junho 2015 #1
O Zine Travessias é uma produção do Nonada - Jornalismo Travessia www.nonada.com.br nonada@nonada.com.br
EDITORIAL Foi nesse lugar, no tempo dito, que meus destinos foram fechados. Será que tem um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás? Travessia da minha vida Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas
O que constitui uma pessoa? São os agrupamentos de células, os diversos órgãos e o sangue circulando pelas veias? Mais do que isso, elas também são feitas de palavras, de reticências e de diferentes narrativas que lhe conferem um sentido. O zine Travessias, então, é composto por cinco pessoas traduzidas em perfis. Como fio condutor, a procura por um momento definidor em suas vidas. Isto é, decisões, experiências e descobertas que mudaram totalmente o rumo das suas trajetórias.
A variedade de estilos no modo de contar cada perfil também se sobrepõe. Fugindo da “verdade” e da “objetividade” jornalística, propomos escrever com maior liberdade. E isto só torna a relação textual mais complexa, visto que, ao se produzir um texto baseado em uma história de vida real, é necessário ter o cuidado de respeitar todas as suas especificidades. Não é ficção, mas se pode pegar emprestado elementos e técnicas da literatura. Logo, aqui você, caro leitor, vai encontrar textos que tentam ausentar ao máximo o autor para deixar a fala apenas para o entrevistado; que inserem o escritor na história para se aproximar do perfilado; que descobrem o poder transformador de um local; que encontram na leitura uma revelação de mundo; que tem na lembrança o combustível para mudar. A escolha do formato é a mais lógica possível: em uma época de extremo carinho virtual, o papel é a melhor forma de se aproximar do humano, porque necessita de contato. Só o ato de virar a página já é descobrir um novo mundo. Somado a isso, as belas ilustrações ajudam a tornar esse Zine também uma experiência artística. Realizadas em cima do texto (o nosso artista não viu nenhuma das pessoas), os retratos também nos levam a compreender os diversos caminhos que a vida pode tomar. O Zine Travessias é produzido pelo Nonada - Jornalismo Travessia e feito por amantes de boas histórias e de palavras. Pois quem se mete a escrever sobre alguém deve entender a complexidade que é ouvir. Ouvir profundamente, escrever rigorosamente. E, leitor, ler atentamente. Deixamos essa tarefa com vocês. Esperamos que seja prazerosa.
Nonada - Jornalismo Travessia
perfis Camilo quer se molhar no mar Demétrio Rocha Pereira Todos os dias não, para o resto da minha vida Rafael Gloria Eric Thaís Seganfredo O romantismo mora nos canteiros de construção Gustavo Melo Czekster Relatos de trânsitos Natascha Castro
camilo quer se molhar no mar 39 anos entre o fechado e o semiaberto: um relato do maior tempo de prisão no RS entrevista por Demétrio Rocha Pereira
Bah, a minha infância? Vou dizer sinceramente pra ti: eu com 9, 10 anos já tava na Febem. Fugia de casa, ia pro centro, porque naquela época existia o bonde, né? Então eu gostava de viver na rua, eu e o meu irmãozinho. Eu tinha um irmãozinho também da minha idade, e a gente tava sempre fugindo da Febem. Minha mãe meu pai saíam correndo me buscar, eu ficava uns dias em casa e fugia de novo. Tanto que aí tinha a Ceasa, que antigamente era na Praia de Belas, sabe? Eu era piazote, andava de pé no chão, então é o seguinte: ali na Ceasa eu aprendi a roubar. Os caminhão encostavam, os caras vinham e diziam ó, rapaz, pega aquelas caixa de tomate e coloca no outro caminhão que a gente te dá um dinheirinho. Foi onde eu comecei a sempre ir prali. Meu irmão tinha 9 pra 10, tanto que depois ele faleceu ali. Nós tomava banho no Guaíba. Não tinha aquele muro. O meu irmãozinho, como ele via muito turista, ele quis se exibir, só que ele tinha comido e se atirou na água e morreu afogado. Eu tava na Febem. Sofri muito com a morte do meu irmão, a gente era quase meio gêmeo. Então eu comecei a ir toda hora pra Febem. Foi porque me pegaram na rua. Antigamente, tu andasse um menor na rua, passava a caminhonete do JM e te recolhia.
Meu pai era pedreiro e minha mãe trabalhava na fábrica Renner, que tinha de fazer as roupas, né? Depois ela começou a trabalhar de doméstica. Minha mãe era uma batalhadora, tava sempre atrás de nós. Nós era entre 10 irmãos. Eu e esse meu irmãozinho a gente se desviava. Os ovelha negra: se desprendia da turma. Pra cima de mim, tinha uma irmã, dois irmãos, o resto tudo menor: uma escadinha. Tinha um colégio na vila, mas na época eu ia mais pela merenda. Gostava da merenda que a senhora merendeira fazia lá. Nesse tempo eu fui aprendendo um pouco. Estudei até a quarta série, e o resto eu fui aprender na Febem, onde tu tinha 11, 12 anos de idade, eles te enchiam de bolinho na mão.
Davam com a chave nas mão. Tapa na cara, soco. Tu saía revoltado com aquilo ali. Então os menor tava muito revoltado, queimando muito colchão, e eu fazia parte também, sabe? Então eles pegaram uma turma e colocaram na ilha pra ver se dava uma acalmada. Quando a gente saiu de lá, ninguém mais tocou fogo em mais nada. Barbaridade, foi um castigo disciplinar mesmo. A antiga ilha de pedra, ali no meio do Guaíba. A comida azeda e a fome, os rato. Era um galpão fechado, e os guardas tudo em volta com as armas. Colocavam as pessoas mais horríveis a cuidar de nós. Tu olhava pra janela, eles já davam um tiro de lá, de 12, aquilo espalhava pelas paredes.
LINHA DO TEMPO 1958 Nasce Camilo da Silva Melo.
