço, e me disse que o resto está aí dentro, menina. Poderíamos considerar até três vezes, se contarmos o primeiro dia de visita em que ele só me deu papo porque veio a chuva e ficamos os dois rindo dos bobos que fogem da água. Mas hoje é quarta-feira e estamos muito ocupados a nos impressionar com o tamanho do terreno do museu. Tal qual as portas e janelas, já não se fazem mais terrenos como antigamente. Hoje seria um prédio grande, ele diz, e eu só posso concordar. Um shopping, talvez. Aqui tem até abacate, ele me mostra, ressaltando essa incompatibilidade evidente que existe entre shoppings e abacateiros. Os colegiais atravessam o portão, chegam perto do museu e sei que nosso tempo está acabando, agora de verdade. é apenas natural para um porteiro, mas ele explica sua despedida mesmo assim: preciso abrir a porta.
Não deixa de ser estranho para quem antes tentava me despachar que agora se justifique. Talvez tenha se abatido sobre ele a mesma tristeza que caiu em mim enquanto lamentávamos os troncos das árvores caídas que ainda se espalham pelas laterais do terreno, essas lembranças deixadas pelo temporal que, no último janeiro, arrasou parques e casas da cidade (as fotografias da devastação figurarão em alguma fototeca do futuro?). Ali já vem os alunos, só me resta agradecer o tempo do seu Paulinho. Como a tudo o mais, ele não dá muita bola e sai caminhando. Já está quase dentro da recepção quando diz espera!, e volta me estendendo a mão, com cara de quem quer agradar. Olha o tamanho dessa chave, e a chave gigante de metal pesado parece mesmo um brinquedo exagerado. A turma de estudantes já o espera à porta do primeiro andar. Os adolescentes falam sobre os jesuítas, as missões, esse passado que não cabe em museus. É quase meio dia, e eu vou embora a pé, observando as lojas da José do Patrocínio onde se poderia gastar uma vida inteira tentando descobrir onde reside a linha que separa as antiguidades das velharias. Chego em casa e abro a porta do edifício com um dispositivo de plástico muito moderno que devo segurar perto de um sensor eletrônico para então liberar a porta imantada. Um dispositivo moderno é o melhor que posso chamá-lo. Não se fazem mais chaves nem como na década passada, que dirá como antigamente.
nesse cantar dos versos eu te digo quem sou Giulia Barão Ofício de poeta é fazer contato. Ponte, abraço, laço. Entre uma palavra e outra, entre a melodia e o silêncio, entre a eloquência da língua e a mudez do afeto, entre o que machuca e o que conserta, entre o que a gente lembra e o que precisa de esquecimento. Ofício de poeta é salvar as pessoas do que as mantêm separadas. Elizeu Braga atravessou o país de Porto Velho a Porto Alegre, a convite da FestiPoa Literária, realizada de 18 a 22 de maio deste ano, mas distendeu a presença até o dia 30 — por sorte nossa. A primeira vez que o vi foi entoando cantiga e dizendo poema em uma das confraternizações da FestiPoa, na Casa Frasca. “Nesse cantar dos versos eu te digo quem sou: Manoa/ Sou como uma sucuri na proa de uma canoa” ele cantou, depois cantamos todos, e no resto da semana, onde quer que eu encontrasse um amigo que havia ido à festa, nos cumprimentávamos com este canto em substituição ao insosso “Oi, tudo bem”. Depois o reencontrei mais três vezes — caminhamos pelas ruas da Cidade Baixa e do Bom Fim, passamos duas tardes na Ocupa IE e na vivência atenta de cada instante do trajeto, Elizeu evocava fragmentos de memória — de lá, do Rio Madeira, da infância, da sua avó Raimunda, da Arigóca, das benzedeiras, da poesia cotidiana. escutei como uma amiga, de sentidos atentos ao peso de cada frase, de caso pensado sem anotar nem gravar nenhuma palavra sua. porque eu já sabia: voz de quem canta poesia ecoa para sempre na memória.
Aqui estão fragmentos, partículas de afeto e lembrança — as dele, através das minhas, para que, no exercício da leitura, a travessia continue.
Tacoã Na beira do rio, e não de qualquer rio, o rio Madeira, segundo maior afluente do Amazonas: ali nasceu Elizeu. A comunidade de Tacoã foi fundada por ex-seringueiros nordestinos que, com o fim do ciclo da borracha, tiveram que encontrar novas formas de sustento. pescadores, lavadeiras, benzedeiras, cantadores: elizeu cresceu ouvindo essas “pessoas que fazem poesia de alto nível sem reivindicar nada por isso”.