1967 Pequenos furtos. Febem.
1973 Três meses na Ilha do Presídio.
1975 Cela isolada no Presídio Central.
Que nem eu te falei: de tanto que eles não tinham condições de me deixar na Febem, eles me largaram no Presídio Central com 17 anos. A psicóloga foi lá e eles falaram que eu não tinha condições, que eu tava agitado. Eu fiquei isolado, mas onde eu tava eu via tantas pessoas passar, porque era quase na frente da cadeia, né? Via por uma janelinha os caras passando morto, furado. E quando eu completei 18 anos me largaram dentro da galeria. Primeiro dia inventei de ir no corredor: sangue, pedaço de gente, os caras tudo bêbado, matando. Eu era novinho há recém, tinha que segurar as pernas de tanto que eu tremia de MEDO, cara. Quando fui pro Central eu fui em 75 e fugi em 78. Pra tu passar um alambrado de três cercas de arame, guarita, cada guarda com um fuzil daqueles de baioneta... Os caras dão tiro e te atora pelo meio. Se tu não caísse morto, eles iam com a baioneta e te furavam todo com ponta de lança. Um dia me pegaram lá, meu Deus, apanhei tanto. Só que eu não entendi uma coisa: eu não tinha cadeia, não tinha pena. Mas só o fato de estar ali, eu tentava buscar a minha liberdade. Passava a noite acordado, vendo os horários dos guardas, ficando guardião no relógio. É onde a hora que tinha que ter tudo calculado. Muitas vezes falhou e vimos companheiros meus morrerem. A falange foi quando em 87 eu voltei pro Central e encontrei o Carioca, o Alemão… Comecei a me entrosar, fazer parte dessa Falange Gaúcha deles. Era uma facção bem falada na época. Esse motim em 87 eu já tinha dado a minha palavra, entendeu? Não pode como voltar atrás. Bah, por exemplo: dei a minha palavra e não quero mais: aí tu tem uma inimizade muito grande na tua vida. Mas jamais pensava que ia morrer um agente e um companheiro nosso.
1976 1978 Cela coletiva no Central. Baixado no HPS, tenta fugir fuga. Assalto a joalheria Primeira e é encurralado por policiais civis. Sofre tentativa em de Rolândia. Em viagem para o execução, mas vira o rosto e sobrevive. O tiro destrói Rio, furtam-lhe todo o dinheiro. parte de sua arcada dentária.
Dali eu fugi pra São Paulo e voltei e aqui me falaram que tava tudo morto. A união que tinha se desmanchou. Só tinha eu vivo, e a polícia no meu rastro. Fui na Lomba do Pinheiro, eles tavam me esperando pra me matar. Mas só que eu tive uma alma salvadora na hora ali. Um polícia daquele disse: não vou matar. Quer minha arma?, toma aqui. Quer meu distintivo?, botou na mesa. Até um dia se eu puder ver esse polícia eu queria apertar a mão dele, porque eles vieram firmes pra me matar. Aí eu fui condenado a 40 anos de prisão por causa do motim. Cárcere privado, morte do agente, formação de quadrilha, sequestro, um monte de coisa. Ficou uma imagem muito grande na minha vida. É a pior coisa. Vai anos sem ninguém te colocar no jornal. Daqui a pouco acontece uma coisa lá, eles colocam o teu nome, mas tu não tem nada a ver, tu tá quieto noutro lugar. É essa imagem que vem logo no jornalista. É um tipo de imagem. Mas os próprios agentes lá dentro sabiam que tu não tava envolvido. Mas se o jornalista contou uma história, a sociedade não vai lá perguntar se é verdade. Eles vão ler e vão ver: isso aqui é o que está aqui. Tu vai tirando aquela imagem pelo jeito de tratar as pessoas. Primeira vez que eu tive preso, minha mãe fez uns pãezinhos de casa, sabe? Ó, meu filho, convida os teus amigos. Aquilo ali eu nunca mais esqueci da minha cabeça. Terminava a visita, lá dentro tinha 20 companheiros, mais ou menos. Eu abria aquilo ali, e todo mundo vinha e comia. Por que eu vou me apegar num pãozinho, se a minha mãe me ensinou pra mim dividir? Então eu comia um pãozinho e me sentia satisfeito. Parecia que eu tinha comido bastante aquele pão. Depois muitas vezes a minha família tava doente, vinha os cara ô, Camilo, vou te mandar uma comidinha pra ti. Isso foi a maior riqueza que eu construí. Até em 2011 eu saí no semiaberto e
1981 Prisão e fuga de presídio em Santo Antônio da Patrulha. Recapturado, volta para o Central.
1987 Motim no Central. Assaltos a banco no RS. Vai morar em pensão em Piracicaba (SP).
1988 Volta e é preso no RS. Do Central, ruma para prisão em Bagé.
entraram no Patronato pra matar um parceiro do Paulão. Me acordei o cara tá com duas pistola na minha cara. Aí um deles: ah, é o véio Camilo, pode crê. Me conheceu. Foram noutro alojamento e PÁ, PÁ. Dez tiros. E aí eu imaginei que a gente não é nada.
O pior é tu ver um cara feliz jogando bola, duas horas depois tá ele morto na cela. Se matou. Porque na Pasc é onde tu mora sozinho, numa cela do lado da outra, não dá pra se olhar. Vai ver é isso, né? Só que às vezes tu tem um espelho ou o outro põe um espelhinho e dá para ver ele, conversar com ele. A Pasc em 92, quando inaugurou, largaram eu e o Melara, e teve uma greve de 9 dia seguido sem comer, porque a gente não aceitou as roupa da cadeia. O médico já tava do lado da porta no causo entrasse um em coma. Graças a Deus era o Collares na época e ele mandou liberar. Depois em 2011 teve um mutirão de juízes e eu gritei daqui da minha cela para me ouvirem. Abriram o portão e vieram falar comigo. Depois o juiz me chamou, mostrou a sala dele, uma vista assim pro Guaíba, e disse: agora é contigo. Foi o momento em que eu comecei a refletir. Ganhei essa oportunidade, dei a minha palavra pro juiz. Eu posso não ter nada hoje, a casinha eu não botei forro, não consegui botar piso ainda,