Sua parte preferida do dia era o fim de tarde quando, ao voltar para casa, encontrava homens e mulheres reunidos em roda, trocando versos. Tendo cruzado o oceano, com raízes nos trovadores ibéricos, a poesia oral vivificou-se no Nordeste do Brasil, ganhando métrica e nomes próprios, e chegou até o Norte, onde “parece ter completado seu ciclo” — pois as comunidades do baixo Madeira preservam o canto em estado bruto, ritmos fluidos e reconhecíveis, mas ainda alheios à forma escrita. Além do canto, a mata. Elizeu lembra de parar à beira da floresta e pedir licença para entrar — cada dia tentava ir um pouco mais longe, procurando em folhagens, troncos e marcas, as árvores pelas quais já tinha passado. Era de se esperar que esse estímulo fizesse dele mais um cantador amazônico, mais um poeta beradero, mas uma tragédia familiar interrompeu o curso natural da poesia. A partir daí, ele e seus outros seis irmãos (quatro meninas e dois meninos) foram separados entre as casas de parentes. Elizeu foi morar em Porto Velho, aos cuidados da tia-avó, Joana.
Porto Velho Joana tinha sido casada com um coronel, que lhe tratava praticamente como escrava. Mal podia sair de casa, e ali tinha que cumprir todos os trabalhos domésticos e ainda sofrer com a violência do marido, (de onde essas mulheres tiram força para manter a doçura, Elizeu, de onde?). Joana lhe dava tapioca para levar de lanche na escola. Mas ele jogava fora assim que virava a esquina, a partir do momento em que decidiu não ser mais um menino de Tacoã. É que um dia perguntaram em aula onde cada criança tinha nascido, e riram dele, que vinha da beira do rio, do baixo madeira, que era índio, que comia comida de índio. então é isso que a cidade faz com a gente. a cidade ensina que a gente tem que ser igual a todo mundo e, por um bom tempo, foi isso que elizeu tentou ser.
Acontece que Joana insistia, contava as histórias orais da Amazônia, cozinhava os pratos típicos das comunidades ribeiras, mantinha acesa em casa a ligação do menino com sua origem. Seu Zé Ferreira também teve parte importante nisso. Além de cantador, poeta, repentista, ele foi conselheiro de Elizeu no exercício da escuta e da criação poética. Elizeu conta que seu processo criativo não depende da mão e da caneta, mas dos ouvidos e da garganta. Cada poema é composto mentalmente, depois em voz alta. Um verso se soma ao outro até ficar pronta a melodia, memorizada. O livro Mormaço (lançado em abril de 2016) foi uma consequência do seu trabalho poético dos últimos anos que o levou, por exemplo, a ser convidado a representar Rondônia na Balada Literária (SP) de 2015.
Consequência, não necessidade. Dá gosto ter nas mãos os poemas — acompanhados de xilogravuras e envoltos pela capa artesanal de papelão —, mas não é a mesma coisa que escutá-los na voz de Elizeu. Porque ele sabe e é isso que nos transmite: a poesia que está fora dos livros é a que mais importa. Aqui um poeta que não nega o ofício. Não como aqueles que têm o nome estampado em manuais de literatura, mas como os poucos que vivem para a poesia integralmente. O que ele não sabe ao certo foi quando se deu conta disso, mas afirma com o preto dos olhos brilhando d’água: “a poesia foi a forma de pedir perdão àquele menino que eu quase matei”. o resgate da criança escondida no adulto, da delicadeza subjugada pelo silêncio amargo, da memória ribeirinha disfarçada no caos urbano. graças à poesia, elizeu conseguiu voltar para casa, trazendo consigo o que já era seu mas estava em silêncio.
A poesia que ele canta porque precisa, mas também a que ele escuta, coleta, registra, compartilha porque o mundo precisa. Atualmente, ele colabora com projetos sobre poesia oral na região amazonense, compõe a companhia de teatro Beradera e faz viver a Arigóca, casa de leitura em Porto Velho, criada em 2013, um espaço que acolhe oficinas, saraus, residências, rodas de poesia, e o que mais surgir dos encontros.
Porto Alegre O encontro de Elizeu com nossa cidade criou uma teia de pontes que nesse momento atravessam o país de Sul a Norte. Talvez a mais concreta seja aquela que une o seu ativismo político em Rondônia com o movimento de ocupação das escolas em Porto Alegre. Com a orientação de Elizeu, e em parceria com o poeta gaúcho Nícolas Nardi, os alunos da Ocupa IE produziram um livro de poemas, fotografias, manifestos, letras de música — em que expressam o sentido político e social das ocupações e as suas reivindicações por uma educação pública de qualidade. Outra ponte conecta as ruas do Bom Fim à proa de uma canoa. Há aquelas entre as paredes acústicas do IE e as paredes de tecido da Arigóca; o pôr do sol do Guaíba e o entardecer no Rio Madeira; o chimarrão e a tapioca. E outra ainda conecta minha avó Havany à vó de Elizeu, Raimunda. Ele pediu, então gravei: um poema escrito há alguns anos quando meu avô faleceu e a vó se sentiu abandonada. Pois a gente percebeu uma coisa bonita: ser avó é um modo de preservar a infância. Nessa ponte entre o começo e o fim da vida há quanto de poesia? Quanto da criança Elizeu está nos olhos de Raimunda? E quanto do seu cantar vem das histórias que ela ainda conta? Nesse exato instante em que escrevo, é provável que Elizeu já tenha feito o trajeto de barco que separa Porto Velho e Tacoã. É provável que já tenha abraçado a vó e dito a ela que tem um outro porto marcado em seu mapa de retorno. É provável que já tenha colocado para tocar o poema de minha vó para a sua. é provável que neste exato momento a poesia esteja salvando alguma coisa.
Com certeza, eu diria, aquilo que liga Porto Velho a Porto Alegre, Havany a Raimunda, Elizeu a cada um que ouviu seu canto.
o desaparecimento meridional da viola e seu retorno no século da diversidade cultural João Vicente Ribas A gaita matou a viola O fósforo o isqueiro A bombacha o chiripá A moda o uso campeiro (domínio público)
A viola é um instrumento tradicional do Rio Grande do Sul. Ao menos costumava ser, até o século XIX. Acreditase que a chegada da gaita (acordeon) pela mão dos imigrantes europeus tenha tomado o protagonismo deste instrumento de cordas nos bailes interior afora. Quase desapareceu. É notório. Quando selecionamos os acessórios que configuram nossa identidade gaúcha nas últimas décadas, tendemos a incluir gaita e violão. Às vezes, agregamos outros instrumentos de percussão, cordas ou sopro. Esquecemos da viola. Em palco de festival nativista não se ouve. Será por que ela ficou estigmatizada como coisa de caipira? No século XX, o compositor gaúcho Radamés Gnattali fez uma homenagem ao instrumento: “Estudo no. 5”. Seria na lógica de homenagear alguém por ter morrido? Na partitura, indicava afinação de viola para ser executada ao violão. Paulo Inda, violonista porto-alegrense, gravou a peça em 2014 no CD Gnattali, em homenagem póstuma ao compositor. Então velamos também por ela?
Se na história recente, a viola foi preterida na parte meridional do Brasil, vamos contar aqui esta trajetória, mas também celebrar o resgate empreendido hoje por alguns músicos gaúchos. A homenagem do violonista Inda é bem-vinda. Mas têm outros tocando viola mesmo. Um deles é Angelo Primon, que domina diversos instrumentos, incluindo a dita cuja de dez cordas. Para ele, o que talvez ajude a explicar o desaparecimento, nos idos tempos do século XIX, foi a questão técnica de que a viola acabava por se desarranjar, ora em função do clima sulino, ora em função de sua própria construção e artesania precários. Seria este argumento suficiente? Se não, o instrumentista também concorda com a tese de que as imigrações alemãs e italianas acabaram por eliminar a viola dos bailes. Primon explica que o acordeon, “por possuir volume mais alto, alta capacidade de conservação, pouco a pouco foi fazendo com que a viola ficasse circunscrita aos ternos de reis açorianos, algumas manifestações religiosas, até chegar praticamente ao desuso”. Certa vez, o folclorista Paixão Côrtes fotografou uma viola que pertenceu a uma família tradicional de tropeiros do interior sul-riograndense. “Paixão a descreve como um instrumento muito antigo, sem condições de restauro para performance e que possuía um cravelhal de doze cordas”, recorda Primon. Este teria sido o mesmo instrumento que chegou às mãos do mineiro Roberto Corrêa que, em pesquisa na UnB, observou