1992 Junto a Melara, é levado para a Penitenciária de Segurança Máxima de Charqueadas (PASC).
1999 Casa-se com Tânia Duarte, que conheceu na prisão.
mas eu tenho uma filha, tenho uma netinha. Ver aquele sorriso da minha irmã, poder ir na casa dela. Essa é a maior riqueza. Hoje eu tô aí, batalhando. Comecei varrendo numa obra, agora tô com os funcionários da ferragem, aprendendo com eles. Até uma senhora que era minha refém hoje é muito minha amiga, me perdoou, apesar que EU que tinha que pedir perdão. Isso é um motivo assim que mais engrandece a gente de viver, pra não decepcionar essas pessoas. Esses dias quiseram fazer uma entrevista comigo na frente do Presídio Central. Eu digo não, não gosto nem de lembrar daquele lugar. Então não é mais bonito, mais consciente até, tirar na minha firma? Pede uma autorização da minha chefe, tira as fotos no meu serviço. Por isso quando eu tô naqueles programa que criticam as pessoas na TV, eu troco. Escuto a Caiçara. É uma rádio que parece que eu volto naquele tempo antigo, sabe? Na minha infância não existia televisão. A televisão que tinha na vila a gente dava uma moedinha de 50 centavos na janela do vizinho, pra olhar a novela Irmãos Coragem. Ou gostava de ir no cinema: esse que abriu agora, o Capitólio. O Marabá... Seria hoje, no causo, dois três reais no máximo. Tinha o Castelo, o Carlos Gomes, o Guarani. Só não podia entrar de pé no chão. Aí se às vezes eu andava sempre de pé no chão, arrumava um chinelo e ia pro cinema. Tinha o bonde também. Tu ia pra lá e pra cá: subia atrás e ia se agarrando ali.
2011 É ouvido pelo juiz da Vara de Execuções Criminais Sidinei Brzuska, que lhe ajuda a alcançar a liberdade condicional.
2013 Contratado pela empresa Engefort, trabalha na construção do prédio anexo do TJRS.
Conheci, na época, aquele senhor que era poeta ali, o Mario Quintana. Conheci muitas vezes aquele senhor. A gente conversava, fumava cigarro. Ele me dava cigarro, ou a gente roubava o cigarro dos dedos dele, e ele só ria. Ficava rindo pra nós. Pagava café pra nós. Ele morava no Hotel Majestic, trabalhava no Correio. Na Caldas Jr. tinha um negócio que as mulher se viravam, faziam programa. Uma rua toda quase assim. As boemia era tudo ali. É onde eu gostava sempre de estar no centro. Por isso que eu fugia de casa, sabe? Só tinha que estar sempre se cuidando do juizado de menores. Eu sabia que ele era o poeta. A gente conversava. Depois lá dentro eu fui acompanhando os livros dele, as histórias dele. Dizia pros cara: pô, esse velhinho aqui eu conversava com ele, muitas vezes! E os caras: bah, mas esse é o Mario Quintana! Essa era a época da Rua da Praia, e a gente vivia ali, socado nos fliperamas. Botava uma moeda e ficava jogando. Eu era assim, pivetezinho do tamanho desses ali. Tu vê, hoje… Até eu não tenho essa explicação. Porque eu não gostava de ficar na minha vila onde eu morava, sabe? Eu gostava de estar lá andando de bonde. Lá: andando, pra lá e pra cá.
2014 Contratado como auxiliar de produção na Preconcretos, fábrica de pré-moldados.
2015 Afastado do trabalho para uma cirurgia de hérnia. Sonha em passar férias na praia. Faz mais de 30 anos que Camilo não vê o mar.
Todos os dias não, para o resto da minha vida por Rafael Gloria
Nara está sentada à minha frente. Estamos conversando. Ela tem a cor da pele morena clara, o cabelo mais curto, na altura dos ombros, e está na casa dos quarenta anos, porém aparenta ter bem menos idade. Essa minha impressão deve ter algo a ver com o modo como ela me olha e como mexe os braços efusivamente quando me conta a sua história, como se fosse levantar da cadeira para encenar a memória. Nesse momento, nos meus vinte e tantos anos, eu me sinto mais velho que Nara. Mais do que isso, eu me sinto extremamente pequeno diante dela. Lá está uma mulher que se agarrou com todas as suas forças na última chance que teve para continuar viva. *A história é real, mas o nome é inventado. A perfilada preferiu se manter anônima.
Se você tivesse que adivinhar, caro leitor, não saberia o que significa o conceito de vida para Nara agora. Mas ela me mostra. Tira da bolsa e deixa no meio da mesa que nos divide. Com orgulho, ela afirma que essa caixinha de plástico transparente cheia de remédios coloridos é a sua VIDA. Se esse é um Zine de momentos, provavelmente, o mais emblemático é este: “Toda noite antes de dormir, eu tomo quatro remédios. Nessa hora ninguém fala comigo, a minha família já sabe. É o meu ritual. Eu preciso desse instante para viver”, ela me diz, visivelmente emocionada. Ela não chora, porque é forte, mas eu não sou – não do mesmo modo. O que se pode fazer em um momento como esse, eu me pergunto. Perguntar mais.
Fase I Descoberta Nara se recorda de tudo, detalhe por detalhe. Seu relato constrói as lembranças com ares cênicos. Na época, em 1999, ela ainda era casada. Sem motivo aparente, teve uma febre forte de quase quarenta e dois graus, o que a levou a procurar o médico. Lá, ele lhe pediu para fazer uma bateria de exames e, entre eles, o de HIV. “Estranhei, mas aceitei. Eu tinha certeza que era câncer, doença que consumiu boa parte da família da minha mãe”, acreditava. Então, quando o telefone tocou cedo em um sábado pela manhã, ela já esperava pelo pior. No recado, um pedido para que comparecesse urgentemente ao consultório. Ao chegar lá, um enfermeiro e um psicólogo, além do médico, a esperavam. “Ele me disse assim: Nara, saiu os resultados dos exames e é grave. O seu teste para HIV deu positivo”. Ela não acreditou. Não poderia estar certo. Era casada há sete anos e nunca havia traído o marido. “Eu continuava achando que estava tudo muito errado. Então fui fazer outro exame em um laboratório particular”. Depois de repetir o procedimento quatro vezes, e todos virem com o mesmo resultado, Nara resolveu compartilhar a famigerada certeza com o companheiro. Na sala de casa, aproximou-se lentamente e contou sobre o HIV positivo. Surpresa maior teve ao ver a reação. “Ele começou a chorar, e se agarrou em mim, e ficava dizendo O que que eu fiz contigo? Nessas alturas, juro, eu não imaginava que era ele. Achei que podia ser de alguma antiga relação minha, não sei”.