a distribuição das cordas: duas ordens triplas e três ordens de cordas duplas. Este tipo de encordoamento era característico das Violas de Queluz, normalmente confeccionadas na antiga cidade de Conselheiro Lafaiete (MG), rota dos tropeiros que cruzavam as fronteiras internas do Brasil. Roberto Corrêa recuperou a origem da viola, em Portugal, e suas modificações quando chegou à América. Substituindo as cordas de tripa, no século XVIII, ficou comum no Brasil a viola de arame, com cordas metálicas. Dependendo do contexto cultural regional em que ela se inseria, ganhava outras denominações, como viola de fandango ou de cantoria. No Sul, em 1912, João Cezimbra Jacques escreveu que a poesia popular teria começado a definhar “com o injusto
abandono da viola, da qual tivemos exímios tocadores”. O motivo do desaparecimento, seria a invasão de outros instrumentos e a péssima qualidade das cordas de arame próprias, que não resistiam à afinação e se partiam. Além destes argumentos, Roberto Corrêa também traz a questão da identidade caipira, associada fortemente à viola e cercada de preconceito, o que também pode ter contribuído para a exclusão do instrumento do arcabouço representativo da cultura gaúcha. Aos poucos se admitiu adjetivá-la de viola campeira. O professor do Conservatório de Música da UFPel, Márcio de Souza, reconstituindo a terminologia, afirma que o nome viola caipira começou a ser usado durante os anos de 1920, quando uma primeira onda sertaneja se espalhou pelo país. Assim, o termo viola campeira seria mais recente. “Parece uma tentativa de diferenciá-la da viola caipira de São Paulo e Minas”, afirma. Sobre o caso do seu desaparecimento, Souza considera que sim, ao final do século XIX, a cultura da viola “praticamente estava extinta” no meio urbano. Mas pondera que não existem certezas, apenas hipóteses. Sobre a supremacia do violão, reitera a tese dos motivos práticos: cordas, afinação, etc. Aqui, vale enfatizar que o violão é herança espanhola, enquanto a viola representa os vencedores do período colonial, os portugueses. no rio grande do sul, a disputa territorial entre um e outro domínio ibérico estendeu-se por séculos. mas o curioso é que, recentemente, o violão “se tornou um símbolo de brasilidade”, conforme observa souza.
Voltando no tempo, o trio mais popular na música sulriograndense já foi viola, rabeca e pandeiro, seguindo a mesma formação comum para paulistas e mineiros, regiões de mestiços e caboclos. Segundo o historiador Tau Golin, da Universidade de Passo Fundo, eram
instrumentos fáceis de carregar, garantindo mais mobilidade. O acordeon, como sonoridade hegemônica, teria sido um fenômeno posterior, ligado ao rádio, principalmente por influência das emissoras argentinas que eram sintonizadas do lado brasileiro da fronteira. O historiador encontrou registros da segunda metade do século XVIII que apontam índios guaranis tocando em bailes, com a formação de rabeca e viola, e percussão variando entre diversos tambores. Já no século XIX, após o período conturbado de proclamação da independência do Brasil, o nomeado governador de armas, Menna Barreto, trouxe de São Borja para a capital gaúcha um regimento guarani de sua confiança para patrulha. Além da função militar, o grupo também atuava como banda, tocando montados a cavalo vários instrumentos de sopro, viola e rabeca. O conhecido regimento militar guarani foi registrado por Saint-Hilaire em 1821, no seu relato Viagem ao Rio Grande do Sul. O viajante descreveu-o composto por mais de quinhentos soldados. Na visão naturalista de Saint-Hilaire, havia dificuldade para submeter os índios à disciplina, “mas logo a música militar os seduziu, tornando-se os exercícios e as manobras para eles uma espécie de divertimento”. considerando a origem e a trajetória da viola, tau golin acredita que o instrumento seria um elo de ligação do rio grande do sul com o brasil, enquanto a gaita teria reforçado no século XX o bairrismo e a separação. Considerada herança dos tropeiros, a viola ligaria culturalmente o sul ao resto do país. Por outro lado, considerando a viola como influência missioneira, o estado ainda partilharia outra identidade comum com Argentina e Paraguai, onde também houve reduções. Das duas formas, seguindo um entendimento de diversidade e integração cultural. Tudo isso, não fosse a efeméride de dissipação.