Fase II Negação Desculpe o egocentrismo, mas começo a pensar em mim também. Na minha cabeça, nunca tinha pensado em fazer o teste. Com quantas pessoas eu já me relacionei na vida? Uma pequena angústia monta trincheira em meu coração, enquanto Nara me observa. Eu poderia ser HIV positivo. Estou conversando com ela em uma praça de alimentação de um pequeno shopping da capital e nesse momento não posso dizer com 100% de certeza que eu não tenho Aids. E você, leitor, pode? Nara me tira do momentâneo transe e me conta que foi uma pontada – como é popularmente conhecida a pneumonia – que a fez ficar internada no Hospital da Ulbra pela primeira vez. A dor era tanta que mal conseguia respirar. Foi lá também que conheceu a infectologista Marília Severo e começou, aos poucos, a conhecer mais detalhes sobre o HIV. A médica explicou conceitos importantes, como a quantidade de Linfócitos TCD4 e de carga viral, e também sobre o crucial uso de antirretrovirais para o tratamento, os quais ela deveria começar a tomar imediatamente. “Eu não sabia a bomba que era aquilo… na época, para mim era uma verdadeira bomba. Eu tomei apenas por um mês”, confessa. Não conseguia sair de casa, pois a diarreia e o vômito eram constantes. Além disso, começou a perder cabelo. Decidiu, então, fugir dos remédios e buscar outros caminhos. “Na verdade, eu ainda não aceitava a Aids, eu tinha repulsa daquilo tudo”. Fugindo, encontrou em um livro e em um grupo de pessoas que seguiam as orientações dessa obra em Porto Alegre, uma resposta. Tais mandamentos do grupo para vencer a doença podiam ser resumidos basicamente em levar uma vida regrada e saudável. E o mais interessante era o princípio de que os remédios não eram necessários. No começo parecia ótimo, e a sua vida dupla era mantida: embora ela tivesse largado os medicamentos, não tinha abandonado o tratamento oficialmente. Continuava sim indo no hospital para buscá-los, mantendo a ilusão para os médicos – e para si mesma.
Fase III Marcas Você prefere viver uma mentira ou uma dura realidade? Não chego a perguntar isso para Nara, mas a resposta é óbvia. Enquanto ela fala sobre todo o processo de aceitação do HIV, outras Naras vão dialogando comigo. Surge a que gostava de dançar e ficara impossibilitada devido à doença; a que teve um filho ainda muito jovem; a que se separou de dois maridos e escolheu viver sozinha. A Nara que me deixa uma marca mais profunda, entretanto, é essa que aprendeu a segurar a vida pelos dentes. Depois de dois anos sem usar os remédios, ela me diz que começou a emagrecer realmente. Até o longo cabelo pesava quando tomava banho e, por isso, teve que cortar bem curto – o que a machucou tanto como aquela pontada que teve pela primeira vez. Precisava da ajuda dos outros em quase todo momento, e qualquer gripe a levava para o hospital. Sua família, particularmente a irmã sete anos mais nova, começava a ter um papel ainda maior na sua vida. De apoiar integralmente, de estar sempre ao seu lado. Diferentemente do que você possa imaginar, eles nunca a julgaram. As internações começaram a ser ainda mais frequentes em sua vida. O hospital se tornou a sua primeira casa. “Fiquei uma caveira realmente. E o que aconteceu? Eu tive uma pontada dupla e fiquei internada dois meses no hospital Santa Casa”, conta. O cansaço a pegou para valer. Não se sentia mais parte de nada e até relutava quando sua família ia visitá-la no leito hospitalar. Mesmo sofrendo, não pensava em tomar os remédios.
Fase IV imunidade “Minha ideia era continuar adoecendo e deixar a Aids me matar de vez.”, afirma. O problema é que essa doença não vai causar o óbito de forma imediata: ela age devagar, baixando demais a imunidade até alguma outra
disfunção poder invadir o seu sistema e lhe encontrar totalmente desprotegido. Seguindo essa ideia, Nara alugou um JK na Cidade Baixa e para lá só levou as coisas mais básicas. Esperava que fosse morrer por ali ou em algum leito do hospital. Nesse meio tempo interminável, sua persistente irmã continuava do seu lado. Inseparável. Há pessoas que devem ter em seus genes predisposição para a vida, que não desistem em momentos tão complicados. Ela é uma delas. Mais do que isso, ela começava sorrateiramente a plantar a ideia dos compridos na cabeça de Nara. “Ela dizia: toma um por vez, mana. Um de cada vez. Eu até tomo junto contigo”, me fala esboçando um sorriso triste como se não se reconhecesse mais a mulher que era nessa história toda. Para completar, descobriu que estava perdendo a visão. Durante um pequeno passeio matinal, ao atravessar a rua bem devagar, ela simplesmente não conseguiu notar o carro e quase foi atropelada. Era o citomegalovirus recém-descoberto. Com ele, as complicações aumentavam ainda mais. Nas pessoas que vivem com Aids, esse tipo de vírus pode levar à cegueira, mas também pode comprometer órgãos como intestino, fígado e o sistema nervoso central. Nela, começava pelos olhos castanhos escuros.
Fase V viver É até irônico: quando sua visão passou a ficar comprometida, Nara começou a abrir os olhos para a doença. A morte não havia chegado como ela imaginara. Somente o cansaço. Para ela e para o resto da família. O ultimato de sua médica também a ajudou. Apesar de nutrir grande afeto por Nara, a doutora não poderia mais cuidar do seu tratamento. Ela a
enganara por muitos anos não tomando o remédio. Fora isso, precisaria realizar um procedimento intravenoso todos os dias que só poderia ser realizado em outro hospital, no SUS. Ou seja: todos os dias uma seringa em sua veia – só assim para não ficar cega. Chamado Ganciclovir, o tratamento exigia demais do paciente. Chegou ao Hospital Sanatório Partenon com apenas três pontos de imunidade – para uma pessoa saudável, o valor varia de 800 a 1200 – e com uma carga viral de 55.000/ml. Estava anotado na carta que a médica Marília Severo mandou endereçada para a colega infectologista Nêmora Barcellos todo o histórico de desobediência. As palavras de sua irmã agora faziam sentido. “E então, eu comecei a tomar o remédio. A tomar de verdade. Eu comigo mesmo. De manhã e à noite, todos os dias. Não, todos os dias não. Para o resto da minha vida”, afirma olhando para a sua VIDA ali no meio da mesa. E foi melhorando de saúde. “Eu não fiquei cega e faz um ano que eu parei de tomar o intravenoso diário. Agora não precisa mais, só os remédios. Naquela época, quanto mais eu via os resultados dos exames, mais eu ia me incentivando e ganhando força”, revela. Começou a olhar para os outros pacientes e se via neles, em suas mesmas dificuldades. Quantas vidas a gente tem em uma vida? Eu me pergunto, assim que ela parece concluir a sua história. De repente todos os meus problemas se tornam menores, mais plausíveis de se encontrar uma solução. Está à minha frente uma mulher que superou a vida, ou melhor, que criou uma nova. Nara aponta para a caixinha que brilha sob a luz da lâmpada opaca e clara do shopping e finaliza: “Não existe um medicamento que acabe de vez com a Aids, mas existe um medicamento que a coloca no lugar. Ela também é a minha vida. Cada um tem a sua e essa é a minha”.
Eric por Thaís Seganfredo A fênix envolta em chamas, artesanalmente pintada em tons de vermelho e laranja, contrasta com o branco apático das paredes que formam o quarto de Eric. O desenho ocupa boa parte do plano e reflete um lado da personalidade do rapaz de 28 anos: Eric está sempre mudando. Das escolhas profissionais à organização dos móveis na casa, as variáveis aparecem em diferentes momentos de sua vida. A única constante é o encontro de si mesmo. Dono de uma barba robusta e de olhos azuis muito brilhantes, Eric Seger de Camargo tem uma fala segura, escorada em sua voz grave e acolhedora. Estudante de educação física na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ele foi designado mulher ao nascer, mas nunca se sentiu confortável com a classificação. Na faculdade, onde predominam corpos definidos e músculos torneados, Eric nunca se sentiu integrante. “Antes, tudo era estranho pra mim. Eu era um ser que não conseguia se entender no meio das pessoas. Eu não fazia sentido”, me confessou numa tarde de segunda-feira, enquanto tomávamos um expresso em um dos cafés mais conhecidos de Porto Alegre.
Paralelamente, sua casa vivia um momento de transição. O lar perfeito, cuidadosamente escolhido para abrigar uma família feliz, se desmoronou quando os pais se separaram, e ele viu a mãe se mudar para Porto Alegre, levando consigo Gabriela, sua irmã gêmea e amiga. Eric escolheu ficar. Com as festas regadas a cerveja e pagode que o pai adorava promover, a casa de três quartos, localizada em um bairro mais afastado de São Leopoldo, parecia pequena demais para seus dois habitantes. O rapaz encontrou refúgio no anexo nos fundos do terreno. Aquele depósito cheio de quinquilharias, aquele espaço confuso, fisicamente separado da velha casa que passou a dividir com o pai, era onde estava seu futuro. Era onde estava ele. Em um só dia, o trabalho braçal de remover todas as tralhas foi concluído. Com uma cama, uma estante de livros, um armário e um sofá florido que pertencera por muito tempo à avó, o depósito se tornou um quarto, um canto onde ele encontrou conforto para se fechar em si próprio. Aos poucos, as paredes ganharam frases dos muitos livros que ia descobrindo no seu isolamento, a exemplo de Clube da Luta, do escritor Chuck Palahniuk. Citações como me liberte, Tyler, de ser perfeito e completo ou no inferno, é o nosso apego à identidade fixa que nos tortura deram, às paredes brancas, a ressignificação de
espelhos. “Identidade é algo que tem que ser refletido nos outros, então as paredes de certa forma serviam pra isso. Mas também tive momentos deprês lá. Até pra isso precisamos de um espaço”, resume. Quando o pai viajou, a solidão deu ainda mais liberdade para Eric se encontrar. Com o tempo, a letra A pintada na cor preta, envolta em um círculo, passou a fazer parte do ambiente, em referência ao anarquismo, ideologia que ele carrega consigo desde então. Ainda somaram-se à decoração um desenho de Eric ladeado por prédios, ostentando uma coroa na cabeça, e uma cortina roxa com a palavra QUEER estampada. A expressão faz referência à teoria Queer, representada por pensadoras como Judith Butler e Guacira Lopes. A tese questiona as identidades de gênero impostas por uma normatividade cultural e propõe a desconstrução de binários como homem-mulher. Os estudos, desencadeados com base na obra de Michel Foucault, foram ponto crucial no processo de Eric de se reconhecer no mundo, de se entender como homem. Processo que se estendeu por dias, meses, uma vida inteira... Ele não saberia dizer. Quando é que a gente sabe que se encontrou? O certo é que eram várias as horas do dia que passava isolado no seu oásis de autoconhecimento, apenas na companhia de Butler e Foucault, ou bebendo e ouvindo música - grunge, principalmente - com alguns amigos. Só saía para ir às aulas ou visitar a mãe e a irmã. No período, também deu uma escapadinha para a psicologia, onde encontrou justamente disciplinas que refletiam sobre gênero de uma maneira menos taxativa e mais inclusiva.
*** Eric não lembra o dia exato em que o pai anunciou que eles teriam que sair de casa. Mas sabia que o pai precisava disso. Sabia que seria impossível construir novas histórias naquele lugar tão marcado por memórias felizes. E sabia também que o encontro de si mesmo havia reverberado de forma confusa em sua família. “Não sei também se foi por minha causa que meu pai quis se mudar, mas hoje a gente mora em outro lugar, e eu continuo eu mesmo”.