No entanto, esta história de quase desaparecimento tem sido revertida. Natural de Herval , no interior gaúcho, Giancarlo Borba atua como compositor há vinte anos, mas tocando violão. Atualmente, começou a realizar uma pesquisa de campo sobre a viola gaúcha, mapeando os mestres populares. Suas primeiras descobertas deram conta de violeiros na região litorânea. Para o projeto, encomendou com o luthier Agostinho Cardoso, de Caxias do Sul, um instrumento que batizou de “viola praiana”, feito com madeiras tiradas há mais de cinquenta anos da Sanga Funda, zona rural de Terra de Areia. O material irá gerar documentário, livro e disco. Angelo Primon também está empenhado. Desde 1998, usa o instrumento para compor, fazer arranjos e harmonizações diferentes, sem ferir a expressão idiomática do instrumento. Sua dedicação busca desenvolver a versatilidade da viola. “Quando toco viola de dez cordas, toco como violeiro, não como violonista”, observa. O instrumentista acredita que a viola fez com ele quebrasse um paradigma em sua visão musical. “Estou usando a viola, por exemplo, com acento mouresco, totalmente ibérico”, revela. O multi-instrumentista integrou neste ano outra iniciativa, a estreia em Porto Alegre do quarteto Violas ao Sul, em que divide o palco com Oly Jr., Mário Tressoldi e Valdir Verona. Este último, talvez seja o principal nome hoje responsável pelo reaparecimento do instrumento de dez cordas na cena cultural sulina. Verona investe no resgate da viola há vinte anos. Tudo começou quando gravava seu primeiro CD, de violão. Em uma das faixas, resolveu tocar viola para experimentar um timbre diferente. Ficou impressionado com a força do instrumento e passou a pesquisá-lo. Publicou o livro Método de ritmos gaúchos para viola, e desde então tem desenvolvido a linguagem, para soar como local e original. Para explicar seu jeito de tocar, compara com o idioma: “o estilo caipira de tocar viola e o estilo gaúcho são diferentes assim como os sotaques equivalentes da língua portuguesa”.
Valdir Verona é descendente de imigrantes italianos, da terra onde se aquerenciou a gaita, a serra gaúcha. Sem ressentimentos pelo instrumento preterido, há dez anos convidou o parceiro Rafael De Boni para um duo de viola e acordeon. O trabalho deles já rendeu dois discos, muitos shows pelo Brasil e alguns prêmios. O duo investe em repertório de música sulina, mas vai além fronteiras. Devido ao resgate do instrumento e à justificativa histórica, podemos imaginar que tocariam música “tradicional”. Neste campo, Verona participa de festividades de Terno de Reis e já gravou discos solos com releituras desta tradição. Mas o que de fato a dupla cria é música instrumental contemporânea, para concertos e recitais. Sobre seus instrumentos, Rafael De Boni lembra que já houve cerca de trinta fábricas de acordeon no estado e muitos foram importados da Itália. Mas Valdir Verona, para conseguir uma viola, precisa encomendar com luthiers. Um dos modelos que usa é mineiro. O músico serrano observa que na grande Porto Alegre tem diversos violeiros, mas a maioria toca repertório sertanejo. Na sua visão, “por influência das rádios”. Verona considera que no estado “passou-se a acreditar que viola era só para música caipira”. E assim “ficou perdido na história que a viola faz parte da cultura gaúcha”. Estava perdido. Pois, agora, passamos a lembrar deste traço da cultura que fora excluído da cartilha gauchesca. Com surpresa e gratidão tomamos conhecimento de músicos dedicados a recuperar o tempo perdido – tempo que findou. identidades totalizantes não mais nos representam satisfatoriamente.
Hoje vemos o mundo sob uma perspectiva de diversidade cultural. A viola insere-se nesta contemporaneidade.
giulia barão é formada em Relações Internacionais,
mestre em Escrita Criativa e mestranda em Estudos Latinoamericanos na Universidade de Salamanca. joão vicente ribas é jornalista, autor do blog Pampurbana. Possui Mestrado em História (UPF) e cursa Doutorado em Comunicação (PUCRS). julia dantas foi jornalista e atuou como tradutora. Hoje se dedica à edição de livros e faz mestrado em Escrita Criativa. priscila pasko é jornalista e idealizadora do blog Veredas. Também escreve para o tumblr pareceavidamasereal.tumblr.com. rafael gloria é jornalista e editor-chefe do site Nonada - Jornalismo Travessia. #2 2016 Edição: Rafael Gloria e Thaís Seganfredo Ilustrações: Lídia Brancher Diagramação e projeto gráfico: Anelise De Carli Revisão: Airan Albino, Julia Dantas, Rafael Gloria e Thaís Seganfredo Logotipo: Marianna Fraga Tiragem: 350 exemplares travessias julho