No condomínio onde se instalaram, Eric tentou reconstruir aquele espaço que era só seu. Pintou as paredes de rosa e azul, brincando com as noções estereotipadas de gênero, mas logo enjoou do rosa. Ele mesmo manchou a cor de laranja com uma esponja. Hoje, um espaço demarcado não é suficiente para o rapaz. Nômade, ele encontra conforto em cada universo dos seus amigos e familiares, que, aos poucos, foram compreendendo a amplitude que não cabe nas limitações e classificações impostas a um corpo. O eco causado pela voz grave e empoderada de Eric fez dele uma referência no ativismo dos homens transexuais – aqueles que foram designados pertencentes ao gênero feminino ao nascer. Ele é membro do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat) e bolsista do Núcleo de Pesquisa sobre Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex) da Ufrgs. O reconhecimento na área lhe rendeu convites para entrevistas e palestras em universidades e instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil. Ele lembra com orgulho da entrevista que deu em março para um importante jornal da cidade. O resultado surpreendeu. Uma matéria didática e bastante explicativa sobre termos relativos à identidade de gênero. “Às vezes eu faço piada que tá na moda ser trans, então as pessoas querem nos ouvir”, ele diz, com ar maroto, para em seguida fazer uma constatação: “Agora estão aprendendo a chamar uma pessoa trans para falar sobre os trans, porque antes não era assim”. Na faculdade de corpos definidos e músculos torneados, Eric permanece não se sentindo totalmente integrante. Entre performances artísticas com corpos nus – que os colegas consideram bombásticas –, ele vive a
nudez de ser trans todos os dias. A carteira de nome social expedida pelo governo abre caminhos, mas ainda assim deixa exposta sua pele. Por isso, já decidiu que vai trocar o nome de registro na justiça. O processo é burocrático, mas vale pena. Enquanto envereda para a vida acadêmica de refletir sobre gêneros, ele também experimenta o desafio de ensinar educação física para crianças de dois e três anos. Profissão ingrata. Ele odeia ter que pedir para os meninos menos comportados ficarem quietos. Gosta da anarquia, do aluno revoltado, que não está nem aí para o que o professor diz. Mas ele sabe que deve cumprir seu papel. Eric também odeia obras. Não quer ver as coisas destruídas, caindo aos pedaços. Mas é assim que está o casarão onde morou com o pai. E, se ver a construção nesse estado causa uma espécie de nostalgia (ele tentou guardar um pedaço para eternizar na memória o que um dia aquele chão representou), também é motivo de ansiedade. Isso porque o pai resolveu que eles vão voltar para o lar, mas um lar totalmente diferente, reformado, novo. Pronto para receber novas histórias, novas lembranças, novas autodescobertas. Ele não vê a hora de ver a nova-antiga casa, embora ainda não exista um dia marcado para o retorno. Desta vez, planeja chamar os amigos para ajudá-lo a ilustrar seu velho quarto, registrando na tabula rasa um pouco de seu eu atual, que também se confunde e se une aos eus das várias amizades que ele ganhou nos últimos anos. Por enquanto, o que se vê no local são paredes descascadas e pedaços de pedra e azulejos jogados no chão. No muro onde antes estavam a porta de entrada e a única janela do quarto, uma inscrição em caneta azul bic permaneceu intacta, como se apenas estivesse aguardando o retorno de seu criador: freedom.
O romantismo mora nos canteiros de construção por Gustavo Melo Czekster
Foi no final da consulta. Era uma terça-feira repleta de sol sobre os prédios, e de gritos cinco andares abaixo. Após resolver dúvidas relativas aos seus direitos trabalhistas, o homem passou alguns segundos em silêncio olhando as mãos pousadas sobre as pernas. Parecia reunir coragem para perguntar algo, então esperei. Quando resolveu falar, não foi uma indagação, mas um pedido: “Doutor, queria pedir um conselho, mas ninguém pode saber que falei isto, tá?”. É algo normal: as pessoas confundem advogado com padre ou psicólogo. Sabem estar protegidas pelo sigilo, podendo confessar seus piores defeitos ou crimes que nada sairá para o mundo. Com relutância, ele autorizou-me depois a contar a sua história, desde que utilizando um pseudônimo, “isto pode causar problemas no meu trabalho, doutor, ninguém pode saber”. Vitor (nome fictício) é, nas suas palavras, um “faz tudo”. Na carteira de trabalho, consta auxiliar de obra, o que significa dizer que, a cada dia, ele recebe uma tarefa diferente em algum canteiro de obras de Porto Alegre. Pode ser desde carregar tijolos até retirar entulho, não existem limites. Tal característica transformou Vitor em um homem forte, com o bronzeado irregular de quem passa horas sob sol e poeira, mãos encardidas e com marcas de cortes antigos. Mãos de quem não tem vergonha de trabalhar pesado. Não é uma pessoa afeiçoada às palavras, apesar de se perceber, vez que outra, o uso inesperado de adjetivos como “resplandecente” e “fugaz” (“o homem foi tão fugaz que nem vi, doutor”). Possui aquele medo de encarar pessoas com mais estudo, como se elas pudessem debochar dos seus poucos conhecimentos, mas é alguém coerente, sólido, do tipo que não deixa a imaginação entrar na sua vida. Não tem esposa, mesmo assim acha que o filho de uma ex-namorada é seu (“mas ela nunca fez DNA e tá com outro cara”) e a sua noção de felicidade plena são as noites de sábado, quando bebe cerveja com alguns amigos, e o futebol que joga domingo de manhã. Fez economia e comprou uma “chuteira do Neymar”, porém acha que ela não funciona, e continua usando a antiga, “que é goleadora”. No início de 2014, Vitor foi chamado por um amigo para ajudá-lo a consertar o telhado de uma casa no bairro Cristal. Era um local antigo, que precisava de inúmeras reformas, mas a proprietária só queria que arrumassem o telhado e eliminassem as goteiras. Vitor a viu poucas vezes, quem fazia
todo o contato necessário era o seu colega de empreitada. Contudo, lembra que era uma senhora – ele a chama de “velha” – que morava nesta casa cheia de quartos vazios, juntando quinquilharias e móveis. Apesar de a casa ter várias fotos nas paredes, ninguém visitava a “velha”. Na primeira vez em que foi ao banheiro, Vitor procurou alguma revista que pudesse folhear. Não achou nenhuma. No entanto, na mesinha ao lado do bidê, tinha uma pilha de pequenos livros com capas mostrando cenas entre casais. Em um primeiro momento, pensou que era revista de “gostosa pelada”, mas logo viu que não havia imagens. Mesmo sem gostar muito de livros, com a intenção de fazer o tempo passar, pegou um e folheou. Ele se chamava “Escravos da paixão”, e tinha dois nomes de mulher na capa, sendo que um deles era “Júlia”. Vitor quase terminou o primeiro capítulo do livro. Achou muito parado. Voltou para casa e não lembrou mais o que tinha acontecido. Entretanto, no dia seguinte, ao entrar novamente no banheiro e ver “Escravos da paixão” sobre a pilha, ficou tentado a saber como acabava o capítulo. Leu este e leu o próximo. Os personagens principais tinham sido apresentados; o conflito era interessante; o cenário se descortinava na sua cabeça, ele quase conseguia ver tudo o que estava acontecendo, como se fosse um filme. Nos dias seguintes, toda vez que ia ao banheiro, retomava a leitura. Em algumas ocasiões, ficou tanto tempo que precisou inventar um “problema na barriga” para justificar a demora ao seu amigo. Assim que acabou a obra, “o mocinho ficou com a mocinha, doutor”. Pegou o próximo da pilha, “Ciúme, tempero do amor”, também com o nome Júlia na capa (Vitor achava que ela era uma autora, mas hoje diz que existem várias escritoras que copiam a Júlia original). Todavia, eles acabaram também a obra principal, o conserto no telhado, e foram dispensados. No último dia – seu olhar medroso deixava entrever o medo das consequências de tal confissão – retirou o livro do banheiro e levou consigo. No sossego de casa, bastaram três noites para acabar a leitura, “e o mocinho ficou de novo com a mocinha”. Achou que a sua curiosidade tivesse acabado. Nos dias posteriores, começou a trabalhar em outro canteiro de obras, e o mundo masculino, com
suas atitudes bruscas, as brincadeiras repletas de machismo, o papo sempre descambando para baixarias ou futebol, acabou por lhe envolver. O trabalho era pesado e insuficientemente pago, o capataz da obra queria tirar o máximo dos pedreiros para cumprir os prazos da construtora. No meio desta rotina cansativa, Vitor sempre parava em uma banca perto do ponto de ônibus e espiava os títulos dos livros escritos por Júlia. Se algum olhar virava para a sua direção, fazia de conta que estava olhando as revistas pornográficas e se afastava em seguida, como se fosse um traidor ou um criminoso. Em um sábado à tarde, pegou o ônibus e foi para o Centro da cidade. Caminhou por inúmeras ruas até achar uma banca de revistas solitária. De acordo com as suas palavras, nunca se sentiu tão nervoso; tinha uma história preparada, estava comprando três livrinhos para levar para a mãe doente, era a única diversão dela. O dono da banca não perguntou nada; alcançou os livros, recolheu o dinheiro e sequer olhou para Vitor. Ainda assim, ele escondeu as Júlias no fundo da sua sacola e voltou para casa rapidamente, radiante pelo plano ter dado certo. As três Júlias foram somente o começo. Vitor comprou muitas outras. Ao perceber que não era questionado, sentiu-se mais confiante para comprar os livros
sem precisar ir muito longe da sua casa, só trocando de bairro para evitar encontros com algum colega de trabalho. Se o dono da banca o olhasse por um tempo, um pouco mais longo do que o esperado, dizia que a sua mãe iria adorar aquele livro, e terminava a compra o mais rápido possível. Não sabia como descartar os livros depois de lidos, mas não podia deixar na sua casa, alguém poderia visitá-lo. Arrumou um baú em uma loja de móveis usados e colocou um cadeado. Aos amigos que perguntavam o conteúdo, dizia que eram umas velharias e mudava de assunto. Com o passar do tempo, descobriu detalhes que as pessoas, que passam ao largo do mundo das histórias românticas, nem suspeitam: descobriu que existem livrarias e bancas onde, se a pessoa levar um livro lido e acrescentar dois reais, pode trocar por outro livro usado. Descobriu que nem sempre as histórias terminam com o mocinho ficando com a mocinha (“são só algumas, doutor, e ficam ruins”). Descobriu que existem livros com capas que não tinham nada relacionado com o conteúdo. Descobriu que existe amor em todos os lugares do mundo, seja nas praias de Bali, seja nos castelos da Escócia. E descobriu que os dramas não mudavam tanto assim, somente os nomes dos envolvidos. Vitor gosta dos livros escritos pela Júlia. Não gosta daqueles escritos pela “Sabrina”, pela “Bianca” ou pela “Barbara”. Tentou ler os outros, mas não teve a mesma identificação. Não sabe explicar o motivo, mas acha a Barbara uma velha convencida, a Bianca uma moça muito nova e a Sabrina uma mulher casada e safada. Quando perguntei o que pensava da sua favorita, disse que Júlia era a mulher perfeita: alguém que lhe espera chegar do trabalho cansado e prepara um banho, conversa sobre assuntos amenos, prepara a sua comida e depois se junta a ele para uma noite de sono. Não envolve necessariamente a ideia de sexo, mas de companhia e fim da solidão. Sem Vitor saber, a idealização feita de Júlia corresponde à imagem de Sheherazade das “Mil e Uma Noites”, encantando o sultão com histórias a cada noite e seduzindo-o devagar, em uma espiral que nunca chegará ao fim.
O problema é que Vitor não consegue mais manter o controle sobre seu vício. Quando está em um momento empolgante da leitura, carrega o livro até o trabalho, aproveita a pausa para ir ao banheiro e se entrega em silêncio à trama romântica. Tem receio de ser descoberto e ser publicamente humilhado pelos seus colegas; imagina os apelidos que irão lhe colocar, os boatos que serão feitos e o que isto representará em outros empregos para a sua “fama de macho”, pois é um mundo pequeno, no qual a história de uma Júlia lida, escondida por um pedreiro, pode passar muitas mensagens. Vitor está mudando, Júlia modificou a sua maneira de ver o mundo. Ele não consegue mais ver as mulheres da mesma forma que antes, como objetos carnais, máquinas prontas para o sexo. Sabe agora que possuem sentimentos e vontade própria, e admira a liberdade daquelas descritas nos livros, gostaria de encontrar uma igual. Em algumas vezes, quando vê um dos seus colegas falando alguma grosseria para a esposa ou para outra mulher, sente uma forte vontade de intervir. Também está evitando assobiar e acenar para as mulheres que passam pelas obras e, de forma ainda tímida, tenta convencer seus amigos a olhá-las de outra forma. Os livros recheados de romantismo estão modificando Vitor de dentro para fora. Ao mesmo tempo em que o vocabulário muda, aflorando no meio do seu discurso de pouca instrução, os sentimentos ficam mais intrincados. Excitada pela leitura, a sensibilidade está à flor da pele, ansiosa para se libertar. Ele sente que o mundo é um local muito maior do que imaginava e, em algum lugar, o mais inesperado possível, o amor pode estar lhe esperando. Quando Vitor pegou para ler “Escravos da paixão”, possivelmente não imaginou que seria escravizado, e muito menos que ele próprio também se transformaria em uma história: a do livro que violentou um homem e o fez ver um novo mundo repleto – por mais clichê que pareça – de amor e de romantismo.
Relatos de trânsitos por Natascha Castro
Primeira marcha. Acelera. Segunda marcha. Para. Sinal fechado. Buzinas a ruir. Primeira marcha. Acelera. Para. Quase bate. Buzinas. Curvas. Trânsito travado. Todos os dias a mesma rotina. O motorista cansa de transitar pelos mesmos caminhos. Responsável pelo transporte. Responsável pelas vidas. Responsável pelo fluxo. Cansado. Leandro Rangel escuta música enquanto dirige. Evita o pesar do tráfego. Evita o pensar no trânsito. Um quilômetro de cada vez. Louvado seja o Senhor. Jesus amado. A graça do Senhor. Baladas de sua estação de rádio. Leandro canta e ora. Ora para que o dia termine. Cansado das vias congestionadas. Fatigado pela pressa. Motorista, mas passageiro na vida dos transeuntes. Atravessa de Leste a Oeste. Vai pelo Centro e pelo Sul dessa cidade que vende maravilhas. Leandro vive o trafegar carioca. São mais de trinta anos de vida. Poucos de manobras próprias. Parece tranquilo, esconde o estresse. Leandro conta seu passado como passatempo. Um mundo de histórias entre sinais fechados. Viajante, já atravessou outras estradas. Também parou horas em outras esquinas. Tudo antes de pilotar ônibus. Na juventude, jogou esperanças no exercício militar. Serviu. Sim, senhor. Prestou serviço. Foi milico. Um passado presente. Uma memória que prefere não alimentar. Brasília, Curitiba, Porto Alegre. O serviço é federal. Outras estruturas, outras cidades. Um posto que sempre soube preservar. Veio então a grande oportunidade. Uma ação militar. Uma ação de paz. Um mundo a desbravar. Era 2005, clareia ao relatar: Nações Unidas, missão exemplar, orgulho nacional. Os que agora procuram em nossas terras uma terra sentiam
então o gosto do nosso punho militar. O Haiti não é aqui. Haiti é longe. Está nos olhos dos imigrantes e na vida dos migrantes. Haiti é para onde foi o motorista trabalhar em missão de paz. Cautela ao alumbrar o passado. Leandro viveu seis meses na ilha. Diz: “tem coisa que quero esquecer. Tirar da cabeça. Nunca mais pensar”. Relata com dor que não há água potável. Não há saneamento. Quase toda população tem alguma doença grave. Conta que os corpos das pessoas mortas jaziam pelas ruas. Um país de jovens pela guerra, jovens pela fome, jovens pelas doenças mais básicas. O motorista não quer se lembrar de um mundo sem infância. Sem brincadeiras de rua ou futebol. Todos inseridos no mar de violência. Fica mudo por um tempo. Pensa ao manobrar. Nunca vai esquecer o que perdeu por lá. Não foi somente a inocência de crer. Crer em paz, crer em militar. Perdeu uma amizade. Morta por fuzil. Um tiro entre o olho e o nariz. Aponta exatamente o lugar. Morreu nas ruas. Um fuzil nas mãos de uma criança que jamais foi criança. Nas mãos de um sobrevivente. Guerreiro de mil guerras. Dez anos tinha. Acertou bem ali, parte vital. Seu amigo foi morto por um menino de dez anos armado com um fuzil quase de seu tamanho. Só Jesus. É só Jesus pra nos ajudar. Nesse mundo cão, sem infância, sem água, sem chão. Um povo destruído rompeu algo no motorista contador. Nunca mais foi o mesmo. Recebeu outras incumbências. Depois de seis meses no inferno foi mandado de férias para Nova York. Nada fazia sentido. Largou o uniforme camuflado. Deixou de lado o seu fuzil. Pediu um tempo, um médico, uma oração. Foi trafegar pela cidade, abrindo passagem para outras histórias. Agora quer ser policial no Rio de Janeiro. É mais tranquilo, diz Leandro. Mais tranquilo do que manobrar a vida dos outros sem saber bem o motivo de tudo isso.
Colaboradores Demétrio Pereira é jornalista e mestrando em Comunicação e Informação pela UFRGS. Gustavo Czekster é escritor e autor do livro O Homem Despedaçado. Natascha Castro é jornalista e mestranda em Comunicação pela UFF. Rafael Gloria é jornalista e editor-chefe do site Nonada -Jornalismo Travessia. Thaís Seganfredo é estudante de jornalismo e editora do site Nonada Jornalismo Travessia. Edição Rafael Gloria e Thaís Seganfredo Capa e ilustrações Paulo H. Lange/Wolke Projeto gráfico e diagramação Anelise De Carli/MÚSCULO Revisão Airan Albino e Priscila Pasko Logo Marianna Fraga Tiragem 300 exemplares